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“Rumo à Vitória”: O Partido Comunista Português e a luta armada
Ana Sofia Ferreira*
Resumo: a proposta deste artigo é refletir sobre a defesa da via do “levantamento
nacional armado” para o derrube da ditadura portuguesa, defendida pelo Partido
Comunista Português, desde o seu I Congresso Ilegal, em 1943, mas teorizada por
Álvaro Cunhal apenas em 1964, na sua obra Rumo à Vitória, o mais importante
contributo teórico e político à linha do PCP nos anos de clandestinidade. Procuramos
refletir sobre os motivos que levaram o PCP a ser o único Partido Comunista da
Europa Ocidental a defender e a enveredar pela luta armada, e analisar o longo
processo de constituição da sua organização armada, a ARA.
Abstract: The purpose of this article is to discuss the defense of the the "armed
national uprising" via or the overthrow off the Portuguese dictatorship, supported by
the Portuguese Communist Party since its 1st Illegal Congress in 1943, but theorized
only in 1964 by Álvaro Cunhal in his work “Rumo à Vitória”, the most important
theoretical and political contribution to the line of PCP in the clandestinity years. We
seek to reflect on the reasons hat took PCP to be the only communist party in Western
Europe to defend and to enter into the armed struggle, and analyze the long process of
constitution of its armed organization, ARA.
Palavras-chave: Partido Comunista Português, luta armada, violência política
Key Words: Portuguese Communist Party, armed struggled, political violence
* Doutora em História Contemporânea pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa. Investigadora do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
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Introdução
Na década de 70, os grupos de esquerda radical reativaram dois conceitos
revolucionários formulados no século XIX: o da classe operária como sujeito central
da luta política e o de legitimação da violência política, reclamando-se como os fiéis
depositários da tradição marxista-leninista, que teria sido pervertida com o conceito
de “coexistência pacífica” adotado pelos partidos comunistas da Europa Ocidental
após o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), em 1956.
Em alguns países, como a Itália ou a França, a esquerda radical considerava que seria
necessária uma rutura violenta com o sistema, defendendo o slogan de Che Guevara
“o dever de um revolucionário é fazer a revolução”. Assim, aceitar ou não o recurso à
violência política seria uma espécie de “teste de sinceridade revolucionária” e um
meio de situar a organização no fragmentado microcosmos revolucionário onde se
multiplicavam, nesta época, pequenos grupos que se reivindicavam da esquerda
radical.
No entanto, à esquerda, nem todos os grupos defendiam o recurso à luta
armada. Para os Partidos Comunistas da Europa Ocidental, entre os quais se incluía o
Partido Comunista Português (PCP), o processo de mudança da sociedade dispensava
tais métodos, sustentando a “via pacífica”, num quadro de subordinação ao Partido
Comunista da União Soviética, numa altura em que as tensões entre este e o Partido
Comunista da China se acentuaram, constituindo a questão do carácter violento ou
não da Revolução um dos termos desse debate, que se tornou bastante crispado. Até
que ponto, discutia-se, a quem beneficiaria a violência, se às classes dominantes, pela
repressão que suscitava, se à classe operária e aos trabalhadores porque acelerava a
Revolução.
No quadro desse debate, alguns autores como Louis Boudin afirmavam que,
“nem toda a violência é revolucionária e a revolução é mais a recusa da violência que
a utilização da violência” (BODIN, 1973, p. 38); outros como Luigi Bonanate,
defendem que, quando imposta pelo inimigo, a violência revolucionária será por
consequência uma contra-violência, o exercício da força legítima dos oprimidos
(BONANATE, 1978, p. 24) e Toni Negri, na mesma linha de pensamento, sustenta
que a violência revolucionária não é somente justa, mas desejada pelas massas
(NEGRI, 1977).
Por seu lado, Ted Gurr designa violência política como um ato que tem por
objeto um regime político ou um dos seus representantes (GURR, 1970, p. 3-4). Esta
definição completa a definição clássica de violência política dos autores anglo-
sáxonicos que definem a violência como “um comportamento tendente a causar danos
em pessoas ou bens.” (GURR e GRAHAM, 1969, p. 17). Por sua vez, Ted Honderich
3
define violência política como o “uso considerável e destrutivo da força contra
pessoas ou coisas; um uso de força interdito pela lei, visando uma mudança de
política, de sistema, de jurisdição territorial ou de governo ou elenco governamental, e
por consequência procurando igualmente uma mudança na vida dos indivíduos e da
sociedade” (HONDERICH, 1982, p. 1).
Mas estas definições tendem a focalizar-se em formas de violência como os
atentados ou as sabotagens, deixando de fora outras ações violentas como, por
exemplo: os assaltos a bancos, muito comuns no caso das organizações de luta armada
portuguesas, entre 1967 e 1974; ou as acções que as organizações armadas italianas
praticaram na segunda metade dos anos 70, que tendem a ser consideradas como
crime de delito comum, mas que se inserem dentro duma nova forma de prática
política, que se qualificou de “expropriação proletária”, que permitiria financiar as
“organizações revolucionárias”. Neste caso, devemos considerar um outro critério na
definição de violência política e podemos recorrer à definição de H.L. Nieburg:
“Violência política são atos que causam tal desorganização, destruição, lesões, que o
seu objetivo, a escolha dos seus alvos ou das suas vitimas, as suas circunstâncias e os
seus efeitos, adquirem um significado político, tendem a modificar o comportamento
do outro numa situação que tem consequências para o sistema social” (NIEBURG,
1974, p. 19).
As organizações de esquerda radical, que foram surgindo ao longo dos anos 60
e 70, defendiam a adoção da violência revolucionária como forma de contestação à
autoridade. No entanto, como refere Rui Bebiano, o carácter grupuscular e sectário da
maioria destas organizações, levou “à adoção de soluções de tipo messiânico e à
valorização extrema do papel redentor e pretendidamente exemplar desempenhado
pelas vanguardas armadas” (BEBIANO, 2005, p. 73). Esta atitude determinava,
evidentemente, processos de atuação de natureza “espontânea” e “imediatista”, mas
conduzia também a uma nova atitude perante o significado e a aplicação da violência,
que, em Portugal, teve como repercussão a defesa da luta armada pelos grupos
marxistas-leninistas, a aceitação do recurso à violência política pelo Partido
Comunista Português e o aparecimento das organizações que levaram a cabo ações
armadas contra a ditadura.
A via do “levantamento nacional” para derrubar a ditadura
A fundação do Partido Comunista Português a 6 de março de 1921, ocorrendo
sob o impacto e a influência da revolução soviética, congrega fundamentalmente
setores oriundos do sindicalismo revolucionário e do anarcosindicalismo, numa altura
em que os socialistas já haviam perdido a hegemonia no movimento operário. Durante
os primeiros anos da sua existência, antes da implantação da Ditadura Militar, não se
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bolchevizou e esteve longe de ser um partido política e ideologicamente homógeneo,
refletindo fortes tensões entre os que mais se aproximavam do republicanismo e os
que mantinham viva a tradição obreirista da ação direta, que nem a intervenção direta
da Internacional Comunista (IC) conseguiria resolver.
Com a instauração do Estado Novo, sofrendo uma repressão violentíssima, o
PCP mergulhou numa crise organizativa e política que a reorganização de 1929
procuraria superar, adaptando ao partido um modelo leninista de funcionamento em
condições de clandestinidade. Porém, já nos anos 30, as dificuldades de adaptação à
clandestinidade e a constituição de uma Frente Popular, segundo as diretrizes da
Internacional Comunista e numa conjuntura profundamente adversa de fascização do
Estado e de derrota do campo republicano na guerra civil de Espanha, praticamente
não só destroçaram o Partido, como levantaram à IC fortes suspeitas de infiltração
policial, suspendendo-o dessa organização mundial.
É já nos anos 40, com a reorganização levada a cabo por dirigentes comunistas
que tinham estado presos no campo de concentração do Tarrafal que se opera a
verdadeira e duradoura bolchevização e a construção de um partido clandestino
dotado de um sistema de funcionários profissionalizados, de um eficaz aparelho de
imprensa e de uma rede de casas clandestinas.
Vai ser já com o PCP reorganizado que se realiza o III Congresso do PCP (I
Congresso Ilegal), em 1943.A orientação política do PCP definida no I Congresso
Ilegal, preconizava a via do levantamento nacional para o derrube da ditadura e
admitia a realização de ações armadas, desde que dirigidas pelo partido, num contexto
de radicalização e intensificação da luta de massas que propiciasse um ambiente
revolucionário. Assim, era defendida a intensificação e generalização das lutas de
massas, sob a direção do partido, até que estas se convertessem numa espécie de greve
geral insurrecional que, pela ação das armas, desagregasse as Forças Armadas e
suscitasse a intervenção de um setor das Forças Armadas, que entretanto se tinha
radicalizado, derrubando o regime (MADEIRA, 2013, p. 81-83].
O PCP nunca abandonou esta linha política até ao 25 de abril de 1974. Porém,
no quadro de crise que se seguiu à segunda guerra mundial, o papel da via da
violência para derrubar o regime foi sempre secundarizado, com as oposições a
apostar na via da transição pacífica e pactuada. Mesmo o PCP acabou por recuar em
nome da união de toda a oposição, da aposta numa possível legalização e na ida às
urnas. O Partido Comunista Português, depois de ter vivido um dos períodos mais
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negros da sua história durante a primeira metade dos anos 50 (o seu aparelho
organizativo tinha sido destroçado pelas prisões de 1949, que tocaram o Comité
Central e o Secretariado; o líder do partido, Álvaro Cunhal estava preso; os militantes
sofriam perseguições sistemáticas da polícia política; era atacado pela ditadura e pela
oposição não comunista num contexto de agudização da guerra fria) entrou numa fase
da sua história designado de desvio de direita. Esta mudança iniciou-se na IV reunião
alargada do Comité Central, realizada em agosto de 1955, na qual ficou definido que
era possível encontrar uma solução pacífica para o problema político português
através da constituição de uma ampla unidade antisalazarista, isto é, de uma unidade
de todos os que estavam descontentes com o regime [MADEIRA, 2013, p. 222-223].
O III Congresso Ilegal, em setembro de 1957, apenas confirmou esta nova orientação
política. Foi com base nesta nova orientação que o PCP procurou formar uma
plataforma de unidade para as eleições presidenciais de 1958, tentando convencer a
restante oposição de que seria preferível apresentar um só candidato.
A 3 de janeiro de 1960, Álvaro Cunhal e outros nove dirigentes e quadros
comunistas fugiram da cadeia de Peniche. Só por si a fuga de uma prisão política
constituía um enorme abalo para o regime, mais ainda quando entre os evadidos se
encontrava o principal dirigente do PCP, cinco membros do Comité Central e três
militantes que ascenderiam a esse órgão nos anos imediatamente posteriores, e que se
dispunham a voltar à luta clandestina.
Logo na reunião, de carácter extraordinário, do Comité Central de fevereiro de
1960, Álvaro Cunhal inicia a retificação da linha política do partido, criticando a linha
da solução pacífica, que apelidou de desvio de direita. O processo de crítica ao desvio
de direita ficará concluído um ano depois, na reunião do Comité Central de março de
1961, com a aprovação de um conjunto de documentos que enterram a via pacífica e
afirmam o levantamento nacional armado como a via para derrubar o salazarismo.
Álvaro Cunhal escreve dois textos para estas reuniões, que são “O Desvio de Direita
nos Anos 1956-1959 (Elementos de Estudo)” e “A Tendência Anarco-Liberal na
Organização do Trabalho de Direcção”. Nestes textos Cunhal atribui duas fontes
internacionais ao desvio de direita: uma interpretação “mecânica” das teses do XX
Congresso do PCUS; e a cópia, igualmente “mecânica”, das teses do Partido
Comunista Espanhol. No entanto, Cunhal sabe que as suas críticas podiam ser vistas,
no contexto internacional, como uma recusa da viragem de Kruschev no XX
Congresso, por isso, não negou a possibilidade de a via para o socialismo poder ser
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pacífica, só que para Portugal esta via não era válida. Cunhal retoma também a
conceção leninista sobre as etapas da revolução para salientar que mesmo o XX
Congresso não tinha afirmado a universalidade da via pacífica, e acentua a
necessidade de fazer uma interpretação do XX Congresso nas condições políticas
nacionais da ditadura1. Desta forma, Cunhal nega a solução pacífica apenas para o
caso português.
É na declaração do Comité Central do PCP “A via para o Derrubamento da
Ditadura Fascista e para a Conquista da Liberdade Política” e no manifesto “Ao Povo
Português pelo Movimento de Massas” que se encontra a viragem política da via
pacífica para o assalto ao poder, explicitamente referido como “uma ação armada
com a participação ou neutralização de grande parte das forças militares”2. O
documento não nega a possibilidade da via pacífica, mas esta era muito pouco
provável. A fórmula do levantamento nacional, que irá ser o cerne do Rumo à Vitória,
está aqui explicitada: “O Partido Comunista Português e as restantes forças democráticas não podem
colocar apenas como objectivo da sua acção política pressionar o governo e
outros órgãos do Estado para que façam concessões. […] É com os olhos
postos neste objectivo fundamental que se deve desenvolver a acção das
forças democráticas. O povo português e as forças democráticas têm de se
preparar para derrubar a ditadura e conquistar o poder. Nas condições presentes, o
levantamento em massa da Nação para o derrubamento da ditadura fascista é a
perspectiva para o qual se devem ganhar as amplas massas do povo português. O
levantamento nacional, em que a greve geral política pode desempenhar papel
importante, terá de se transformar numa acção armada, com a participação ou
neutralização de grande parte das forças militares, caso o governo fascista continue a
resistir com a violência e o terror à acção popular”3.
O debate sobre os documentos de crítica ao desvio de direita não decorreu com
a profundidade e celeridade que o Comité Central desejava. No entanto, isso não
impedia que muitos militantes, quando abordados, manifestassem as suas opiniões
sobre assuntos como a tática eleitoral, a luta armada, a transição pacífica e o
levantamento nacional. Por exemplo, “Tó” entendia que “Cuba abriu os olhos a muita
gente”, que a “solução pacífica está ultrapassada” e que “há que ir preparando as
massas para a acção violenta”. Um militante dizia que era favor de “actos armados,
1 Ao contrário do PC Brasileiro, em que os impactos do XX Congresso do PCUS provocaram
forte debate interno e a configuração de correntes internas, que evoluiriam no sentido da dissidência, no
PC Português as condições de clandestinidade e a dificuldade em aceder às notícias do movimento
comunista internacional atrofiaram o debate, não tendo ocorrido qualquer contestação significativa aos
informes e resoluções do congresso soviético. Aliás, nessa altura já prevalecia no PCP uma orientação
política que teve no XX Congresso incentivo e uma legitimação, que só viria a ser corrigida mais tarde,
entre 1960 e 1961 por Álvaro Cunhal após a sua fuga da prisão., que a designaria de “desvio de
direita”.
2 “Fazer Circular. Queridos Camaradas”, Março de 1961
3 “A via para o Derrubamento da Ditadura Fascista e para a Conquista da Liberdade Política”,
in O Militante, nº 109, Abril de 1961, pg. 8
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mesmo isolados. A organização não surgirá antes do ataque. Com o ataque é que virá
a organização”; outro afirmava “as massas estão dispostas a irem para onde há armas,
munições”; e outro ainda salientava “que o momento é para as pessoas virem para a
rua e resistirem à guerra de armas na mão”. Muitos criticavam a direção do partido de
apatia e de privilegiar a tática eleitoral em detrimento da ação violenta: era preciso
“deixarmos de pensar em eleições e outras fórmulas legalistas” e “preparar a saída
armada” (PEREIRA, 2015, p. 76-77). O sentimento generalizado era de apoio à nova
linha política, embora também ainda continuassem a existir dúvidas quanto à sua
eficácia e clareza.
O impacto do <<dissídio sino-soviético>> no Partido Comunista Português
No início da década de 60, pouco ou nada se sabia em Portugal sobre o
diferendo que opunha a China à URSS, como era bastante grande o desconhecimento
relativamente à revolução chinesa. Ocasionalmente, o Avante! trazia artigos de
propaganda sobre as realizações do comunismo chinês, mas nada que se comparasse
com os artigos sobre a União Soviética ou o PCUS. Circulavam textos de Mao e de
outros dirigentes chineses, traduzidos do francês por funcionários do partido ou em
edições brasileiras, embora raros (PEREIRA, 2008, p. 125). Apesar da escassa
informação que chegava a Portugal era possível, pelo menos para uma pequena parte
dos dirigentes comunistas, ter conhecimento e acompanhar a evolução do conflito
sino-soviético, quanto mais não fosse através da audição da Rádio Moscovo. Segundo
Pacheco Pereira, o PCP via o comunismo chinês como “uma variante do soviético,
mais atrasado e mais «camponês», exótico e longínquo”. As especificidades teóricas
da obra de Mao Tsé-Tung, da história do PCC e da revolução chinesa não eram
conhecidas (PEREIRA, 2008, p. 125).
O PCP foi apanhado pelo conflito sino-soviético no momento em que Álvaro
Cunhal empreendia a crítica à direção de Júlio Fogaça e à via da solução pacífica
para o problema político português. Em pleno consulado Khrutcheviano, as posições
de Cunhal colocavam-no mais do lado das teses chinesas do que das soviéticas e, por
isso, a necessidade de um certo equilíbrio entre a crítica ao desvio de direita em
Portugal e a defesa da linha da coexistência pacífica defendida para o movimento
comunista mundial pela União Soviética.
Em setembro de 1960, o PCP publica no Militante o primeiro documento
oficial em que é referido, ainda que indiretamente, o conflito sino-soviético, intitulado
Três Problemas de Atualidade, e que terá sido escrito por Álvaro Cunhal, afirmando
designadamente que a linha da “coexistência pacífica” permite “o prosseguimento
vitorioso da construção do comunismo e do socialismo, para a libertação dos povos
das colónias e dependentes, para o progresso do movimento operário internacional e
8
para a luta geral contra o imperialismo”. Ao mesmo tempo, critica explicitamente os
que defendem a via do conflito internacional, afirmando que este “levaria amplas
massas populares a desinteressarem-se da luta contra a corrida aos armamentos e a
aceitarem como fatalidade a política belicista quando a luta pela Paz é uma tarefa
primordial na hora presente”. O texto acaba por se revelar um exercício que oscilava
entre a possibilidade da transição ser pacífica e o reconhecimento que não se deve
afastar a hipótese de recorrer a meios violentos, uma vez que, no caso português, não
se perspetivava que o regime pudesse ser derrubado por via pacífica num curto espaço
de tempo: “Acreditar que a via pacífica para o derrubamento do fascismo é não só possível
como a mais provável, espalhar ideias acerca das vias legais e constitucionais para
derrubar um regime que nem sequer respeita a sua constituição e as suas leis, é
semear perigosas ilusões, diminuir a vontade combativa das massas populares à
passividade e ao oportunismo. A crença na desagregação inevitável do fascismo a
curto prazo, numa «desagregação irreversível do fascismo» favorece tais ilusões e
constitui um factor prejudicial para o desenvolvimento do movimento democrático e
popular”4.
A posição não era fácil. Tratava-se de compatibilizar a correção do desvio de
direita com o alinhamento com os soviéticos, aspeto absolutamente essencial para o
PCP se manter na sua esfera de influência. Por isso, o Partido Comunista participa na
Conferência de Moscovo em novembro/dezembro de 1960, e, em março de 1961,
divulga um documento sobre os resultados dessa Conferência em que reafirma a
fidelidade ao PCUS, sem que seja feita alguma referência ao PC da China. Sobre a via
para o derrube do regime, o documento admite a possibilidade da passagem ao
socialismo se poder verificar por via pacífica e parlamentar, mas salienta que em
Portugal ainda não estão definidas as condições dessa passagem, embora adiantasse
que essa possibilidade era praticamente impossível e que “as massas populares terão
de recorrer à violência a fim de destruir o aparelho estatal salazarista que se apoia
num forte aparelho repressivo e armado”5.
No ano seguinte, em 1961, Álvaro Cunhal saia do país e instalava-se em
Moscovo e as suas posições passaram a refletir uma maior aproximação à União
Soviética. Em outubro desse ano, Cunhal participou no XXII Congresso do PCUS e
no seu discurso fez um rasgado elogio ao PCUS e à URSS, reafirmando o apoio do
PCP à política externa da União Soviética. De acordo com Pacheco Pereira, “a razão
pela qual Cunhal faz tão rasgado elogio às posições soviéticas não pode ser dissociada
das dúvidas existentes no movimento comunista mundial pró-soviético da sua
ortodoxia, e do «Krutchevismo» do PCP”(PEREIRA, 2008, p. 145). Estas dúvidas
4 A COMISSÃO POLÍTICA DO COMITÉ CENTRAL DO PARTIDO COMUNISTA
PORTUGUÊS, “Três Problemas da Actualidade”, O Militante, nº 105, Setembro de 1960.
5 O COMITÉ CENTRAL DO PARTIDO COMUNISTA PORTUGUÊS, “Sobre a Conferência
dos 81 Partidos Comunistas e Operários em Moscovo”, Março de 1961, in, PEREIRA, 2008, p. 145
9
eram reais e o facto de Álvaro Cunhal ter visto recusada a publicação de textos seus
em revistas do movimento comunista internacional parecem confirmá-las.
No entanto, em janeiro de 1963, o PCP aprovava a primeira declaração crítica
em relação ao PC da China e durante esse ano as posições anti-chinesas foram
crescendo de tom. Francisco Martins Rodrigues, membro do Comité Central e da
Comissão Executiva do PCP, surgirá como o primeiro “pró-chinês” dentro do Partido
Comunista Português, tendo as suas posições evoluído rapidamente, entrando em
clara divergência com a orientação do partido. Francisco Martins Rodrigues vai pôr
em causa a linha do levantamento nacional, colocando-se numa posição de
discordância com Álvaro Cunhal. Na reunião do Comité Central de dezembro de 1962
terá defendido a necessidade de o partido construir uma política baseada na análise
marxista-leninista da sociedade portuguesa e terá questionado, juntamente com outros
elementos, a posição do PCP quanto às divergências no seio do movimento comunista
internacional6. Poucas semanas depois, em janeiro de 1963, numa carta enviada ao
Comité Central, insurgia-se contra o facto de ter tomado conhecimento de um
documento assinado por aquele órgão de direção, de que ele próprio fazia parte, pela
rádio, pronunciando-se sobre as divergências no movimento comunista internacional.
Nesta carta, discordava dos ataques públicos aos partidos chinês e albanês e
condenava o seguidismo do PCP em relação ao PCUS7. O Secretariado do PCP
responde a esta carta declarando que Martins Rodrigues se estava a colocar numa
posição oposta à linha do partido mas que ainda poderia emendar as suas posições,
pelo que lhe é proposta uma conversa com o secretário-geral.
A reunião do Comité Central, de agosto de 1963, realizada em Moscovo, era o
momento ideal para se discutir a divergência que se vinha travando entre Martins
Rodrigues e o Secretariado do PCP. Nesta reunião, Francisco Martins Rodrigues é
confrontado com um informe de Álvaro Cunhal intitulado “A Situação no Movimento
Comunista Internacional”, no qual se declara que a unidade no seio do movimento
comunista internacional é precária e a culpa é do Partido Comunista da China que
combate a linha política orientadora da União Soviética levando a cabo uma atividade
cisionista, seguindo-se a reafirmação do apoio à linha da coexistência pacífica: “A coexistência pacífica é um factor do desenvolvimento de todo o processo
revolucionário mundial, porque nas condições de coexistência pacífica, prossegue
vitoriosamente a construção do comunismo e do socialismo, torna-se cada vez mais
poderosa e influente a grande criação e fortaleza da classe operária internacional que
é o campo socialista, desequilibram-se cada vez mais as forças mundiais em favor do
socialismo e desenvolve-se favoravelmente a luta da classe operária nos países
capitalistas contra a reacção, contra o fascismo, pela democracia, pelo socialismo e a
6 IAN/TT-PIDE/DGS – Pr. 2163 SC CI(2) – Informação, 5 de Março de 1966, fls. 271
7 [CAMPOS], Francisco Martins Rodrigues, A Declaração do Comité Central de 19/1. Carta ao
CC, 30 de Janeiro de 1963, in MADEIRA, 2015, p. 58-59
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luta dos povos ainda submetidos ao jugo colonial pela sua independência” 8.
Nas críticas que faz ao Partido Comunista da China, Cunhal acusa-o de não
reconhecer a autoridade e o prestígio do PCUS, de ter uma posição dogmática e
sectária e afirma: “discordamos dos nossos camaradas chineses, criticamos a sua
atuação e orientação, mas continuamos a considerar o PCC como um partido irmão do
nosso, um grande e glorioso partido dum grande e glorioso povo”, embora reconheça
que será difícil restabelecer a unidade ideológica no movimento comunista9.
Cunhal percebia o terreno frágil em que se movimentava, uma vez que as
posições do PCP pareciam pôr em causa a solução pacífica com a defesa da luta
armada, por isso, procurou compatibilizar a posição do PCUS com a do PCP,
distinguindo a luta internacional do socialismo das condições nacionais das lutas
internas de cada país, procurando mostrar o seu apoio ao PCUS sem abdicar da defesa
da luta armada no caso português.
O Rumo à Vitória e a via do “levantamento nacional armado”
A questão do uso da violência para derrubar o regime passaria, no entanto, a
ser debatida no exterior, no seio da Frente Patriótica de Libertação Nacional (FPLN).
Logo na conferência fundadora da FPLN10
, realizada em Roma, de 28 a 30 de
dezembro de 1962, Álvaro Cunhal reconheceu a necessidade da violência, mas no seu
entender, esta poderia resultar de um golpe militar, de um movimento de massas
prolongado, ou de um movimento militar com o apoio de grupos civis armados. A
questão que colocava era de natureza estratégica, relacionando-se com a forma de
amadurecer e radicalizar a situação, aplicando a cada momento as formas de ação
mais adequada, pois o recurso prematuro à violência poderia provocar um recuo do
movimento de massas. Cunhal mostrou-se favorável à criação de um grupo armado da
oposição distinto de um exército popular, do qual discordava. Defendeu a necessidade
de preparar grupos especializados em ações de sabotagem de infraestruturas do
abastecimento de águas, esgotos, apropriação de automóveis, mas também defendeu a
8 “A Situação no Movimento Comunista Internacional”, Avante!, nº 334, Outubro de 1963, p. 1
9 “A Situação no Movimento Comunista Internacional”, Avante!, nº 334, Outubro de 1963, p. 3
10 No rescaldo das eleições presidenciais de 1958 iniciaram-se movimentações oposicionistas
que visavam a criação de uma forte organização unitária capaz de dar continuidade ao enorme
entusiasmo popular que pautara toda a campanha presidencial, em especial em torno da candidatura de
Humberto Delgado. A saída para o exílio de um conjunto de quadros democratas diretamente
empenhados neste processo, dinamizou a oposição no exterior e deu-lhe um progressivo protagonismo,
sobretudo a partir de 1961. Foi esta renovada frente externa que tomou a iniciativa de constituir um
organismo executivo no estrangeiro, que se dedicasse, essencialmente, à representação dos democratas
portugueses e ao trabalho de propaganda. O encontro teve lugar em Roma, nos últimos dias de 1962, e
dele resultou a criação da Frente Patriótica de Libertação Nacional (FPLN), o nome atribuído ao
movimento unitário oposicionista existente no interior, que teria a partir de então uma base de trabalho
na Argélia e que funcionou até ao 25 de Abril de 1974. Sobre a constituição da FPLN Cf: MARTINS,
2013
11
infiltração de militantes em postos militares importantes, nas cadeias e na hierarquia
militar (Cf: MARTINS, 2013)
Se o levantamento nacional implicava grandes movimentações sociais e
políticas e a desagregação dos aparelhos militares e repressivos, havia, por um lado,
que incentivar as lutas de massas e, por outro, criar uma organização militar
revolucionária nas Forças Armadas que pudesse enquadrar essa desagregação e
“intervir de forma decisiva numa situação de crise revolucionária”11
.
Entre 1963 e os primeiros meses de 1964, Álvaro Cunhal dedicou-se a
preparar o “Rumo à Vitória”, que iria ser o seu mais importante contributo teórico e
político à linha do PCP nos anos de clandestinidade. De acordo com Pacheco Pereira,
o “Rumo à Vitória” é “um caso excecional na história do marxismo português, sendo
até à data a única tentativa global de fornecer ao mesmo tempo uma análise
“concreta” da situação nacional e uma formulação de uma linha tática e estratégica
para o PCP” (PEREIRA, 2015, p. 307). Este documento irá marcar todas as
discussões no seio da oposição portuguesa até ao 25 de abril de 1974 e forneceu um
quadro interpretativo da sequência de eventos que o PCP considerava que se deviam
seguir ao derrube da ditadura, que irá marcar o pós-25 de abril.
O “Rumo à Vitória” define a posição do PCP até ao 25 de abril de 1974 e
institui a via do levantamento nacional. É aliás no capítulo intitulado “Levantamento
nacional, perspetivas revolucionárias do movimento antifascista”, que é fornecida a
mais detalhada e consistente formulação da forma como o PCP entendia que o regime
ia cair.
Nestes anos (62-64) havia um sentimento, inclusivamente dentro do PCP, que
o derrube do regime pressupunha algum tipo de violência. A direção do Partido
Comunista estava atenta aos apelos dos pró-chineses no interior do partido, no meio
estudantil e no exílio. Além disso, a Revolução Cubana era entendida por vários
funcionários como uma necessidade de ação imediata, e muitos defendiam uma linha
oposta à solução pacífica. Esta nova linha devia incluir qualquer forma de violência
revolucionária. É a este apelo que o “Rumo à Vitória” pretende responder, não
negando o uso da violência, mas, moderando a sua urgência.
Cunhal refere a necessidade do recurso à violência, embora não recuse
liminarmente a possibilidade de haver uma transição pacífica, considerando, no
entanto, que esta seria quase impossível dada a natureza da ditadura. Pela primeira
vez, ele considera que a ditadura deverá ser derrubada através de uma “insurreição
popular armada”. Todavia, sublinha que o crucial numa insurreição é a escolha do
“momento” em que esta irá acontecer, e, para Cunhal, este ainda não tinha chegado:
11 Comité Central do PCP, “Perspectivas do Desenvolvimento da Luta Nacional contra a
Ditadura Fascista”, Edições Avante!, Janeiro de 1963, p. 2
12
“O Partido Comunista insiste: no momento presente não se vive em Portugal uma
situação revolucionária, não estão criadas as condições para a insurreição”
(CUNHAL, 1974, p. 177).
Essas condições assentavam numa “organização militar revolucionária” forte,
construída através de um trabalho sistemático no seio das Forças Armadas, que devia
apoiar o “movimento popular”. Sem a “organização militar revolucionária” não seria
possível fazer a insurreição. Além disso, Cunhal também considerava que o
“movimento de massas” não se tinha radicalizado o suficiente para enveredar pela luta
armada: “Mas a decisão de lançar a luta insurreccional, de lançar o assalto final pelo poder,
surge num dia e num momento em que a luta popular adquiriu já agudeza extrema,
em que as massas mostram, na sua própria acção política conduzida pela vanguarda,
que estão dispostas a dar a vida pela revolução, em que as forças do inimigo vacilam
e se decompõem” (CUNHAL, 1974, p. 177).
A linha de pensamento do PCP é, portanto, de defesa da luta armada, mas de
questionamento permanente do “momento” até 1970, quando decide lançar as ações
armadas.
Das “ações especiais” à luta armada
Até ao 25 de abril de 1974 as discussões no seio das esquerdas portuguesas
irão fazer-se em torno da questão da luta armada. Apesar das críticas dos grupos
marxistas-leninista de que a defesa da insurreição armada era, apenas, uma resposta à
pressão por eles exercida, uma forma de o PCP parecer revolucionário continuando a
ser reformista, a verdade é que Cunhal passou os anos seguintes a discutir a violência
revolucionária e em 1970 dá ordens para que a Ação Revolucionária Armada (ARA)
inicie a luta armada.
Aliás, a crítica dos grupos marxistas-leninistas parece esquecer que, em 1964,
já o PCP, sob a direção de Cunhal, estava a preparar uma organização para realizar
ações violenta, que acabaram por surgir mais tarde, mas que datam na sua conceção e
tentativa de materialização nesta época12
. Cunhal está, desde a fuga da cadeia, em
janeiro de 1960, a preparar o desencadeamento de ações armadas. Aliás, no Rumo à
Vitória ele explica que tipo de ações o partido deve desencadear: “O agravamento da crise do regime fascista, o desenvolvimento da luta política de
massas, a radicalização destas, a brutalidade do aparelho repressivo e a evolução da
guerra colonial, colocam ao Partido uma tarefa nova: a tarefa de organizar acções de
autodefesa das massas, acções que visem atingir mais directamente o aparelho militar
da guerra colonial, que criem dificuldades ao aparelho repressivo, que dificultem
a propaganda fascista e dêem novos aspectos à agitação e propaganda antifascista.A
execução de tais acções não pode ser deixada à espontaneidade. Tem de ser
encarada no terreno prático” (CUNHAL, 1974, p. 230-231).
12 Raimundo Narciso, “Álvaro Cunhal esteve na origem da organização [ARA]”, in Expresso,
11 de Novembro de 2000
13
Em abril e maio de 1964, Álvaro Cunhal visitou Cuba com o pretexto de
assistir ao desfile do Primeiro de Maio. No entanto, os objetivos de Cunhal estavam
centrados no apoio de Cuba ao PCP para ajudar a montar uma organização de luta
armada e na possibilidade de militantes comunistas portugueses poderem ir receber
treino militar a este país.
Nesta altura a organização das “ações especiais” já estava a decorrer e Álvaro
Cunhal acompanha de perto todo o processo. Rogério de Carvalho, membro do
Comité Central, tinha ficado encarregado de montar a estrutura e tinha começado a
recrutar os primeiros elementos que viriam a constituir o núcleo original das “ações
especiais”. Nesse sentido, é contactado Raimundo Narciso, um jovem estudante do
Instituto Superior Técnico, militante do partido na legalidade, que vinha
desenvolvendo atividade política regular, tendo assumido responsabilidades no setor
estudantil universitário e, depois, em organizações unitárias com africanos das
colónias, com grupos de católicos antifascistas, no setor militar e nas Juntas de Ação
Patrióticas. De acordo com Raimundo Narciso, o que o terá convencido a passar à
clandestinidade terá sido o argumento de que o partido tinha decidido começar a
preparar a luta armada e que ele ia fazer parte da organização que estava a ser
constituída para a levar a cabo as primeiras ações (NARCISO, 2000, P. 177).
Nos inícios de 1965, Rogério de Carvalho e Raimundo Narciso foram
frequentar um curso de treino militar em Cuba, com passagem prévia pela União
Soviética onde receberiam orientações diretas de Álvaro Cunhal.
Raimundo Narciso chegou a Moscovo em princípios de janeiro de 1965,
sendo recebido por Álvaro Cunhal e Francisco Miguel, dirigente comunista, membro
do Comité Central desde 1964. Rogério de Carvalho chegou três dias depois à capital
soviética. Numa reunião entre os dois únicos militantes das “ações especiais” e o
Secretário-Geral do PCP ficou definido o que se pretendia com a nova organização.
De acordo com Raimundo Narciso, a intenção do PCP era criar uma estrutura
paralela, ainda que politicamente tutelada e apoiada, o que significava que o partido
se desobrigava de uma responsabilidade direta e assumida das ações a desencadear13
.
O início das “ações especiais” pressupunha treino e conhecimentos militares
que o PCP não podia facultar no interior do país. Primeiro, pela situação de
clandestinidade a que estava sujeito; depois, porque desde os primeiros anos da
ditadura que o partido não enveredava por ações armadas, pelo que não tinha quadros
formados e capazes para realizar este tipo de ações. O treino teria então de ser
realizado num país socialista que dispusesse de campos de treino, de cursos militares
organizados e que recebesse quadros de outros países. A escolha recairia sobre Cuba,
símbolo da revolução socialista para uma geração mais jovem e que dava apoio
13 Entrevista Raimundo Narciso, Odivelas, 10 de Outubro de 2012
14
militar a organizações que desejassem fazer a revolução nos seus países, ministrando
cursos de guerrilha em meio urbano e rural, mais conformes, portanto, ao que se
pretenderia implantar em Portugal.
Raimundo Narciso assegura que ele e Rogério de Carvalho viajaram de
Moscovo para Cuba, pela rota de Murmansk, para lá do Círculo Polar Ártico,
descendo o Atlântico até aos Trópicos, uma vez que o avião soviético em que
viajavam não tinha autorização para sobrevoar os países da Europa Ocidental. Os dois
terão ficado três meses e meio em Cuba, instalados numa mansão em El Vedado,
Havana, e recebido um curso de manejo de armas e explosivos e de técnicas de
guerrilha. Este curso serviu, essencialmente, de treino, pois ambos já tinham
manejado armas e explosivos durante o serviço militar em Portugal. Regressaram
depois a Moscovo, a tempo de participar nas cerimónias comemorativas do vigésimo
aniversário do fim da Segunda Guerra Mundial. Daqui partiram para Portugal, onde
entraram clandestinamente, “a salto”, pela região fronteiriça de Chaves, com o apoio
do aparelho de fronteira do PCP (NARCISO, 2000, p. 107-163)
Ao todo, ocorreram quatro cursos de carácter militar, que correspondem a
quatro levas de militantes: Rogério de Carvalho e Raimundo Narciso (Cuba, 1965);
José Augusto e Moura Pimenta, Fernando Cruzeiro, Carou Ferreira (Cuba, 1965);
Francisco Miguel e “Almendra” (Moscovo, 1968); Jaime Serra, Carlos Coutinho,
Ângelo de Sousa, António Eusébio (URSS, 1971-1972).
Os primeiros abastecimentos de armamento e material explosivo da futura
ARA vieram de dentro do exército português, desviados por um oficial ligado ao PCP
(NARCISO, 2000, p. 167). Muito do armamento e material explosivo das
organizações de luta armada provinham do exército português, desviadas por
militantes ou simpatizantes dessas organizações ou, simplesmente, por militares que
estavam contra a guerra e que achavam que um dia aquele material podia ser útil. De
acordo com Raimundo Narciso “A guerra em África foi uma verdadeira escola de
formação de luta armada contra o fascismo e a guerra colonial. Formação técnica mas
principalmente política e psicológica. A guerra colonial fez amadurecer muitos jovens
para a luta armada contra o marcelismo” (NARCISO, 2000, p. 169).
Por sua vez, os produtos químicos necessários para fabricar explosivos eram
conseguidos através de “Mayer” [pseudónimo], caseiro de uma família ligada ao
regime que conseguia adquirir produtos químicos de venda controlada, como ácido
sulfúrico concentrado, como sendo a pedido do patrão.
Em cinco meses, o organismo “ações especiais” já dispunha de um conjunto
de quadros preparados para iniciar as primeiras ações, recrutados por Rogério de
Carvalho e Raimundo Narciso ou indicados pelo Partido Comunista; dispunha
também de instalações para depositar o material, nomeadamente, uma vivenda isolada
15
em Mafra que servia de paiol, uma garagem alugada para transbordo e guarda de
materiais e três arrecadações em Lisboa; tinha conseguido obter explosivos de alta
potência e armas através de militares ligados ao Partido Comunista; tinha elaborado
uma lista de objetivos potenciais e procedido ao reconhecimento de alguns deles
(NARCISO, 2000, p. 173).
Em outubro de 1965, a PIDE encetou uma vaga de prisões, tendo sido detidos
vários militantes do Partido Comunista, entre os quais Rogério de Carvalho, o que
levou a uma primeira paragem nas atividades da organização. Aliás, até 1970, o PCP
irá abortar várias vezes as “ações especiais”, por este mesmo motivo. Posteriormente,
a direção deste organismo irá ser da responsabilidade de Ângelo Veloso (1967),
Francisco Miguel (outubro de 1968) e Jaime Serra (junho de 1970), todos membros
destacados do Comité Central, com provas dadas na luta contra a ditadura e
defensores da luta armada.
A organização das “ações especiais”, e mais tarde a ARA, tinham como alvo
definidos a luta contra a guerra colonial, atacar o aparelho repressivo e o
imperialismo. Contudo, foi também realizada uma ação de “expropriação”, ou seja, o
assalto ao Banco Totta & Açores, no Barreiro, no Verão de 1965, para conseguir
fundos destinados a financiar as ações armadas.
O aparecimento da ARA foi uma excepção no contexto europeu. Nenhum
outro Partido Comunista decidiu enveredar pela luta armada, mesmo o Partido
Comunista Espanhol que estava em condições similares.
Quando a ARA surgiu tinha uma cobertura na luta contra a Guerra Colonial e
de solidariedade com os movimentos de libertação. Porém, apesar das suas ações
visarem, sobretudo, o aparelho e o esforço de guerra, houve também ações contra o
aparelho repressivo (as bombas na Escola Técnica da PIDE) e contra o imperialismo
(o ataque ao Centro Cultural Americano).
Álvaro Cunhal criou esta organização, seguiu-a com atenção e sempre a
apoiou. As divergências de Cunhal com a defesa da luta armada pelos grupos de
esquerda radical são táticas e não estratégicas.
6. A ARA
Entre 1968 e 1970, o organismo de “ações especiais” conseguiu contar com
um núcleo de operacionais de aproximadamente 42 pessoas, relativamente estável e
bem preparado militarmente, com estruturas e um paiol seguros, e tinham já
inclusivamente algumas ações planificadas e prontas a ser executadas. Também
durante este período fizeram o reconhecimento de locais e organizaram apoios
logísticos necessários às ações. Em 1968, vieram para o interior Francisco Miguel e
“Almendra”. Em julho de 1970, Jaime Serra, membro do Comité Central, foi
16
destacado para a ARA. A sua direção estava assim constituída: Jaime Serra, Francisco
Miguel e Raimundo Narciso. A ligação ao Partido Comunista era feita por Jaime Serra
através de Joaquim Gomes, membro da Comissão Executiva.
O Comando Central da ARA era responsável pela definição dos alvos,
preparação e execução das ações e pela seleção, controlo e acompanhamento dos
quadros operacionais e logísticos que militavam na organização. Desta forma, a ARA
tinha uma estrutura autónoma do Partido Comunista, embora diretamente dependente
da sua Comissão Executiva, atuando em consonância com a linha política e objetivos
do partido, e recebendo apoio financeiro, material e quadros.
A maioria dos quadros das “ações especiais” estavam ligados ao PCP e era o
partido que indicava o nome dos elementos que deviam ser contactados para
integrarem este organismo. As “ações especiais” eram um organismo ultra-clandestino
dentro do partido, de que apenas alguns elementos da direção e do Comité Central
tinham conhecimento, para onde eram enviados militantes que se sabia que defendiam
a luta armada e que poderiam causar problemas noutros organismos devido às suas
ideias mais radicais sobre a forma de luta contra o regime: “Não podiam meter nisto quadros recentes ou pessoas que não dessem garantias.
Esses quadros, em geral, não vinham e o partido tinha a tendência de enviar
quadros que não queriam noutros organismos. Geralmente, não enviavam os bons
quadros que eram necessários noutros organismos. Eram enviados elementos que
tinham propensões para as acções especiais e que para serem enquadrados e não
provocarem problemas noutros organismos eram enviados para aqui. As pessoas
que vinham para a ARA tinham de estar de acordo com as acções armadas”14
.
Também houve operacionais que foram recrutados através de contactos
individuais efectuados pela direção das “ações especiais” e da ARA. Estes eram
geralmente antigos amigos e companheiros de estudos ou trabalho dos seus membros,
em quem estes confiavam, e que sabiam que defendiam esta forma de luta.
Nos quadros da ARA havia, contudo, elementos que não estavam ligados ao
PCP. Estes quadros faziam sobretudo ações de reconhecimento de objetivos e apoio
logístico, não participando diretamente nas operações. Todavia, estavam inseridos em
organismos (células), compostos, cada um, por três pessoas, que se reuniam com a
periodicidade que cada organismo achasse adequada. Os organismos não tinham
conhecimento uns dos outros e Raimundo Narciso refere que nunca chegou a
conhecer os organismos controlados por Jaime Serra e Francisco Miguel, assim como
eles não conheciam os seus15
. A compartimentação era uma exigência de uma
organização revolucionária e clandestina em que cada um só devia conhecer aquilo
que era necessário para a realização das suas tarefas. Assim, podemos dizer que a
ARA era uma organização altamente disciplinada, estando os seus membros
14 Entrevista Raimundo Narciso, Odivelas, 10 de Outubro de 2012
15 Entrevista Raimundo Narciso, Odivelas, 10 de Outubro de 2012
17
perfeitamente conscientes dos riscos que corriam ao estarem inseridos na organização
e ao participarem na realização de ações armadas.
Na reunião de maio de 1970 do Comité Central do PCP a questão da luta
armada foi novamente discutida, como consta do “Documento Preparatório da
Reunião”, elaborado pelo Secretariado, e distribuído para estudo aos membros do
Comité Central. Jaime Serra que não estaria presente na reunião do Comité Central,
por questões relacionadas com a organização do trabalho da Comissão Executiva, de
que fazia parte, enviou uma carta ao Comité Central onde abordava a questão das
“ações especiais”, propondo: “1º – Que o problema das “acções especiais” fosse de novo discutido pelo Comité
Central e considerado uma tarefa prioritária;
2º – Que de acordo com esta conclusão fossem tomadas medidas apropriadas,
entendido como tal a nomeação de um membro do Comité Central que se
considerasse reunir as condições necessárias para, em regime prioritário, com
prejuízo de outras actividades, ficar com a tarefa fundamental de, num prazo
relativamente curto, colocar este aparelho em estado operacional. (SERRA, 1999, p.
27)”
Em outubro de 1970, o PCP deu finalmente orientações para as “ações
especiais” avançassem. Para tal, muito contribuiu o clima de radicalização que se
fazia sentir na sociedade portuguesa, principalmente nos meios mais jovens e
estudantis; as primeiras tentativas de luta armada por parte da Liga de União e Ação
Revolucionária (LUAR); o aparecimento de vários grupos de esquerda radical que
defendiam o recurso à luta armada; bem como o eminente afastamento do PCP da
FPLN e da Junta Revolucionária Portuguesa; e a constituição das Brigadas
Revolucionárias (BR). Perante este clima, ou o PCP se antecipava ou era ultrapassado
pela esquerda radical. Estava na hora de passar à ação.
6.1. As ações armadas
A primeira ação a ser realizada, a 26 de outubro de 1970, foi a colocação de
engenhos explosivos no navio Cunene, que participava no esforço de guerra. A
explosão causou vários danos no navio, que tinha data de partida para África prevista
para o dia 4 de novembro. O Comando Central da ARA reuniu-se no dia seguinte ao
atentado para proceder ao balanço da ação e elaborou o comunicado, que seria lido
por Jaime Serra, para a Reuter, France Press e United Press. Neste comunicado, a
ARA reivindicava o ataque ao Cunene e inseria-o dentro do contexto da luta contra a
guerra colonial, mas ressalvava que não estava contra os soldados e oficiais
portugueses mas sim a favor da luta dos povos das colónias: “[...] Em virtude desta acção ficou alagado e imobilizado na doca de Alcântara, em
Lisboa, com um grande rombo, o navio CUNENE [maiúsculas no original], de 16000
toneladas que é utilizado para alimentar a guerra colonial.O Comando Central da
ACÇÃO REVOLUCIONÁRIA ARMADA [maiúsculas no original] declara que ao
atacarmos a máquina de guerra que alimenta a guerra colonial não estamos contra os
18
soldados, os sargentos e oficiais honrados, forçados a fazer uma guerra que odeiam.
Estamos, sim, contra a continuação desta criminosa guerra de opressão colonial que
se tornou um flagelo para os povos de Angola, Guiné e Moçambique e num cancro
que corrói a nação, que queima vidas e bens do povo português para servir os
interesses de um punhado de monopolistas sem pátria. Estamos solidários com a justa
luta libertadora dos povos coloniais”16
.
Ao mesmo tempo, reafirmava-se, no comunicado, a linha política defendida
pelo Partido Comunista Português de que a via para o derrube do fascismo era a luta
de massas e inseriam as ações da ARA dentro desta via afirmando: “A ACÇÃO REVOLUCIONÁRIA ARMADA [maiúsculas no original] propõe-se
conduzir a sua acção revolucionária no quadro da luta geral do povo português contra
a ditadura fascista e pela conquista da liberdade. Deste modo, a ARA não se desliga
da luta revolucionária das massas, da luta dos operários e camponeses, da luta dos
estudantes e intelectuais revolucionários contra a política fascista do governo de
Marcelo Caetano; antes se propõe secundá-la até chegar à insurreição popular armada
que destruirá para sempre a ditadura fascista”17
.
Nas reuniões do Comando Central que se seguiram à ação do Cunene foram
escolhidos novos alvos da organização. Uma das hipóteses era colocar uma bomba na
sede da PIDE/DGS. Porém, consideraram que a ideia não podia ser posta em prática
porque o local era praticamente inacessível e seria quase impossível atingir a sede
sem provocar vítimas. Foi então avançada a hipótese da Escola Técnica da PIDE, que
permitiria à ARA atingir o regime e os seus aparelhos repressivos. Todavia, no curso
da discussão começou a ser equacionada a hipótese de atingirem vários alvos e
objetivos em simultâneo. Começou a ganhar forma uma ação que atingisse o
imperialismo, simbolizado pelos Estados Unidos da América, daí que tivesse sido
avançada a ideia de atacar o Centro Cultural dos Estados Unidos, na Avenida Duque
de Loulé, em Lisboa, cuja segurança estava a cargo da PSP. Em terceiro lugar,
escolheram um alvo militar. Como tinham informação de que o navio Niassa estava
prestes a partir para as colónias com equipamento militar fixaram esse alvo
(NARCISO, 2000, p. 93). Estas três operações, a desencadear simultaneamente,
simbolizavam três frentes de luta política: contra a repressão, contra a guerra colonial
e contra o imperialismo.
Uma das maiores operações da ARA foi a sabotagem na Base aérea de Tancos,
na madrugada de 8 de março de 1971, que implicou a entrada de um comando
operacional na base, o que só foi possível com a ajuda de um soldado que ali cumpria
serviço militar. Esta operação, bastante complexa na sua elaboração e execução
técnica, saldou-se pela destruição de dezenas de aviões e helicópteros militares.
No comunicado divulgado à imprensa, a ARA sublinhou a complexidade da
operação, a coragem dos operacionais do comando que a executou e o êxito de que ela
16 IANT/TT – PIDE/DGS – Pr. 16042 SC CI(2), NT: 7761 - “Comunicado da ARA”, 26 de
outubro de 1970, pasta 1, fls. 1
17 IANT/TT – PIDE/DGS – Pr. 16042 SC CI(2), NT: 7761 - “Comunicado da ARA”, 26 de
outubro de 1970, pasta 1, fls. 1
19
se revestiu. Insere-a também na luta do povo português contra a guerra colonial e
salienta que “para o seu êxito contribuiu decisivamente o sentimento anticolonialista
cada vez mais predominante entre os soldados portugueses, filhos do povo
fardados”18
.
Só depois desta operação é que a PIDE/DGS passou a associar a ARA ao PCP,
uma vez que uma operação desta envergadura e complexidade só poderia ser levada a
cabo por uma organização bem estruturada e com um aparelho logístico e técnico
eficaz. E, na perspetiva da polícia, só o PCP é que disporia de estruturas, operacionais
e implantação para conduzir com êxito uma operação tão complexa como esta19
.
Depois desta operação a ARA recebeu as felicitações formais do Comité
Central do PCP que saudava o aparecimento desta como “um importante
acontecimento político na vida política nacional”, reafirmava a “justeza política” das
ações contra a guerra colonial, o fascismo e o imperialismo, e considerava que estas
criaram “uma onda de entusiasmo e deu maior confiança à luta popular no caminho da
insurreição armada”20
.
A ARA recebeu também uma felicitação pessoal por parte do Secretário-Geral
do PCP, Álvaro Cunhal, que considerava que a ação em Tancos havia tido “elevado
significado e projeção política” mas, aproveitando também a oportunidade para dar
algumas orientações gerais à organização numa manifestação clara sobre quem a
dirigia efetivamente do ponto de vista político. “A defesa da vossa organização; a justa avaliação da conjuntura política e do efeito de
cada acção a empreender; o esforço para se ser eficiente, tendo sempre em conta
a força real de que se dispõe e a força e dispositivos do inimigo; a iniciativa e
audácia, que se não confundam de forma alguma com impaciência e precipitação; o
esforço para tirar o máximo partido da surpresa e para melhor colher o inimigo onde
ele possa estar desprevenido; um cuidadoso trabalho para atingir os objectivos sem
deixar rasto, nem pistas - tais nos parecem ser algumas da normas essenciais para a
continuidade e o progresso da vossa acção”21
.
Mas, Álvaro Cunhal não deixava de ressalvar que ainda era muito reduzida a
experiência do movimento revolucionário português nesta forma de luta e que a ARA
deveria retirar a máxima experiência de todas as ações de forma a aperfeiçoar as
atividades futuras22
.
No dia 3 de junho de 1971, realizava-se em Lisboa uma reunião do Conselho
do Atlântico Norte que traria a Portugal vários ministros de países membros da
NATO, bem como centenas de jornalistas internacionais para a cobertura da reunião.
18 IANT/TT – PIDE/DGS – Pr. 16042 SC CI(2), NT: 7761 - “Comunicado da ARA. Sabotagem
à Base Aérea de Tancos” , 8 de Março de 1971, pasta 1, fls 14-15
19 IAN/TT-PIDE/DGS, Pr. 18327 SC CI(2), UI: 7814 – Relatório da PIDE intitulado “As
últimas três explosões”, 15 de Novembro de 1971, p. 22 a 26
20 Saudação do Comité Central do PCP ao Comando Central da ARA, in SERRA, 1999, p. 74
21 Saudação de Álvaro Cunhal ao Comando Central da ARA, in SERRA, 1999, p. 75-76
22 Saudação de Álvaro Cunhal ao Comando Central da ARA, in SERRA, 1999, p. 75-76
20
Marcelo Caetano tinha anunciado com muita pompa a sua realização, pois era a
primeira vez em muitos anos que se realizava em Lisboa. Perante a importância e a
repercussão internacional desta reunião, o Comando Central da ARA decidiu realizar
uma ação que chamasse a atenção da comunicação social internacional para o
problema da guerra colonial e para a luta da oposição portuguesa.
A hipótese de uma ação que implicasse um corte nas telecomunicações já tinha
sido equacionada anteriormente mas ainda não tinha havido oportunidade de a
realizar. A reunião da NATO parecia ser a oportunidade perfeita para o efeito. Foram
colocadas cargas explosivas na Central de Telecomunicações, no Largo D. Luís I,
verificando-se uma grande explosão que abalou o centro de Lisboa, interrompendo as
comunicações durante seis horas. Lisboa ficou isolada do resto do país e do mundo e a
explosão causou grande embaraço ao regime que, nesse dia, recebia os seus parceiros
da NATO. No dia seguinte, a ação da ARA era noticiada um pouco por todo o mundo
e a cobertura mediática à luta da oposição portuguesa adquiria projeção internacional,
com notícias desta ação a serem publicadas no jornal francês Le Figaro e no jornal
inglês The Guardian e transmitidas pela emissão de rádio em português da BBC e da
Rádio da Alemanha Ocidental. (SERRA, 1999, p. 83-86)
Nos planos da ARA para essa noite (3 de junho) estava ainda o corte da
energia elétrica em Lisboa, com o objetivo de impedir a transmissão pela Rádio e
Televisão do discurso de Marcelo Caetano na Assembleia Nacional. Esta operação
acabou por não correr tão bem como o pretendido, pois as cargas explosivas não
foram suficientes. Mesmo assim, conseguiram perturbar a rede elétrica e a corrente
faltou em algumas regiões de Lisboa, incluindo no Palácio da Ajuda, local onde
decorreria a reunião da NATO (NARCISO, 2000, p. 209).
No seu comunicado a ARA refere que estas ações foram uma manifestação de
protesto contra a reunião do Conselho Ministerial da NATO, que, “além de uma
manifestação belicista e imperialista”, demonstrava também o “apoio moral e político
ao governo fascista e colonialista”. A ARA considerava também que esta reunião era
uma provocação ao povo português “privado há longos anos das mais elementares
liberdades democráticas” que a NATO afirmava defender. No comunicado é
igualmente analisada a repercussão das ações, que teriam causado “a maior confusão
e desorientação nos meios afetos à reunião da NATO, assim como entre as autoridades
fascistas”, sublinhando que “Todos os serviços da reunião foram seriamente
afectados”23
.
A 2 de outubro de 1971, ocorreu um assalto a uma pedreira na região de
Loures com o objecivo de desviar material explosivo. Esta foi a única ação do género
23 IANT/TT – PIDE/DGS – Pr. 16042 SC CI(2), NT: 7761 - “Comunicado da ARA”, 4 de Junho
de 1971, pasta 1
21
perpetrada pela ARA. A organização estava a ficar com poucos explosivos e tornava-
se cada vez mais difícil obter nos quartéis cargas de alta potência, como trotil e
plástico, pois a vigilância nos quartéis tinha sido aumentada devidos aos atentados dos
últimos meses, sendo que a organização tinha sempre desviado esse material dos
quartéis, por intermédio de militares afetos ao PCP ou por desertores24
.
A inauguração das novas instalações do Quartel-General da NATO, em Oeiras,
em que ia ficar alojado o Comando da NATO para a região Ibero-Atlântica, tinha sido
anunciada para 29 de outubro de 1971. Era aí que passaria a funcionar um sofisticado
centro de comunicações para comando e controlo do Atlântico Norte, bem como um
sistema de comunicações para todos os outros quartéis da NATO, para navios, aviões
e para o Comando Supremo do Atlântico Norte, em Norfolk, nos Estados Unidos.
A ARA considerava que a instalação deste Quartel do Comiberlant em
Portugal era um ato de provocação e uma prova da colaboração dos países da NATO
com a ditadura portuguesa e a guerra colonial. Realizar um ataque a este Quartel
voltava a ter uma enorme carga simbólica, pois denunciaria que os portugueses não
desejavam a instalação da NATO no seu país e chamaria mais uma vez a atenção da
comunidade internacional para os problemas políticos portugueses dada a presença da
comunicação social estrangeira no ato inaugural25
.
A violenta explosão causou uma grande destruição no Quartel do Comiberlant.
Caiu parte da fachada, portas, janelas e partes de parede; ficou destruído muito
mobiliário e aparelhos eletrónicos. Segundo Raimundo Narciso, nada disto foi
noticiado nos jornais, pois a censura proibiu qualquer notícia relacionada com a
explosão26
.
Como a cerimónia de inauguração estava prevista para dois dias mais tarde,
tentaram reparar a fachada do edifício e cerca de uma centena de trabalhadores e
técnicos trabalharam dia e noite. Porém, era impossível ocultar a destruição
provocada pela explosão e a cerimónia de inauguração acabou por decorrer na rua,
numa zona afastada do local programado, num palanque improvisado. A inauguração
acabou por ser um fiasco. Os jornalistas internacionais tiveram conhecimento da
deflagração da bomba e noticiaram o acontecimento. Nos jornais portugueses nem
uma palavra sobre o assunto, mas a notícia corria de boca em boca27
.
Durante vários meses a PIDE continuou com a investigação ao sucedido. Esta
ação tinha constituído uma nova e maior humilhação para o governo de Marcelo
Caetano que tinha planeado um ato público solene com a presença dos principais
24 Entrevista Raimundo Narciso, Odivelas, 10 de Outubro de 2012
25 Entrevista Raimundo Narciso, Odivelas, 10 de Outubro de 2012
26 Entrevista Raimundo Narciso, Odivelas, 10 de Outubro de 2012
27 PIDE/DGS - Pr. 150/73 SC PC, U.I: 6362-6365, Vol. 1 - “Documentos apreendidos a Manuel
Policarpo Guerreiro”, 21 de Novembro de 1971, fl. 39
22
generais da NATO, do seu secretário-geral, Josef Luns e do Comandante Supremo
Europeu Aliado do Atlântico, o almirante Charles Duncan, de modo a demonstrar que
o governo português não estava isolado, tinha a seu lado a comunidade internacional.
No dia 12 de janeiro de 1972 a ARA realizou nova operação contra a guerra
colonial, que dependia dos abastecimentos em material militar e logístico que
chegavam do Continente por via marítima. A operação da ARA visava a destruição de
equipamento sofisticado, recém-chegado de França, que estava depositado nuns
armazéns na chamada Doca do Espanhol, no Cais de Alcântara, pronto para a
embarcar para África no navio Muxima. A ação decorreu conforme o previsto e na
madrugada do dia 12 de janeiro deu-se a explosão que provocou grande destruição no
cais e nos armazéns.
No dia 9 de agosto de 1972, o Almirante Américo Tomás iria, mais uma vez,
tomar posse como Presidente da República. Desde as eleições presidenciais de 1958
que, com a grande adesão popular à campanha de Humberto Delgado, o regime tinha
acabado com a eleição direta para a Presidência da República, passando Presidente da
República a ser eleito por um colégio eleitoral. Para assinalar o facto, a ARA tinha
decidido realizar uma ação nesse dia que consistiria no corte da energia eléctrica em
todo o país. O plano pressupunha a realização de três ações de sabotagem em
simultâneo: no Porto, em Lisboa, e em Coimbra, envolvendo um número maior de
operacionais do que em qualquer operação anterior.
De acordo com Jaime Serra, esta ação teve grande repercussão política e
ofuscou a tomada de posse do Presidente da Republica (SERRA, 1999, p. 103-104).
Os jornais deram grande destaque à notícia, pois era impossível o governo esconder o
acontecimento, já que tinha afetado várias localidades, que ficaram sem energia
elétrica, tendo as populações sido acordadas de madrugada com o barulho provocado
pelas explosões.
Esta seria, no entanto, a última ação da ARA.
7. O fim da ARA e a “unidade” da oposição
Em maio de 1973 a ARA anunciou a suspensão das suas atividades. Na
realidade, desde agosto do ano anterior que a organização não realizava ações
armadas. Vários factos contribuíram para esta decisão que foi discutida ao nível do
Comando Central da ARA e do Secretariado do Comité Central do PCP28
. O partido
vinha defendendo que o essencial era a luta dos trabalhadores, as ações de massas e a
unidade da oposição na luta contra o regime. A estratégia política do PCP passava,
assim, neste último aspeto, pelo entendimento com os outros setores da oposição,
principalmente com a ASP e com os católicos progressistas.
28 Entrevista Raimundo Narciso, Odivelas, 10 de Outubro de 2012
23
Na primavera de 1972 realizou-se, em Paris, um encontro ao mais alto nível
entre o PCP e a Acção Socialista Portuguesa (ASP). A delegação do PCP era
composta por Álvaro Cunhal e Carlos Brito e a da ASP por Mário Soares e Ramos da
Costa. A partir deste encontro as duas forças políticas passaram a contactar
regularmente29
. Este contexto de cooperação do PCP com a ASP, em vésperas de se
transformar em PS, justifica a suspensão de atividades da ARA. Depois de um período
de forte divisão, a tendência voltava a ser a da união das forças oposicionistas e a
perspetiva de entendimento com os socialistas desaconselhava o prosseguimento das
ações armadas.
No comunicado em que anuncia a suspensão das atividades, a ARA declara
que “verificando que se desenvolve no país um amplo movimento político, cujos
êxitos são importantes para o enfraquecimento da ditadura fascista e colonialista,
determinou uma pausa temporária de certas ações, com vistas a facilitar que sejam
aprofundadas ao máximo outras possibilidades da luta popular antifascista”30
.
Ao mesmo tempo, a ARA tinha sofrido um duro golpe com a prisão de seis
dos seus mais experimentados operacionais. De facto, apesar de haver uma separação
entre a ARA e o PCP acabou por haver muitos pontos de contacto e vários militantes e
funcionários sabiam que esta era um “braço armado” do partido. Em finais de maio de
1971 foi preso Augusto Lindolfo, funcionário do PCP, que, apesar de não ter contacto
direto com a ARA, denunciou militantes e simpatizantes do partido que tinham sido
transferidos das suas organizações para a estrutura armada, prestando apoio logístico
ou que estavam a ser preparados para vir a integrar o seu quadro de operacionais.
Com a suspensão das ações foi possível ao Comando Central da ARA manter-
se na clandestinidade até ao 25 de abril de 1974, só sendo dissolvida enquanto tal com
a instauração da democracia.
Atualmente, as correntes predominantes na teoria política preferem ver a
política sob o prisma da produção de consensos, secundarizando o papel da violência
como expressão final de disputa pelo poder. É verdade que a ideia de que a disputa
pelo poder possa ser resolvida sem o recurso à violência é uma ideia central na
democracia e tende a representar um valor importante. No entanto, também é verdade
que a política é uma atividade humana que se estabelece a partir dos conflitos entre
pessoas que vivem em sociedade, o que significa que a violência é intrínseca à própria
sociedade e que a luta pelo poder pressupõem o uso da violência. Deste ponto de
29 Entrevista a Carlos Brito, Alcoutim, 12 de Setembro de 2012
30 IANT/TT – PIDE/DGS – Pr. 16042 SC CI(2), NT: 7761 - “Comunicado do Comando Central
da ARA”, Maio de 1973 pasta 1, fls. 23
24
vista, a violência é vista como um meio de transformação do sistema político e social.
Como diria Marx “a violência é a parteira da história”.
Para o PCP, quando em 1970 decidiu avançar com a ARA, o uso da violência
era legítimado pela continuação da guerra colonial, cada vez mais contestada pela
sociedade portuguesa. Neste caso, a violência serviria para desgastar o regime que,
flagelado pela guerra colonial, teria de desviar as suas atenções para a metrópole,
desguarnecendo as frentes de combate em África; e permitia chamar da atenção da
comunidade internacional para a contestação interna à ditadura e à guerra colonial.
Num contexto de radicalização política da sociedade portuguesa, cada vez mais
contrária ao regime político vigente e à continuação da guerra colonial, as acções da
ARA tinham como principal função agitar o movimento de massas, flagelar o
dispositivo militar e repressivo do regime e desgastar a ditadura. A guerra, enquanto
modalidade exrema de violência revolucionária, permaneceu como um cenário
redentor e legitimador da violência contra o opressor (neste caso, o estado português
era o opressor colonialista que utilizava a opressão contra os povos das colónias, e era
o opressor dos portugueses que viviam sob um regime político ditatorial, sem direitos
e liberdades). O uso da violência armada era vista como a única forma de, naquele
contexto político, provocar a queda do regime e o fim da guerra, ou seja, só a
violência provocaria a transformação política e social.
Aliás, o PCP, excepto no período de liderança de Júlio Fogaça, nos anos 50,
em que o PCP adoptou a via da transição pacífica, defendeu o uso da violência
política, indo mesmo contra as directrizes do movimento comunista internacional.
No “Rumo à Vitória”, o mais importante contributo teórico e político à linha
do PCP nos anos de clandestinidade, Cunhal reafirmou a necessidade do recurso à
violência, considerando que a ditadura deveria ser derrubada através de uma
“insurreição popular armada”, no entanto, a tónica era colocada no “momento” em
que estariam criadas as condições revolucionárias para eclodir a violência armada.
Essas condições só chegariam com a radicalização da sociedade portuguesa verificada
a partir de finais dos anos 60, com o incremento do movimento de massas a que se
assistia, e com a continuação de uma guerra considerada injusta e que não tinha o
apoio dos portugueses.
A Revolução do 25 de abril de 1974, com os cravos a adornar os canos das
espingardas mas transformando-se rapidamente num processo revolucionário, acabará
por ser o epílogo deste longo processo de radicalização da oposição à ditadura, no
25
qual a questão do recurso violência sempre esteve presente.
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