Post on 13-Apr-2016
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UNIVERSIDADE DE SAO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CltNCIAS HUMANAS
Departamento de Antropologia
A FAMÍLIA COM O ESPELHO UM ESTUDO SOBRE A MORAL DOS POBRES
NA PERIFERIA DE SÃO PAULO
CYNTHIA ANDERSEN SARTJ
TESE DE DOUTORAMENTO
Orientadora: Profa. Ora. Maria Lúcia Aparecida Montes
SAO PAULO
1 9 9 4
SIBLIOTE CA
' A FAMILIA GO~O ESPELHO
UH ESTUDO SOBRE A MORAL DOS POBRES NA PERIFERIA DE SAO PAULO
Tese de Doutoramento Departamento de Antropologia
Cynthia Ande~sen Sarti
Faculdade de Filo~ofia, Letras e Ci~ncias Humanas Universidade de sao Paulo
I Orientadora: Prof. Ora. Maria Lúcia Aparecida Montes
Sao Paulo
1994
UJI!CAMJ' Bil:lli()teça IFCH
Para meus pais, Gino e Sigrid,
e para ffi8Us filhos, Violeta e Júlio.
INDICE
pág.
Introduçao: A Trajetória de uma Pesquisa, _______________ 1
O traba 1 h o de campo'--------------------7
A hora do ponto final _________________ 14
Cap~tulo 1: O Universo Pesquisado 18 -----------------O projeto de melhorar de vida _______________ 21
Capítulo Os Pobres nas Ci€>ncias Sociais Brasileiras ____ 31
O paradigma da produçao, _________________ 35
O paradigma da cul tura __________________ 44
Uns e ou tros ________________________ 48
V a 1 ores t rad i c i ona i s _____________________ 51
CapítUlo 3: A Família como Universo Moral ____________ _
Sonhos que nao se realizam'-----------------
Lugar de homem e lugar de mulher ___________ _
Deslocamentos das figuras masculinas e femininas ______ _
O lugar das crianças __________________ _
Màe sol te i r a _________________________ _
Relaçoes através das crianças _____________ _
/'1.3e e pai: n,as horils boas e ruins ••
P r-DJ e tos f ami 1 i ares ____________________ _
Del imi taçiw moral da idéia de faml 1 ia _______ ~
t I f '
Capítulo 4: A Moral no Mundo do Trabalho. ___________ ll7
Pobres e trabalhadore5 _________________ 119
O trabalhador- como homem forte~ ____________ 122
O trabalhador- como pr-ovedor- ______________ 131
Trabalho feminino: doméstico e r-emuner-ado 136
Trabalho dos filhos 144
Tr-abalho como obr-igaçao entre ricos e pobr-es 148
Trabalho, desemprego e esmola 154
Capitulo s, Relaç6es entr-e Iguais 159
o vizinho como espelho 162
A sociabilidade local 165
Propr.ietár ;_·o X Favela do 167
Trabalhador X Bandido 174
Pobre X Mendigo e etc ... 184
Demarcaçào de fronteiras 186
Funçao ideológica da ambivaJ~ncia entre iguais ___ 193
Comentár-ios finais: O Br-asil como ele é _____________ 198
Bi bllog r-a f i a ------------------------------205
T _1
AGRADECIMENTOS
A Carmen Barroso, que garantiu minha
orientanda, no doutorado do Departamento
USP.
entrada, como sua
de Sociologia da
Ao Departamento de Sociologia da USP, que me concedeu
uma bolsa da CAPES.
A Fundaçáo Ford/ANPDCS, pela bolsa de pesquisa que me
permitiu contratar- Roberto Catelli Jr, como assistente de
pesquisa.
A FAPESP, pela bolsa de doutorado.
A Fundaçao Carlos
pesquisadora, pelo apoio
pesquisa de campo.
Chagas, onde
institucional
trabalhei como
que viabilizou a
A Guillermo O'Donnell, que incentivou a arrancada deste
projeto.
Ao Kellogg Inst.itute, onde passei um semE?str-E> como
professora-visitante, o que me permitiu dar- impulso ao
trabalho sistemático de análise dos dados.
A
tarefa.
Thomas Skidmore, que ajudou decisivamente nesta
A Roberto Da Matta, pelo apoio e estimulo fundamentais.
A Maria Lúcia Aparecida Montes, que me acolheu de
braços abertos como sua orientanda no Departamento de
Antropologia, onde terminei o doutorado. Embora a
responsabilidade seja evidentemente minha, este trabalho nao
teria sido o mesmo sem suas observaçbes minuciosas, argutas
e precisas.
III
Aos
pesquisa,
famílias
moradores do Jardim das Camélias, onde fiz a
a Ver-a e José Nogueira Souza e às
Santos Melo, de Lurdes da Silva
particularmente
de Ana e Sergio
Gomes, de D. Jandira dos Santos e de Seu Severino Isidro.
A Maria Lygia Quartim de Moraes,
especial.
de maneira muito
A Narciso Coelho Netto, que me ajudou tanto com sua
escuta.
A meu irmao Gino A. Sarti e a Gilberto F. Vasconcellos.
A meus pals, Gino Sarti e Sigrid Andersen Sarti, entre
tantas coisas, pela ajuda financeira terminar o
trabalho.
A meus filhos, Violeta e J0lio, com quem, nas
infindáveis horas em casa. sentada em frente ao computador,
em melo a uma ba.-afunda de livros e papéis, compartilhel o
anseio cotidiano de ver este trabalho concluído: Mamãe.
falta muito?
l ',/
Introduçào
' A TRAJETDRIA DE UMA PESQUISA
''Uma sociedade náo pode criar-se nem se recriar sem criar, ao mesmo tempo, alguma coisa de ideal. Essa
criaçào nao é para ela uma espécie de ato suplementar com o qual se
completaria a Sl mesma uma vez constituída; é o ato pelo qual ela se
faz e se refaz periodicamente."
Emile Ourkheim
Até elabor-ar- a pr-oposta deste tr-abalho, meu tema de
estudo tinha sido a mulher- e a família, par-ticular-mente
entr-e os pobr-es da cidade de S.3o Paulo (Sar-ti, 1985a e
1992). Deste ponto de partida, fui chegando à for-mulaçao do
problema desta tese, por tr-ilhas que náo estavam previstas
em seu projeto inicial.
A análise das r-elaç6es familiares, sobretudo a partir
da mudança nos papéis familiares, inevitável diante da
cr-escente ~ncorporaçao da mulher ao mercado de trabalho eda
possibilidade de contracepçào cada ve2 mais assegurada,
evidenciou uma questao estrutural na família moderna, o
conflito entr-e, de um lado, a afirmaçao da individualidade,
uma possibi 1 idade do mundo moderno, onde a tr-adiçao vem
sendo abandonada como em nenhuma outra época da história,
transformando a intimidade (Giddens, 1993) - e, de outro, o
respeito és obrigaç6es e és responsabilidades próprias dos
vínculos familiares.L
Na fam.:í.lia pobre, este conflito, ainda que exista
porque os pobres fazem parte do mundo capitalista, moderno e
individualizado, aparece pouco acentuado pela precedência do
todo - a família sobre as partes - o individuo fazendo
1 O conflito entr-e família. e individualidade constituiu um problema fundamental nas análises sobr-e a identidade feminina. Essa discussao encontr-a-se nos trabalhos dE' Br-una Fr-anchetto E't. al. (1981), Eunice Dur-ham (1983), Danielle Ar-daillon e Ter-esa Calde-ira (1984) e tem sido uma questao central no trabalho de Mar-ia Lygia Quar-tim de Moraes (1985, 1989/90 e 1993). Retomei-a também, em ar-tigo recente (Sar-ti, 1994).
com que as r-elaçbes familiar-es entr-e os pobres sigam um
padrao tradicional de autor-idade e hier-ar-quia.
Com a análise das relaçoes entr-e o homem e a mulher-,
que r-esultou em minha disser-taçao de mestr-ado, fui-me dando
conta dE> que a dificuldade de afir-maçào individual tanto
par-a o homem como, par-ticular-mente, par-a u. mulher-, que tem
uma pos_iç-a-o- SUbor-dinada na hierar-quia familiar-, er-a expressa
fundamentalmente como uma questao dee ordem mor-a 1 • Tal
dificuldade parecia manifestar-se como uma lncongruência em
seu universo moral, onde os elos de obrigaçbes em relaçao a
seus familiar-es deveriam prevalecer- sobre os pr-ojetos
individuais. Percebi, entao, que era necessário mudar o
r-efer-encial da análise, baseado numa possibilidade
genericamente atribuída à familia moderna, e per-guntar quais
sào os fundamentos que efetivamente estruturam as r-elaçbes
na família e definem o lugar de cada um no univer-so dos
pobr-es, segundo sua pr-ópria concepçào moral.
No projeto deste tr-abalho, perguntava que lugar ocupa
este código mor-al familiar~ hierárquico " patr-iarcal,
expresso nas r-elaçoes entr-e o homem e a mulher- e entre pais
e filhos (Sarti, 1985a), dentr-o do sistema mals amplo de
referinclas culturais dos pobres e, ainda, que relaçào tem
esta mor-alidade com sua posiçào estrutural de "pobres",
socialmente subordinados. Os "pobres" a que este tr-abalho se
~efe~e sào os destituídos dos instrumentos que confe~em
poder, rique2a e prestigio, bens supremos na soc1edade
capitalista. O problema que me interessava investigar, e que
continuou interessando, era o alcance deste código moral
hierárquico como referência simbólica para os pobres
urbanos.
Partindo da família, procurei compreender com que
categorias morais os pobres organizam, interpretam e dao
sentido a seu lugar no mundo. Para isso, observei, ouvi e
entrevistei os moradores de um bairro da per-i feria de sao
Paulo sobre sua vida na família e no bairro, bem como sobr-e
sua concepçao do trabalho, como a refer~ncia mais geral que
projeta suas vidas para além desse circulo r-estrito de
relaçbes. As reflexoes desta pesquisa incidiram, assim,
sobre os valores expressos na sociabilidade local, isto é,
no próprio grupo de referência dos pobres, mostrando nào
apenas como se relacionam com os "iguais", mas r-evelando
igualmente, e em contr-apartida, sua concepçào da relaçào com
os "desiguais''. As r-elaçbes de parentesco for-am
necessar-iamente levadas em conta, como parte desta
sociabilidade. As relaçbes familiar-es, estabelecidas pela
dinâmica entre consanguinidade e afinidade~ fazem pender- a
balança or-a para um lado, o do núcleo conjugal, ora para o
outro, o do grupo consanguíneo, como um p'ndulo constante
(Héritier, 1975), o que torna a rede de parentesco decisiva
na dinâmica das relaçties familiares, sob~etudo num contexto
onde os vínculos conjugais sào tênues, como é o caso em
pauta.
A pesquisa, que focalizou inicialmente a mo~alidade na
familia, estendeu-se também ao bai~~o e às ~elaçbes de
vizinhança pelas ca~acte~.i.sticas do bai~~o onde desenvolvi
meu t~abalho de campo, po~que nele, como nos ba~ ~~os da
pe~ife~ia em ge~al, os limites ent~e casa e ~ua sào tênues.
Quanto a questao do t~abalho, sua impo~tância na definição
dos papéis fami 1 ia~es pa~a os pobres t~ouxe esta questao
fatalmente pa~a a análise, ampliando uma pesquisa que, na
sua concepçào inicial, nao tinha uma idéia p~eci~a das
implicaçoes que o tema da família continha.
O desdob~amento da análise da familia pa~a as ~elaçbes
de vizinhança e para a concepçao que t"êm do t~abal ho os
mo~ado~es da pe~i feria foi mostrando como a moral idade na
qual se assentam as relaçbes familiares nào SE> limita ao
univE>~so da casa, mas se expande para fora, configurando um
sistema de valo~es que incide sobre seu modo de pensa~ o
mundo social e se coloca~ frentE> a ele. Ao perceber que o
mesmo pa~adigma mo~al se projetava para além do unive~so da
casa, foi se definindo mais precisamente o problema que se
tornou objeto deste trabalho. O estudo da mo~alidade dos
pob~es, expressa nas ~elaçbes que se criam em torno da
localidade onde habitam, configurou-se como um estudo da
construçao de sua identidade social, na medida em que- este
é o argumento central da tese - a auto-definiçào dos pob~es,
ou seJa, a definiçi3.o do lugar que ocupam no mundo social,
constrói-se dentro de uma concepç.3o da ordem social como
or-dem mor-al .:;z
A r-ei]e>:ào deste tr-abalho é pr-oduto nao só de uma
pesquisa, mas de uma tr-ajetória de pesquisa, que começou com
um tr-abalho etnogr-áiico anterior, cujo primeir-o resultado
foi minha dissertaçao de mestr-ado. Esta trajetória tortuosa
revela que, durante a r-ealizaçào de uma pesquisa, nào apenas
se desvenda aos olhos do pesquisador- uma realidade e>:ter-na
que nào se conhecia, mas também uma pr-ofunda
tr-ansfor-maçao no olhar- do pesquisador- durante este processo,
que, neste caso, se desenr-olou da familia par-a o fundamento
da ordE?m social na perspectiva dos pobr-es, sem que o
mater-ial etnogr-áfico tivesse se modificado substancialmente.
A definiçào da familia como via de acesso ao pr-oblema
da mor-alidade, embora cor-responda uma trajetór-ia
individual de pesquisa, nào foi uma escolha arbitr-ária, nem
casual, mas se foi delineando na medida em que e>:pandia
minhas observaçóes para for-a do univer-so familiar,
revelando-se a impor-tância da família como referência
2 O estudo da. moral serâ aqu1 cons:ide>r.o~do antr-opologicamente, numa pe>rspectiva durkheimiana, no sentido de negar qualquer "essência" (bo.:~
ou má) à ordena.çao moral qu12 f«zem os pobr12s do mundo social, em f.:~vor
da. interpretaçao que os SUJeitos envolvidos fazem de sua experi~cia de vida, eqJressa em su«s normas e valores. Para Durkheirn, d sançao, contr<Ap.:~rtida negativa. do ato moral. náo r-esulta da natur-eza. intrínsec;. ao ato~ mas do f.o~to de que existe>rn normas sociais que prescrevem 5Ua condenaçao, o que torna intr-insecame>nte social e, portanto, relativo o fato moral, sua proposiçao básica (Durkheirn, 1924). Sua forrnulaçao da "solidariedade orgânica", que fundamenta a divisao social do trabalho, como um elo de car.iter moral que vincula e integra os indivíduo5 socialmente, fE>z deste autor um clássico, um ponto de par-tida, de uma ''sociologia mor-al'' (Durkheim, 1960).
,,
simbólica para os pobres, d~ntro ~ fora da casa. A famllia,
pensada como uma ordem moral, constitui o espelho que
reflete a imagem com a qual ordenam e dáo sentido ao mundo
social.
O trabalho de campo
Meu convívio com o mundo dos pobres começou quando,
fazendo o mestrado em ciincias sociais, na época fim dos
anos 70 militante e agente do discurso fe>mini5ta,
identificada com ele, mas desconfiada de sua universalidade,
voltei meu interesse de pesquisa sobre a condiç~o feminina
para as mulheres de uma outra condiç~o social, diferente do
meu próprio grupo de referências, como defini na introduçao
de minha dissertaçao (Sarti, 1985a).
Desde entao, conheço e acompanho, de perto ou de longe,
algumas das famílias que moram no bairro onde fiz a
pesquisa. Vi alguns casarem, outros se 5epararem, alguns
morrerem, seus filhos crescerem, seus netos nascerem. Enfim,
como tudo que se v~ nos contatos longos que fazem parte da
nossa vida.
Fui-me dando conta de que algum;;.5 posturas na o
deliberadas permearam minha relaçàio com eles o tempo todo.
Acho que nunca fui considerada uma i gua 1. Sempre fui
di teren te. Todos sabem que moro 1 á no centro, 0 que, por
oposiç.3.o à periferia, sintetiza um e~xo de diferenciaçao
social básico. Eu estava neste conhecido terreno moved~ço
que caracteriza a posiçdo do antropólogo, de estar próximo,
pela situaçao de pesquisa, pela familiaridade que vai se
desenvolvendo, pelas aproximaçbes e preferências que vào se
estabelecendo com a convivência e, ao mesmo tempo, nào fazer
parte daquele grupo social.
Em conversa, sempre
muito. Queriam saber da
foram
minha
casamento, separaçào, trabalho,
pródigos. Conversávamos
vida, dos meus
casa, fam.ilia,
filhos,
minhas
opinides sobre fatos correntes, enfim, todos os temas que
eram objeto da minha própria investigaçào. Era frequente
devolverem-me a pergunta que eu lhes havia feito e foi dessa
troca que retirei a parte mais ri c a do material para
análise. Acho que era quando os entendia melhor, talvez
porque as definiçbes, opinibes e comentários surgiam clara e
espontaneamente por comparaçào, por contraste, permitindo
falar de uma mesma questào sob diversos ângulos. O discurso
flu.ia particularmente bem nestas ocasiOes de troca de
papéis, onde ambos, pesquisadora e pesquisado/a,
perguntavam, dando va2ào à curiosidade dos dois lados,
fazendo com que as diferenças e semelhanças aparecessem de
modo mais aberto.
tJ
As maiores dificuldades de comunicaçao apareciam quando
nao er-a possível romper- a distância que me> confere a
identificaçao com ''eles'', diferente de ''nós''. Na favela isso
er-a mais comum, ou er-a mais comum que começasse assim,
por-que, por- r-azoes óbvias, uma vez que vivem sob a constante
ameaça de um possível despejo, me r-ecebiam com desconfiança.
Se> E'U na o chegasse intr-oduzida por alguém JVe eles
consider-assem com toda segur-ança como ''um de nós'', a tar-efa
de pesqulsa tornava-se uma missao imposslvel, Quando o
assistente de pesquisa e eu chegamos, apr-esentados por um
morador- que, depois per-cebemos, nao gozava de reputaçao
favor-ável, o máximo que conseguimos, numa situaçao tensa e
desagradável, foram r-espostas for-mais ao nosso roteir-o, que
se r-evelou, nessa hora, um instrumento inútil.
Como nor-malmente eu chegava nas casas através de algum
mor-ador local já conhecido, rar-amente havia desconfiança em
relaçao ~ minha pr-esença, como alguém que causaria danos ou
pr-oblemas às pessoas ou ao local. Houve frequentemente a
expectativa de que, com meus recursos, conferidos pela minha
escolar-idade, e todo o ''saber'' que ela implica em termos de
manejar a r-esoluçao de> pr-oblemas, meus contatos
profissionais minha pertinência ao "centr-o", eu os
ajudar-ia na resoluçao de problem.as locais ou pessoais.
Através destes pedidos, alguns explicitas, quando se tr-at.ava
de questoes coletivas, do bairr-o, outros suge~idos, quando
se tr-atava de questbes pessoais, foram insinuando p.ara mim a
maneira como se relacionam com os "outros".
Houve momentos em que percebi, no contato inicial a
clara expectativa de que eu pudesse trazer melhorias ou
benefícios para suas vidas. Mas essa nao foi a tônica do
contato com a populaçao local. Ou a continuidade do contato
dissipando essa primeira abordagem, ou havia um
afastamento, na medida em que a expectativa era frustrada. A
impressao que me ficava de que a entrevista eca
sobr~tudo uma oportunidade singular em suas vidas, a
oportunidade de falar e, principalmente, de ser ouvido.
Frequentemente falavam com muito entusiasmo e respondiam
acuradamente, com o esmero de quem tlnha a satisfaçào de ser
perguntado, prova rara do reconhecimento de sua existência
por alguém que nao pertence a seu mundo.
Costumava
constrangi menta
avisar
em
da minha
chegar sem
ida, porque havia um
avisar e pegá-1 os
desprevenidos, com a casa suja e em desordem. Nao era tanto
o sentido da privacidade que estava em questào, mas o fato
de que a casa é uma extensào da pessoa, um valor através do
qual demonstram sua respeitabilidade. Poc isso, eca
importante, mais do que em outros grupos sociais, que ela
estivesse em ordem: fazia parte da tentativa de causar boa
imprE?ssdo. Com D convívio, entretanto, esses
constrangimentos foram desaparecendo, como me disse uma
mulher conhecida havia alguns anos: quE?ro que você chegue
na minha casa a qualq1.1er hora~ como se fosse a sua casa.
Para ela, era a generosidade de ter as portas abertas que
contava.
Inicialmente, cada detalhe do convívio envolvia alguma
tensáo, para que se assegurassem de por quê eu estava lá.
Com o tempo e o convivia, essa relaç~o ficava menos tensa,
sem necessidade de constantes testes e provas. O pesquisador
tem que lidar com os problemas de comunicaçao que enfrenta
qualquer pessoa estranha ao p&daço (Magnani, 1984) qu~
envolvem a possibilidade d~ uma linguagem comum
entender o que o outro quer dizer com seu gesto ou palavra e
para se fazer entender.
Escolher aquele local para a pesquisa foi considerado
muitas vezes uma forma de prestar atençao à sua populaçáo, o
que levava as pessoas a serem receptivas. Serem escolhidos
para a entrevisti3. era visto como uma deferi?'ncii3. de minha
parte. Retribuiam, entào, abrindo as portas de suas cdsas,
quando náo os segredos de suas almas. A escolha dos
entrevistados envolvia um certo cuidado de minha parte, para
n.3.o ferir suscetibilidades. Se, na prática do trabalho de
campo, os critérios de seleçáo da amostra em funçao do
problema estudado norteiam sem dúvida nossas escolhas, o que
conta decisivamente é a percepçao das circunstâncias locais.
Uma morado~a sugeriu-me que eu entrevistasse uma mulher que
morava na sua rua e justificou: Ela ~ muito boa pessoa. Essa
sugestao teve um duplo sentido: é necessário escolher quem
passe uma imagem positiva do bairro, porta-vozes
' ' .c c
selecionados, como também significa que eu náo podia falar
com qualquer- pessoa. Os contatos com os que nào sao do
''mundo da ordem'' envolveram explicaçoes d~ que eu nao estav~
"tr.:undo" este mundo, em favor- dos que nao er-am consider-ados
respeitáveis no local, de que nào estava r-ompendo nenhum
pacto anterior. O mesmo acontecia em r-elaçào às facçbes
políticas e às dissensbes religiosas.
Havia per-manentemente um elemento de troca, um dar e
receber contínuos. A r-elaçáo dos moradores comigo e suas
atitudes em r-elaçi:io à minha presença no local ajudar-am-me
muito na compreensao de sua relaçáo com os ''outros'', os que
nào consideram como ''iguais''. Pude perceber, ao longo dos
diferentes momentos da pesquisa, mani festaç6es da
multiplicidade de posturas que tim em relaçào a ''eles''. Num
certo sentido, minha relaçao com eles sintetiza a
variabilidade das posturas com relaçáo aos ''outros''.
Havia subjacente uma defer~ncia pela ''cultura'' da qual
sou portadora. Os pobres demonstram um enorme r-espeito pela
"educaçào", que constitui um valor, mas, como todo valor, é
relativizada.~ Nào deixam de apontar limites, expressos numa
3 "Ter cultur-a", no universo do" pobres, segundo a análise de Élcio Verçosa ( 1985) em seu trabalho sobre as práticas pedagógicas e>scolares, diz-se de uma pessoa que domina uma significativa par-te deste acervo de dados em que consiste o conhecimento, dado pela escolaridade, alguém que t~m lf?ituroJ. No entanto, a boi! E>ducôlçiio envolve ainda incorporar ao procedimento os valores morais que caracterizam a boa conduta, o que a escola se esforçará também por fazer. Isto significa que uma pessoa pode "ter cultura", mas nao ser educada, introduzindo-se, assim, sempre pelo prisma moral, uma relativizaçáo de um dos bens que demarcam desigualdades sociais, a educaçáo.
j -,
desconfiança: a sabedoria náo está só nos livros, mas na
prática de quem lida com a vida, na experiência, valor que
fala mais alto; uma mulher que, em sua própria definiçào, lê
e escreve ''muito pouco'', disse-me:
Eu acho que ler e escrevE?r é mui to bom, mas quando a pessoa sabe 1 E> r e na· o sabe se ded.i c ar a si próprio, náo adianta.
No meu ponto de vista é isso: nao ad.iant.:1 eu sabE?r }E?r mundos e fundos e náo saber resol\o'E'r problema nenhum.
Essa experiência é uma aprendizagem que só adquire quem
anda pelo mundo, porque:
O maior pro"fessor do ser humano é o mundo. É
quem nos ensina de tudo. Por mais que você aprendaJ você náo aprende 5E' você náo anda o mundo. Nuito eu andei e muito eu aprendi.
Como em qualquer coletividade humana, na afirmaçao de
sua identidade, desqualificam e zombam do diferente. Em sua
crença de que rico nao trabalha e de que quem tem leitura
nao conhece a vida, cri.;~;m a imagem do rico folg.;~;do e do
intelectual otário, frequentemente objeto de galhofa. Se
esta atitude corr-esponde a uma for-ma de auto-valorizaçao
defensiva, diante de bens a riqueza material e a educaçao
aos quais eles nao têm acesso, ela é a contrapartida de
1
auto-afirmaçâo em face da crença discriminatória dos ricos
de que pobre é ignor~n te, atrasado, n~o quer saber de
trabalhar, nao tem moral. Estes mecanismos de relativiz~çáo
auto-afirmativa serao largamente comentados ao longo do
trabalho.
Sempre soube que tinham a meu respeito uma pos.<çao
clara, que quanto mais os conhecia, ma~s me conheciam
t~mbém; enfim, sempre tive presemte que se tratava de uma
r-elaçao. Fui aprendendo a con hec:é-1 os, diferenciá-los,
definir minhas própr-ias simpatias e desconfortos, e entender
sua atitude em relaçáo a mim; sua deferência, seu respeito,
sua generosidade; sua indiferença, sua hostilidade; como
buscavam se aproveitar de minha condiçáo social, muitas
vezes, depois entendi, naquilo que, para eles, é também
obrigaçcio em relaçâo aos pobres; ou a postura inversa, de
afirmaçáo de sua dignidade, autonomia e orgulho.
A hora do ponto final
Quando penso no que v~ e ouvi durante o trabalho de
campo, analisando as páginas e páginas de entrevistas
tr-anscr-itas e as observaçbes anotadas no diário de campo,
percorrendo as trilhas habituais do trabalho antropológico,
1_4
familiares a qualquer pesquisador, lembro de im~diato, como
se visse um filme, de cada um dos entrevistados em sua
singularidade, na maneira como cada um nos acolheu, na
relaçào que foi possível estabelecer entre entrevistado-
entrevistador e que produziu aquele resultado particular,
nunca igual de uma entr-evista para outra, apesar dos
r-oteiros e técnicas dos qua~s nos mun.1mos para garantir
resultados. Nunca igual porque a entrevista é uma relaçao
humana, permeada por nossas paixoes e inseguranças,
produzida num dado momento, portanto única. A leitura de
todo o material e a lembrança da experiência de pesquisa.
vi'lida remete a esta singularidade e ao mesmo tempo aos
mecanismos subjacentes que cada caso particular evidenciou.
Qua11do percebi estas evidências, achei que tinha pistas que
me permitiam pôr um ponto final no trabalho de campo,
organizar o material, absorver e digerir- esta exper-iência e
pas!'>ar à análise. Quando isto aconteceu, além dos dados de
observaçào, anotados cuidadosamente ao sabor dos
acontPcimentos, eu tinha entr-evistado 27 homens e mulheres
de diferentes unidades domésticas e/ou familiar-es, com
g ravadnr, hora marcada e um roteiro básico, que foi se
modificando confor-me as alteraçôes na problemática da
pesquisa descr-itas anter-ior-mente. Neste periodo, de 1988-90,
contei com a valiosa colaboraçao do Roberto Catelli Júnior
para o trabalho de campo.
j c:·_ ~·
i»~;-·
Estes dados se somaram ao material comparativo do
trabalho anterior, que consistJ.a no survey mencionado,
diário de campo e entrevistas gravadas (Sarti, 1985a) e,
ainda, às entrevistas feitas para outra pesquisa no mesmo
bairro, complementar em muitos sentidos a esta. Trata-se da
pesqu2sa coordenada por Roberto Da Matta, de março a maio de
1992, em colaboraçao com Marcos Lanna e de cujo trabalho de
campo participou também C e 1 este Da Ma t ta, como parte do
projeto conjunto CEBRAP/Kellogg Institute (Univerç,idade de
Notre Dame), sobre ''Politicas sociais para os pobres urbanos
na América Latina'', cuJOS resultados aparecem no trabalho de
Roberto Da Matta (1993bJ.
Concluído o trabalho de campo e tendo em màos os dados
analisados, a forma de exposiçào deste trabalho reproduziu a
trajetória da pesquisa, que se foi ampliando do espaço da
casa para as fronteiras do bairro, traçando um caminho
cumulativo que desencadeou a reflexao sobre a moralidade dos
pobre>s.
No primeiro capitulo, descrevo as car-acteristicas do
unive>rso onde fiz a pesquisa que sao significativas para os
problemas que serào discutidos na tese.
No segundo capítulo, comento o que dizem e a imagem que
fazem dos pobres as ciências sociais brasileiras, sem
pretender dar conta de toda esta literatura, mas apenas
situar meu trabalho em relaçáo às suas matrizes básicas de
·,;.;.·. _f_
análise.
No terceiro capitulo, a análise focaliza a família. O
argumento básico é que a noçao de "família" para os pobres
tem um fundamento h~erárquico e patriarcal e se constitui
através de um sistema de obrigaçbes morais, cujo sentido se
projeta para além da própria família.
No quarto capitulo, continuo a análise dos parâmetros
positivos através dos quais 05 pobr-PS constroem sua
moralidade, focalizando sua concepçào do trabalho. Procuro
demonstrar que o principio moral que fundamenta o valor do
trabalho para o homem, a mulher, a criança e o jovem se
insere dentro de uma lógica relaciona}, onde o trabalho
embora exercido individualmente, se projeta, para além de si
e do próprio trabalhador, no universo familiar e social,
passando pela ordem sobrenatural.
No quinto capítulo, analiso os desdobramentos desta
ordem moral fundada nos valores da família e do trabalho,
considerando os mecanismos de identificaçào e de
diferenciaçào dos qua~s os pobres lançam ma o para a
elaboraç.3o de sua identidade social, através da análise da
sociabilidade local, que reflete e se projeta para o plano
mais geral da sociedade.
Desta trajE>tória. que resultou numa pesquisa, fica a
tentativa de compreender o que tudo isso pode nos dizer
sobre a sociedade brasileira.
!
I \ I.
I
..' .. /
Capitulo 1
D UNIVERSO PESQUISADO
''Náo havendo assunto pequeno, mas pequeno investigador, cada aspecto da
cultura, cada ângulo da atividade humana, permite percentagem analítica
bem inferior a seu volume real.
Luis da Câmara Cascudo
J 8
Um desencanto fundamental marca os pobres urbanos em
Sao Paulo hoje, anos 90, retrato da derrocada da promessa de
felicidade que encerrava o crescimento industrial
econBmlco do pais, com o ''progresso'' que beneficiaria a
todos. Desencanto pelas suas experiências de vida e pelo que
devolvem a todo o pais como a imagem mais visível dessa
frustraçao. Suas vidas sào o resultado da industrializaçao e
da urbanizaçao do pais, a partir dos anos 50, e da migraçào
que fez parte deste processo, ''o sonho feliz de cidade''· a
promessa de dias melhores, que os trouxe para o Sul.
busc.=~ndo o Br.=~sil moderno, cuja síntese perfeita estava em
metrópoles como Sao Paulo. Sonho que forjou as periferi.=~s
pobres das cidades, obrigando sua populaçao a "chamar
depress.=~ de r-e.=~lid.=~de", nas palavr-as de Caetano Veloso, o
que se mostr-ou "o avesso do avesso" de seu sonho.
Como par-te do movimento mais amplo da expansao
econômica do país e da reor-denaçao social que dela decorreu,
este movimento de migraçáo deslocou-se para Sao Paulo
sobretudo nos eufóricos anos 60 e 70, nao apenas como
consequência da expansao da cidade de S.3o Paulo e intensa
urbanizaçào por que passava o pais, mas como resultado de um
processo de tr-ansformaçao do sistema econômico e social que
afetou tanto a cidade como o campo, r-edefinindo as relaçoes
_1'7
sociais em todo o pais, 4
Esta pesquisa desenvolvE>u-se em um desses muitos
bair-r-os que se expandir-am como consequência deste intenso
pr-ocesso de deslocamE>nto da populaçào tr-abalhadora do pais.
É consequência de um contato de mui tos anos. Como contei,
conheço desde 1979 alguns dos mor-adores da localidade, um
bairro em Sào Miguel Paulista, na Zona Leste da cidade de
Sào Paulo. De 1979 a 1981, fiz a pesquisa para minha
dissertaçào de mestrado sobre as mulher-es pobres ( Sarti,
1985a) Fora r-etornos esporádicos, volte i depois de alguns
anos, em 1988, par-a recomeçar o trabalho de campo. Desta
vez, para a tese de doutor-amento.
Em meu tr-abalho anterior, faço uma descriçào detalhada
do cotidiano do bairro, sua história e caracterizaçào sócio-
económica da populaçào (Sar-ti, 1985a) Pretendo aqui retomar
apenas algumas caracteristicas da populaçào 1 oca 1 , para
r-essaltar o impacto que me causou a volta ao bair-ro depois
de alguns poucos anos, permitindo ao leitor visualizar- a
quem se refer-e a reflexào que se segue.
4 Esta corr~nt~ migratória, como parte de um processo de âmbito n.-.cional, foi .-.nalis.-.da por Eunice Durhdm (1978), num tr<tb.-.lho clássico sobre os pobres e exemplar na tentativa de articular .-. pdrticular-id.-.de de seu lugar- soci.-.1 com a socied.-.de mais ampla, Quanto à e~pansào
específica d.-. cid.-.de de Sào P.-.ulo, a liter.-.tura é e~tensa. Sobre a formdçao d.t periferia de Sào P.-.ulo como uma s.-.:íd.-. p.-.ra o problem<~ d.-. habit.-.çao popular, dentro do processo de e~pansáo d.-. cid.-.de, ver- os tr-.-.b.-.lhos de Lúcio Kowarick (1979) e Nabil Bonduki (1983 e 1988).
O projeto de melhorar de vida
Como a maior- par-te dos pobr-es que vivem hoje em Sao
Paulo, a populaçao adulta do bair-r-o é, em sua maior-~a,
migr-ante, sobr-etudo nor-destina. Quanto mais aumenta a j idade, maior- a pr-obabilidade de que o morador- seja migrante.
As cr~anças e, hoje, também os adolescentes j~ sao em sua
grande maior-ia nascidos em S.3o Paulo, dada a diminuiçao do
movimento migratório. É:, portanto, um bair-ro de velhos e
adultos migrantes, mui tos de origem rural, e de jovens e
crianças nascidos e criados na cidade grande.
O bairro começou a se expandir efetivamente a partir
dos anos 70. Em 1980, ainda nao fazia dez anos que a gr-ande
maioria dos habitantes locais (92,1X) lá se havia instalado,
segundo o survey feito no bair-r-o, por- ocasiào da pesquis.3
para dissertaçao de mestrado, em col.3boraçào com Tereza
Caldeir-a analisados em nossos trabalhos anterior-es
(Caldeira, 1984 e Sarti, 1985a).
Neste retorno ao bairr-o, entrevistei muitos dos maridos
e filhos das mulheres entrevistadas antes. Voltei a outr-as
famílias que se haviam desfeito, outras em que os filhos
crescer-am e também foram entrevistados. No começo dos anos
80, a maior parte das mulher-es era migremte e tinha seus
filhos pequenos. Agora, retornando a estas famílias pude ver
os filhos criados em Sao Paulo, essa geraçao que cresceu na
periferia urbana e comparar seus padróes de comportamento, a
permanência e a mudança. Alguns ainda est~o solteiros,
outros casados, como tantos, pela segunda OLI ma1s vezes. Há,
ainda, entre os entrev1stados màes solteiras, viúvas, com e
sem filhos, homens e mulheres em arranjos familiares
diversos e em diferentes posiçbes dentro do grupo familiar:
pai, mae, filho e filha. sao católicos ou pentecostais (de
diversos credos); de resto, seguem as outras conhecidas
características da populaçào da periferia, protissoes
desqualificadas, baixos rendimentos, instruçao baixa
(sobretudo os mais velhos)
No início dos anos 80, o bairro cor-respondia à franja
da cidade de Sào Paulo. Nos últimos anos, expandiu-se à sua
volta um aglomerado de casas construídas em terrenos
invadidos, a "favela", r-ealocando, portanto, a margem da
cidade. Alguns dos entrevistados moram nesta parte do bairro
que, como foi descrito, começou a se expandir nos anos 70;
vivem em casa própria com terreno próprio, ou casa alugada.
Outros moram na favela, em casa própria em terreno lnvadido.
Diante da favela contígua, a populaçao local pensa o
bairro hoje como um lugar intermediário, numa r-e laçao
segmentar e hierarquizada do espaço da cidade. Li c ia
Valladares (1991) comenta o processo de periferizaçao das
metrópoles brasileiras, que se consolida na década de 70,
deslocando a pobr-eza urbana das favelas para as margens das
cidades. Segundo esta autora, ''esta nova territorialidade da
,_.,-,
pobreza colocou em evidência o chamado 'mor-ador da
periferia', em detrimento do 'favelado' reificado pela
teoria da marginalidade e até entao reconhecido como 0 pobre
por excelência" (p. 104) Por esta E>xpansao constante da
cidade, a emergência do "morador da periferia" como ume~
categoria que define o pobre nao substituiu, mas redefiniu o
sentido do termo ''favelado'', que passou a ser ''mais pobre''
do que o pobre I morador da perifer-ia, constituindo uma
importante referência para a diferenciaçao interna nesta
localidade.
Além da presença da favela, que deslocou o "pior lugar
da cidade" para além do bairro, redefinindo em termos
relativos a posiç.3o em que se vêem os moradores,
efetivamente ocorreram melhorias no local, relativamente ao
que era há 10 anos, sobr-etudo quanto à infra-estr-utur-a
urbana, bens de consumo coletivo e aos bens de consumo nas
casas, evidenciando que, apesar- da for-te recessao econômica,
a década de 80 nao foi assim táo ''perdida''.~ As máes nao se
preocupam tào angustiadamente com a volta de seus filhos e
filhas para casa, depois da escola noturna. Há luz nas ruas.
Uma ocasiào, num dia de muito calor, com minha Lhegada
5 A idéia dos anos 80 como uma ~década perdida" apar~c~ numa linha de pesquisas sobre os pobrt~s que analisa a relaçáo entre trabalho, pobrt~2d \ e família. Ver os trabalhos de Juare2 B. Lopes e Andrea Gottscha.lk (1990) e o de Vera. da Silva Telles (1992). Para uma rela.tiviza.çao desta idéia, v~r os artigos de M. Conceição Tavares (1991) eM. Lygia Quartim de Moraes (1993) e, ainda, a análise de Vilmar Fada (1992) sobre a conjuntura. social brasileira.
impr-evista, a pessoa que eu visitava fez filho comprar-
r-efriger-ante par-a me ofer-ecer- na Pawar~a próxima,
possibilidade antes inexistente. Aço~;Jue, far-mácla,
super-mer-cado estào agor-a a seu a l c a" ::;:o sem grandes
deslocamentos. Abr-iram-se novas vias de a·::esso ao bair-ro,
onde os car-r-os e ônibus circulam sobre asfalto e os
pedestres andam sobre calçadas, r-empena:: o confinamento I
tantas vezes antes expresso numa sensaçào Q= fim de linha ...
As possibilidades de consumo se ampli.;;r-a:r"! r-elativamente
ao que era antes pela pr-ópr-ia expansao üa sociE>dadE> de
consumo quE>, num mE>canismo de "particioc.ç:ao excludente",
r-eser-va uma fatia de seu mercado à populaça:: de baixa r-enda
e, como ar-gumenta Eunice Dur-ham (1984b), esses novos padr-bes
dE> consumo sào vividos pela populaçào pobr=, especialmente a
de origem r-ur-al, como melhor-ia de vida. Esta percepçao
situa-.sE> mais amplamente dentro da per-spe::-:iva de vida dos
morador-es da per-ifer-ia ur-bana, cuja exis7.êr.cia é motivada
por este pr-ojeto de melhorar de vida, qu= envolve o grupo
familiar- em seu conjunto (Durham, 1988)
Se o desemprego e situaçDes imprevistas levam 05
projetos familiares a serem constantemen~e refeitos, se os
filhos na o esta o estudando como desejável s~
sacrificios com os quais nao se contava poae~ estar em curso
dentro das inúmeras "estratégias de s~:Jr-eviví?ncia" dos
pobr-es urbanos, descritas pela~ ciência: sociais (Bilac,
1978, Macedo, 1979' Woortmann, 1984}' bair-ro obteve
24
visiveis melhorias quanto a bens de consumo coletivo, como
resultado do impacto de lutas sociais de bairro nesta década
em que novos atores políticos entraram em cena.
Neste bairro, particularmente, serviços públicos como
um Posto de Saúde (estadual) e uma creche (municipal) foram
instalados a p.;~rtir de movimentos femininas. A press.áo da
populaçào local junto aos órgàos públicos efetivamente teve
efeito favorável à inst.3laçâo desses serviços, num momento -
começo dos anos 80 - em que est.;~s questbes ocupavam a agenda
politica. Aliás, entre os ganhos da década de 80 está
lndiscutivelmente experie;ncia democrática vivida nas
diversas instâncias da vida política do pais, que fez
aumentar o poder de pressao da populaçao pobre das
periferias urbanas.
As mudanças ocorridas na regiào confirmam a idéia,
expressa por seus moradores, da transformaç.áo da periferia
como um processo constante, tanto no espaço físico que se
expande, como na perspectiva de seus habitantes de melhorar
progressivamente sua vida, continuando este projeto familiar
que se iniciou desde o momento em que eles, ou seus pais,
resolveram migrar.
A expectativa de melhorar de vida está relacionada à
condiçào de migrante, constituindo o Jeitmotiv de migrar. Em
termos de suas histórias familiares, os moradores deste
bairro falam da percepçao de uma mobilidade social em
·,: I
I
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I ' ' I' ,, '
r-elaçao à geraçào que os precedeu, no sentido de que tiveram
acesso a r-ecursos inexistentes em seus locais de or-igem,
sobr-etudo no que se r-efer-e às oportunidades de tr-abalho, de
consumo e de educaçao par-a seus filhos encontr-adas na
cidade. Seguindo o padrao t.ipico da localidade, o de ter
origem migrante e viver a expansào familiar em Sao Paula,
uma das entrevistadas, nascida em Alagoas, conta que diz
para as filhas, nascidas e criadas em sao Paulo:
1'1esmo com a vida que a gente leva, é bem melhor do q1..1e aquela \<'ida que eu levei,, porque eu tinha tanta vontade de estudar, era c:urios.:< em mui tas coisas e nao consegui •• _
Além de aparecer nas famílias pobres de origem rural,
essa idéia de uma mobilidade em r-elaçao às opor-tunidades
apresentadas às geraçbes anter-iores surge também entre as
famílias paulistanas, na medida em que SE' associa às
possibilidades do meio ur-bano.
Nao há dúvida de que se tr-ata de uma melhoria relativa.
Sabe-se que as possibilidades de melhorar de vida esbarraram
nos limites da r-ecessáo econ3mica, agravada desde o inicio
dos anos 80. As conjunturas de recessao, no entanto 1 apenas
acentuam, muitas vezes gr-avemente, o que é a instabilidade
estrutur-al do emprego par-a os pobres.
I
Se, hoje, a populaçào das periferias urbanas conta com
água, luz, esgoto e asfalto em um n~mero cada vez ma~or de
suas casas e suas ruas~ também afetam estes moradores, como
todo pobre urbano, o desemprego e a diminuiçao do valor real
dos salários, com a consequente diminuiçao da renda familiar
- o que obriga a incorporar as màes e os filhos à força de
trabalho em momentos nao desejados, sacrificando os cuidados
maternos e contrariando, assim, valores que lhes sáo caros -
~lém O~s constantes ameaças de violencia que pairam sobre
seu cotidiano.
As dificuldades encontradas na cidade para estudar
desencorajam o projeto de ascensáo social através da
educaçáo. Como raramente os migrantes vindos da zona rural
dominam a leitura e a escrita, pensadas como o instrumento
de adequaçao aos códigos urbanos, esta esperança é
depositada nos seus f i 1 hos, como, entre tantos outros,
mostrou recentemente M. Cristina Costa I 1993 I. As
dificuldades enfrentadas na cidade, onde se integram como
pobres, o desencanto das promessas nao cumpridas pela cidade
grande, levam à idealizaçao do passado e à constr-uçao do
sonho de voltar para o Norte. 0
Esta pesquisa refere-se, por--tanto, a um segmento da
popu 1 açao que v i v e num bair-ro da periferia de S.3.o Paul o,
6 M. Cristina Costa (1993) fala analogamente da re-construçao mitica da ''comunidade rural'' entre os bóias-frias, migrantes que vivem nas periferias urbanas do interior paulista.
situddO numa das ~egioes mais pobres da cidade. Os moradores
deste bairro definem-se como pobres e trabalhadores, em
oposiçao aos ricos, categoria que engloba diferenciaçoes
tais como os patroes, os que moram no centro, os estudados e
que, por fim, se refere propriamente ao padrao de consumo
que lhes é negado. Diferenciam-se, entretanto, de outros
pobres, por terem casa própria. Pode ser um barraco, mas é
seu ba~~aco. sao proprietários, o que ni:i.o quer dizer
necessariamente estabilidade econ6mica, mas é a marca de uma
importante distinçao simbólica, realizaçao de um valor
social, tipicamente burguês, por eles comparti 1 h a do, de
acordo com o mundo regido pela lógica do mercado, mas cujo
significado náo se esgota ai.
Foi a possibi 1 idade de comprar um terreno e levantar um
cômodo o que levou os mig~antes, nos eufóricos anos 60 e 70,
a estes bair~os longinquos, sem infra-est~utu~a urbana e sem
certificado legal de propriedade dos te~renos que, por essas
razOes, tinham preço acessível. Perseguiam a realizaç.3o do
sonho da casa próp~ia 1 o conhecido projeto que, junto à
criaçao de uma familia uma vez que casa e f ami 1 i a sã. o
p~ojetos que só fazem sentido quando combinados um ao outro
(Woortmann, 1982 e Sarti, 1985a) constitui um projeto
cent~al da existência dos trabalhadores que se estabeleceram
na cidade- (Durham, 1978, Macedo, 1979, Caldeira, 1984 e
Costa, 1993) e que os diferencia de outros pobres, os que
ndo tem nada, os pobres mesmo.
I'
,, 1:' 11,
' '
Ainda que os pob~es estejam em toda a parte nas g~andes
cidades, concentram-se em sua p-r•t-r•·, c·• nd ..- ... c- _...,. , .... a o um espaço
p~óprio, reconhecido como o seu lugar nas cidades. onde se
pode observar e identificar mais claramente sua maneira de
viver, diferente dos moradores das regióes centrais. Como já
demonstrou a literatura sobre os pobres urbanos, o local de
mo~adia, através das ~elaç6es sociais que nele se
de>senvol vem, constitui a base de uma identidade cal e> ti v a
(Magnani, 1984, Caldeira, 1984, Zaluar, 1985, Durh~m, 1988).
Os migrante>s que vivem nas per-ife~ias ur-banas sào um
grupo social com fronte>iras imprecisas, ao contrário dos
gr-upos étnicos que, ao chegarem no novo lugar de moradia, se
e>struturam em torno de uma identidade comum, construída com
elementos que já traziam em sua bagagem. Essa identidade
cria-se, para os migrantes, na pe~iferia, lugar dos pobres
na cidade, que v~eram de muitos pontos diferentes,
comportando muita heteroge>neidade, mas const~uindo uma
referência básica comum em to~no de seu local de moradia.
Quando seus problemas de adaptaçào na cidade já estao
relativamente assentados, os migrantes en f ~en tam, como I ,, ' qualquer nativo da cidade, o problema de serem pobres e sua
origem, embora ma~que sua existência, passa a ser secundária
diante do fato de que o que conta agora é o que a cidade
lhes ofer-ece.
Se acentuei o impacto das mudanças e melhorias na vida ;I··
' i
dos moradores das pe~i ferias u~banas é porque me pa~E>CE'
importante para sua deiiniçáo de pobres no mundo urbano,
particularmente na cidade de sao Paulo, já que esta
defin1çao comporta uma ambiguidade: vivem num dos pólos ma1s
modernos e desenvolvidos do pais e ne 1 e traba 1 ham, sendo,
portanto, cotidianamente defrontados com as possibilidades
deste mundo, sem que, entretanto, a elas tenham acesso
precisamente por serem pobres. Nesta ambiguidade, neste
querer e nao poder, os pobres estruturam sua identidade
social e constróem seus valores, procurando retraduzir ern
seus próprios termos o sentido de um mundo que lhes promete
o que nào lhes dá.
-·::u
Capitulo 2
A
OS POBRES NAS CIENCIAS SOCIAIS
BRI">SILEIRI">S
''Para afirmar ou negar uma tese, a história do homem encarrega-se de comprovaçoes
inesgotáveis".
Luis da Câmara Cascudo
Muitas coisas foram dit's e esCrl.t's ~ a sobre os pobres e
muitas categorias usadas para dE>fini-los, cada uma
correspondendo a uma maneira de vê-los. Ressaltarei, no
entanto, apenas os aspectos que me parecem relE>vantes para a
discussao de como os pobres constróem e fundamentam seu
lugar no mundo social. Como disse na Introduçao, esta
revisa o da 1 i teratur-a na o pr-etende absolutamente ser
exaustiva e muito menos fazer justiça à cantribuiçáo de
todos os trabalhos aqui mencionados. Pretendo intr-oduzir as
vis6es que compartilho e aquelas às quais me contraponho,
I
I para que, através da análise dos dados desta pesquisa,
f i quem evidenciadas as semelhanças e diferenças dE'StE'
trabalho com relaçào à literatura comentada.
Percebe-se uma identificaçao constrastiva nas
diferentes imagens que se construiu dos pobres, tornando-os
um "outro", que muitas vezes diz mais de quem fala do que de
quem se fala, como uma projeçáo negativa.
Na análise dos pobres na literatura brasileira, Alfredo
Bosi (1982), comentando Vidas Secas de Graciliano Ramos,
destacou o olhar crit1co do autor que, ao descrever a
"carência" do iletrado, denunciou o "vazio", o "oco" do
discurso do letrado, instrumento de sua dominaçào. Ao
descrever o migrante, falou do outro, que o oprime. Partindo
da idéia da carência, o autor construiu uma visáo do
migrante nordestino onde estava pressuposta a modéstia de
sua vida simbólica, a partir da modéstia de seus meios de
vida. Este roman~e, escr'to em 1937, antec'p · · ,_ ... .... ou uma v~sao
critica do pobre, a partir da denúncia dos instrumentos de
dominaçao da sociedade de classes, que teve ampla
repercussào nas ciências sociais, sobretudo nos anos 60 e
70, no pais já industrializado e politicamente marcado pelo
golpe de 1964.
O pressuposto da falta estava implícito numa visio do
pobre marcada pela critica da sociedade, que me parece ser
ainda a t8nica na literatura. Falou-se mais da pobreza do
que do pobre; ao se denunciar o sistema, elidiu-se o
sujeito. Se a carência material nào é mais suficiente como
critério de definiçào do que é ser- pobre, pela critica
amplamente di fundida aos 1 imites da perspectiva puramente
econômica, há hoje uma tendência a considerar a pobreza
como ctusência de direitos, ou seja, na relaç:ào entre a
pobreza e a cidadania, como é o caso do trabalho de Vera da
Silva Telles (1992). Assim, mudou-se o eixo de definiç.=::i.o da
condiçao socictl dos pobres, mas se manteve a falta como
referência, apesar das críticas neste sentido feitas por
Éder Sctder e M. Célia Paoli (1986), para quem a literatura
mais recente sobre as "classes populares" insurgiu-se contra
a produçáo acadêmica forjada a partir de uma representaçao
negativa dos pobres, incapazes de se pensarem
homogeneamente, como "classe". A meu ver, esta representaç.3o
negativa ainda se mantém, em outro referencial. Se antes o
refer-encial de f a 1 ta na a na 1 i se dos "pobres" estava na
.:;. ~·.
"consciência de classe", agora encontra-se na noçao de
"cidadania".
Na visao sociológica sobre os pobres, sobr-etudo a
partir dos anos 60, p!'"evaleceu esta tendência a defini-los
por- uma negatividade 1 como o avesso do que deveria ser.
Ali ás, esta per-spectiva do "deve!'" ser-" marcou
significativamente esta literatura. Com uma ênfase oca
econômica, ora política, definiu-se a condiçáo social dos
pobres a partir da exploraçào do tr-abalho pElo capital e,
mais recentemente, pela ausência de reconhecimento de seus
direitos de cidadania. Nesta perspectiva, o r-esultado acaba
sendo a desatençào pal'"a a vida social e simbólica dos pobres
no que ela representa enquanto positividade concreta, a
partir da qual se define o horizonte de sua atuaçào no mundo
social e a possibilidade de transposiçào desta atuaçào para
o planp propriamente politico. 7
7 No que se refere a sao Paulo, cabe ress~lt~r, como exceçao, o trabalho de Antonio Cândido (1987) sobre o "caipira.'', publicado originalmente em 1964 e o de Eunice Durham {1978) sobre o "migra,nte". Nào por acaso, estes trabalhos nao foram discutidos pela literatura que os sucedeu, na medida de suas significativas contribuiçoes. Ambos exemplificam uma perspectiva de análise na qua,l a experiência de vida, do pobre aparece enquanto uma, dimensáo positiva,, ou seJa,, retratando-o como ele é, nao como o avesso do que deveria ser.
O paradigma da produçao
As ciPncias sociais brasileiras, sobretudo a part~r dos
anos 70, focalizaram os pobres a partir de seu lugar na
produçao, sem considerar as implicaçOes da peculiaridade na
qual se construiu este lugar no Brasi 1 Nào se t amou como
problema o fato de que, num pais considerado, nos tempos
coloniais, o ''berço da preguiça'', onde o ócio era tido como
marca de prestigio (Araújo, 1993) 1 construiu-se uma ética do
trabalho a partir de uma experiência histórica familista e
escravocrata, distante daquela fundada no valor protestante
do trabalho como atividade, em s~, redentora, analisada no
estudo clássico de Max Weber (1967).
Os pobres foram erigidos em categoria sociológica como
''os trabalhadores'' e o foco voltou-se para a ''razào prática''
reificada e nào tomada, ela mesma, como uma forma de
simbolizaçao, como tao bem apontou Marshall Sahlins (1979)
que os levava à (in)satisfaçào de suas necessidades. Em sua
análise dos discursos sobre os pobres no Brasil, elaborados
desde a virada do século XX, Licia Valladares (1991) mostrou .~ ,, '
como, na medida em que a explicaçào da pobreza social passou
a ser posta no sistema e nâo mais no individuo, os pobres
deixar-am de ser os "vadios", par-a se tornarem os
"desempregados" ou "subempregados", "marginais". Quando, na
cr-itica ao dualismo e à idéia de marginalidade, as cii?ncias
sociais dos anos 70, passaram identificar qualquer
atividade económic:a como trabalho, sem distinçáo entre o
mercado formal e informal, ambos considerados como parte da
divisao social de trabalho, desfez-se a oposiçao "pobre"
(antes, o "marginal") versus "trabalhador", com a
consequente identificaçao destes dois termos. Os pobres,
categoria estigmatizada como "classe perigosa" pelos grupos
dominantes, passaram a ser definidos e identificados nas
ci~ncias sociais como os ''trabalhadores''.
A partir dos anos 70, esta identificaçao foi reforçada
pela per-cepçao dos pobres enquanto sujei tos poli. tic•s. fà,
pobreza como problema social levou a uma reflexào critica ~~
sociedade e, nesta per-spectiva, os pobres foram pensados
como os agentes da transformaçáo social, a partir da noçao
de classe. Identificados com "os trabalhadores", os pobres
passaram a constituir a "classe trabalhadora", sendo, entào,
definidos fundamentalmente por sua forma de inserçao na
produçào. O trabalho, concebido como o eixo de definiçao
social dos sujeitos, constituiu a principal categoria
através da qual foram pensados os pobres nas ciências
sociais brasileiras nos anos 70. 8
8 A preocupaçáo com os pobres enquanto sujeitos políticos estendeu-se aos anos 80 com a ênfase nos movimentos sociais que surgiram nesta década, deslocando-se das fábricas para os locais de moradia. O interesse surgiu diante da emergé'ncia de novos atores politicos, cuJa açào nào tem mais como substrato apenas a inserçáo na produção, mas o chamado mundo da reproduçao. Ver o artigo de Eunice Durham (1984b).
I'
i !
i:
I
1.
O trabalho tornou-se, assim, uma categoria essencial de
análise no Brasil que se modernizava, depois do boom
industrial dos anos 60. Para as ciências sociais
brasileiras, nos anos 70, a preocupaçào fundamental era o
projeto de democratizaçào do país, sintetizado no seu acesso
modernidade. Os pobres urbanos eram, entao, os
trabalhadores deste país que se modernizava.
Dentro do mesmo paradigma, foi também a referência ao
trabalho que legitimou a volta do interesse pela temática
das relaçbes familiares nos anos 70. Seguindo a ótica da
produçao, a família tornou-se objeto de estudo a partir da
análise de sua funcionalidade para o capital, como unidade
de reproduçào da força de trabalho.<;> De acordo com a mesma
tendência, a análise da força de trabalho feminina, a partir
da posiçào da mulher na sociedade de classes, introduziu o
tema da mulher nas ciências sociais. "'-':• Os estudos sobre
mulher e família, entretanto, mostrando as diferentes formas
de inserçào de todos os membros da família no mercado de
trabalho, contribuiu ao mesmo tempo para ampliar a noçao de
"trabalhador", articulando-a aos papéis familiares e
introduzindo a noçào de divisao sexual do tr-abalho (Pena,
9 Ver a oportuna critica de Eunice Durham (1980) à ótica da produçao. 10 Ver os trabalhos pioneiro> dP Maria Moraes (1976) e Heleieth Saffiotti (1976) como casos exemplares. Para uma critica da abordagem marxista, ypr o artigo de Verena Stolcke (1980). Valéria Pena (1980a) P meu trabalho anterior (Sarti, 1985b) fazPm, entre outros, a resenha desta literatura.
' t
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' ' I ! ,, I; i:
I
1980a e 1981, Hirata e Humphrey, 1983, Sarti, 1985b). Foi
neste contexto que se desenvolveu nas c:.ié'nc.ias sociais a
reflexào sobre a família entre os pobres.
A tendência a pensar os pobres .:~ parti r da produçao
revel ou a concepçào do home>m como homo economi cus, própria
de uma perspectiva sociológica, de inspiraçáo marxista. Os
pobres, nesta perspectiva, foram identificados
essencialmente como destitu.idos de meios materiais,
vendedores de força de trabalho, aqueles para quem o
problema de sua se r-esume sobrevivência
mater-ial, portadores iner-tes de uma ''razào prática" que
explicava seus atos: corporificando a carência material, I !o
foram mecanicamente destituídos de recursos simbólicos (como
se ti opulência no mundo capitalista cor-respondesse r~que:za
simbólica). I I
A 1 óg i c a capitalista, enquanto razào prática,
entretanto, nao esgota a análise dos trabalhadores pobres,
mesmo em suas relaçbes de trabalho. Como argumentarei
adiante, o mundo do trabalho no Brasil constituiu-se dentro
de um universo social onde as relaçbes capitalistas se
entrecruzam com os traços escravistas e clientelistas de
nossa formaçáo histórica. Esta característica do trabalho no
8r03.sil reflete-se na identidade entr-e pobre e trabalhador,
reconhecida pela literatura. o que esta literatur-a
pr-odutivista nao diz é que esta identidade, na qual se
reconhecem os trabalhadores 1 implica que sua concepçao do
trabalho envolve referências di versas das que constituem a
lógica mercantil do mundo capitalista.
Os pobres foram pensados, nessa perspectiva
produtivista, a parti~ de uma vis~o instrumental na qual no
entanto, eles própr-ios na o se reconhecem, o que foi
considerado marca de sua ''alienaç~o'' ou ''falsa consci~ncia''.
Em outras palavras, os pobres for-am pensados como se sua
identidade social tosse ou devesse ser construída
exclusivamente, ou em última instância, a partir de sua
determinaçao de classe, ou, de um outro ponto de vista, como
se suas açbes fossem ou devessem ser motivadas pelo
interesse em satisfazer suas necessidades materiais, uma vez
que eles for-am definidos por esta car-ência básica.
Embora sinteses corr-am sempre o risco de borr-ar
diferenças importantes, eu incluiria nesta cor-rente
produtivista, de um lado, a já mencionada tendªncia a pensar
os pobres predominantemente em sua relaçào com o trabalho,
numa r-eduçao que, além de fazer do trabalho o tema mais
"legitimo" de estudo sobr-e os pobres, torna a força de
trabalho o instrumento, por excelência, de identiticaçào do
pobre como sujeito social De outro lado, a ótica da
produçao está presente, ainda, em pesquisas sobre a familia
trabalhador-a, náo apenas nas que a pensaram enquanto
"reproduç.3.o da força dE> tr.;~.balho", l.l. m.;~.s também naquE> 1 as
11 O trab;dho dP Ana Maria Qui~oga Fausto Neto (1982) é E'~C'mpl~r dessa 1 in h a.
11
I! I I
que analisaram partir de suas "estratégias de
sobrevivência". Estas acabaram também reduz .indo a fam.ilia a
um "arranjo" para a sobrevivência mater-ial 1 concebendo a
fam.ilia como uma unidade de consumo, o que remete ao
processo de produçao num sentido mais amplo.
As pE?squisas sobre "estratégias de sobr-evivência"
surgiram em fins dos anos 70, influenciadas pela critica de
Eunice Dur-ham (1980) à abordagem mar~ista que tendia a
conceber a família como instância ideológica, mera
reprodutora de relaçbes sociais de dominaçào, sobr-etudo
através de sua funçao de socializaçào. Ainda que tenham
representado um importante avanço em relaçào às análises
anteriores, no sentido de tratar a familia como uma esfera
social que tem dinâmica própria e nao apenas "traduz"
mecanismos sociais que lhe sao externos, conforme assinalou
Valéria Pena (1980b), as pesquisas que analisaram a família
a partir de suas ''estratégias de sobrevivência'' continuaram
situando-se dentro do paradigma da produçao, entendida como
processo amplo, determinante em última instância, enquanto a
dimensao simbólica, incorporada à análise, continuou tendo
um estatuto teórico subordinado, mantendo a perspectiva de
uma funcionalidade utilitária para a familia. 1 ~
12 Os trabalhos de Elisabeth Bilac (1978) e Carmen C. Macedo (1979) ilustram os avanços dessa perspectiva, ao dar autonomia teórica à questao da família, deo;crevendo com originalidade o modo de vida das famílias trabalhadoras, mas mantendo-se dentro de uma lógica da razao prática onde a família tem fundamentalmente um papel instrumental de "sobrevivência".
40
Licia Valladares (1991) analisou o discurso (médico-
higienista, juridico-pol.itico) sobre o pobre que se elabora
na virada do século XX, com base na contraposiçáo entre
"trabalhador" "vadio". o pobre é identificado com o
''vadio'' e esta categoria remete justamente ao mundo do nào-
trabalho: qu&>m nào trabalhasse em fábrica ou oficinas de
artesaos ou nos serviços públicos, enfim, no mercado de
trabalho formal, era "vadio". o pobre ou "vadio" era
precisamente aquelt:? que nào se havia integrado ao
assalariamento, a ordem industrial que começava a se
instituir. Da m&>sma forma, nos anos 50 e 60, a partir de um
novo discurso, o do cientista social, esta contraposiçào se
fará em termos
"subempregados":
"Central do sistema de indivíduos (Valladares,
de "trabalhadores" X "desempregados"
era a discussào absorver parcial enquanto força
1991, p. 98)
sobre a capacidade ou integralmente os
de trabalho."
A pobreza d&>ixava, assim, de ser vista em termos
morals, como prova de uma natureza ruim de sujeitos que náo
queriam trabalhar; a realidade do pais, a partir dos anos
50, er-a a de um crescimento ur-bano onde a expansao do
emprego se mostrava insuficiente para absorver sua
populaçao, sobretudo em face da intensa migr-açao. Ninguém
mais deixava de trabalhar, por vontade própria. O sistema
4.1
produtivo é que era incapaz de absorver a populaçao:
''passou-se a considerar a pobreza fenômeno de natureza estrutural Que esfera individual'' (Valladares, 1991,
enquanto escapava p. 98).
um da
"Vadios", "favelados", "marginais", "subempregados",
''populaçio de baixa renda'' e ''morador da periferia'' sao as
muita~ designaçbes dos pobres, acordo com as
transformaçbes ocorridas no processo produtivo e na dinâmica
da urbanizaçào e da expans.3o do mercado de trabalho urbano
do pais. A mudança fundamental dá-se, como observou Licia
Valladares, quando se introduz a palavra trabalhador para
denominar aqueles que exercem atividades de natureza
intermitente e esporádica. A economia urbana nào absorve
todos em trabalhos formais, nao dá emprego, mas propicia
trabalho e o "trabalho informal" é também parte da divisao
social do trabalho. Acabaram-se os ''marginais''.
Uma linha recente de pesquisas desenvolveu-se no final
da década de 80, a chamada "década perdida", buscando
analisar os efeitos da pauperizaçao que se instaurou nao
apenas nos lugares onde esteve sempre presente, mas nos
pólos mais dinâmicos da economia brasileira, como é o caso
da Regiào Metropolitana de sao Paulo, como efeito da
recessào do inicio dos anos 80. Ressaltando a importância da
familia como lugar- onde "se combinam e se socializam" os
42
efeitos da pobreza (Lopes e Gottschalk, 1990) ' essa
tend~ncia centra suas análises na relaçào entre pobreza e
familia. Por ma1s que tenham sido discutidos os limites da
renda como critério exclusivo para se determinar os níveis
de pobreza, a delimitaçao da pobreza permanece uma questào
relativa à sobreviv~ncia material, definida a partir de
dados sócio-econômicos, e o eixo da análise volta-se para os
arranjos familiares (da ''unidade doméstica'' necessariamente,
neste tipo de análise) feitos para responder às adversidades
do mercado de trabalho nas diferentes conjunturas
econômicas. Estes trabalhos, por considerarem uma definiçao
da pobreza a partir de uma lógica econômica, parecem deixar
escapar outras questbes que emergiram nesta década,
tornando-a nào tao "perdida", como argumentei no capitulo
anterior, se outros referenciais que náo as "linhas de
pobreza", forem considerados, fazendo pobreza uma
categoria menos estanque e a visáo desta década menos
apocal.iptica.
A pobreza é uma categoria relativa. Qualquer tentativa
de confiná-la a um ún1co eixo de classificaçáo~ ou a um
único registro, reduz seu significado social e simbólico.
Apesar das conhecidas criticas ao componente reificador da
noç~o de ''cultura da pobreza'' de Oscar Lewis, cabe lembrar a
importância de sua adverténcia de que
I
(, !
'I' ,[
!,
''la cultura de la pobreza en las naciones modernas no es sólo una cuestión de privaciones econ6micas, de desorganización o carencia de algo. Es también algo positivo y ofrece algunas recompensas sin las cuales los pobres dificilmente podrian sobrevivir." (Lewis, 1975, p. XLV-XLVI).
A pobrezii tem, portanto, uma dimensào social e
simbólica que define os ''pobres''. Dissociando-se da carênciii
material o critério exclusivo pelo qual ela se delimita, é
possivel defini-la por eixos distintos, como pretendo
demonstrar.
O paradigma da cultura
Uma outra concepçâo dos pobres urbanos privilegiou a
cultura enquanto componente simbólico da açao humana,
inclusive do trabalho, visto numa outru perspectiva, nao
mais como c.J.tegoria exclusiva determinante do ser social.
Desenvolveu-se principalmente através de análises
etnográficas, destacando a existência de um modo de vida (ou
práticas) e de representaçóes próprias das camadas
populares. Essa tendência, produzida nos marcos da
antropologia, cor-respondeu a uma valorizaç~o da diversidade
cultural, pressupondo a unidade entre açao e simbolizaçáo
humanas. Contrapunha-se às análises que, utilizando-si? do
conceito de ideologia, criavam uma oposiç~o entre práticas
f.l.4
sociais e seus iundamentos simbólicos, gerando noçó~s como
''ialsa consciência'' ou ''alienaçào''. 13 Os temas privilegiados
for rim trln to o cotidirlno, o trrlbalho, a familirl, a
sexualidade, as relaçbes de ginero, o lazer, quanto o poder,
a viol~ncia ou a experi~ncia politica. 14 Essa 1 inha de
pesquisas situou-se como uma alternativa a essa literatura
obcecada pelo diagnóstico, preocupada em ''medir'' se o pobre
é "alienado" ou "consciente", como bem ressaltou Alba Zaluar
(1985).
PodE>-sE? dizE'r que afirmaçào de uma diversidade
cultural, cujo fundamento na o está exclusivamente na
determinaçào de classe, polemizou, entao, com duas
vertentes: a que ressaltava a "integraçào" dos pobres,
"diagnosticada" na medida em que estes operavam com as
categorias da ideologia capitalista dominante, de onde se
inieria a "triunfo da ideologia burguesa". 1 i!l E, ainda, a
segunda vertente da obsessao pelo diagnóstico sintetizada no
13 Ver a crítica de Eunice Durham (1984a) às implicaçbes do uso do conceito de ideologia, sobretudo em dois aspectos que interessam a este trabalho criticar: o pressuposto da determinaçao do econômico e a oposiçao entre práticas e representaçOes. 14 Tendo mais uma vez presente a simpliiicaçáo implicita em sinteses, que desconsideram a diversidade existente sob out~os te~mos de comparaçi:io, podemos ag~upar nessa tendência a privilegiar o componente simbólico da açao humana~ contrapondo-se à ótica da produção, os seguintes trabalhos sobre os pobres urbanos: Salem (1981), Lopes (s/d), Montes (1983), Maqnani (1984), Caldeira (1984), Zaluar (1985), Sarti (1985,.), Duarte (1986) e Dur-ham (1984a e 1988), entre outros. As dife~enças entre estes trabalhos, relevantes para este estudo, serao comentadas ao lonqo da análise. 15 t o caso do trabalho de Janice Perlman (1977) que, por sua vez, se desenvolve em contraposiçao à teol"ia da ''marginalidade".
I I
.::1 I, '
pressuposto de uma homogeneidade necessária dos
trabalhadores, fundamento de uma ''consciincia de classe'' ou,
pelo menos, de uma noçào mais universalizante de direitos (e
a surpresa diante da heterogeneidade encontrada! ),16 Nestes
dois casos, como é a impressào em parte significativa da
literatura sobre os pobres, parece que está impl i c i ta a
idéia de que os pobres pensam "errado", porque na o
compartilham com o pesquisador a visào critica da sociedade.
Cabe aqu1 lembrar os comentários de Maria Lúcia Montes
(1981) sobre a critica ao discurso populista como produtor
de um ''efeito de manipulaç.3o'':
esta
''Nào por acaso a idéia de manipulaçào vai de par com uma concepçào da 'consciência· (do ouvinte, naturalmente), que, ignorante, quando nao alienada ou mistificada, por graus sucessivos, poderá a um certo momento alcançar sua forma adequada, como consciªncia de classe' por exemplo, que atinge 'verdadeiramente' o real, coincidindo com esse ·real'. 'Real' que, na verdade, frequentemente nao tem outra substância senao a realidade de uma teoria, enunciada por aquele que 'sabe' à revelia daquele que naosabe' embora em seu beneficio." (p. 62)
Ao se pensar a diversidade cultural como alternativa a
postura teórica, a dificuldade está no clássico
16 O trabalho de Celso Frederico (1979) é e~emplar dessa tendéncia. Ver as criticas de Ec!er Sader e M. Célia Paoli (1986). Alba Zaluar (1985) mostrou, em sua revisáo do que dizem as teorias sociais sobre os pobres, como o processo de construçáo de atores politicos entre os trabalhadores urbanos é visto pela literatura, a partir de uma comparaçao negativ~ com a classe organizada.
p~oblema dos estudos ant~opológicos em sociedades complexas,
ou seja, o de situa~ a pa~ticula~idade do fenômeno estudado
com ~e laçao ao todo mais amplo do qual faz pa~te. Há o
conhecido Já tào comentado ~isca se conceber
autonomamente a cul tu~a, ou seja, deixando de considerar
que, para se entender o significado mais amplo dos fenómenos
que expressam os valores, normas e idéias que estruturam e
dào sentido às expe~iências vividas pelos homens, nas
sociedades chamadas complexas, é necessá~io vê-los em sua
relaçao com as estrutu~as mais amplas de dominaçáo que
constituem esta sociedade, buscando as nuances, os matizes e
as especificidades que dào significado a esta relaçao, sem
reduzi-la à mera ~eproduçào ou t~ansformaçáo da dominaçào.
Em sua ~evisào dos conceitos de cultu~a e ideologia,
Maria LUcia Montes (1983) sintetiza os dois lados da questáo
quando faz a critica à abo~dagem de inspiraçào marxista que
reduz os fenômenos culturais à sua dimensao de instrumentos
da dominaçào, à sua funcionalidade pa~a o poder, e ao mesmo
tempo aponta os limites de um certo tipo de abo~dagem
antropológica, que, embora analise os fenômenos culturais em
sua dimensao de ordem simbólica, negligencia a dimensào
política destes fenômenos, autonomizando-os e esquecendo-se
que, em se tratando de "cultura dos pobres", estes sao pa~te
da sociedade mais ampla onde, precisamente, se inco~por.3m
como "pobres",
47
Uns e outros
Se os pob~es nào sào o homo econom.icus típico do
sistema capitalista e tampouco formam uma cultu~a
inteir-amente autônoma, no sentido de que tem uma
especificidade, uma diversidade, e sáo, ao mesmo tempo,
parte subo~dinada um todo mais amplo, mantém-se a
indagaçao sobr-e como v i vem e pensam os pobr-es. O pr-imei r-o
passo par-a buscar- essa r-esposta ser-á a tentativa de quebr-ar-
a polar-izaçào "nós" e "eles" e pensar- que se "nós" e
''eles'' oper-amos com as mesmas categorias, isso está muito
longe de significar- apenas o tr-iunfo da ideologia burguesa.
Contr-apo~ uma "cultur-a autônoma" à "cultura integrada" (e,
po~tanto, "alienada") é virar- o ar-gumento pelo avesso. A
afir-maçao da diversidade cultural implica a análise política
do jogo das r e 1 açc:Jes de força, porque neste jogo nào se é,
po~ definiçào, nem autônomo, nem dominado (ou integ~ado) em
termos absolutos.~ 7
A visào dos pobr-es como homo econom.icus ou, mesmo, como
por-tadores de uma cultur-a autônoma repr-oduz na análise a
polar-idade socialmente instituida entr-e ''nós'' e ''eles''. Há o
risco de que essa lógica de difer-enciaçáo, presente na visào
17 Análoga à suposiçáo de uma pr-oduçáo cultu~al "autônom,;;" é a do "homem como sujeito da história", for-mulaçbes que> partem de eixos teór-icos distintos- o da cultura e o da ideologia- mas que se equivalem, na sua p~etensao (onipotente ou ing~nua?) de afir-mar a autonomia e o cont~ole
dos sujeitos sobre a produçao de sua vida.
t.I.E~
das ci@ncias sociais sobre os pobres, pensados como grupo
subalterno que se diferencia dos dominantes, seja porque
foram exclusivamente vistos como trabalhadores "classe"
portadora de um projeto de transformaçào seja porque
foram vistos como parte de um outro universo cultural
"autônomos" acabe se revertendo no avesso das
representaçOes das elites brasileiras que ainda definem os
pobres como a "classe perigosa", de onde emana todo o
mal social (a sujeira, a doença o cr-ime) Estas
nitidamente constr-óem o "mau pobr-e"j na outra versào, há a
idealizaçào do "bom pobre", como um "bom selvagem" nào
conspur-cado por um univer-so cultural que nao é reconhecido
como seu.
As análises de José M. de Carvalho (1987) e Sidney
Chalhoub (1986) mostram como a visào dos pobres como a
"classe perigosa" manifestou-se no Bre~sil, através dos
legisladores, revelando que, na virada do século, ser pobre
tornava o individuo automaticamente perigoso à sociedade. A
pesquisa de A. Flávio Pierucci (1987) sobre as bases da
"nova direita" mostra como esta vis.3.o ainda repercute
vivamente no imaginário das camadas médias e altas da cidade
de Sào Paulo,
particularmente
que
a
identifica nos
violência, a
pobres o mal social,
degradaçào moral a
promiscuidade sexual. É uma oposiçáo análoga àquela entre
t~abalhado~ e vadio, típica da virada do século, que subjaz
à atitude tao habitual do policial que p~ende o sujeito sem
cart&ira de trabalho, com toda a violência implicita neste
ato.
Houve uma espécie de círculo vicioso na ~magem dos
pobres nas ciências soc~a~s: ou foram desqualificados
(alienados, massa amorfa) ou glorificados, numa tentativa
algo ingênua de contrapor~e à sua identificaçao, por parte
das elites, com a "classe perigosa"; assim, o pobre (tal
como o negro) passou a ser detentor de uma virtuosidade, um
saber ou uma sensualidade que escapavam aos outros humanos,
o que acaba redundando num preconceito social (ou racial) às
avessas.
Em poucas palavras, os estudos sobre pobreza
constituíram-se como crítica da sociedade brasileira. Como
consequência, a visào do pobre que se construiu está numa
relaçào simétrica e inversa à visao da sociedade brasileira.
Num movimento pendular, o que define o "bom pobre" é .a má
consci~ncia d.a sociedade internalizada pelos pesquisadores;
inversamente, o "mau pobre" (alienado~) é produto da boa
consciência (crítica!) de si.
Se os pobres sao parte de um sistema mais amplo, o
processo de diferenciaçao social torna-se l..lffi problema em si.
A polarizaçào passa a ser pensada como uma lógica social à
qual "eles", como "nós", estamos expostos; dependendo da
perspectiva de quem fala, define-se quem sao ''nós'' e ''eles''.
Assim, a lógica da identificaçào e da diferenciaçao torna-se
'
o problema a ser discutido, na medida em que constitui o
própr-io fundamento do p~ocesso de constr-uçao de identidades
sociais, concebido em te~mos ~elacionais, como a~gumenta~ei
no capítulo 5.
Fica a pergunta que p~ecisa ser constantemente ~efeita:
quem é o outr-o de quem? Afinal, quem sao "uns" e "outr-os"?
Valores tradicionais
Ar-ticulando-se o lugar- dos pobr-es à totalidade da qual
fazem parte, sur-gem outros problemas diretamente
r-elacionados a esta pesquisa. Refir-o-me em particular à
questao dos valores tradicionais a eles associados, que foi
analisada na literatura sobretudo como uma her-ança rur-al.~e
Em oposiçao a esta idéia, nas ci~ncias sociais brasileir-as
dos anos 70, tornou-se difícil dizer- que o universo de
valores dos pobres urbanos se fundamenta em elementos
tradicionais, diante do abrangente projeto de modernizaçao
em cur-so no pais, no qual embarcaram triunfalistas as
ciências sociais e onde os pobres urbanos enquanto "os
18 Essas idéias for~m elaboradas inicialmente para apresentaçâo na XVII Reuniáo Anual da ANPOCS, em Caxambu, em outubro de 1993, resultando no texto in ti tu lado "O primado do mundo da casa para os pobr-es", discutido no Seminário Temático "A constr-uçáo do pablico e do privado na familia'', coor-denado por Par-ry Scott.
trabalhadores'', ''a classe operária'' eram ponta de lança,
Aos valores tradicionais associavam-se idéias as de
fatt~lismo, passividade e conformismo, cuja expressao mais
clara, na literatura sobre os pobres, estava na noçao de
"culturt~ da pobreza" de Oscar Lewis (1975). Pela já tao
comentada reificaçao contida nesta concepçào dos sistemas
cu 1 turais, onde os v a 1 ores se apresentam carregados de um
substrato inerte e permt~nente, as ci~ncias sociais navegavam
em sentido oposto, buscando explicar a dinâmica social, onde
pudessem vislumbrar o potencial político dos pobres.
Nos anos 50 e 60 ,' acumu 1 ou-se mui ta e r i c a informaçào
etnográfica sobre os pobres, suas formas de organizaçao
social e seus valores (tradicionais) através dos chamados
estudos de comunidade, que analisavam pequenos núcleos de
populaçào, tomados como totalidades isoladas, às quais foram
aplicados métodos de investigaçào etnográfica clássicos.~~ o
problema modificou-se quando se tratou de analisar as
populaçbes pobres integrando-as à "sociedade", aquelas que
povoavam as cidades, sobretudo através da migraçao, como
parte do processo ma~s amplo de expansào econômica do pais a
partir dos anos 50, marcado pelas novas oportunid.;odes
propiciadas pela industrializaç.3.o e a urbanizaçao.
19 A critica ,;; estes estudos é conhecida. Como sintetizou Antônio Cândido (1987), "em seu corte descritivo mais frequente", parecem "comprometer no pesquisador o senso dos problemas" (p. 20).
52
I '
Uma das preocupaçbes das ciências sociais dos anos 60 e
70 foi mostrar a exploraçào a que a já consolidada expansao
capitalista, nos moldes em que se deu no Brasil, havia
submetido as populaçoes trabalhadoras. Esta pre%upaçao
relacionava-se com o projeto de democratizaçâo da sociedade
e do Estado no Brasil, voltado para as condi çbes de
integraçao desta sociedade modernidade, expressa no
desenvolvimento urbano-industrial.
O livro de Janice Perlman I 1977) é exemplar desta
perspectiva, contribuindo para destruir o mito da
marginalidade ao permitir pensar os pobres como parte
constituinte e necessár-ia deste processo de expansào
econômica, na forma como aconteceu no pais e, ao mesmo
tempo, dando subsidias para pensar o lugar dos pobres - nao
os "marginais", mas os "integr-ados" e necessários ao padrao
de acu_mulaçào que se estabelecia no Brasil.~<:,
Os pad r-óes de comportamento urbanos explicavam as
práticas e r-epr-esentaçbes dos pobr-es, que povoavam
principalmente as favelas. Na tem ta ti v a de deslocar a
20 Os comentários de Fernando H. Cardoso no prefácio ao livro de Janic~ Perlman sintetizam as preocupaçbes que marcaram as ciências sociais dos anos 70, no que se refere aos pobres. Tratava-se de "mostrar que o favelado nao é politic<o e economicamente marginal, mas sim um ser socialmente reprimido e explorado" (p. 14). A superaçao da teoria da marginalidade associa-se às críticas pioneiras feitas na década. de 70 por Maria Célia Paoli (1974) e Lú.cio Kowarick (1977). Klaas Woortmann (1987), tendo já como pressuposta a superaçao deste paradigma sociológico, discute, entretanto, a questao da autolme~gem do pobre como "marginal", "aqueles com quem "ninguém se importa''', o que chama de "marginalidade subjetiva''.
I
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explicaçào da dicotomia rural-urbano e na critic:!3 ao
dualismo dos ''dois Brasis'', os traços culturais que marcavam
os pobres eram interpretados como retraduçoes, respostas
"adeqJ.Jadas" exploraçao a que se submetiam enquanto
trabalhadores na nova ordem urbano-capitalista, tendo como
eixo de explicaçáo a relaçao capital-trabalho. Criticava-se
o ranço evolucionista impl.icito na idéia de uma
"sobrevivência" de um passado rural, argumentando que os
valores tradicionais náo encontravam suporte no novo
ambiente urbano. O Brasil nao era dual, mas desigualmente
integrado ao capitalismo.21 Nesta perspectiva, Ruth Cardoso
(1978) declarava:
"Recusamos 1 portanto, qua 1 quer pretensáo de identificar sobrevivências do mundo r-ur-al entr-e esta populaçào de urbanizaçào r-ecente. Valor-es e nor-mas de compor-tamento nào se perpetuam senáo pela sua pr-ópr-ia renovaçáo". (p. 39)
Estava impl.icito neste pr-ojeto modernizante o desejo de
livrar o pa.is dos seus tr-aços arcaicos, pensados como marcas
inelutáveis do conservadorismo e do autoritarismo de nossas
instituiçbes; com isso, toda a expectativa de mudança, no
sentido da democratizaçáo das r-elaçbes sociais, passava pela
necessária integraçao ao pólo moderno do pa.is. O ideal
21 A cri ti c a à razão dualista de Fr-ancisco de Oliveira. (1977) marcou a r-eflexáo desta época.
modernizante que marca as ciªncias sociais brasileiras, na
recusa a tomar como problema a análise dos traços ''arcaicos''
que- marcam nosso sistema simbólico, remete-nos à indagaçào
de Rober-to Da Matta (1978)
"Ser-emos um povo contraditório, incapaz de reconhecer nossos niveis de irracionalidade; ou uma sociedade que privilegia alguns dos seus aspectos e os toma como veículos para a construçao de sua auto-r-epresentaçào?" ( p. 143)
Estudos mais recentes que incorporam e ressaltam os
valores tradicionais como marcas dos pobres urbanos vao
além do eixo explicativo da relaçào capital-trabalho. Ao
contrário de Ruth Cardoso (1978), Alba Zaluar (1985)
acredita que a ética do trabal~o, para os trabalhadores
urbanos que estuda, nao advém do valor moral da atividade em
si, mas do papel de provedor da familia que tem o
tr-abalhador, configurando, portanto,
provedor''. Em seguida, argumenta que o "ethos" masculino, a ~ ----~--
moral do homem,
''torna qualquer ferida na dignidade do trabalhador dificil de ser aceita'' e ''clama pela democratizaçào das relaçbes de trabalho'' (p. 145)
A sugestiva formulaçao de Alba Zaluar da "ética do
provedor'' dos trabalhadores urbanos aponta para importantes
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if' rrj Ih . ' 'i'··
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implicações na sua concepçào das ~elaçbes de trabalho, como
discutirei adiante. Embora nào use esses termos, a autora
mostra que essas relaçbes têm como r-eferência um código
hier-árquico e relaciona}, que, no entanto, nao se coaduna
com a idéia de "democratizaçào das r-elaçbes de tr-abalho",
pelo menos nào sem a explicitaçào das difer-enças entre a
concepçao hier-ár-quica implícita na "mor-al de homem" e os
valor-es igualitários pr-essupostos na noçáo
''democr-atizaçào das relaçbes de trabalho''.
Luis Fernando Duar-te I 19861 explica os valor-es
hier-ár-quicos dos pobr-es em termos da oposiçào entre
individualismo-hier-ar-quia, proposta na análise de Louis
Dumont. Por- mais ricas que possam ser- as possibilidades
contidas nas formulaçbes de Louis Dumont, a afir-maçào do
padrao cultur-al fundamentalmente hier-ár-quico dos pobr-es
urbanos a f i r-maçào com a qua 1 con cardo nao se sustenta
apenas por sua proposta teórica, sem uma r-eferência à nossa
complexa for-maça.o histórica.
O trabalho de Eunice Durham 119781 contribui par-a
analisar esta questao. A autora mostrou como a migr-açào,
enquanto um processo de integr-açào dos trabalhador-es rurais
ao sistema urbano-industrial, se deu pela mobilizaçào de
recur-sos pr-ovenientes dos grupos de r-el.;~çcies pr-imárias do
migrante, particular-mente o grupo doméstico e a família,
esta última sendo a instituiçao que se propbe a inter-pr-etar
e t~aduzi~ o mundo urbano para o migrante recém-chegado.;;:::;:;:
Ao mesmo tempo, esta populaçao analisada po~ Eunice Durham,
cuja possibilidade de mig~a~ é dada pela ~ede família~ e que
chega a Sâo Paulo t~azendo em sua bagagem t~aços rurais,
t~adicionais, patriarcais, todos esses "ais" ta o
"inadequados" ao gosto das modernas cif:ncias sociais da
época, vem para integrar--se ao Bras i 1 moder-no, CLij a síntese
perfeita se encontra na cidade de Sâo Paulo. Como as
ciências sociais, o migrante queria ser moder-no,
alimentando-se com a idéia de mi?lhor.ar de v.ida que motivou
seu árduo deslocamento.
No entrecruzamento de um processo de determinaçbes
muito mais amplas, mas viabilizado pela rede familiar, deu-
se a vinda e o estabelecimento dos pobres/migrantes na
cidade de sao Paulo. Neste processo de muitas faces, que
escapa a sE'U controle, os pobres sao expulsos de seu lugar
de origem, conseguem se deslocar graças à rede de obrigaçbes
com seus pares, baseada num padr-ào tradicional dE' relaçbes,
mas se alimentam da promessa de felicidade no moderno mundo
urbano. Enredados nos fios que os unem a seus iguais,
desejam também "subir na vida", ancorando-se no valor
individualista da mobilidade social, virtual idade dos
sistemas capitalistas. Assim, funda-se a ambiguidade que
22 O trabalho de Maria Cristina S. Costa (1993), cuja pesquisa foi feita em fins dos anos 80, confir-ma a análise de Eunice Du~ham sobre a importância da rede de par-entesco para a integração no meio urbano.
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marca os pobres urbanos, revelando uma identidad~ social
híbrida, mesclada em sistemas de valores distintos, que nao
foram por eles elaborados, mas que sao próprios da
complexidade do meio urbano onde se integrar-am como
"pobres".
A incorporaçào de novos padrbes de comportamento nao
está, assim, associada à negaçio dos padrbes tradicionais,
pela sua ressonã.ncia no meio ur-bano, onde continuam a ser
suporte de relaçbes soc1ais. Na tentativa de realizar seus
planos e satisfazer suas necessidades e aspiraçbes, os
pobres na cidade continuam recorrendo à r-ede de relaçoes
pessoais que se mantém atuantes no meio urbano. Nao sào
sobrevivências do mundo rural, mas parte estruturante das
relaçbes sociais também na cidade. Como demonstrou' Eunice
Durham ( 1978) ,
"Nào é per-sonalista, tradicionais ativamente de e impessoais,
por- ser- por-tador- de uma cultura nem por conservar padrbes de conduta que o migrante nào participa for-mas de associaçào especializadas de cunho reivindicativo.''
Os padr-bes que se "r-evo 1 vem em torno de r-elaçoes
pessoais" e que autora reluta em aceitar como
''tradicionais'', quando me parece que de fato cor-r-espondem a
padr-bes tradicionais de relaçbes sociais,
''constituem, na verdade, o ~nico modo através do qual o migr<õ~nte consegue desviar para si alguns dos recursos existentes, dadas as características da ordem institucional vigente.'' (p. 221)
Embora o trabalho seja o instrumento de integraçào no
meio urbano, a migraçào a que sào lançados os pobres náo se
viabiliza, nem se sustenta enquanto processo social sem esta
rede de relaç6es que se estabelece entre os pobres, com base
na família e na localidade. A migração constitui, assim, um
processo privado no sentido de ser assegurada por um sistema
de lealdades pessoais e familiares.
Reduzindo o projeto de ascensào social do migrante a um
"projeto de> consumo", Eunice Durham (1978) atribui a
importância da família à sua posiçào como unidade de>
consumo, e>m contraposiçáo ao caráter individual da
participaçào no mercado de trabalho. Com ~sso, l_iJJJ_j,j;._a as
possibilidades contidas no traço fundamental que seu próprio
estudo revelou: a importância da famí 1 ia _par: a os ~FI~!:-~?
urbanos como componente estrutural de seu l __ U_Q_~r no mundo
social. A autora observa, sem,. contudo, atribuir a esta
obser-vaçáo o poder-
contido, que
explicativo 1 que me I
parece nela
"esta importância é tanto maior- porquanto não existem outras instituiç6es que realizem de modo eficaz esta mediaçào do individuo com a sociedade mais ampla." (Durham, 1978, p. 220)
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As implicaçóes desta afi~maçao me~ecem ~eflexao. A
importância da família par-a os pobr-es está ~elacionada às
características de nossas instituiçbes públicas incapazes de
substituir as funçbes privadas da família, 2 "" Num país onde
os recursos de sob~evivências sào privados, dada a
precariedade de serviços públicos de educaçào, saúde,
ampar-o à velhice e à infância, somados
fragilidade dos sindicatos e partidos políticos como
instrumentos de mediaçào entre o indivíduo e a sociedade,
enfim, diante da ausência de instituiçbes públicas eficazes,
como salientou Eunice Durham, o processo de adaptaçào ao
meio urbano e a vida cotidiana dos pob~es, inclusive dos
nascidos na cidade, é estruturalmente mediado pela família.
Suas relaçbes fundam-se, portanto, num código de lealdades e
de obrigaçbes mútuas e reciprocas, próprio das ~elaçbes
familiares, que viabilizam e moldam seu modo de vida também
na cidade, fazendo da família e do código de ~eciprocidade
nela implícito um valor pa~a os pob~es.~4
23 Ess,; questáo foi retomada recentemente por Vera da Silva Telles (1992), afirmando que
''Mais do que apego a tradiçbes persistentes, a valorizaç~o
da familia soldada por suas hierarquias internas, traduz o fato mui to concreto dE> que a sobrevivência se ancor-a nos recur-sos pessoais e nas ener-gias morais que ela é capaz de mobilizar." (p. 320)
24 Na afirmaçao do caráter estrutural de aspectos ni:i.o-capitalistas da realidade brasileira, Marcos Lanna (1994) analisa as relaçbes de troca num município nor-destino (Rio Grande do No de), utilizando-se também da noçao de recipr-ocidade como um princípio estrutural.
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A família nao é apenas o elo afetivo mais forte dos
pobres, o núcleo da sua sobreviv~ncia material e espiritual,
o instrumento através do qual viabilizam seu modo dE? vida,
mas é o próprio substrato de sua identidade social. Em
poucas palavras, a família constitui uma questào ontológica
para os pobres. Sua importância nao é funcional, seu valor
nao é meramente instrumental, mas se refere à sua identidade
de ser social e serve de parâmetro moral para sua explicaçào
do mundo, ---···
A análise rlesta pesquisa incide sobre a família e o
trabalho, temas caros aos que pensam a existência dos pobres
a parti r de suas condiçties materiais. A idéia de manter
esses temas e nao focalizar outros, nao tào diretamente
ligados à existência material, tem por objetivo mostrar que
é possível ver essas questties sobre outro prisma, porque
mesmo os níveis mais elementares das necessidades materiais
(a ''infra-estrutura'') sao estruturados dentro de uma
situaçao simbólica. Como argumentou Marshall Sahlins (1979),
a razào prática constitui ela mesma uma razào simbólica, mas
nao a única razào que move os homens, mesmo nas modernas
sociedades capitalistas.
A intençào deste trabalho é recolocar em outro eixo a
análise dos valores ''tradicionais'' dos pobres, considerando-
I, ! ,:
os como componentes estruturais da ordem moral com a qual
representam o mundo social do qual fazem parte, no contexto ! :
particular de um dos redutos mais modernos do país, a cidade
de S.3o Paulo, onde, portanto, se manifesta agudamente a
ambiguidade de uma sociedade onde convivem o ''moderno'' e o
".;~.rc.;~.ico".
Procurarei, ainda, dissociar do pensamento conservador
a abordagem que analisa os padrbes "tradicionais" da
sociedade brasileira, manifestos em seus diferentes
segmentos sociais. Esta associaçào, instituída no pensamento
soc::ial brasileiro, tem como contrapartida a dinâmica da
''modernizaçào'' como condiçào para a mudança social, deixando
de ver que este processo, assim concebido, pressupbe elites
modernizantes, ''iluminadas'', as que ''sabem'' e em nome deste
"saber" agem no suposto beneficio dos que nao "sabem",
reforçando os mecanismos excludentes na sociedade
brasileira.
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Capitulo 3
' A FAMILIA CDMD UNIVERSO MORAL
''Nunca um costume é indefensável, inferior e bastardo, para quem o segue.''
Luis da C~mara Cascudo
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63
Nos anos 60, um casa 1 recém-casado migrou de A 1 agoas
para Sào Paulo. Nos primeiros meses, como tantos, instalou-
se na casa do i r-mào do mar ido. Logo os dois conseguir-am
emprego, ele~ como mar-marista, pr-ofissao que e~er-ceu ao
longo desses anos como empregado ou fazendo b i c os por conta;
e ela como tecelà, profissào que abandonou quando nasceu a
primeira filha, voltando trabalhar, como cozinheira,
quando a filha mais velha pode cuidar do irmáo mais novo,
reproduzindo a traje;otória intermitente típica do trabalho
feminino remunerado. HoJe, com 51 anos, o pai já nào
tr-aba 1 h a mais regu 1 armente porque está doente. Tem cirrose
hepática. O casal tem sete filhos. Os dois homens sào os
menores e náo trabed ham. Todos os f i 1 hos estudam. A f i 1 ha
mais nova, com 18 anos, cuidava dos irmàos e do sobrinho,
filho de uma irmà solteira que saiu de casa, e fazia a maior
parte do trabalho doméstico, enquanto as outras irmàs
revezam com a má e os momentos de emprego e desemprego, até
que, estrategicamente, engravidou do namorado e teve que se
casar, indo morar com o marido na casa do sogro: ~
Se n2io Tosse assim_, eu nunca ia conseguir casar.
A filha mais velha casou-se como manda o figurino,
formou um n0cleo independente e teve duas filhas. A que já
tinha um filho saiu de casa e mora atualmente com o
•
64
namorado, deixando o filho na casa da máe.
Segundo o relato da mae, confirmado pelas filhas, uma
das brigas familiares foi deflagrada pelo fato da filha ma~s
velha, ainda solteira, estar conversando com um rapaz no
portao. O pai começou a espancá-la, acusando-a de s&m-
vergonha, A ma e e as outras filhas, todas crescidds,
acudiram, segurando o pai e espancando-o até &i& se render.
Semelhantemente, em outra ocasiao, o pai pegou um facào
- o mesmo facáo com que as filhas viram tantas vezes sua màe
ameaçada e vs;oio na di reçáo de uma das f i 1 h as. A mae
interferiu e, junto com as filhas, conseguiu dominá-lo e
tirar-lhe o facáo, que passou para a mào das mulheres da
casa, simbolizando o momento de inversào na vida desta
família. Quem manda aqui agora somos nós, diz a m.3e. Com as
f i 1 h as já crescidas e traba 1 hando, na o prec;i samos mais dei e.
Atr.:~vés de uma aliança com as f i 1 has, a màe reverteu
sua posiçáo na família, destituindo o pai de seu lugar. Náo
aceitam mais seu dinheiro. Ele paga, no entanto, o que come.
A acei t.:~çào de sua presença na famí 1 ia, entre as mui tas
razOes - afinal ele está doente e elas cuidam dele - envolve
a exibiçáo cotidiana a seus próprios olhos de sua derrocada,
ou melhor, de sua desonra. 2 ~ Com o dinheiro que ganha com os
25 Como arqumt>ntou Julian resposta ofensiva nao E.>stá ofendido a presenciá-lo. honra" {p. 17).
Pitt-Rivers (1988), apE>nas no ato em si, "Senti r-sE> ofendi do,
nos códigos mas no fato
É' a pedra
de honra, a de obrigar o de toque da
bicos que ainda consegue fazer-, ele continua bebendo até
cai~. A mae, com as filhas, apossou-se da casa, cujo terreno
o casal adquiriu quando o bair~o era ainda quase mato;
a~~umam e planejam ~eformas, com seus p~óp~ios recursos,
dispensando o pai. Diz a mae:
ELI lutei tanto, construi aqui lo, dei t.:.nto ... tijolinho por tiJolinho., e agora deix.:.r assim? N.3o .• é cov.:.rdi.:.. Eu vou lutar, eLI quero ver de nós do;zs quem pode mais.
Sonhos que nao se realizam
O significado da 1 uta que se travou dent~o desta
familia nao se esgota em dizer que se tratou de uma evidente
~evolta cont~a a auto~idade patriarcal. Se a explosao da
revolta cont~a a auto~idade desmedida do pai, na atitude de
entrentamento das mulheres nesta familia, reverteLl de fato
sua posiçào, o que se depreende da nova situaçao
estabelecida? As mulhe~es sào ou to~na~am-se "centrais" nas
tami 1 ias pobres? As mulheres sao ou tornaram-se "chefes-de-
familia''? Vamos devagar.
O episódio ~evela que o pai, ao longo da vida familiar,
abusou das prerrogativas de sua posiçáo de autoridade, sem
66
cumprir com os deveres em relaçao à família que cor-respondem
a esta posiçáo. O dinheiro que ganhava nao era suficiente
para manter sua família e ele sempre bebeu. Diante das
frustraçoes e da viol?ncia de que foram objeto, as mulheres,
como esposa e filhas (assim como os filhos homens que
for-a deste episódio específico), r-ever-teram a estavam
situaçào familiar, respondendo com uma violí?ncia quase
sempr-e muda, que passou a fazer- parte da linguagem através
da qual a família se comunica, uma linguagem cir-cular e
reiterativa da própria violência.
As mulheres revoltaram-se contra uma autoridade
desmedida que tornou ilegítima a obediência. A "boa"
obediência, afinal, implica a "boa" autoridade, que, como
define Maria Lúcia Montes ( 1983) ' SE? caracteriza por
concentrar todos os seus valores positivos no "termo médio".
A revel ta deu-se dentro de um univer-so de valores em que a
quei~a se dirige à "má" autoridade que abusa de seus
direi tos e descuida de seus deveres. N.3.o se obedece a uma
autoridade que nao se reconhece como legítima. A autoridade
que abusa de suas prerrogativas ''se reproduz como qualidade
negativa ou gera seu complemento antagônico no pelo da
obedi~ncia", tornando-se "incapaz de se impor- pelo respeito
às virtudes necessár-ias que devem acompanhá-I a." (Montes,
1983, p. 334) Por este caminho, efetivamente redefiniu-se a
posiçéo das mulher~s naquela familia, desautor-izando o pai.
A autoridade pate~na perdeu sua força simbólica, incapaz de
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mobiliza~ os elementos morais necessários à obediência,
abalando a base de sustentaçào dos padrties patriarcais em
que se baseia a família pobre urbana. Mas há, ao mesmo
tempo, um ~essentimento, que denota expectativas frust~adas.
Nào precisam mais dele, mas tole~am sua presença
"desnecessária". Ou p~ecisam desta presença, mesmo que nào
seja como elas pensam que deveria ser?
Na resposta das mulheres desta família, vítimas de uma
viol'ªncia qua!:õe !:õempr"'e física, está a "desvalorizaçào" do
homE>m que> nào rE>spondeu às expectativas depositadas nele,
afi~mando sua capacidade de ''sobreviver'' sem elE>, à custa de
reitera~ uma impotência da qual ele nao consegue escapar.
Quais sào, entao, as expectativas da mulher, e do homem em
relaçào a si mesmo, que o homem pobre nào consegue cumprir?
Antonio Cândido (1987), em sua análise da "família
caipi~a" com seus valores tradicionais " padrbes
patriarcais, ass~m como em seu estudo sobre a família
b~asileira (Candido, 1951) ' argumenta que estes padrbes
pe~dem sentido com a urbanizaçào e modernizaçao do país. Nem
todas as análises indicam este caminho. Estudos recentes
sobre os pob~es urbanos mostram, ao contrário, a fo~ça
simbólica destes padrbes ainda hoje, reafi~mando a
auto~ idade masculina pelo papel central do homem como
mediaçao com o mundo externo, e f~agilizando socialmente a
família onde nào há um homem "provedor", de teto, alimento e
6f.)
respeito.:z6
Quando suger-i uma entr-evista com um homem nascido no
Plaui, cr-iado pelos compadres do pai, desde que sua mae
arrumou outro amante e me 1 argou com esse casal que me
criou, ele nao só aceitou prontamente a sugestao, como me
convidou para um almoço:
Venha um prazE?r., vai encher
conversar, conversar é comigo mesmo. @
mas vem cE?do e de e5tómago vazio. Você o estômago é aqui na minha casa.
Ele teve 24 filhos, mas cr-iou apenas 11' os que
viver-am. É atualmente casado pela segunda vez com uma mulher-
trinta anos mais nova. Começamos a entrevista (gravada).
Ele, na vagareza de quem relata um grande feito, contava-nos
sua vida, e estava entusiasmadissimo por poder contá-1 a.
Naquele momento, seus gestos, a inflexao da sua voz, sua
postura corporal tinham uma altivez singular. Falava dos
dois prazeres de sua vida, dança e mulher:
Dançar, eu dançava muito ••. e mulher, 5abe como é que é, né?
26 A importância do homem como "provedor" da família, no sentido econOmico e mooa.l (de teto, alimento e respeito) aparece nos tril.b,dhos de Del mil. P. Neves (1984), luis Fernando D. DuartE' (1986), Alba Zaluar (1985), em meu trabalho anterior (Sarti, 1985a) e no de M, Cr-istina Costa (1993).
!.., r; ~ .. 7
Dizia que mulher é a maior graça que Deus pôs n.a terra,
orgulhoso de sua virilidade, reafirmada por sua disposJ.çdo
par~ trabalhar. Contava que dançava a noite inteira,
e de manha estava lá, ó, pronto para trabalhar.
Perder meu compromisso por Nunc.a.' Por caLJsa de cansaço? Eu era cansaço.
causa de farra? na o sabi .a o qt.Je
Relatava, com a precisao das datas que se atribuem aos
grandes fatos históricos, cada um dos trabalhos que fez
antes de chegar a Sào Paulo:
No dia trabalhar no
21 de maio de plantio de fumo ( ••
1955, . )
comecE? i a
No d.ia 21 de junho do mesmo ano terminamos a_quele serviço pesado.
Falava de quando ainda levava vida de peáo sozinho no
mundo, ressaltando em tom grandi loquente os valores morais
que o sustentaram nas adversidades de sua vida, a coragem, a
honra e a fé em De1..1s:
Nunc.a tive medo dE? n.ada n.a vida.
70
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!
Eu fui E>mbora de casa e eu disse aos mE>us pais: Eu vou embora~ se e>t.J estiver na pior. esqueç.a o seu filho,, eu nào volto. Tem gente que sai de casa em busca de aventura e encontra a desaventur.:~ e volta correndo para casa, ndo enfrenta.' Eu fui o contrário: E?U parti para a aven t1..1ra, para c.asa,
encontrei a des.aventura~
enfrentei, no duro. m.:~s nao vol te.i
Dentro de mim eu dizia: confio em Det.ts que isso passa.
O estilo grandiloquente do diSCLtrso deste homem, a
afirmaçào da "moral de homem", fala das expectativas que
t~m os homens em r-elaçào a seu próprio desempenho, numa
tentativa de manter a auto-imagem diante das fr-ustr-açbes. A
forma nar-r-ativa do r-elato deste homem, r-essaltando sempre
suas qualidades mor-ais enquanto falava de sua vida de peao,
dos pagamentos que lhe foram prometidos e nao feitos, dos
filhos perdidos por falta de assistªncia médica, relaciona-
se às características do discurso "popular" destacadas por
Maria Lúcia Montes (19831 sua análise dos dramas
representados nos circos-teatros na periferia de sao Paulo.
No discurso dos atores e do público, segundo a autora, a
ficçao se separ-ava da realidade por um "fio tênue que se
esgarçava e acabava por náo mais distingui-los,''
"Quase como se narrar a experiªncia vivida conferisse ao real um 'efeito suplementar de real1dade', ao ser traduzido numa forma que enfim lhe conferia a desejada e merecida dignidade, para além da banalidade prosaica do quotidiano sem relevo" (p. 184).
71
Ele é funcionário pUblico desde quando chegou em Sào
Paulo em 1963, trabalhando como garagista. Era o seu dia de
folga. Sentou-se devagar e altivo em sua poltrona, feita de
uma imitaçao de couro, rasgada e queboada, apoiada num
tijolo. Lembrei-me das observaçbes de C~mara Cascudo (1987),
sobre autoridade e pressa, em que diz que socialmente a
lentidcio é dignificante a velocidade inversamente
proporcional à hierarquia, fazendo com que os subalternos
transitem "na ligeireza dos movimentos a prontidào da
obedifncia, disciplina, submissào''. A vagareza do pai, que
naqueles gestos reafirmava sua autoridade sobre a familia,
foi complementada pelo gesto do filho mais novo que,
prontamente, sem quE' qualquer palavra lhe fosse dirigida,
veio trazer os chinelos e colocou-os nos pés do pai, num
gesto desta etiqueta ti pica do cotidiano das famílias
pobres, que chamo de patriarcal, porque reitera a hierarquia
entre o homem e a mulher, entre os adultos e as crianças e
reafirma essas fronteiras a cada gesto, mostrando ao mesmo
tempo convençbes tradicionais, pouco ligadas ao utilitarismo
urbano.
Sua mulher e as filhas nao se sentaram à mesa para
comer; como é de hábito, vjo comendo, beliscando a comida
enquanto cozinham ou fazem seu prato e comem sem se sentar à
mesa; servem o marido e os filhos, estes sim sentados à
mesa. Os agregados, aqueles que de alguma maneira estao numa
situaçâo de favor ou de hierarquia, como os recém-chegados à
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cidade, tampouco comem à mesa, ajeitam-se sentando no braço
de alguma poltrona, em algum banco ou cadeira, o prato fundo
de comida no colo, a colher- na máo.
Sentar- à mesa, dentr-o da etiqueta dos pobres, é um
hábito que r-esponde às hierarquias que dividem seu mundo
simbólico, sendo r-eser-vado ao homem, às crianças pequenas e
às visitas de honra. O fato das cr-ianças estarem incluidas
liga-se à sua importância como depositárias das expectativas
familiares. Nestas r-egras implicitas na convivência
cotidiana percebe-se a demar-caçao da hier-ar-quia familiar,
reafirmando as fronteiras entre o masculino e o feminino e
conferindo ao homem um lugar de autoridade na familia que
ele, trabalhador e pobre, náo encontra no mundo da rua.
As dificuldades encontradas para manter o padrao de
desempenho que se espera do homem na familia pobre, por sua
condiç.3o de trabalhador e pobre, faz com que a dimensao da
pobreza no contexto familiar apareça mais explicitamente no
discur-so masculino, já que os homens se sentem os
responsáveis pelos rendimentos familiares. É sobre ele que
recai mais forte o peso do fracasso. É o homem quem falta
com sua obrigaçdo quando o dinheiro nao dá. Assim, é quE? na
tentativa de "conferir dignidade ao cotidiano sem rE?levo"
destacam-se as qualidades morais que sustE?ntam o homem que é
homem nas situaçbes de dificuldade, estruturais em suas
vidas.
Em contrapartida, a mulher, em seu desempenho como boa
dona-de-casa, faz com que apesar d& pouco~ o dinhe,iro dê.
Isto implica em controlar o pouco dinheiro recebido pelos
que trabalham na família, priorizando os gastos (com a
alimentaçào em primeiro lugar) e driblando as despesas. Na
prioridade da alimentaçao entre os gastos, os que trabalham
devem comer mais do que os outros adu 1 tos, e os homens,
trabalhadores/provedores, comem mais que as mulheres:
vai
Os
Eu quero que ele (o marido) c:oma~
trabalhar • ..::7
papéis familiar-es complementam-se
porquE> e 1 e
para r-ealizar
aquilo que importa para os pobres, repar-tir o pouco que têm.
Isto, entr-etanto, nào se limita à família. Na mesma medida
em que a alimentaçào é a prioridade dos gastos familiares,
oferecer comida é também um valor fundamental, fazendo os
pobres pródigos em oferec?-la.
Quando fui visitar uma família, onde a mae idosa é
separada, os filhos que moravam com ela estavam
desempregados naquele momento, todos vivendo com
aposentador-ia da màe, que nào chegava nem a um salário
minimo. Excepcionalmente, fizemos uma entrevista com um dos
27 Sobre as práticas alimentares, ver, além de Antonio Cândido 0987), Woortmann ( 1986).
74
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filhos no fim da manha (foi o horário sugerido para que eu
pudesse ver a filha casada, que morava longe e estaria lá
naquele momento). A mae ofereceu-nos café e suco de laranja
e desculpou-se insistentemente porque 0 suco estava ra:im.
Era o almoço que faltava. Falou de como o dinheiro nao dava
nem para comprar comida: A g~nte traz .as compras n.a mdo, ndo
precisa nem s.acola. E me dizia: Vocé deve estar morrendo de
tom~~ Era sua nao apenas a fome, mas a privaçao da
satisfaçao de me oferecer comida. N.3o ter o que comer, a
fome, significa nào apenas a brutal privaçao material, mas a
pr i vaçao da sa ti sfaçao de dar de comer, rea 1 i za çào de um
valor moral, deste repartir o pouco que se tem. Porque, na
falta de riqueza material para repo3rtir, como diz Maria
Lúcia Montes (1981), o que conta é
"a generosidade que reparte o liberalidade que nao mede o
pouco que tem, a sacrifício ou as
despesas para as ocasibes especiais, comemoraçbes de alegria e luto, nascimento, aniversário, casamento, morte.'' (p. 69)
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:I' I ' I I ~· .
~· : l 1.
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Lugar de homem e lugar de mulher
Quem casa, quer casa. Comecemos por aí. Com o
casamento, o ideal é a formaçao de um núcleo independente,
porque uma família precisa de uma casa, aliás, condiçao para
viabilizar uma família:
Eu acho que quando a a g~n t~ na o t~m cabeça·' familia, sabe?
gente na o tE>m uma casa. às vezes_, nem para a
Tendo a familia, tudo, n&?
uma casa, a gente dá para o marido, para
mais atençâo para f.ilho_, enfim .• em
A casa é onde realizam o projeto de ter uma familia,
per-mitindo, como obser-va Klaas Woor-tmann (1982), a
r-ealizaçao dos papéis centr-ais na organizaçáo familiar, o de
pai de família e de m.3e/dona-de-casa. Este padrá.o ideal
pressupde o papel masculino de prover teto e alimento, do
qual se orgulham os homens:
O dever do homem é trabalhar, dinheiro em casa ~ ser um pai df? fam.ília respeito na casa dele ••• tendo moral.
trazer o para dar
Assim, para constituir a "boa" autoridade, digna da
obediência que lhe cor-responde, náo basta ao homem pegar e
76
botar comida dentro de casa e falar que manda, Para mandar,
tem que ter caráter_, moral. Assim, o homem quando bebe,
perdl? a moral dentro de casa. Nao consequt? mais dar ordens.
Como sintetizou Maria Cristina Costa (1993) em consonânc~a
com a argumentaçao deste trabalho, o ganho e a honra
mesclam-se para compor a autoridade paterna. Numa relaç.3o
complementar, para as mulheres o papel da dona-de-casa é
fonte de igual sentimento de dignidade pessoa 1, como
comentarei no pr-óximo capítulo na análise do tr-abalho
doméstico.
A casa é, ainda, um espaço de liberdade, no sentido de
11ue nela, contraposta ao mundo da rua, seio donos de si:
aqui eu mando.:ze
O fato do homem ser- identificado com a figura da
autor-idade, no entanto, náo significa que a mulher- seja
privada de autoridade. Existe uma divisao complementar de
autoridades entre o homem e a mulher na familia que
cor-responde à difer-enciaçéo entr-e casa e familia. A casa é
identificada com a mulher e a família com o homem. Casa E'
família, como o homem e a mulher, constituem um par
complementar, mas hierárquico. A família compreende a casa,
a casa E>Stá, portanto, contida na família:
28 Sobre a casa neste bairro, ver Caldeira (1986); sobre o significado da casa em relaçáo à família, ver Woortmann (1982) e Sarti (1985a). Dentro de uma análise do uso e da interpretaçáo do espaço urbano, Lucrécia D'Alessio Ferrara (1993) focaliza a casa em bairros da periferia de Sao Paulo.
,!
-,·7
Náo adianta ter uma casa superbonitona f? nao ter uniiio na familia. tünha casa é pobre, mas nâo a trocaria por nt:nhuma outra st: ndo pudesse viver com minha fami 1 i a
Que adianta uma casa onde nao falta nada, mas tem soliddo?
Em consonância com a precedência do homem sobre a
mulher e da f amí 1 i a sobre a casa, o homem é considerado o
chefe da fami.lia e a mulher a chefe da casa. Esta divisào
complementar permite, entáo, a realizaçào das diferentes
funçbes da autoridade na familia. O homem corporifica a
idéia de autoridade, enquanto mediaçao da familia com o
mundo externo. Ele é a autoridade moral, responsável pela
respeitabilidade familiar. Sua presença faz da família uma
entidade moral positiva, na medida em que ele garante o
respeito. Ele, portanto, responde pela familia. Cabe à
mulher outra importante dimensáo da autoridade, manter a
unidade do grupo. Ela é quem cuida de todos e zela para que
tudo esteja em seu lugar. É a patroa, designaçao que revela
o mesmo padráo de relaçóes hierárquicas na familia e no
trabalho.
A distribuiçào da autoridade na família fundamenta-se,
assim, nos papéis diferenciados do homem e da mulher na
f;;;mília. A autoridade feminina vincula-se à valorizaçào da
màe, num universo simbólico onde a maternidade faz da
mulher, mulher, tornando-a reconhecida como tal, sen~o ela
será uma potencialidade, algo que nâo se completou (Sarti,
I:
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I I
I;
I I ,,
-----
1985a).z~ Outro importante fundamento da autoridade da
mulher está no controle do dinheiro, que nào tem relaçào com
sua capacidade individual de ganhar dinheiro, mas é uma
atribuiçào de seu papel de dona-de-casa (Zaluar, 1985)
A diferenciaçao entre um papel interno feminino e outro
masculino relacionado com o mundo de fora foi assim expressa
por uma mulher casada:
Eu acho que o homem tem que entrar com tudo em casa e a mulher saber controlar. (Nininha)
Comentando as desavenças de sua vizinha depois que
ficou viúva, outra moradora concluiu: nâo tinha mais homE>m
para controlar, Analisando as diferentes percepçOes da casa
pelo homem e pela mulher, Parry Scott (1990) observou o
mesmo padrào, mostrando que no discu,.-so masculino a casa
deve esta,.- sob controle, enquanto as mulheres ativamente
controlam a casa.
Quando nào é possive1 ter uma casa, comprada, cedida ou
alugada, formando um núcleo independente para a realizaçào
das dife,.-entes atribuiçbes do homem e da mulhe,.-, a rede
familiar se mantém na cena cotidiana. O novo casal fica na
casa dos pais de um dos cônjuges, criando uma situaçào
29 O trabalho de Tania Dauster (1983) mostra a estigmatizaçáo da mulher sem filhos, comparada à "figueira. do inferno", árvore sem frutos.
sempr-e concebida como prov~sór;a, porqu~, ~ h · 1 ... ... "" ~=' ar r~ v e morar
na casa dos outros, como expressou a mulher- que ficou alguns
meses na casa do cunhado quando chegou a São Paulo,
Nestes casos, a tend~ncia, pelo menos no primeiro
casamento, onde as expectativas de realização do padr-ào
ideal sào maiores, é que fiquem na casa dos pais do marido,
respondendo à atr-ibuiçào masculina de prover teto.~0 Nos
casos em que isto não é possivel, a solidariedade familiar
leva o novo casal a ficar na casa da mulher. Essa tendência
observa-se sobr-etudo nas unibes subsequentes à primeira,
quando s0
a mulher separ-adafvinculêt a seu gr-upo de origem e
poder-á manter este vinculo mE>smo com a nova unL3o, para
estar perto da rede de apoio a seus filhos.
Embora quem case queira casa, os vínculos com a rede
familiar mais ampla nio se desfazem com o casamento, pelas
obrigaçbes que continuam existindo em relação aos familiares
e que nio se rompem necessariamente, mas sào refeitas em
outros termos, sobretudo diante da instabilidade dos
casamentos entre os pobres, dificultando a realizaçao do
padrào conjugaJ.31
30 Contr<~riando, portanto, a tendência à uxor-ilocalida.de (ou seja, a residência do novo casal junto ao grupo famÍl{a-r da esposa), observada em trabalhos que> enfatizam a "centralidade" da mulher na família (Woortmann, 1987}. 31 Acredito que, na sociedade brasileira, mesmo nas camadas médias e> altas, em funçáo de uma dinâmica distinta que náo cabe aqui tratar, tampouco a família existe como família conjugal.
80
A família ultrapassa os limites da casa, envolvendo a
~ede de parentesco mais ampla, sob~etudo quando se f~ust~am
as expectativas de se te~ uma casa, onde ~ealiza~ os papéis
masculinos femininos. Nestes casos, comuns ent~e os
pob~es, pelas dificuldades de atualizar o padrao conjugal de
fami 1 ia, ~essal ta a impo~tância da di ferenciaçao entre a
casa e a família para se entender a dinâmica das ~elaçbes
familia~es . .:5z
As famílias pob~es dificilmente passam pelos ciclos de
desenvolvimento do g~upo doméstico, sob~etudo pela fase de
c~iaçao dos filhos, sem ~uptu~as (Neves, 1984' Fonseca,
1987, Scott, 1990) ' o que implica em alteraçbes muito
frequentes nas unidades domésticas. As dificuldades
enfrentadas pa~a ~ealizaçao dos papéis familiares no núcleo
conjugal, diante de unibes instáveis e empregos ince~tos,
levam a desencadea~em-se a~ranjos que envolvem a rede de
parentesco como um todo, para viabiliza~ a exist~ncia da
família, tal como a concebem.
A literatu~a sob~e famílias pobres no s~asil confi~ma a
possibilidade de se estabelece~ uma relaçao ent~e as
condiçbes sócio-econômicas e a estabilidade familiar, no
sentido dos ciclos de vida familia~ se desenvolve~em sem
32 A importância desta distinçáo foi enfatizada por Meyer Fortes (1971), ao analisar os ciclos de desenvolvimento do grupo doméstico; ver também sobre a importância de-sta distinçáo para analisar as relaçOes familiares: Durham (1983), Fonseca (1987) e Woortmann (1982 e 1987).
B1
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i I
rupturas (Agie~, 1988 e 1990). Os trabalhos de Carmen Cini~a
Macedo (1979) e de Elizabeth D. Bilac (1978) indicam que, em
g~LIPOS de ope~á~ios economicamente mais estáveis, há maior-
possibilidade de r-ealizaçao do padrào de complementar-idade
de papéis sexuais no núcleo doméstico. A liter-atur-a mostr-a,
em contrapa~tida, a relaçào entre pobreza e chefia feminina
(Bar-roso, 1978 e Castro, 1989). Jsto significa dizer- que as
fam.ilias desfeitas sao mais pobres e, num circulo vicioso,
as famílias mais pobres desfazem-se mais facilmente.
Pesquisas demonstram como a pobreza afeta
primordialmente o papel de provedor do homem na familia
(Montali, 1991, Telles, 1992 I • JU.3.rez Lopes e Andréa
Gottschalk (1990) mostram que "as famílias chefiadas por
homens, em particular as muito jovens com filhos, parecem
ser especialmente sensiveis à recessao e à recuperaçào
econômicas".
A vulnerabilidade da família pobre, quando centrada no
pai/pr-ovedor, ajuda a explicar a frequência de rupturas
conjugais, diante de tantas expectativas nào cumpridas, para
o homem, que se sente fr.acassado, e para a mulher, que v?
r-olar- por- água abaixo suas chances de ter al gt.1ma coisa
através do projeto do casamento (Rodrigues, 1978, Salem,
1981 e sa~ti, 1985a)
Como o outro lado da moeda, Jua~ez B. Lopes e And~ea
Gottschalk (1990) mostram que 8S famílias chefiadas por
!·I
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i< ·I i-1-11 ::
mulheres estao numa situaçào estruturalmente mais prec~ria,
mais independentes de variaçôes conjunturais, quando
comparadas com a si tua.çao das i amí 1 i as pobres, equi v a 1 entes
no ciclo familiar, que tem chefe masculino presente, dadas
as diferenças nas formas de inserçào da mulher no mercado de
trabalh0.:3:3
Se a vulnerabilidade da mulher está em ter sua relaçào
com o mundo externo mediada pelo homem, f r agi 1 izando-a em
far::e deste mundo que, por sua vez, reproduz e reitera as
diferenciaçoes sexuais, o status central do homem na
família, como trabalhador/provedor, torna-o tambPm
vulnerável, porque o faz dependente de condiçbes externas
cujas determinaçOes escapam a seu controle. Este fato torna-
se particularmente grave no caso da populaçào pobre, exposta
à instabilidade estrutural do mercado de trabalho que a
absorve.
33 A estruturaçáo do mercado de trabalho a partir da diYisáo sexual do trabalho, afetando toda sua composição, salários, qualificaçào, formas de inserçáo, alocação em momentos de cr-ise, etc ... , tem sido objeto de uma importante linha de pesquisas. Ver para refer~ntias: Bruschini, (1985), Hirata e Humphrey (1983 e 1984), Telles (1992) e Sarti (1985b), entre outros.
83
Deslocamentos das figuras masculinas e femininas
Nos casos em que a mulhEC>r- .;~;ssume a r-esponsabilid.;~;de
econômica da fami lia, ocorr-em modi fi caçOes importantes no
jogo de relaçbes de autoridade e efetiv.;~;mEmte a mulher pode
assumir o papel masculino de ''chefe'' (de autoridade)
de f in i r-se como ta 1 • A auto r- idade mas cu 1 in a é seguramente
abalada se o homem nao garante o teto e o alimento da
familia, funçbes masculinas, por-que o pape.!. de provedor a
r-eforça de manEC>ira decisiva. Entretanto, a desmoralizaçáo
ocorrida pela perda da autoridade que o papel de provedor
atribui ao homem, abalando a base do respeite que lhe devem
seus familiares, significa uma perda para a familia como
totalidade, que tende a buscar uma compensaç:ao pela
substi tuiç.3o da figura masculina de autoridade em outros
homens d.a rede fami 1 i ar.
Cumprir o papel masculino de provedor nao configura, de
fato, um pr-oblema para a mulher, acostumada a trabalhar,
sobretudo quando tem precisao; para ela, o problema está em
manter a dimensao do respeito conferida pela presença
masculina. Quando as mulheres sustentam economicamente suas i' '
unidades domésticas, podem continuar- designando, em algum
nivel, um ''chefe'' masculino. Isto significa que, mesmo nos
casos em que a mu 1 her assume o pape 1 de provedora, a
identificaçào do homem com a autoridade moral, a que confere
respeitabilidade à família, nào necessariamente se altera.
Os diversos aspectos em que o homem sua
autor-idade, garantindo os recursos materiais, o respE'ito e a
proteçao da família, enquanto provedor e mediador- com o
mundo externo, podem estar a l ceados em diferentes figuras
masculinas. Isso acontece particularmente nos casos de
separaçao conjugal e de novos casamentos, onde o novo marido
nao necessariamente ocupa o lugar masculino em r-elaçao aos
f i 1 hos de sua mulher-. Os frequentes casos de separ-açào e a
frequente ocorr~nci.a de gravidez entre as adolescentes
CUJO filho tende a ficar na casa dos avós, que o cr~am com
ou sem a mae leva a uma divisào dos papéis masculinos e
femininos entre diversos homens e mulheres na rede familiar,
deixando de se concentrar no n~cleo conjugal.
A sob~evivência dos g~upos domésticos das mulhe~es
"chefes de família" é possibilitada pela mobilizaçao
cotidiana de uma rede família~ que ultrapassa os limites das
casas. Nestes deslocamentos, o filho mais velho se destaca
como aquele que cumpre o papel de chefe da familia. Sào os
casos que Tania Salem (1981) apropriadamente chamou de
''filhos eleitos''. O trabalho de Michel Agier- (1988, 1990),
feito em Salvador-, e o de Claudia Fonseca (1987), feito em
Porto Alegre, demonstram o mesmo padrao, que fa2 lembrar- as
obser-vaçties de Fr-ançoise Héritier (1975} sobre a estreita
dependência entre laços consangu.ineos e laços conjugais em
qualquer sociedade. Segundo esta autora, há uma r-elaçao
pendular- e inversa entre esses dois termos, onde ao
enfraquecimento um tipo d" v.inc:ulo corresponde o
fortalecimento do outro.
Tal como acontece o deslocamento dos papéis masculinos,
os papéis femininos, na impossibilidade de serem exercidos
pela màe-esposa-dona-de-casa, sao igualmente transferidos
para outras mulheres da fam.ilia, de fora ou dentro da
unidade doméstica. O exerc.icio dos papéis sexuais, nos casos
em que se desfaz a relaçao conjugal, passa para a rede
familiar mais ampla, mantendo o
complementaridade de papéis, transferidos
núcleo conjugal. Nestes casos, além
principio da
do para fora
dos familia,..-es
consanguineos, tem um papel importante a instituiçáo do
compddrio.
A rivalidade entre consanguineos e afins, ,..-essaltada
por Claudia Fonseca (1987), embora exista, nâo impede a
solidariedade nesta rede onde se deslocam os papéis. As
relaçbes entrecruzam-se, fazendo com que as regras de
obrigaçào prevaleçam sobre a rivalidade referida e levdndo à
cooperaçào. Assim, a avó paterna pode cuidar dos netos,
enqudnto a ex-nora trabalha. Neste caso, o cruzamento dá-se
também pelo principio da diferenciaçao de gênero (ou sexual)
e a rede feminina alterna-se no cuidado das crianças.
Nos casos de viuvez ou separaçáo sem nova uniáo, a máe
torna-se a figura aglutinadora do que resta da família, e
sua casa acaba sendo o lugar para onde acorrem os f i 1 hos
86
nas si tuaçôes de desampar-o (desemprego, separaçóes
conjugais, etc.). Sendo o ponto de refer-ência par-a toda a
família, à mae é devido um respeito particular, sobr-etudo se
ela tiver uma idade mais avançada, que tem o sentido de uma
retr-ibuiçào do filho à màe que o criou, como no belo r-elato
de Richard Hoggart (1973) sobr-e o respeito à mae nas class~~
trabalhadoras inglesas.
Se a comunicaçao dentro da rede de par-entesco revela o
papel crucial da màe, conforme obser-va Woortmann (1987),
isto nao significa "centralidade" da mulher na fam.i.lia, mas
o cumprimento de seu papel sexual, de mantenedora da unidade
familiar, numa estrutura que nao exclui o papel complementar
masculino, deslocado para outros homens que nao o pai.
Dent~o deste unive~so simbólico, ~essu~ge ent~e os
pobr-es ur-banos a clássica figura do "irmao da mae".
Sobretudo nos momentos do ciclo de vida em que o pai da
mulher já tem uma idade avançada e náo tem mais condiçbes de
da I'" apoio, o irmào surge como a figura masculina mais
provável de ocupar o lugar- da autoridade masculina, mediando
a relaçào da mul hei'" com o mundo exte~no e garantindo a
r-espei tabi 1 idade de seus consanguineos. Woor-tmann ( 1987) e
Fonseca (1987) ~econhecem também obrigaç6es do ir-mao de uma
mulher par-a com ela, como uma espécie de substituto do
mar ido, assumindo par-te das responsabilidades masculinas
quando a mulher- é abandonada.
D7
Nas famílias que cumpriram sem rupturas os ciclos de
desenvolvimento da vida familiar, o pai tem um papel central
dent~o de uma relaçao complementar e hie~á~quica com a
mulher, concentrados no núcleo conjugal, ainda que esta
si tua:çao na o exclua a transferência de atribuiçbes à ~ede
mais ampla, em pa~ticula~, quando a mie trabalha fora; nas
famílias desfeitas e refeitas, os ar~anjos deslocam-se mais
intensamente do núcleo conjugal/doméstico pi:!~a a rede ma~s
ampla, sobretudo para a familia consanguinea da mulher.
Esse deslocamento de papéis familiares nao significa
uma nova estrutura, mas r-esponde aos pr-incipias estruturais
que definem a família entre os pobres, a hierar-quia
homem/mulher e a diferenciaçao de papéis sexua~s com a
divisao de autoridades que a acompanha.
Na o é, portanto, necessariamente o controle dos
recursos internos do grupo doméstico que fundamenta a
autoridade do homem, mas sim seu papel de intermediário
entre a familia e o mundo externo, em seu papel de guardiio
da respeitabilidade familiar. o fundamento deste lugar
masculino está numa representaçao social dos sexos, que
identifica o homem como a autoridade moral da família
p~r-ante o mundo ex terno. Di 2 respeito à ordem mora 1 que
organiza a família, portanto, a uma razao simbólica, usando
a formulaçao de Marshall Sahlins (1979), que se reatualiza
nos diversos arranjas feitos pelas famílias com seus parcos
recursos.
BE_I
O papel fundamental da mulher na casa dá-se, portanto,
dentro de uma estrutura fami 1 i ar onde o homem é essencial
para a própria concepçao do que é a família, porque a
família é pensada como uma ordem moral, onde o homem
representa a autoridade. Mesmo quando ele ndo provê a
família, sua presença ''desnecessária'', continua necessária.
A autoridade na família, fundada na complementaridade
hierárquica entre o homem e a mulher, entretanto, nao se
realiza obrigatoriamente nas figuras do pai e da mae.
Diante das frequentes rupturas dos vínculos conjugais e da
instabilidade do trabalho que assegura o lugar do provedor,
a família busca atualizar os papéis que a estruturam,
através da rede familiar mais ampla.
A família pobre nao se constitui como um núcleo, mas
como uma rede, com ramificaçties que envolvem a rede de
parentesco
obrigaçties
como um todo, configurando uma trama de
morais que enreda, num duplo sentido, ao
dificultar a individualizaç.3o e, ao mesmo tempo, viabilizar
a existência dos indivíduos enquanto apoio e sustentaçao
básicos.
Esta rede que constitui a famí 1 ia pobre, através da
qual as relaçbes familiares se atualizam, permite
relativizar o sentido do papel central das mulheres na
família, reiteradamente destacado na literatura sociológica
e antropológica sobre as famílias pobres no Brasil (Barroso,
1978, Figueir-edo, 1980, Neves, 1984, Woortmann, 1987,
El9
Castro, 1989, Scott, 1990). Nao se trata de contrapor norma~
"patriarcais" e práticas "matrifocais", como propoe
Woortmann (1987), na medida em que as práticas se definem
articuladas a normas e valores sociais. A prática contém em
si a norma, em sua forma positiva ou como transgressào. Pela
forte demarcaçào de gênero e pelas dificuldades de
realizaçào do modelo nuclear, nào necessariamente as figuras
masculinas e femininas sao depositadas no par pai/marido e
mae/esposa, mas sao transferidos para outros membros da rede
familiar, reproduzindo esta estrutura hierárquica básica. 34
AntJ.·gamente era o homem que mandava na casa, disse uma
mulher, casada pela terceira vez, com um filho de cada
uni.3.o,
só que de uns tempos para mais é a mulher ••• nao sei
cá·' quem está mandando se é Tal ta de trabalho.,
ou silo os homens mesmo que es tao mui to acomodados ••• agora tem ••• como diz? Os direitos sa·o iguais .•• mesmo a mulher que nào trabalha, ela tem mais poder do que antes~ na o sei o que está acontecendo com as geraçDes de agora.. os homens na o está querendo mui ta responsabi 1 idade.. eles esta o deixando tudo nas c: os tas das mui heres. E eles sabem que as mulheres vao a luta e tem homem que num tá nem ai.
34 Sobre o caráter- hierárquico brasileira., ver- a. discussâo de Roberto Da. Ma.tta. (1987).
e patriarcal da Angela Mendes de
famíliA Almeida.
na soci~d.:ade
(1987) e de
90
Antigamente aparece aqui como um tempo idealizado, em
que as mulheres nào tinham sobre suas costas o peso da
responsabilidade da família que, sua representaçao,
envolve a complementaridade entre o homem e a mulher. Esta
situaçao de uns tempos para c~ envolve uma permanente
ambivalência, em face das expectativas fr-ustradas, dos
ar-ranjos compensatór-ios e dos benefícios impr-evistos que
podem advir- das novas situaçbes criadas. Assim é que se os
direitos sao igua~-s e a mLilhE'r hoje tem mais:. poder, isto é
vivido de forma ambivalente, nào necessar-iamente como uma
reversao dos papéis familiares, mas como uma r-eafirmaçào do
fracasso masculino, diante das dificuldades do homem de
exercer um papel onde estao depositadas as expectativas
familiares, seja poc ra2bes que lhe escapam, tal ta de
traba I ho, ou por r-a26es que 1 h e di 2em respeito, porque es ti:io
acomodados mesmo, sobr-e as quais ele tem uma
responsabilidade moral
As expectativas frustradas instauram um mecanismo, do
qual os homens e as mulheres sao cúmplices sem o saber
necessariamente, que reiter-a as atribuiçbes masculinas e
femininas, ainda que dificilmente sejam cumpr-idas nos
arranjos cotidianos. Ambos, homens mulheres, acabam
enredados neste emaranhado de expectativas que nào conseguem
responder. Ele, fracassado, tem no a 1 co o 1 i smo o desafogo a
seu alcance e ela se frustra por nao poder ter o homem e a
situaçao familiar esperados. Diante do homem que representa
91
a autoridade e que nào cumpre o papel esperado- infiel, que
bebe, que nao traz dinheiro para casa a mu 1 her acaba
tendo um acentuado papel ativo nas decisoes familiares, sem
que, no sentido inve~so, o homem tenha modificado seus
papéis familiares. Diante dele, que socialmente tem sobre
ela uma autoridade que nào se justifica a seus olhos, ela
exibe sua disposiç.3o de se virar, de nao precisar mais dele,
como uma vingança, ~eíterando o fracasso dele e a frustraçao
de ambos.
O lugar das cr1anças~
Quem casa, quer casa, mas nao apenas isso. O projeto do
casamento, onde está implicita a constítuiçào de uma
família, é indissociado da idéia de ter filhos (Sarti,
1985a). ~ inconcebível formar uma família sem o desejo de
ter filhos. A idéia de família compbe-se, entao, de três
peças: o casamento (o homem e a mu 1 h e r-) a casa e os
f i 1 hos.
A pessoa que na o tem filho, na o tem v .i da. Família ~em f .i 1 ho_~ eu acho que é um fruto ~em
v a 1 ar. É umiil .3rvore que morreu E' que na o tem fruto nenhum. 56 eles dois ali numa casa qLie nem duas estacas. 56 come E' bebe, trabalha E' dorme, pra que? E eles fizeram esse lar para que?
Depois que você tE>m um filho, você luta por algum obJetivo.
,q minha tia sofre por nao ter Llm filho para cuidar d&la.
Entre as relaçbes familiares, é sem dúvida a relaçào
entre pais e filhos que estabelece o vínculo mais forte,
onde as obrigaçbes morais atuam de forma mais significativa.
Se, na perspectiva dos pais, os filhos sáo essenciais para
dar sentido a seu projeto de casam~nto, "fertilizando-o",
para náo serem uma árvore seca e outras tantas metáforas que
exemplificam a analogia da família com a natureza, dos
filhos é esperada uma retribuiçao, que existe enquanto
compromisso moral:
Eu aprendi isso do meL/ avô e eu acho que dá resultados: criar elas sem esperar recompensa, porque se elas (as filhas) fizerem algo para m.1m, que seja por elas., de agradecimento por elas mesmo, delas ver meu esforço para com elas •••
Retribui-se moralmente, se a mae ou o pa.l· vier a
precisar, ou sendo um bom fi 1 ho, isto é, honesto,
trabalhador: eu já acho um grande beneficio •.•
Isto é o que se espera dos filhos adultos; das crianças
espera-se que obedeçam simplesmente. Há uma forte hierarquia
entre pais e filhos, e a educaçao é concebida como o
exercicio unilateral da autoridade.~~ As crianças gozam, no
entanto, de certas regalias. Comem à mesa e, junto com os
trabalhadores, tem prioridade na distribuiçao da comida. O
valor dado ao filho na familia aparece na prodigalidade com
que comemoram seu primeiro aniversário.~6 As crianças vao
perdendo suas rega 1 ias, conforme estejam em condiçbes de
repartir as obrigaçbes familiares, assemelhando-se ao
estatuto dos outros familiar-es. Pode-se dizer que o que
de f in e a criança, entre os pobres, é que ainda na o
participam das obrigaçbes familiares, nào trabalham, nem se
ocupam das atividades domésticas, etapa CUJO inicio depende
das condiçbes de vida familiares, tornando difícil delimitar
a "infância" entre os pobres. A regra é que as crianças
desde muito cedo, com 6 ou 7 anos, tenham atribuiçbes dentro
da família (Dauster, 1992} . Seus inúmeros Jogos e
brincadeiras alternam-se com as frequentes atribuiçbes que
1 hes sao designadas' como ~r até a venda, dar recados,
buscar auxílio.
35 Na forma como sáo tratadas as crianças aparece a reproduçao do padráo unilateral de exercício da autoridade que as instituiçoes públicas reservam aos pobres, seus pais, evidenciando a relaç~o entre a educaçio e o e~erc.icio de uma cidadania democrática. Maria Lygia Quartim de Moraes (1993) desenvolve este problema, ressaltando a importância da "boa infância para o futuro cidadão", mostrando que as raízes da privaçio que dificulta o exercício da cidadania estao longe de serem materiais e que, quando as carênciais básicas começam no plano afetivo, dificilmente os projetos de democratizaçao, por melhor intencionados que sejam, conseguem romper as resistências. 36 Esta comemoraçao parece-mt:> também associada ao sucesso da sobrevivência da criança, numa populaçao ainda marcada pela ocon··ência de mortes prematuras.
Uma das delimitaçbes do que é ser criança diz respeito
a uma mudança no exerci cio unilateral da autor-idade.
Crianças sao aqueles que podem levar surra, E>m comparaçao
com os ;avens, que já tem condiçbes de reaçao, tal como
aconteceu na família em que as filhas crescidas fizer-am uma
aliança com a màe contr-a a autoridade desmedida do pai. Uma
dessas filhas, uma .;ovem de 19 a;nos, assim expressou essa
diferença de condiçbes:
Nas crianças sim, vez em quando_~ agora jovens se trata cansei en tizaçao •••
vamos dar umas palmiôdas de com jovens niiio é assim,
com conversa, com
Filhos, como o casamento, significam responsabilidade,
uma categoria moral que se opbe, para os pobres, à de
vaidade. Uma mulher cuja filha engravidou, solteira e com 16
anos. argumentou que sua filha deveria ter o filho, e nào
abortar, par .a aprender o que é a vidiô.
Os f i 1 hos d.3o à mulher e ao homem um estatuto de
maioridade, devendo torná-los responsáveis pelo próprio
destino, o que implica idealmente em se desvincular- da
familia de origem e constituir novo núcleo familiar. O filho
pode, entao, tornar-se um instr-umento para esta
desvinculaçào.
Uma mulhe~ hoje casada, com um filhinha de cinco anos,
contava-me que quando morreu sua máe, o pai ~euniu todos os
filhos pa~a comunica~ quem i~ia~ a partir daquele momento,
tic:r=~r como donr=~-de-casa. O lugar coube a ela, filha mais
velha. Além deste papel, ela e o pai tornaram-se os
principais arr~mas financeiros da familia. Segundo
r-elata:
Eu precisava fazer alguma coisa da minha l/ida .• . 1 eu queria casar ••. Ai falei com meu pai .• ele me achava muito nova para casar e eu praticamente era o braço direito dele •••
SE>U
Como, já estava cansada de trabalhar para a família,
resolveu sair com o namorado e ir para um motel:
Vou ver se eu arrumo uma barriga e ver se eu caso rápido.
Apesa~ da relutância do namorado, que temia pela reaçáo
do pai, ela conseguiu seu intento. Engravidou e o pai teve
que aceita r que e 1 a dever i a se casar, c r i ando seu núc 1 e o
independente. Subsumida por sua posiç.3.o essencial na
hierarquia familiar e em sua divisáo de trabalho, ela náo
estava designada para casar. Assim, o sentido de
responsabilidade implicito em ter filhos leva as mulheres a
utilizarem deliberadamente a gravidez como um instrumento
par-a a independência de sua fam.i.lia de or-igem e/ou, diante
de um noivo hesitante em casar-, par-a for-çá-lo a assumir a
respons.ab.i 1 i da de.
Màe solteira
Na per-spectiva de que o filho é uma respon:..abilidade
dos pais, quando o homem nào assume sud par-te, cabe à mulher
assumi-la sozinha. A .ace.i t.açao da màe sol te ir-a envolve
nuances impor-tantes. Ela é, em pr-imeir-o lugar, vítima de um
s.afado, que náo assume as consequê:ncias dos seus atos, um
homem que nao é digno de respeito, acusaçào que compor-ta uma
ambiguidade, na medida em que, ao mesmo tempo, ninguém pode
obrigar ninguém a casar. Assim, diz o pai de filhos homens
ao pai de filhas mulheres:
CLJida do teu capim, que eu vou sol ta r meus cabritos.
Nao observei nenhum caso em que a mae solteir-a fosse
deliber-adamente expulsa de casa. A cr-iança é normalmente
incorporada ao núcleo familiar da mae. Ela errou, mas seu
erro maior to~- confiar no sa t.ado, opinou outro pai de
famí 1 ia. Se errou, pode 1 he ser dada a chance de reparaçao.
~7
7!
Ter- o filho e conseguir- criá-lo transforma-se, entao, na
pr-ova de um valor- associado à coragem de quem enfrenta as
consequências dos seus atos: sou muito mulher para criar meu
filho, um código de honr-a feminino.
Neste pr-isma, condena-se o aborto, considerado vaidade,
em opa si çào à responsa.b.i 1 idade:
A pessoa ter aborto_. tudo bem, ma;. se a pessoa é sadia e tem c,ap,acida.de dE? tra.b,alh,ar_. eu a.cho que ndo precisa fazer aborto ( ••• ) por que nao evita também? Eu acho que uma mde que desfaz de um filho nao é uma mde.
Para você sustentar ter um homem a de trabalhar. c.;;p,acidadE? de filho.
seu lado. Eu acho
trabalhar,
seu filho, nao precisa se É só você ter c,apacidade que a pessoa que tem
tem capacidade de ter um
A vaidade, implicando numa individualidade tida como
.irresponsável, porque nega os preceitos de obr-igaçào moral
em r-elaçao a seus iguais, opbe-se também à necessidade, cujo
caráter involuntário desculpa e justifica um ato moralmente
condenado. Assim, o aborto por nF?cessidade torna-se
compreensivel e moralmente aceito:
De um filho só. acho abor-to). ,:;gora, quando a filho;. •••
que nao precisa (fazer pessoa tem cinco. seis
S'F:
A capacidade de tr-abalho tor-na-se o meio através do
qual a mulher- pode reparar seu erro, mostrando que é digna
do respe.i to conter- ido ao homem neste código moral. o
tr-abalho para sustentar o f.ilho r-edime a mulher-, qLlE' se
tor-na a mae/pr-ovedor-a. Subor-dinado à mater-nidade, o tr-abalho
conter-e à mulher- a mesma autonomia mor-al que é r-econhecida
no homem/tr-abalhador-/pr-ovedor. Ela trabalha e sustenta sua
prole como for-ma de reparaçao do erro de ter uma vida sexual
sem um parceiro fixo que legitime SE'L! lugar de mulher-,
passando a perna por cima de todo mundo que falou dela e
mostrando que n.ao precisa de ninguém para c: r i ar os f i 1 hos
dela, como disse, nao à toa, o irmao de uma mulher solteira
que teve dois filhos com dois homens diferentes, este ''irmào
da màe'', guardiào da respeitabilidade de seus consanguineos.
Assim, a autonomia moral da mulher/màe solteir-a tem como
condiçào necessária que ela trabalhe e prove que é muito
mulher para c: r i .ar seLJ f i 1 ho, condi çao necessár-ia mas nào
suficiente, uma vez que sua independência econômica
depende, para se consolidar como r-espeitabilidade mor-al, do
apoio e da gar-antia de seus familiares.
Nesta perspectiva moral, o ''dir-eito'' ao prazer sexual
implica o "dever-" de assumir- as consequên c i as, a
possibilidade do filho, que é colocado como uma
inevitabilidade da vida sexual, fazendo com que a r-epr-oduçáo
legitime moralmente a sexualidade. Uma mulher- que estava
naquele momento na terceira uniào conjugal argumentou que
uma mae que nao tem capacidade de assumir um filho~ f?nt.#io n.3o tE?m capacidadE? de estar namorando e estar arrumando homem. Eu acho que para ter capacidade de arrumar um homem~ tem capacidade de sustentar o filho que vem pela frente, porque tudo o que você fa:z, sempre tem que aparecer uma coise~
para voe? sacrificar sua vi da.
Relaçbes através das crianças
Pa~a entende~ o luga~ das c~ianças nas famílias pob~es
é, mais uma vez, necessá~io dife~encia~ as famílias que
cumpri~am as etapas do seu desenvolvimento sem rupturas,
onde os filhos tendem a se~ mante~ no mesmo núcleo familiar,
e as que se desfizeram neste caminho, alte~ando a ordenaçào
da ~elaçào conjugal e a ~elaçào entre pais e filhos.
Nos casos de instabilidade familia~, po~ separaçbes e
mo~tes, aliada à instabilidade econômica est~utu~a1 e ao
fato de que nào existem instituiçbes pUblicas que substituam
de forma eficaz as funçbes familiares, as c~ianças passam a
nào ser uma responsabilidade exclusiva da mae ou do pai, mas
de toda a rede de sociabilidade em que a família está
envolvida. Claudia Fonseca ( s/d) argumenta que há uma
coletivizaçao das responsabilidades pelas crianças dent~o do
g~upo de parentesco, ca~acte~izando uma "circulaçào de
c~ianças'' (Fonseca, 1985). Esta prática popula~ insc~eve-se
100
dent~o da lógica de obrigaçbes mo~ais que caracteriza a ~ede
de parentesco entre os pobres. Constitui, segundo Claudia
Fonseca (s/d), um
''diviso~ de águas ent~e aqueles individuas em ascensào que de fato adotam valores de classe média e aqueles que, apesar de uma existencia um tanto quanto mais confortável, permanecem ligados á cultura popular.''
Em novas unibes conjugais, quando há filhos de unibes
anteriores, os direitos e deveres entre pais e filhos no
grupo doméstico ficam abalados, na medida em que os filhos
náo sao do mesmo pai e da mesma mae, levando a ampliar esta
~ede para fora deste núcleo. Nesta situaçáo os conflitos
entre os filhos e o novo cônjuge podem levar a mulher a
optar por dar para criar seus filhos, ou algum deles, ainda
que tempora~iamente.
A criança será confiada a outra mulher, normalmente da
~ede consanguinea da màe. Nas familias desfeitas, por morte
ou separaçào, no momento de expansao e criaçào dos filhos,
ocorrem rE?arranjos no sentido de garantir o amparo
financE?iro e o cuidado das crianças. Embora se conte
fundamentalmente com a rede consanguinea, as crianças podem
ser recebidas por nào-paren tes, dentro do grupo de
referência dos pais. Foi um dos casos que acompanhei, onde
um casal com tris filhos, moradores da favela local, cr1am
10.1.
um menino, cuja mae mor-reu e o pai deSapar-eceu. A r-ota
alternativa para este menino fica clara na advertencia:
Ou voe€/ seguinte: eu .ap.arecer
se te
comporta? ou coloco na
do contrtlrio., FEBE/'1 até teu
O impor-tante a r-essalta r é que este na o é um caminho
sem volta, mas uma das possibilidades, a menos de~ejével,
dentro desta cir-culaçao das crianças.~ 7
Nos casos de separ-açàa, pode haver pr-efer"ência da máe
pelo novo companheir-o, prevalecendo o laço conjugal,
circunstancialmente mais forte que o vinculo mie-filhos. Uma
nova uniao tem implicaçoes na relação da màe com os filhos
da uniào anterior- que expressam o conflito entre
conjugalidade e maternidade (tào claramente revelado no
diálogo abaixo entre uma mulher já separada e sua màe, que
argumenta em termos da retribuiçào possível). Dadas as
dificuldades que enfrenta uma mulher pobre para criar seus
filhos, a tendência será lançar mào de so1uçbes temporárias
para contornar a situaçao, entre as quais está
possibilidade de que os filhos fiquem com o pai. Entre os
casos que acampem hei, dois homens, casados novamente,
37 Ver o trabalho de Cláudia Fonseca (1986) sobre a inter-naçii;o dos pobres como parte do contexto de circu1açio de crianças, onde o sentido da internaçáo, associada aos estigmas da pobreza, é r-e-elaborado quando se torna uma alter-nativa concreta em suas vidas.
:to.::.::
ficaram com os filhos da uniáo anterior.
Ele (o marJ'do) não queria se separar de mim~ porquE? elE? falou que se um dia a gentE? se separasse_, ele nao largava da menina, que ele ia carregar a menina com ele.
Eu falei: "ent.iio vocé' va.i passar por cima do meu túmulo~ porque a menina de mim vocé nao tira".
E a minha m.iie: "O que? Hoje em dia., brigar por c..=wsa de filho nao vale a p&na, porque depois que eles cresce, eles dá um pontapé no traseiro da gentE?.
Eu faleJ·: "éi, mi:if?.' P senhora pode pensar o que a senhora quiser. mas eu penso do meu jeito. Eu acho que desde o mome>nto que a ge>nte pôs filho no mundo. a gente> tem que cuidar dele. Se tiver que passar fome., vai passar fome_, mas eu dar meus filho para alguém, isso jamais vou fazer."
A instabilidade familiar, embora seja um fator
importante, na o esgota o significado da circulaçao de
crianças, que pode acontecer mesmo em familias que nio se
romperam. Claudia Fonseca mostra como a máe que dá para
seu filho ou filha, pode exigir retribuiçao,
considerando que, ao darem seus filhos "sacrificaram suas
prerrogativas maternas em beneficio destes'': deram aos pais
adotivos uma criança. A criança aparece como dádiva, o que
estabelece a possibilidade de reivindicar retribuiçao. Nao
constituindo uma adoçao, ou seJa, a transferência total e
permanente dos di rei tos sobre a c r i an ça, a c i r cu 1 açao de
crianças é uma forma de transferência parcial e temporária,
tosterage, que abre espaço para relaçoes de obrigaçào entre
.1(1~
os pais biológicos e adotivos. Instaura-se um jogo que
envolve manipulaçào por parte da màe biológica que dEu seu
filho, como sacrifício materno. Ao mesmo tempo, a
adotiva tem a expectativa de alguma retribuiçào (que pode
ser um pagamento) pelos cuidados prestados (Fonseca, 1986 e
s/d).
A adoçao representa quebra deste jogo, pela
transfer@ncia total dos direitos e deveres sobre a criança
adotada. Dá-se sob o signo da lei, enquanto a circulaçao de
crianças acontece no registro das obrigaçOes morais que
caracterizam
reiterando o
pobres.
as práticas
primado dos
populares (Fonseca, 1985) '
costumes sobre a lei para os
A circulaçào de crianças, como padrào legitimo de
relaçào com os filhos, pode ser- inter-pretada como um padrào
cultural que permite uma soluçao conciliatória entre o valor
da maternidade e as dificuldades concr-etas de criar os
filhos, levando as maes a na o se desligarem deles, mas
manter-em o vínculo através de uma circulaçao tempor-ária.
Assim, mantêm-se os vínculos sangue, aos de
criaçáo, ambos definindo os laços de parentesco, atualizando
o padrao de incorporaçào de agregados que tradicionalmente
caracteriza a família brasileira (Freyre, 1980). Através das
crianças, reafirmam-se, ao mesmo tempo, os vinculas com seu
grupo de referência.
J (14
/'1.3e e Pa:i: nas horas boas e ruins .••
A prática de adoçbes informais e temporárias acaba
relativizando as noçbes de pai e mãe, o que implica numa
elasticidade no uso dessas categorias. As crianças chamam de
"pai" e "m.=ie" aqueles que CLJidam deles. A pessoa que cuida
sente-se no direito legítimo de ser assim chamada e
reivindica esta nomeaçào. O avS, quando mora com os filhos
de suas filhas solteiras, é invariavelmente o pai, assim
como o marido da ma e pode também ass1m ser chamado,
sobretudo quando o genitor- (pai biológico) nào tem ma1s
contato sistemático com os filhos.
Um dos homens entrevistados, casado pela segunda vez,
está entre os dois mencionados que moram com os três filhos
do seu primeiro casamento, os três do primeiro casamento da
mulher e um filho desta segunda uni.3o. A mae biológica das
cr-ianças trabalha fora e mora na casa contígua à dele, com
entrada pelo r-ua de tr-ás. Segundo seu relato, e>le e a
segunda mulher sao os que cvidam e os f i 1 hos do primei r o
casamento chamam a sua segunda mulher de mae, e a mae
biológica pelo nome próprio. Desta situaçào~ ele disse ter
uma teor.ia:
J. (l ~'
11.3e é a que cuida deles ( .... ) n.3o aquela qLie viv~ pelo mundo. talvez na sua vaidade_. ou talvez na sua necessidad~_. nao assista o seLI crescimento~ o seu desenvolvimento. Entaa eLJ acho que máE? é aqu&la que realmente zela pela criança.
As categor-ias pai e mae, desvinculando-se da or-igem
biológica, r-etorçam os vínculos de criaçao. Assim comE>ntou
um homE'm dE' 24 anos, quE' tE'm um ir-m.sio adotivo e cuja mulher-
tem filhos de outr-o casamento:
Quando ele (o irmao adotivo) tinha mais ou menos uns dr:?z .anos. minha máe contou toda a história para ele .• apresentou a miie dele, a av6 dele, a familia ••• toda a famil.ia e ele náo se importou com nada. Ele falou: esse é meu lar, esses siio m~us pais' .. E está até hoje com minha mcie, reconhece como miie .• gosta dela ••• tudo ••• até hoje.
E sobr-e a filha de sua mulher:
Eu acho que todo mundo tem que saber a verdade. Se um di a.. • • se eu conheço o pai dei a, SE?
ele aparecer di :zen do que é o pai .• espero que ela julgar quem j.á tenha idade suf.iciente para
realmente é o pai. Ni!io pelo fato de pelo carinho, pelo amor, por estar horas boas e ruins •••
fecundar, junto •••
m~s
nas
Diante do fato cultur-al de que o cuidado da criança é
preferencialmente confiado " ma e " " sua r-ede de
sociabilidade, torna-se evidentemente mais fácil desvincula~
J. o.:.'
a categoria p.ai de sua origem biológica de sangue. Mesmo {
assim, embora o gen i to r (pai biológico) na o c r i e a c r i ança
e, por- isso, nao mereça o afeto e a designaçào de pai, p;:.•i
n~·--:-- estar junto, nas horas boas t? ru.ins, nào se desfaz a
imagem idealizada de um pai de sangut?. Confirmando o
habitual desconfor-to diante de situaç6es formalizadas, que
caracteriza 05 pobres, uma mulher casada, comentou as
soluçbes para os casos de separaç~o conjugal, argumentando
que, ao contrário do C/LI& diz a lei, quando o~ filhos são
pequenos, é melhor nao verem o pa~, em lugar- de verem em
dias mar-cados. Em sua opiniao, é ruim para a criança ver que
o pai não volta para casa, nao está portanto, nas horas boas
e ruins. Os filhos devem, entao, ver o pai quando crescer-em,
se, por iniciativa própr-ia, quiser-em saber do pai, porque o
quE' conta é quem está junto.
No caso da máe, o v.inculo biológico nao perde sua força
simbólica. Chamar- várias mulheres de máe náo exclui
idealizaçào do laço biológico mae-filho. O trabalho de
Fonseca (s/d) mostra como mesmo nos casos em que a criança é
cuidada por outras que nao sua biológica~ esta é
reconhecida e reivindica o status de verdadeira mde. f1iiie
também é quem cr-iou, mas a verdadeira mae é uma só.
A coexist'l?ncia das categor-ias de sangue e de criaçao,
como parte do sistema de parentesco dos pobres, permite a
manipulaçâo, sobr-etudo entr-e as mulher-es, de demandas sobre
a criança, ou o seu uso como instrumento de outras demandas.
J07
Cada parte reivindica de acordo com os direi tos que sua
posiçào de ma e qLie c r i ou ou de verdade i r a m.Eie lhe
confere, dando express~o a inúmeros conflitos e rivalidades.
Sào particularmente marcantes os casos de avós que
criam os filhos de suas filhas sol te iras, onde o s.:.ngue se
sobrepbe à cri01çáo, conferindo à avó um poder de manipulaçào
singular, porque se inscreve na relaçâo hierárquica entre
màe e filha. A pertinência ao mesmo grupo de sangue, pela
linhagem, e seu estatuto de poder sobre a filha levam a avó
a ''apropriar-se'' da criança, que a chama de màe, enquanto a
mae biológica é chamada pelo nome próprio, sendo privada de
seu lugar de mae. Nos casos observados, a filha acaba saindo
de casa e deixando o filho, porqLIE> nao tenho condiçoes de
criá-lo, o que configura uma maneira indireta de expulsar de
casa a mâe solteira, opçâo sempre negada no discurso.
Embora a r-ede de parentesco possa ser caracter-izada
pela indiferenciaçâo entr-e parentes de sangue e de criaçdo e
o tr-atamento dado aos filhos de criaçao crianças dadas
para criar tenda também a ser indiferenciado, isso na o
quer dizer que esta distinçâo nao seja manipulada nos
conflitos, fazendo com que nem sempre as crianças que n~o
fazem parte do núcleo original sejam tratadas da mesma
maneira. Isto pode acontecer em relaç:âo o os fi 1 hos de
criaçi:w, mas aparece particularmente em relaçao aos filhob
de unioes anterior-es do cônjuge:
lOt
Ninguém quer criar filho de> outro homem, dar comida a filho de ninguém, depois ficar jogando na cara da mulher. Arruma uma briguinha assim e joga na cara da mulher •••
Quanto às ob~igaçbes mo~ais dos filhos com relaçDes aos
pais, os pais que criam e cuidam sao merecedores de profunda
retribui çao, sendo um sinal de ingra.tidào o na o
reconhecimento desta contrapartida.
Dentro das possibilidades com as quais conta uma mulher
que engravida e que, na sua concepçào, nâo tem condi çbes de
cr~ar o filho está o aborto, nem sempre moralmente aceito,
ainda que se justifique por necessidade, como foi comentado.
Em funçi:i.o desta interdiçao moral, dar os filhos para criar é
uma alternativa aceitável dentro de seus códigos morais, nào
sendo necessariamente expressao de um desafeto:
De repente, uma f ami 1 i a que cuidar bem •••
voe~ pode até achar uma que i r a_. que você saiba
pessoa .• que va~·
As adoçties temporárias, ou a circulaçao de crianças,
criam uma forma de apego, uma afetividade distinta das
relaçóes estáveis e duradouras. O sentimento de uma mae ao
d.ar seu fi 1 ho par .a criar, como uma questao de ordem
sociológica, diz respeito a um padréo cultural onde as
crianças fazem parte da rede de relaçties que marca o mundo
dos pobres, constituindo "dádivas", como observou Claudia
Fonseca {s/d). Assim, criar ou dar uma criança n.:io é apenas
uma questao de possibilidades materiais, mas se inscreve
dentro do padrào de relaçbes que os pobres desenvolvem entre
si, caracterizadas por um dar, receber retribuir
continuas.
Projetos familiares
O casamento é o projeto inicial através do qual começa
a se constituir a familia. É por intermédio do casamento que
sào formulados os projetos de melhorar de vida, nunca
concebidos individualmente, mas em termos da
complementaridade entre o homem a mulher. Se a mulher
deposita no homem/marido suas expectativas de ter alguma
coisa na vida e interpbe entre ela e o mLtndo a figura
masculina, a contrapartida aparece claramente no discurso
dos homens, para quem:
A gente sozinho nLmca consegue nada. TE>m que haver uniao, porque se eu lutar sozinha_, eu niio vou conseguir nada. Nesmo que ela nao trabalhe, mas ela ••• economizando a gente chega lá !f aonde a gente quer chegar, porque estando os dois é mais fácil, né? Um é bem mais difici1, porqLie nao tem aquela re5ponsabi 1 idade que tE>m dE>pois de casado. A maioria dos casal ai só tem as coisa dG>pois quG> casa. N<=io se_i se é prag.:;_, o que é_, se é descaraçao mesmo do homem. Nas o cara só consegue as coisa mesmo quando casa. A.i consegue progredir.
11(1
Esse projeto tem época certa:
casar Já tinha mocidade, já dava para aquietar. Eu já tinha namorado demais, já
que dava aprove.itado minha v.ida o
e me t.1"nha para
aproveitar .•. , já estava para casar .•. para cuidar da minha vida.
ter alguém
O casamento para o homem significa parar de zoar. Esse
tempo de zoeira é época boa, etapa necessária para aquisiç:.3o
do código masculino de sociabilidade. Transitar no mundo da
rua é parte do processo de tornar-se homem. 1sto se d~ nos
bares, no bairro ou nas redondezas. Essa etapa, no entanto,
tem limites. Ficar nessa nao leva a nada. Depois de se
divertir, fi> preciso aquietar. É quando o homem começa a
pensar em namorar para casar, em ter uma responsabilidade na
vida. O casamento passa a ter contornos de um projeto, com
véu e grinalda ou simplesmente juntando os trapinhos. Nào dá
mais para sair na sexta-feira e s6 voltar na segunda. Começa
a se delinE?ar, com matizes e nuances, a imagem do homem de
respeito, o pai dE? familia.
SE?m a fam.i.lia, os rendimentos do trabalho masculino
desperdiçam-se naquilo que nao leva a nada. Sem os papéis
familiares que conferem sentido ao desempenho masculino no
mundo do trabalho, a própria atividade de trabalhar náo faz
sentido; ao mesmo tempo em que a expectativa depositada no
homem de ser o provedor familiar, como foi mencionado, o
coloca continuamente diante da possibilidade do ''fracasso''.
.l J. j
o casamento legal o religioso considerados
moral mente super i ores à uni ao consensua 1 conferindo maior
respeitabilidade ao casal e legitimidade ao lugar de marJdo
e de esposa. A pr-imeira uniao conjugal é sempre pensada e
idealizada como uma uniáo referendada pela lei de Deus e dos
homens, enquanto as unibes subsequentes se constituem como
unibes consensuais, fazendo do divórcio um recurso raramente
utilizado entre os pobres.
Do ponto de vista da família de origem, há o momento de
casar-,
porque náo pega bem a gente passar toda uma vid.a solteira dentro de casa_, dando trabalho para o pai e para a má e. Porque, por mais que a gen ti? seja o que a gente i#> (todo o rendimento do seu trabalho vai par-a "dentro de casa"), eles sE?mpre acham que a gente es. t~ dando trabalho_, na o é mes.mo? Principalmente, quando estáo caindo para a idade •.• eles querem mais. é ficar s.o2inhos., porque eles .id cr~·aram a gente né? Já te2 de tudo pela gente e agora. . • de repente a gente f i c a velho e em ve2 de casar e procurar o rumo da gente ••• a gente f~·ca dentro arrumando mais trabalho para eles. Est~ errado, né?
Nesta casa, duas das filhas sao maes solteir-as, cuJos
filhos sao cr-iados poc sua familia, situaçao que se
contr-apbe à for-mulaçao do pr-ojeto de melhorar de vida. Em
que consiste, afinal, este projeto?
A populaçao pobre que vive em sao Paulo tem todas as
aspiraçbes que a cidade lhe apresenta e que a televisao
1.1 ::::·
estimula e unifo~miza; esta exposta à individualizaçào que a
cidade impôe, at~avés do tr-abalho e do consumo. O jovem
pobr-e ur-bano tem planos de melhorar de vl.da, como seus pais
que mlgr-ar-am; mas estes planos se formulam dentro de um
univer-so de valor-es onde as obr-igaçbes mor-ais sao
fundamentais, por-que sua existência está ancor-ada nesta
mor-alidade.
A elabor-açào de pr-ojetos individuais pa~a melhorar de
vida, atr-avés do tr-abalho, esbar-r-a nos obstáculos do próprio
sistema onde se localizam como pobres e torna-se
particular-mente problemática diante das obr-igaçbes morais em
relaçào a seus familiares DL! a seus iguais com os quais
obtêm os recursos para viver. Assim, as projetos, onde a
idéia de melhorar de vl.da está sempr-e presente, sao
formulados como projetos familiares. N&lhorar de v.id.a é ve~
a família progredir. O trabalho é concebido dentro desta
lógica familiar, constituindo o instrumento que viabiliza o
p~ojeto familiar e nao individual, embo~a esta atividade
seja realizada individualmente.
11C
I' r
Delimitaçao moral da família
A familia, par-a os pobr-es, associa-se àqueles em quem
se pode confiar. Sua delimitaçao nao se vincula à
per-tinência a um gr-upo genealógico e a extensao vertical do
par-e.>ntesco restr-inge-se àqueles com quem convivem ou
conviver-am, r-ar-amente passando dos avós. O uso do sobrenome
para delimitar o grupo familiar a que se pertence, recur-so
utilizado pelas familias dos gr-upos dominantes brasileiros
par-a per-petuar o status (e poder) conferido pelo nome de
familia, é pouco significativo entre os pobres. Como nao há
status ou poder a ser- transmitido, o que define a extens~o
da familia entr-e os pobr-es é a rede de obrigaçóes que se
estabelece: \'.;i;:,_,_-, da familia aqueles com quem se pode contar,
isto quer- dizer, aqueles que retribuem ao que se dá,
aqueles, portanto, para com quem se tem ob,-igaçdes. sao
essas r-edes de obr-igaçóes que delimitam os vinculas, fazendo
com que as rel açóes de afeto se desenrolem dentro da
din~mica das relaçbes descritas neste capitLtlo.
A noçao de família defint--se, assim, em torno de um
P.ixo moral. Suas fronteiras sociológicas sao traçadas a
partir- de um principio da obrigaçáo moral, que fundamenta a
familia, estruturando suas relaçbes. Dispor-se às obrigaçbes
mor-ais é o que define a pertinência ao grupo familiar. A
argumentaçao deste trabalho vai de encontro à de Klaas
Woortmann ( 1987), par-a quem, sendo necessário um vinculo
mais preciso que o de Siingue para demarcar quem é parente ou
náo entre os pobres, a noçào de obrigiiç~o torna-se central à
idéia de parentesco, sobrepondo-se aos laços de sangue. Esta
d~mensao moral do parentesco, a mesma que indiferencia os
filhos de sangue e de criaç~o, delimita também sua extens~o
horizontal. Como afirma Klaas Woortmann (1987), a relaçao
entre pais e filhos constitui o único grupo em que as
obrigaçoes s.3o dadas, que na o 51? escolhen. As outras
relaçbes podem ser seletivas, dependendo se
estabeleçam as obrigaçDes mútuas dentro
de
da
como
rede de
sociabilidade. Nào há relaçbes com parentes de sangue, se
com eles ndo for possível dar, receber e retribuir.
As retribuiçbes que se esperam nas relaçbes entre os
pobres nao.sãoimediata~ Por isso, é necessário confiar. Como
salientou Klaas Woortmann (1987), "o fato importante é a
aus?ncia de cálculo de dívida explícito" ( p. 197)
precisamente a falta de interesse que marca as relaçbes
familiares, na medida em que o interesse constitui uma
categoria fundamentalmente individualista, em oposiçao à
noçao de necessidade, utilizada pelos pobres como critério
para a definir a obrigaçao de ajuda. A pessoa ajuda quem tem
precis~o, na certeza de que será ajudada quando chegar a sua
hora. Nao se trata, portanto, de um dar e receber imediatos,
mas de uma cadeia difusa de obrigaçbes morais, em que se dá,
na certeza de que de algum lugar virá a retribuiçáo, tendo
na crença em Deus a garantia de continuidade da cadeia: Deus
provê. Em última instância, essa mor-alidade está ancorada,
entao, numa ordem sobrenatural.
Concluindo este capítulo, a família inter-essa
argumentaçào deste trabalho enquanto um tipo de r-elação,
onde as obr-igaçcies mora~s sao a base fundamental. A familia
como ordem moral, fundada num dar, receber e retribuir
contínuos, torna-se uma refer?ncia simbólica fundamental,
através da qual traduzem o mundo social, or-ientando e
atr-ibuindo significado a suas r-elaçbes dentro e for-a de
casa.
Capitulo 4
A MORAL NO MUNDD DD TRABALHO
"Dá tanto quanto r-ecebes, tudo estar-á mui to bem".
Provérbio maori, citado por Marcel Mauss
A 1 i ter-atura sobre os pobres urbanos já demonstrou a
heterogeneidade dos moradores da per i feria e dos subúrbios
no que se refere à sua inserçao no mercado de trabalho,
contraposta à relativa uniformidade de seus rendimentos e
seu modo de vida, e ressaltou a importância do local de
moradia como base de uma identidade coletiva (Magnani, 1984,
Caldeira, 1984, Sarti, 1985a, Zaluar, 1985 e Ourham, 1988).
Os moradores do bairro em que pesquisei reproduzem esta
heterogeneidade, trabalhando na indústria, no comércio ou no
setor de serviços, e apresentam também uma significativa
homogeneidade no que se refere nào só aos baixos
rendimentos, mas à sua qualificaçào. A predominância é de
trabalhadores assalariados nào-especializados e, entre os
autônomos, os nào-especializados sào também a maioria. Sua
renda média nào passa de dois salários minimos, segundo o
survey feito em 1980 no bairro.~~ Refi r o-me neste capí tu 1 o,
portanto, ao sentido do trabalho para os trabalhadores
"desqualificados", formalmente vinculados em sua maioria ao
mercado de trabalho, embora haja também entre eles os que
vivem de bi5cate, sentido apreendido no discL!rso sobre o
trabalho que realizam, quase sempre fora do espaço do bairro
onde pesquisa foi feita. São traba;lhadores que se
38 ~ porc~ntaq~m d~ assalariados não-~specializados era de 70~ em 1980 e de prestadores de serviços igualme-nte não-especializados, incluindo o serviço doméstico, era de 14%, compondo nitidamente um qu~dro de trabalhadores niw-especializados no bairro (84%) • ainda que a maioria esteja formalmente ligada ao mercado de trabalho.
118
representam pela clara definiçao de um deles sobre si mesmo~
Eu na o tenho nada, eu tenho só a saLlde e a dispos.i.çilo para trabalhar.
Pobres ~ rrabalhadares
A identidade masculina, na faml.lia e fora dela,
associa-se diretamente ao valor do trabalho, nao apenas para
os pobres. O trabalho é muito mais que o instrumento da
sobrevivência material, mas constitui o substrato da
identidade masculina, forjando um jeito de ser homem. É
condiçao de sua autonomia moral, ou seja, da afirmaçao
positiva de si, que lhe permite dizer: eu sou.
Na auto-imagem dos homens, moradores da periferia, a
identidade de trabalhador confunde-se com a de pobre.
Definem-se como pobres ~ trabalhadores, sendo as duas
categorias igualmente importantes para sua localizaçao no
mundo social. Partindo da identificaçao destas duas
categorias, procurei entender o sentido particular do
trabalho para os pobres. A identidade de pobre carrega a
conotaçao negativa que o termo encerra em si:
e-
l.l9
Tem a que 1 a f rase 1 á, que quando a pessoa é pobre, pé rapado., nao presta. Entao~ a gente tem que mostrar para as pe>ssoas ricas .• que nE>m no caso da gente ser um emprE>gado, que a gente é pobrE>, mas a gente é honesto. a gente quer vencer, entao a 9ente tem qLie mostrar qLie a gE>n te também somos gente igual a eles.
Pobre, categor-ia car-r-egada de conotaçbes mor-a~s, nâo
diz respeito apenas às desigualdades sociais, mas, sendo
r-elativizada pelo prisma moral, é
aqw::la pessoa pobre de espírito. Aquela pessoa que ela ca.i num buraco, em vez dela tentar subir, ela cava um buraquinho para descer, descer, descer •••
É através do tr-abalho, então, que demonstram não ser-em
pobres, atr-avés de sua hones ti dad&, sua di sposi çdo de
vencer, tor-nando-se por estes atr-ibutos morais, iguais a
eles. Vencer aqui náo significa necessariamente ascender
socialmente, mas se afirmar pelo valor positivo do trabalho.
Ao lado da negatividade contida na noçao de ser pobre, a
noção de ser trabalhador dá ao pobre uma dimensâo positiva,
inscrita no significado moral atribuído ao trabalho,
partir de uma concepçâo da ordem do mundo que r-e-qualifica
as relaçbes de trabalho sob o capital. Se ele se localiza
como pobre no mundo social, não se considera pobre de
espi r i to, porque tem os valores morais que 1 h e permitem,
quando cair no buraco, se levantar. E através do trabalho
que realizam esta disposiçdo de se levantar. O valor moral
120
atribuído ao trabalho compensa as desigualdades socialmente
dadas, na medida em que é construido dentro de outro
r-eferencial simbólico, diferente daquele que o
''desqualifica'' socialmente.
Neste capitulo, pr-etendo tratar- do universo do
trabalho, procurando entender em que se fundamenta a ética
pela qual ele é regido e que, nao apenas legitima e
justifica a submissáo à disciplina do trabalho, mas atribui
um sentido positivo à exist~ncia dos pobres e trabalhadores.
É precisamente esta ética que fundamenta a imbricaçáo destas
duas categorias no universo simbólico dos pobres, embora
distintas da definiçào delas apresentadas, como mencionei no
capitulo dois, que se baseia numa concepçao sociológica do
trabalho, a priori, onde o que se acentua é a "exploraç.3o",
que é o resultado da forma como ele é organizado na
sociedade capitalista, limitando a esta ótica o sentido do
trabalho, Mesmo quando se considera a concepç.3o que dele
fazem os próprios trabalhadore5, os que assim se designam,
tomando sua "exper-iªncia" como irredutível, isto náo quer
dizer que a ótica que reduz o trabalho à sua exploraçao
deixe de informar- a leitura.
121
O trabalhador como homem fort~
Os pobres evidentemente avaliam o trabalho pelo
critér-io fundamental do salár-io, Uma ocupaçào melhor-
remunerada será sem dúvida valor-izada. Mas o valor- do
dinheiro, que é próprio da sociedade capitalista enquanto
seu "bem supremo", é relativizado pelo valor- moral do
trabalho. Exceto para aqueles que se engajaram no pr-ojeto
pr-opr-iamente de ascensao social antes mencionado, rompendo
os vinculas com seu grupo de referência e norteando sua vida
pelo pr-incipio da "r-azao prática", o valor- do trabalho se
define dentro de uma lógica em que conta nao apenas o
cálculo econéimico, mas o benefício moral que retiram desta
atividade. o trabalho vale n.3.o só poc seu rendimento
econômico, mas por seu r-endimento moral, a afirmaçao, par-a o
home~, de sua identidade masculina de hom~m forte para
trabalhar,·~•
A retraduçao do valor do trabalho sob o capital, que o
torna dignific:ante, faz-se através da honra, ou seja, do
direito ao orgulho de si mesmo, como define Pitt-Rivers
(1988). A honra, entre os pobres, nao estando associada à
posiçao social, vincula-se à vir-tude moral, enquanto
39 Esta positividade> do trabalho, que> e>xiste> no universo simbólico dos morador-es da per-ifer-ia de Sao Paulo, é ressaltada, no plano do ester-eótipos, nos sambas, se>gundo José Paulo Paes (1981) "diferencialmente paulistas", de Adonir-an Barbosa, que r-etratam o mundo suburbano do trabalho.
122
afirmaçào de si em face do olhar dos outros, sendo o
trabalho um dos instrumentos fundamentais desta afirmaçao
pessoal e social. No que se refere ao trabalho, a honra pode
estar contida no fato de se tE-r uma prof.iss~o, reproduzindo
em sua aspi raçào o orgulho das corporaçbes de o f .i. cio pré~
capitalistas; em trabalhar por conta própria, sem precisar
ter um che>fe> nas costas da ge>nte, reafirmando seus anseios
de autonomia através do trabalho; ou, em face dos trabalhos
''desqua 1 i f i cados" que têm a seu a 1 cance, traduzem-nos como
tr.:Jbalho d1.1ro, serviço pE?sado que exige qualidades morais
como a corggem, a força e a di sposi çao.
Esta disposiçao para o tr-abalho, este ser pau para toda
obra, que caracteriza os pobres (ou os trabalhadores que se
ocupam de atividades socialmente desqualificadas), é vivida
como uma qua 1 idade positiva, uma dá di v a, que compensa as
desigualdades sociais. Ela é mesmo percebida como uma
vantagem relativa, levando os pobres a considerarem que, em
última instância, o rico depende mais do pobre do que o
inverso, porque o pobre, embora niio tenha nada tem saúde e
esta disposiçao para trabalhar, capacidade da qual ninguém o
priva, porque é concebida como dada por Deus:
Quando Deus d~
precisa .• a coragem_. serviço.
à gente tudo a disposiçao,
o a
que a gente
gente faz o
A potencialidade para trabalhar, transformada em
mercadoria a ser vendida em troca do salãrio no sistema
capitalista de produçao~ que corresponde, na análise de
Marx, à noçao de "força de trabalho", é, para os
traba 1 hadores, a sua di spos.i çiio e força, concebidas como
dádivas divinas, como fazendo parte da ordem da natureza. A
dispos.içao para o trabalho, jà em SÍ uma graça, é
complementada por outra graça, a da boa vontadf: para
aprender. Como me disse uma mulher:
R: Se os pobres tiver uma lavour.:o. tiver uma condiç.i:io de viver, eles t.ambém nao vai depender tanto dos ricos, tanto qucmto os ricos precisa da gente. Uma comparaçao: voei? precisa de um vestido para fazer. Você náo sabe fazE>r ~ agora eu sei fazer. Se você nao vir ni mim para m.im fazer o vest.ido para voe~, voe~ nâo vai vestir aquele vestido. Uma que voe~ niio sabe fazer_, e eu sei fazer. Voe~ tem o dinheiro_. E>LI nao te>nho o dinhe>iro_. mas eu sei fazer. A.í é onde E>stá_, entendeu?
P: Entào o ~~co tem o dinhei~o, mas
R: Nas na o tem boa vontade de aprender, de fazer que o pobre faz.
Esta disposiç.3o é vivida como o fundamento de sua
autonomia. Pa~a tê-la, no entanto, é preciso saúde, um valo~
~elacionado ao t~abalho. o co~po é o inst~umento do
t~abalho, nào apenas pa~a sobrevive~, mas para mostra~-se
forte. Também a saúde tem um valo~ mor-al O tr-aba 1 h o de
Ma~ia C~istina Costa (1993), analisando o univer-so simbólico
1.24
no qual se insc~eve o t~abalho entre os cortadores de cana
que entrevistou na periferia de Ribeirao Preto, mostra
como, em sua concepçào, sobressai a exigência de f es orço
fi.sico e de disposic;:ao, portanto, de sa1..íde, para que o ganho
possa satisfazer as necessidades familiares, de um lado e
para que, de outro lado, suado e exausto depois de uma
jornada, possa dizer: É trabalho de gente forte (cf. Costa,
1993, p. 133). 40
Mesmo nào tendo nada, ele tem sal..lde e disposJ.·ça·o par.:o
trabalhar. Assim, a saúde, sendo uma condiçào o
trabalho, faz com que aquele que, no registro do poder~ é
fraco e pobre, torne-se forte e rico:
"É r-ico e forte por-que assim, manter a r-iqueza moral de familia." (Costa, 1993, p.
tem saúde e de trabalhador 125)
pode, e pai
A dimensao moral da capacidade f.í.sica do trabalhador-,
corporificada na noçao de saúde, foi também sugerida e
analisada por Luis Fernando Duarte (1986) Ele mostra que a
capacidade moral se associa às categor-ias de
respcmsabi 1 idade, obri gaçao, vontade e corag&m, enquanto a
40 Semelhantemente aos moradores da periferia de Sao Paulo, no discurso dos trabalhadores entrevistados por M. Cristina Costa (1993), o trabalho é avaliado ora pelos critérios da ordem econômic,;, capitalista, onde o que conta é o salário, ora por critérios de ordem moral, onde o que imporia é a hon~a do trabalhador.
I /
capacidade física a categor-ias tais como res.i.sténcia, força
e disposiç.tio, "que irào servir a idéias ou compor- locuçbes
físico-morais" (p. 257).
O trabalho, conferindo di gn.i da de ao pobre enquanto
fundamento de sua autonomia mor-a 1, legitimH sua
reivindicaç:ào de rG?speito, dentro da mesma lógica em que o
trabalhador reivindica o respeito de seus fami 1 i ares e
garante, como c:hede-da-famJ.lia~ a respeitabilidade de seus
familiares. o trabalhador- dá seu suor e r-eclama a
contrapartida do respeito, o que se traduz na exigência do
reconhecimento de que ele faz a par-te que lhe cabe. A
dignidade do esforço implícito no trabalho possibilita
inverter o rito de autoridade de que fala Da Matta (1978) e,
do legitimo lugar de trabalhador, que reconhece a honra de
sua condiçáo e reivindica a contrapartida do reconhecimento
desta honr-a, o pobr-e pode virar o jogo e dizer o seu "Você
sabe com quem está falando?".
Esta dimensào positiva do trabalho, misturando
fundamentos morais e religiosos aos econômicos, constrói a
auto-imagem do trabalhador e, legitimando um lugar de
respeitabilidade, ar-ticula-se também na dimensào política,
ao definir os limites da autoridade legitima nas relaç:Oes de
trabalho, da ''boa autoridade'' que leva à ''boa obediªncia'' e,
assim, qualificar o que se torna abuso da autoridad~, quando
126
l., ..
a dignidad& do trabalhador náo é respeitada. 4 ~
A noçào de dignidade se funda num principio de
obrigaçOes nas relaçdes de trabalho, onde a assimetria nao é
posta em questao. Nào se trata do principio igualitário que
se expressa na lei, mas de um principio relacional, de
obrigaçdE?s (como na família), onde cada um tem uma parte a
cumprir. Os pobres e trabalhadorE?s fazem sua exig'ência de
respeito náo como cidadáos, mas como seres humanos que sào
fi lhos de Deus, ancorando-se numa ordem da natureza,
legitimada de uma perspectiva sobrenatural, e nào na lógica
da vida pública, para estabelecer os parâmetros onde a
dignidade do trabalhador é ferida. Nesta concepçáo, é a
honra que está em questáo e nao o direito fundado na noçào
de cidadania, dois referenciais distintos, mas que SE?
entrecruzam quando, em nome da honra, que lhe confere o fato
de ser- pobre, trabalhador e filho de Deus, abre-se a
possibilidade do trabalhador reivindicar um direito, que
embora nao deixe de ser concebido dentro de uma tradiçi:io
hierárquica, pode resultar efetivamente, por linhas tortas,
em uma conquista no plano da cidadania.
Pitt-Rivers (1988} mostra em seu estudo sobre a honr-a
que esta se coloca em oposiça.o ao principio da cidadania,
41 Lals Abramo (1986 ~ 1988) int~rpr-~ta o s~ntido das gn•ves de 1978 como uma ~xigência de resgate da dignidade do trabalhador-, numa conjuntur-a especifica onde a violência nas relaçbes de trabalho chegou a um ponto e~tr-emo. Ainda que sua análise se refir-a a Psta conjuntura específica, suas conclusóes sobre o compor-tamento dos grevistas par-ecemme r-emeter a traços estruturais de sua concepçao do trabalho e de sua auto-imagem como trabalhador-es.
127
definindo-se enquanto um código em conflito oom a
legalidade. Se o código de honra é um valor aristocrático, 0
pr-incipio da honr-a na o se r-estr-inge aos ar-istocratas,
manifestando-se em diferentes épocas históricas, em
diferentes espaços sociais, de acordo com as tradiçties
cultur-ais particulares a cada época e espaço, tendo em comum
a contraposiçáo à lei. Assim, os aristocratas desprezaram as
leis, porque se consideravam "acima" dela, enquanto os
"marginais", mesmo "fora" da lei, a substituem por seus
próprios princ.í.pios de honra. Quanto à importância do
principio da honra entre os pobres, é no primado dos
costumes sobre lei, fundado no reconhecimento da
desigual da de reproduz ida na 1 e i que favorece os r i r:os, que
se pode entendê-la. Mesmo porque, a lei é para ele>s, os
outros, que pertencem ao mundo dos poderosos:
Porque no Bras i 1 só tem JLIS ti ça, para P.P.: preto e pobre. Porque Br.ssi 1 também é preto. É a mesma dois.
só tem poli c ia br.:mco pobre no .Justiça p.sra os
No mundo dos pobres, a "1 e i justa" vem antes de Deus
que dos homens. ~ a justiça divina que os iguala enquanto
f i 1 hos de Deus.
Para os trabalhadores que se ocupam de profissbes
socialmente desqualificadas, a ascensao social através do
trabalho, possibilitando a aquisiçàio dos bens supremos da
JÍ
128
sociedade capitalista, riqueza, prestigio e poder, embora
nào esteja fora de cogitaçáo, pelo menos como aspiraçào, nào
se constitui como o centro de suas refer~ncias simbólicas.
Os pobres, sem dúvida, aprendem em casa e na escol a que é
através de seu trabalho e esforço que o indivíduo deve achar
seu lugar no mundo social (Verçosa, 1985) esta moral que
anima o trabalho sob o capital, criando a possibilidade de
mobilidade social no mundo moderno. Fazem destas liçoes,
entretanto, uma leitura própria, a partir do valor moral que
atribuem ao trabalho. O trabalho nao é pensado somente como
instrumento par-a ascender socialmente; se buscam aumentar
seus ganhos, fazem-no dentr-o do projeto coletivo de melhorar
de v:ida, concebido dentro da lógica de obrigaçbes entre os
familiares e nào apenas em função dos preceitos da ra:zao
prática. o projeto de ascensào, quando concebido pelo
principio individualista da razão prática, faz romper as
fronteiras do mundo dos pobr-es, nào pelo ganho mais elevado,
mas porque rompe a cadeia de obrigaçóes entre os iguais,
configurando nào um projeto de melhorar de vida, mas um
projeto de subir na vida.
O estudo de Klaas Woortmann (1984) mostra como as
est~atégias individuais de entrada no mercado de trabalho de
cada um dos membros da família (formuladas, evidentemente, a
partir das possibilidades do mercado) obedecem a um projeto
coletivo da família. Estas estratégias, que respondem aos
papéis familiares, como mostrou o autor, nao visam apenas a
129
sobrevivi?ncia, náo sao só economicamente determinadas por
motivos pragmáticos. Ao contrário, as ''escolhas'', para viver
e sobreviver, sào fundadas numa moralidade que envolve
obrigaçbes mútuas. Sào elas que permitem ao jovem dar, se
nào inteiro, pelo menos, uma boa parte dos seus rendimentos
à màe para cobrir os gastos da família, privando-se, nào sem
conflitos, do dinheiro que ganhou individualmente. s~~ elas
também que fazem o homl:õ"m entregar à sua mulher seu salário
inteiro (ou quase), orgulhoso de cumprir o papel masculino
de pôr dinh~.iro d~ntro d~ casa. Em relaç:ao à família, o
trabalho é parte de um compromisso de troca moral.
Como a realidade social nào é univoca e a dominaçáo nào
é absoluta, os individuas estao expostos a referências
di versas, di f iceis de compatibi 1 izar, fazendo com que os
sistemas simbólicos comportem sempre alguma ambiguidade e os
valores se apresentem aos individuas de uma forma
frequentemente conflitiva. No caso dos pobres, essa
ambiguidade se expressa no fato de que seus valores morais
sáo constr-uidos em conflito com o que o mundo capitalista
lhes ofer-ece como possibilidades, que n.Qo deixam, no
entanto, de fazer- parte de seu univer-so simbólico. A for-ma
como avaliam o trabalho encerr-a esta ambiguidade, traduzida
numa reavaliaçao do mundo do tr-abalho sob o capital, a
partir- de uma concepç:ao da or-denaç:ào do mundo na qual
constr-oem um sentido positivo par-a seu trabalho, afir-mando
se perante si e os outros. Para eles, seu trabalho tem
13(1
qualidades, definidas em termos morais, ainda que
socialmente seja "desqualificado" ou ''n~o-qualificado'' e
dificilmente sustente as aspirações que o mundo capitalista
oferece.
O valor moral do trabalho, com o beneficio que dele
decorre, nao se inscreve, entao, apenas dentro da lógica do
cálculo econômico do mercado. Através do trabalho, os pobres
constroem uma idéia de autonomia moral~ atualizando valores
masculinos como a disposiçao e a força (nào só física, mas
moral), que fazem do homem, homem.
O trabalhador como provedor
Na moral do homem, ser homE>m fortE' para trabalhar é
condiçao necessária, mas nao suficiente para a afirmaçao de
sua virilidade. Um homem, para ser homem, precisa também de
uma familia. A categoria pai de familia complementa a auto-
imagem masculina. A moral do homem~ que tem torça e
di sposi çào para trabalhar, articu 1 a-se à moral do provedor,
que traz dinhe.iro para dentro de casa, imbricando-se para
definir a autoridade masculina e entrelaçando o sentido do
trabalho à familia.
131
o tr·a.ba 1 ho é o instrumento que viabiliza vida
familiar. Trabalhar para si aparece, tanto p.:~r-a o homem como
para a mulher, como uma atividadE? sem razao d8 ser. o
tr-abalho, para ambos, é concebido como parte complementar
das atríbuiçbes familiares, dentro da lógica de obrigaçdes
que c.ar-acter-iza as relaçdes na fam.ilia. Ao lado da
real izaçáo de sua dl.'spos.içdo de homem forte para trabalhar,
o sentido do trabalho para o homem está na possibilidade de,
através dele, cumprir o papel familiar de provedor. Este
papel atribui um significado singular ao trabalho, associado
ao destino de seus rendimentos: prover a família.
No caso da mulher, a idéia de trabcdhar para os outros
(para a fam.ilia) contr-ibui para a valori:zaçao do trabalho
doméstico e I he dá o sentido necessário para SUo
identificaçào com essa atividade, como contrapartida da
a ti v idade masculina de provedor. No caso do homem, o "bom
trabalhador", além de ser aquele que tem disposiçào para
trabalhar, é sobretudo o "bom provedor". Importa que ele
trag.a d.inhei ro para dentro de casa, como exprimem as
mulheres sobre seus maridos. Assim o "bom marido" é sempre ~·
descrito como aquele que trabalha, ni:io joga e nao bebe.
Embora o jogo e a bebida sejam definidos como a transgressao
exemplar às regras fami 1 i ares, incansavelmente reiterados
como tal, sua condenaçao recai sobre o fato de que essas
atividades significam desvio do dinheiro, rompendo os
preceitos de seu papel de provedor. Se ele bebe e joga, mas
trabalha e traz dinheiro para casa, a reprovaç:ào se
relativiza. Nessa lógica, como serâ comentado no próximo
capitulo, relativiza-se também o valor moral do bandido, que
passa a ser- menos bandido se o dinheiro (conseguido por
meios ilicitos) for para dentro de casa, porque a moral do
trabalho se entrelaça com a moral da família.
A traduçao da ética do trabalho como "etica do
provedor" pelos pobres urbanos no Brasil foi proposta e
analisada por Alba Zaluar (1985), acentuando a ambiguidade
de sua concepçao do trabalho. Privados do orgulho próprio
dos membros das corporaçbes de oficio pré-capitalistas, da
satisfaçao moral que traz a concepçáo religiosa do trabalho
como um valor em si, própria do capitalismo em sua versao
puritana, e de salârios condignos que pudessem lhes dar-
alguma satisfaçáo material, os trabalhadores pobres do
Bras i 1, segundo esta autora, oscilam entre "a visão
escravista do trabalho como sinal negativo, mais disseminada
entre os jovens, e a concepçào do trabalho como valor mor-al,
sustentada pelos pais de familia e suas mulher-es." A autora
ar-gumenta que
"neste último caso ( ••• ),o trabalho tem seu valormoral vinculado ao status do trabalhador como ''ganha-pào'' do grupo doméstico e nào à execuçio da atividade propriamente dita. ( ••. ) Nào é, portanto, uma ética do tr-abalho, mas uma ética do provedor, que leva os membros da familia a finalmente aceitarem a disciplina do trabalho. 1f;_
assim que o tr-abalhador pobre alcança a redenção moral e, portanto, a dignidade pessoal'' (p. 120-1)
133
Difer""entemente de Alba Zaluar, o que pr""etendo
argumentar é que a "ética do provedor""" nào se contrapbe à
"ética do trabalho" mas só faz sentido em funç~o do modo
particular"" como é formulada a ética do tr""abalho pelos
trabalhadores pobres, a partir, precisamente, de uma
concepçào do trabalho e das r""elaçbes de trabalho que nào é
resultado da pura lógica econômica, mas em que os elementos
econômicos se articulam aos morais, atribuindo à atividade
em si um valor. Formulada dentro de uma moral que náo é
protestante, esta concepçào tem igualmente um fundamento
religioso, que nào se esgota na relaçâo direta com Deus,
mas, sendo de or-igem católica, se caracteri2a pelas
mediaçóes, que tem na idéia de Deus o grande provedor-, a
fonte originár-ia que alimenta esta cadeia de relaçóes, que
sáo fundamentalmente de obr-igaçào mor-al. E pr-ecisamente na
medida em que o tr-abalho viabili2a relaç6es fundamentais
para a existência dos pobres, como as da familia, ''provendo-
as" de sentido, ao mesmo tempo em Ql1E' estas relaçbes
''provêem'' o sentido do trabalho, que se constrói uma ''ética
do trabalho".
Essa lógica da ''casa'', na expressio de Roberto Da Matta
(1985), que impr-egna o trabalho, esclarece os diferentes
significados que tem o trabalho r-emunerado do homem e da
mulher-. Dentro desta lógica, analisada no capítulo anterior,
prevalecem as diferenças de giner-o. Assim como o tr-abalho do
''provedor'' é um atributo masculino, o trabalho feminino tem
134
sua significaça.o referida ao lugar da mulher no universo
familiar. Esta concepçào diferenciada do trabalho, quando
feito por homens, mulheres ou crianças, alimenta-se
reciprocamente no mercado de trabalho, na medida em que este
diferencia a força de trabalho a partir de uma lógica
familiar, onde o homem é o trabalhador principal e provedor,
enquanto a mulher e os jovens sào trabalhadores secundários.
Essa lógica que informa a divisao sexual do mercado de
trabalho é uma questáo central na literatura sobre o
trabalho feminino que se desenvolveu nos últimos vinte
anos,4~ sob o impacto do movimento feminista como seu
parâmetro simbólico, muitas vezes borrando diferenças
significativas na conceçao do trabalho para as mulheres de
diferentes condiçbes sociais, ou minimizando o sentido
dessas diferenças, ao uniformizar o trabalho feminino
remunerado enquanto afirmaçáo da individualidade da mulher.
42 Ver (1992),
Pena Sarti
( 19BOa e (198Sb),
1981), Hirata (1984), entre tantos outros.
Bruschini (198~), Telles
135
Trabalho feminino: dom~stico e remunerado
Neste entrelaçamento do trabalho com a familia, apar~c~
a mesma positividade do trabalho no discurso das mulh~res,
mas, neste caso, tendo como foco o trabalho doméstico que,
muito além do sentido concreto de lavar, passar, cozinhar,
limpar e arrumar, significa, junto com a mater-nidade, 0
substrato fundamental da construçào da identidade feminina,
definindo um d" mulher sempre enredado "m
intermináveis
jeito
lides domésticas, neste mundo social
fortemente r-ecortado pela diferenciaçào de gªnero.
Através do trabalho doméstico, e o esmero com que é
feito, realizam-se valores morais fundamentais dos pobres
r-elacionados ao espaço da casa, sobretudo a limpe:za, como
tªm acentuado vários estudos sobre os pobres (Macedo, 1979,
Caldeira, 1984, Da Matta, 1993b). A área da co:zinha, como e
o que comer, a preparaçào e a distr-ibuiçào dos alimentos,
dominio feminino, envolvem um cuidado especial com relaç~o
ao que constitui um valor fundamental, a comida, através da
qual nào apenas se alimenta, mas também se expressa a
generosidade de alimentar os outros,
capitulo anterior.
como mencionei no
Uma mu 1 her casada, de 25 anos, com ti 1 hos pequenos,
disse que, se ficasse rica, entre suas aspiraçóes nào se
incluia ter uma empregada doméstica, porque o trabalho
136
doméstico é "sua" atividade, com a qual na o SÓ
identifica, mas se confunde:
Eu gosto da minh.::~ casa, E'U gosto de fazt:r a faxina E' limpar E' v&r que eu limpt:i, que fiCDLl limpinho que eu gostei df? por aquilo al.i, aquilo lá !. .. 1
E acrescentou:
Nas E'U queria as mode>rnidade ~:letrBn.ica~
se
Nesse depoimento está contido todo o sentido subjetivo
do trabalho doméstico: ele pode ser objetivamente
facilitado, sao bem-vindos os aparelhos eletrodomésticos,
mas no\io pode ser um trabalho substituído, porque é uma
atividade que nao é considerada "trabalho", mas parte do ser
mulher, da qual ela retira a satisfaçao de ver a tarefa que
1 he c;abe bem feita - a casa limpa " arrumada nos pequenos
detalhes, os filhos bem vestidos, a familia alimentada
dando-lhe um sentido de dignidade.
Quanto ao trabalho remunerado da mulher, por mais
secundário que seja seu lugar na familia, o fato é que ela
frequentemente traba 1 ha, ainda que intermitentemente,
dividindo com os filhos as entradas e saidas do mercado de
trabalho, de acordo com as necessidades e possibilidades da
fam.ilia. 43 Diante do fato histórico de que a mulher pobre
43 O caráter intermitente do trabalho feminino remunerado por Alba Zaluar (1985) e em meu trabalho anterior (1985a).
foi comenta do
(
I I
137
sempre trabalhou remuneradamente, o trabalho feminino
inscreve-se na lógica de obrigaçóes familiares e é motivado
por ela, nào necessariamente rompendo seus preceitos e nio
obrigatoriamente configurando um meio de affrmaçào
individual para a mulher. O trabalho da mulher pobre nào
constitui uma situaçao nova que forçosamente abale os
fundamentos patriarcais da familia pobre, porque nào
desestrutura o lugar de autoridade do homem, que pode se
manter, sendo, inclusive, transfe~ido para outros homens da
rede familiar, como foi argumentado no capitulo anterior. 44
A entrada no mercado de trabalho é um fenómeno social
novo para as mulheres de camadas médias e altas,
profissionais de alta qualificaçao, fatia do mercado antes
primordialmente preenchida homens. Se a baixa
qualificaçao, baixa remuneraçào e sobrecarga de tarefas
domésticas/remuneradas fazem o trabalho remunerado pouco
gratificante e cansativo, o sentido do trabalho feminino
subordinado às obr igaçdes f ami 1 i ares, que vem em prime i r o
lugar para a mulher, pode, por esta mesma razào, justificar
esta atividade e levar à gratificaçao de saber que, pelo seu
trabalho, a mulher verá seus filhos vestidos, a comida na
mesa, a família bem alimentada. O trabalho pode lhe trazer
também a satisfaçào de ter algum dinhEirinho se>u, parco que
44 A pesquisa de Claudia Fonseca (1987) confirma esta visão, ao mostrilr que o emprego remunerado nao muda o status da mulher dentro da casa. Meu argumento é que nao muda necessariamente, porque mantt>m a estrutura da família, como procurei demonstrar anteriormente.
seja, afir-mando em algum nivel sua individualidade, mesmo
que seus rendimentos nao se destinem para s~ mesma, uma vez
que esta individualidade n.:io deixa de ser r-eferida
família. Ou, ainda, o trabalho pode lhe pr-oporcionar a
gr-a ti f i caçao de> pelo menos, sai r de casa, uma a ti v idade que
a r-etira do confinamento doméstico:
Só de pegar aquele ônibus e ver todo aquele movimento, toda aquE'la gE'nte passando •••
No discurso masculino, aparece o outro lado da mesma
moeda. Um homem casado de 27 anos, num depoimento exemplar,
confirma a posiçao masculina como o pr-ovedor principal
qu.ando o marido tem candiçóes, nao digo de dar tudo •• - - e,
em contr-apartida, a da mulher prior-itariamente como esposa,
mae e dona-de-casa - pela certo me>smo, a mulher niio deveria
ir trabalhar. E ainda, assinala a sobr-ecar-ga de trabalho
doméstico e remunerado como um ponto desfavor-ável ao
trabalho feminino, assim como a desqualificaçào social de
seu trabalho que nao compensa os sacrificios, um serviço que
maltrata, a conduçâo lotada ...
Quanto a mulher trabalhar .• nao tem n~?nhuma di terença,, desdE' quE' seja necessário. PorqUE' quando o mar i do tem condi çOes, ndo digo de dar tudo.. porque quem mr? dera poder dar tudo quE? a mulher queira, né? Agora, quando D mar.idD tem cond.i çOes de manter casa 1 nâo passar tal ta, acho que ela deve ma.is É' estar e>sperando p&lo marido, ofe>rr?ce>ndo aos filhos melhor atenção •••
139
Expbe claramente suas razOes:
DE>pois, E?u acho que sE?ria muito duro sE? .• no meu CiiSO, vamos supor., amanha eu não tivesse a minha mulher, e eu ter que trabalhar o dia inteiro e depois chegar aqui e ter que 1 a v ar, passar. limpar e cozinhar •••
E as razOes que supbe serem dela:
E geralmente a mulher que trabalha, além dela assumir um serviço fora .• ela ainda tem o lar pela frente> .... mesmo que tenha um pouquinho de gjudil do marido, m.;s náo IP- como .; mulhEPr.
A náo ser que fosse uma fam.i 1 i a bem conceituada .• que tivesse uma empregada para fazer tudo, nff>? Até par.a cuid.ar dos filhos e till ••• e ela tivesse um cargo ••• que n.fio foSSE' um serviço muito chocante, um serviço quE maltrata... a.i seria uma boa .... porque a.i ela t.inha chances de exercer uma bela funçiio para ajudar a sociedadE? ••• Nas, para E?la pegar uma conduçao lotada, sem chances de ter um carro para se conduz i r ao serviço, para chegar 1~ e dar murro em ponta de faca, ou 1 a v ar 1 ouça.. • OLJ se>r uma empregada na casa dos outros, e d&pois ainda vir para fazer o dela. • • se torna mui to d&sgas tan t& ..
Além disso, há a privaçào dos cuidados maternos que o
trabalho feminino implica:
Tem mui tas fam.i 1 ias que, por causa da grande nEcEssidade.. a mulher sai para trabalhar, para aJudar, E' esses f i 1 hos f i caro desvi rtLJados, Jogados na rua, começam a aprender o que nâo devem
Assim, o trabalho da mulher está subsumido no
desempenho do papel de mae/esposa/dona-de-casa: que seja
140
meio periodo, que seja em casa, que na.o afaste a mae das
crianças, reiterando a associaçao entre trabalho feminino e
desordem familiar.
Por outro lado, se é preferível que a mulher nao
trabalhe, por todas as razOes expostas, no discurso
feminino, aparece outra dimensáo:
como,
Tem homem que num tá ne>m a .i f Para ele tanto faz, e>le>s nao vao e>squentar a cabeça se está tal tando uma roupa para um fi ho., um sapato.. uma comida. Agora a mulher., ni:io. A mulher vê que está faltando isso., ela vai fazer ualquer coisa, &la aceita qualqLJer batente. O hom m nao, ele só quer trabalhar s& E>i& estive>r ga hando bem ••• ; e a mulher aceita, por qualquer co sa.
Este depoimento citado no c pitulo anterior, mostra
compartilhando com o homem mesma moral do trabalho
como honra, é outra a disposiçiio d mulher para o trabalho,
porque se vincula a seu papel f a i lia r, a face feminina
desta moral do trabalho. 4 e O que f z a mulher forte para o
trabalho é saber o que e>stá taltan o dentro de> casa. Assim,
se a mulher- tem disposiç.#o para 1cei ta r qLJédquE'r batente,
sobretudo quando o homem nâo tá ntm ai, na o é porque e 1 a
I 45 Estou tentanto demonstrar neste trabJlho que eJ:iste uma moral dos pobres, compartilhada por homens e mulhe~es. Isto significa argumentar que nao existe uma moral feminina, uma pfrticularidade na forma como a mulher constrói suas categorias morais seu senso de justiça, como propóe Carol Gilligan (1982), mas uma mo .al recortada pelas diferenças complementares de gªnero.
I' I
141
~ '
aguenta traba 1 ho duro ou serviço pr:sado, v a 1 ores mas cu 1 i nos 1
mas porque o significado de seu trabalho remunerado é
mediado pelo seu papel de mae e dona-de-casa, para suprir o
que ela sabe que está f a 1 tando, por cai sas pelas quais o
homem nao vai esquentar a cabe-ça. Dentro de um mesmo código
moral, complemEmtar no que se refere aos sexos, as
difer-enças na concepçao do que é trabalho de homem e de
mulher respondem aos papéis que cada um tem na família, que
os fazem, à sua maneira, igualmente fortes para o trabalho.
Da mesma forma, diante do significado distinto que tem
o trabalho masculino e o feminino, o desemprego afeta
diferentemente o homem e a mulher com relaçào à família.
Para a mulher, quando tem Llm homem dentro de casa, deixar de
trabalhar temporariamente, sobretudo quando outras pessoas
da familia podem fazê-lo em seu lugar, configurando a
tr.ajetór-ia intermitente que caracteriza o trabalho feminino,
pode significar uma forma de aliviá-la da sobrecarga de
tarefas. Lembro-me de uma mulher que, ao ser despedida de
seu tr-abalho, me disse:
Agora, por uns tE>mpos, posso cuidar mE'lhor da casa E' da famllia.
A mulher tem uma identidade familiar que a SLtstenta
moralmente quando ela esta desempregada; o que a molesta sao
os transtornos que esta situaçáo possa causar no desenrolar
14C
da vida cotidiana da familia, podendo ser graves. Para 0
homem, a perda o atinge naquilo que faz do homem, homem,
privando-o das referências fundamentais de sua identidade
social, a de trabalhador/provedor/pai-de-família. A ausência
do provedor-masculino significa uma perda moral que atinge
todo o grupo familiar, que fica sem sua base de sustentaçao,
como argumentei no capitulo anterior.
No caso da mae solteira, ou da mulher .abandonada pelo
marido, o sentido do desemprego aproxima-se daquele que tem
para o homem. Para ela,o trabalho remunerado adquire um
sentido particular de honra, portanto, de afirmaçào de si
enquanto individuo, porque, através do trabalho, ela tem a
oportunidade de repara'}t o ato c:ondenaçlo ou readquirir seu
orgulho e amor próprio, ao provar q1..1e pode criar o filho:
Para você sustentar seu f.ilho .• nao precisa se ter um homem a seu lado. É só voe~ ter capacidade de trabalhar. ( ••• ) Eu acho que a pessoa que tem capacidade de trabalhar, tem capacidade de ter um fi 1 ho.
Sobretudo na ausência do homem/provedor, que faz o
sentido do trabalho feminino assemelhar-se ao do masculino,
o trabalho configura a potencialidade de realizaçao
individual, tanto para o homem como para a mulher. Mas, como
foi argumentado no capitulo sobre a família, desde que
subordinada ao univer-so familiar relaciona} (das
143
"pessoas") que referenda, sustenta e apóia as real izaçóes
individuais, para que se tornem moralmente legitimas e
socialmentE> aceitéveis (Da Matta, 1978 e 1987). Mais uma
vez, aparecem os limites da suposta matrifocalidade dos
pobres, quE> nao deixa de ser referida a uma estrutura
patriarcal.
Trabalho dos filhos
A associaçao do trabalho com o mundo da ordem,
tornando-o fonte de superioridade moral, 1 eva também à
valorizaçao do trabalho dos filhos. Como o do homem e da
mulher, o trabalho dos filhos faz parte do compromisso moral
entre as pessoas na família. Tânia Dauster (1992) analisou
este . compromisso como parte de um sistema relacional de
ajuda e troca dentro da família: aos pais cabe o papel de
dar casa e comida, o que implica em retribuiç6es por parte
dos filhos. Seu trabalho ou sua ajuda sao, assim, uma forma
de retribuiçao.
Do ponto de vista dos pais, o trabalho dos filhos tem
também o sentido de uma proteçào contra os riscos e os
descaminhos do mundo da rua, onde se sofre a inflllência de
gente ruim e se anda em má companhii!<, suscitando os
fantasmas da droga e da criminal idade (Dauster, 1992,
Madeira, 1993 e Telles, 1992).
l44
Pela mesma lógica, quando as maes trabalham fora de
casa, a creche é vista positivamente, mas enquanto um ma 1
menor, porque garante que as crianças pequenas nio estejam
largadas na rua, ainda que o cuidado profissional nunca se>.fa
igual ao de> mae e o ideal seja estar em casa. Quando,
entretanto, a "r-ua" refere-se ao espaço "familiarizado" do
bairro, muda sua conotaçào. Se, por- oposição à casa, a rua é
genericamente o espaço da desordem, ela se torna, quando
circunscrita à localidade onde circula a vizinhança, um
lugar de tr-abalho, pr-incipalmente par-a as crianças que aí
vào apr-endendo a trabalhar-, pois é onde se sabe quem e onde
se precisa dos serviços que elas fazem, como o carreto, o
cuidar- de crianças menor-es, as ajudas domésticas, no caso
das meninas.
É importante, neste sentido, a distinçào entre o
trabalho infantil (até 14 anos) e o tr-abalho do adolescente
(15-17 anos), ambos agr-egados na categoria tr-abalho do
"menor", como chama a atençao Fel.ic:ia Madeira (1993),
sobretudo diante do fato de que a grande maioria dos
"menores trabalhadores" tem entre 15 e 17 anos de idade.
Este tipo de agr-egaçào tende a "superestimar o tr-abalho
propriamente infantil'' (Madeira, 1993, p. 79).
o trabalho
r-edondezas
familiares,
da
sem
das crianças é,
casa, r-elacionado
horár-io fixo,
em geral. feito nas
com as atividades
na o apr-esentando
incompatibilidades com a frequência à escola, porque é feito
fora do horário escolar. Aliás, neste bairro, onde existe
uma instituiçao pública de ensino de lQ grau, a frequ~ncia à
escola é muito valorizada, antes de mais nada, pelo valor
atribuído à educ .... çào como marca de distinçao. Uma famili.;t
cujos filhos nào frequentdm escola é vista como socialmente
inferior. Pol"" outro lado, ter os filhos na escola também
pode ser uma fol""ma de mdnter as crianças fora da rua,
evitando as m.t.s .influências, ainda que reconheçam que, na
escola, embora exista um controle, por parte dos professores
e funcionários, há também o risco destas influ~ncias
negativas, sobretudo na hora da saída.
O trabalho do jovem, no entanto, tem diferenciações. ~
mais formalizado (Madeira, 1993), já que entra num outro
circuito das obrigaçbes familiares, mais próximo ao dos
adu 1 tas, carrespondendo a um papel comparti 1 h a do pela ma e,
no sentido de ser "secundário" em relaçao ao do provedor
principal, e parte fundamental das obrigaçbes familiares.
Do ponto de vista do jovem, muitas sào as razOes pelas
quais a entrada no mercado de trabalho que pode ou nào ter
como consequ'ê'ncia o abandono dos estudas pode ser
formulada como uma escolha. Trabalhar, mesmo sendo parte de
sua obrigaçáo de filho/a, nâo deixa de significar a
afirmaçào de sua individualidade, ao abrir a possibilidade
de conquistar um espaço de liberdade (Madeira, 1993), na
tentativa de ter acesso a bens de consumo e a padrties de
comportamento que definem as marcas do jovem urbano: t"ênis,
146
jeans, jaquetas, som, etc ••• :
Eu vou andar feito m,;doqueiro? Eu ndo.1 Vau trabalhar também
O trabalho infantil nas famílias pobres cor-responde,
entao, a um padrao cultural no qual sao socializadas as
crianças, nào se opondo necessariamente à escola, mas
devendo complementá-la (Dauster, 1992). 4 = No que se refere à
possibilidade de compatibilizar trabalho e escola, para o
jovem, Felicia Madeira (1993) destaca a complexidade da
questao, que deve ser considerada nào pela perspectiva
reducionista de "denúncia do trabalho infantil no contexto
da exploraçào social do trabalho", mas pelas dificuldades
inerentes ao próprio sistema escolar inadequado para sua
clientela, que atende ao aluno "ideal" e nào ao aluno
"real".
V@-se, assim, que fechando o circulo do valor do
trabalho referido à família para os pobres, o trabalho dos
filhos crianças e jovens faz parte do próprio processo
de sua socializaçi;i;o como pobres urbanos, em famílias onde
dar, receber e retribuir constituem as regras básicas de
suas relaçbes.
46 Assim, Tânia Dauster observou, em seu estudo feito no Rio de que a criança das camadas populares se auto-define como "trabalhadora" e "estudante" (Dauster,1992).
Janeiro, "pobre",
147
Trabalho como obrigação entre ricos e pobres
Até agora falamos do valor do trabalho para os pobres
e de sua estreita relaçáo com os valores familiares e com a
noçiio de "honra", que lhe servem de parâmetro moral. Na
maneira como os pobres concebem náo apenas o valor do
trabalho, mas seu lugar de trab-alhadores no mundo social,
podemos prosseyLlir analisando a articulaçao de elementos
morais e religiosos aos econômicos, através da qual
retraduzem em seus próprios termos as rel açóes de trabalho
sob o capital.
Segundo o relato dos moradores, sempre váo existir
ricos e pobres, a pobreza náo podE? acabar:
Todo mundo rico, n.3o dá.9 "e>les" vao achar ruim, porque ndo tem pobre para cuidar "delE'S".
E, como vimos, nas representaçbes dos pobres, os ricos
na o sabem fazer o que o pobre faz, trabalhar, mas,
sobretudo, dispor-se a trabalhar, o que coloca o numa
posiçào de vantagem relativa fr-ente aos ricos, a de ter
recebido como dádiva a disposiçâo para o trabalho. Aos ricos
cabe dar trabalho, em troca de ser cuidado pelo trabalho dos
outr-os, os pobres, fazendo do empregado alguém que "cuida"
de seu patrao, n.l.tida traduçà.o do trabalho em termos da
148
;;;.
familia. Afinal, nao é a noç:ao de "cuidar", através do seu
trabalho, como se faz com um filho, que leva a empregada
doméstica a empenhar-sE? arduamente em sua atividade para
ver, orgulhosa, seu patrào sair com a camisa impecavelmente
passada? Ou, também fora do âmbito doméstico, que faz o
operário orgulhar-se do bom produto da fábrica onde
trabalha?
Entre ricos e pobres existe, no entanto, uma igualdade
ma~s fundamental, no outro mundo, no reino de Deus, já que
somos todos fi 1 hos de Deus, fazendo com quee a ordem
sobrenatural seja, para os pobres, parte constituinte de sua
ordenaçao do mundo. Assim disse ter respondido uma mulher a
uma afronta que lhe foi dirigida por uma rica:
Escuta aqui, só porque a s~nhora tem um sitio, t~m uma casinha ai de campo .• a senhora vai pJ.sar nos pobres? A senhora niio vai pisar nao, porque a senhora, quando morrer, vai para o me>smo buraco q1..1f? @U for. A s~nhora vai para debaixo dos sete palmos igualzinho que eu t'or.
Nào apenas a morte iguala os homens no outro mundo,
pela mediaçào do sobrenatural. Mesmo neste mundo em que
vivemos, irremediavelmente desigual, porque ancorado numa
ordem "natural", a igualdade e>:iste no plano moral, dentro
da gente, como definiu uma mulher. Uma vez que as qualidades
morais sao o parâmetro a parti~ do qual se aval iam as
pessoas, dentro de uma escala de valores que nao tem
149
relaçao com a posiçao que estas pessoas ocupam na sociedade,
~elativizam-se as desigualdades nesta concepçào da ordem
social. Como obse~vou Maria Lúcia Montes em sua anâlise das
representaçóes sobre a sociedade e o poder entre as classes
populares, vistas através das suas formas de lazer:
''Do ponto de vista das qualidades morais dos individuas, nenhuma diferença existe com relaçào às posiçbes de dominaçao ou subordinaçao, nenhuma distinçaa com relaçao ao gozo da riqueza, do prestigio e da poder. Mais vale um amigo pobre e leal que outro rico e desleal, mais vale a modéstia do pobre que a vaidade do rico, pois a "boa" riqueza é também modesta. Desse ponto de vista, dissolvem-se as diferenças sociais para que se afirme, em seu lugar, a igualdade moral de todos as individues, divididos segundo o vicio e a virtude, independentemente de sua pasiçao social. A equidade e a equanimidade nao conhecem tais distinçbes." {Montes, 1983, p. 333)
.Se a sociedade é desigualmente recortada entre pobres e
ricos, ainda que esta desigualdade seja dissolvida no plano
mora 1 , construindo uma igualdade que se completa pela
promessa de redençao no outro mundo, a fronteira que
ultl'"apassa os limites do tolerâvel é a pobr&:za indigna - a
miséria - sintetizada na fome:
Essa pobreza que eu estou dizendo é passar fume mesmo.
A fome faz, diferentemente da pobreza, a miséria. P;~;r;~;
evitou·· este mal maior-, que está além do moralmente
suportável, é necessár-ia a obedi~ncia ao que concebem como
um código de obr-igaçbes entre os desiguais, os ricos e
pobres, que pode assim ser resumido: eles (os nao-iguais,
que detém r-iqueza, prestígio ou poder} t"êm que dar- aos
pobres a opor-tunidade de trabalho, e os pobr-es tem que
trabalhar. O governo nao deve dar nada, mas tem a obrigaçao
de retribuir os impostos pagos, a tr-avés dos ser-viços
públicos. Os r-icos os que detém os meios de pr-oduçào
devem pr-over o tr-abalho, par-a que os pobres atualizem sua
disposiç~o para trabalhar-, inser-indo o trabalho num univer-so
dE' obr-igaçties onde o esforço legitima a oportunidade de
trabalhar que é conferida ao pobre. Entre tantos exemplos,
c i ta o r-e 1 ata de uma mulher, sobre os presentes de na ta 1
r-ecebidos da patroa, quando trabalhou coma empregada
doméstica:
Eles vieram de carro aqui, despeJaram aí quE! nem Papai Noel. Eu me sentia bem com aquilo .• sabe? Porque eu sabia que ela estava dando, mas também era o esforço do meu trabalho, porque também, se eu nao est.ivesse trabalhando lá e cumprindo com meu:; deveres .• ela nao .i. a fazer .isso ...
Ou ainda, o depoimento de outr-a mulher-,
Pobre nao quer ganhar nada assim, eu peolo menos, eu náo QLiero qL1e ninguém chegue aqLii e fale para mim: E'U vou te dar cem milhbes! Eu quero que me dé oportunidade, um emprego. um meio de estudar. um meio de eLJ trabalhar, de E?LI consegLlir.
Estes depoimentos falam do esforço do trabalho como um
valor moral, que faz o trabalhador merecer o pagamento como
recompensa, mas este esforço nao f a~ sentido em si, senáo
dentro de uma lógica que é mediada pela relaçáo, através da
qual se reafirmam as obrigaçóes de dar e receber, fazendo do
ato de r-eceber a contrapartida do ato de dar e tornando o
ato de receber sem dar moralmente inaceitável, humilhando e
interiorizando quem o pratica. Só é moralmente legitimo
receber quando se dá e - a contrapartida - quando se recebe,
é necessário retribuir. Através de seu trabalho, o pobre dá
o que tem: a disposiçáo ~e trabalhar que traz consigo, como
dádiva divina, e que, por isso, ninguém lhe tira.
Se o esforço no tra,bal ho e a promessa de redençáo que
dele advém caracterizam a ética do trabalho entre os pobres,
tal como na moral capitalista protestante descrita por Max
Weber (1967), o que diferencia a moral dos pobres na
periferia de Sào Paulo é que este esforço é r-e-significado a
partir da ~nfase na relaçao, que ultrapassa o individuo, e
dentro da qual o trabalho faz sentido: • honra do
trabalhador nao está apenas no exercicio da atividade em si,
mas no fato dele estar cumprindo o que para ele é uma
obrigaçao dentro de uma relação. O trabalho é, entao, re-
significado em termos r-elacionais: o tr-abalhador dá,
trabalhando ( eu se>rvi ço) 1 e r-ecebe, ganhando seu
salârio. esta mora] quando r-etraduzida em ter-mos
relacionais 1 que atribui sentido à atividade de trabalhar- e
submeter-se à disciplina do trabalho.
P: Voce ia ajudar os pobres, se você pudesse mudar o Br-asil?
R: Eu ajudaria trabalhar .• um salário honesto, um bom salário. Dar eu nao i.a dar. Na minha opiniBo~ eu i.:< procurar ajudar: tem que trabalhar.. você vai trabalhar aqui, vai ter um cargo, e a p&ssoa m&rece. Se ela nao merE'ce, ai dou um cargo mais baixo. A.í vai trabalhar, ter Llm
salário, ter uma vida melhor. Porque, através do trab.alho vem o s.alário e através do salário melhores condiçdes de vida.
A ascensao através do trabalho tem sentido moral quando
o individuo merece, pelo seu E'S forço, portanto, como
recompensa. O mérito do individuo nào se esgota, entr-etanto,
em si mesmo, mas só existe enquanto tal na medida em que ter
uma vida melhor é uma aspiraçào projetada par-a além de si,
na familia e na vida social, o que justifica~ legitima e faz
o sentido de todo seu esforço, através do qual r-eafirma sua
honra.
Trabalho, desemprego e esmola
O valor- atr-ibuído ao tr-abalho, dentr-o da mor-al dos
pobr-es, qualifica a esmola, num determinado plano, como um
ato condenável, expondo quem o pr-atica a uma humilhaçào, nào
apenas porque quem pede nao trabalhe, seja vagabundo,
maloqueiro, designaçOes que se contrapOem ao valor do
tr-abalho. Há uma condenaçao da esmola por- parte dos pobres,
implicita na oposiçào entre o mendigo e o trabalhador,
enquanto categorias morais, cujo sentido remete à
complexidade das r-efer'ências que. compbem sua ética. Ruth
Cardoso (1978) atribui a condenaçao da esmola à negaçao do
valor- do trabalho, cujo fundamento nao é problematizado em
sua análise:
"Nào sem r-azao, o único mendigo que vive nesta favela é muito mal visto pelos demais. Apesar- de ser operário de construçào civil, depois de suas horas de trabalho, sai com a família para pedir- esmolas. Com este expediente consegue melhorar- sensivelmente sua renda mas, como nega, na prática, o valor- do trabalho, é desprezado por aqueles que nao o reconhecem como um igual, isto é, como trabalhador." (p. 40)
Retornamos ao fundamento da ética do trabalho para os
pobr-es, a partir de obrigaçbes morais que só fazem sentido
enquanto relações. O principio de dar e receber-, no qual se
154
-- ----------.................... .._
funda o trabalho, é negado pela esmola. Neste prisma, pedir
esmo 1 a hum i 1 h a porque quem o faz, recebe sem dar, sem 0
esforço valorizado, ao contrário da empregada doméstica que ,j mt=>rec:e receber presentes em retribuiçao ao cumprimento do
seu dever de trabalhar. A esmola humilha sobretudo quando se
como expediente extra, par-a complementar os
rendimentos, tirando proveito para si, enganando os outros;
mas humilha também, por outro lado, porque pedir se coloca
em oposiçào à honr-a que vem junto com a obrigaçii.o de dar,
negando portanto o valor da generosidade. O mendigo que pede
submete-se à humilhaçao de receber sem dar. O ato de pedir
esmola priva o pobre da oportunidade de dar o que ele tem
para dar, sua disposiçdo de trabalhar, atributo que legitima
recebe~ em troca, honrando e nào humilhando.
Esta disposiçdo para o t~abalho, sendo o fundamento do
direito do pobre, faz com que, t~abalhando, possa plei~ea~
receber em retribuiçào, o salário e o rEPspeito que lhe sao
devidos. Dai a ilegitimidade do desemprego, que representa
nào apenas p~ivaçao mate~ial, mas sobretudo mora 1 • o
desemp~ego tem o sentido de uma humilhaçào, ao pr-iva~ o
trabalhado~ de sua possibilidade de recebe~, mas da c
também. Iniciando a cadeia de obrigaçbes entre os desiguais,
os pobres mencionam sistematicamente que a principal
ob~igaçào dos de cima, é dar trabalho ao pobre,
to~nando as categorias pobre~ trabalhador indiss·ociéveis em
15~·
l
sua auto-imagem. Mas quando náo há trabalho, senao
desemprego, rompe-se a cadeia de obrigaç6es que o trabalho
estabelece. É entao que as obrigaçbes que caracterizam o
universo mor-al dos pobres atualizam-se, através da esmola,
em outro plano, menos imediato, porque seu sentido passa
pelo sobrenatural. Na cadeia das obrigaçbes de dar, receber
e retribuir, que nào é imediata, se falta trabalho, DE?us,
que é pai, provê, através da esmola.
Na articulaçáo do trabalho com o desemprego, que
caracteriza dos pobres, ocorre uma r e-
elaboraçáo do sentido da esmola, que complementa o valor do
trabalho, sem negá-lo, mas co-existindo com ele. Na sucessâo
continua de dar e receber, se o trabalho lhes é negado, de
algum lado hâo de vir os recursos para viverem e, assim,
fazem valer a virtude católica/medieval da caridade. ''Dando
aos pobres, empresta-se a Deus", o que torna legitima a
esmola, mesmo porque, quando náo se tem trabalho para fazer,
pedir é melhor que rDLJbar.
A negaçao do principio individualista próprio da lógica
capitalista de mercado está em que, em qualquer esfera de
sua atuaçao social, na casa e fora dela, o mundo é traduzido
pelos pobres em termo~ de uma troca, onde se dá e se recebe,
'
156
através de relaçbes de obrigaçào moral.~7
Ao referir-se aos "trabalhadores pobres", as ciências
sociais englobaram a categoria pobrE> na de trabal hc.dor,
desconsiderando que a auto-imagem de pobr&s e traba,J hadores
envolve um modo particular de se colocar no mundo social.
Elidindo o conectivo, deixou-se de ver que o universo do
traba 1 h o para os pobres se constitui na ar ti cu 1 açao dessas
duas categorias, que requalificam a moral do trabalho.
Ao contrário do que acentua a literatura sociológica,
marcada pela "ex pl oraçao" do trabalho como categor-ia de
análise, que deixa escapar a re-elaboraçao do seu sentido
pelo pr-óprio trabalhador, par-a os pobres, o univer-so do
trabalho, enquanto dimensao positiva nao pode ser entendido,
em seu valor moral, sem a intermediaçào da ordem
sobrenatural, sendo Deus o grande pai/provedor. Isto
significa levar às últimas consequências a moral do provedor
que, tendo como modelo as relaçbes de obrigaçbes próprias do
universo familiar, atribui significado próprio ao mundo do
trabalho, nesta busca incessante, que é de todos os homens e
47 No que se refere aos problemas sociais, manifesta-se a mesma concepçáo moral. Por exemplo, quanto ao problema habitacional, afir-mam que o governo, protetor e benfeitor, tem a obrigação de resolver a questao da moradia dos pobres, mas náo deve dar casa aos pobres, e sim pr-opiciar--lhes condiçbes para que possam compr-t~r o terreno e construir (através de diversos expedientes, como a utili1açiio de terrenos da prefeitura, financiamento do seu pagamento, etc ••• ), fazendo com que eles ta.mhém possam dar alguma coisa pelo que tem. Niio é à toa, que ao lado de garantir trabalho, as principais "ohrigaçbes" do governo em relaçáo aos pobres refer-em-se à moradia e à saúde, em consonância com os valores da família e do trabalho aqui descritos.
mulheres, de pensar a realidade vivida a partir da exigência
de que a vida faça sentido.
158
Capítulo 5
"' RELAÇDES ENTRE IGUAIS
''O vizinho é o real imediato''
Luis da Câmara Cascudo
"Essas contr-adiçbes sáo, talvez, necessárias para reconciliar o mundo em
que vivemos com nossos sonhos, nosso ideal com as aspiraçbes frustradas. É a
'funçáo' do ambiguo.''
Julian Pitt-Rivers
A importância do contraste para demar~ar fronteiras
sociais é uma questao central para os estudos sobre
identidades sociais. Por definiçao, as fronteiras existem em
relaç:ao um "outro", implicando necessariamente numa
relaçao. A divisao fundamental das classes sociais que marca
a sociedade capitalista, envolvendo poder, prestigio e
riqueza, é entrecortada por outras tantas fronteiras que
relativizam esta divisao e pesam decisivamente na definiç:ào
dos individuas como sujeitos sociais.
Essas fronte i r as f i cam particularmente c 1 aras quando
nos referimos aos grupos étnicos. A noçao de "identidade\
contrastiva" tornou-se bâsica para se pensar i
a identificaça~
étnica, em contraposiçao à primazia que se dava aos traços
culturais (e, antes, raciais) como marcas de identidade (cf.
Oliveira, R.C. 1976, Cunha, 1986 e Da Matta, 1993a). Darci
Ribeiro (1986) ressalta o caráter relacional das etnias, que
possibilita a preservaçào das identidades étnicas, apesar
das transformaçbes de seu patrimônio cultural. Para ele, as
etnias sao "categorias relacionais entre agrupamentos
humanos, compostas antes de representaçbes reciprocas e de
lealdades morais do que de especificidades culturais e
raciais" (p. 446). Assim, segundo este autor, o problema
indigena no Bras i 1 só existe quando os .indios entram em
contato com os nào-indios, os brancos.
A analogia com os grupos étnicos faz sentido para
ressaltar o carâter dinâmico das identidades sociais,
160
definidas (e redefinidas) em funçáo das relaçóes a que os
individues estáo expostos. Os estudos sobre identidades
étnicas, para além de sua especificidade, demonstram como o
caráter contrastivo e relaciona! na definiç~o do ''nós'' - por
oposiçáo aos "outros" está na base da própria construçáo
(e preservaçáo) de identidades sociais. Sobre esta base
estrutural que define pares de oposiçbes estabelece-se
uma dinãimica que recria identidades sociais, sem
necessariamente esfac~lar o sentido do grupo reelaborado por
seus membros precisamente para responder às novas situaçties
com que se defrontam.
Em poucas palavras, identidades sociais sao, por
definição, identidades em movimento, definidas e redefinidas
por constrastes. Este cap.itulo trata da forma como opera
esta lógica contrastiva na trama da sociabilidade local,
para, neste contexto, recuperar uma outra dimensáo da moral
dos pobres. A partir da localizaçáo básica como pobres e
trabalhadores no mundo social, categorias, elas mesmas,
definidas por oposiçáo aos ricos e patrdes, pretendo
discutir como os moradores da periferia constroem fronteiras
simbólicas de diferenciaçáo entre si e que sentido tem esta
construção. Para isso, focalizo as relaçóes de vizinh~nç~,
aquelas entre os que se consideram iguais.
Enquanto os capítulos anteriores se referem ao processo
de elaboraçào da identidade social dos pobres a partir de
seus parâmetros morais positivos - a familia e o trabalho -
:1.61
neste capitulo, at~avés da ~eferªncia à sociabilidade local~
procu~arei completa~ a análise deste processo, visto pelo
avesso, por seus pa~âmetros morais negativos, identificados
at~avés desses "out~os" que se reproduzem dent~o das
frontei~as do próprio bairro e que permitem a afirmaçao
contrastiva do ''nós''.
O vizinho como espelho
Câmara Cascudo (1971) supSs que em cidade grande n~o há
vizinho. Segundo seu estudo, na colonizaçao br-asileir-a, a
pecuár-ia e a cultur-a da cana-de-açúcar- for-am fontes de
aproximaçao entre os trabalhador-es: "o escr-avo negr-o possuía
seu vizinho de senzala, como o trabalhador de jornal no seu
casebr-e." A cidade prossegue o autor- ataca de fr-ente
esses mecanismos de solidar-iedade rural, como a usina de
açúcar os enfr-aquece e asfixia. Cascudo, evocando
nostalgicamente as relaçbes solidár-ias de vizinhança, supbe
haver na cidade gr-ande substituiç.3o infalivel do
solidarismo r-ura 1 , da casa, dos sentimentos, pelo
solidarismo econSmico de classes. O vizinho passa a ser- o
companheiro do sindicato, ou o correligionár-io de partido
politico, sócio do clube. Uma solidariedade de r-ua, m@eting,
diz ele (p. 26).
162
Ora, é precisamente a perspectiva da construç~o d~
identidades sociais que torna possivel rever a posiç~o de
Câmara Cascudo, Nesta perspectiva, pode-se entender a
preservação de valores "tradicionais" entre os migrantes
pobres da cidade, que os conservaram na medida em que
puderam re-elaborá-los, pelo sentido que tªm como suporte de
relaçbes sociais também no novo contexto urbano, como é o
caso dos valores que articulam o sentido da família e do
trabalho, como foi demonstrado nos capítulos anteriores.
Ao contrário da suposiçào de Cascudo, para o morador da
periferia, dentro desta continuidade histórica onde o mundo
urbano está impregnado de relaçóes tradicionais nào
inteiramente rompidas, mas refeitas para se adequarem à nova
ordem, o vizinho é mui to mais do que alguém que mora ao
lado, porque ele continua presente como "sucursal da casa".
Dentro da lógica de que parente é alguém em quem se
confia, o vizinho é como um parente:
Nós temos nossos vizinhos aqui~ tem essa turminha aqui. Eu acho que praticamente é uma tamilia~ porque quando a gente precisa, ele está ali,: quando ele precisa da gente~ nós esta mos juntos, entt:io eu acho que a fam.ília ••• é isso a.í.
Dada a sociabilidade concentrada no local de moradia na
cidade de Si10 Paulo, há, entre os pobres da periferia, uma
tendªncia a estreitar os laços com a rede de vizinhança, em
16:.
det~imento dos parentes de sangue, exceto se estes tsmbém se
concent~a~em na localidade, compartilhando a vida cotidiana.
O que define que um vizinho possa ser mais impo~tante que um
pa~ente é a ccmfi.,.nçd.
Mais remotamente, pode-se também estender a confiança
aos colegas dE? trabalho, para quem tem uma situaçào
profissional mais estável. O compad~io tem o sentido de
legitimar esta ~ede de relaç6es, reforçando vinculas jâ
e><istentes ou buscando ampliá-los através deste parentesco
espiritual. Os amigos tornam-se padrinhos e é nessa traduçào
da relaçào de amizade em termos da famllia, através do
compadrio, que os laços entre amigos se consolidam. Em
qualquer caso, o que importa é que as relaç6es sao
traduzidas em te~mos da familia, ou seja, em termos de
obrigaçties morais.
Ao responderem aos vinculas fundamentais de obrigaçdes
morais que caracterizam a sociabilidade dos pobres, na
familia e fo~a dela, os vizinhos tornam-se amigos. A amizade
é entao um vinculo moral do mesmo tipo que os da familia,
fazendo com que na cidade possa se tornar mais importante do
que os elos de sangue.
Como seu igual, o vizinho torna-se seu espelho, o
''real-imediato'' que serve de par~metro para a elaboraçào de
sua identidade social. Neste
caracteriza a elaboraçào
jogo de
identidades
espelhos
sociais,
que
há
'
l64
ambivalência dos moradores em relaçao a seus pares,
permeando as relaçoes de vizinhança. Num processo que nào é
unívoco, solidariedade e rivalidade caminham juntas.
A sociabilidade local
Dentro dos limites das suas possibilidades, os
moradores gostam do bairro onde vivem. Se pudessem,
evidentemente, gostariam de morar num bairro melhor, mais
central. Mas lá pelo menos podem realizar o sonho que vem
junto com o casamento e os filhos, ter sua própria casa.
Como disseram dois homens, que moram com suas familias no
bairro desde que o lugar começou a se expandir, na década de
setenta~
é da casa para o serviço_, do serviço para casa •.• nao posso dizer mal da Vila. A única coisa de bem que eu tenho a dizer é que aqui que eu consegui o meu pedacinho de chao. E estou muito satisfeito, muito feliz por isso.
Eu gostei porque aqui que nós comr:çamos tudo. ELI nunca tive casa. A primeira casa que E'LI t.ive foi essa aqui, en ta o a gente tem mui to amor aqLii, que foi a primeira casa que nós conseguimos. Ai. eu gosto muito da Vila.
16'5
Saem pouco de casa e do bairro. NJ:io gosta de aborrecer
n.inguém. Visitam par~ntes no fim de? sem,;.na, convive?m com os
vizinhos. Essa convivência é parte necessária da
soci.;.bilidade local. De resto, participam dos ritos
religiosos e das redes de lazer locais (Montes, 1983 e
Magnani, 1984).
Todo lugar qui? t?u moro .• e>u gosto. ( ••• ) Eu nao st?i o que se passa na casa do vizinho. Nao vou na casa de irm.3o, n.3o vou na casa di? ninguém. Tenho minha casa_, nao gosto de aborre>ct?r ninguém e também nao gosto dt? ser aborr&cido ••• Nao gosto qu& ninguém m& p&rturb&.
Eu sou um cara que>, no sábado que eu tenho folga, e>u nao saio do portao para fora_, e>LJ nao sou um home>m de> e>star em boteco, DL~ de> estar de port.a de vizinho e tal ••• entao e>u sempre tenho alguma coisa para fazer dentro df? casa ••• nao saio para lLtgar nl?nhum. E quando do domingo, também, tirando a minha ida à Igre>ja, também nào. Depois da Igreja, a gente ajuda a velha um pouco no almoço ••• Depois do almoço, tira aquela 'pest.ana', ve um pouquinho de tele>viJ;;ao & já prepara o material de briga para o OLdro dia •••
Reclamar- do vizinho é parte da lógica intrínseca ao
discurso local. Como seu espe?lho, a identificaçào positiva
ou negativa com o vizinho serve de constante parâmetro para
sua identidade de homem de bem. Os homens delimitam a área
de sua sociabilidade no bairro, enquanto as mulheres se
re?lacionam com a vizinhança fundamentalmente em torno das
atividades domésticas, seu descanso e do cuidada das
crianças. Uma mulher na rua, sem motivo que justifique sua
aus'ência de casa, nào é vis.ta com bons olhos. O espaço da
rua é um espaço masculino, área de sociabilidade dos homens • cuja delimitaçàio os faz reconhecidos e legitimados entre
seus iguais. Esta delimitaçào implica em hierarquias
internas ao bairro, que refletem e reproduzem a
hierarquizaçao de seu universo simbólico, definindo os eixos
de identificaçáo e diferenciaçào dos moradores.
Proprietário X Favelado
Um dos eixos de distinçàio, o que se estabelece entre os
propri&tários e os fav&lados, responde à hierarquizaçáo
social do espaço fisico/geográfico do bairro. Há três áreas
distintas. Na rua principal, a avfiiilnid.a, parte mais elevada
do bairro, lá fiiilm cima como dizem, onde passam os ônibus, até
há pouco tempo o único acesso ao bairro par-a quem vinha de
fora, estáo as melhor-es casas, revelando um nivel de renda
mais alto que o resto dos moradores e, sobretudo, casas
construi das em terrenos legalizados, com escritura de
propriedade. Descendo as encostas, fica a área intermediária
que cor-responde à maioria das casas, constru.idas em lotes
demarcados, legalmente adquiridos, mas cuja situaçao legal
167
nao está resolvida. 48 Terminado o declive, sobre o qual foi
edificado o bairro, chega-se à favela que o circunda, onde
os moradores invadiram os terrenos e construiram suas casas,
sem propriedade legal do terreno. A favela fica, entao, 1~
embaixo, sendo necessário d~sc~r para nela chegar, tornando
a geografia local conforme com a hierarquia social.
Ainda que existam diferenças materiais entre as casas,
o peso da distinçao é simbólico; sF?r favE?lado cor-responde a
uma condiçáo social inferior, da qual os que moram no bairro
precisam reiteradamente se diferenciar. Justamente porque as
distinçbes entre iguais sao sutis, elas precisam estar
nitidamente demarcadas através de categorias morais. A
favela, que se expandiu nos últimos anos ao redor do bairro,
corporifica todos ·os desvios temidos: violé'ncia,
promiscuidade sexual e a droga, ainda que os moradores do
bairro declarem repetidamente que
nao qLJer dizer que na favela nao tem pessoas direi tas.
A regiáo invadida, embora seja chamada de favela pelos
habitantes da regiào original do bairro, é referida por seus
48 Essa án•a se caracteriza pela grilagem de> teorras. Ver o trabalho de Teresa Caldeira (1984) a este respeito e especificamente para a questão das disputas legais dos terrenos nesta região, ver a análise de James Holston (1991).
162
habitantes por um nome próprio diferente Cã. 02s.::.;r>õça0 do
bairro, o que revela a conotaçao pejar-atir-a ::w:- termo
favela encerra, implicando lugar de maloau:;.1~=- ~~:.:"Ido o
peso desta diferenciaçao social, os morao::o-==: =.êi -favela
internalizam os estigmas que lhes sao a~~::~=:s. como
mostra o discurso de duas mulheres, a priaeir= ---r= e mae
de uma mae solteira e a segunda, mae solteira:
Os avtros, ali de cim.a, sáo tudr;; ~r.=.:..~r=:: com aqLii embaixo ••• principalmente coa; ii~ ..uo=.-rr~d.S que mor.am aqui; .ach.am que náo prestai!< üa~ ~ com r,ap,az ••• (Nininha)
Meu pai foi e pfE'diu para hos~ ~a Aparecida que ajudasse ele, para ele. Nem que fosse aqui na Vi 1 a; a.í nós niio
que arrumas~ ;.o: -~
uma favela; ~-= ~..J.~J~CL
queria ficar, ~ :;cs já estava tudo moça e nào queri.a ficar E'1r _;~·-=--à.
A insistê'ncia na diferenciaçào aparece n= :=::.s-''""50 dos
que moram lá em cima:
Somos pobres_. mas nao somos favE,;,ii::!::S_
Na favela, dentro da mesma lógica, O">.h'?-""SE:
Sou favelado, mas pelo menos naç ~ ~JIO da ponte.
j 69
-----.
Náo entrevistei alguém que morasse debai)(o da ponte.
mas seguramente encontraria algum referencial negativo, na
medida em que esta é a lógica social de identificaçao e
difer-enciaçilo, caracteristica deste processo de construçao
de identidades sociais por contrastes e
negativas.
As casas na favela pouco se diferenciam das casas do
resto do bairro, pelo menos em termos do que ali se almeja
como moradia, na medida em que as casas na favela mais
ainda estào constantemente inacabadas, fazendo a vida dos
moradores ser permanentemente acompanhada do projeto de
melhorar as condiçbes de moradia. Quando a regiii,o foi
invadida, a demarc::açao dos lotes foi controlada pelos
pr-imeiros invasores, sob as ordens inequivocas de quem viria
a ser depois o presidente da Associaçào dos Moradores do
local. Eleito pela populaçao, ele tornou-se uma espi!?cie de
''dono'' da favela, ou seja, o ''protetor-'' da populaçào local
contra ameaças, sobretudo de despejos, proteçao e)(erci~a com
a ambivalência de quem e)(erce a autoridade, legitimada pela
sua coragE?m, mas tambi!?m pela for-ça, garantida pelo uso de
armas. Na obediência dos mor-adores da favela esté implícito
o medo, em face do desamparo em que vivem. Tr-ata-se,
portanto, de uma pr-oteçao dE· bandido, enquanto "defensor da
inviolabilidade do territór-io que ocupa" (Zaluar, 1985, p.
138 I.
1.70
Quando a á~ea começou a se~ invadida, o "dono da
favela" tentou garantir uma marca de distinçáo para aquela
favela, ''proibindo'' a construçao de barracos de madeira que,
por oposiç:ao às construçOes de tijolos, sao um sinal de
inferioridade social. Ele conta:
D~i .aqu~le grito: ".aquel~ quE? fiz~r um barraco de madeira, eLI derrubo~" Eu falei por tal .ar.~. ~ o grito SOOLJ forte na mente de c.ada um, que todo mundo se corrigiu s~m ~u fazer nada. ( ••• ) Has foi uma coisa que eu acho que estava no instinto de cada um mE?smo; e o ún1.co que tentou fazer barraco de ma dei r a apanhou aqui.. na o de mim, mas da turma ali ••• e foi embora.
O grito soou forte porque, de fato, populaçào da
favela quer dar ao local um marca de distinçào, mas sabe
também que, se nào se corrigir, a correçào será imposta pelo
"dono da favela", cujo dominio soa tanto mais forte quanto
mais se sabe que a questào, no 1 imite, pode ser reso 1 vida
pelo uso de armas, ameaça que paira sempre no ar.
Na favela, há um arruamento distinto, precar-iamente
demar-cado e as condiçbes de infr-a-estrutur-a urbana nào sao
as mesmas, embora haja água encanada, esgoto e luz elétrica.
A favela, entr-etanto, nao cor-responde necessariamente a umd
mor-adia considerada pr-ovisória. Ao invadir um terreno, o
171
p~ojeto é legalizá-lo, at~avés da comp~a daquele te~~eno.4•
Diante da ~egiáo desocupada, as familias invadi~am a á~ea e
imediatamente const~uiram um cômodo para se apossarem do
terreno invadido antes que alguém lançasse mao dele
ce~cando-o, dentro de uma prévia combinaçao, com as familias
invasoras, do que seria a delimitaçao da área. A situaçao é
de competiçáo, quem chegar primeiro, leva.
Invadido o terreno e levantado o cômodo, o próximo
passo é, na medida do possível, tornar a casa o mais
arrumada possível. Cuidam da casa para legitimar a ocupaçáo
do solo e justificar a meta de transformá-lo em sua
propriedade, tendo como modelo de organizaçao interna e de
construçao as casas do resto do bairro, das quais procuram
se indiferenciar. Como definiu uma moradora, criticando os
que venderam os terrenos invadidos: a pessoa tem que ser
como ~1m proprietário e isto significa construir e arrumar a
casa~ como estratégia para aquisiçao definitiva da
propriedade. Invadir o terreno náo é, entao, necessariamente
pensado como uma soluçao p~ovisó~ia, mas como uma estratégia
ao alcance desses moradores da periferia para aquisiçao do
49 t em torno da compra legítima dos terrenos invadidos que muitos dos habitantes locais estavam articulados aos movimentos sociais dos favelados que, por sua vez, se caracterizam por difE>rentes estratégias. Por esta razao, declararam se-r preferível invadir terrenos da pr-efeitura, onde há maiores chances de r-esoluçào do problema da co111pr-a do terr-eno.
17:
terreno e real i zaçio do eterno projeto da casa pr6pr ia. e o
Por isso, os moradores da favela t~m em relaçio à sua casa 0
mesmo cuidado que teriam se fossem proprietários de fato. o
cuidado é pensado como um argumento em favor do "direi to"
sobre aquele terreno, além evidentemente da imagem de gente
de respeito.
Essa demarcação da casa, na busca de uma legitimidade
para a condição de favelado, aparece nitidamente em uma das
casas, que segue tipicamente este padrao. Construída num
terreno invadido e cercado por arame farpado até cerca de um
metro de altura, a casa tem um portao de madeira com esta
mesma altura, enfim, baixo e fácil de pular, Este portao, no
entanto, fica constantemente trancado por um cadeado,
expediente inútil do ponto de vista da segurança, mas
simbolicamente eficaz, ao delimitar o espaço, legitimando o
direito do morador sobre ele, reafirmado pelo esmero com que
se organiza a casa e se escolhe, dentro do padrào das
moradias populares, o material de construçào e os móveis.
50 O que nao exclui invadida, que se opbe de rf!spei to.
outras estratégias, ao projeto familiar
como de se
a de "ve>nder" a áre>a estabelecer como gente
173
Trabalhador X Bandido
O peso negativo atr-ibuído ao favelado aproxima esta
categoria da de bandido, como integrantes do mundo da
desordem. Através da descriçào dos bares locais, fica claro
como opera a distinçào entre trabalhadorEPs (= pais dE>
família) e bandidos, porque é nestes espaços do bairro que
está materializada esta distinçao, que se entrecruza com a
distinçào entre proprietário e favelado.~:~_
Há dois tipos de bar&s no bairro: as VE'ndas onde se
encontra de tudo para comprar alimentos, material de
limpeza, material escolar, etc. (no fim-de-semana alguns
vendem bebida alcoólica) e que sào frequentados por
homens, mulheres e crianças; e os bares em que se vende
estritamente bebida alcoólica tira-gostos, onde
geralmente estao espalhadas mesas para jogo de baralho ou
para sinuca. Sào fundamentalmente um espaço masculino. Estes
últimos estio hierarquizados em duas categorias, baseadas
numa divisào moral, que mostra mais uma vez o forte
entrelaçamento da família e do trabalho como referfncias do
mundo da or-dem. Uma é a dos bares frequentados pelos pais de
família, trabalhadores, na chegada do trabalho, nos fins de
semana, dias de folga, onde o clima
51 Particularmente nesta parte colaboraçao de Roberto Catelli Jr., do bairro.
da pesquisa, que frequentou
maJ.·s social,
foi fundamental os espaços masculinos
174
1 oca l izados 1 á l?m cima, na área do bairro que, como j a foi
descrito, corresponde às melhores moradias. O outro tipo de
ba~ masculino é aquele onde se ~eúnem os bandidos ou
ma 1 oquei ros, situados 1 á embaixo, isto é, na favela.e2
Nestes, passa-se droga. É preciso garantir que nao haja
dedo-duro. Isto delimita a clientela, que deve estar sob
controle de quem comanda a atividade ilegal. Dado o negOcio,
é preciso garantir, se nao a aceita.çáo, pelo menos a
cumplicidade dos presentes. sao, por isso, bares f&chados.
Como sintetizou um homem de 24 anos, nascido e criado em sao
Paulo, frequentador das duas categorias de bar:
As pessoas que freque>ntam o bar aqui de cima sao pessoas mais de fami li a, sâo pessoas mais responsáveis, trabalhadores ••• E o bar lá de baixo nao, sâo ma.is bandidos, jogadores, traf.icantes ••• essas coisas todas ••• , entao tem bastante diferença. Et diferentE> o r:: lima ••• pelas pessoas e outra, pelas conversas e pelas transaçóes que voe~ V€. No bar lá de baixo, as vezes, voce está no bar e voce v~ o cara passando, vendendo.. de tudo ••• transaçbes assim. É: tudo mais livre, entendeLI? Nais livre ••• Lá., vamos dizer assim, sào mais eles que mandam • ••
A distinçào entre a imagem do trabalhador e do bandido
constitui uma referência moral básica é enquanto
construçào negativa da identidade do trabalhador que
interessa aqui analisar o identidade de
52 Os bares como espaço social assemelham-se às analisadas por Elliot Liebow (s/d), como o mundo da contraposto ao mundo da casa/trabalho/ordem.
bandido. A
5 trE>P t rornPrs, rua/desordem,
l '" . ; ~·
importante dimensao simbólica desta oposiçào foi acentuada
por Alba Zaluar (1985).~ 3 Esta autora ressalta a importância
das relaçoes entre trabalhadores e bandidos, nào só para a
construçao da identidade do trabalhador. Sua análise
focaliza também o que essas relaç:Oes dizem a respeito das
representaçóes dos pobres sobre o crime, a justiça, o poder
e a desigualdade social, mostrando a relatividade da noçáo
de "crime", pela ausê'ncia de critérios universalistas na
definiçao de "justiça", o que impóe consequentemente uma
complexidade e uma ambigu~dade na própria definiçào de
bandido.
Nem todos os que transgridem as regras do trabalho e da
fami 1 ia sao considerados bandidos. H~ nuances. Roubos e
furtos eventuais nao sào suficientes para delimitar uma
ruptura das fronteiras com o mundo da ordem. Estes
expedientes, assim como o mundo dos bar&s, fazem o bébado, o
malandro, o vagabundo, enfim, os que nào querem saber de
responsabi 1 idade e negam, assim, o valor do trabalho,
considerado coisa de otário. O problema está nao somente em
conseguir dinheiro sem se submeter à disciplina do trabalho,
mas também em nào se importar com o destino do dinheiro, o
que significa náo levá-lo para casa como "bom provedor" •
desconsiderar o projeto familiar, pensar apenas no momento,
53 A identidade constrastiva do "trabalhador" e/ou "homem de bem", com base na construção de referªncias negativas, aparece ainda nos trabalhos de Ruth Cardoso (1978) e de Tereza Caldeira (1984), sendo reafirmada por Vera S. Telles (1992).
J76
como mostra o comentário de um morador:
Quando o cara está com dinht:iro mesmo . .. D
nt:góci o dt:lt:s é gasta r, o negócio deles é o momento, 56 tE?m momento. Pegou um dinheiro E' é gastar E' pronto. Quanto acabou. aí eles procuram mais •••
Dentro desta perspectiva, um homem que consegue
dinheiro por meios suspeitos, mas usa este dinheiro para
sustentar a casa e a familia, é visto com alguma tolerância,
considerado mal encaminhado, mas nao alguém que tenha uma
natureza ruim. Este homem é reprovado em seu comportamento
avesso ao trabalho na mesma medida em que se reprova o
trabalhador que nao traz s&u salário para dentro de casa,
avesso, portanto, à família.
A ruptura com o mundo do trabalho e da família,
significando a passagem para o "outro lado", vincula-se ao
crime organizado e ao tráfico de drogas, implicando em uso
de armas de fogo (Zaluar, 1985). E esta passagem que define
o bandido, também chamado de marginal, e que faz os bares lá
embaixo serem locais fechados. Seguindo a definiç.3.o captada
por- Alba Zaluar,
''a imagem do bandido constrói-se com da arma e a opçao pelo tráfico, ou pelo como meio de vida." (Zaluar, 1985, p. 149)
a posse assalto
177
Esta delimitaçào da fronteira do mundo da ordem e da
transgressào, embora tenha contornos n.itidos, é também
matizada no dia-a-dia, na o obstante necessidade de
enfatizar as diferenças para construir a imagem do homem de
bem:
As pessoas daqLii olhar dl? cima tem um deles, eles saem, lugar ••• falam que se misturar.
dJ.. ferente. Se chegar um ~mbora, vao para outro marginal, saem, nao querem
O fato é que os trabalhadores e os bandidos sao parte
integrante da sociabilidade local. Criam-se necessariamente
regras de convivência entre os moradores do bairro e os
bandidos, envolvendo sempre rel açóes tensas, com base no
medo de quem se sabe ameaçado, no limite, por armas de fogo.
Porque, se os bandidos podem ser os filhos mal encaminhados
de alguma vizinha que a redondeza viu crescer, o que envolve
algum respeito pelas obrigaçóes que norteiam as relaç6es
locais, bandido é também gente rLJim, atributo que pode ser
visto como consequªncia de uma revolta contra suas condiçbes
de vida, mas também pode também se c considerado uma
qualidade inata, posto que julgam que percepçao da
injustiça e do desigualdade social náo implica
necessariamente em escolher o caminho do crime como meio de
vida, uma vez que nem todos o fazem.
178
Quando se atravessa fronteira para o crime
organizado, a norma em situaçbes limite deixa de ser 0
respeito às obrigaçbes que ordenam o convívio entre os
moradores locais. Assim, se band.ido respeita trabalhador,
como mostra z.;duar ( 1985), e se "matar quem náo está na
guerra é considerado perversidade'' (p. 143), os limites até
onde impera este tao comentado código de honra dos fora da
lei sào frágeis e a populaçao local vive sob o signo do medo
d~ bandido, ainda que saiba que pode ser por ele protegida,
diante da desproteçao que caracteriza sua existência social.
Em relaçao às ameaças de fora, sobretudo a violência
policial, os bandidos locais protegem a localidade, como é o
caso do ''dono da favela'', que protege os moradores contra
eventuais ameaças de despejo ou novas invasbes. Entretanto,
a ambivalência da relaçáo dos moradores com os b.andidos
locai~ está em que, ultrapassando a fronteira do mundo do
trabalho, que o situa no mundo do tráfico, do assalto
organizado como meio-de-vida e do uso de armas de fogo, o
bandido rompe, no limite, com o código moral que delimita as
obrigaçbes com a populaçao local.
Bandido respeita trabalhador sim, mas em
circunstâncias que náo ameacem seu n~gócio, o que significa
"sua vida e liberdade", como diz um documento do Comande
179
Vermelho.e 4 Se esta ameaça existir, o bandido atua dentro de
uma lógica de poder, de quem detém, no limite, o controle da
situaçao pela posse de ar-mas, podendo r-omper- com qualquer-
cr-itério de obrigaçao moral. Ambas as partes sabem que as
armas de fogo (que uma das partes detém) podem ser postas em
açào, se alguma desavença eclodir. Dai que a regra básica
para os moradores locais, é ndo se meter com os negócios dos
bandidos, fazer vista gr-ossa, ndo dedodurar. Outra regra é
precisamente não acentuar a distinçào:
Voe@ náo pode Claro, ele nao vai
chamar um bandido de bandido. gostar. Tem que tratar assim .•
encarar de pessoa para pessoa.
A "proteç.3.o" dos bandidos, que é real diante da
desproteçào dos moradores da periferia, sobretudo das
favelas (uma vez que a lei protege os ricos e discrimina os
pobres), inscreve~se ainda dentro da lógica da disputa entre
gangs ou disputa em face de alguma ameaça externa, ou seja,
a policia, ainda que possam efetivamente trazer beneficios a
seus protegidos, nào só no que se r-efere ~ sua segu,.-ança,
mas também ~s suas condiçbes de vida. Nesta lógica, a honra
54 Entre "As 12 regras do bom bandido", documento encontrado E>m poder de um preso foragido do Instituto Penal Milton Dias Mor-eira, no Rio de Janeiro e publicado pelo jornalista Carlos Amorin em seu livro sobre o Comando Vermelho, está uma r-egra que ilustra meu argumento sobr-e a ambivalência da "proteçâ.o" dos bandidos: "Respeitar mulher, crianças e indefesos, mas ab,.-ir máo deste respeito quando sua vida ou liberdade estiverem em jogo" (Amorin, 1993).
1 !..-.-", '-"·'
do bandido fica comprovada pela sua capacidade de defender a
área onde atua, incluindo seus moradores, por ser corajoso e
destemido a ponto de enfrentar as ameaças externas. Por
estas qualidades, ele é admirado e reconhecido como uma
autoridade legitima dentro da localidade; mas a ambiguidade
permanece, em face de uma admiraçao que se mistura com 0
medo, porque, nesta afirmaçao da honra do bandido, pode nao
prevalecer o respeito â vida do morador local, mas a
demonstraçao de sua força a qualquer preço, o que faz o
bandido perverso.
A relaçao do bandido com os moradores locais é marcada,
assim, pela ambivalência: se, no limite da afirmaçào de seu
poder, ele mata quem ameace sua vida e sua liberdade, ele
também protege os moradores, salvaguardando os valores de
seu grupo, como a honra feminina, a proteçao das crianças e
o respeito pelos indefesos, mostrando uma generosidade e um
desprendimento em relaçao ao dinheiro que justificam
moralmente seu poder e a posse do dinheiro.
Quando prevalece o interesse individual em detrimento
dos deveres da ''boa autoridade'', rompe-se drasticamente com
as obrigaçóes morais em relaçao a seu grupo e o que conta é
"levar- vantagem". É nesta lógica que se inscreve o
comportamento do pr-esidente da associaçao dos mor-adores da
favela que cobr-ava uma taxa para redistribuir os tickets de
leite distribuidos gratuitamente à populaç.3.o pelo gover-no.
Foi denunciado por um dos moradores da favela e pr-eso.
J81
i
~
Um morador, sintetizando a hierarquização moral do
bairro expressa nos bar~s locais, resume como se dá no
cotidiano a convivência entr!? os trabalhadores e os
marginais, revelando a tensao permanente que per-meia esta
relação que nao podem evitar, mesmo para quem dribla esta
convivência, pela sua própria localizaçao na fronteira
destes dois mundos. Esta é uma habilidade que nao se
encontra nos trabalhadorEs, pai!; dfE' fam.Llia, estes que nao
querem se misturar e nao sabem encarar de pessoa para
pessoa:
Eu acho que~ do jeito qLie vocé' trata uma pessoa, voe: e náo pode trata r todas. Suponhamos ••• dEntro da soci~dade existEm vários tipos de pessoas. Voc'ê chega num bar, vocé' E?ncontra um trabalhador, um pai de familia, está lá simpl&sm&nte. Chego<.• do s&rviço_, &stá lá tomando uma pinguinha, vai para casa tomar um banho, Jantar e cama ••• no outro dia tem mais serviço. Entao.. vocé': "Como é que está, o serviço, a familia ••• "
Você encontra um colega jovem também: "Sábado eu sai .• curt.i parêl caramba ".
E às vezes você chega 1 á e encontra um malandro., que aqui tem mui to também... Ai o papo Já é diferente ••• entao ••• eu, pelo menos, me sinto na necessJ.·dade de ter assunto para conversar com todo tipo de pessoas_. seja malandro, seja bom, seja ruim, sabe... para que todo mundo também te aceite, do mesmo jeito que você acE?i ta todo mundo. Entao., às vezes., eu chego num bar e tem um malimdro. tem uns batuques~ tudo bem. a gente vai lá, f.ic,a ali de lado e tal. O cara vem trocar umas idéias diferentes.. vamos ver o que é... Ou, dr=> repente: NJio., nao dá para mim, estou fora ••.
182
Agora_, também você nao vai chegar numa favela E> já: "Di.' como é qui? é7" IH o cara pensa QLIE> ou é louco 01.1 entá·o- •• tem alguma co.isa a Ve>rf f1as se você ficar na sua, n.iio prestar muita atenção neles •.• Porque o olhar o olhar fala muito .• sabe? Entào~ se você nao prestar mui ta atençao, ficar esperto para qualquer outro tipo de pessoa q<.1e se aproximar de você_, mas manter sempre o olhar mais baixo, mais calmo., ficar sossegado ••• você pode entrar, você pode sair, em qualquer tipo de favela.
Ao se entrar no mundo do crime, rompendo com o valor
positivo do traba;lho e da fam.ilia ~ um caminho sem volta~
ainda que se mantenham as obrigaçbes morais que unem os
bandidos a seu grupo de origem e, acima de tudo, definem o
universo de referências culturais do qual é originário, a
realidade é que a fronteira foi atravessada, e os resultados
se tornam imprevisíveis. E como se, navegando num mesmo
barco, estivessem, de um lado, os que, buscando atribuir às
suas vidas um sentido, numa sociedade injusta e
irremediavelmente desigual, pautam sua conduta pelo valor
positivo da fam.ília honesta e do trabalho honrado por eles
recriado e, do outro lado, estivessem os que romperam essas
fronteiras, descrentes de qualquer sentido neste mundo onde
se sentem lesados e do qual buscam tira~ o máximo proveito,
dentr-o de uma lógica simétrica e inversa, pela qual se
sentem no direito de privar os outros na mesma medida em que
se sentem p~ivados, negando qualquer possibilidade de
arbitrio da lei.
Pobre x I'IIMld.i go e etc~ . ~
O mendigo, tào próximo ao trabalhador, é uma das
categorias que diferenci~ e contrasta, das qua1s os pobres
lançam mào constantemente para se afirmarem como
traba 1 hadores, portanto, homens de b&m. Já foi comenta da a
distinçao entre trabalhadores e mendigos no capitulo
anterior, na discussao sobre o valor do trabalho. Há,
contudo, outros eixos de distinçào, como aquele entre o
pobre e o mendigo, que se dá sobretudo em torno da casa, Já
foi amplamente comentada nos estudos sobre os pobres
urbanos, a importância da casa como referência básica de sua
identidade social (Dur-ham, 1978, Woortmann, 1982, e 1986,
Sarti, 1985a) e, associada a este valor, a importância da
limpeza da casa (MaG<>do, 1979, Caldeira, 1984 e Da Matta,
1993b). Daí o valor atribuído também ao trabalho doméstico e
à mulher- em seu papel de dona-de-casa que faz a casa estar
l.impa e arrumada. Este é um dos valores manipulados para
definir o mendigo, aquele que é relaxado, porco, desle.ix.ado,
os que anda de qualquer Jeito.. deixa a casa de qualquer
jeito. A importância da or-dem e da limpeza diz respeito nào
apenas à casa, mas também ao corpo.
Assim, na (des)ordem da casa ou do corpo está uma das
marcas dos mendigos, definidos como aqueles que só vivem se
queixando da v.ida, aludindo à moral segundo a qual o esfor-ço
e o empenho justificam o que se tem. Mendigos sào também 1
184
' L
como já foi visto, os que pedem esmola. Recebem de g~aça sem
a dignidade de dar algo em troca, colocando-se, assim, no
lugar de pobres mesmo. Ao contr-ár-io dos que legitimamente
recebem: no traba 1 ho, onde dou ser ... u: ço, nos ser-v i ços de
saúde, porque pago INPS •••
Os moradores locais utilizam-se dos sinais diacriticos,
próp~ios do mundo social do qual fazem pa~te, par-a
diferenciarem-se entre si, através de distinçties que podem
se r-eproduzir em qualquer instância na vida local.
Embora na vida cotidiana os costumes prevaleçam sobre
regras formalizadas e haja uma grande flexibilidade nas
normas de convivência fazendo, por- exemplo, com que as
crianças circulem entre unidades familiares distintas ou as
unibes consensuais sejam aceitas sem problemas nos
momentos de conflito ou em situaçbes-limite oper-a um
mecanismo, que se reproduz tanto no nivel privado quanto no
público, graças ao qual se recorre às regras morais
socialmente dominantes para formular acusaçbes fazendo
pesar a preminência do vinculo de sangue, e a maior-
respeitabilidade do casamento legal, em face das unloes
consensuais. Como disse um homem sobre os conflitos de sua
lrma, màe solteira, com o atual parceiro:
Arruma uma briguinha ass.im e E>lP Já fica jogando na cara •••
185
O que, na vida do dia-a-dia, comporta tolerância,
envolve manipulaçao, em situaç6es de conflito, para afirmar
quem é gente de respeito, tornando "menos" quem na o segue
essas regrais morais. Assim é que a categoria amigado, em
opasiç~o à de casado, demarca uma fronteira, apesar de sua
aceitaçao na prática, porque o casamento legal torna as
pessoas mais respeitáveis, como foi comentado no capitulo 3.
Por estes mecanismos simbólicos, o sujeito reafirma-se
moralmente como homem de bem, diante de si mesmo, perante
seus iguais e aqueles que lhe sào superiores na hierarquia
social. Nesta lógica, a manipulaçáo das distinçbes raciais
pode igualmente ser utilizada, reiterando o preconceito e os
estereótipos socialmente existentes.
Demarcação das fronteiras
O espaço fisico da cidade materializa as hierarquias do
mundo social e a sua utilizaçao responde à condiç~o social
dos seus habitantes: na "per-ifer-ia" estao nao apenas os
bairr-os pobres, mas os bairros dos pobres. Os mor-adores da
periferia cr-iam uma identidade que só faz sentido por
contraste, compartilhando este espaço geográfico e social
como seu local de moradia, em oposiç.3o an centro. Morar no
bairro cria um recorte, delimitando uma identidade social,
l86
qu~ s~ manifesta na segm~ntaçáo de s~us mo~ado~es, ainda que
esta ~ep~oduza uma lógica social que ultrapassa os limit~s
da localidad~. Desta man~ira, m~smo que os pobres estejam em
toda a parte nas cidades, é na periferia que se observa e se
identifica mais claramente sua maneira de viver. Ai é que se
de f in e seu pedaço, como analisou José Guilherme Magnani
( 1984) ; esse é o seu lugar na cidade de sao Paulo.
Entretanto, compartilhar este espaço na cidade nao é o que
os faz pobres, mas é por serem pobres que o compartilham. O
que faz, entâo, de quem se diz pobre, pobre? Aonde se
encontra o fundamento de sua identidade de pobres?
Segundo a concepçào de quem assim se designa e assim é
designado, ser pobre, para além da evidência de ser
destituído de riqueza, poder e prestigio, é uma condiçào
social que se define pela adesao a um código moral distinto
daquele que norteia a lógica do mercado, dominante na
sociedade capitalista, criando outras referências positivas
para quem é visto como destituído, pelo prisma da sociedade
mais ampla. Através dos valores do trabalho e da fam.ilia,
criam, como fronteira do mundo dos pobres e trabalhadores, a
adesao a um código de obrigaçbes morais que delimita seu
grupo de refer~ncia, r::omo uma familia. A percepçâo dos
obstáculos por eles enfrentados na sociedade capitalista
reforça a retraduç.3.o da ordem social por valores não-
capitalistas, na afirmaçao de uma outra ordem moral, na qual
sua existência faça sentido.
187
Como a familia se delimita por obrigaçóes morais que
unem seus membros, como uma forma de solidariedade orgânica
no sentido durkheimiano, a identidade dos pobr-es se
estabelece também por um referencial moral. A questao de ser
ou nao ser pobre inscreve-se num código de reciprocidadE'
permeado por obrigaçbes morais. Quebrá-lo significa romper
com o grupo de origem, deixando de ''ser pobre'', o que náo
resulta necessariamente do fato de que adquirir recursos
materiais ou superar os limites das "linhas de pobreza"
definidas nos gráficos dos indicadores sociais. Um individuo
ou uma família podem elevar seus rendimentos e manterem-se
pobres, o que significa manter seus laços de obr-igaç6es
reciprocas com seus iguais.
Através de sua moralidade, 05 pob~es atualizam os
critérios relativos que definem a pobreza na sociedade
medieval, comentados por Da Matta (1993b), que implicam
conotaçbes positivas e negativas. A pobreza semp~e foi signo
de carê:ncias de várias ordens, mas era também signo de
virtude, como no caso do renunciante que se priva das coisas
deste mundo em nome de algum valor moral. É este valor que
está na base da exigê:ncia da generosidade como qualidade
moral que legitima a posse da riqueza material, da modéstia
par-a quem tem prestigio e da bondade para quem tem poder
(Montes, 1983)
Como a pobr-eza no mundo moderno é definida
essencialmente por- um cr-itério político e econômico os
188
pobres sáo os carentes de riqueza material e de poder -, é
no plano moral que se estabelece a igualdade e onde os
pobres podem mesmo ser "superiores". Através de suas
virtudes morais, tornam-se ricos, e os ricos - pelo critério
econômico e político- podem ser privados de riqueza moral,
portanto, de virtude, concepçao que se relaciona com a
profunda religiosidade popular.
Assim, os projetos de melhorar de vida que motivam sua
existência, sao formulados dentro dos limites do código de
obrigaçóes reciprocas entre iguais, que os mantém ''iguais''
em relaçáo a seu grupo de referência. Ascender socialmente
significa uma forma de ruptura com a reciprocidade entre
iguais. Assim, vêem-se diante do conflito entre "ascender",
que implica em se retirar de
obrigaçóes reciprocas dentro
seu meio
das quais
social,
formulam
e as
seus
projetos de vida. Alba Zaluar (1985) comenta, neste mesmo
sentido, que sáo muito mal vistos os que se colocam como
"superiores", que falam num tom que implica alguma
desigualdade entre os interlocutores. Ser "igual" refere-se
ao tratamento dado ''aos outros, sem procurar mandar, dominar
ou afirmar a sua superioridade." (p. 124)
A solidariedade, construída num contexto de carência
ou, num outro refe~encial, de desigualdade, leva Alba Zaluar
(1985) a mencionar a importância da inveja como um
dispositivo da sociabilidade local do conjunto habitacional
que estudou:
189
;;_-
''Se todos criticam publicamente a inveja, muitos parecem participar de seus dispositivos psicológicos, tornando-a eficaz e c r i ando a necessidade de proteger-se contra ela, Surgida da hierarquia social que cria a desigualdade entre as classes, a homogeneidade dentro da classe é também uma experlencla de controle rígido e conflitos intensos." (p. 125-26)
O projeto de melhorar de vida, implícito na estratégia
do casamento, representa precisamente uma aliança, no
sentido antropológico clássico, para obter recursos de
complementaridade que permitam realizá-lo; mas este projeto
se distingue do projeto de subir na vida, que representa a
ruptura com seu grupo de origem. O projeto de m12lhorar de
vida e o projeto de subir na vida distinguem-se como um
divisor de águas, onde está em questào a adesáo a novos
valores que rompem o principio da reciprocidade, fundamento
de sua pertinência a seu grupo social de origem.
O projeto de melhorar de vida é formulado pelos pobres
dentro da perspectiva relaciona! de suas aç6es e escolhas.
Luis Fernando D. Duarte (1986) destacou o mesmo recorte, ao
diferenciar o projeto de melhorar de vida - constituindo, em
sua definiçáo, um projeto de ''estabilizaçáo'' que os mantém
nos 1 imites de seu gr-upo de referªncia, e o projeto de
ascensào social, que significa uma ruptura com este grupo.
Neste sentido, Conrad Kottak (1967), em seu estudo sobre uma
comunidade pesqueira no nordeste do Brasil, refere-se à
ambivalªncia com que os pobres encaram as relaçbes de
parentesco 5 que fazem parte de suas vidas e das quais
190
necessitam, mas que constituem uma ameaç:il. e um frei;; aos
empreendedores mais ambiciosos, pr-ecisamente corou;; a
per-spectiva de "ascender-" configur-a uma r-uptura co~ os
valor-es familiar-es.
A for-ça simbólica da delimitaçào dos "iguais' e:'tr-E os
pobr-es tr-ansparece nos episódios que se suceoe~ar à
publicaçao e ao sucesso do livr-o de Carolina Maria o: J~s,
Quar-to de Despeio. Trata-se de um livr-o de alguém que ja náo
é mais um "igual". Carlos Vogt (1983), em sua aná.lis2 ce:ste
livro, ressalta esta questao, ao comentar cu e a
possibilidade de ter sua exper-iência traduzida nwr. :.1.v:ro-
portanto escrita retira Carolina do unl.versc de
referências culturais dos seus lgual.s e a coloca n:::;.;;-r.ro
lugar. Com esta experiência, ela deixa de fazer par~e ce seu
grupo de origem e torna-se uma outra coisa, "a!"""::.is~c;". O
livro constitui, entao, "o ponto de estranhamen-c::: ~tre
Carolina e os favelados", porque
"de um lado, a autora pertence ao mundo que r.a"""rõi e cujo conteúdo de fome e privaç:ào compartil~.a =:ur. o me~o social em que vive."
Mas, do outro lado,
"ao tr-ansfor-mar a exper-iência r-eal da miséria na experiência linguistica do diár-io, acaba PC.- s.2
distingui r- de si mesma e por apresenta- a escritura como uma for-ma de experimentaçao s==~4: nova ( ... )"
1 ,...., •
"'-
E o autor conclui, assim, que
"o diário de Carolina ao mesmo t~mpo ~m que se cola à realidade que mimetiza, constitui uma vingança em relaç~o a ela.'' (p. 210)
O episódio, relatado por Carlos Vogt, de que os
vizinhos de Carolina Maria de Jesus lhe atiraram pedras
quando ela deixou a favela, depois que enr.icou com o sucesso
de venda de seu livro, pode ser explicado por este
afastamento que o livro significou em relaçào a seu grupo de
referência. Isto foi interpretado por seus iguais nào só
como uma ruptura, mas como uma "traiçào", por ela ter-se
utilizado de uma forma de expressao, a escrita, que nao lhes
é própria; em contrapartida, negaram-lhe a pertinência a
este grupo, como uma maneira de puni-la.
Romper com as regras de reciprocidade significa,
portanto, excluir-se do mundo dos pobres. é quando se
enrica, ainda que isto possa acontecer num terreno ambíguo,
diante das antigas lealdades. A fronteira se rompe quando se
enrica sem ajudar os outros, seja por meios lícitos ou
ilicitos, uma vez que a riqueza sem generosidade nào é
moralmente legítima, envolvendo perda da confiança,
pressuposto básico das regras de reciprocidade. Rompe-se com
este mundo pela quebra das obrigaçbes morais, tornando
ambivalente a relaçào com quem enrJ.·cou negando as virtudes
morais de seu grupo de origem, sendo a inveja parte desta
ambival~ncia, porque, na perspectiva do valor do dinheiro,
19.2
que náo é negado, quem saiu do "mundo dos pobr-es" foi bem
sucedido.
Funçào ideológica da ambival$ncia entre os iguais
Os mor-adores da per-ifer-ia, na hibridez de sua
identidade social, vivem muito próximos aos beneficios do
mundo urbano/capitalista, aos quais, entretanto, náo têm
acesso. Pela sua pr-ópria presença neste espaço, entretanto,
estao expostos às aspiraçdes e aos anseios que o meio urbano
cria, ainda que sejam insatisfeitos e frustrados. Têm o
querer e a amb:içiio descritos por uma mulher-, ao falar- de sua
chegada a Sao Paulo, vinda da roça:
A gente chegou aqui e era tudo diferente. Televisáo é uma co.1sa que aqui todo mundo QLJer ter; vocé vai n.:< casa de um, ele vi? que o outro tem... e ele também quer ter. Lá o pesso~l é acomodado naquilo ••• df? v.ivf?r Sf?mprf? naqu:ilo •.. ntmca faz forç~ df? ir m~.is para lá. As pf?ssoas sdo simplf?s, simplf?s df? tudo. Náo tf?m f?SSf?
quf?rf?r • •• f? 55~ ambi çdo •• •
Sào a per-ifer-ia, mas de Sao Paulo, o pólo moder-no de.
economia brasileira, sua identidade compor-ta esta
complexidade. Estar- na capital de Sao Paulo, a aspir-açào do
migrante, nao os retir-a da condiçâo de pobrf?s, mas faz deles
iil ,,
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19::,
os "pobres da cidade". Essa inacessibilidade ao que lhe está
tào próximo reforça a afirmaçao de outros valores,
contraposiçao aos que lhe sao inatingíveis, que passam a nao
ser formulados expressamente como desejáveis, ainda que nao
deixem necessariamente de sê-lo - nisto está a ambiguidade -
reafirmando um mundo próprio por eles valorizado, no qual se
reconhecem e sáo reconhecidos.
Vimos, nos capitulas anteriores, como o trabalho e a
família constituem as referências básicas através dds quais
os pobres constróem sua identidade social positiva. sao
pólos positivos que diferenciam os pobres e trabalhador&s de
outros "pobres", que m&recem o nome de pobre mesmo.
Neste processo relaciona! que constitui a construçào da
identidade social dos pobres, onde há identificaç~o pela
necessidade de afirmaçao de um grupo de referência e
diferenciaçao pela necessidade do contraste para sua
definiçao positiva a constante oposiçao, o contraste a
que nos referimos, opera como um mecanismo estrutural. Nào
sao, entretanto, os termos que se opbem, é a oposiçao que
define os termos. Nao é o bandido que se opóe ao trabalhador
(Zaluar, 1985), o marginal ao homem de bem (Caldeira. 1986),
a pLI t.a à mulher honesta ( Sarti, 1985a) , mas é a oposi çào que
precede e define os termos, porque a oposiçaa é constituinte
deste processo relaciona! de construçao identidades
sociais. Esta formulaçào diz respeito a uma análise
estrutural.
.194
Levi-Strauo;;o;; definiu a lógica de oposiçOes como uma
característica (universal) do pensamento humano, um
"pr-incipio estrutural", que precede a linguagem o
pensamento, como sua condição de possibilidade; é, segundo
este autor-, atr-avés de pares de oposiçbes que se organiza o
pensamento humano. Foi com base neste pr-incípio que Levi-
Strauss deu a e~traordinária reviravolta na interpretaçao
sobre o totemismo (Levi-Strauss, 1986). Esta lógica de
opos~çOes, na medida em que organiza as representaçbes,
define simultaneamente as relaçbes entre os homens, porque
representação e açào humanas não se separam.ee
Tendo sido demonstrado que há uma pluralidade de
referências que delimitam a identidade social dos pobres
urbanos - o que é reconhecido nos trabalhos sobre os pobres
urbanos de modo geral (Caldeira, 1984, Agier, 1988, Zaluar,
1985) -, o que procurei demonstrar é que há, entretanto, uma
lógica de classificação. As várias categorias através das
quais os pobres se diferenciam não cor-respondem a uma visào
fragmentada do mundo (Caldeira, 1984)' mas são elXOS
55 O pr-incipio d~ uma lógica relaciona! que precede os termos apar~ce
também em Marx (1946), expresso na teoria do valor, em sua definiçao do que é a mercadoria. Para Marx, as mercadorias silo os objetos que tem valor náo apenas de uso, mas também de troca. Sio objetos de troca que, enquanto tais, encerram uma relaçio prévia, que precisamente os define como "mercador-ias". Opera também nesta explicaçao um principio estrutural, em que a relaçáo de troca subjaz ao objeto, sendo sua propriedade intrinseca. Assim, as mercadorias ni:to sio trocáveis porque sio iguais, mas o que as faz iguais é o fato d~ serem trocáveis. Isto significa que a relaçáo d~ troca antecede e faz a equivalência dos termos.
195
classificatórios distintos que respondem a uma mesma lógica
de classificaçao do mundo, uma lógica de oposiç:bes,
correspondendo, assim, a um mecanismo estrutural de
constr-uçao de suas r-epr-esentaçbes e de sua identidade
social. Esta lógica de oposiçbes que preside as r-elaçoes
entr-e os iguais, embora seja pr-ópria do processo de
construçao de identidades sociais, nao sendo específica dos
pobr-es, transiorma-se num mecanismo que procura responder à
sua situaçao específica na sociedade desigual onde vivem.
Este processo, no caso dos pobres, r-eflete, assim, a
ambiguidade do sistema de valor-es de uma sociedade que nao
realiza sua pr-omessa básica de igualdade. Há solidar-iedade,
um sentimento fundado numa identidade de si tuaçào, que se
manifesta fundamentalmente atr-avés do valor- da
r-eciprocidade. Mas há também uma ambivalência como par-te do
pr-oce.sso de identificaçào social numa sociedade desigual,
porque, se este processo é contrastivo e relaciona}, por
definiçào, tr-ansforma-se, numa sociedade como a capitalista,
igualitária em seus valores e desigual em sua morfologia~
num mecanismo ideológico de compensaçao das desigualdades
que é ~ep~oduzido nas diversas categorias através das quais
os pobr-es se diferenciam entres~. O pr-ocesso relacional de
construçao de sua identidade social opera, entào, como
ideologia noçào que, em sua própria for-mulaçao, envolve
r e l açbes de poder num mecanismo de relativi:zaçao e de
compensaçao por sua localizaçao como "pobres" no mundo
ca.pi ta 1 i s ta.
No mesmo registro em que se manifesta a solidariedade~
há também rivalidade e, com ela, aspir-açao se
diferenciar-, sendo "mais". As clivagens que dividem os
individuas na sociedade mais ampla sáo manipuladas entr-e os
"iguais", sobretudo nos momentos de conflito, enquanto
categorias morais que relativizam o lugar do sujeito em face
de um outro, seu igual reproduzindo as hierarquias sociais
numa rel açao simétrica e inversa à posiçáo que os pobres
ocupam na sociedade, num movimento cir-cular e reiterativo
desta posiç.3o.
1.97
Comentários finais
D BRASIL cano ELE ~
"Nada do que existe, cultur-almente, é contemporâneo".
Luis da Câmara Cascudo
198
a família como simbólica significa
privilegiar a ordem mor-al sobre a or-dem legal~ a palavra
empenhada sobre o contrato escrito, o costume sobre a lei, 0
código de honra sobre as exig~ncias dos direitos universais
de cidadania, julgando e avaliando o mundo social com base
em critérios pessoais, de onde decorre a dificuldade de
estabelecer critérios morais universalistas.
Este universo moral é consti tuido por uma cadeia de
relaçbes sociais, inter-mediadas pela ordem da natureza e do
sobrenatural, fazendo com que a reciprocidade que o ordena,
tal como a definiu Marcel Mauss (1974), enquanto um sistema
constituído por três obrigaçbes fundamentais dar, receber
e retr-ibuir- nao seja imediata. O dar- e o receber, no
universo simbólico dos pobres, envolvem vida dos
indivíduos em sua totalidade, constituindo o que Mauss
chamou de sistema de prestaçbes totais. Deus aparece como a
entidade moral que comanda o mundo, restaurando a justiça
numa ordem injusta (Deus provP e Deus castiga) e a igualdade
num mundo desigual (Somos todos fi 1 hos de Deus), seja
através dos padres católicos, dos pastores pentecostais, dos
guias espíritas ou da umbanda ou dos orixás nos terreiros de
candomblé ...
Se, como espero ter demonstrado neste trabalho, é uma
ordem moral que articula o sentido do universo social para
os pobres, é a especificidade desta ordenaçao do mundo
social em termos de obrigaçbes morais que orienta suas açbes
.
I
em qualquer plano da vida soçial. A família, com seus
códigos de obrigaçbes, é um~ linguagem através da qual
traduzem o mundo e, sendo assim, suas possibilidades de
negociaçáo de atuaçao no mundo social passam pelos
caminhos onde é possível falar- essa linguagem. Et, assim,
esta especificidade que define o horizonte de sua açáo
política. Ainda que, na per-spectiva da democracia almejada,
fundada no principio universalista da cidadania que iguala,
o apego à moral familiar- e a insistincia na hier-ar-quia sejam
aspectos indesejáveis, que fundamentam modos de agir
personalistas e r-elaçbes clientelistas, negar sua
impor-tância como traduçao do mundo social é falar- um idioma
incompreensível.
Em sua análise sobre a discursa populista como um
discurso "popular", no sentido de que nele o "povo" se
reconhece e se identifica, Maria Lúcia Montes (1981) atribui
sua eficácia precisamente aos elementos "populares" que este
discurso é capaz de articular. Os fundamentos deste discurso
estao, segundo sua análise, na reduçào do universo social,
particularmente das diferenças sociais de riqueza,
prestigio e poder- na sociedade- ao universo moral, de modo
que as questbes sociais só se tornem pensáveis em ter-mos
éticos. (p. 68) Assim, a eficácia do discurso populista esté
em que se articula na esfer-a dos valores morais.
Dizer que a reciprocidade se estruturou como o código,
por excelência, de percepção, ordenação e tr-adução do mundo,
na casa e fora dela, como um principio "sócio-lógico" (Da
Matta, 1978), nao significa reificar a reciprocidade como um
código dos pobres, torná-la componente de uma espécie de
''cultura da pobreza'' ou danaçào cultural Significa, antes,
acentuar que a reciprocidade é o fundamento da ordem social
para os pobres porque as relaçbes sociais na sociedade
brasileira estao estruturadas de modo a fazer valer este
principio como organizador de sua percepçào do mundo. Esta
marca das sociedades tradicionais, o código da
reciprocidade, nào é, entào, uma "sobrevivência", mas um
traço que existe e persiste pelas próprias caracteristicas
da sociedade onde se inserem como pobres. ~. portanto, um
dado estrutural.
O uni verso simbó 1 i co dos pobres ref 1 e te e devolve a
imagem da sociedade onde vivem. Seguindo as trilhas
sugeridas por Câmara Cascudo, de que nada do que existe
culturalmente é contemporâneo, as raizes desta mentalidade
popular devem ser buscadas na maneira como se constituiu o
espaço público no Brasil.
Os estudos históricos encarregaram-se de demonstrar, no
plano institucional, assim como, e sobretudo, no plano dos
valores e das práticas sociais, a continuidade de traços da
sociedade urbana colonial na moderna sociedade brasileira
(Araujo, 1993) e a permanência do espírito e do estilo
imperiais na constituiçào da ordem republicana no Brasil, em
fins do século XIX e no começo do sécLllo XX (Carvalho,
201
1987, Chaloub, 1986 e Boschi 1 1991) - O quP int~ressa,
par-ticular-mente par-a se entender- como se forjou a auto-
imagem dos pobres e trabalhadores no Br-asil é r-essalta r- a
ar-ticulaçao da or-dem capitalista à or-dem escravocr-ata do
tr-abalho e patriarcal da fam.ilia, imbricaç.3o que tem sido
reiteradamente ressaltada como marcas da formaçáo histórica
da sociedade brasileira, desde Gilberto Freyre ( 1980) '
passando por Sergio Buarque de Holanda (1963) e pelos
trabalhos de Robe~to da Matta, que formulou esta questâo
como o ''dilema brasileiro'' (1978, 1985, 1987 e 1993a). Os
ecos desta formaçao social ressoam ainda hoje entre os
pobres em sao Paulo. Como bem colocou Manuela Carneiro da
Cunha (1985) a respeito da vinculação pessoal do liberto e
do seu patrono, ao analisar as dimensóes ideológicas da
alforria no Brasil:
''O paternalismo que Gilberto Freyre descreveu, e que foi tao contestado posteriormente, teve uma existência real e até crucial. O que evidencia, porém, nao é a benignidade da escravidáo no Brasil, mas a forma brasileira, feita de favores, lealdades pessoais, clientelismos, de constituiçao de camadas dependentes." (p. 11)
Sem negar que tenha existido uma política de alforria,
Manuela Carneiro da Cunha (1985) mostra como esta política
se assentou em um sistema de convivê'ncias paternalistas,
sendo um processo de caréter eminentemente privado. Assim,
"nao se emer-gia livr-e da escr.:wid;3o, mas dependenteu, sendo
esta sujeiç.3o nao apenas "cr-uamente politica e
policialesca", como, ''mais sutilmente, ideológica" (Cunha,
1985, p. 11).
Como argumentei no capitulo 4' a afir-maçao da
individualidade, que se dá atr-avés do tr-abalho, tanto para o
homem corno par-a a mulher (par-ti cu 1 ar-mEm te par-a a
solteir-a e a mulher abandonada), ocorre, dentr-o desta ordem
social e moral, de tal forma que o individuo emer-ge, mas nao (
dependente da rede que o sustenta e ''individualizado'' e sim
legitima seu processo de individuaçao, o que se evidencia
tanto na relaçbes entre iguais quanto entre desiguais.
Roberto Da Matta I 1987) afirma, a respeito do universo
relaciona! que marca a sociedade brasileira, que uma rede de
relaç6es que ampare e suporte é condiç.3o para que
experiências individualizantes sejam levadas a efeito.
O indivíduo constitui-se, entáo, na mesma medida em que
reafirma as hierarquias. As r-aizes dessa estranha
imbricaçao, no entanto, antecedem o século XIX e o fim da
escravidào, aparecendo já no século XVIII, como r-evela a
análise de Maria Lúcia Montes (1992) sobr-e o episódio da
Inconfidência Mineira, onde o valor- da individualidade, que
se buscava afirma~ na ressonância do imaginário das Luzes,
se pe~de, dissolvido em "intrincadas redes de r"elaçbes".
GFaças a elas, segundo sua argumentação, para os poderosos
da terra, atenua-se a severidade da Coroa, quando nao se
2t)3
dissipa o pr6prio crim~, reservando-se apenas a Tiradent~~ d
puniçào da morte exemplar:
"A individualidade, com suas aliciantes promessas de liberdade, autonomia e igualdade, transformadas em pesadelo, será assumida por um só - Tiradentes sob o signo do que a isola e, ao mesmo tempo, a sacraliza: a loucura." (p. 43)
Nos meandros destes caminhos paradoxais que constituem
a realidade deste pais, com a qual é preciso lidar para
modificá-la, pode-se entender a sociedade brasileira pelo
lado de dentro, interpretando sem a lamentaçêo de qu~ este
país nêo é como "deveria ser". Os valores "tradicionais"
persistem nao porque "ainda n.3.o chegamos lá", mas porque
eles têm um sentido estrutural numa sociedade onde a esfera
pública nào atua de forma a substituir o padrao de relaçOes
personalizadas, numa sociedade, enfim, onde a casa está
também na rua (Da Matta, 1978 e 198 5 ) • Nào mais como
dualismo, mas como uma retraduçào do mundo capitalista em
termos das relaçóes de reciprocidade, o que nem sequer se
configura como dilema entre o moderno e o arcaico, porque
estas duas ordens constituem, na sua articulaçào, uma forma
de ser.
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'* 1 Agradeço a bibliografia.
Ma~ia da Graça Cama~go Vieira a orientaçao na organizaçao da
As datas entre parênteses trabalho e aquelas entre colchetes
correspondem à ediçao referem-se à publicaçao
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