Rubem alves por um casamento

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“Por um casamento”

Rubem Alves

O primeiro rito, sobre que todos sabem e para o qual se fazem convites, é feito com pedras, ferro e cimento.

Há um outro rito, secreto, que se faz com o voo das aves, com água, brisa, espuma e bolhas de sabão.

O primeiro rito nasceu de uma mistura de alegria e tristeza.

Viram o voo do pássaro, ficaram alegres.

Mas logo o pássaro se foi e ficaram triste.

Não lhes bastava que a alegria fosse infinita enquanto durasse.

Queriam que ela fosse eterna.

E disseram: “Queremos o voo do pássaro eternamente.

E que coisa melhor existe para conter o voo do pássaro que

uma gaiola?

E assim fizeram.

A definição mais precisa desse rito, eu a ouvi da boca de um sacerdote.

“Não é o amor que faz um casamento”, ele afirmou. “São as promessas.”

Assustei-me.

Sabia que assim era, no civil, casamento-contrato, rito frio da sociedade, para definir os deveres (sobre os prazeres se faz silêncio) e a partilha

dos bens e dos males.

Sociedade é coisa sólida.

Precisa de pedra, ferro e cimento. Garantias.

Testemunhas. Documentos.

Para isso, os contratos.

E a substância do contrato são as promessas.

Sim. Ele estava certo.

“Não é o amor que faz o casamento.

São as promessas.”

Mas as coisas do amor não podem ser prometidas.

Não posso prometer que, pelo resto da minha vida, sorrirei de

alegria ao ouvir seu nome.

Não posso prometer que, pelo resto de minha vida, sentirei saudades na sua ausência.

Sentimentos não podem ser prometidos.

Não podem ser prometidos porque não dependem da nossa vontade.

Sua existência é efêmera.

Só existem no momento.

Como o voo dos pássaros, o sopro do vento, as cores

do crepúsculo.

O outro ritual se faz com o voo das aves, com água, espuma e

bolhas de sabão.

Secreto, para ele não há convites, nem lugar certo, nem hora marcada: simplesmente

acontece.

Não precisa de altares: sempre que ele acontece, o arco-íris

aparece: a promessa de Deus, porque Deus é amor.

Para vós invoco os prazeres que voam nos ventos e

as alegrias que moram nas cores: beleza, harmonia,

encantamento, magia, mistério, poesia: que essas potências

divinas lhes façam companhia.

Que o sorriso de um seja, para o outro, festa, fartura, mel, peixe assado no fogo, coco maduro na praia,

onda salgada do mar...

Que as palavras do outro sejam tecido branco, vestido

transparente de alegria, a ser despido por

sutil encantamento.

E que, no final das contas e no começo dos contos, em nome

do nome não dito, bem-dito, em nome de todos os nomes

ausentes e nostalgias presentes, amizade e amor,

em nome do nome sagrado, do pão partido e do vinho bebido,

sejam felizes os dois, hoje, amanhã e depois...

Rubem Alves