Post on 09-Jul-2020
Ane Braga
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Uns poucos raios solares espremiam-
se entre a vegetação densa das grandes
árvores da mata fechada.
A cacofonia de diversos anacãs
encobria o som das cascas de Angelim-
pedra pisadas por suas botinas já
gastas pelo tempo.
Inesperadamente o rastro de sua
presa, a tanto custo seguido, fora
perdido. Recomeçara a chover.
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Como caboclo forte que era aguentava
a alternância entre o calor
insuportável e chuva torrencial com
grande vigor.
Aquele outubro de 1700 estava quente
como o inferno.
Um fruto, talvez um ouriço, com
diversas castanhas em seu interior,
desabou sobre sua cabeça.
Decerto um coatá nervoso o tenha
lançado em sua direção para enxotá-lo
daquela área.
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Não que culpasse o pobre animal. Ele
próprio não sabia o que estava fazendo
no meio da mata àquela hora.
Plácido olhou ao redor e percebeu que
deixara para trás os grandes cedros e
angicos, e se adentrara na região das
castanheiras.
Andara muito pela mata.
O cansaço chegava até os ossos e seu
mosquete nunca pesara tanto.
Precisava urgentemente se refrescar
um pouco.
Sabia que andaria muito além das
castanheiras até encontrar ao menos
um veio d’ água.
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Lembrou-se do igarapé.
Olhou o céu quase invisível pelas
copas das árvores. Estremeceu.
Necessitava chegar ao igarapé
Murucutu antes que escurecesse, pois
sua lamparina estava sem óleo de
copaíba e, desta forma, não teria como
enxergar na escuridão.
Lamentava ter perdido o rastro de sua
caça. Quem dera sua presa estivesse
às margens do igarapé esperando por
ele. Mas, qual! Uma vez desafortunado
sempre desafortunado.
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Filho de um português fugido da
península, não se sabe muito bem o
motivo, e de uma bonita índia
convertida pelos jesuítas, sua triste
sina começara bem cedo.
Homem de muita fé e pouca vergonha,
seu pai logo fora chamado pelo criador
numa noite de muita bebedeira e
nenhum juízo.
Plácido ergueu os olhos novamente
para o céu. A chuva parara.
Depois de muito caminhar, finalmente
chegara às margens do igarapé.
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O mesmo que há anos tragara a vida
de seu pai bêbado.
Com amargura pelas lembranças,
sentou-se numa pedra e retirou as
botinas.
Velho tolo.
Deixara ao encargo de um menino, seis
irmãos e a desconsolada mãe.
Na pequena casinha de pau-a-pique, a
mãe cozinhava os brotos da terra que
as crianças buscavam na mata.
Aprendera a pescar antes mesmo de
escrever seu nome e caçara sua
primeira paca antes de contar até cem.
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A mãe, sempre zelosa, enfeitava a
pequena casa com suas esteiras feitas
de juncos.
Seus colares de sementes e seus belos
cestos eram vendidos nas pequenas
comunidades formadas por religiosos e
soldados, os mesmos que numa
manhã de mansa claridade, levaram
seus irmãos e sua mãe sabe-se lá
aonde, para o próprio bem deles,
enquanto ele estava na lida arando a
terra.
Mais tarde, enquanto vagava pela
mata, encontrara parte das vestes da
mãe.
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Estavam cheias de terra e sangue.
De seus irmãos, nunca soube.
Estavam perdidos entre o céu ou o
inferno.
Quanto a ele, perdera o pai, a mãe, os
irmãos e a fé. Sua outrora fervorosa fé.
Plácido massageou os pés descalços e
foi se refrescar no igarapé.
A tarde estava se despedindo e ele não
poderia ficar muito tempo ali.
Enfiou a cabeça na água e afundou
seus maus pensamentos.
Ao levantar a cabeça imaginou ter visto
algo entre as pedras lodosas.
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Passou a mão pelo rosto molhado.
Olhou melhor.
De cenho franzido aproximou-se do
objeto. Era uma santa.
A imagem de uma santa.
Abismado, perguntou-se quem a teria
deixado lá. Talvez alguma alma
desiludida como ele. Ou quem sabe,
não fosse pura pretensão de sua parte
pensar assim, a imagem estava ali
esperando por ele. Para dar-lhe
incentivo e apagar suas mágoas.
Restaurar sua fé.
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Pensando assim, Plácido retirou a
imagem da pedra lodosa, colocou-a
com veneração no chão enquanto
calçava suas gastas botinas e
pendurava seu mosquete atravessado
nas costas.
Pegou a santa com devoção e seguiu de
volta para casa.
O caminho de volta fora suave e
rápido.
De quando em quando Plácido ouvia o
sussurro da mata a seu redor e
inexplicavelmente o som parecia-lhe
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diferente agora. Mais reconfortante.
Melodioso. Divinal.
Chegou a sua pequena casa, não tão
pobre como a de seus pais, mas
igualmente humilde, e improvisou um
pequeno altar para a Santa.
Diante do pequeno altar, Plácido
elevou seus pensamentos e venerou a
Santa.
Ainda emocionado, recolheu-se a seu
pequeno quarto. Sem comer ou beber.
Pela primeira vez após tantos anos de
aflição, Plácido estava em paz.
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A manhã seguinte trouxe consigo a
esperança.
Plácido se levantou, fez as abluções
matinais e antes de pensar em saciar a
fome que o devorava, seguiu até a sala.
Qual não foi sua surpresa ao deparar-
se com o pequeno altar vazio.
Olhou o chão. Nenhum sinal de queda
da Santa.
Verificou portas e janelas. Nada fora do
normal.
Desolado e já sem fome, pensou que
talvez não fosse digno de esperança.
Seu destino seria perambular pela
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mata à cata de sementes e à caça de
animais para saciar sua fome.
Jamais seria alguém bom o suficiente
para ter uma família ou ser um pai de
verdade. O que seu pai jamais fora ou
se preocupara em ser.
Plácido pegou seu mosquete junto à
parede e saiu para o amanhecer
ensolarado.
A manhã já não parecia tão boa nem
os sons da floresta tão agradáveis.
Caminhou por um longo tempo e sem
que percebesse, estava novamente
junto ao igarapé.
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Na pedra lodosa do dia anterior, estava
inexplicavelmente a santa de suas
esperanças.
Eufórico, pegou novamente a santa e a
levou para casa.
Lá chegando, olhou para seu pequeno
e singelo altar.
Talvez a santa tivesse se ofendido com
tamanha simplicidade.
Mas, em nome de Deus, o que poderia
fazer para melhorar o altar?
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Num lampejo, veio-lhe à mente o
manto de sua mãe.
Belo, colorido, sagrado. Presente da
filha do pajé Taipassu quando a mãe
entrelaçara seu destino ao de seu pai.
Correu até o baú de cedro há muito
esquecido num canto do quarto e, com
olhos úmidos, forrou seu pequeno
altar de pedra.
Cerimoniosamente colocou a santa.
Feliz, saiu para caçar.
Ao voltar no final do dia, sua santa
estava lá.
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Certamente o manto de sua mãe fora
apreciado.
Com a ajuda de seu braseiro, colocou
a pequena ararajuba para cozer.
Provavelmente a refeição fora obra de
sua santa, já que a pequena ave estava
morta de queda bem no seu caminho.
Banhou-se. Tomou café forte. Jantou.
Seguiu até o altar para agradecer as
dádivas do dia e foi se deitar.
O amanhecer traria novas
esperanças.
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Plácido acordou radiante.
Levantou-se e rapidamente fez as
abluções. Correu para a sala.
A Santa sumira. Novamente.
Chocado, não compreendeu o motivo
do novo desaparecimento. Não sabia
onde estava errando e resolveu voltar
ao igarapé.
A santa esta lá. No mesmo lugar. Entre
as pedras lodosas.
Inconformado e confuso encontrou
alguns seringueiros conhecidos e
contou-lhes o caso.
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Incrédulos, os seringueiros queriam
ver se o caso era verdadeiro.
Plácido levou novamente a santa para
casa.
Os seringueiros acamparam ao sopé
da maçaranduba que fazia vezes de
divisa entre a mata e o suposto quintal
de Plácido.
Prepararam a própria comida e
dormiram no chão, confortados
somente pela pequena fogueira de
hipnóticas labaredas.
Da noite, fez-se a aurora.
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Mais uma manhã ensolarada se
avizinhava.
Santa do altar novamente sumira.
Plácido e os seringueiros praticamente
voaram até o igarapé.
Entre as pedras lodosas às margens do
Murucutu, a Santa.
Boquiabertos, os seringueiros
espalharam o misterioso caso da
santa que desaparecia da casa de
Plácido e voltava ao igarapé a todos
que encontravam.
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O assunto chegou ao governador que
ordenou que a santa fosse levada a
seu palácio e lá mantida sob severa
vigilância.
Pela manhã, a santa havia sumido
novamente e fora reencontrada às
margens do Murutucu, na mesma
pedra de sempre.
Devotos começaram a surgir.
Plácido encontrou amigos,
reencontrou a fé, formou uma família.
Quanto à santa, teve sua vontade
satisfeita.
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Uma ermida foi construída no já
famoso igarapé da pedra lodosa.
Por vizinho, ganhou Plácido. Seu fiel
mais fervoroso.
Daquele dia em diante a santa seria o
Círio a iluminar e a dar esperanças a
todos que a procurassem.
Seus milagres seriam conhecidos e
repassados geração a geração,
incutindo nos homens a certeza de
que há sempre superação, não
importando os obstáculos.