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Surdez e surdos no Brasil1
Carlos Henrique Rodrigues2
Embora o Rio de Janeiro tenha sido, de certa maneira, o ncleo
da educao dos surdos brasileiros, no sculo XX, tornaram-se
visveis diversas aes em vrios outros lugares do Brasil. Em
1929, foi fundado em So Paulo o Instituto Santa Terezinha, o
qual se dedicava educao de moas surdas. O Instituto Santa
Terezinha permitia o uso da LS fora de sala e, segundo Brito,
foi o segundo plo de concentrao de surdos usurios de
lngua de sinais no Brasil (1993, p. 6).
Segundo Monteiro (2006, p.283), o instituto seguia uma
perspectiva oralista devido forte influncia dos educadores
franceses catlicos. Fato que tambm marcou a influncia da
Lngua de Sinais Francesa (doravante LSF) na LS dos surdos
brasileiros. Moura explica que
inicialmente, na cidade de So Paulo, o trabalho com crianas Surdas nas escolas particulares seguiu uma abordagem oralista. Estas escolas tinham uma tradio religiosa, benemrita, ou surgiram atravs do interesse de pais e amigos de Surdos. Seus objetivos eram pautados na integrao do Surdo na comunidade ouvinte, onde o Surdo deveria procurar o seu lugar de trabalho (2000, p.91).
Em 1950, surgiram, em So Paulo, as primeiras iniciativas da
Rede Municipal de ensino e de alguns familiares de surdos,
1 Este texto foi extrado de RODRIGUES, C. H. R Situaes de incompreenso vivenciadas por professor ouvinte e
alunos surdos em sala de aula: processos interpretativos e oportunidades de aprendizagem. 2008. Dissertao (Mestrado em Educao e Linguagem). Faculdade de Educao. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008 (p.50-76). 2 Doutorando em Lingstica Aplicada - FALE/ UFMG (Estudos da Traduo); Mestre em Educao - FaE/ UFMG
(Educao e Linguagem), Especialista em Educao Inclusiva (FJP), Bacharel e Licenciado em Histria (FAFICH/ UFMG), Graduado em Teologia (FATEBH), Professor de Lngua de Sinais Brasileira e Intrprete de Lngua de Sinais Brasileira - Lngua Portuguesa (Certificado pelo MEC - Prolibras). Atualmente professor na Faculdade de Educao/ Universidade Federal de Juiz de Fora - FACED/ UFJF.
2
dando origem ao Instituto Hellen Keller e ao Instituto
Educacional de So Paulo3, ambos utilizando o mtodo oral.
Some-se o fato de que a Rede Estadual de Ensino de So Paulo,
em 1957, criou cinco classes especiais nas escolas regulares
para atender o aluno surdo (LIMA, 2004, p.26).
Em Belo Horizonte, as primeiras aes com relao educao
de surdos teriam surgido na dcada de 30. Segundo Miranda
(2007, p.50):
Em 08 de maro de 1938, o jornal de circulao do Estado de Minas Gerais, O DIRIO, j relatava o incio da construo do Instituto Santa Ins, indicando a quem ele pertencia _ Congregao das Filhas de Nossa Senhora do Monte Calvrio _ e os motivos de sua constituio.
O Instituto Santa Ins destacou-se na educao de surdos e
contou com o apoio de religiosas do Instituto Estadual de Roma,
uma importante instituio educacional para surdos da poca.
Ele propagou e defendeu a adoo do oralismo na educao de
surdos e, aos poucos, passou a aceitar a LS como um auxlio
comunicao com os alunos surdos. Outra instituio criada na
dcada de 30, que atendia alunos surdos, foi o Instituto
Pestalozzi.
Em 1979, foi fundada em Belo Horizonte a Clnica Fono, com o
objetivo de atender pessoas surdas, promovendo o
desenvolvimento das habilidades sensoriais e psicolgicas
(MIRANDA, 2007, p.55.). Com o tempo, a instituio foi
assumindo uma funo mais educacional e passou a ser
3 Segundo Mi randa (2007 , p .35) o Ins t i tu to em 1969 foi doado para a Fundao So Paulo,
en t idade mantenedora da PUCSP. A par t i r da passou a ser conhecido como DERDIC - Diviso de Educao e Reab i l i tao dos Dis trbios da Comunicao.
3
denominada como Clnica Escola Fono4. Em sua proposta inicial,
a clnica-escola seguia uma perspectiva educacional oralista,
entretanto, com o tempo, passou a discutir as perspectivas da
Comunicao Total.
A partir da dcada de 80, em Belo Horizonte, outras instituies
escolares passaram a atender alunos surdos. Dentre elas, pode-
se destacar a Escola Estadual Francisco Sales Instituto de
Deficincia da Fala e da Audio, inaugurada em 1983, que,
numa perspectiva oralista, tornou-se responsvel pela
escolarizao inicial de crianas surdas. Nessa escola, somente
aps alguns anos, que se comeou a empregar a LS, dentro
das diretrizes da Comunicao Total.
O movimento de criao de escolas especiais, classes especiais
para surdos, bem como salas mistas de surdos e ouvintes com a
presena do intrprete de Libras, tornou-se realidade em todo o
Brasil na dcada de 1990. Essa mudana inicial foi amparada
pelas novas vises sociais, antropolgicas, lingsticas e
pedaggicas com relao surdez e aos surdos e fortalecida, no
sculo XXI, pelo surgimento de uma legislao5 especfica em
relao aos surdos, sua lngua e educao.
Em Belo Horizonte, podemos citar: a Escola Estadual Jos
Bonifcio, que em 1996 formou sua primeira turma de surdos; a
4 Em 17 de novembro de 1981 , com parecer favorvel pelo CEE da Secretar ia de Estado da
Educao SEE, f ica au tor i zado o funcionamento da Escola Fono, de ens ino do 1 grau especia l na rede par t icu lar , de Belo Hor i zon te. (Decreto n 467 /81) . A proposta pedaggica da escola segu ia os mesmos moldes da pol t ica educacional desenvolvida a par t i r do Congresso de Milo em 1880, uma educao vol tada para o incen t ivo e as pr t icas endossadas pela metodologia ora l (MIRANDA, 2007 , p .55-6) . 5 A Lei 10.436 de 24 de abr i l de 2002 of ic ia l i zou a Libras , Lngua de S inais Bras i l ei ra , como
l ngua da Comunidade Surda Bras i lei ra , e o Decreto 5 .626 de 22 de dezembro de 2005 a regu lamentou , j un to ao ar t igo 18 da Lei n o 10.098 , de 19 de dezembro de 2000.
4
Escola Estadual Maurcio Murgel, que em 1999 formou suas
primeiras turmas mistas; a Escola Municipal Arthur Versiani
Velloso, que, a partir do projeto piloto Integrao de alunos
surdos no Ensino Regular,6 passou a atender alunos surdos; e a
Escola Municipal Paulo Mendes Campos, que em 1998 passou a
atender os surdos, jovens e adultos, no noturno.
Outro fato marcante da histria da educao dos surdos no
Brasil foi a fundao, em 1977, da Feneida (Federao Nacional
de Educao e Integrao dos Deficientes Auditivos) por um
grupo de profissionais ouvintes ligados rea da surdez
(FENEIS, 1993, p.5). Conta-se que, alguns anos aps a
fundao da federao, um grupo de surdos passou a se
interessar pela entidade, participando de seus encontros e da
recm-fundada Comisso de Luta pelos Direitos dos Surdos
(RAMOS, 2004, p.2). Essa comisso passou a reivindicar a
participao efetiva dos surdos na Diretoria da Feneida. Assim,
os surdos da comisso formaram uma chapa e conquistaram a
presidncia da entidade por um ano (FENEIS, 1993, p.5). Souza
escreve (1998, p.90-1):
Ao lutarem pelos sinais, os surdos, organizados, se diferenciam, pela linguagem que defendem, do grupo majoritrio usurio de uma outra linguagem: a oral. A partir dessa tomada de conscincia, as divergncias com profissionais ouvintes foram postas s claras e acabou por levar posse, pelos surdos, da presidncia da FENEIDA, [] Simboliza uma vitria contra os ouvintes que consideravam a eles, surdos, incapazes de opinar e decidir sobre seus prprios assuntos e, entre eles, sublinha o papel da linguagem na educao regular. Desnuda,
6 O formato in i ci a l do proj eto era de agrupamento de 5 a lunos su rdos por tu rma, tendo como apoio
pedaggico uma p rofessora auxi l iar in trp rete de Lib ras , para in terp retar os con tedos desenvolvidos pelo p rofessor regen te.
5
ainda, uma mudana de perspectiva, ou de representao discursiva, a respeito de si prprios: ao alterarem a denominao deficiente auditivo, impressa na sigla FENEIDA, para Surdos, em FENEIS, deixam claro que recusavam o atributo estereotipado que normalmente os ouvintes ainda lhes conferem, isto , o de serem deficientes.
Ento, em 1987, a Feneida passou a se chamar Feneis
(Federao Nacional de Educao e Integrao de Surdos).
Segundo Ramos (2004, p.2), a criao da Feneis7 deu-se atravs
da ao de um grupo de surdos em uma assemblia geral na
qual se votou o fechamento da Feneida.
A Feneis constituiu-se como uma instituio no-governamental,
filantrpica, sem fins lucrativos, com carter educacional,
assistencial e sociocultural (FENEIS, 1993, p.7). Suas metas
principais seriam promover e ampliar a educao e a cultura do
indivduo surdo, amparar socialmente este indivduo, congregar
e coordenar atividades junto s filiadas, associaes, escolas e
instituies da rea da surdez, lutar pela melhoria de recursos
educacionais e pela incluso social dos surdos, organizar e
participar de eventos na rea da surdez.
A Feneis tem realizado diversas aes sociais e polticas, tais
como incluso de surdos no mercado de trabalho, assistncia
jurdica aos surdos, servios de intrpretes de Libras-LP para
7 As en t idades fundadoras da FENEIS foram: Associao de Pais e Amigos do Def ic ien te da
Audio - APADA/ Ni ter i -RJ , Associao dos Surdos de Minas Gerais - MG, Associao dos Surdos do Rio de Janei ro - RJ , Associao Alvorada Congregadora de Surdos - RJ , Associao dos Surdos de Cuiab - MT, Associao dos Surdos de Mato Grosso do Su l - MS, Ins t i tu to Londr inense de Educao de Surdos PR, Escola Estadual F rancisco Sales MG, Ins t i tu to Nossa Senhora de Lourdes RJ , Associao de Pais e Amigos dos Surdos APAS PR, Associao de Pais e Amigos do Def ic ien te da Audiocomunicao APADA/ Mar l ia SP , Cen tro Educacional de Audio e Fala DF, Associao do Def ic ien te Audi t ivo do Dis t r i to Federal DF, Cen tro Verbo-Tonal Suvag/ Reci fe PE, Associao Bem Amado dos Surdos do Rio de Janei ro RJ e Associao de Pais e Amigos do Def ic ien te Audi t ivo/ APADA DF (RAMOS, 2004 , p .6 , 7 ) .
6
acompanhar os surdos quando necessrio, servios de
informao e esclarecimento aos pais, aos educadores, s
autoridades e ao pblico em geral, organizao de cursos de
Libras, capacitao de instrutores de Libras e de intrpretes e
produo de publicaes com assuntos de interesse da
comunidade surda, dentre outras.
A histria de formao da Feneis evidencia a emergncia dos
movimentos reivindicatrios organizados pelos surdos
brasileiros em prol no somente do direito de um ensino em
Libras, mas principalmente pelo direito a opinar e decidir
acerca de quaisquer decises polticas que envolvam os surdos.
A formao da Feneis inaugurou um importante captulo das
relaes polticas entre surdos e ouvintes e influenciou
significativamente a educao de surdos no Brasil.
Vale ressaltar que, contrapondo-se preponderncia do mtodo
oral, a LS tornou-se o ponto central da luta da FENEIS e o
smbolo por excelncia da surdez (BRITO, 1993, p.28). Segundo
Antnio Campos de Abreu, surdo e integrante da Diretoria da
entidade:
Para a Feneis, a lngua de sinais um direito do surdo lngua materna, responsvel pelo seu desenvolvimento cultural social e acadmico/ educacional. As dvidas, receios e dificuldades de assumir essa postura prejudicou em muito, o surdo, alm da questo do tempo perdido em discusses entre famlias e profissionais envolvidos com este indivduo. A Lngua de Sinais a chave para ampliar a insero do surdo no mbito social (AZEREDO, 2006, p. 7).
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Esse panorama geral da histria da educao de surdos permite
que se conheam diversas vises, concepes, conceitos e
modelos de surdez, os quais evidenciam diferentes perspectivas
e propostas educacionais. Segundo Thoma (1998, p.127-8):
Na histria da educao dos surdos surgiram vrias tendncias, apontando concepes distintas e, por vezes, opostas, quanto a melhor forma de educar ao surdo e, no ritmo das mudanas, as f i losofias educacionais foram (re)feitas de acordo com os interesses, crenas e valores de cada poca. A histria desta educao , portanto, trilhada por diferentes caminhos, apresentados como um reflexo do pensamento e dos interesses dominantes em cada poca e em cada sociedade. Poderamos dizer que cada um destas filosofias nada mais representa do que o imaginrio e as representaes sociais construdas sobre os surdos ao longo dos tempos.
O atual contexto educacional dos surdos est permeado pelas
diferentes vises, conceitos e modelos de surdez historicamente
construdos. Considerando-se que para a compreenso da sala
de aula, formada somente por alunos surdos, necessrio que
se conhea a realidade na qual ela se localiza, organizaram-se,
a seguir, as duas vises bsicas com relao surdez e aos
surdos e, tambm, as trs principais propostas educacionais
empregadas no decorrer da histria do processo educacional dos
surdos.
2.3 Vises com relao aos surdos e a surdez
Grosso modo, configuraram-se historicamente duas maneiras
distintas de se olhar para a surdez e, conseqentemente, para
os surdos. A adoo de uma dessas vises demonstra as
concepes e conceitos de quem olha e, certamente, guiar a
8
uma srie de perspectivas e atitudes com relao aos surdos e
ao seu processo de ensino-aprendizagem.
Essas vises distintas fundamentam-se, basicamente, em dois
modelos: o clnico-teraputico e o scio-antropolgico (SKLIAR,
1997a; 1998). Esses modelos tm sido responsveis em definir
e guiar diversas tendncias educacionais, ora enfatizando uma
certa normalizao, ora defendendo a aceitao das diferenas.
Entretanto, a temtica da surdez, na atualidade, se configura
como territrio de representaes que no podem ser facilmente
delimitadas ou distribudas em modelos sobre a surdez
(SKLIAR, 1998 p.9).
2.3.1 A viso a partir do modelo clnico-teraputico
O modelo clnico-teraputico foi-se formando historicamente de
acordo com as posturas mdicas e ideolgicas que foram sendo
assumidas com relao surdez. O olhar clnico-teraputico
difundiu-se socialmente e passou a embasar as posturas
educacionais em relao aos surdos, inclusive a filosofia
educacional oralista. Nesse modelo, o surdo
considerado uma pessoa que no ouve e, portanto, no fala. definido por suas caractersticas negativas; a educao se converte em teraputica, o objetivo do currculo escolar dar ao sujeito o que lhe falta: a audio, e seu derivado: a fala. Os surdos so considerados doentes reabilitveis e as tentativas pedaggicas so unicamente prticas reabilitatrias derivadas do diagnstico mdico cujo fim unicamente a ortopedia da fala (SKLIAR, 1997a, p.113).
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O modelo clnico-teraputico trouxe uma viso estritamente
relacionada surdez como patologia, enfatizando o dficit
biolgico. Assim, aqueles que se aliceram nesse modelo
consideram a surdez como mera deficincia sensorial. Segundo
S (2002, p.48):
Historicamente se sabe que a tradio mdico-teraputica influenciou a definio da surdez a partir do dficit auditivo e da classificao da surdez (leve, profunda, congnita, pr-lingstica, etc.), mas deixou de incluir a experincia da surdez e de considerar os contextos psicossociais e culturais nos quais a pessoa Surda se desenvolve.
Com esse conceito de surdez, a educao de surdos passou a
ser vista como um processo de medicalizao, no qual as
estratgias e recursos educacionais tm um carter reparador,
reabilitador, normalizador e corretivo. Assim sendo, as lnguas
de sinais so rechaadas do processo educacional dos surdos.
Na viso clnico-teraputica, materializada por meio do
oralismo, acredita-se que
a lngua de sinais no constitui um verdadeiro sistema lingstico, pois o define como um conjunto de gestos carente de estrutura gramatical, um tipo de pantomima desarticulada, que, alm disso e paradoxalmente limitaria ou impediria a aprendizagem da lngua oral (SKLIAR, 1997a, p.111).
Nesse momento da histria da surdez, no qual o modelo clnico
imperou, os surdos seriam potencialmente retirados do contexto
educacional, pedaggico, e colocados nos domnios da medicina,
da interveno clnica e da terapia. Na verdade, ocorria uma
transformao gradual do contexto escolar e de suas discusses
10
e enunciados pedaggicos, em mecanismos de natureza mdico-
hospitalar (LANE, 1993 apud SKLIAR, 1998, p.16).
Medicalizar a surdez significa orientar toda a ateno cura do problema auditivo, correo de defeitos da fala, ao treinamento de certas habilidades menores, como a leitura labial e a articulao, mais que a interiorizao de instrumentos culturais significativos, como a lngua de sinais. E significa tambm opor e dar prioridade ao poderoso discurso da medicina frente dbil mensagem da pedagogia, explicitando que mais importante esperar a cura medicinal encarnada atualmente nos implantes cocleares que compensar o dficit de audio atravs de mecanismos psicolgicos funcionalmente equivalentes (SKLIAR, 1997a, p. 111).
Nesse modelo clnico, os surdos ou deficientes auditivos
possuem uma deficincia que precisa ser tratada com o
propsito de reabilit-los convivncia social. Visa-se ao
disciplinamento do comportamento e do corpo para produzir
surdos aceitveis para a sociedade dos ouvintes (SKLIAR,
1998, p.10). Esse tratamento teria o objetivo de desenvolver e
treinar a fala e a leitura labial, atravs de tratamento
fonoaudiolgico, de uso de prteses e implantes, por exemplo,
capazes de capacit-los a usar a LO e a partilhar dos modos de
ser, pensar e agir da sociedade ouvinte que integram. Ao
criticar tal modelo, Skliar (1997a, p.12) ressalta que
a criana no vive a partir de sua deficincia, mas a partir daquilo que para ela resulta ser um equivalente funcional. Tudo isto seria certo se, desde j, o modelo clnico-teraputico no se obstinasse tanto em lutar contra a deficincia, o que implica em geral originar conseqncias sociais ainda maiores. Reeducao ou Compensao, essa a questo. Obstinar-se contra o dficit, esse o erro.
11
Esse modelo clnico foi preponderante at a dcada de 90,
quando uma nova viso da surdez destacou-se, principalmente
em meio aos pesquisadores. Segundo Skliar (1997a, p.140-1):
Foram duas as observaes que a partir da dcada de 60 levaram outros especialistas como antroplogos, lingistas e socilogos a interessar-se pelos surdos, e que originaram uma viso totalmente oposta clnica, uma perspectiva scio-antropolgica da surdez. Por um lado, o fato de que os surdos formam comunidades cujo fator aglutinante a lngua de sinais [] Por outro lado, a confirmao de que os filhos surdos de pais surdos apresentam melhores nveis acadmicos, melhores habilidades para a aprendizagem da lngua oral e escrita, nveis de leitura semelhantes aos do ouvinte, uma identidade equilibrada, e no apresentam os problemas sociais e afetivos prprios dos filhos surdos de pais ouvintes.
2.3.2 A viso a partir do modelo scio-antropolgico
Ao contrrio da viso clnica, na qual que se prope a
medicalizao, o tratamento teraputico, a reabilitao do
surdo; na viso scio-antropolgica, compreende-se a surdez
como uma experincia visual, ou seja, como uma maneira
especfica de se construir a realidade histrica, poltica, social e
cultural. No modelo scio-antropolgico, concebe-se a surdez
como uma diferena8, e no como mera deficincia como no
modelo clnico-teraputico. Esse novo prisma possibilitou que a
surdez fosse vista a partir de outros referenciais (HUBNER,
2006, p.51). Ao se referir a esse novo prisma, Moura relata que
8 Car los Skl i ar deixa c laro que, para el e, d i ferena en tend ida , conforme McLaren (1995) , no
como um espao ret r ico a su rdez uma d i ferena mas como uma const ruo h is t r ica e socia l , efei to de conf l i tos socia is , ancorada em prt i cas de s igni f icao e de r ep resen taes compar t i l hadas en t re os surdos (SKLIAR, 1998 , p . 13) .
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O movimento multicultural, de grande amplitude, abrangeu as minorias dos mais diversos tipos que reivindicavam o direito de uma cultura prpria, de ser diferente e denunciavam a discriminao qual estavam sendo submetidos (2000, p.64).
Considerando esta perspectiva, os surdos passam a ser vistos
como aqueles que
formam uma comunidade lingstica minoritria caracterizada por compartilhar uma lngua de sinais e valores culturais, hbitos e modo de socializao prprios. A lngua de sinais constitui o elemento identificatrio dos surdos, e o fato de constiturem-se em comunidade significa que compartilham e conhecem os usos e normas de uso da mesma lngua, j que interagem cotidianamente em um processo comunicativo eficaz e eficiente. Isto , desenvolveram as competncias lingstica e comunicativa e cognitiva por meio do uso da lngua de sinais prpria de cada comunidade de surdos [] A lngua de sinais anula a deficincia lingstica conseqncia da surdez e permite que os surdos constituam, ento, uma comunidade lingstica minoritria diferente e no um desvio da normalidade (SKLIAR, 1997a, p.141).
Em oposio viso clnico-teraputica, na viso scio-
antropolgica, passa-se a utilizar o termo surdo para se
referir queles que, independentemente do grau da perda
auditiva, reconhecem-se como surdos, na medida em que
valorizam a experincia visual e se apropriam da LS como meio
de comunicao e expresso; renem-se com seus pares e
partilham modos de ser, agir e pensar, bem como uma
identidade cultural comum e um certo Deaf Pride, orgulho em
ser surdo.
Os nomes atribudos aos No-Ouvintes incluem mudo, surdo-mudo, deficiente auditivo, uma variedade de outros eufemismos politicamente corretos, e o que preferido pela maioria daqueles
13
que se identifica como tal: Surdo (WRIGLEY, 1997, p.3).9
Nessa mesma perspectiva, as pessoas com deficincia auditiva
seriam aquelas que rejeitam a condio da surdez, na medida
em que tentam resgatar a experincia auditiva por meio de
prteses e implantes, desprezando a LS e estabelecendo seu
nico meio de comunicao atravs da LO: fala com o auxlio da
leitura labial. Alm disso, essas pessoas freqentam grupos de
ouvintes e no se identificam com os surdos sinalizadores
usurios da LS.
Considerar a surdez atravs desse modelo implica,
primeiramente, respeitar e aceitar o surdo em sua diferena e
especificidade lingstica e cultural. Dito de outro modo, esse
respeito e aceitao da diferena significam no somente aceitar
a LS usada pelos surdos no processo educacional, mas produzir
uma poltica de significaes que gera um outro mecanismo de
participao dos prprios surdos no processo de transformao
pedaggica (SKLIAR, 1998 p.14).
A difuso da viso scio-antropolgica da surdez nas ltimas
dcadas do sculo XX possibilitou aos educadores uma nova
maneira de se pensar o processo de ensino-aprendizagem de
surdos. Apropriando-se dessa viso, muitos professores de
surdos propuseram novas estratgias de ensino vinculadas ao
uso da LS e ao reconhecimento da necessidade de se ensinar a
LP como L2. Entretanto, at que essa nova proposta educacional
9 Minha t raduo para The names ass igned to the Other- than-Hear ing include mute , deaf-mute ,
hear ing impaired , a range of o ther pol i t ica l ly correct euphemisms, and the one that i s p refer red by most of those who iden t i fy themselves as such : Deaf . H uma cp ia da in t roduo do l ivro d isponvel em . Acesso em 25 nov. 2007.
14
bilnge se configurasse outras maneiras de se tratar a
educao de surdos destacaram-se no cenrio educacional: o
oralismo e a comunicao total.
2.4 Sinais e fala: os caminhos educacionais e a surdez
Normalmente assim como os filsofos do conhecimento nos ensinam que a cabea pensa a partir de onde os ps pisam e que cada ponto de vista a vista de um ponto.
Leonardo Boff Historicamente verifica-se a configurao dos debates acerca da
educao dos surdos sob trs importantes filosofias
educacionais: o Oralismo, a Comunicao Total e o Bilingismo.
A aproximao e a anlise da concepo e aplicao de tais
filosofias evidenciam uma ampla variedade de vises, nfases e
prticas, muitas vezes, contraditrias.
Segundo Brito (1993, p.27), seriam apenas duas as filosofias
educacionais para surdos: o Oralismo, que defenderia o
aprendizado apenas da LO, e o Bilingismo, que defenderia o
aprendizado da LO e da LS, reconhecendo o surdo em sua
diferena e especificidade. Considerando isso, pode-se dizer,
sem dvidas, em oralismos e bilingismos. Esse plural serve
para marcar a diversidade das metodologias, leituras e
aplicaes do oralismo e do bilingismo na educao de surdos.
A histria da educao dos surdos revela o confronto e a
coexistncia dessas diferentes abordagens. Sabe-se que, desde
o sculo XVIII, duas perspectivas, tratadas como oralismo e
gestualismo, confrontam-se acirradamente (BUENO, 1998,
p.47). O pndulo da educao de surdos, ora estava mais para
15
lado o oralista, ora para o gestualista. De acordo com Lima
(2004, p.50):
A abordagem educacional (oralista ou gestual) dependia incondicionalmente de quem a conduzia. Caso fosse partidrio do uso exclusivo da lngua oral, esta era tomada como fio condutor da educao do aluno surdo. Caso fosse simpatizante da lngua de sinais, esta era adotada como instrumento de trabalho na sala de aula.
Embora, atualmente, o pndulo esteja voltado para o
gestualismo, expresso atravs de diferentes perspectivas
bilnges, o oralismo continua presente e defendido por alguns
familiares de surdos, profissionais e pessoas com surdez10.
2.4.1 Diferentes facetas do oralismo
Em seu incio, no campo da pedagogia do surdo, existia um acordo unnime sobre a convenincia de que esse sujeito aprendesse a lngua que falavam os ouvintes da sociedade na qual viviam; porm, no bojo dessa unanimidade, j no comeo do sculo XVIII, foi aberta uma brecha que se alargaria com o passar do tempo e que separaria irreconcil iavelmente oralistas de gestualistas (LACERDA, 1996, p.6).
De forma simplificada, pode-se dizer que o oralismo,
preponderante at a dcada de 1980, defendia a
desmutizao, em outras palavras, o aprendizado apenas da
LO com o objetivo de recuperar o surdo, integr-lo sociedade,
ou seja, de, se possvel, torn-lo como o ouvinte. Nesse caso, a
LO tornava-se mais um objetivo do que um instrumento do
aprendizado e da comunicao (BRITO, 1993, p.27;
10 Pode-se d izer que exi s tem em meio aos su rdos doi s grupos d is t in tos : os su rdos s inal izadores ,
que defendem a LS e o b i l i ng ismo e os surdos ora l izados , que repudiam a LS e defendem o ora l i smo.
16
BERNARDINO, 2000, p.29), pois seu aspecto sonoro era
enfatizado em detrimento de sua estruturao semntica e, at
mesmo, de seu registro lingstico. Segundo Brito (1995, p.15):
Devido falta de audio do surdo, alguns mtodos, na nsia, de suprir essa falta, centralizaram sua ateno na produo e recepo da cadeia sonora da fala, isto , no nvel fontico, negligenciando, muitas vezes, o nvel semntico-cognitivo.
Na filosofia educacional oralista, toda e qualquer forma de
comunicao gestual deveria ser negada ao surdo. Muitos
acreditavam que o contato dos surdos com a linguagem gestual
impediria que eles se desenvolvessem oralmente e os levaria a
viver margem da sociedade ouvinte. Segundo Souza (1998,
p.4):
A idia central do oralismo que o deficiente auditivo sofre de uma patologia crnica [] obstaculizando a aquisio normal da linguagem, demanda intervenes clnicas de especialistas, tidos quase como responsveis nicos por restituir a fala a esse tipo de enfermo. Para o oralismo, a linguagem um cdigo de formas e regras estveis que tem na fala precedncia histrica e na escrita sua via de manifestao mais importante. Gestos ou sinais, no importa de que natureza fossem, eram e ainda so considerados acessrios, dependentes da fala e/ ou inferiores a ela do ponto de vista simblico. O oralismo defende essencialmente a supremacia da voz, transformando-a em nuclear do que consideram ser o tratamento educativo interdisciplinar da pessoa surda.
Para conseguir alcanar seu objetivo, a aquisio e
desenvolvimento normal da linguagem oral, os oralistas
desenvolveram e empregaram diferentes instrumentos, tcnicas
e metodologias de oralizao: a verbo-tonal, a audiofonatria, a
17
aural, a acupdica, a interveno precoce, a protetizao, o
implante coclear e etc (GOLDFELD, 1997, p.31; MOURA, 2000,
p.53-5; CAPOVILLA, 2001, p.1482). Alm disso, muitos oralistas
tambm se dedicaram ao ensino da escrita e a rigorosos treinos
de leitura.
Apesar do grande afinco e dedicao dos oralistas, o oralismo
no obteve resultados to satisfatrios, talvez devido maneira
como se enfatizava a LO em detrimento de outros importantes
aspectos da comunicao, da interao, da educao e da
insero social.11 A educao de cunho oralista no garante o
pleno desenvolvimento da criana surda e nem a sua integrao
comunidade ouvinte, visto que o domnio apenas da LO em
hiptese alguma possibilita a equiparao entre pessoas surdas
e ouvintes (GOLDFELD, 1997, p.86).
No comeo do sculo XX, encontram-se os primeiros relatos dos insucessos do oralismo. Um inspetor geral de Milo descreveu que o nvel de fala e de aprendizado de leitura e escrita dos Surdos aps sete a oito anos de escolaridade era muito ruim, sendo que estes Surdos no estavam preparados para nenhuma funo, a no ser como sapateiros ou costureiros. Na Frana isso tambm foi notado, os Surdos educados no oralismo tinham uma fala ininteligvel (MOURA, 2000, p. 49).
11 Os mtodos ora is sofrem uma sr ie de cr t icas pelos l imi tes que apresen tam, mesmo com o
incremento do uso de p r teses . As cr t i cas vm, p r incipalmente, dos Estados Unidos . Alguns mtodos p revem, por exemplo, que se ens inem palavras para cr i anas surdas de um ano. Ent retan to , elas tero de ent rar em con ta to com essas palavras de modo descon tex tual izado de in ter locues efet ivas , tornando a l i nguagem algo d i f c i l e ar t i f ic ia l . Out ro aspecto a ser desenvolvido a lei tu ra lab ia l , que para a idade de um ano , em termos cogn i t ivos , uma tarefa bas tan te complexa, para no d izer impossvel . mui to d i f c i l para uma cr i ana su rda p rofunda, a inda que p rotet i zada , reconhecer , to precocemente, uma palavra at ravs da lei tu ra lab ia l . L imi t ar -se ao canal vocal s ign i f ica l imi t ar enormemente a comunicao e a poss ib i l idade de uso dessa palavra em con tex tos apropr iados . O que ocorre p ra t i camente no pode ser chamado de desenvolvimento de l inguagem, mas s im de t reinamento de fa la organizado de maneira formal , ar t i f ic ia l , com o uso da palavra l imi tado a momentos em que a cr iana es t sen tada d ian te de desenhos , fora de con tex tos d ia lgicos p ropr iamente d i tos , que de fa to permit i r iam o desenvolvimento do s igni f icado das palavras . Esse aprend izado de l inguagem desvincu lado de s i tuaes natu ra is de comunicao, e r es t r inge as poss ib i l idades do desenvolvimento global da cr iana (LACERDA, 1996 , p .18) .
18
Contudo, pode-se verificar que os oralistas esperavam no
somente levar o surdo a falar e a ler os lbios, mas a
desenvolver competncia lingstica, o que lhes permitiria
desenvolver-se social, emocional e intelectualmente e, dessa
maneira, integrar-se ao mundo dos ouvintes (CAPOVILLA, 2001,
p.1481). Entretanto, isso no foi possvel devido, entre outros,
ao fato de que essa filosofia educacional ampara-se em uma
idia equivocada de que h uma dependncia intrnseca entre a
linguagem e a linguagem oral e entre desempenho oral e o
desenvolvimento cognitivo. Portanto, nessa perspectiva,
acredita-se que o desenvolvimento cognitivo est condicionado
ao maior ou menor conhecimento que tenham as crianas surdas
da lngua oral (SKLIAR, 1997a, p.111).
Ao se restringir a essa concepo de linguagem,
desconsiderando os aspectos cognitivos que so determinados
pela linguagem e pela cultura para se limitar a oralizao da
criana surda, o oralismo produz surdos que, embora possam
falar o portugus, provavelmente no sero capazes de
interagir com os ouvintes, devido a questes semnticas e
pragmticas relativas lngua em uso e a dificuldades
cognitivas, sociais e emocionais advindas da no-aquisio
natural e contextualizada de uma lngua na infncia (GOLDFELD,
1997, p.91). Considerando isso, pode-se afirmar que
[] todas estas tentativas de oralizao do Surdo caminharam numa busca incessante de uma transformao do Surdo num ouvinte que ele jamais poderia vir a ser. Como ele no poderia vir a ser, nem se comportar, nem aprender da mesma forma que o ouvinte, as abordagens oralistas no
19
conduziram ao resultado desejado: desenvolvimento e integrao do Surdo na comunidade ouvinte (MOURA, 2000, p.55).
importante a compreenso de que o oralismo, desde suas
origens quinhentistas, fundamentou-se em concepes mdicas,
religiosas, filosficas e, at mesmo, polticas (SKLIAR, 1997b),
sem as quais ele no teria surgido e muito menos ganhado
consistncia. Podem-se encontrar essas concepes em diversas
obras, inclusive nos textos clssicos, tanto sacros quanto
seculares (CAPOVILLA, 2001, p.1480). Foi justamente por vieses
oralistas que se fomentou, no sculo XVI, a concepo de que
os surdos eram educveis.
O imaginrio da sociedade quinhentista estava marcado pela
idia de que a linguagem oral era o cerne da aprendizagem e do
desenvolvimento humano. Portanto, foram exatamente as
demonstraes oralistas de surdos usando a LO, falada e
escrita, que possibilitaram uma mudana nesse imaginrio que
passou a aceitar, pouco a pouco, a possibilidade de os surdos
serem educados, visto que conseguiam usar a linguagem oral. A
partir de ento, tornaram-se possveis os relatos que, de
alguma maneira, creditaram LS um certo status12.
2.4.2 Expresses do gestualismo
O surgimento de uma filosofia educacional gestualista talvez
possa ser relacionado ao fato de que, reconhecida a natureza
12 Capovi l l a (2001 , p .1480) escreve: Uma honrosa exceo do scu lo XVIII foi o f i lsofo
Condi l l ac . Embora a p r incp io considerasse os Surdos como meras es t tuas sensveis e mqu inas ambulan tes , incapazes de pensamento e l inguagem, depois de comparecer incgn i to s au las do abade l Epe, ele se conver teu e forneceu o p r imeiro endosso f i losf ico da L ngua de S inais e de seu uso na educao do Surdo (LANE, 1984) .
20
educvel do surdo e aceita a idia de que a surdez no trazia
prejuzos para o desenvolvimento da inteligncia, era possvel
olhar a linguagem gestual usada pelos surdos, para
comunicarem entre si, como uma possibilidade de interlocuo
com eles e como um meio de ensino da lngua oral, falada e
escrita. De acordo com Lacerda (1996, p.6), os gestualistas
eram mais tolerantes diante das dificuldades do surdo com a lngua falada e foram capazes de ver que os surdos desenvolviam uma linguagem que, ainda que diferente da oral, era eficaz para a comunicao e lhes abria as portas para o conhecimento da cultura, incluindo aquele dirigido para a lngua oral.
LEpe, o precursor do uso da LS na educao dos surdos,
provavelmente, viu a linguagem gestual dos surdos dessa
maneira. inegvel o fato de que ele apresentou uma
perspectiva avanada para a educao dos surdos no sculo
XVIII: o uso da LS, ainda que adaptada numa forma de francs
sinalizado.
Embora avanasse, LEpe, considerava a linguagem oral muito
importante, no sentido de que no s ensinava leitura e escrita
aos seus alunos surdos, mas, principalmente, acrescentava LS
aquilo que, segundo ele, faltava, ou seja, uma gramtica.
Assim, ele criou os Sinais Metdicos: um misto do lxico da LS
com a gramtica francesa.
Durante a ascenso do gestualismo, na segunda metade do
sculo XVIII e primeiras dcadas do XIX, percebe-se, mesmo
entre os seus defensores, uma certa controvrsia: ao mesmo
tempo em que exaltavam a LS, a depreciavam. Segundo Oliver
21
Sacks (1998, p.33), LEpe considerava a LS, por um lado, uma
lngua universal13; por outro lado, destituda de gramtica
(portanto, necessitando da importao da gramtica francesa,
por exemplo).
Desloges, surdo francs, considerava que a LS seria a lngua
mais prpria expresso das sensaes sendo semelhante s
outras, entretanto tambm a via como incompleta, a ponto de
afirmar que embora LEpe no tivesse sido o seu inventor, ele
teria reparado o que encontrou incompleto nela, ampliando-a e
dotando-a de regras.14
Com as decises do Congresso de Milo, em 1880, o gestualismo
foi posto como o grande vilo e empecilho do sucesso do
processo educacional, passando a ser gradativamente banido da
educao dos surdos. Iniciava-se uma nova era da educao de
surdos: a era do oralismo puro.
Assim, durante quase um sculo (1880-1960), o discurso dominante sobre a surdez centrou-se no
13 Como fa to bas tante conhecido, os f i lsofos dos scu los XVII e XVIII acred i tavam que a
p r imei ra l inguagem dos homens ter i a s ido a de ao - os su rdos a ter iam conservado e apr imorado. A l inguagem de ao, segundo os i lumin is t as , ser i a uma forma de regi s t ro mai s acurada da real idade, poi s , como um espelho, r ef let i r i a o modo s imul tneo como os sen t idos perceb iam o mundo exter ior - ser ia deles , por t anto, uma forma de represen tao desdobrada. A l ngua ora l t er ia su rgido como uma expanso la tera l da l i nguagem de ao por conven incias impostas pelas necessr ias adap taes ao ambien te - poder ser percep t vel no escuro das cavernas , por exemplo (Cf . Foucau l t , 1992 : 121-125) . Ass im conceb ida , a l inguagem de s inais ter ia um car t er un iversa l , uma vez que todos os homens ser iam dotados das mesmas cond ies de funcionamento dos sen t idos e porque os ob jetos perceb idos ter iam sempre as mesmas caracter s t i cas , independen te do pas . Quer d izer : se na l inguagem de ao havia (supostamente) uma relao isomrf i ca ent re o referen te e as sensaes , e, por tan to , en t re a coisa e o s inal corresponden te, a l angue des s ignes s poder ia ser en tendida como sendo, necessr ia e logicamente, comum a todos os povos (SOUZA, 2003, p .334) . 14
( . . . ) cer ta vez l 'Epe concebeu o nobre p rojeto de devotar-se educao do surdo; ele sab iamente observou que el es possu am uma l inguagem natu ra l para se comunicarem ent re s i . Como essa l inguagem no era ou t r a seno a de s inais , ele sups que, se ele se empenhasse em compreend- l a , o t r iunfo de seu empreendimento ser ia assegurado. Esse d iscern imento foi recompensado com sucesso. En to o abade de l 'Epe no foi o inven tor ou o cr iador dessa l i nguagem; pelo con trr io , ele a ap rendeu com o su rdo; el e somente reparou o que encon trou incompleto nela ; ele a ampl iou e lhe deu regras metd icas (DESLOGES, 1984 , p .34 apud NASCIMENTO, 2006 , p . 258) .
22
abafar, no inferiorizar, no descaracterizar as diferenas, elevando e enfatizando aquilo que estava ausente no surdo frente ao modelo ouvinte (a audio, a fala, a linguagem), determinando o desenvolvimento de abordagens clnicas e prticas pedaggicas que buscavam o apagamento da surdez, por meio da tentativa de restituio da audio pelo uso de aparelhos de amplificao sonora, e de levar os surdos ao desenvolvimento da linguagem oral a partir de tcnicas mecnicas e descontextualizadas de treino articulatrio (LODI, 2005, p.416).
Praticamente um sculo de preponderncia do oralismo fez
aflorar uma realidade no muito satisfatria. Segundo Lacerda
(1996, p.15):
Os resultados de muitas dcadas de trabalho nessa linha, no entanto, no mostraram grandes sucessos. A maior parte dos surdos profundos no desenvolveu uma fala socialmente satisfatria e, em geral, esse desenvolvimento era parcial e tardio em relao aquisio de fala apresentada pelos ouvintes, implicando um atraso de desenvolvimento global significativo. Somadas a isso estavam as dificuldades ligadas aprendizagem da leitura e da escrita: sempre tardia, cheia de problemas, mostrava sujeitos, muitas vezes, apenas parcialmente alfabetizados aps anos de escolarizao.
2.4.3 Um flego em meio ao oralismo: uma filosofia hbrida de
transio
A insatisfao com os insucessos do oralismo possibilitou o
surgimento, na dcada de 70, de uma proposta diferenciada
que, de certa maneira, possibilitava a revitalizao da LS no
processo de ensino-aprendizagem dos surdos. Segundo Brito
(1993, p.31), essa perspectiva, tal como foi concebida,
propunha o reconhecimento das lnguas de sinais como direito
23
fundamental da criana surda. Nessa nova proposta
educacional, a premissa bsica era a utilizao de toda e
qualquer forma de comunicao com a criana Surda, sendo que
nenhum mtodo ou sistema particular deveria ser omitido ou
enfatizado (MOURA, 2000, p.57).
A Comunicao Total15, como foi batizada, utiliza todos os
recursos e tcnicas orais e manuais que possibilitam a interao
comunicativa tanto entre ouvintes e surdos quanto entre surdos
e surdos: gestos, mmica, fragmentos da LS, pantomima, leitura
labial, dramatizao, expresses faciais, datilologia, formas
sinalizadas da LO, pidgin, estimulao auditiva, prteses,
leitura, escrita, etc.
A Comunicao Total16 seria um hbrido do oralismo com o
gestualismo e, diferentemente do oralismo, defenderia que
somente o aprendizado da LO no asseguraria o pleno
desenvolvimento do surdo (GOLDFELD, 1997, p.36). De acordo
com Fernando Capovilla (2001, p.1483), a Comunicao Total:
Advoga o uso de todos os meios que possam facilitar a comunicao, desde a fala sinalizada, passando por uma srie de sistemas artif iciais, at chegar aos sinais naturais da Lngua de Sinais. [] A Comunicao Total advoga o uso de um ou mais
15 Nd ia de S ressa l ta que a tualmente o termo Comunicao Tota l tem s ido u t i l izado a par t i r de
d i feren tes en tend imentos : a) pode refer i r -se a um posic ionamento f i losf ico-emocional de acei tao do su rdo e de exal tao da comunicao efet iva pela u t i l izao de quai squer recursos d isponvei s ; b) pode refer i r -se abordagem educacional b imodal que ob jet iva o ap rend izado da l ngua da comunidade maj or i tr ia a t ravs da u t i l izao de todos os recursos poss vei s a lm da fa l a, quais sej am: lei tu ra dos movimentos dos l bios , escr i t a, p is tas aud i t ivas , e, a t mesmo de elementos da l ngua de s inais ; c) pode refer i r - se a um t ipo de b imodal i smo exato , que faz uso s imul tneo ou combinado de s inais ex t ra dos da l ngua de s inais , ou de ou t ros s inais gramat i cais no p resen tes nela , mas que so enxer tados para t raduz i r a l inear idade da l ngua na modal idade ora l e para auxi l iar v isualmente o ap rend izado da l ngua-alvo, que a ora l (S, 1999, p .99-102 apud S, 2002 , p .64) . 16
Vale ressa l tar que, embora a Comunicao Tota l su r j a, nos f ins do scu lo XX, como uma f i losof i a educacional , o abade LEpe j havia rea l izado propostas semelhan tes no Ins t i tu to de Surdos de Par is , no scu lo XVIII, ao cr iar os S inais Metd icos .
24
desses sistemas, juntamente com a lngua falada, com o objetivo bsico de abrir canais de comunicao adicionais. mais uma filosofia que se ope ao Oralismo estrito do que propriamente um mtodo.
A Comunicao Total demonstrou uma eficcia maior em relao
ao oralismo, pois ela possibilitou a presena da LS na escola
como um auxlio na aquisio da lngua falada e escrita.
Segundo Moura (2000, p.59), a Comunicao Total expandiu-se
nos Estados Unidos e em outros pases, tendo sido a forma pela
qual os Sinais puderam ser aceitos. Contudo, o uso simultneo
de diversos meios e cdigos comunicativos acabou por fazer da
prtica bimodal17 o centro de tal filosofia. Segundo Souza (1998
p.7):
Sinalizar o Portugus era como conseguir um meio-termo que aparentemente satisfazia aos dois grupos envolvidos. Se de um lado os surdos poderiam readquirir o direito de usar a LIBRAS fora da classe, de outro, na escola, os professores teriam sua tarefa de ensino facilitada com o uso de sinais. Essa aparente soluo era subsidiada pelas novas idias na Educao do Surdo, mais ou menos cristalizadas ou que giravam na rbita do que se comps com o rtulo de Comunicao Total.
Para Brito (1993, p.31), a Comunicao Total, tal como foi
sendo aplicada, deixou de representar uma perspectiva oposta
ao Oralismo, para se tornar apenas uma tcnica manual dele.
De acordo com Goldfeld (1997, p.97):
17 O b imodal i smo ser ia o uso s imul t neo de cd igos manuai s com a LO. E le se mani fes ta a t ravs da
u t i l izao da LO jun to a a lguns cd igos manuai s , ta is como o por tugus s inal izado (uso do lx ico da LS na es t rutura da LO e a lguns s inais inventados , para rep resen tar es t ru tu ras gramat icais do por tugus que no exi s tem na L ib ras) , o cued- speech (s inais manuais que represen tam os sons da LP) , o p idgin ( s impl i f i cao da gramt i ca de duas l nguas em con ta to) e, a t mesmo, a dat i lo logia ( rep resen tao manual das let r as do a l fabeto) .
25
A Comunicao Total apresenta aspectos positivos e negativos. Por um lado, ela ampliou a viso de surdo e surdez, deslocando a problemtica do surdo da necessidade de oralizao, e ajudou o processo em prol da utilizao de cdigos espao-visuais. Por outro lado, no valorizando suficientemente a lngua de sinais e a cultura surda, propiciou o surgimento de diversos cdigos diferentes da lngua de sinais, que no podem ser utilizados em substituio a uma lngua, como a lngua de sinais, no processo de aquisio da linguagem e desenvolvimento cognitivo da criana surda.
Embora a Comunicao Total tivesse de fato melhorado a
interao entre os professores ouvintes e os alunos surdos, o
conhecimento dos contedos escolares e as habilidades de
leitura e escrita ainda continuavam aqum do esperado (LIMA,
2004, p.34).18 Segundo Moura (2000, p.63),
Na verdade, o desenvolvimento das crianas Surdas melhorou muito com o Bimodalismo: elas podiam se comunicar de uma forma muito mais fluda, a comunicao oral no ficou prejudicada como muitos dos opositores das lnguas sinalizadas esperavam que acontecesse, o desempenho acadmico melhorou, mas nem todos os problemas foram solucionados.
18 Fernando Capovi l la (2001, p .1486) , rela ta que procurando descobr i r por que as au las em que se
ora l izava e s inal izava ao mesmo t empo no p roduziam a melhora esperada na aqu is i o da l ei tu ra e escr i t a a l f abt i cas , os pesqu isadores decid i ram regis t rar as au las do pon to de vi s ta de um aluno Surdo e, ento d iscu t i r com as p rofessoras o que poder ia es tar acon tecendo. Para tan to , eles f i lmaram as au las em Comunicao Tota l mini s t radas pelas professoras , em que el as s inal izavam e ora l izavam ao mesmo tempo. Ento, colocando as p rofessoras na pele de seus a lunos Surdos , eles ex ib i ram as f i t as s p rofessoras , mas sem o som da fa l a que acompanhava a sua s inal izao, as p rofessoras ex ib iam uma grande di f icu ldade em entender o que elas mesmas haviam s inal izado! As p rpr ias professoras perceberam en to que, quando s inal izavam e fa lavam ao mesmo t empo, elas cos tumavam omit i r s inai s e p is t as gramat icais que eram essencia is compreenso das comunicaes , embora at ento costumassem crer que es tavam a s inal izar cada palavra concreta e de funo gramat ical em cada sen tena fa lada . A concluso desconcer tan temente bvia foi a de que, durante todo o tempo, as cr ianas no es tavam ob tendo uma ver so visual da l ngua fa lada na sa la de au la , mas , s im, uma amost ra l ing s t ica incompleta e inconsi s ten te, em que nem os s inais nem as palavras fa ladas pod iam ser compreend idos p lenamente por s i ss . Em conseqncia daquela abordagem, para sobreviver comunicat ivamente, as cr i anas es tavam se tornando no b i l nges como se esperava, mas s im hemil nges , por ass im dizer , sem ter acesso pl eno a qualquer uma das l nguas , e sem conhecer os l imi tes en t r e uma e ou t ra .
26
Com o insucesso da Comunicao Total e o aumento
significativo das pesquisas em relao LS, surgiram novas
perspectivas para a educao de surdos, as quais passaram a
defender a idia de que a educao deveria utilizar a prpria
Lngua de Sinais natural da Comunidade Surda, e no mais a
lngua falada sinalizada (CAPOVILLA, 2001, p.1486).
2.4.4 Um novo avano: a filosofia bilnge
A educao bilnge para o surdo despontou no cenrio educacional como uma abordagem que visa no somente modificar a escolarizao para surdos que era norteada pelo visvel fracasso escolar, mas tambm para ir de encontro s prticas pedaggicas assumidas em abordagens educacionais anteriores que permearam (e de certa forma ainda permeiam) a educao de surdos (oralismo e comunicao total) (LIMA, 2004, p.37).
O bilingismo apresentou-se, a partir dos anos 90, no s como
uma reao s filosofias educacionais anteriores, mas como a
expresso de uma nova viso sobre a surdez, os surdos e a LS.
A proposta bilnge valoriza a LS como meio de desenvolvimento
do surdo nas diversas reas do conhecimento. Segundo essa
proposta, o surdo tem o direito de ter acesso educao
atravs de sua lngua natural, a LS, com a finalidade de
desenvolver a linguagem, o pensamento, a cognio, a
conscincia e sua identidade como qualquer outro indivduo. Nas
palavras de Skliar (1997a, p.143-4):
[...] o modelo bilnge prope, ento, dar s crianas surdas as mesmas possibilidades psicolingsticas que tem a ouvinte. Ser s desta maneira que a criana surda poder atualizar suas capacidades lingstico-comunicativas, desenvolver sua identidade cultural e aprender.
27
A substituio de um modelo de Comunicao Total por um
Bilnge amparou-se no s no insucesso dos modelos
anteriores, mas principalmente na nova maneira de olhar os
surdos, a surdez e as LS. Segundo Brito (1995, p. 15-6), os
estudos lingsticos sobre as LS mostraram:
as especificidades prprias de uma Lngua de Sinais, o que impossibilita o seu uso concomitantemente ao de uma lngua oral, apesar de se processarem atravs de modalidades distintas e exclusivas [] Esses estudos salientam, pois, a inviabil idade da comunicao bimodal, muito usada atualmente por aqueles que se dizem defensores da Comunicao Total.
importante ressaltar uma diferena bsica entre a
Comunicao Total e o Bilingismo. Na Comunicao Total, o
uso simultneo da fala e dos sinais torna impraticvel o uso
adequado da lngua de sinais que, por ser mais desprestigiada
e menos conhecida em sua estrutura, acaba por ter que se
moldar estrutura da lngua oral; j no bilingismo, pretende-
se que a LO e a LS sejam ensinadas e usadas diglossicamente,
porm, sem que uma deforme a outra (BRITO, 1993, p.46, 48).
Para Goldfeld (1997, p.160), o bilingismo seria a melhor
filosofia educacional para a criana surda,
pois a expe a uma lngua de fcil acesso, a lngua de sinais, que pode evitar o atraso de linguagem e possibilitar um pleno desenvolvimento cognitivo, alm de expor a criana lngua oral, que essencial para o seu convvio com a comunidade ouvinte e com sua prpria famlia [] possibilitando a internalizao da linguagem e o desenvolvimento das funes mentais superiores.
BrunellaPolygon
28
Em suas consideraes e crticas, Fernandes (2003, p. 55)
afirma que os ltimos 100 anos de educao de surdos, no
Brasil, foram mais do que suficientes para aprendermos como
no educar surdos e, tambm, como no formar educadores de
surdos. Diante dessa conturbada realidade, atualmente, as
pesquisas e as discusses com relao surdez, aos surdos,
sua lngua, educao e cultura tm crescido consideravelmente.
No Brasil, por exemplo, o desenvolvimento dos Estudos Surdos
tem-se tornado um marco na melhor compreenso e modificao
das propostas educacionais para surdos. Pode-se, inclusive,
afirmar que atualmente assistimos construo de um novo
paradigma da educao de surdos, o qual reconhece no s a
sua diferena, mas, principalmente seus direitos humanos
expressos na aceitao de sua lngua, cultura e identidades.
Essas mudanas relacionam-se ao surgimento de diversas
pesquisas, na segunda metade do sculo XX, abordando os
surdos e a surdez. Portanto, importante que se apresente um
esboo geral dessas pesquisas e de suas constataes e
apontamentos. O novo olhar acadmico e cientfico em relao
ao campo da surdez possibilitou as construes de novos
fundamentos educacionais e proporcionaram outros olhares
sobre os conceitos de lngua, cultura e aprendizado.