Post on 11-Nov-2018
Laymert Garcia dos Santos
PO LITIZAR AS ·NOVAS TECNOLOGli\S
o impacto socio-tecnico da informa\=ao digital e genetica
Prof!! Eliza Miranda Estagio Supervision ado em Ensino de
Geograf!a e Material Didatico
Texto / Capias
I
8 ..
MODERNIDADE, P6S-MODERNIDADE E METAMORFOSE DA PERCEP<;Ao'~
A prime ira figura da esperan~a e 0 medo, a primeira apari~ao do novo e 0 assombro - assim terminava a deslumbrante contribui~ao dopoeta e dramaturgo HeinerMiiller para uma discussao sobre 0 pos-modernismo em Nova York, em 1979. Por esta frase e preciso come~ar uni texto que tem nao a pretensao, mas 0 desejo
.' de capiar 0 que mudou em nossa percep~ao da era moderna aos tem
.. pos pos-modernos. A frase parece apropriada porque essa mudan~aem nossa percep~ao decorre da introdu~ao de novas tecnologias que despertam em nos, como primeira figura, 0 medo, e como primeira apari~ao, 0 assombro.1
Fiel a uma expressao de Walter Benjamin - 0 primeiro, que eu saiba, a falar de metamorfose da percep~ao em virtude do im
pacto da tecnologia moderna - busco neste texto apreender como tres pensadores, concentrando 0 foco de sua aten~ao no que estava mudando, nos oferecem com suas reflex6es a oportunidade de problematizar nossa experiencia.
o primeiro deles e, como se poderia esperar, 0 proprio Benjamin. Muito se escreveu (e se escreve cada vez mais) sobre a riqueza e a fecundidade de sua reflexao para 0 entendimento do seculo XX. Aqui, 0 que interessa de sua demarche e que ela parece dar conta do modo como se opera a transforma~ao da visao no homem mo-
* Texto inedito.
1 Heiner Miiller, "L'effroi, la premiere ap,parition du nouveau", in Er
reurs choisies, Paris, L' Arche, 1988, p. 21.
Modernidade, p6s-modernidade e metamorfose da percep<;:ao 153
demo. Nao e por acaso que a "Pequena historia da fotografia" e "A obra de arte na era de sua reprodutibilidade tecnica" tomaramse textos seminais da nossa cultura.2 Nesses textos foi formulada a sfntese da experiencia de ver modema. Por isso, sentindo afon;:a e a propriedade de tal formula~ao, muitos se sentem compelidos a voltar a ela, como a uma matriz.
Benjamin precisava marcar a diferen~a modema no plano da percep~ao. E 0 fez atraves da oposi~ao entre dois valores conferidos a obra de aite: 0 de eulto e 0 de exposi~ao. 0 valor de culto se refere ao modo como 0 homem percebe a imagem artfstica, desde o paleolltico ate 0 final do Ancien Regime: presen~a magica, dotada de aura, a imagem e cultuada porque se constitui acima de tudo como 0 secreta vetor de acesso a uma realidade transcendente, a uma supra-realidade; nesse sentido, 0 que 0 homem percebe e c0ntempia atraves dela e, Iiteralmente, a existencia de urn outro mundo, de urn outro plano de realidade, raramente visto ou entrevisto. la o valor de exposi~ao predomina nos tempos modemos; agora a arte foi refuncionalizada e 0 homem percebe urn outro tipo de imagem: fotografica e cinematografica, ela e uma presen~a dessacralizadaque se exp6e porque se constitui como instrumento de acesso a este mundo, a uma realidade imanente e continuamente transformada pela tecnica, que 0 homem precisa descobrir como uma segunda natureza, e nem sempre e visfvel a olho nu.
Muitos dos comentadores desses textos veem no conflito entre a reprodutibilidade tecnica e 0 carater unico das obras de arte a razao da destrui~ao da aura. Parece-me, entretanto, nao ser esta a questao fundamental, 0 que nao significa, evidentemente, minimizar a importancia do conflito. E que a sutileza de Benjamin - ora valorizando 0 que se perde, ora saudando 0 que se ganha com a substitui~ao do culto pela exposi~ao - nao facilita muito as coisas para
2 Walter Benjamin, Magia e tecnica, arte e po[{tica - Obras escolhidas, vol. 1, rrad. de Sergio Paulo Rouanet, pref. de Jeanne Marie Gagnebin, Sao Paulo, Brasiliense, 1985.
154 Tecnologia e sociedade
I I
o leitor. Pois tomando clara mente partido pela ruptura que se da, nao deixa de ter sempre em mente 0 alcance da 'liquida~ao do valor tradicional do patrim6nio da cultura, "essa grande liquida~ao" que se legitima em nome da renova~ao da humanidade. A questao central desses textos e que neles se avalia a perda da realidade transcendente e 0 ganho da realidade imanente; isto e: perde-se 0 aeesso ao outro mundo para se aceder a urn outro mundo, ate entao desconhecido, que paradoxalmente e 0 nosso proprio mundo. Exit a religiao e a magia, soou a hora da ciencia e da tecnologia.
E sintomatieo que Benjamin considere 0 retrato fotografico do rosto humano a ultima trincheira do valor de culto, conquistada pelo valor de exposi~ao quando em tomo de 1900, com Atget, 0 homem se retira da fotografia. Benjamin retoma a observa~ao feita por outrem de que ele fotografa as ruas como quem fotografa 0 local de urn crime, por causa dos indfcios que este contem; mas da a observa~ao urn sentido maior: "Com Atget, as fotos se transformam em autos no proeesso da historia". 3
Assim, para Benjamin, Atget inaugura a mudan~a no plano da percep~ao visual, ao suseitar 0 entendimento da fotografia como uma nova possibilidade de leitura do mundo e de investiga~ao da realidade, e nao como possibilidade de contempla~ao. Com Atget a realidade se abre para a camera e esta, por sua vez, so pode captala por tam bern se encontrar exposta a ela. E essa mutua exposi<;:ao que permite 0 acontecimento, ou melhor 0 duplo aeonteeimento de uma realidade revelando-se e de urn aparelho registrando essa revela~ao. Tudo se passa como se estivessemos diante de uma revela<;:ao profana, que em vez de exigir a interven<;:ao do sacerdote ou do xama, reclama a decifra<;:ao do especialista versado em imagens.
A fotografia de Atget pareee oeupar urn papel central na reflexao de Benjamin. A "Pequena historia" se conclui com ela e com a referencia ao surgimento de urn novo tipo de analfabeto, os "ana1-
3 W. Benjamin, "A obra de arte na era de sua reprodutibilidade tecnica",
in op. cit., p. 174.
Modernidade, p6s-modernidade e metamorfose da percepr;:ao 155
t·
fabetos da imagem", aqueles que sao incapazes de ler 0 aconteci
mento atraves de indicios, tra<;:os, vestigios. Alguns anos depois,
quando Benjamin reescreve e amplia 0 ensaio, a imagem de Atget
como 0 fotografo do crime retorna, para esclarecer a passagem d~ urn modo de percep<;:ao a outro.
Por que a realidade revelada pela imagem fotografica de Atget
configura 0 local de urn crime? E que atraves dela, descobrimos que
a natureza que se dirige a camera nao e a mesma que se dirige ao olhar. "A diferen<;:a", escreve Benjamin,
"esta principalmente no fato de que 0 espa<;o em que 0 homem age conscientemente e substitufdo por outroem que sua
a<;ao e inconsciente. Se podemos perceber 0 caminhar de uma
pessoa, por exemplo, ainda que em gran des tra<;os, nada sa
bemos, em compensa<;ao, sobre sua atitude precis a na fra<;ao
de segundo em que ela da urn passo. 0 gesto de pegar urn . isqueiro ou uma colher nos e aproximadamente familiar, mas
nada sabemos sobre 0 que se passa verdadeiramente entre a mao e 0 metal, e muito menos sobre as altera<;6es provocadas
nesse gesto pel os nossos varios estados de espfrito. Aqui in
tervem a camera com seus imimeros recursos auxiliares, suas imers6es e emersoes, suas interrup<;oes e isolamentos,.suas ex
tensoes e suas acelera<;oes, suas amplia<;oes e suas miniatu
riza<;oes. Ela nos abre, pela primeira vez, a experiencia do
inconsciente 6tico, do mesmo modo que a psicanalise nos abre
a experiencia do inconsciente pulsional. De resto, existem
entre os doisi~conscientes as rela<;6es mais estreitas. Pois os
multiplos aspectos que 0 aparelho pode registrar da realida
de situam-se em grande parte fora do espectro de uma per~ cep<;ao sensfvel normal".4
Ainda que longa, a cita<;:ao precisava ser reproduzida para que
o movimento do pensamento de Benjamin se expressasse por intei-
4 Ibidem, p. 189. Grifo do autor.
156 Tecnologia e sociedade
ro. Agora fica claro que a realidade que se exp6e para a camera e
um~ outra cena, mais real do que 0 real, que aflora para a cons
cienba: uma realidade sem disfarce, normalmente recalcada, imper
cept~vel. A tecnica fotografica que vai capt<i-Ia assemelha-se a es
cut~ psicanaHtica e, como esta, pertence ao dominio da ciencia. Se
as fqtografias de Atget devem ser lidas como 0 local de urn crime, e
por4ue 0 especialista em imagens precis a investigar os indkios, os
vestfgios, como 0 psicanalista acede a realidade do inconsciente atra
yes do lapso, do trocadilho, do mot d'esprit. Na mesma linha, Blow up, He Antonioni, expressa com perfei<;:ao a revela<;:ao da realidade na r~vela<;:ao da imagem fotografica. 0 crime registrado inconscien
temente pelo fotografo de moda no parque surge na amplia<;:ao dos detalhes, precipitando a crise de Thomas e da realidade de fachada
da swinging London, e conduzindo a sua transforma<;:ao.5
o procedimento tecnico e cientifico que a camera opera para
desJobrir e intervir nessa especie de realidade ultima aproxima 0 I
fotografo do psicanalista. A aproxima<;:ao e refor<;:ada por uma outra
co~para<;:ao que Benjamin constroi, opondo 0 magico e 0 cirurgiao,
ant~s de opor 0 pintor ao cinegrafista. 0 magico coloca as maos sobfe 0 paciente para cura-Io, 0 cirurgiao intervem em seu corpo;
o ptimeiro preserva a distancia natural entre ele e 0 doente, man
ten40 a rela<;:ao homem-homem; 0 'segundo renuncia a relacionar
se ctm 0 paciente de homem a homem. Benjami~, entao, prossegue:
I "0 magico e 0 cirur.giao estao entre si como 0 pintor e
I 0 cinegrafista. 0 pintor observa em seu trabalho ~ma distan-
, cia natural entre a realidade dada e ele pr6prio, ao passo que I o cinegrafista penetra profundamente as vfsceras dessa rea
I lidade. As imagens que cada urn produz sao, por isso, essen
I cialmente diferentes. A imagem do pintor e total, a do opeI
rador e composta de inumeros fragmentos, que se recompoem
I 5 William Arrowsmith, Antonioni: The poet of images, Nova York! Oxf6rd, Oxford University Press, 1995. Introdw;ao e notas de Ted Perry, pp. 106-~6.
Modernidade, pos-modernidade e metamorfose da percep~ao I
157
I I
segundo novas leis. Assim, a descri<;;ao cinematognifica da rea
lid~de e para ~ h~~em moderno infinitamente rna is signifi-I catlva que a Plc,tonca, porque ela the oferece 0 que temos 6
1
'
dire ito de exigir da arte: urn aspecto da realidade livre de
qualquer manipula<;;ao peIos apareIhos, precisamente gra<;;asl
ao procedimento de penetrar, com os aparelhos, no amagol da realidade". 6 . ,
E interessante observar que, atraves das compara«oes b1enja- .
minianas, a tecnica fotografica e cinematografica parece expor a percep«ao do homem moderno a realidade ultima, em suas difUen
soes tanto pSlquica quanta fisica, gra«as a desconstru«ao das apa
rencias e ao acesso controlado a urn mundo reconstruldo por: uma
perspectiva objetiva, enquanto dado. Nesse sentido, a tecnica da
fotografia e do cinema,e instrumento de conhecimento, isto e, de
poder, e como tal deve ser utilizada politica~ente. I
Assim, a fotografia e 0 cinema devem incumbir-se de substi
tuir a percep«ao magic a e religiosa do mando por uma perc~p«ao poHtica, fundada naciencia e na tecnica. E e aqui, entre 0 valor de
culto e 0 valor de exposi<;;ao, que Benjamin propoe uma terapia de
choque. A pista the e fornecida pelos dadalstas, que haviam con
vertido a obra de arte num tiro paraatingir 0 espectador devoto,
romper 0 seu recolhimento e arrancar sua consciencia da contem
pla«ao. Distraindo 0 espectador, escandalizando-o, desviando a sua
aten<;;ao, 0 dadalsmo sugere na arte 0 que 0 c:inema pode fazer de
modo muito mais completo: abrir seus olhos para uma nova yisao
do mundo e da realidadeem que vive.
"Compare-se a tela em que se projeta 0 filme com a tela em
que se encontra 0 quadro" - escreve Benjamin.
158
"Na primeira a imagem se move, mas na segunda, nao. I
Esta convida 0 espectador a contempla<;;ao; diante dela, eIe,
6 Walter Benjamin, "A obra de arte ... ", in op. cit., p. 187.
Tecnologia e soci~dade
i' ,
pode abandcinar-se as suas associa<;;oes. Diante do filme, isso
nao e mais posslvel. Malo espectador percebe uma imagem,
ela ilao e mais a mesma. Ela nao po de ser fixada, nem como
urn quadro nem como algo real. A associa<;;ao de ideias do
espectador e interrompida imediatamente, com a mudan<;;a
da imagem. Nissose baseia 0 efeito de choque provocado pelo
cinema, que, como qualquer outro choque, precisa ser inter
ceptado por uma aten<;;ao aguda. 0 cinema Ii a forma de arte
correspondente aos perigos existenciais mais intensos com os
quais se confronta 0 homem contemporaneo. Ele corresponde
a metamorfoses profundas do aparelho perceptivo, como as
que experimenta 0 passante, numa escala individual, quando
enfrenta 0 trafego, e como as experimenta, numa escala his-
b d . I' ,,7 t6rica, todo aquele que com ate a or em socia vigente.
A necessaria politiza<;;ao da percep<;;ao consiste, portanto, numa
terapia de choque. Esta, para ser produtiva, deve ser intensa e en
volver 0 espectador tao profundamente a ponto de transformar seus
habitos e, sobretudo, seus habitos perceptivos. Dal,o interesse de Benjamin pela recep«ao tatil que, segundo ele, se efetuaria menos
pela percep<;;ao que pelo uso, menos pela aten<;;ao que pelo habito. r
Em poucas palavras: a reestrutura<;;ao do sistema perceptivo con
sistiria em distrair deliberadamente 0 homem moderno, habituan
do-o a expor-se ao tratamento de choque exercido pelo cinema sobre
a sua visao do mundo e da realidade. No cinema 0 homem moder
no faria 0 aprendizado da vida na nova sociedade.
"Mas nada revela mais claramente as violentas tensoes
do nosso tempo que 0 fato de que essa dominante tatil pre
valece no pr6prio universo da 6tica. E justamente 0 que acon
tece no cinema, atraves do efeito de choque de suas seqiien
cias de imagens. 0 cinema se revela, assim, tam bern desse
7 Ibidem, p. 192. Grifo do autor.
Modernidade, p6s-modernidade e metamorfose da percep«;ao 159
r
ponto de vista, 0 objeto atualmente rna is importante daquela ciencia da percep<;ao que os gregos chamavam de estetica."g
Levada as ultimas conseqi.iencias, a metamorfose da percep<;ao
operada pela fotografia e peIo cinema conduziria 0 homem moderno
nao so a romper resolutamente com a tradi<;ao mas tambem e sobre
tudo a construir uma nova sociedade a partir de uma nova visao
do mundo e da realidade. 0 homem inteiramente moderno seria 0
homem novo, prefigurado pelos futuristas sovieticos entusiasmados . co~ a Revolu<;ao de 1917. Com efeito, e incrlvel a convergencia da
reflexao de Benjamin com as ideias cinematognificas de Dziga VertOY - como se Cine-olho e 0 homem da camera antecipassem os textos da "Pequena historia ... " e de "A obra de arte ... " .
Duas cita<;oes de Vertov bastam para mostrar a ressonancia entre suas demarches:
"1918. Me mudei para a Rua Gnezdinikovsky n° 7. Dei urn salto perigoso para uma camera em camera lenta. Nao reconheci minha face na tela. Meus pensamentos esta
yam estampados na minha face - irresolu<;ao, vacila~ao e
firmeza (uma luta dentro de mim mesmo) e, mais uma vez, a alegria da vit6ria. Primeira ideia do cine-olho como urn
mundo percebido sem uma mascara, como urn mundo da verda de nua (que nao po de ser escondida}".9
"N6s elevamos nossos protestos contra a colusao do diretor corp.o feiticeiro com 0 publico submetido ao feiti<;o. Somente a consciencia pode lutar contra 0 dominio da magia. Somente a consciencia pode formar urn homem de opi
niao -firme e s6lida convic<;ao. N6s precisamos de homens
conscientes, nao de uma massa inconsciente e submissa a
8 Ibidem, p. 194.
9 Apud Annette Michelson, "0 homem da camera: de magico a epistem6Iogo", trad. de Vinicius Dantas, Cine-Olho, n° 8-9, Sao Paulo, s.d., p. 17.
160 Tecnologia e sociedade
. qualquer sugestao passageira. Viva a consciencia de dasse de I .
! homens sadios com olhos e ouvidos para ver e ouvir! Abai-
; xo 0 veu perfumado de beijos, crime, pombas e prestidigi
I ta<;ao! Viva a visao de dassel Viva 0 cinema-olho!"lO
'I 0 segundo pensador evocado neste texto e Gianni Vattimo,
que no final dos anos 80 publicou La societa trasparente, urn livro sobie 0 advento da sociedade de comunica<;ao, que marcaria preci
sam~nte a passagem da modernidade para a pos-modernidade. A escolha desse filosofo se justifica porque ele toma como urn dos auto res centrais da reflexao 0 Benjamin de "A obra de arte ... ", e pela
serie de deslocamentos que opera nas questoes tratadas ate aqui, a ponto de transformar 0 pensador alemao numa especie de "profe
ta" e precursor do pos-modernismo. , 0 escrito do filosofo italiano se abre com uma indaga<;ao: E
a sociedade pos-moderna uma sociedade transparente? A questao I
se coloca porque Vattimo parte de tres premissas: 1) que a mfdia
de niassa desempenha urn papel determinante no nascimento da so
cied~de pos"moderna; 2) que ela caracteriza tal sociedade nao como soci~dade rna is "transparente", mais consciente de si, mais "escla
recida", mas como sociedade mais complexa; ate mais caotica; 3} que inossas esperan<;as de emancipa<;ao residem justamente nesse
"ca6s" relativo. I A hipotese de Vattimo e que a modernidade chega ao fim
qualjldo nao e mais possivel falar da historia como de urn fenomeno unitirio em vii-tude, principalmente, da multiplicidade de cul
turak e de povos que adentraram a cena mundial com a descolo
niza~ao e 0 fim do imperialismo (?!), e da multiplicidade de visoes
de dlUndo suscitada pela explosao fenomenal da comunica<;ao.
Cont:rariando assim os prognostic os de Adorno e dos frankfurtia-I:
I I
, 10 Ib-d 25 i t em,p. .
Modernidade, p6s-modernidade e metamorfose da percepc;ao 161
• > .4
nos, que temiam a estandardiza<;;ao da sociedade e uma visao tota
litaria, tais multiplicidades desqualificaram 0 ideal de uma ~ociedade trartsparente:
i "Que sentido teria a liberdade de informa<;;ao [ ... ] mim
mundo em que a norma fosse a reprodu<;;ao exata da reali
dade, a objetividade perfeita, a identifica<;;ao total do mapa
com 0 territorio? Com efeito, a intensifica<;;ao das possibili
dades de informa<;;ao sobre a realidade em seus rna is divfrsos aspectos torna a propria ideia de uma realidade cada v;ez
menos concebfvel. [ ... ] Se temos uma ideia da realidade, esta,
em nossa condi<;;ao de existencia no interior da Q.1odernida
de tardia, nao pode ser apreendida como 0 dado objetivo que
se encontra embaixo ou para alem das imagens que dele nos
fornece a mfdia. Como e on de poderfamos atingir essa re~li
dade 'em si'? A realidade para nos e mais 0 resultado do cru
zamento, da 'contamina"ao' [ ... ] das multiplas imagens, 1n
terpreta<;;oes, reconstru<;;oes que a mfdia [ ... ] distribui".1 1
Em decorrencia, Vattimo propoe sua tese: na sociedade da
midia, em vez de urn ideal de emancipa<;;ao modelado sobre a auto
consciencia plena do homem, instala-se urn ideal de emancipa<;;ao fundado na oscila<;;ao, na pluralidade, e sobretudo na erosao do proprio "principio de realidade".
A prolifera<;;ao das imagens da midia conduz, portanto, a uma perda do "senso de realidade". Entretanto, no entendimento do fil6-
sofo, tal pe~da e urn ganho, uma liberta<;;ao: "Hoje", escreve Vattimo,
162
"0 homem pode hnalmente dar-se conta de que a liberdade
perfeita n~o e a de Spinoza, nao e conhecer a estrutura he
cessaria do real e a ela adaptar-se - como sempre sonhor a metaffsica" .12
11 G. Vattimo, La societa trasparente, Miiiio, Garzanti, 1989,:pp. 14-5.
12 Ibidem, p. 15.
Tecnoiogia e sociedade
Com a erosao do principio de realidade mud a 0 sentido da
emancipa<;;ao, que consiste agora num deslocamento e numalibe~ ra<;;ao das diferen<;;as: "Viver nesse mundo multiplo significa fazer
a experiencia da liberdade enquanto continua oscila<;;ao entre 0 per
tencimento e 0 deslocamento [spaesamento] ".13
o leitor ja deve ter percebido quao pr6ximo, mas ao mesmo
tempo quao distante Vattimo se encontra de W. Benjamin. Com
deito, os temas mais caros ao autor da "Pequena hist6ria ... " e de
"A obra de arte ... " parecem estar sendo retomados ... e, no entan
to, a todos eles parece ser atribuido urn sentido inverso, negativo.
Como se a p6s-modernidade de Vattimo buscasse contradizer ponto
por ponto a positivi dade que Benjamin encontrava, valorizava e
celebrava na modernidade; como se as tecnologiasde produ<;;ao e
reprodu<;;ao da imagem tivessem uma fun<;;ao social oposta aquela
por ele descrita; como se a metamorfose da percep<;;ao tivesse se ope
rado sim, mas com resultados total mente diversos dos que haviam
sido intuidos e analisados.
Tal impressao se acentua quando Vattimo elege a experien
cia estetica c?mo expressao. do movimento de emancipa<;;ao do homem p6s-moderno, e ate mesmo como manifesta<;;ao do sentido
do seu ser. Vale a pena, entao, acompanhar seus passos e observar
de que maneira se faz uma apropria<;;ao pos-moderna do texto
benjaminiano. Como vimos anteriormente, a diferen<;;a moderna no plano da
percep<;;ao se da com a dessacraliza<;;ao, com a "grande liquida<;;ao" do valor tradicional do patrimonio da cuItura, manifesto na destrui<;;ao da aura da obra de arte, na supera<;;ao do seu valor de cuIto pelo
valor de exposi<;;ao. Ora, para Vattimo, a seculariza<;;ao do espirito
do homem moderno europeu nao consiste apenas na ruptura com
a religiao e em sua desmistifica<;;ao, mas tam bern na sobrevivencia
de seus "erros" e ilusoes sob formas diversas e degradadas. "A mo
derniza<;;ao", escreve Vattimo,
13 Ibidem, p. 19.
Modernidade, pos-modernidade e metamorfose da percep~iio 163
r
"nao nasce do abandono da tradic;ao, mas de uma especie de interpretac;ao ironica desta, de uma 'distorc;ao' [Heidegger utiliza, num senti do proximo, 0 termo Verwindung] que a conserva, mas tambem, em parte, a esvazia" .14
Comentando esta passagem de La societa trasparente, Jose Bragans;a de Miranda observa que Gianni Vattimo, pretendendo colocar-se alem das categorias modernas, mas reconhecendo no entanto a sua legitimidade parcial, privilegia a arte porque esta permitiria pensar tal possibilidade: "Assim", escreve Miranda, citando Vattimo,
"a 'experiencia estetica faz viver outros mundos possiveis',
servindo de modelo a oscila(:iio das categorias que the permitem circunscrever 0 pos-moderno [ ... ] e ao mesmo tempo 'salvar' a modernidade. A teoria da superac;ao de Vattimo joga neste elemento de superac;ao e conservac;ao, recorrendo para isso ao conceito heideggeriano de Verwindung [ ... ].
Em sfntese, a modernidade auto-supera-se, mas apenas enquanta ilusao de verdade, restando na forma de uma fibula (ou ficc;ao) que vale 0 que valem as outras" .15
Bragans;a de Miranda parece ter razao: 0 procedimento de Vattimo consiste efetivamente numa reativas;ao do conceito de Heidegger; so que desta vez 0 objeto da interpretas;ao ironica nao e a tradis;ao, mas sim a propria modernidade. Por outro lado, tal deslocamento do 'conceito gera uma duvida: e a modernidade que se auto-supera conservando-se, ou e 0 movimento do pensamento de Vattimo que tenta ao mesmo tempo conservar e superar 0 pensamento radicaJ dessa mesma modernidade na obra de ~enjamin?
14 Ibidem, p. 59,
15 Jose Bragan~a de Miranda, "Vattimo e a p6s-modernid~de", in Tra~os: ensaios de crftica da cultura, coL Passagens, Lisboa, Veja, 1998, p. 64.
164 Tecnologia e sociedade
Neste caso, seria possivel dizer que 0 deslocamento do conceito heideggeriano autoriza Vattimo a realizar uma interpretas;ao ironica das categorias benjaminianas sobre a obra de arte na era da reprqdutibilidade tecnica, a proceder a uma "distors;ao" que as
conserva esvaziando-as; numa palavra: a tentar urn empreendimento que leve Benjamin a auto-superar-se e transforme 0 seu texto
numl fics;ao. 10 problema de Vattimo parece ser 0 de sub meter a originali
dade'da descoberta realizada por Benjamin em "A obra de arte ... " ao p¢nsamento de Heidegger. Assim, logo de saIda, lemos que e preciso recuperar a intuis;ao central desse texto; entretanto, tal intuis;ao ja e formulada nao em seus termos proprios, mas em termos heideggerianos: intui-se ali que as novas condis;6es da produs;ao e da frpis;ao artIstic as nas quais evolui a sociedade da mfdia modificam de maneira substancial a essencia da arte {o termo empregado e 0 heideggeriano Wesen, que significa nao a natureza eterna da arte, mas a maneira pela qual ela se dd nos dias de hoje).16
rSegundo Vattimo, a nova essencia da arte e descoberta ao mes
mo tempo, neste ana de 1936, por Benjamin e por Heidegger, que escreve "A origem da obra de arte". Comparando os textos, 0 filosofo italiano encontra uma analogi a, "a primeira vista paradoxal", entre a nos;ao de golpe (Stoss), que no entendimento de Heidegger definiria 0 efeito exercido pela obra de arte sobre 0 observador, e a
!
nos;a1o de choque desenvolvida por Benjamin.
"Ate para Heidegger, num sentido diverso mas tam,bern profundamente proximo ao de Benjamin, a experienI cia do choque da arte tern a ver com a morte; nao tanto ou I principalmente com 0 risco de se ser atropelado por urn oni~ bus na rua, mas com a morte enquanto possibilidade constitutiva da existencia. 0 que, na experiencia da arte, causa o Stoss, para Heidegger, e 0 proprio fato de que a obra e
i 16 G. Vattimo, op. cit., p. 64.
I I
Mod~rnidade, p6s-modernidade e metamorfose da percep~ao
I I
165
IMili'· _ .. S
em vez de nao ser. 0 fato de ser, 0 Dass, como se lembra-i . I
rao os leitores de 0 ser e 0 tempo, tambem se encontra nal base da experiencia existencial da angustia." 17
Seguindo 0 movimento do pensamento de Vattimo, ve~ificamos que a analogia entre 0 choque benjaminiano e 0 golpe ht;ideg
geriano provocados pela obra de arte sup6e uma outra ana~ogia, entre este ultimo e a experiencia existencial da angustia, estado emocional que se produz quando 0 homem tern de encarar b fato consumado de ter sido jogado no mundo e que este e, mas nab tern sentido; assim, a experiencia da angustia e uma suspensao d~ evidencia do mundo, uma experiencia de "deslocamento". Uma vez
I explicitada esta segunda analogia, Vattimo entao examina a ptimei-ra: "Para alem da proximidade terminologica, ate que ponto: a nosao de Stoss tern realmente a ver com C? Choque de que fala ~enjamin em conexao com a midia da reprodutibilidade?" .18 Par~ Heidegger, 0 golpe desferido pela arte so se da com obras decisiyas na historia de uma cultura ou na experiencia vivida dos individ~os -a Biblia, as tragedias gregas, a alta literatura; mas para Benjamin, o choque acontece num processo aparentemente muito mais !corri
queiro - a visao da proje~ao cinematografica. Em que termos entao sustenta-se a analogia? Vattimo encontra pelo menos urn pon-to em com urn: a insistencia no estranhamento. I
166
"Tanto num caso quanta no outro", escreve 0 filosofo~ [
"a experiencia estetica aparece como uma experiencia d~ estranhamento que exige urn trabalho de recomposi<;:ao e d~
I readapta<;:ao. Mas tal trabalho nao visa atingir uma recom~ posi<;:ao total; ao contrario, a experiencia estetica e dirigidq
para manter vivo 0 deslocamento. [ ... ] Tanto para Heidegger quanta para Benjamin, 0 estado de deslocamento e consti~
17 Ibidem, pp. 69-70.
18 Ibidem, 1'. 71.
!
I I
Tecnologia e sOfiedade
tutivo e nao provis6rio. Esse e 0 elemento mais radicalmente novo de tais posi<;:oes esteticas, no confronto com as re
flexoe·s tradicionais sobre 0 belo, e ate com a sobrevivencia
dessa tradi<;:ao nas teorias esteticas deste seculo".19
Heidegger e Benjamin compartilhariam entao, atraves das no~6es de golpe e de choque, a ideia de que a obra de arte tern por fun~ao precipitar 0 homem moderno nesse estado de inseguran~a fundamental e faze-Io perceber que sua angustia se deve ao deslocamento experimentado em rela~ao a qualquer mundo - nao so em rela~ao a.o mundo exposto pel a obra de arte, mas tambem em rela~ao ao proprio mundo. Nesse sentido, a arte seria a arte da oscila~ao entre 0 pertencimento ao mundo e a sua perda, entre 0 sentido e a ausencia de sentido. Tanto a grande arte do pass ado quanto a obra de arte na era da reprodutibilidade tecnica teriam, portanto, a mesma fun~ao; na verdade, esta ultima nao passaria de uma transposi~ao, isto e, supera~ao e conserva~ao, da antiga arte nos nO\TOS tempos. Se assim nao fosse, como entender a condusao do
raciocinio de Vattimo, ao escrever:
"0 choque caracteristico das novas formas de arte da reprodutibilidade nao e senao 0 modo atraves do qual se realiz:! de fato, em nos so mundo, 0 Stoss de que fala Heidegger, a essencial oscila<;:ao e deslocamento que constitui a experiencia da arte" .20
Aparentemente, a analogia estabelecida se justifica; mas ao condui-Ia, Vattimo parece dar-se conta de que algo capital se perde na compara~ao. Se a grande arte tradicional cum pre a mesma fun~ao que 0 cinema, como fica a diferen~a especifica introduzida
pela tecnica na percep~ao? Benjamin via na rela~ao arte-tecnica uma
19 Ibidem, p. 72.
20 Ibidem, pp. 75-6.
Modernidade, p6s-modernidade e metamorfose da percepc;:ao 167
r
positivi dade nova, uma transforma<;ao radical, fator de metamorfose da visao; por isso mesmo, ainda que avaliando 0 alcance da "grande liquida<;ao" da tradi<;ao, naohesitava: desejava a renova<;ao da humanidade e lutava por ela. Ora, como todos sabem, Heidegger e extremamente critico em rela<;ao ao mundo da tecnica. Como conciliar entao 0 pensamento dos dois?
Vattimo tenta a concilia<;ao argumentando que ambos veem na sociedade da tecnica uma oportunidade de superar 0 esquecimento e a aliena<;ao metafisica em que 0 homem ocidental viveu ate entao. Agora a terapia benjaminiana do choque - que 0 individuo experimenta no cinema e no trafego das grandes cidades, enquanta 0 revolucionario experimenta numa escala histarica - sera comparada a no~ao heideggeriana de Ge-Stell,21 essa especie de desafio con stante que a tecnica moderna impoe ao homem, cobrando dele a planifica<;ao e 0 calculo de todas as coisas e obrigando-o, pela pressao mesma, a come<;ar a despertar do esquecimento e da aliena<;ao do ser que essa cobran<;a implica. Assimilando 0
choque ao Ge-Stell, inverte completamente 0 sentido da experiencia descrita por Benjamin: 0 homem nao desperta para 0 mundo
moderno e a realidade da tecnica; desperta desse mundo e dessa realidade.
Esvaziado de suas prerrogativas apas sucessivas analogias com no<;oes heideggerianas, de deslize em deslize, de distor<;ao em distor<;ao, 0 choque a esta altura perdeu toda for<;a e especificidade, tornando-se urn residuo, 0 que resta da criatividade da atte na era da comunica<;ao generalizada. Conceito emasculado, descaracterizado, 0 choque passa a apresentar duas caracteristicas:
168
"Acima de tudo, fundamentalmente, ele nao passa de uma mobilidade e uma hipersensibilidade dos nervos e da . inteligencia, tfpicas do homem metropolitano. A essa excitabilidade e hipersensibilidade corresponde uma arte centrad a
21 Ibidem, p. 77.
Tecnologia e sociedade
1 I I .~
I nao rna is na obra, mas na experiencia, pensada entretanto :em termos de varia~6es minimas e continuas (segundo 0
~ exemplo da percep<;ao cinematografica)" .22 i "E a segunda caracterfstica do choque enquanto unii co residuo da criatividade na arte da modernidade ta~dia e : 0 que Heidegger pensa por meio da no<;ao de Stoss, isto e, I
i 0 deslocamento e a oscila<;ao que tern a ver com a angustia : e a experiencia da mortalidade. 0 fenomeno descrito por ! Benjamin como choque nao concerne apenas as condi<;6es Ida percep<;ao, como tam bern nao e apenas urn fato a ser . confiado a sociologia da arte [ ... ]. 0 choque-Stoss e 0 Wesen,
a essencia da arte, nos dois sentidos que essa expressao tern na terminologia heideggeriana. ,,23
I Estamos longe de uma concep~ao segundo a qual a camera nos ~bre, pela primeira vez, a experiencia do inconsciente optico; longe de uma tecnica fotografica e cinematografica capaz de expor a percep<;ao do homem moderno a realidade ultima; longe de uma terapia de choque pensada como modo de abrir os olhos para uma nova visao do mundo em que se vive; longe de uma politiza<;ao da visao e pela visao destinada a liberar a consciencia da tradi<;ao e a contribuir, assim, para a constru<;ao de uma nova sociedade. Agora, 0 choque nem mais consiste primordialmente num metodo de transforma<;ao da percep<;ao. Seu poder revolucionario tornouse urn frisson metafisico atraves do qual a obra de arte leva 0 homerri moderno a "uma liberdade problematica", a liberdade de oscilar continuamente entre 0 pertencimento e 0 deslocamento, tao vaga, que "sentimos dificuldade em conceber tal oscila<;ao como liberdade" .24
I 22 Ibidem, pp. 80-1.
23 Ibidem, p. 81.
24 Ibidem, p. 19.
Modernidade, p6s-modernidade e metamorfose da percepc;:ao 169
A despolitiza~ao e, portanto, total. Na sociedade da cotfuni
ca~ao a questao da domina~ao e da opressao, tao caras a Benj~min, nem mais se coloca. "Com efeito", escreve Vattimo,
"0 advento da midia tambem comporta maior mobil ida de e superficialidade da experiencia, que se op6em as tendenl cias a generaliza<;ao da domina<;·ao na medida em que da~ lugar a uma especie de 'enfraquecimento' da no<;ao de reaJ lidade, 0 que acarreta urn enfraquecimento de sua autorida~ de. A 'sociedade do espetaculo' de que falam os situaciot nistas nao e apenas a sociedade das aparencias manipuladas
I pelo poder; e tambem a sociedade na qual a realidade se apresenta sob aspectos mais frouxos e mais fluidos e na qual a experiencia pode adquirir os tra<;os da oscila<;ao, do des~ locamento, do jogo".25
De olho na amea~a fascista e no emprego que 0 nazismo fazia da tecnica, Benjamin preconizara a politiza~ao da arte. Interpretando ironicamente a sua· no~ao de choque, Vattimo estetiza a P?litica benjaminiana da percep~ao, tornando-a umaexperiencia niilfsta de frui~ao estetica p6s-moderna.
* ~'- *
Uma confronta~ao entre os textos de W. Benjamin e,de. G. Vattimo expressa muito mais do que a rela~ao entre do is autores.
De certo modo, se a interpreta<;ao ironica de "A obra de ar~e ... " e possivel, e porque 0 progn6stico de Benjamin nao se cumpriu; 0 que nao significa que ele tenha deixado de ter razao ou que seu pensamento tenha perdido a pertinencia quanta ao potencial revolucionario do que, no rastro de Gilbert Simondon, poder-se-ia d~nominar uma "tecnoestetica";· Que esse potencial nao tenha prevalecido,
que a fun<;ao social da arte tenha sido outra, que a metamodose da percep~ao tenha assumido uma outra dire~ao e sentido - tuqo isto,
25 Ibidem, p. 83.
170 Tecnologia e sociedade
com desconforto, seria preciso admitit, ate mesmo para tentar entender 0 que autoriza essa especie de apropria~ao "indebita" de categorias benjaminianas.
Seis meses antes de ser publicada La societa trasparente em
abril de 1989 (ano da queda do muro de Berlim, sempre e born lembrar), em outubro de 1988, portanto, Paul Virilio lan~ou em Paris seu livro La machine de vision. Parece-me interessante evocar esse texto, e confrond.-Io com os dois outros analisados anteriormente, porque atraves do encontro e do desencontro entre todos eles 0 leitor podeni ter uma ideia da dificuldade em que nos encontramos para conceber com clareza 0 que esta acontecendo com nossa experiencia perceptiva.
Assim como 0 livro de Vattimo come~ava por afirmar a perda do "senso de realidade", em virtude da multiplicidade de visoes de mundo suscitada pela explosao fenomenal da comunica~ao, 0 de Virilio come~a pela "amnesia topografica", essa especie de esquecimento do lugar em que se encontra aquele que nao desperta completamente ou que, ao despertar, se conduz segundo os automatismos habituais, sem se dar conta de que seacha num local ins6lito. Come~a, portanto, pela incapacidade de se imaginar 0 espa~o
em virtude da impossibilidade de se lembrar da ordem das coisas no espa~o e no tempo. Vale dizer: pela incapacidade de selecionar lugares e de formar imagens, isto e, de construir imagens mentais.
Virilio vincula a amnesia topografica ao que chama de "visao dislexica". Os dislexicos da imagem, afirma 0 autor referindo-se explicitamente a Benjamin, nao sofrem de urn analfabetismo da imagem, nao sao como 0 fot6grafo que nao consegue ler suas pr6-prias fotos - sao como os alullos que tern uma dificuldade crescente de compreender 0 que leem, por serem incapazes de re-presentar. Ora, no entender de Virilio, sao os instrumentos 6pticos que
criam a visao dislexica ... e isso tern infcio com 0 telesc6pio.
"Desde sua apari<;ao, os primeiros aparelhos 6pticos (a camera escura de Alhazen no seculo X, os trabalhos de Roger Bacon no seculo XIII,a multiplica<;ao a partir da Renascen-
Modernidade, p6s-modernidade e metamorfose da percep<;iio 171
r
<;;a de proteses visuais como 0 microscopio, as lentes, as lu
netas astronomicas ... ) alteram gravemente os contextos de
aquisi<;;ao e restitui<;;ao topograficas das imagensmentais, a
exigencia de se re-presentar, essa transforma<;;ao da imagina
<;;ao em imagens [ ... J. No momenta em que pretendemos pro
curar as formas de ver rna is e melhor 0 nao-visto do univer
so, estamos no ponto de perder 0 fnigil poder de imaginar
que possuiamos. Modelo das proteses de visao, 0 telescopio projeta a imagem de urn mundo fora de nosso alcance e, en
quanto uma outra forma de nos movermos no mundo, a 10-
gistica da percepgao inaugura uma transferencia desconhe
cida do olhar, cria 0 choque (telescopage) entre 0 proximo e
o distante, urn fenomeno de acelerat;ao que abole nosso .conhecimento das distancias e das dimensoes.,,26
Iniciada muito antes do advento da fotografia, a transforma
<;;ao da percep<;;ao evolui, portanto, ao longo de seculos; mas e no
seculo XIX, com a fotografla instantanea e 0 telegrafo, .que as ima
gens e as palavras tam bern pass am a se chocar na velocidade da luz,
que 0 processo tende a desembestar ate a·" decolagem retiniana" em
d · A I' 'f ,,27 A 1895, "a movimenta<;;ao 0 mstantaneo pe 0 cmematogra 0 .
partir daf, a multiplica<;;ao de instrumentos visuais e audiovisuais e sua utiliza<;;ao cada vez mais intensa e mais precoce aceleram a trans
ferencia do olhar e introduzem uma codifica<;;ao das imagens men
tais cada vez rna is elaborada, que interfere na percep<;;ao e compro
mete a consolida<;;ao da memoria. "Tudo 0 que vejo encontra-se por principio ao meu alcance (pelo menos ao alcance do meu olhar), destacado sobre 0 mapa do 'eu posso'." Nesta frase importante,
Merleau-Ponty descreve precisamente 0 que vai ser arruinado par
uma teletopologia que se tornou comum. 0 essencial do que vejo
26 Paul Virilio, La machine de vision, Paris, Galilee, 1988, pp. 20-1. Grifos do autor.
27 Ibidem, p. 17.
172 Tecnologia e sociedilde
----------.--------------~
naol esta mais, por defini<;ao, a meu alcance e, ainda que se encon
tre <to alcance do meu olhar, ja nao se inscreve obrigatoriamente no
mapa do "eu posso". A logfstica da percep<;ao destruiu, de fato, 0
que:os antigos modos de representa<;ao conservavam desta felicida
de driginal idealmente humana, este "eu posso" do olhar.28
i A introdu<;ao e a dissemina<;ao das tecnicas de produ<;ao e
reptodu<;ao da imagem criariam, partanto, urn efeito bastante di
verSo daqueles apontados por Benjamin e por Vattimo; aqui nao se
considera que elas permitam 0 acesso ao inconsciente optico e ao
des~elamento da realidade por tras das aparencias, nem as muitas
vis~es de mundo, ao cruzamento e a contamina<;ao das imagens, as multiplas reconstru<;6es que tornam a realidade "em si" inconcebf
vel. ,Com Virilio esta em questao uma perda, que nao e a perda da
aura nem a perda da ilusao de verdade. Esta em causa, sim, a erosao do principio de realidade, mas esta nao conduz a urn novo tipo
de emancipa<;ao, como em Vattimo.
"Com os materiais de transferencia, nao acedemos,
portanto, a esse inconsciente produtivo da visao com 0 qual
em sua epoca sonhavam os surrealistas, a propos ito da fo
tografia e do cinema, mas a sua inconsciencia, a urn feno
menD de aniquila<;;aodos lugares e da aparencia, cujo alcance
futuro ainda mal podemos conceber. Embora fosse urn fato
praticamente sem precedentes na historia das sociedades hu
manas, a morte da arte, anunciada desde 0 seculo XIX, se-
I ria nada mais do que urn primeiro e terrfvel sintoma, 0 sur
gimento desse mundo desregulado de que falava Hermann
I Raushning, 0 autor de A revolu(ao do niilismo, a respeito
i do projeto nazista: a derrocada universal de toda ordem
estabelecida, 0 que em termos da memoria humana jamais se viu.,,29
28 Ibidem, pp. 26-7. Grifos do autor.
29 Ibidem, pp. 27-8. Grifos do autor.
Mo1ernidade, p6s-modernidade e metamorfose da percep<;iio 173
~ I
I I
Virilio considera 1914 como 0 momenta decisivo em que a transferencia do olhar para 0 instrumentooptico se complet~, em
que 0 homem moderno sucumbe a inconsciencia, no plano cia visao. Ernst Junger ja observara a transforma<;ao fundamental que a tecnica modern a introduzira na pratica da guerra; Virilio vai iconsiderar que a metamorfose da percep<;ao se da quando, diante da guerra, os soldados europeus e americanos ja nao creem mais no que veem, quando sua fe perceptiva e subordinada a fe na tec~ica, isto e, quando a visao e enquadrada pela linha do raio visual numa arma de mira. Para Virilio, portanto, a principal tecnica a opdrar a transforma<;ao perceptiva nao e 0 instrumento optico que permite uma amplia<;ao da visao, mas a arma que permite que a visao humana seja subjugada.
"0 que vemos quando 0 olhar, sujeitado a esse mate-; rial de mira, encontra-se reduzido a urn estado de imobilidade estrutural rfgido e quase invariavel? Vemos apenas es- I
sas pon;:6es instantaneas captadas pelo olho de ciclope da objetiva e a visao passa de substancial a acidental. Apesar' do longo debate em torno do problema da objetividade das imagens mentais e instrumentais, a revolucionaria mudan<;:a de regime da visao nao foi clara mente percebida e a fusaolconfusao do olho com a objetiva, a passagem da visao a visualiza<;:ao, instalaram-se facilmente no costume. A me- !
did a que 0 olhar humano se congelava, perdia sua veloci-I dade e sensibilidade naturais, em contrapartida as tomadas I
tornavam-se cada vez rna is rapidas. ,,30
I
Amnesia topografica e teletopologia, telescopage, dislexia vi-sual e incapacidade de re-presentar, transferencia do olhar e inconsciencia, desregula<;ao da percep<;ao e perda da fe perc~ptiva ~ no
fio do texto Virilio vai desenhando nao uma metamorfose, mas uma crise que vai abrir as portas para a modeliza<;ao da visao e a
30 Ibidem, pp. 38-9. Grifos do autor.
174 Tecnologia e sociedade
estandardiza<;ao do olhar. Processo para 0 qual a arte vai trazer a sua contribui<;ao, uma vez que a crise da percep<;ao e tambem a sua propria crise.
A visao humana deixa de ser substancial e passa a ser acidental. Essa e a questao central que atravessa to do 0 livro La machine
de vision. Nao ha como resumir aqui 0 mapeamento impressionante que Virilio faz do processo de transferencia do olhar ao longo dos seculos XIX e XX ate que a "maquina de visao", capaz de realizar nao so urn reconhecimento das formas, mas principalmente uma interpreta<;ao completa do campo visual, inaugure a possibilidade de "uma visao sem olhar", na qual uma camera de video acoplada a urn computador assumira a fun<;ao de analisador do ambiente e, com ela, a capacidade de interpretar automaticamente 0 sentido dos acontecimentos, tanto no campo da produ<;ao industrial quanta no da robotica militar. Quando entao se prepara a automa<;ao da per-
I cep<;ao, isto e, a delega<;ao a uma maquina da analise da realidade
objetiva, Virilio cre que e tempo de se interrogar sobre a imagem virtual, aquela que persiste unicamente na memoria visual mental ou instrumental.
Se ha aqui urn problema, e 0 do "desdobramento do ponto de vista": 0 do sujeito que percebe e 0 da rna quina de visao, que produzira imagens virtuais instrumentais, isto e, imagens de sintese realizadas pela rna quina para a maquina, imagens que 0 homem nao podera ver mas tern de imaginar. Virilio se pergunta:
"Como doravante rejeitar 0 carater factual de nossas pr6prias imagens mentais, se devemos recorrer a elas para adivinhar, estimar aproximativamente 0 que a maquina de visao percebe?" .31
A rna quina de visao, rna quina digital, nao lida com urn principio de realidade, mas com urn "efeito de real", isto e, com a fu
sao!confusao relativista do factual (do operacional) com 0 virtual
31 Ibidem, p. 127. Grifos do autor.
Modernidade, p6s-modernidade e metamorfose da percep<;iio 175
- a otica digital processa uma interpreta~ao estatfstica das formas que "ve". A partir da constata~ao dessa diferen~a entre percep~ao human a e percep~ao eletronica, uma serie de perguntas sobre a persistencia da imagem na retina parece assaltar Virilio. A descoberta da persistencia retiniana permitira 0 desenvolvimento da cronofo
tografia de Marey e da cinematografia de Lumiere. Como nao se compreendeu que tal descoberta nos fazia entrar num outro campo da persistencia mental das imagens? - indaga Virilio. "Como admitir 0 carater factual do fotograma e rejeitar a realidade objetiva da imagem virtual do espectador de cinema?,,32 Acreditava-se que a persistencia visual concernia apenas a retina; mas hoje sabe-se que ela se deve ao sistema nervoso de registro das percep~6es oculares. "Como aceitar 0 principio da persistencia retiniana sem aceitar ao mesmo tempo 0 papel da memoriza~ao napercep~ao imediata?,,33
A interroga~ao sobre a imagem virtual, aquela que persiste unicamente na memoria visual mental ou instrumental, leva Virilio a considerar que toda apreensao visual e simultaneamente uma apreensao do tempo, tempo de exposi~ao que acarreta uma memoriza~ao consciente ou nao, dependendo da velocidade da toma
da. A objetiva~ao da imagem e, portanto, uma questao de tempo, "tempo de exposi~ao que mostra ou que nao permite rna is ver" .34 Inventada para ver, e preyer, em nosso lugar, a rna quina de visao vai perceber sinteticamente opera~6es ultravelozes que nao podemos ver em virtu de da debilidade da profundidade temporal da apreensao visual humana.
o ponto de vista da maquina de visao torna definitivamente relativo 0 ponto de vista humano. Eo que parece fundar a relatividade dos pontos de vista tanto do homem quanta da rna quina e a velocidade, mais especificamente a velocidade da luz, constante universal que des de Einstein subvertera as no~6es da realidade ffsi-
176
32 Ibidem, p. 128.
33Jbidem, p. 128.
34 Ibidem, p. 129. Grifos do autor.
Tecnologia e socie~flde
ca eiagora, com a tecnologia digital, conclui a subversao das no~6es da r~alidade visual. "Se as categorias do espa~o e do tempo tornaram~se relativas (crfticas}", escreve Virilio,
i "e porque 0 carater absoluto deslocou-se da materia para a
i luz, e sobretudo para sua velocidade-limite. Assim, 0 que serve para ver, ouvir, medir e portanto conceber a realidade, e menos a luz que sua rapidez. Doravante, a velocidade serve menos para se deslocar facilmente do que para ver, conceber mais ou menos nitidamente. A frequencia tempo da luz tornou-se
I urn fator determinante da percepc;ao dos fenamenos, em detrimento da frequencia espar;o da materia [ ... J". 35
Ora, a freqiiencia tempo da luz se express a como intensidade e n~o como extensao.
: Como se da a percep~ao visual da rna quina e do homem a luz I
dessa velocidade? Vejamos primeiro 0 caso da maquina. Segundo Virilio, a optica "passiva" das lentes das objetivas fotografica e cineniatografica ve e nao ve a partir da rela~ao entre sombra e luz; masi tal nao e 0 caso da optica "ativa" da videoinfografia: aqui, 0
sombreamento e a ilumina~ao se dao em virtu de I
"de uma maiorou men or intensificar;ao da luz, intensifica~ao que nao passa de uma acelerac;ao negativa ou positiva dos f6tons. Como 0 proprio trac;o da passagem destes ultimos pela objetiva esta acoplado a maior ou menor rapidez dos cilculos necessarios a digitalizac;ao da imagem, 0 computador do PERCEPTRON funciona como uma especie de CORTEX OCCIPITAL ELETRONICO".36
Nesse caso nao ha propriamente imagem, pois a interpreta~ao da rna quina limita-se a uma serie de impulsos codificados cuja con
figura~ao nao podemos nem mesmo imaginar. A visao humana tamI
I 35 Ibidem, p. 149. Grifos do autor.
36 Ibidem, p. 152. Caixa alta e grifos do autor.
Modernidade, pos-modernidade e metamorfose da percep<;ao 177
bern consiste numa serie de impulsos luminosos e nervosos descodificados pelo cerebro a razao de 20 milissegundos por imagem.
Entretanto, 0 que qualifica a diferen<;a de processamento m~m caso e no outro?
Para tentar discriminar essa diferen<;a, Virilio postula urn ter
ceiro tipo de energia, alem da energia potencial, em potencia, e da energia cinetica, aquela que provoca 0 movimento, com que trabalham os fisicos. A estas 0 pensador das tecnologias suger~ que se acrescente a energia cinematica, ou "energia de observa<;ao", "que resulta do efeito do movimento e de sua maior ou menor rapidez sobre as percep<;6es oculares, opticas e opto-eletronicas" .37 Com efeito, com a.automa<;ao da percep<;ao, continua Virilio,
"as categorias habit~ais da realidade energetica reveiam-'se insuficientes: se 0 tempo real sobrepuja 0 espa<;:o real, se a imagem sobrepuja 0 objeto e ate 0 ser ptesente, se 0 virtual sobrepuja 0 atual, e preciso tentar analisar as incidencias dessa 16gica do tempo 'intensivo' sobre as diversas representa<;:oes fisicas. La onde a era do tempo 'extensivo' justificava ainda Ulna 16gica dialetica distinguindo nitidamente 0 potencial do
atual, a era do tempo intensivo exige uma melhor resolu<;:ao do principio de realidade no qual a pr6pria no<;:ao de virtualidade seria revista e corrigida" .38
Aceitar a "energia da observa<;ao" implica em reconhecer a
existencia de urn novo tipo de intervalo, alem dos classicos intervalos de espa<;o e de tempo: ointervalo-Iuz que, paradoxalmente, teria signa nulo e nao negativo, como 0 intervalo de espa<;o, ou positivo, como 0 de tempo, pois como 0 trajeto da luz e absoluto, a comuta<;ao entre a emissao e a recep<;ao seria instantanea, prescindindo da comunica<;ao, que exige uma certa espera. Ora, a aceita<;ao da "energia da observa<;ao" traria, como conseqiiencia, uma
178
37 Ibidem, pp. 130 e 154. Grifos do autor.
38 Ibidem, p. 154. Grifos do autor. .
Tecnologia e sociedade
mudan<;a nas proprias bases sobre as' quais se constroi nosso principio de realidade, uma vez que esta se tornaria a realidade do tra
jeto do intervalo-Iuz, e nao mais a realidade do objeto e dos interval os de espa<;o e de tempo. 0 que Virilio exprime com grande acui
dade ao escrever:
"A questao filos6fica nao seria mais: 'A que distancia
de espa<;:o e de tempo se encontra a realidade observada?', mas desta vez: 'A que potencia, em outras palavras a que velocidade se encontra 0 objeto percebido?' [ ... ] 0 trajeto as
sume a precedencia sobre 0 objeto. Como, entao, situar 0
'real' ou 0 'figurado', senao atraves de urn 'espa<;:amento' que se confunde com uma 'ilumina<;:ao'? Para urn observador atento, a separa<;:ao espa<;:o-temporal nao passa de uma figura particular da luz, ou mais precisamente ainda: da luz da velocidade. Com efeito, se a velocidade nao e urn fenomeno mas sim a relafao entre os fenomenos (a pr6pria relatividade), a questao evocada da disd.ncia de observal;:ao dos fenomenos resume-se na questao da potencia da percep<;:ao (mental ou instrumental)". 39
Focalizando a diferen<;a entre a visao da maquina e do homem a luz da velocidade, Virilio descobre na potencia da percep<;ao mental ou instrumental 0 fator constitutivo de seus respectivos pontos de vista. Se isto e verdade, 0 pensador tern razao ao afirmar que e tempo de se interrogar sobre a imagem virtual, aquela que persiste unicamente na memoria visual mental ou instrumental; tern razao de inquietar-se com a inconsciencia que se instala com a desregula<;ao da percep<;ao e a perda da fe perceptiva, e de alertar para a modeliza<;ao da visao e a estandardiza<;:ao do olhar. Quando a moderni
dade chega ao fim, 0 homem parece estar perdendo a capacidade de perceber e de imaginar, isto e, de produzir as imagens que con-
39 Ibidem, p. 155. Grifos do autor.
Modernidade, p6s-modernidade e metamorfose da percep<;:iio 179
r
t'
ferem sentido a sua experiencia, parece estar abdicando do exercfcio da potencia da percep\=ao, do "eu posso" do olhar.
Insistindo na importancia do tempo de exposi\=ao que mostra ou que nao permite mais ver, insistindo na questao da persistencia
retiniana, questiio esquecida e pela qual, ao que parece, tudo come\=ou, Virilio nos convida a retomar, num sentido crltico, as metamorfoses da percep\=ao:
"De fato, se toda imagem (visual, sonora) e a manifesta<;ao de uma energia, de uma potencia desconhecida, a descoberta da persistencia retiniana seria muito mais do que a estimativa de urn atraso (a impressao da imagem na retina); e a descoberta de urn congelamento da imagem (arret-sur
image) que nos fala do desenrolar, desse 'tempo que nao para' de Rodin, isto e, do tempo intensivo da clarividencia humana. Com efeito, se a urn dado momenta do olhar, ocorre uma fixafiio, e porque existe uma energetica da 6ptica, a 'energetica cinematica' que nada mais e que a manifesta<;ao de uma terceira forma de potencia, sem a qual a distancia e 0 relevo aparentemente nao existiriam, pois essa mesma 'distancia' nao poderia existir sem 'espera', uma vez que 0 distanciamento s6 surge atraves da ilumina<;ao da percep<;ao, como pensavam, a seu modo, os antigos".40
Benjamin, Vattimo, Virilio - tres concep\=oes da transforma\=ao da visao pelas tecnicas mecanica e eletronica. A de Benjamin, resolutamente moderna, as de Vattimo e Virilio "pos-modernas", muito embora com sentidos muito diversos, para nao dizer conflitantes e ate mesmo contnirios. E claro que outras concep\=oes poderiam ter sido tratadas, outros autores escolhidos. Os proprios artistas poderiam ter sido convocados, como Bill Viola, cuja reflexao
40 Ibidem, p. 157. Grifos do autor.
180 Tecnologia e sociedade
parece fundamental para entender a potencia da visao humana acoplaHa a tecnologia eletronica. Aqui, entretanto, 0 que se pretendeu foi ,contrapor a no\=ao de choque benjaminiana, a de spaesamento
de Vattimo, e a de telescopage de Virilio. Nessa confronta\=iio arma
se ~ma problematica da visao moderna e contemporanea que se con
fig~ra antes de tudo como uma crise e uma transi\=ao. i A reflexao de Virilio sobre a imagem virtual (aquela que per
sist~ unicamente na memoria visual mental e instrumental) e sobre a potencia da percep\=ao humana e :nao~humana parece fundamental paraentendermos nossa propria experiencia perceptiva. 0 convit~ que nos e feito para retomarmos a questao do processamento da imagem em nossos olhos nao nos ajuda apenas a compreender as implica\=oes da modeliza\=ao da visao e da estandardiza\=ao do olhar. Nos ajuda tambem a escrutar as possibilidades de uma polftica da visao em tempos de acelerada transforma\=ao tecnologica -e is~o nos leva de volta a Walter Benjamin.
, Benjamin e Virilio nos ajudam, por exemplo, a ver Dancer in
the;dark (Danfando no escuro), a primeira obra-prima do cinema dig~tal, cuja questao fundamental e: Como lidar com a cegueira que progressivamente tom a conta de nos? Selma (Bjork), a personagem central do filme de Lars von Trier, e uma jovem operaria que esta ficando cega e se mata de trabalhar para pagar a cirurgia capaz de cur~r seu filho da doen\=a que a aflige, e que se trans mite de uma gera\=ao a outra. Mas nao assistimos apenas a sua agonia e obstina\=ao. Alem de integrar urn grupo de teatro amador que ensaia a montagem de A novifa rebelde, ela e uma espectadora especial dos musicais de Hollywood: no cinema, sua amiga Kathy (Catherine Deneuve) dedilha na palma de sua mao 0 movimento da dan\=a que se tTxecuta na tela, e Selma constroi mentalmente 0 que se passa. E que ela esta habituada a "fazer cinema". No chao da fabrica, para
reslstir a desumaniza\=ao imposta pelo fordismo e afirmar sua humanidade, costuma alterar 0 ritmo do movimento mecanico, fazendo da tepeti\=ao que a oprime uma diferen\=a libertadora. A transforma~ao do ritmo sonoro contagia entao as imagens, que ganham urn brilho intenso, enquanto todos os envolvidos, deixando de lado 0
Modernidade, p6s-modernidade e metamorfose da percep<;ao 181
trabalho e 0 sofrimento, se poem a dan~ar. A chave da conversao encontra-se, portanto,na possibilidade de nlUdar de ritmo e de in
tensidade, de ritmo de produ~ao dos sons, de intensidade de produ~ao de imagens, dentro da mente e fora del a - na tela.
E que Lars von Trier nos expoe a urn duplo cinema - 0 cinema moderno e mecanico que corresponde a alien ante vida operaria de Selma, e 0 cinema contemporaneo e eletronico, que corresponderia a sua utopia, a busca de urn mundo melhor. A passagem
de urn ao outro se da, porem, na visao-nao-visao de Selma, vale dizer nas imagens virtuais que ela produz a partir da mudan~a do ritmo
sonoro e da intensifica~ao do brilho do que perce be; nos termos de Virilio, a partir da ilumina~ao da percep~ao. Como se Trier filmasse a realidade atual e a realidade virtual de Selma, 0 contraste e a tensao entre as duas, a passagem do desespero a esperan~a; como se 0 cinema digital do proprio Trier consistisse na capta~ao eletronica do trajeto do que Selma percebe-nao-percebe e do que persiste na retina e na memoria. Como se Trier nos expusesse ao exerdcio da potencia da percep~ao, do "eu posso" do olhar.
182 Tecnologia e sociedade