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Revista Interdisciplinar de Humanidades
Interdisciplinary Review for the Humanities
Para citar este artigo / To cite this article:
Figueira, Ana Rita. 2015. "O Mito de Helena de Tróia na Ópera King
Priam de Michael Tippett". estrema: Revista Interdisciplinar de
Humanidades 6, 127-171.
Centro de Estudos Comparatistas
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Centre for Comparative Studies
School for the Arts and the Humanities/ University of Lisbon
http://www.estrema-cec.com
O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam
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O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam de Michael Tippett
Ana Rita Figueira1
Resumo
Este artigo consiste numa reflexão acerca da representação do mito de
Helena na ópera King Priam de Michael Kemp Tippett, mediante uma
abordagem hermenêutica. Defende-se que a beleza de Helena simboliza o
sagrado. Para contextualizar, apresentam-se as linhas gerais do pensamento
do compositor, comenta-se a cosmovisão da ópera e definem-se os
conceitos-chave para o tema em análise. Mostra-se que Helena é totalmente
identificada com o ‘dionisíaco’ e define-se o sentido metafórico desta
noção. Esclarecem-se as dimensões desta utilização e explicita--se a sua
relação com o conhecimento sensorial. Explica-se que este conhecimento é
poder e que conduz a uma forma de poder, que, aliado ao sentido último da
beleza que distingue Helena, a inscreve no domínio da sensibilidade, mas
também lhe descobre uma dimensão trágica. Considera-se que estes
elementos constituem uma ética amoral e que neles se gera uma verdade que
é experiência do sagrado. Comentam-se alguns aspectos musicais que
confirmam esta compreensão. A sustentação teórica procede das
proposições de Clarke (2001) e de Serra (1986) acerca do Dionisíaco, e a
teoria ontológica do sagrado de Eliade (1978) está na base da tese
defendida.
Palavras-chave: King Priam, Helena, Dionisíaco, Sagrado, Beleza
Abstract In this article, I present a reflection on the representation of the Myth of
Helen of Troy in Michael Tippett’s King Priam from a hermeneutic point of
view. I briefly present the author’s thought and this opera’s cosmovision
and I provide a concise account of some key concepts for this study. In this
discussion I show that Helen is totally identified with the ‘Dionysiac’ that is
used here as a metaphor. A definition of its dimensions aims to show and
explain the elements that distinguish Helen’s beauty from Andromache’s
and Hecuba’s. Examination of discourse and music adds to this, disclosing a
kind of knowledge that is sensitive and tragic. I further argue that this
knowledge is power and leads to power. A particular focus on those
concepts – the sensitive knowledge and the Dyonisiac – displays an amoral
ethics. Clarke (2001) and Serra’s (1986) propositions provided theoretical
support to discuss the Dyonisiac and Eliade’s (1978) ontological approach
of the sacred as a starting point for supporting the thesis that Helen’s beauty
is a symbol of the sacred.
Key Words: King Priam, Helen of Troy, Dyonisiac, Sacred, Beauty
1 Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam
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Introdução
A primeira parte desta investigação tem uma tripla orientação. Em
primeiro lugar, pretende familiarizar o leitor, de um modo geral, com o
compositor; em segundo lugar visa enumerar alguns aspectos teóricos que
foram decisivos para a composição do libretto de king Priam; em terceiro
lugar pretende informar acerca do enredo da ópera e do seu conteúdo, de
modo a esboçar o mapeamento da cosmovisão que a distingue.
Referem-se alguns aspectos musicais com o propósito singular de
reforçar o que é dito acerca do enredo. Finalmente elucida-se o papel de
Helena neste alicerce e segue--se com a análise da dimensão de King Priam
que motivou este estudo, ou seja, que Helena é símbolo do sagrado.
A segunda parte tem uma directriz: identificar e comentar a noção de
sagrado que está associada a Helena. As opções metodológicas para o fazer
são, em primeiro lugar, enunciar os aspectos gerais do mito de Helena na
recriação de Tippett; em segundo lugar, revisitar o Canto III da Ilíada
(vv.126-129), com a intenção de mostrar como algumas particularidades que
singularizam Helena podem contribuir para aquela recriação; em terceiro
lugar esclarecer o sentido em se utiliza a metáfora do Dionisíaco; e,
finalmente, comentar excertos do libretto, tomando como referência a teoria
ontológica de Eliade acerca do sagrado, por ser, de entre o amplo quadro
teórico que procura explicar tal noção, a que mais se adequa a este contexto.
I King Priam: Aspectos gerais acerca do compositor e da ópera
O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam
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O Compositor e a Ópera
Michael Kemp Tippett (1905-1998), que foi distinguido com o título
de Cavaleiro de Sua Majestade em 1966, é um dos mais reconhecidos
compositores britânicos que nasceram na primeira geração do século XX,
entre os quais se encontra Britten. O seu pensamento e percurso artístico
caracterizam-se pela pugna constante para compreender e reconciliar a sua
criatividade espontânea e o modo de pensar do período em que viveu, em
que cada ponto de vista tem a sua validade. A sua música diferencia-se pela
disponibilidade que singulariza a abordagem modernista da harmonia,
revelando uma expressividade e um colorido que não se subordinam aos
procedimentos e prioridades ditados por épocas anteriores, nem se
enquadram nas tendências contemporâneas. A lógica que daí resulta, por
não ser evidente, motiva a rejeição do seu trabalho por alguns críticos e
maestros (Bowen 2014), mas também lhe garante aclamação internacional e
desperta o interesse académico, onde se distingue o estudo seminal de Ian
Kemp (1987).
A liberdade exuberante de Tippett foi menosprezada, em face dos
compositores mais jovens, que se distanciavam dos seus procedimentos, ou
por adoptarem um estilo mais rígido ou ainda por manterem associações
directas com os cânones.
Tippett foi também autor de diversos ensaios originalmente reunidos
em duas publicações, Moving into Aquarius (Paladin Books, 1974) e Music
of the Angels: Essays and Sketchbooks (Eulenburg Books, 1980), este
último editado por Meirion Bowen, ainda hoje consultor da academia
britânica para os estudos tippettianos.
O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam
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A sua segunda ópera, King Priam, com libretto da sua autoria, foi
estreada em 1962 durante o festival comemorativo da reconstrução da
catedral de Covent Garden, que fora destruída por bombardeamentos
ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial.
Escrita no enquadramento das convicções pacifistas de Tippett, esta
ópera problematiza temas como a compaixão e a validade das leis de causa e
efeito, que servem o propósito de questionar a paternidade, a angústia, a
paixão, a euforia, a dor, a vergonha e a morte. Transparece nesta abordagem
que a condição humana carece de um centro de convergência, o que origina
uma existência fragmentada que se caracteriza pela ignorância de
identidade, pela ausência de um sentido de vida e de uma cultura partilhada.
Esta concepção manifesta-se na utilização da linguagem pantonal,
que se distingue por os seus elementos não convergirem para um centro
tonal comum e ainda por integrar no próprio processo de criação
características como a ambiguidade, a incerteza e imprevisibilidade. A
pantonalidade é, por estes motivos, adequada, por um lado, para dizer
musicalmente aquela condição e, por outro lado, para expressar a
experiência do sagrado, que, em relação a Príamo, se manifesta no seu
íntimo como questão vital que emerge da dimensão irredutível e
injustificada do seu sofrimento, ou seja, daquilo que suportou. Com efeito, a
noção de sagrado que está associada a Príamo não se acha na imediatez do
quotidiano, mas sim no olhar que se desvia desta, involuntariamente e de
modo imprevisível, para penetrar o seu interior e dele emergir, integrando-
se na experiência do quotidiano como acção espontânea e genuína (“The
soul will answer from where the pain is quickest”, “A father come to
O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam
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ransom the body of his son”, III, ii; Segundo Interlúdio; as referências são
ao acto e à cena).
O questionamento surge como sendo inevitável e exprime a
curiosidade e a necessidade humanas de conhecer e de tornar mensurável o
que acontece à sua volta. Particularmente mediante o percurso de Príamo,
observa-se que ao medir, quantificar, racionalizar, formatar e unificar
aspectos essenciais e sagrados da vida, se trava o seu movimento e se anula
a sua espontaneidade e individualidade. Com esta anulação, compromete-se
também a vitalidade e a intimidade do processo de achamento de um sentido
de vida para além de tudo o que é mensurável e mais humano. Não quer isto
dizer que King Priam apresente o questionamento como indesejável. De
facto, pela inquirição o homem tenta realizar-se maximamente e procura
transcender a condição que o aprisiona. Essa realização não pode ser
previamente definida, mas é achada no próprio processo da procura,
expondo o ser humano ao perigo da hybris. Porém, é neste processo que
encontra a sua humanidade e a dos que os rodeiam.
King Priam começa com uma pergunta, desenvolve-se mediante um
processo inquisitivo e termina com uma questão. Nesta ópera, o
questionamento é um processo interminável, em que a obsessão por uma
resposta definitiva expõe ainda mais a fragilidade da condição humana. O
silêncio sugerido pelas últimas notas pode ser entendido como expressão da
noção de que o antagonismo (“a father and a king”, I, i) e a contradição (“I
love my home, but I want adventure”, I, iii), presentes na ópera, são
inalienáveis do ser humano. Enfatiza-se assim a perpetuidade do
questionamento como traço distintivo do Homem, sugerindo-se que, no
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silêncio entre interrogações, o ser humano acha o sagrado, como algo real
que o transcende e transfigura. A ausência de uma conclusão objectiva e
concreta confere maleabilidade ao fim desta ópera e, por isso, Kemp (1987,
370) considera-o inconclusivo. Porém, aquele silêncio e esta ausência
salientam o achamento do sagrado como algo interior e individual, porque
acontecem imediatamente, e também em simultâneo, à mais profunda
expressão de sofrimento, solidão e impossibilidade de nomear a perda vital
que daí resulta. Assim sendo, tal silêncio e tal ausência constituem um
espaço de circulação entre aquelas expressões extremas, onde se origina a
possibilidade de convergência simultânea entre duas experiências
antagónicas (o medo e o fascínio em face de algo que a razão não explica),
que convergem num tecido de angústia (“I see mirrors, myriad upon myriad
moving the dark forms of creation”, III, iv) e de plenitude (“Why do I speak
gently now, below the screams of the dying […]”, III, iv). Tal resultado
expressa libertação dos condicionamentos que impedem o contacto com
aquilo que constitui o fundamento de vida da personagem (“Where the pain
is quickest. O Hector, my son, my son.”, III, ii) e sugere o renascimento,
noções que definem a plenitude de Príamo.
Este momento final revela o sagrado como uma experiência estética,
vindo, assim, aliar-se à dimensão ética que também distingue a noção
‘sagrado’ associada a Príamo.
Assim sendo, a conclusão aberta de King Priam mostra ainda que a
obra artística é insuficiente, por um lado, para responder satisfatoriamente
às situações de sofrimento injustificado e, por outro lado, para expressar o
estado de tranquilidade que simultaneamente distancia Príamo daquelas
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situações, mas que simultaneamente descortina o seu mais profundo
envolvimento com as mesmas.
Por outro lado, Príamo, que é identificado com o estado racional, e
Helena, que é associada ao estado sensível, nomeadamente a Eros, mostram
uma conclusão perfeita (perfecta), uma vez que representam a aliança
equilibrada entre sensibilidade e razão. No entanto, o assassínio de Príamo e
o fim musical subsequentes não pode ser ignorado, o que indica que aquela
aliança simboliza o plano do ideal, ao passo que o acto de brutalidade e de
crueldade representa o plano do real. King Priam termina não com um fim
inconclusivo, mas com uma conclusão que espelha a compreensão de que
estados de barbárie (crueldade e brutalidade) e de civilização (sensibilidade
e razão) se alternam continuamente.
Reconhece-se que a intertextualidade e o pleno aproveitamento da
ambivalência das alusões é o resultado de uma cuidadosa mistura de
influências que corresponde à culminação de um processo datado entre 1953
e 1962. A metodologia seguida pelo compositor assenta em quatro regras
definidas por si: (1) “o autor dramático alcança com as palavras o que o
compositor consegue mediante a música”, (2) “quanto mais colectiva se
pretende que uma experiência imaginativa e artística seja, tanto mais
involuntária é a descoberta de material adequado” (3) “enquanto a matéria
colectiva mitológica é sempre tradicional a especificidade do século vinte
consiste na capacidade para transmutar este material numa experiência do
nosso quotidiano” (4) “na ópera os esquemas musicais são sempre ditados
pelas situações”, ou seja, a música deve ser as situações (Tippett 1974, 57).
O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam
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Estas regras, em particular a segunda e a terceira, estão presentes na
abordagem das quatro principais fontes que alicerçam King Priam: o legado
da Grécia antiga, as tragédias de Racine, a interpretação destas feita por
Goldmann em Le Dieu Caché e as orientações estruturais do teatro épico de
Brecht.
O legado da Grécia antiga é incontestável, não só para o estudo de
King Priam, mas também para a compreensão do pensamento de Tippett,
uma vez que o seu sentido do divino e do transcendente se encontram na
tragédia grega e não no Cristianismo.
Apesar de se verificarem discrepâncias e sobreposições, a cada fonte
corresponde uma função. Por exemplo, King Priam assenta
fundamentalmente na matéria que colhe e retrabalha dos trágicos gregos, da
mitologia grega e ainda da Ilíada de Homero. As noções de piedade e terror,
que também são uma presença importante nesta ópera, reportam-se à
Poética de Aristóteles. Porém, a interpretação daquelas noções provém das
tragédias de Racine, da interpretação destas que é feita por Goldmann em Le
Dieu Caché e ainda de Brecht e não da leitura directa da Poética. Assim,
constata-se que King Priam encontra em Racine uma orientação
relativamente à abordagem da herança grega, conferindo-lhe um sentido
contemporâneo, que adapta à sua cosmovisão. A principal influência que
toma deste autor é tema do arbítrio em torno do qual esta ópera se
desenvolve. No que diz respeito a Goldmann, o compositor não partilha a
sua visão dialéctica da História, mas aproveita a sua leitura de Racine, de
acordo com a qual o protagonista trágico é acometido e aceita as
consequências de algo que o transcende, percebendo claramente que não
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tem nada em comum com o mundo a que pertencia antes desta
compreensão, nomeadamente porque tem uma perspectiva objectiva da sua
condição. Finalmente, algumas orientações estruturais do teatro épico de
Brecht são particularmente visíveis no enredo depurado desta ópera e na
articulação entre cenas, porém Tippett recusa abertamente a teoria
brechtiana no seu aspecto político e na sua intenção didáctica. De facto,
nesta ópera transparecem aspectos formais em comum com o teatro daquele
autor, como, por exemplo, as cenas autónomas apresentadas em quadros, ou
a apresentação abrupta dos acontecimentos, ou ainda os comentários e a
possibilidade de leitura não-linear e nos diálogos sóbrios (Pollard 1995, 72-
86).
Em King Priam não transparece um determinado modelo de
tragédia, nem as complexas relações que referimos são lineares, mas devem
ser consideradas e analisadas por serem uma componente importante para a
cosmovisão desta ópera (cf. Pollard, Rowena e Clarke 1999, 168). A
construção constelar da ópera conta ainda com alusões ou citações directas a
autores como Eliot, seu mentor, Yeats e Shakespeare, que são referências
fundamentais para o novo humanismo2 que distingue Tippett como um
compositor que criou uma tradição própria, quer por ter seguido a sua
vocação, não se tendo subordinado ao gosto da sua época (Mattthews 1980,
[13]), quer por o seu pensamento reflectir uma preocupação profunda com
questões fundamentais acerca do Homem e do seu posicionamento no
mundo, que está ancorada num vasto corpus teórico, mas não se segue uma
2 A bibliografia crítica considera que Tippett é um autor pós-romântico modernista, “post-
romantic modernist” (Clarke 2001, 5; Whittall 2006, 77).
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só orientação, o que justifica afirmar que Tippett faz filosofia sem filosofia,
ou seja, sem uma linhagem filosófica (Clarke 2001, 7).
Fundamentalmente, King Priam reflecte uma aliança formada pela
fricção entre o materialismo e o realismo, particularmente associados ao
século XX, e as aspirações ao ideal e ao absoluto que caracterizam o
romantismo do século XIX. Efectivamente, o materialismo manifesta-se,
por exemplo, no interesse exclusivo de Hécuba pelo domínio político (I, i)
ou ainda nos comentários entre os convivas que assistem ao casamento de
Andrómaca e Heitor; o realismo é evidente nas observações do coro ou
ainda nas razões evocadas por Hécuba relativamente aos motivos da guerra
(III, i), por aquelas constituírem uma representação independente de
qualquer idealização ou transfiguração do plano histórico. Ao invés, os
matizes associados ao romantismo emergem da constatação da perpetuidade
dos antagonismos e das contradições presentes em todas as dimensões da
vida, do desejo de as transcender (“a father and a king”; “why give us
bodies with such power of love, if love’s a crime?”, I, i; II, Segundo
Interlúdio) e da noção desta impossibilidade (“[…] I accept the trick of fate
[…] let it mean my death!”, I, ii).
Em relação à música, a heterogeneidade e a liberdade com que alia e
relaciona o passado musical com o contemporâneo mantém-se fiel a esta
caracterização. Esta ópera não corresponde a um género perfeitamente
delimitado, mas a um todo formado por elementos épicos (por exemplo, a
compreensão do Homem como sendo um processo e uma fonte de
inquirição capaz de se transfigurar e de transfigurar os outros), trágicos (o
confronto com imperativos antagónicos; a necessidade de agir de acordo
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com a sua vocação) e mesmo líricos, como é exemplo a ária de Hermes. Por
estar identificado com a ideia de circulação e por se apresentar em
momentos decisivos, Hermes simboliza a necessidade de circular (“the god
who’s tied to nothing”, II, Primeiro Interlúdio), que é uma ideia
particularmente relevante para a caracterização dionisíaca de Helena.
Esta mistura resulta numa forma de entender a vida em que o
racional e o dionisíaco convergem para a mesma compreensão trágica,
sendo, portanto, apresentados como análogos, embora seguindo por vias
diferentes.
Como se pretende demonstrar nesta reflexão, ao dionisíaco
corresponde o conhecimento sensorial e do seu encontro com o
conhecimento lógico vai surgindo a vivência do trágico como evidência.
Esta evidência deriva de uma clarificação espiritual que é
simultaneamente uma revelação, que deve ser identificada com um processo
de achamento interior, sem discussão possível, como demonstra o encontro
de Príamo e Helena no último diálogo da ópera. Helena é claramente
identificada com o dionisíaco, enquanto o trágico em Príamo se encontra
mais associado a uma dimensão racional que resulta de pensar acerca das
experiências viscerais que correspondem a um aspecto do dionisíaco.
Assim, no final o estado de conhecimento que caracteriza ambos é íntimo e
espontâneo, integrando-os totalmente em algo que já estava neles.
A esse estado corresponde o amor que é indiscutível e consiste numa
experiência de fidúcia da relação com o outro, singularizando-se ainda por
uma mobilidade que actua como sentido de vida, motivando a vivência em
sua função.
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Corroboram esta interpretação as diferentes manifestações de amor
observáveis em King Priam. Hécuba vive em função do seu amor pelo
poder, enquanto o amor pela família é o sentido de vida de Andrómaca,
assim como o amor pelos filhos move Príamo e o amor erótico une Páris e
Helena, enquanto para Heitor impera o amor pela pátria e pela família.
Para este artigo interessa o aproveitamento que se faz em King
Priam do mito enquanto força potencial capaz de imaginar situações
racionais nas quais se questionam e procuram compreender formas de sentir
e de estar no mundo que são universais da condição humana e como tal
constituem memórias de impressões sensíveis. Afirma-se, portanto, que em
King Priam a representação do mito é afectiva e não mimética, uma vez que
nela se expressa a tragédia como valor universal e perene na vida humana.
A questão do arbítrio, por ser apresentada como intemporal e
inevitável e por estar presente em todos os aspectos e fases da vida humana,
é uma categoria importante para o delineamento da silhueta do trágico nesta
ópera. As restantes derivam da abordagem da Ilíada que nela se encontra. A
estratégia que confere o protagonismo a Príamo possibilitou que se
reunissem numa família sua mulher (Hécuba), os seus filhos (Heitor e Páris)
e as mulheres destes (Andrómaca e Helena), e se explorasse o intrincado
tecido das relações humanas, problematizando a culpa, o conhecimento, a
necessidade e a liberdade, no seio familiar.
O destino mescla-se nestas relações, e a acção humana, apesar desta
intromissão, é considerada relevante, necessária e inevitável, entendendo-se
ainda que o homem é responsável pelos seus arbítrios (cf. Schlesinger 1963,
O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam
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23). Estes pesam sobre si e sobre os outros, fazendo de todos responsáveis
pelos seus actos.
Sintetizando: o conflito, o destino, a liberdade, a culpa, o
conhecimento e a necessidade são a herança da tragédia grega (cf. Serra
2006, parte II) que se discerne na silhueta trágica de King Priam.
Estes aspectos são corroborados na música por elementos que
regressam de cenas anteriores e que são transportados de umas personagens
para outras. Estes procedimentos expressam o entendimento do tempo como
devir, deixando clara a rejeição da sua compreensão como progressão. A
atribuição de um tema próprio à ideia ‘ciclo’ e mesmo ao objecto ‘berço’,
por um lado, confirmam este entendimento e, por outro, reafirmam a
cosmovisão trágica nesta ópera, uma vez que o ciclo assim como o berço
comportam a ideia de eterno retorno.
O que retorna é o mesmo mas a recepção deste retorno é diferente,
constatando-se que as possibilidades de responder de uma forma coerente
aos problemas existenciais se encontram limitadas à estrutura da
personalidade humana. A forma de reagir pode, no entanto, corresponder a
situações históricas diferentes e mesmo contraditórias. Justifica-se, portanto,
que a mesma ideia passe por renascimentos sucessivos e que em tempos
diferentes a mesma visão assuma também aspectos diferentes (cf. Clarke
2001, 5). A compreensão final de Príamo demonstra a necessidade de
questionamento perpétuo e o retorno de universais (“I see mirrors, myriad
upon myriad moving the dark forms of creation”, III, iv).
O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam
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As personagens individuais, como a Ama, o Ancião e o Jovem
Guarda desagregam-se do coro, dando expressão às questões existenciais de
Príamo, equacionando a sua dimensão dual e ambígua.
Musicalmente esta situação expressa-se em discretos grupos e solos
destacados da orquestra, que raramente funciona como um todo, o que
comunica a inexistência de uma cultura comum, tal como já se referiu. A
estes elementos alia-se um som dissonante3 e agressivo que diz o
sofrimento, a dureza e a brutalidade que se observam no discurso.
Estruturalmente, a ópera está alicerçada em três actos, com a duração
integral de 138 minutos, cujas cenas, com uma leitura autónoma, directa e
coerente, se articulam entre si em quadros. Todavia, uma vez que são
constituídas por fragmentos separados que contrastam entre si, o resultado é
uma complexa estrutura em mosaico, em que a linearidade da leitura
permanece mas a ambiguidade que também a individualiza motiva e
legitima uma leitura não-linear. Assim reforça-se a ideia de ‘viagens
distintas’4, que é enfatizada com a atribuição de um tema único a cada
personagem (cf. Bowen 2014).
A instrumentalização é também selecta. Ideias (ciclo), objectos
(berço) e conceitos (guerra) caracterizam-se por um tema próprio que lhes
confere a importante função de corroborar a ambivalência das dimensões
que compõem a vida e que o discurso continuamente lembra. Do mesmo
modo, a tendência para procurar a conciliação entre forças apolíneas e
dionisíacas sobressai, em particular, nos solilóquios de Príamo e de Páris,
como expressão daquelas e a acção de Páris, como revelação destas.
3 O termo ‘dissonante’, neste contexto, designa entendimentos díspares.
4 Cf. Goldman, A. 1992. “The Value of Music”, The Journal of Aesthetics and Art
Criticism vol.50, 1 (1992):41.
O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam
142
Quanto às opções musicais, a predominância do canto declamado, a
que se alia a clareza da composição, são expressões associadas ao apolíneo,
ao passo que a fanfarra inicial, os gritos corais da palavra ‘war’, assim como
a agressividade sonora das trompetas, piano e percussão5 (Kemp 1987) são
elementos identificados com o dionisíaco, na sua dimensão de crueldade e
de brutalidade. Esta expressão violenta, quando é rodeada por momentos de
quietude e de tranquilidade (a ária de Hermes e a conversa entre Príamo e
Helena), evidencia que nesta ópera o sagrado se revela nestas condições
extremas e inexplicáveis.
Finalmente, a heterogeneidade que individualiza o discurso de King
Priam está ainda presente na música6 (Pollard 1995, 91). Notam-se
diferentes estilos, que incluem momentos de tonalidade, bitonalidade,
pantonalidade, e percebem-se tensões entre sétimas modais e diatónicas. A
utilização da escala Lídia sem resolução melódica e os nichos bitonais e
modais são ainda aspectos que contribuem para a diferença notada. Esta
liberdade de linguagem e diversas alusões a tradições estilísticas distintas
causam alguns problemas, uma vez que a ligação entre as linhas vocais e
instrumentais, na sua relação com a harmonia tradicional e a atonalidade,
nem sempre é clara. No entanto, a expressividade plena de sentido
sobrepõe-se àquelas questões.
A personagem Helena representa o axis mundi deste universo, como
presença real que, nada fazendo, transfigura, liberta e assim possibilita o
confronto com a alteridade totalmente outra. A sua presença é sagrada e é
5 Cf. Kemp, Ian. Tippett: The Composer and His Music, p. 364.
6 Cf. Pollard, Rowena Jane. 1995. “From Ancient Epic to Twentieth-Century Opera: the
Reinvention of Greek Tragedy in Tippett’s King Priam.” p.91.
O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam
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catalisadora do sagrado. A segunda parte deste artigo explora algumas vias
desta função.
II - O Mito de Helena em King Priam
Defende-se a tese de que a beleza de Helena é um símbolo do
sagrado. Não se pretende proceder a um estudo exaustivo deste tema
complexo e pleno de singularidades, que comprometem uma apresentação
demonstrativa, mas tão só apurar elementos que permitem delinear a
acepção do sagrado na cosmovisão que orienta esta ópera, particularmente
aqueles que estão associados a Helena. Outras acepções desta noção estão
agregadas às restantes personagens, por exemplo, a de Lévinas (1977),
sendo que nenhuma corresponde a uma linhagem teórica pura.
Tendo em conta que a ambiguidade de tudo o que aparece como
unidade é uma dimensão importante em King Priam e que Helena manifesta
características contraditórias mas indissociáveis — nomeadamente, a sua
beleza, que fascina mas também horroriza, analisa-se o que está por detrás
dessa ambivalência, partindo de um axioma sugerido pela teoria ontológica
de Eliade7. Assim, entende-se o sagrado como achamento da relação
frutífera que o homem estabelece com o meio envolvente, tendo presente a
noção de que faz parte desse meio, aí encontra algo inegavelmente real e
que o transcende.
7 M. Eliade, L’Epreuve du labyrinthe: Entretiens avec Claude-Henri Rocquet (Paris,
Belfond, 1978: 175): "Comment délimiter le sacré? C’est très difficile […] en tout cas, […]
Il est impossible d’imaginer comment la conscience pourrait apparaître sans conférer une
signification aux impulsions et aux expériences de l’homme. La conscience d’un monde
réel et significatif est intimement liée à la découverte du sacré. Par l’expérience du sacré,
l’esprit a saisi la différence entre ce qui ce révèle comme réel, puissant, riche et significatif,
et ce qui est dépourvu de ces qualités, et ce qui est dépourvu de ces qualités, c’est-à-dire, le
flux chaotique et périlleux des choses, leurs apparitions et leurs disparitions fortuites et
vides de sens […]".
O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam
144
A experiência do sagrado em King Priam é sempre uma relação de
deslumbramento que resulta da perpétua novidade nessa relação com o
mundo, onde se forma a consciência identitária, sendo esta a única realidade
que se conhece (por exemplo, I, ii; iii; III, i; iv).
O que se observa em King Priam não é uma representação artística
da teoria ontológica de Eliade, mas a ambivalência, a identidade e o sentido
de que existe algo real e diferente em cada experiência são elementos em
comum com a representação de Helena nesta ópera. Com os elementos que
se analisam em seguida procura-se demonstrar esta concepção do sagrado.
Assim sendo, identificam-se aspectos daquela representação que se
intersectam com o universo de Dioniso e, por não constarem da tese de
Clarke, cuja metáfora do dionisíaco serviu de ponto de ancoragem a este
artigo, possibilitaram uma abordagem mais completa desta temática.
Aspectos Gerais do Mito de Helena em King Priam
Define-se agora em que medida Helena é dionisíaca e identifica-se
esta compreensão com o conhecimento sensível, associando-o a uma forma
de conhecer intuitiva e não-discursiva. Este modo de conhecer consiste na
memória impressa nos sentidos e, por esse motivo, é também a verdade
única e inalienável que distingue a sensibilidade afectiva de Helena. A
atenção que lhe permite identificar e mesmo apreender simultaneamente
estas impressões corresponde à aceitação da plenitude sensorial e,
consequentemente, a uma forma de conhecer que é tão plena e profunda que
conduz, tal como a via racional, à clarificação trágica. Esta tensão dualista
entre sensibilidade e razão é constante em King Priam. Para Tippett, tal
O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam
145
tensão, na arte, consiste na ‘unidade mágica’ (“a magical unity”) em que
Dioniso e Apolo ocupam o primeiro lugar alternadamente (“[…] sometimes
Dionysus wins, sometimes Apollo”, Tippett, 1998, 208). Naquela
compreensão está implícito que a sensibilidade que caracteriza Helena não
se reduz à imediatez, ela é a realização madura da experiência que resulta de
um processo de refinamento sensorial. Por isso, Helena simboliza a
maturação do conhecimento sensorial que lhe confere uma sabedoria
trágica: “She is the opera’s representative of the onthological. Her
identification with the Dionysiac ground of existence, that is, with the
nature, is total. She therefore recognizes the futility of action and in this
sense inhabits the tragic universe.” (Clarke 2001, 84).
Helena não está subordinada a nenhuma moral nem a nenhuma ética,
considerada no seu sentido de regramento das condições morais, mas ela é a
representação da verdade única que assenta na experiência do sagrado como
vivência dionisíaca e trágica. Esta vivência revela-se na apreensão da
ambiguidade, da confusão e da ambivalência que constituem a vida e as
inter-relações humanas. Afirma-se assim o dionisíaco, o trágico e o sagrado
como tríade indissociável da noção de beleza que singulariza Helena.
Esclarecidas as noções orientadoras desta reflexão, examina-se agora
a primeira referência a Helena na Ilíada, com o objectivo de mostrar que o
acto de bordar contém pontos de contacto com a metáfora do dionisíaco, na
sua dimensão. Delimita-se o sentido em que esta figura de estilo é utilizada
e prossegue-se, elucidando a sua relação com o poder atribuído a Helena.
Segue-se com a análise deste tema, comentando-se, por esta ordem, a ária de
O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam
146
Helena (‘Let her Rave’), o julgamento de Páris e a noção de beleza e,
finalmente a conversa entre Helena e Príamo.
Helena de Tróia na Ilíada
No Canto III da Ilíada, vv. 126-129, Helena borda uma peça de
grandes dimensões, com “dobra dupla”, em que representa “muitas
contendas de Troianos domadores de cavalos e de Aqueus vestidos de
bronze: as contendas que por causa dela tinham sofrido às mãos de Ares”.
Bordar é fazer uma impressão original que se entretece em algo que existia
anteriormente a essa acção e é transformado por ela e por sua vez também
transforma. É ainda um acto que, particularmente por se tratar de uma
grande peça complexa, implica tempo, atenção, paciência, pensamento e
conhecimento. Relativamente ao tempo, bordar é acto ritual orientado pela
precisão, pela lentidão e que se expressa mediante a análise que celebra a
criação cósmica, recriando-a. Este facto implica atenção e paciência para
repetir o mesmo gesto em lugares diferentes, para formar um desenho
complexo em que a cada ponto corresponde um e só um lugar na trama.
Tal acto procede espontaneamente da manifestação do conhecimento
sensível que sobressai, por um lado, na compreensão de que a humanidade é
motivada e age tendo em conta o conflito originado pelo impulso para
dominar. Por outro lado, bordar o conflito é também resolvê-lo, uma vez
que a lentidão deste gesto gera uma cadência mimética do ritmo interior,
onde se misturam lembrança, esquecimento e novidade. Daí, o coração de
Helena, enquanto borda contendas, ser tocado pela doce “saudade do
primeiro marido, da sua cidade e dos seus progenitores” (vv.139-140).
O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam
147
Assim, observa-se que não só segue o ritmo interior, mas que este também
está intrinsecamente ligado às condições exteriores, de forma que
transparece a sua história particular enquanto Helena de Esparta e Helena de
Tróia, a História universal da condição humana e a do intrincado tecido
formado por esta mistura. O acto de bordar corresponde, assim à
transfiguração da vida pela morte daquilo que é efémero, tal como em King
Priam acontece na ária de Helena.
O entendimento e a aceitação da existência de um destino implacável
e insinuante que a todos envolve e arrasta estão subjacentes àquele gesto. O
pormenor da “dobra dupla” alia-se a esta compreensão, complexificando-a,
uma vez que se pode interpretar este detalhe como metáfora para a
ambivalência dos aspectos que compõem a vida. O silêncio de Helena
sugere a dimensão trágica da sua compreensão.
Considerando integralmente esta cena, o olhar contemporâneo pode
entendê-la como metáfora para a reavaliação objectiva da vida, assente na
atenção a tudo o que a compõe, particularmente à dupla condição que cabe a
cada um e que desencadeia acções individuais com consequências
universais. Este entendimento sugere o peso da responsabilidade, mas
também reconhece que na apreensão atenta às dimensões da vida se acha
um sentido de transcendência que permite olhá-la com a distância suficiente
e o foco necessário para apreender o seu sentido último.
A Metáfora do Dionisíaco
Na representação do dionisíaco em King Priam está implícito que o
sagrado assenta na compreensão da noção de beleza que distingue Helena,
O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam
148
diferenciando-a de Andrómaca e de Hécuba. O mistério, o terror e o
tremendo são características que singularizam aquela e que lhe conferem
poder, aproximando-a da sua epónima mítica. Importa, portanto, indagar o
seu sentido para compreender como a sua acção revela o sagrado.
Lembra-se que o termo ‘dionisíaco’ é utilizado como metáfora para
referir as forças que a razão humana não controla e para designar a
harmonização com o natural, entendendo-se por harmonização a disposição
para ser e estar de uma forma que acompanhe o ritmo do curso natural e que
é independente de uma acção voluntária. Considera-se ainda o dionisíaco na
sua dimensão de brutalidade e de crueldade, sendo o sentido de cada
acepção dado pelo contexto, ou devidamente explicitada se este não for
claro.
Interessa agora delimitar e analisar este universo dionisíaco.
Filha do desejo incontrolável de Zeus poderoso sobre Leda, Helena
nasce de um ovo, abrindo o seu caminho para o mundo em que vai
desabrochando em solidão, num meio agressivo que é indiferente à sua
existência. Esta informação não se encontra na Ilíada, mas nesta ópera
sugere-se que há uma relação entre o acto de Zeus, o poder e o
conhecimento, sendo esta a chave para a compreensão de Helena. O
‘natural’ em Helena é o acto de ser, entendido como devir, e não um acto
isolado de se tornar diferente, porque esta se reconhece no ciclo biológico
que flui para um centro, de forma que o princípio e o fim se encontram no
mesmo ponto. Assim, por um lado, opõe-se ao masculino, que se
desenvolve na acção e na construção (cf. Clarke 2001, 84). Por outro lado, o
ciclo biológico representa harmonia com o natural, como tal, significa uma
O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam
149
relação de simultaneidade com aquele ambiente. É devido a esta condição,
aliada à noção de que está totalmente só, que Helena fala pouco. A fala
enquanto acto de expressão resulta do pensamento como forma de
conhecimento, e se se tiver em conta que pensar acerca de algo consiste, por
exemplo, em pesar motivos e razões ou em avaliar situações e emitir juízos
autonomamente, então, a fala que provém do pensamento é uma reflexão
acerca do que já passou. Deriva, portanto, de uma suspensão temporal. Falar
pouco pode ser entendido como consequência de uma apreensão simultânea
da vida, que não passa por pensar sobre as coisas, porque já as pensou. Dito
de outra maneira, esta simultaneidade com o natural não pode nem deve ser
entendida como animismo, uma vez que Helena demonstra possuir uma
compreensão plena e profunda, portanto trágica, como já foi referido.
Let Her Rave
Na ária de Helena canta-se o erotismo como força vital, autónoma e
omnipresente que aproxima as personagens e influencia as suas decisões,
quer desencadeando a acção, quer insinuando-se a um nível subliminar. A
importância deste tema é reforçada pelo facto de ser o único momento lírico
feminino de grande extensão em toda a ópera e também porque interrompe a
acção, prática que, por não ser comum em King Priam, confirma o
entendimento de que o erotismo conduz a uma forma de conhecimento que
é poder. Afirma-se que esse poder gera violência e constata-se que conduz a
uma experiência do sagrado, que procede, por um lado, da díade
ambivalente, composta por medo e fascínio (“Oh, Helen, you leave me to
the moment so desired and feared”, I, iii) e, por outro lado, ocasiona o
O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam
150
confronto com o desconhecido, ou seja, com a alteridade totalmente outra
(“Are you woman or witch […]”; “Mysterious daughter, who are you?”, I,
iii; III, iv).
Efectivamente, aquela ambiguidade e este mistério aproximam
Helena de Dioniso, uma vez que se afirma que a mulher-deusa, à
semelhança do deus, não tem um só rosto e causa estranheza, instalando-se
na cidade com este estatuto. Tal como o deus, Helena é uma ameaça, por
perturbar a ordem instituída (“A wife is other than a whore […] Go back to
Greece”, III, i), é uma existência passageira, isto é, está onde é necessária e
deixa de estar quando não é (“If you fetch me, I will come”; “Priam - You
will go back to Greece, - Helen - yes”, I, ii; III, iv). A prece da mulher-deusa
sugere ainda a libertação, que também está associada ao deus, não só a sua
(“I, Helen, am untouched” (III, i), mas também a dos outros (“Why do I
speak gently now, below the screams of the dying […],” III, iv). Estas são
simplesmente algumas simetrias entre a filha de Zeus e o deus estranho,
cujo propósito é enfatizar o sentido pleno da acepção ‘sagrado’ que se
identifica com Helena, uma vez que a personagem é não só mulher mas
também é deusa, nascida da semente do pai dos deuses. Assim, o divino está
no humano, integrando vida e morte como unidade indissociável, o que
torna Helena símbolo de consagração da existência humana, sendo ela
própria símbolo do sagrado. Com efeito, a prece de Helena reforça esta
interpretação em três vertentes: tal desejo de vida (“[…] I pray for lovers
[…] and the divine madness of insatiable desire”) é simultaneamente o
bálsamo que liberta (“[…] to my man, […] Grant balm of comfort, that he
O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam
151
lay with Helen”) e que inclui a noção de morte (“For death draws near […]
goddess to me […] grant but this”, III, i).
Posto isto, o confronto com a sua presença transfiguradora e
libertadora surge como condição suficiente e necessária para sugerir a
experiência de algo real mas que também transcende o humano. Prossegue-
se com a análise de demais elementos que reforçam esta argumentação.
A irrupção lírica de Helena é desencadeada pelas palavras que
Andrómaca lhe dirige em linguagem ofensiva e tom agressivo, acusando-a
de luxúria adúltera. A primeira cena de Páris e Helena esclarece que a sua
relação não pode ser subordinada a qualquer juízo de valor. De facto, é uma
cena dominada pela música e pelo canto glossolálico, o que a inscreve no
âmbito da sensibilidade, situando-a no dionisíaco na sua dimensão de força
incontrolável. Como nota Whittall (2006, 67), a música do monólogo de
Páris alinha o conceito ‘guerra’ com o conceito ‘Helena’, enfatizando este
aspecto.
A principal função exercida pelo ritual hierogâmico (cf. Figueira
2014, 39-49; 112-115) em King Priam não é, portanto, uma representação
inocente do prazer sensual, nem consiste na demonstração física de uma
ligação emocional. Expressa poder, subordinando aquele que é dominado e
aquele domina. Tal poder, em relação a Helena, é apresentado como análogo
ao que subjaz às razões antagónicas que desencadeiam o conflito não-
sensorial, que também se representa nesta ópera.
A ária lírica de Helena confirma esta compreensão, uma vez que se
encontra relacionada, mediante o tema e a tonalidade, com as vozes corais
do prelúdio. Porém, enquanto aquele se refere ao dionisíaco, na sua
O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam
152
expressão força de impulsionadora da existência humana, estas relacionam-
se com o seu aspecto de crueldade e de brutalidade, observando-se que
ambas as cenas expressam a ideia comum de que o conflito e o poder são as
forças impulsionadoras da existência humana.
O canto de Helena sugere ainda que o seu poder consiste e conduz a
uma forma de conhecimento. Este assenta numa forma sensível de conhecer
o mundo e de estar no mundo, que se concretiza na percepção sensorial do
meio que a envolve e também se define na sua relação com esse universo.
Musicalmente, as interjeições provenientes dos metais, a que se alia a
interrogação trágica de Páris (“why give us bodies with such of love, if love
is a crime?”, I, iii) apoiam esta interpretação (cf. Clarke 2001, 81-82).
Aquelas interjeições continuam a ser usadas para significar um poder que
transcende o individual e que se coloca à margem da ordem social, situando-
se no ponto de contacto entre o homem e a natureza, onde imperam os
instintos e a amoralidade. Afirma-se, portanto, que o conhecimento sensível
gera a verdade amoral, que transcende a condição humana e que
simultaneamente lhe confere a noção da sua finitude.
O conhecimento que se encontra associado a Helena não é
subordinado à razão e, como tal, nem produz juízos de valor, nem é passível
de os receber. Por este motivo o comentário de Andrómaca carece de
sentido, como confirma a resposta objectiva de Helena: “your words are
meaningless to me” (III, i). As palavras daquela não fazem sentido porque
Andrómaca conhece de uma forma diferente de Helena e o seu
conhecimento não lhe permite compreender mais além, nem tão-pouco
aperceber-se desse facto.
O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam
153
O ritual hierogâmico também elucida esta relação entre
conhecimento e poder. A exclamação espontânea (“Ah”, II, iii) do melisma
cantado por Helena e por Páris corresponde ao deslumbramento de uma
revelação inesperada, que se pode identificar com conhecimento. Esta
interpretação justifica-se pela forma mais explícita como este tópico é
retomado no Acto III. A especificidade daquele conhecimento confirma-se
nas linhas 5 a 8 da ária de Helena, que, ao aludirem aos sentidos, sugerem
que o que distingue Helena se revela e é apreendido sensivelmente de uma
forma simultânea, e por esse motivo é poder:
The Old men spoke of me, for so I heard:
“No wonder Greeks and Trojans go to war for such a woman.”
And they spoke well. For I am Zeus’s daughter, conceived when the great
wings beat above Leda.
As duas últimas linhas, por nelas se referir a paternidade divina de
Helena, reforçam a ideia de poder. Esta confirma-se ainda mediante
referência explícita e intencional ao poema de Yeats “Leda and the Swan”.
Mesmo que a relação entre o poema de Yeats e o texto citado não
fosse (re)conhecida ou não tivesse sido intencionalmente estabelecida como
foi, ainda assim se poderia concluir que Helena se refere a uma impressão
gravada no corpo mediante os sentidos e que esta é uma forma de
conhecimento que lhe confere poder, sendo esse poder idêntico ao da morte8
(cf. Kristeva 1994; Clack 2002; Winkler 1990). Por esse motivo, o discurso
de Helena não tem palavras para nomear ‘essa’ força incontrolável que é
fonte de poder. O pronome “What” introduz a interrogação retórica com que
8 Cf. Kristeva, Julia. 1994. Strangers to Ourselves; B. Clack, Beverley. 2002. Sex and
Death: a Reappraisal of Human Mortality. Cambridge: Polity Press; Winkler, J. 1990. The
Constraints of Desire: the Anthropology of Sex and Gender in Ancient Greece.
O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam
154
Helena se refere a esta força. De facto, a perífrase que usa para a definir é
inteiramente construída por substantivos concretos que nomeiam partes do
corpo humano. Essas partes são estrutura, suporte e locomoção (“bone”,
“feet”), nutrição e defesa do organismo (“blood”) e ainda fluxo de
mensagens orgânicas provenientes do contacto entre o humano e a sua
experiência sensorial e o ambiente que o envolve (“nerves”). Os verbos são
de significação concreta e dizem, não só movimentos vitais (“throbs”,
“beats”), mas ainda se referem à marcação de ritmo, sendo também
movimento (“beats”). A concretude dos verbos é reforçada mediante a sua
utilização no presente do indicativo da voz activa. Com efeito, a última frase
(“down through the feet into the earth, then echoed by the stars”) enfatiza o
movimento que também caracteriza aqueles verbos, uma vez que o vector
de movimento, de cima para baixo (“down”), aliado ao termo (“through”) na
sua acepção adjectiva que especifica algo sem interrupção e, no seu sentido
adverbial, confere a noção de completude àquele movimento: “What can it
be that throbs in every nerve, beats in the blood and bone, down through the
feet into the earth, then echoed by the stars”, e conclui: “Love such as this
stretches up to heaven and reaches down to hell.”(III, i)
Verifica-se ainda que a estrutura deste momento lírico, observada a
partir de uma perspectiva musical, está escrita numa notação que não tem
nome atribuído nos manuais académicos (cf. Kemp 1987, 367). Outro
aspecto relevante consiste no facto de que a exaltação do erotismo se
encontra, nesta ária, associada ao encontro de Páris com Heitor e Príamo e é
mediada pela profundidade conferida pelo piano, a que se aliam sons
provindos dos instrumentos de corda, organizados em cascata de
O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam
155
decrescendos. Estes presentificam aquele encontro, sugerindo que em ambas
as situações se pretende salientar a força sensível, o erotismo, cujo traço
distintivo consiste no poder de atracção.
Conclui-se que não só o discurso mas também a música expressam o
entendimento de que o canto de Helena se refere ao conhecimento adquirido
mediante a experiência do ‘eu’ como existência sensorial, que se caracteriza
fundamentalmente por ser um processo vital. Constata-se ainda que esta é
uma forma, a sua, de sentir e de compreender o que com ela se inter-
relaciona. Reconhece e afirma que este conhecimento é não só válido mas
também é poder: “such truth of love whose tempest carried Ganymede into
the sky” (III, i).
Relembrando a acusação de Andrómaca e evocando o canto
glossolálico, - que também já foi referido - regista-se que o amor de Helena
e de Páris não é luxúria nem corresponde a um impulso de preservação de
espécie, uma vez que o casal não tem descendência. Deduz-se que as cenas
analisadas remetem para uma representação do dionisíaco (cf. Serra 1989,
particularmente cap. VIII) no seu aspecto de força vital, irracional e
incontrolável, que se expressa na sintonia entre seres que partilham a mesma
percepção e entendimento do ambiente em que existem e com o qual
interagem.
O Julgamento de Páris e a noção de beleza
Não existe nenhuma referência à beleza de Helena, salvo a que se
conhece do mito e que em King Priam se mantém. Como é sabido, o deus
Hermes ordena a Páris que entregue o pomo à deusa mais bela. Mas se todas
O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam
156
são belas, qual é o factor diferenciador? (cf. I, iii) Esta é a questão que se
procura esclarecer estabelecendo uma análise comparativa das respostas que
as três mulheres/deusas dão à pergunta de Páris. A resposta de Helena
esclarece o sentido da beleza e simultaneamente o do sagrado nesta ópera.
A beleza de Helena singulariza-se na forma sensível de estar e de
compreender o mundo. Por outras palavras, tem a ver com o conhecimento
que se imprime no corpo mediante os sentidos da audição, visão, tacto,
olfacto, etc., a que se alia, de uma forma simultânea, a noção do que ela
própria é e da impressão que causa nos outros. Por outras palavras, a acção
que a distingue é uma reacção sintónica com o que está a acontecer, o que
lhe confere a aparência abúlica. É, portanto, um conhecimento que não é
lógico mas que permite entender a verdade como autenticidade da percepção
sensorial. Não provém do pensar sobre ‘as coisas’ mas da percepção directa
destas e mesmo da sua antecipação (cf. I, iii), verificando-se que origina
uma disposição de alma com autonomia, interioridade e complexidade, o
que atrai mas também aterroriza, uma vez que o humano hesita e teme o
desconhecido.
A filha de Leda aceita-se desde o início a si própria e às condições
que a rodeiam, sendo esta uma forma de entender a acção que não tem a ver
com o binómio causa-efeito. Esta acção distingue-se por ser harmoniosa
com a força vital e pela atenção prestada a cada momento. Helena fala e age
pouco porque simboliza a morte, no sentido metafórico de que as
minudências que desviam a atenção do cerne dos acontecimentos já não a
iludem. Neste sentido, é comparável ao eixo de uma roda, que não se move,
mas todo o movimento depende de si.
O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam
157
Por esta razão, afirma-se que a experiência desengana Helena de um
futuro, entendido como tempo independente e lugar de esperança onde se
pode reparar ou alcançar uma vivência totalmente outra. O reconhecimento
da vida como devir, ambiguidade, confusão e ambivalência manifesta-se na
sua acção como atenção total e concretiza-se no entendimento de que a
única verdade que pode conhecer é aquilo que é. Outra dimensão deste facto
é a noção de que existe algo que a transcende, e por esse motivo não pode
com a sua exclusiva acção alterar essa realidade. Mas a profundidade e o
alcance da sua compreensão consistem na compreensão de que a sua
identidade está no esquecimento desta existência, achando-se também no
confronto com o desconhecido. Subjaz a este entendimento que o mundo é
criação e que a identidade se acha durante cada momento criativo, não
podendo este ser previsto, mas sim vivido. De facto, Helena nunca tem
respostas (“I cannot tell”, I, iii; III, iv) e somente deseja para si e para os
outros (“to me”, “for lovers”, “to Paris”, III, i) o desejo de viver o
desconhecido e que isso constitua o conforto de todos, uma vez que a vida é
finita e o meio em que existe não se compadece desta fragilidade (“grant
balm of comfort that he lay with Helen for death draws near”, III, i).
Nisto consiste a aceitação que manifesta desde o início. Não se trata
nem de acomodação nem de arrogância e por este motivo, a afirmação “I am
Helen” (I, iii; III, iv) deve ser compreendida como a constatação desta
verdade, que reconhece como a única que pode conhecer. Livre, porque não
é prisioneira da ilusão, Helena também não pugna pela existência, vive-a, e
este conhecimento é a liberdade que a mostra não subordinada a convenções
que aprisionam a vida, por não admitirem qualquer transgressão. Helena é,
O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam
158
portanto, também símbolo de poder, uma vez que a sua presença
imperturbada e imperturbável encanta os que possuem o mesmo íntimo
(Páris) e horroriza aquelas que são atravessadas por uma revelação repentina
e estranha (Andrómaca e Hécuba).
A noção de que a vida humana é convenção está claramente presente
em Helena e a sua acção é sempre uma resposta harmoniosa com a condição
dionisíaca que a distingue. Quando diz a Páris que vai regressar para
Menelau, o que parece ser uma decisão ética e moral é na verdade uma
atitude dionisíaca na sua dimensão de acordo com o natural, sendo,
portanto, amoral, mas reveladora de um conhecimento pleno que lhe
permite prever situações. Neste contexto, deve entender-se o ‘natural’ com o
sentido geral de meio que a rodeia. A sua resposta é objectiva e não é
egoísta, mas a sua enunciação é a comunicação indirecta do seu arbítrio.
Contudo, a didascália que antecede o ritual hierogâmico (“Body draws body
to body to a destined bed”, I, Segundo Interlúdio) confirma que este arbítrio
depende de uma força que transcende ambos. A escolha é consciente e
comum a ambos. Por estes motivos é uma escolha dionisíaca, mas também é
trágica, uma vez que resulta de uma opção tomada com conhecimento das
consequências.
Portanto, apesar de os arbítrios serem atribuídos aos homens e não
aos deuses, por detrás das suas acções encontra-se sempre um poder que os
possui mas simultaneamente os torna possuidores. Comprova-se que o texto
é fiel ao pensamento de Tippett, uma vez que o compositor defende que
cada acção humana tem subjacente uma voz divina9.
9 “Fate and freedom propound a paradox. Choose your fate but still the god speaks through
whatever acts ensue” (Kemp 1987, 354).
O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam
159
O Julgamento de Páris confirma esta interpretação. Verifica-se que
às deusas correspondem as mulheres que as representam. Hécuba é
identificada com Atena, Andrómaca com Hera e Afrodite corresponde,
naturalmente, a Helena. Quando Páris escolhe Afrodite, escolhe a mulher e
não a deusa.
Esta cena está colocada após a união de Páris e Helena, reflectindo
aquele entendimento, que é corroborado pela brevíssima resposta de Helena.
Ao ser questionada sobre o que tem para oferecer, Helena/Afrodite responde
com o nome “Paris” (I, iii), precisamente a mesma resposta que lhe dá ao
ser questionada se o acompanha ou não. O que lhe oferece é o espelho, e
uma vez que este mostra o próprio como o outro, o seu presente é a
alteridade (I, iii). Esta é também a máscara que vela o autêntico e
simultaneamente o desvela, portanto, o que de facto lhe é oferecido é a
liberdade de ser ele e de ser o outro.
Este presente mostra-se como sendo uma dádiva e representa o
arbítrio livre em que Páris erra e assim acha o seu destino, cumprindo-o em
cada erro e achamento, uma vez que, neste contexto, errar significa
experimentar e tactear o que se apresenta no caminho. Quer isto dizer que
Helena demonstra possuir uma visão profunda da vida e que esta visão é
profunda porque não é só compreensão, mas é também vivência e desejo
dessa vivência. A resposta que dá a Páris revela ainda que o sentido último
desta vivência é a dádiva (da possibilidade de uma vivência idêntica). Ao
exclamar “Paris!” (I, iii), Helena expressa o que é e isso é o que tem para
oferecer.
O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam
160
Revela compreender que viver é percorrer persistentemente o
caminho do desejo perpétuo e aí encontrar a imperfeição, no sentido de
inacabamento, e a contradição que conduzem ao questionamento e,
mediante este, ao achamento de alguma coisa, que por ser sempre diferente
corresponde ao desconhecido.
Este caminho é liberdade e é na oferta desta possibilidade que se
desenham os contornos do amor que Helena é, dá e deseja para si e para
todos.
Em relação a Páris trata-se, como já foi dito, de um amor
hierogâmico, cujo traço distintivo consiste em não poder deixar de ser o
outro. A vivência que caracteriza Helena corresponde a este entendimento,
uma vez que admite e aceita que a vida é experimentação e repetição e que
esta é desejo de vida, uma vez que cada repetição comporta algo novo.
Atena/Hécuba e Hera/Andrómaca não oferecem nada a Páris (“They
have nothing to offer”, I, iii). O seu presente, por ser antes de mais uma
imposição, é violência, mas deriva da ignorância. Não compreendem, como
Helena entende, que a voz que chama dentro de Páris é o seu destino, contra
o qual nada pode. Aceitar aquela oferta é auto destruir-se. Quando Páris se
força a seguir a vontade dos restantes membros da família, a catástrofe é
inevitável e a profecia de morte cumpre-se (III, ii; iv). Não o fazer não
impediria a catástrofe, qualquer que fosse, mas teria respeitado o que lhe foi
dado ser, aliviando-o do peso da vingança, da culpa e do vazio, levando-o a
encontrar alegria no facto de estar vivo, independentemente do resultado.
Aceitar a oferta de Helena é tudo, por oposição ao ‘nada’ que
Andrómaca/Hera e Hécuba/Atena lhe oferecem.
O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam
161
A oferta de Helena é, portanto, o amor, uma vez que amar é não
poder deixar de continuar a desejar ser o outro e oferecer isso mesmo. Por
esse motivo encanta Páris (“Are you woman or witch that enchant me so?”,
I, iii), e partilha com este a força vital que os torna destino um do outro. Esta
ideia também se encontra presente na atracção que Páris exerce sobre
Príamo e Heitor, como sugerem os elementos musicais comuns entre esta
cena e a cena do bosque.
A beleza complexifica-se mediante a palavra “truth” (“such truth of
love whose tempest carried Ganymede into the sky”, III, i), ‘verdade’, o que
sugere que esta noção, neste contexto, é entendida como força visceral de
uma impressão sensorial impossível de controlar. A verdade é aqui
identificada com a autenticidade daquilo que é vivido.
A referência explícita à Ilíada, por um lado, expressa uma evidência
e, por outro lado, permite confirmar a natureza da vivência, como foi dito.
Relativamente à evidência, os anciãos consideram que a beleza de Helena
justifica o preço da guerra e que o desejo de beleza é uma vocação e, como
tal, é também destino, porque a beleza exala poder:
Once, as I came along the walls,
The Old men spoke of me, for so I heard:
“No wonder Greeks and Trojans go to war for such a
woman.” (III, i)
Admirar a beleza é pulsão e desejo de vida, particularmente
significativos quando a finitude deixa de ser qualquer coisa vaga para ser a
realidade que chegou demasiado cedo.
As linhas seguintes sugerem que o excesso do acto de Zeus pode
desencadear uma forma de conhecimento que é uma forma de poder: “And
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162
they spoke well. For I am Zeus’s daughter, conceived when the great wings
beat above Leda. [...]” (III, i)
A referência à paternidade de Helena lembra que é filha do desejo, e
sugere que este é um poder que lhe confere uma aura divina e funciona
como uma espécie de escudo contra os ataques de Andrómaca e de Hécuba.
A “segurança” que Helena transmite corresponde, como a própria afirma
(III, i), a não se deixar perturbar por aquilo que não pode controlar ou
modificar, noção que é desconhecida daquelas.
A interacção destas três mulheres é clara quanto a este aspecto. Ao
confrontarem-se com Helena, a agressividade difamatória da retórica de
Andrómaca e a descarga emocional de Hécuba (cf. III, i) denotam
desorientação e reflectem medo e horror. O facto de permanecer inabalável
numa terra hostil, diante de quem não só não a compreende, mas também a
ataca violentamente, pode ser um mistério e provocar horror, uma vez que
exige a capacidade de se erguer para lidar com o desconhecido. Este é um
movimento impossível para aquelas duas mulheres, inabaláveis no seu
mundo, mas totalmente vulneráveis fora dele. Inserem-se num ambiente de
convenção, circunscrito e com regras definidas. O ambiente de Helena é a
criação e esta não pode ser circunscrita, nem o desconhecido, que também o
caracteriza, pode ser previsto por regras e subordinado a uma convenção.
A mulher de Páris representa aquilo que a inteligência e a razão não
podem compreender nem explicar, uma vez que é uma predisposição que se
revela e que, portanto, não pode ser ensinada. A participação no ciclo
dionisíaco de vida e de morte é total, como se verifica pela sua abertura para
receber o desconhecido e o deixar circular livremente sem se lhe opor. A
O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam
163
circulação que a sua atitude permite confere-lhe a aparência de
imperturbabilidade. Assim sendo, este é um conhecimento que a inscreve na
dimensão sensível da vida que é desconhecida por Hécuba e por
Andrómaca. A primeira só conhece a realidade de ser rainha e a segunda
somente conhece o que é ser esposa do príncipe herdeiro e mãe de um
primogénito. Sem estas condições, estas mulheres não existem.
Desconhecem, pois, o seu imo e encontram-se totalmente subordinadas a
condições exteriores a si que não podem controlar, mas são a sua única
realidade e, consequentemente, a sua identidade. A ruína dessas condições
expele-as para o vazio, dominando-as a necessidade de o preencher, como
pugna e pulsão de sobrevivência. Compreendem-se nestes termos o
desespero e o excesso evidenciados por Hécuba e por Andrómaca, de certa
forma, tão inocentes como inevitáveis. A solução desta confirma os limites
da sua visão e a revolta daquela expõe o abismo que a separa de Helena (III,
i).
Helena e Príamo
Finalmente importa considerar a conversa entre Helena e Príamo
enquanto Tróia arde. Recupera-se o momento na Ilíada em que ambos
dialogam, olhando o campo de batalha do alto da muralha cujo sentido
metafórico esclarece a significação última da beleza de Helena.
Em ambos os textos esta metáfora sugere o distanciamento exacto
para alcançar a compreensão plena. A muralha, por ser um lugar alto,
sólido, firmado na terra e feito de pedra, é o símbolo daquilo que é
intemporal, estável e perene. A perspectiva proporcionada por este lugar
O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam
164
elevado mostra que algo transcende os homens e permite reconhecer a vida
como lugar de abertura, de passagem e de travessia. Quem vê desta
perspectiva, vê o autêntico sob a opacidade das convenções e das acções
desencadeadas por imperativos de sobrevivência e de domínio. A razão e a
experiência conduziram Príamo a este entendimento e a sensibilidade gerou
idêntica sabedoria em Helena.
No poema homérico, Príamo interpela Helena com ternura e
compreensão, aliviando-a de culpa (III, vv. 161-164), e nota que o guerreiro
não é só aquele que pugna, mas também é um belo homem (III, v. 169). Em
King Priam, a necessidade de Príamo saber se Helena se sentiu ternamente
tratada por si simboliza a libertação do seu drama individual e revela três
aspectos fundamentais da cosmovisão que transparece desta ópera.
O primeiro constata que o sofrimento é o denominador comum da
vida humana. O segundo expressa a ideia de que a beleza desperta a verdade
de cada um e o terceiro sugere que a atitude compreensiva de Príamo é um
caminho racional que respeita o ciclo dionisíaco, como demonstra o beijo
oferecido a Helena (“Have I been gentle with you?”; “Why was that, I
wonder? […]”, III, iv)
Como repetidamente foi dito, Helena somente sabe aquilo que é,
sendo isso muito. Pedir que explique as acções de terceiros é excessivo,
portanto responde com a fórmula habitual (“I cannot tell, I am Helen.” III,
iv).
A sua beleza atravessa as convenções, questionando-as e
desencadeando formas de aperfeiçoar esta necessidade humana. Actua ainda
como catalisador da verdade interior de quem a contempla, sendo, portanto,
O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam
165
algo genuíno e involuntário, que revela outras perspectivas. A que emana
desta conversa é a tranquilidade, que o regresso dos gritos corais do prelúdio
enfatiza, lembrando o processo comum de sofrimento e solidão (“[…] the
trumpets and drums and cries from the Prelude to Act One return, with ever
increasing urgency. Troy is already burning”, III, iv, Didascália).
Sensibilidade e razão encontram-se e reconhecem-se como iguais e
indissociáveis. Conhecer sensivelmente, como Helena, é intuir as leis da
natureza e o seu efeito em si e no outro. Conhecer racionalmente, como
Príamo é compreender que existem forças que transcendem o homem que
não são resolúveis por nenhuma convenção, sendo este o entendimento a
que chega no auge da aliança entre experiência e razão. A muralha é o lugar
onde Dioniso e Apolo, conciliados, atravessam o temporal e contemplam o
intemporal. Por isso, Helena de Tróia morre para renascer como Helena de
Esparta (“You will go back to Greece”; “Yes.” III, iv).
Conclusão
Concluindo, em relação à parte I, King Priam é uma obra
heterogénea que faz uso livre da tradição, transportando universais da
condição humana, entre os quais se salientam a repetição cíclica como
sendo indissociável da existência humana e o conflito como elemento que
desencadeia a acção, em particular a tensão entre o universo racional e o
irracional. A ambivalência da palavra e das situações origina aquela tensão,
como demonstra a utilização da mesma citação em contextos diferentes.
Em King Priam mimetiza-se o sofrimento de uma dupla perspectiva.
Em primeiro lugar, mostra-se a sua dimensão irredutível e injustificável,
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166
como sendo inalienável da vida e, em segundo lugar, descortina-se o espaço
interior da alma humana como lugar de releitura. Com efeito, este acto
racional de Príamo possibilita o achamento do sagrado como revelação
inesperada de uma questão vital e íntima, que é sua e, todavia, transcende-o.
A morte é o segundo aspecto que se pretende salientar como sendo
fundamental na cosmovisão desta ópera, enfatizando-se que estimula e
celebra a vida, porque lhe abre o espaço de circulação, onde o engano e a
ilusão (‘a king’) são transfigurados em questões vitais (‘a father’).
Relativamente à segunda parte, a metáfora do dionisíaco constitui a
chave para a determinação da noção do sagrado que está associada a Helena.
Esta noção tem que ver com o conhecimento sensível da vida, no seu estado
maduro, sendo esta a verdade que Helena conhece como única e inalienável.
Constatou-se ainda que o dionisíaco que a distingue corresponde
também ao reconhecimento que nela habita algo transcendente e que a sua
vivência consiste em experimentar mais a vida e em aprisioná-la menos na
obsessão por uma resposta final que não existe.
Por isso se comparou acção de Helena ao eixo de uma roda, uma vez
que esta, sem se mover, possibilita o movimento, à semelhança daquela.
Reflecte-se esta possibilidade na constatação da inutilidade de agir e na
sintonia com o ciclo da vida e de morte, que também individualizam
Helena. Aqui desenha-se uma ética amoral e revela-se a dimensão trágica,
que também a distingue.
A beleza que a singulariza é uma unidade triádica em que poder,
conhecimento e verdade são e originam beleza. Encanta pela diferença e
pela força criativa e horroriza porque expõe a fragilidade humana para se
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erguer no solo faminto de recriação perpétua. Todavia, o fascínio que exerce
e o temor que suscita originam o confronto com o totalmente estranho ou
alteridade totalmente outra.
Como Dioniso, Helena morre e renasce. Morre como Helena de
Tróia e renasce como Helena de Esparta, refazendo o ciclo que iniciara
morrendo como Helena de Esparta e renascendo como Helena de Tróia.
O mito de Helena em King Priam representa a consciência de que a
circulação entre a vida e a morte é uma necessidade ontologicamente
primeira, o que reforça a defesa de que a sua beleza simboliza o sagrado.
King Priam oferece ampla matéria para inúmeros e diversificados
estudos, tal como se pretendeu demonstrar com o enunciado teórico
introdutório. Por exemplo, a determinação do trágico que transparece da
síntese de tópicos provenientes das concepções do trágico que subjazem a
esta ópera, entre as quais se encontram a teorização acerca da tragédia grega
feita por Aristóteles na Poética, as tragédias de Racine, de Shakespeare e o
teatro de Brecht. Outro estudo possível seria a identificação exaustiva de
particularidades do Romantismo e do Realismo presentes no libretto de
King Priam e o modo como naquela identificação transparece uma certa
forma de compreender a vida, que motiva Clarke a observar os contornos do
novo humanismo. Uma terceira via de abordagem, com dois focos de
incidência, seria demonstrar, analisando as recriações cénicas de King
Priam ao longo dos anos, as opções que consagram esta ópera como um
clássico, no sentido em que o seu conteúdo continua a ter significado para
sucessivas gerações, que desde os anos sessenta do século XX a interpelam
a fim de mimetizar a sua própria experiência. Deste modo, o segundo ponto
O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam
168
de incidência seria determinar a contribuição que a releitura dos textos
gregos clássicos importa para a recriação cénica dos mesmos, uma vez
aquela mimese emerge desta reescrita, onde se manifesta a estética de cada
época.
O Mito de Helena de Tróia na Ópera King Priam
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