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ApoioA Revista Saúde em Debate éassociada à Associação Brasileirade Editores Científicos
PUBLICAÇÃO EDITADA PELOCentro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES)Diretoria Nacional / National Board of DirectorsRua Herpéria, 16 – Manguinhos – Rio de Janeiro/RJEndereço para correspondência:Avenida Brasil, 4036 – sala 802 – Manguinhos21040-361 – Rio de Janeiro – RJ – BrasilTel.: (21) 3882-9140, 3882-9141Fax.: (21) 2260-3782
E-mail: cebes@ensp.fiocruz.br / saudeemdebate@ensp.fiocruz.br
DIREÇÃO NACIONAL (GESTÃO 2006-2009)Diretoria Executiva
Presidente Sonia Fleury (RJ)1O Vice-Presidente Ligia Bahia (RJ)2O Vice-Presidente Ana Maria Costa (DF)3O Vice-Presidente Luiz Neves (RJ)4O Vice-Presidente Mario Scheffer (SP)1O Suplente Francisco Braga (RJ)2O Suplente Lenaura Lobato (RJ)
CONSELHO FISCALÁquilas Mendes (SP), José da Rocha Carvalheiro (RJ), Assis Mafort (RJ), Sonia Ferraz (DF),
Maura Pacheco (RJ), Gilson Cantarino (RJ) & Cornelis Van Stralen (MG).
CONSELHO CONSULTIVO
Sarah Escorel (RJ), Odorico M. Andrade (CE), Nelson Rodrigues dos Santos (SP), LucioBotelho (SC), Antonio Ivo de Carvalho (RJ), Roberto Medronho (RJ), José Francisco da Silva(MG), Luiz Galvão (WDC), André Médici (DF), Jandira Feghali (RJ), José Moroni (DF), AryCarvalho de Miranda (RJ), Julio Muller (MT), Silvio Fernandes da Silva (PR) & SebastiãoLoureiro (BA).
EDITORPaulo Amarante (RJ)
CONSELHO EDITORIALJairnilson Paim (BA), Gastão Wagner Campos (SP), Ligia Giovanella (RJ), Edmundo Gallo (DF),José Gomes Temporão (RJ), Francisco Campos (MG), Paulo Buss (RJ), Eleonor Conill (SC),Emerson Merhy (SP), Naomar de Almeida Filho (BA) & José Carlos Braga (SP)
SECRETARIA EXECUTIVAMarília Correia
INDEXAÇÃO
Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS)
Os artigos sobre História da Saúde estão indexados pela Base HISA – BaseBibliográfica em História da Saúde Pública na América Latina e Caribe
PUBLICATION EDITED EVERY FOUR MONTHS BYCentro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES)Diretoria Nacional / National Board of DirectorsRua Herpéria, 16 – Manguinhos – Rio de Janeiro/RJEndereço para correspondência:Avenida Brasil, 4036 – sala 802 – Manguinhos21040-361 – Rio de Janeiro – RJ – BrasilTel.: (21) 3882-9140, 3882-9141Fax.: (21) 2260-3782E-mail: cebes@ensp.fiocruz.br / saudeemdebate@ensp.fiocruz.br
NATIONAL BOARD OF DIRECTORS (YEARS 2006-2009)Executive DirectionPresident Sonia Fleury (RJ)1st Vice-President Ligia Bahia (RJ)2rd Vice-President Ana Maria Costa (DF)3th Vice-President Luiz Neves (RJ)
4th Vice-President Mario Scheffer (SP)
1nd Substitute Francisco Braga (RJ)2nd Substitute Lenaura Lobato (RJ)
FISCAL COUNCILÁquilas Mendes (SP), José da Rocha Carvalheiro (RJ), Assis Mafort (RJ), Sonia Ferraz (DF),Maura Pacheco (RJ), Gilson Cantarino (RJ) & Cornelis Van Stralen (MG).
ADVISORY COUNCIL
Sarah Escorel (RJ), Odorico M. Andrade (CE), Nelson Rodrigues dos Santos (SP), LucioBotelho (SC), Antonio Ivo de Carvalho (RJ), Roberto Medronho (RJ), José Francisco da Silva(MG), Luiz Galvão (WDC), André Médici (DF), Jandira Feghali (RJ), José Moroni (DF), AryCarvalho de Miranda (RJ), Julio Muller (MT), Silvio Fernandes da Silva (PR) & SebastiãoLoureiro (BA).
PUBLISHERPaulo Amarante (RJ)
PUBLISHING COUNCILJairnilson Paim (BA), Gastão Wagner Campos (SP), Ligia Giovanella (RJ), Edmundo Gallo (DF),José Gomes Temporão (RJ), Francisco Campos (MG), Paulo Buss (RJ), Eleonor Conill (SC),Emerson Merhy (SP), Naomar de Almeida Filho (BA) & José Carlos Braga (SP)
EXECUTIVE SECRETARIESMarília Correia
INDEXATION
Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS)The articles about Health
History are indexed according to the HISA Base – Base Bibliográfica em História da Saúde Pública naAmérica Latina e Caribe (Bibliographic Base on History in Latin America and the Caribbean)
REVISÃO DE TEXTO
Sonia Regina P. Cardoso & Therezinha Bomfim – português,Benjamin Adam Kohn – inglês,Arlete Santos de Oliveira – normatização bibligráfica
CAPA, DIAGRAMAÇÃO E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Felipe Braga, Paulo Vermelho, Priscila Costa & Sandra Pereira
FOTO
Virginia Damas
IMPRESSÃO E ACABAMENTO
Corbã Editora Artes Gráficas
TIRAGEM
2.000 exemplares
Esta revista foi impressa no Rio de Janeiro em julho de 2007.
Capa em papel couche 180 gr
Miolo em papel off set 75 gr
PROOFREADING
Sonia Regina P. Cardoso & Therezinha Bomfim – portuguese,Benjamin Adam Kohn – english,Arlete Santos de Oliveira – bibliographic standardization
COVER, LAYOUT AND DESK TOP PUBLISHING
Felipe Braga, Paulo Vermelho, Priscila Costa & Sandra Pereira
PHOTO
Virginia Damas
PRINT AND FINISH
Corbã Editora Artes Gráficas
NUMBER OF COPIES
2,000 copies
This publication was printed in Rio de Janeiro on July, 2007.
Cover in couche paper 180 gr
Core in off set paper 75 gr
Saúde em Debate, Revista do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES – v.1 (out./nov./dez. 1976)– São Paulo: Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES, 2005.
v. 29; n. 71; 27,5 cm
QuadrimestralISSN 0103-1104
1. Saúde Pública, Periódico. I. Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES
CDD 362.1
Rio de Janeiro v.29 n.71 set./dez. 2005
ÓRGÃO OFICIAL DO CEBESCentro Brasileiro de Estudos de Saúde
ISSN 0103-1104
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 30, n. 71, p. 107-108, set./dez. 2005 225
SUMÁRIO / SUMMARY
EDITORIAL / EDITORIAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 226
ARTIGOS ORIGINAIS / ORIGINAL ARTICLES
A exclusão de coberturas assistenciais nos planos de saúde privadosThe exclusion of medical assistance coverage from HMOsMário Scheffer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 230
Municípios brasileiros fronteiriços e Mercosul: características e iniciativas decooperação em saúdeBrazilian border towns and the Mercosur: characteristics and initiatives ofcooperation in healthLuisa Guimarães & Ligia Giovanella ... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 247
O impacto da política econômica do governo Lula na Seguridade Social e no SUSThe impact of the Lula government economic policy on Social Security and theUnified Health SystemÃquilas Nogueira Mendes & Rosa Maria Marques ........................... 257
A política de saúde no governo Lula e a dialética do menos piorHealth Policy in the Lula government and the least worse dialecticCarmen Fontes Teixeira & Jairnilson Silva Paim .............................. 267
O direito à participação no Governo LulaThe right to participation in the Lula GovernmentJosé Antonio Moroni . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 283
ARTIGOS DE OPINIÃO/ OPINION ARTICLES
Poteção Social em um Mundo GlobalizadoSocial Protection in a Globalized WorldSonia Fleury . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 304
Saúde, Desenvolvimento e GlobalizaçãoHealth, Development and GlobalizationEdmundo Gallo, Janice Dornelles de Castro, Joseane Carvalho Costa, VivianStudart & Sandra Willecke . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 314
Desenvolvimento e saúde: em busca de uma nova utopiaDevelopment and Health: in search of a new UtopiaCarlos Augusto Grabois Gadelha .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 326
Regulamentar a EC-29, avançar o modelo de gestão e realizara universalidade com integralidade, equidade e participaçãoTo regulate the EC nº 29, to improve the management model and realize theuniversality with integrality, equity and participationNelson Rodrigues dos Santos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 338
Apontamentos sobre o processo de descentralização na saúdeNotes on the decentralization process of health careLenaura de Vasconcelos Costa Lobato ........................................ 352
A situação atual e as perspectivas dos sistemas universais de saúdeThe current situation and prospects of universal health systemsHans-Ulrich Deppe . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 364
Da reforma do Estado à reforma da gestão hospitalar federal: algumasconsideraçõesFrom State Reform to the Reform of Federal Hospital Administration: SomeConsiderationsLenir Santos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 370
DOCUMENTOS/DOCUMENTS
O lugar estratégico da gestão na conquista do SUS pra valerThe strategic place of management in the attainment of a genuine UnifiedHealth System ............................................................................. 381
O SUS pra valer: universal, humanizado e de qualidadeAn Effective Unified Health System:universal, humanized and of high quality ........................................... 384
A Identidade do CEBESThe identity of CEBES ...................................................................... 396
CEBES entrevista José Gomes Temporão, ministro da SaúdeCEBES interviews José Gomes Temporão, the Health Minister ...................... 400
226 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 30, n. 71, p. 225-228, set./dez. 2005
EDITORIAL
REFUNDAÇÃO DO CEBES
Com este número da revista Saúde em Debate a diretoria nacional, eleita para o período 2006-2009, di-
vulga sua plataforma política (veja a seguir). O texto,juntamente com o documento “A identidade política doCEBES”, publicado no corpo da revista, constituem asorientações políticas desta diretoria, as quais deverãoser seguidas de outros esforços de reflexão sobre nos-sa estratégia.
Outros documentos publicados neste número são:“O SUS pra valer” e “O lugar estratégico da gestão naconquista do SUS pra valer”. O primeiro é produto deum esforço conjunto das entidades que compõem oFórum da Reforma Sanitária Brasileira e representanossa posição comum em relação aos desafios atuaisdo processo da reforma; o segundo demonstra a posi-ção que o CEBES levou para o debate sobre o modelode gestão hospitalar, na última reunião do ConselhoNacional de Saúde, em junho 2007.
Com a publicação destes documentos, pretendemosmanter nosso compromisso de ampliar o debate políti-co sobre nossa estratégia e análise de conjuntura.
Como o CEBES sempre aliou a análise política àdifusão do conhecimento científico, os artigos que com-põem este número representam algumas das contribui-ções mais importantes de especialistas, fruto de inves-tigação original e/ou de reflexão crítica, para a com-preensão das políticas sociais e de saúde.
A qualidade destas contribuições atesta os compro-missos firmados por esta diretoria em relação à Refun-dação do CEBES e à revitalização de seus instrumentostradicionais de comunicação, o mais importante delessendo a revista Saúde em Debate.
Plataforma da Refundação do CEBES
1. O CEBES é um espaço plural e não partidário, com-prometido com a construção da Democracia e Saúde,entendendo que a democracia vai além da instituciona-lidade e da representação, passando pela construçãode uma esfera pública plural e inclusiva, na qual oscidadãos se reconheçam como iguais e sujeitos de di-reitos. Isto implica, necessariamente, na transforma-ção do aparato institucional, forjado na tradição clien-
telista, patrimonial e processos que perpetuam o exer-cício elitista do poder, em um campo permanente deluta por espaços de participação e garantia dos direi-tos das populações marginalizadas. Portanto, o repen-sar sobre o processo de saúde-doença e suas repercus-sões sobre a organização das práticas, a renovaçãoinstitucional e a inovação gerencial para democratiza-ção da saúde integram um projeto que merece mobili-zação constante, e o CEBES será um ator autônomo,capaz de articular redes políticas que exerçam a críticacomo instrumento de reflexão e ação.
2. Mais do que atuar na trincheira do aparato estatal, oCEBES tem como missão a luta pela hegemonia, parti-cipando na construção e ampliação da consciência sa-nitária e na constituição de sujeitos políticos emanci-pados. A disputa por projetos de sociedade – da liberalà socialista – se dá com cada vez maior intensidade,incidindo no campo social por meio da difusão de va-lores individualistas, consumistas e submissos a umainexorabilidade que prescinde da história e da política.Ao lutar pela compreensão da saúde coletiva, comoum bem público e socialmente determinado, propug-nando sistemas de atenção baseados nos valores dasolidariedade e na garantia de direitos; nas práticasintegrais da promoção à reabilitação; na exigência daparticipação ativa dos cidadãos nas decisões sobre suasaúde e sobre a política de saúde, estamos permanen-temente lutando por uma sociedade mais justa. O CE-BES precisa ampliar sua capacidade de se tornar uminterlocutor dos meios de comunicação massivos, di-fundindo conhecimentos e valores que nos conduzam àbusca de respostas que permitam aglutinar as forçassociais que se orientam pela busca da paz e reduçãoda violência.
3. A trajetória da Reforma Sanitária é um enredo com-plexo entre a força de um forte movimento de transfor-mação social, ou seja, instituinte, e a bem-sucedidaestratégia de ocupação de espaços instituídos. Contra-ditoriamente, a cada vez que se avança nos espaçosinstituídos, o que representa nossa pujança e presençana correlação de forças, novas contradições se colo-cam, a principal delas sendo a redução do poder de
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 30, n. 71, p. 107-108, set./dez. 2005 227
transformação do movimento sanitário. Se o poder émais bem percebido pelo que ele é capaz de concretizarinstitucionalmente, ele só tem sentido e direção se man-tiver unido às bases sociais que radicalizam a deman-da democrática. O CEBES não pode perder esta caracte-rística de movimento social, capaz de empolgar pelovigor de sua proposta e, ao mesmo tempo, as caracte-rísticas de uma organização social, capaz de incidir narealidade com a clareza de suas propostas e sua capa-cidade de articulação política.
4. A institucionalização da Reforma Sanitária corres-pondeu a um enorme avanço democrático e ao estabe-lecimento de um novo marco civilizatório, no qual odireito à saúde se encontra legalmente entronizado. Noentanto, a não-realização deste direito no cotidiano dapopulação, em sua interação com uma realidade insti-tucional precária, é um permanente solapamento dacultura e dos valores da democracia, levando cada diamais a seu descrédito. Esta tarefa de fazer com que osdireitos enunciados se transformem em direitos em exer-cício pleno da cidadania continua pendente e requernossa ação política contundente e não conivente com aineficiência e ineficácia, com o clientelismo e a corrup-ção, com qualquer forma de discriminação. Nossa ta-refa no CEBES é demonstrar que um sistema públicouniversal, de qualidade e humanizado é viável, hoje.
5. O crescimento de um mercado de planos e segurosde saúde subsidiado, em parte por recursos públicos.Assim a regulação requer um esforço de nossa partepara pensar formas de intervenção pública que garan-tam simultaneamente a equidade da atenção à saúde,os direitos dos consumidores e a ética profissional. Aprodução de insumos e tecnologias, subordinada a umalógica de acumulação capitalista precisa ser revertidapara a produção de bens e serviços em função das ne-cessidades. O CEBES deve se articular com os movi-mentos nacionais e internacionais que se mobilizamem torno da produção de medicamentos e garantia deatenção à saúde para os países e populações do deno-minado ‘terceiro mundo’.
6. A institucionalização das políticas sociais no novopadrão constitucional baseado na descentralização eparticipação gerou uma arquitetura institucional ino-vadora, porém de eficácia limitada, pois a participa-ção social ficou determinada pelo desenho institucio-nal do aparato estatal. A superação desta fragmenta-ção nos permitirá levar à prática a integralidade daspolíticas cuja centralidade deverá ser sempre o cida-dão usuário. Somente se articulando com os demaisatores políticos da sociedade civil organizada podere-mos transcender a fragmentação que nos retira poten-cialidade. O CEBES poderá jogar um papel crucial naarticulação política da Seguridade Social, viabilizandoo fortalecimento dos atores sociais no âmbito da Segu-ridade com a efetivação de Conselhos, Conferências eações intersetoriais de forma a dar realidade ao Orça-mento da Seguridade Social.
7. A sociedade civil organizada tem se articulado emredes que buscam pensar formas mais eficazes de atu-ação política, permitindo superar os limites impostospela setorialização, fragmentação e tentativas de coop-tação. O CEBES necessita assumir um papel neste mo-vimento social, articulando-se com a sociedade civilorganizada para pensar os limites da democracia bra-sileira. Somente com uma organização forte da socie-dade civil podemos fazer a democracia avançar no sen-tido de redução do uso das políticas públicas comomoeda de troca para apoio dos governantes, exigindo oaumento da participação social nas áreas econômicasque decidem o uso dos recursos públicos, o aumentoda transparência nas contas públicas e nos processosdecisórios, o fortalecimento das carreiras públicas, aregulamentação dos mecanismos legislativos de inici-ativa popular, o caráter impositivo do orçamento apro-vado pelo Congresso com a eliminação das emendasindividuais, a reforma eleitoral.
A DIRETORIA NACIONAL
228 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 30, n. 71, p. 225-228, set./dez. 2005
Through this edition of the magazine Saúde em De-bate the national directorate, elected for the 2006-
2009 term, discloses its political platform (see below).The text, together with the document “The political iden-tity of CEBES", published in the body of the magazine,constitute the political orientations of this directorate,which shall be followed up by other efforts to reflect onour strategy.
The other documents printed in this edition are:“A genuine Unified Health System” and “The strategicposition of management in achieving a genuine UnifiedHealth System”. The former is the result of a joint effortby the organizations that form the Brazilian Health Re-form Forum and represents our common position inrelation to the current challenges faced by the reformprocess; the latter demonstrates the stance adopted byCEBES in the hospital management model debate at thelast National Health Council meeting held in June 2007.
With the publication of these documents, we in-tend to maintain our commitment to extending the poli-tical debate about our strategy and analysis regardingthe prevailing outlook.
As CEBES has always united political analysiswith the diffusion of scientific knowledge, the articlesthat compose this edition represent some of the mostimportant contributions made by specialists; the resultof original investigation and/or critical reflection forour understanding of social health policies.The quality of these contributions serves as testimonyto the commitments made by this directorate in relationto the Refoundation of CEBES and the revitalization ofits traditional instruments of communication, the mostimportant of which is the magazine Saúde em Debate.
Platform for the Refoundation of CEBES
1. CEBES is a plural and non-partisan space, commit-ted to building Democracy and Health, with the unders-tanding that democracy goes beyond institutionalismand representation, covering the construction of a di-verse and inclusive public sphere, in which citizens re-cognize one another as equals and subjects with rights.This necessarily implies the transformation of instituti-onal apparatus, currently cast in the tradition of clien-telism, patrimonial values and processes that perpetu-
EDITORIAL
ate the elitist hold on power, set in a context of perma-nent struggle for spaces for participation and the assu-rance of rights of marginalized populations. Therefore,the reappraisal of the health-disease process and itsrepercussions on the practicing organizations, and theinstitutional renovation and managerial innovation inorder to democratize health form a project that deser-ves constant activation, and CEBES shall represent anautonomous author, capable of articulating politicalnetworks that use criticism as an instrument of reflecti-on and action.
2. More than working in the trenches of the state appa-ratus, CEBES has the mission of fighting for hegemony,participating in the construction and amplification ofhealth awareness and in the constitution of emancipa-ted political subjects. The dispute for societal projects -from the liberal to the socialist - becomes ever moreintense, incurring into the social field by means of theinexorable diffusion of individualist, consumerist andsubmissive values that dispenses with history and po-litics. By fighting for the understanding of collectivehealth as a publicly and socially determined asset, de-fending the systems of health care based on the valuesof solidarity and on the guarantee of rights; by the inte-gral practices to promote rehabilitation; by demandingactive participation by citizens in the decision-makingabout their health and the health policies; by such acti-ons we are constantly fighting for a fairer society. CE-BES needs to extend its capacity to become an interlo-cutor of the mass media, spreading knowledge and va-lues that lead us to the search for answers which mayallow us to unite the social forces guided by the questfor peace and diminishing violence.
3. The course of the Brazilian Health Reform is a com-plex plot involving the force of a strong campaign forsocial transformation, that is, the institutor, and thesuccessful strategy of occupying the instituted spaces.Perversely, each time progress is made in the institutedspaces, representing our strength and presence in cor-relation to the forces, new contradictions arise, the mainone being reduction to the transformative power of thehealth reform movement. If the power is best construedby that which it is capable of institutionally establishing,
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 30, n. 71, p. 107-108, set./dez. 2005 229
then it only has sense and direction if it remains unitedat the social bases that radicalize the democratic de-mand. CEBES cannot lose this characteristic of a soci-al movement, capable of enthusing by the vigor of itsproposal and, at the same time, the characteristics of asocial organization, capable of affecting the state ofaffairs with the clarity of its proposals and its capacityof political coordination.
4. The institutionalization of the Health Reform has cor-responded to a huge democratic advance and the esta-blishment of a new milestone in the development of ourcivilization, in which the right to health care is nowassured in law. However, the failure to uphold thisright in the everyday lives of people who find themsel-ves in contact with a precarious institutional realityconstantly undermines the culture and values of demo-cracy, leading to it being less and less credible witheach passing day. The task of turning the rights on pa-per into rights fully practiced by citizens continues tobe a pending matter and requires our categorical politi-cal action which will not accept ineffectiveness and ine-fficiency, clientelism and corruption or any form of dis-crimination. Our task at CEBES is to demonstrate thata universal public system, of high quality and a huma-nized nature is viable today.
5. The growth in a market of health insurance schemesand health maintenance organizations that are partlysubsidized by public resources. Regulation thus re-quires an effort on our part to think of forms of publicintervention that simultaneously ensure equality ofhealth care, consumer rights and professional ethics.The production of consumables and technologies su-bordinate to a logic of capitalist accumulation needs tobe reverted to the production of goods and services ba-sed on needs. CEBES should cooperate with the natio-nal and international movements that act in relation tothe production of medications and guaranteeing healthcare in countries and populations of the so-called "thirdworld".
6. The institutionalization of social policies in the newconstitutional standard based on decentralization andparticipation has generated an innovative institutional
architecture, one that is, nevertheless, of limited effec-tiveness, as the social participation was determined bythe institutional design of the state apparatus. Overco-ming this fragmentation will allow us to put into prac-tice all the policies which should always be aimed atthe citizen end-user. Only by interacting with the otherpolitical actors of the organized civil society will we beable to transcend such fragmentation that deprives usof such capability. CEBES will be able to play a crucialrole in the political organization of Social Security, ena-bling the strengthening of social actors within the soci-al security scope by means of creating Councils, Confe-rences and private-public joint sector actions in such away as to give substance to the Social Security Budget.
7. The organized civil society has organized itself innetworks that seeks to think of more effective forms ofpolitical action, enabling it to exceed the limits impo-sed by the division into private and public sectors, frag-mentation and attempts at co-optation. CEBES needs toassume a role in this social movement, cooperating withthe organized civil society to conceive the limits of Bra-zilian democracy. Only with the strong organization ofthe civil society can we take democracy forwards inso-much as reducing the use of public policies as a cur-rency to trade for the support of governors, demandingincreased social participation in the economic areas thatdecide on the use of public funds and increased trans-parency of public accounts and decision-making pro-cesses, the strengthening of public careers, the regula-tion of legislative mechanisms of popular initiatives,the indispensable character of Congress-approved bud-get with the elimination of individual amendments, andelectoral reform.
THE NATIONAL DIRECTORATE
A exclusão de coberturas assistenciais nos planos de saúde privados
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005 231
ARTIGOS ORIGINAIS / ORIGINAL ARTICLES
A exclusão de coberturas assistenciais nos planos de saúdeprivados
The exclusion of medical assistance coverage from HMOs
Mário Scheffer1
Recebido: Jan./2007
Aprovado: Maio/2007
1Comunicador social, sanitarista, Mestre e
Doutorando do Departamento de Medicina
Preventiva da Faculdade de Medicina da
USP; membro da Diretoria do CEBES.
Email: mscheffer@uol.com.br
RESUMO
O artigo trata das ações judiciais relacionadas à cobertura assistencial de
planos de saúde julgadas em segunda instância pelo Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo. São descritas e analisadas as demandas levadas ao
Poder Judiciário por usuários de planos de saúde que reclamam negação de
assistência ou restrição de atendimento. Também são avaliados o
comportamento e as argumentações da Justiça nas decisões, assim como as
possíveis implicações, para o sistema de saúde brasileiro, da exclusão de
coberturas praticadas pelos planos de saúde.
PALAVRAS-CHAVE: Prestação de Cuidados de Saúde; Poder Judiciário; Cobertura
de Serviços Privados de Saúde
ABSTRACT
This paper deals with lawsuits filed in relation to medical assistance
coverage of HMOs judged by the São Paulo State Court of Appeal. The article
describes and analyzes legal claims taken to court by users of such HMOs
complaining of denial or restriction of medical assistance. Also assessed are
the attitudes and arguments behind court decisions, as well as the
implications that such exclusions and limitations of HMOs may have for the
Brazilian health care system.
KEYWORDS: Health Care Provision; The Judiciary; Private Health Care Service
Coverage
SCHEFFER, MÁRIO
232 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005
INTRODUÇÃO
A Constituição Federal (BRASIL,
1988) definiu a saúde como direito
de todos e dever do Estado, estabele-
ceu os princípios de universalidade
e eqüidade, reconheceu a livre atua-
ção da iniciativa privada e atribuiu
relevância pública ao setor.
As políticas e ações de saúde de-
vem, assim, se submeter à regula-
mentação, fiscalização e controle do
poder público, sejam executadas pelo
Estado – por meio de serviços pró-
prios, conveniados ou contratados –
ou pela iniciativa privada.
No entanto, somente dez anos de-
pois da Constituição, com a aprova-
ção da Lei 9.656(BRASIL, 1988), os
planos e seguros de saúde privados
passaram a ser regulados pelo Esta-
do.
Mas, afinal, o serviço particular
de uma empresa de plano de saúde,
que opera uma atividade econômica
relacionada à saúde, possuiria os
mesmos deveres do Estado? Seus
contratos deveriam estar submetidos
às normas constitucionais e infra-
constitucionais diretamente ligadas
à saúde?
Tem sido cada vez mais refutada
a idéia de que a iniciativa privada –
no caso, as operadoras de planos e
seguros de saúde – possa ficar imu-
ne à normatividade mais rigorosa do
poder público. O direito à atuação
MAS, AFINAL, O SERVIÇO
PARTICULAR DE UMA EMPRESA DE PLANO DE
SAÚDE, QUE OPERA UMA ATIVIDADE
ECONÔMICA RELACIONADA À SAÚDE, POSSUIRIA
OS MESMOS DEVERES DO ESTADO?
1Regulamentação dos Planos e Seguros Saúde (Notas Preliminares) – Grupo de Trabalho da Comissão de Saúde Suplementar do ConselhoNacional de Saúde, 21/08/2001.
privada e ao lucro devem ser respei-
tados, desde que prevaleçam o inte-
resse da coletividade e a busca do
bem comum. O fornecimento de ser-
viços de saúde adequados deve, por-
tanto, se sobrepor aos interesses par-
ticulares e econômicos.
Ao regulamentar a ordem social,
estabelecer os direitos dos cidadãos
e definir em quais situações o Esta-
do deve intervir para garantir justiça
e equilíbrio, a Constituição reservou
especial atenção à saúde, tratada no
gras impositivas. Todas as normas
constitucionais referentes à Justiça
Social – inclusive as programáticas
– geram imediatamente direitos sub-
jetivos para os cidadãos. Os concei-
tos vagos ou imprecisos dessas nor-
mas não têm impedido o reconheci-
mento do Judiciário (MELLO, 1981).
Para Wagner (2005), quando a
atenção à saúde é pautada pela com-
petitividade e pelas leis do mercado,
tende a haver degradação da quali-
dade, da eficiência e da responsabili-
dade. Por isso, completa, é necessá-
rio manter, por meio da regulação, o
caráter público dessa atividade.
Algumas justificativas para a uni-
formização do direito à saúde entre
o Sistema Único de Saúde (SUS) e os
planos privados extrapolam o cam-
po da legislação, conforme pode-se
observar em documento produzido
pelo Conselho Nacional de Saúde
(CNS) (2001)1 :
(...) na prática, as interferências entre
os recursos financeiros e assistenciais en-
tre o público e privado na área da saúde,
em nosso país, são muito mais complexas
e extensas e requerem, respeitando-se o
direito da atuação das empresas privadas,
definições claras sobre a subordinação dos
interesses privados aos públicos. (...) as
clientelas são segmentadas, mas compar-
tilham a mesma base física de recursos no
que se refere à capacidade instalada e aos
subsídios fiscais que viabilizam as cober-
turas (BRASIL, 2001, p. 4).
texto legal na condição de direito
público fundamental e inalienável.
O texto constitucional não se li-
mita apenas a traçar recomendações
que devem ser cumpridas quando da
elaboração de legislações específicas.
A Constituição não é um simples ide-
ário, não é apenas a expressão de
anseios, aspirações e propósitos, mas
a transformação de tudo isso em re-
A exclusão de coberturas assistenciais nos planos de saúde privados
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005 233
Cohn (2001) vai além das dimen-
sões legais e jurídicas ao apontar a
dificuldade de vislumbrar uma polí-
tica que desvincule o direito de aces-
so dos indivíduos à saúde da lógica
do mercado. A vinculação, diz a au-
tora, está relacionada à disponibili-
dade de recursos para essa parcela
da população, clientela de planos de
saúde, mas também está ligada à
lógica implementada pelo órgão re-
gulador, a Agência Nacional de Saú-
de Suplementar (ANS).
(...) o que se verifica neste setor é uma
crescente ‘tecnificação’ da política, isto é, a
utilização de instrumentos técnicos como
fator determinante na definição das políti-
cas (obviamente aí redominando as razões
econômicas) em substituição da política pro-
priamente dita. No entanto, enfrentar a
questão da saúde como direito do cidadão e
do consumidor exigiria exatamente o cami-
nho inverso: trazer a sociedade para dentro
do Estado, ao invés de distanciá-la por meio
da mistificação da técnica (COHN, 2001, p
41).
A atuação da iniciativa privada,
subordinada a preceitos éticos, de boa
fé, de responsabilidade e justiça so-
cial, foi tratada por Nunes (1999),
para quem a leitura do texto consti-
tucional define que o mercado de
consumo aberto à exploração não
pertence ao explorador, mas sim à
sociedade, e em função dela, de seu
benefício, é que se permite a explo-
ração. Como decorrência disso, o
reito de livre exploração da ativida-
de econômica por meio da prestação
de um serviço essencial, que é a saú-
de.
AS EXCLUSÕES DECOBERTURAS ASSISTENCIAIS
A exclusão ou limitação de co-
berturas assistenciais sempre foi um
problema recorrente com repercussão
direta na preservação da saúde e na
vida da população usuária dos pla-
nos de saúde privados no Brasil.
Esta prática, que também é res-
ponsável por interferências na orga-
nização de todo o sistema de saúde
brasileiro, chama a atenção para a
necessidade de melhor entendimento
acerca da atuação do setor privado,
sua relação com as políticas de saú-
de e os entraves que representa para
a plena efetivação do direito à saúde
no país.
Antes mesmo do processo de re-
gulamentação da saúde suplementar
no Brasil, a restrição de coberturas
era prática inerente ao negócio dos
planos e seguros saúde, que sempre
considerou a seleção de riscos e as
limitações de atendimento como cri-
térios garantidores da preservação do
lucro e da sustentabilidade econômi-
ca das operadoras.
Neste sentido a legislação especí-
fica representou, em parte, um avan-
ço para a parcela da sociedade aten-
dida pelos planos de assistência mé-
explorador tem responsabilidades a
saldar no ato exploratório. Ou seja,
tal ato não pode ser espoliativo. Se o
lucro é uma decorrência lógica e
natural da exploração permitida, ele
não pode ser ilimitado; encontrará
resistência e terá que ser barrado toda
vez que puder causar dano à socie-
dade.
A defesa do consumidor, confor-
me estabelece a Constituição, é um
princípio que deixa de conferir à ati-
vidade econômica a liberdade irres-
trita. É o que defende, entre outros,
Marques (2004):
(...) Ao garantir aos consumidores a sua
defesa pelo Estado a Constituição criou uma
antinomia necessária em relação a muitas
de suas próprias normas, flexibilizando- as,
impondo em última análise uma interpreta-
ção relativa dos princípios em conflito, que
não mais podem ser interpretados de forma
absoluta ou estaríamos ignorando o texto
constitucional (MARQUES, 2004, p.577).
Ou seja, ao estipular como prin-
cípios tanto a livre concorrência
quanto a defesa do consumidor, o
legislador garante que os cidadãos
não podem ser explorados, pois a eles
são outorgados direitos.
A seguir, será apresentado o pro-
blema das exclusões de coberturas
assistenciais pelos planos de saúde,
que revela, dentre outros aspectos, a
dificuldade de compatibilização en-
tre os direitos à saúde e os do consu-
midor, de um lado e, de outro, o di-
SCHEFFER, MÁRIO
234 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005
dica suplementar, pois tratava-se de
um segmento que, há mais de 30
anos, atuava seguindo as “leis” do
livre mercado, sem normas regula-
mentadoras, controle ou fiscalização
por parte do Estado.
A Lei 9.656/98(BRASIL, 1998)
trouxe, entre as inovações conside-
radas ao mesmo tempo positivas e
insuficientes, a definição de padrões
mínimos de cobertura e o estabeleci-
mento de critérios para a entrada,
funcionamento e saída de empresas
no setor. Também transferiu para o
Poder Executivo a responsabilidade
pela regulação e fiscalização dessas
operadoras privadas, tanto os aspec-
tos assistenciais como aqueles liga-
dos à atividade econômica.
Ao oferecer no mercado um pla-
no de saúde, individual ou coletivo,
as operadoras hoje tendem a obser-
var normas estabelecidas especifica-
mente para esta atividade, sendo
muitas delas ainda restritivas quan-
to à cobertura assistencial.
Vale ressaltar que, uma década
antes do primeiro marco regulatório
da saúde suplementar, a sociedade
já havia decidido, por meio das con-
quistas constitucionais, qual o tipo
de sistema e de assistência à saúde
queria para o país. Não havia espa-
ço – na concepção cunhada pelo
Movimento da Reforma Sanitária,
abordada na 8ª Conferência Nacional
de Saúde e respaldada pelo Congres-
so Nacional após ampla mobilização
social – para a diminuição da saúde
e do acesso à assistência à condição
de mercadoria.
Nas análises sobre o setor de saú-
de suplementar no Brasil, a amplitu-
de das coberturas, assim como os
gastos com a remuneração dos pres-
tadores de serviços e o valor das
mensalidades, são apontados como
elementos determinantes para o fun-
cionamento e o comportamento das
empresas de planos de saúde presen-
tes no mercado.
quada, uma vez que ele envolve in-
teresses e expectativas diferentes.
Os temas ligados à regulação dos
planos de saúde, entre eles a cober-
tura assistencial, antes restritos aos
atores diretamente envolvidos – em-
presas, prestadores e consumidores
– passaram a contar com um órgão
regulador e a chamar cada vez mais
a atenção dos sanitaristas, do meio
acadêmico e das instâncias de ges-
tão e controle social do SUS, tendo
em vista as implicações com as polí-
ticas públicas de saúde.
Vários representantes destes se-
tores, até então ausentes ou omissos
no processo regulatório da saúde
suplementar, passaram a discutir
regras e políticas que sejam capazes
de tratar o sistema de saúde de uma
forma mais ampla; que busquem o
equilíbrio entre a garantia do direito
à saúde e os aspectos econômico-fi-
nanceiros envolvidos; que mante-
nham o norteamento pelos marcos
doutrinários e de relevância pública
do SUS; e que promovam a convi-
vência democrática entre os legítimos
interesses envolvidos, viabilizando-
os minimamente e de forma negoci-
ada (SCHEFFER; BAHIA, 2005).
O Conselho Nacional de Saúde
(BRASIL, 2001), por meio da sua Co-
missão Permanente de Saúde Suple-
mentar, afirma que uma política para
este segmento dos planos de saúde
deve orientar-se pela defesa do direi-
to à saúde, e não apenas se ocupar
em ditar regras para o mercado. O
Situações de exclusões de cober-
tura assistencial, constantemente
denunciadas ou reivindicadas por
usuários e consumidores, expõem,
na prática, o desequilíbrio e o confli-
to entre operadoras, prestadores de
serviços e clientes.
Este fato evidencia que nem o
suposto virtuosismo da livre inicia-
tiva, nem as normas reguladoras
implementadas têm sido capazes de
solucionar o problema de forma ade-
...uma década antes do primeiromarco regulatório da saúde suple-
mentar, a sociedade já haviadecidido(...) qual o tipo de sistema
e de assistência à saúdequeria para o país.
A exclusão de coberturas assistenciais nos planos de saúde privados
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005 235
CNS rechaça a idéia, bastante disse-
minada, que aponta a existência de
dois sistemas não relacionados e dis-
tintos: o SUS, considerado o sistema
dos pobres, e os planos e seguros de
saúde, para os trabalhadores formais
e a classe média.
Nesta perspectiva, defendida pelo
CNS, que é a instância maior de con-
trole social das políticas de saúde,
os problemas relacionados à saúde
suplementar – a exemplo das cober-
turas assistenciais – devem ser abor-
dados não apenas como um assunto
que diz respeito aos mais de 35 mi-
lhões de brasileiros ligados aos pla-
nos de saúde privados, mas também
considerando as repercussões da con-
figuração e das práticas deste setor
nas diretrizes da política nacional de
saúde.
Os limites e garantias contratu-
ais de coberturas estabelecidas pe-
las empresas deste segmento confi-
guram um dos aspectos mais con-
troversos da relação público-priva-
do no sistema de saúde brasileiro.
Apesar de ainda não quantificados –
tendo em vista os poucos estudos dis-
poníveis –, sabe-se que não são pou-
cos os recursos despendidos pelo SUS
para prestar assistência a todo tipo
de cobertura negada pelos planos de
saúde, a exemplo das demandas re-
lacionadas à urgência e à emergên-
cia, procedimentos de alto custo e de
alta complexidade. Os cidadãos, prin-
cipalmente os idosos e os portadores
de patologias crônicas e deficiênci-
as, que possuem planos de saúde
individuais, familiares ou coletivos,
precisam recorrer, com certa freqüên-
cia, à rede pública de saúde diante
de situações de exclusões de cober-
tura e de restrições de atendimento.
Tais limitações são impostas por
cláusulas contratuais antigas, mas
também são autorizadas pela própria
legislação vigente ou por normas
editadas pela ANS. Não raro, são li-
mitações resultantes de cláusulas
clusões impostas pelos planos anti-
gos ‘empurram’ para o SUS clientes
de planos de saúde sem condições
de arcar com os custos de serviços
particulares.
As análises disponíveis sobre a
regulamentação, ao se referirem à
restrição das coberturas privilegiam
a sua relação com o equilíbrio eco-
nômico-financeiro das operadoras.
Faz-se necessário avaliar também a
intensidade das regras sobre cober-
turas e a efetividade do seu cumpri-
mento, o que poderá contribuir para
uma melhor compreensão da com-
plexidade do sistema de saúde bra-
sileiro.
Devem ser levados em conta os
princípios constitucionais da digni-
dade humana, do direito à vida e do
direito à saúde; os pressupostos re-
lativos ao sistema de proteção e de-
fesa do consumidor; as disposições
do Código Civil; e também os mar-
cos legais específicos: a Lei 9.656/
98, combinada às Medidas Provisó-
rias que a alteraram e a Lei 9.961/
00, promulgada em 2000 com o ob-
jetivo de criar e normatizar o funcio-
namento da ANS.
Dentre os supostos méritos da Lei
9.656/98, propagados durante o seu
processo de tramitação no Congres-
so Nacional e após a sua promulga-
ção, pelo Poder Executivo, figuravam
o impedimento das restrições de aten-
dimentos e a exigência da cobertura
integral de todas as patologias con-
tidas na Classificação Internacional
contratuais leoninas e até de má-fé
por parte das empresas.
Se comparadas às inúmeras res-
trições impostas nos contratos de pla-
nos de saúde assinados antes da le-
gislação de 1998, as regras atuais
promoveram a ampliação das cober-
turas para os chamados planos no-
vos, ou seja, os contratos assinados
a partir de janeiro de 1999. Ainda as-
sim, uma série de limitações conti-
das na legislação em vigor e as ex-
... SABE-SE QUE NÃO SÃO POUCOS OS
RECURSOS DESPENDIDOS PELO SUSPARA PRESTAR ASSISTÊNCIA A TODO
TIPO DE COBERTURA NEGADA
PELOS PLANOS DE SAÚDE ...
SCHEFFER, MÁRIO
236 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005
de Doenças (CID) da Organização
Mundial da Saúde (OMS), incluindo
todos os meios diagnósticos e tera-
pêuticos disponíveis. Decorridos vá-
rios anos da vigência da Lei dos Pla-
nos de Saúde, há muitos obstáculos
impedindo a real efetivação da co-
bertura prevista ou pretendida nos
marcos legais.
Até a existência da nova legisla-
ção, a extensão da cobertura assis-
tencial era, na prática, determinada
pelos contratos – individuais ou co-
letivos – assinados entre os usuári-
os e as operadoras de planos de saú-
de. Com o novo marco legal, os con-
tratos passaram a ser padronizados
e orientados pelas diretrizes da Lei
9.656/98, bem como por diversas
resoluções editadas pelo Conselho
Nacional de Saúde Suplementar (Con-
su) e, a partir de 2000, pelo órgão
regulador: a ANS.
Assim, a assistência e a amplitu-
de da cobertura oferecida pelos pla-
nos de saúde estão condicionadas a
vários fatores: época da contratação
(há contratos novos, antigos e adap-
tados); cobertura definida pela lei
para cada tipo de plano contratado
após janeiro de 1999 (há segmenta-
ção de coberturas); forma de contra-
tação (plano individual/familiar ou
plano coletivo) e normatizações es-
pecíficas do Consu e da ANS.
Na prática, apesar da regulamen-
tação, a exclusão de atendimentos
ainda figura como um dos principais
motivos de queixas de usuários de
planos de saúde. Além dos proble-
mas relacionados à cobertura assis-
tencial, a regulação pretendida para
o mercado ainda não solucionou di-
versas outras situações.
São exemplos a rescisão unilate-
ral de contrato, o descredenciamento
de prestadores de serviços, as limi-
tações de período de internação, os
longos períodos de carência e as
mensalidades abusivas em função de
mudanças de faixa etária. Nem mes-
de, o usuário tem poucas possibili-
dades de caminhos a seguir. A op-
ção imediata é pagar pelo aten-
dimento particular. Como pou-
cos têm condição de arcar com
esses custos, restaria procurar
o atendimento nas unidades do
Sistema Único de Saúde ou, até
mesmo, ficar sem a cobertura
necessária.
Outros podem tentar buscar
saídas mediante queixas e pro-
cessos administrativos junto à
operadora, junto aos departa-
mentos de recursos humanos
das empresas (no caso dos pla-
nos coletivos e autogestões),
mediante denúncias aos órgãos
de defesa do consumidor ou re-
clamações à agência regulado-
ra (via Disque ANS, principal-
mente). Diante da ineficácia
destas alternativas, só resta ao
usuário de plano de saúde, que
tiver condições de constituir
advogado, recorrer ao Poder
Judiciário para a exigência de
direitos supostamente desres-
peitados.
A urgência da necessidade de
saúde, a consciência dos direitos
de cidadania, a facilidade de aces-
so e a credibilidade das instânci-
as que recebem queixas e recla-
mações, são alguns dos fatores
que determinam a busca de ajuda
na tentativa de reverter a situa-
ção de negação de cobertura.
mo o ressarcimento ao SUS, a ser
realizado toda vez que um usuário
de plano de saúde é atendido em
unidade pública de saúde, foi total-
mente equacionado pela regulamen-
tação, que também pouco trata da
relação entre a saúde suplementar e
o Sistema Único de Saúde.
Diante da negativa de atendimen-
to ou da exclusão contratual de co-
bertura pelo plano de saúde, contra-
posta à iminente necessidade de saú-
NA PRÁTICA, APESAR DA REGULAMENTAÇÃO, AEXCLUSÃO DE ATENDIMENTOS AINDA FIGURA
COMO UM DOS PRINCIPAIS MOTIVOS DE
QUEIXAS DE USUÁRIOS DE PLANOS DE SAÚDE
A exclusão de coberturas assistenciais nos planos de saúde privados
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005 237
A ANÁLISE DASAÇÕES JUDICIAIS
O presente artigo é baseado em
estudo2 que teve como objetivos: a.
‘quantificar’ o universo de ações
judiciais relacionadas à negação ou
limitação de atendimentos e assis-
tência aos clientes de planos de saú-
de; b. descrever e analisar as prin-
cipais situações levadas aos tribu-
nais relacionadas à negação de aten-
dimento, exclusão ou restrição de
cobertura; c. ‘analisar’ o comporta-
mento do Judiciário nos julgamen-
tos proferidos em segunda instân-
cia, comparando-os com os resulta-
dos de primeira instância.
O estudo consistiu na análise de
735 decisões judiciais relacionadas
a exclusões de coberturas e nega-
ções de atendimento por parte dos
planos de saúde, julgadas em segun-
da instância pelo Tribunal de Justi-
ça do Estado de São Paulo, entre ja-
neiro de 1999 e dezembro de 2004.
A pesquisa foi realizada no Estado
de São Paulo, que conta com cerca
de 900 operadoras de planos de as-
sistência médico-hospitalar em ati-
vidade; atinge 15,2 milhões de usu-
ários (40% do total do país); tem alto
grau de cobertura (38% da popula-
ção do estado e 55% da capital têm
planos de saúde); e movimentou, em
2005, 15,2 bilhões de reais, quase a
2 Scheffer MC. Os planos de saúde nos tribunais: uma análise das ações judiciais movidas por clientes de planos privados de saúde erelacionadas à negação de coberturas assistenciais no Estado de São Paulo. [dissertação]. São Paulo: Faculdade de Medicina da Universi-dade de São Paulo; 2006. 212 p. Disponível em www.teses.usp.br
metade da receita dos planos de saú-
de em todo o país.
Os principais resultados podem
ser agrupados em: a. perfil das co-
berturas excluídas; b. perfil dos pla-
nos de saúde denunciados na Justi-
ça; c. teor das decisões e argumen-
tações.
a. Perfil das coberturas excluí-
das
• Dentre os grupos de doenças
(Classificação Internacional de Do-
enças - CID 10) citados nos acórdãos
devido a exclusão de cobertura, em
• As doenças mais citadas fo-
ram: câncer (97 menções), doenças
cardiovasculares (78), Aids (30), me-
ningite (21), acidentes e causas ex-
ternas (20), cirrose hepática (16), in-
suficiência renal (14), hérnia (14),
diabetes (12) e doenças congênitas
(12).
• Dentre as coberturas citadas
nos acórdãos, a maioria (68%) não
traz especificação de procedimentos.
Mesmo nestes casos, foi possível
agrupar as coberturas em: assistên-
cia médica (36%), seguida de inter-
nações (27%), cirurgias (24%), inter-
nações em UTI (12%) e consultas
médicas (1%).
• Dentre as coberturas com es-
pecificação de procedimentos (32%),
os mais citados foram os procedi-
mentos cirúrgicos e invasivos
(39,9%), os procedimentos clínicos
(27,0%), órteses e próteses (9,5%),
procedimentos diagnósticos e tera-
pêuticos (8,3%), insumos e medica-
mentos (8,3%), procedimentos gerais
(7,0%).
• Agrupando todos os procedi-
mentos, os mais citados foram:
transplantes (16%), quimioterapia,
radioterapia e outros procedimentos
ligados ao tratamento de câncer
(15%), órteses e próteses (9,5%), exa-
mes diagnósticos (8,3%), implantes
(5,5%), hemodiálise (5,2%), oxigeno-
terapia (4,6%), fisioterapia (3,7%),
um total de 478 menções, prevale-
cem os neoplasmas (20,3%), doen-
ças do aparelho circulatório (16,3%)
e doenças infecciosas (11,1%).
• Os dois grupos de doenças
mais citados – câncer e cardiopati-
as – referem-se às duas principais
causas de morte no Estado de São
Paulo.
OS PRINCIPAIS RESULTADOS PODEM SER
AGRUPADOS EM: A. PERFIL DAS COBERTURAS
EXCLUÍDAS; B. PERFIL DOS PLANOS DE SAÚDE
DENUNCIADOS NA JUSTIÇA; C. TEOR DAS
DECISÕES E ARGUMENTAÇÕES
SCHEFFER, MÁRIO
238 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005
... O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, AO
ATENDER ESTES CASOS DE EXCLUSÕES DE
COBERTURAS, ATUA DE FORMA A SUBSIDIAR
OS PLANOS DE SAÚDE PRIVADOS
assistência ao recém-nascido (3,7%),
medicamentos de uso hospitalar
(3,7%) e outros (24,8%).
• A negação de cobertura de ca-
sos relacionados à urgência e emer-
gência esteve presente em 109
(14,8%) acórdãos analisados. Os ca-
sos de urgência estão relacionados,
principalmente, a doenças cardio-
vasculares, câncer e acidentes.
• Nas 51 decisões analisadas que
mencionaram a negação de cober-
tura de transplantes, dentre aqueles
que são especificados, os mais cita-
dos são os transplantes de fígado e
de medula. Chama a atenção que a
atual regulamentação também de-
sobriga a cobertura desses procedi-
mentos: apenas são obrigatórios os
transplantes de rins e córneas.
• Dentre as decisões judiciais
analisadas, 31 (4,2%) mencionaram
a negação de cobertura de órteses e
próteses, sendo mais mencionados
os stents, marca-passos e cateteres.
• A exclusão de atendimento sob
alegação de doença preexistente apa-
receu em 174 (23,6%) das decisões
judiciais estudadas. Chama a aten-
ção que a exclusão de preexisten-
tes, muito comuns nos contratos
antigos, foi perpetuada pela lei 9656/
98 que manteve este conceito e esti-
pulou dois anos de carência.
• Pode-se afirmar que, dentre os
procedimentos especificados, aque-
les de alta complexidade e alto cus-
to são mais freqüentemente citados
nas decisões judiciais. A maior in-
cidência de ações relacionadas a
procedimentos dispendiosos e espe-
cializados – a exemplo dos trans-
plantes, do tratamento do câncer, da
hemodiálise e de diversos procedi-
mentos cirúrgicos e invasivos – traz
indícios da prática adotada pelas
operadoras visando à economia de
recursos e ao predomínio da lógica
financeira. Ao mesmo tempo indica
que o Sistema Único de Saúde, ao
atender estes casos de exclusões de
b. Perfil dos planos de saúde de-
nunciados na Justiça
• A medicina de grupo é o seg-
mento de operadoras de planos de
saúde mais citado nos acórdãos ana-
lisados (54,4%), seguido das segu-
radoras (30,2%), cooperativas/Uni-
meds (9,8%), filantropia (2,6%), au-
togestão (0,9%) e outros (2,1%).
• Dentre as decisões avaliadas,
87,6% referem-se a contratos indivi-
duais, enquanto 10,9% são contra-
tos coletivos. Os planos coletivos,
apesar de corresponderem a mais
de 70% do mercado, são levados com
menos freqüência aos tribunais.
Apresentados pelas empresas como
‘benefício’ ou como ‘salário indire-
to’, geralmente pressupõem uma
diluição do risco entre os beneficiá-
rios, que leva a cálculos de custos
per capita e à definição de cobertu-
ras. Já os contratos individuais, por
implicarem uma concentração do
risco, tendem a restringir mais as
coberturas. Mas também é possível
supor que o usuário (pessoa física)
de plano coletivo não tenha alterna-
tivas diante da limitação imposta.
Resta-lhe, na maioria das vezes, o
registro da queixa junto ao próprio
empregador (RH das empresas, por
exemplo). Os usuários podem temer
reclamar externamente a negação de
atendimento. Esta seria uma forma
de manter a boa relação com o em-
pregador e até mesmo de preservar
o emprego. O beneficiário tem, por-
coberturas, atua de forma a subsi-
diar os planos de saúde privados.
• Além de excluir aquelas doen-
ças cujos tratamentos são mais one-
rosos, também são excluídas aque-
las que, na visão das operadoras,
deviam ser obrigação exclusiva do
sistema público. Dois exemplos são
o tratamento da Aids e as hemodiá-
lises, que são absorvidos em sua
quase totalidade pelo SUS, sem a
participação dos planos.
A exclusão de coberturas assistenciais nos planos de saúde privados
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005 239
tanto, pouco controle ou reduzida
escolha sobre o plano coletivo.
• Dos acórdãos analisados, a
maioria (55,2%) não informa a data
de contratação dos planos. Dentre
aqueles que trazem essa informação,
a maior parte é de contratos anteri-
ores à Lei 9.656/98 (44,1% dos acór-
dãos). O fato é que o grande núme-
ro de contratos antigos no universo
pesquisado explica-se, em parte,
pela morosidade da Justiça, uma vez
que foram estudadas decisões de
segunda instância que tiveram iní-
cio antes da vigência da atual legis-
lação.
c. Teor das decisões e argu-
mentações jurídicas
• A Justiça foi favorável à con-
cessão de cobertura, na segunda ins-
tância, em 73,5% das ações julga-
das, praticamente confirmando a
proporção verificada na primeira
instância, na qual 74,5% foram fa-
voráveis aos usuários. Em 3,7% dos
acórdãos, o juiz concedeu parte da
cobertura solicitada e, em 20,4%, foi
negada a cobertura, com decisão
favorável ao plano de saúde. Em
algumas situações, como câncer
(79,4% dos casos) e transplantes
(78,8% dos casos), as decisões fo-
ram ainda mais favoráveis em se-
gunda instância.
• O Código de Defesa do Consu-
midor (CDC) é a legislação mais ci-
tada nas argumentações das deci-
sões judiciais: 62,7% do total de
menções a legislações específicas.
Em seguida, vem o Código Civil
(14,6%). A Lei 9.656/98 fica em ter-
ceiro lugar (10%), seguida da Cons-
tituição Federal (7,3%).
• O fato de a Lei dos Planos de
Saúde (9.656/98) ser pouco citada
nas decisões analisadas pode de-
monstrar a limitação e o pouco al-
cance desta legislação, que não é
aplicada para os planos antigos (boa
parte dos contratos ainda em vigor)
e com limitações de cobertura mes-
mo nas regras atuais.
• Quando o CDC é utilizado nas
argumentações favoráveis à conces-
são de cobertura, os aspectos mais
citados são: em caso de dúvida na
interpretação do contrato, a decisão
deve ser favorável ao consumidor;
as cláusulas restritivas deveriam
estar expressas em destaque; a res-
trição atribui vantagem exagerada
para a operadora; é abusiva a cláu-
sula que estipula limite de tempo
de internação e valores; a operado-
ra não provou má-fé ou desconheci-
mento da doença por parte do usuá-
rio; as limitações são abusivas,
quando se trata de urgência e emer-
gência; e a operadora não prestou
bom serviço. Nos casos em que o
CDC é usado em decisões favoráveis
às operadoras, o principal argumen-
to é de que não há relação de con-
sumo quando se trata de planos co-
letivos.
• Quanto à Lei 9.656/98, quan-
do ela é mencionada favoravelmen-
te à concessão de cobertura, o
principal argumento utilizado é a
ausência de prova de má-fé, uma
vez que o usuário não fez exame
pré-admissional. Os juízes também
alegam, com base na Lei dos Pla-
nos de Saúde, que o procedimento
deve ser coberto, que o consumidor
tem direito à informação adequada,
e que a cobertura de urgência e
emergência tem que ser obrigatória.
A Lei 9.656/98 ainda serviu de fun-
damento para decisões favoráveis
às operadoras, quando, por exem-
plo, a legislação permite a exclusão
de determinada cobertura.
• Algumas decisões favoráveis
à cobertura utilizam argumentos
médicos, sendo os dois principais:
a intervenção cirúrgica não é para
fim estético; os planos devem cobrir
os progressos da medicina e a in-
corporação de novas tecnologias.
• Há, ainda, decisões baseadas
unicamente no contrato firmado en-
tre usuário e operadora, em que o
juiz decide a partir das disposições
contratuais. Nestes casos, o juiz afir-
ma que o contrato não exclui a co-
bertura. O argumento do contrato é
usado também nas decisões favorá-
veis aos planos de saúde. Nestes
casos, as principais argumentações
são: as limitações/exclusões estão
expressas no contrato; o médico ou
hospital não são credenciados pelo
plano de saúde e, portanto, o plano
não deve conceder a cobertura. Pre-
valece nestes julgados o princípio de
SCHEFFER, MÁRIO
240 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005
INÚMERAS SITUAÇÕES NEM SEQUER SÃO
FORMALIZADAS, QUANDO O DESFECHO PARA OUSUÁRIO É SER ATENDIDO NAS UNIDADES DO
SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, ARCAR COM OS
CUSTOS PARTICULARES OU FICAR SEM OATENDIMENTO NECESSÁRIO
que o contrato faz a lei entre as par-
tes.
• Os principais argumentos usa-
dos pelas operadoras na sua defesa
em juízo são: existência de cláusu-
la excludente no contrato; caso de
doença preexistente; o médico/hos-
pital não é credenciado; não há re-
lação de consumo, pois trata-se de
associação/plano coletivo; a garan-
tia de saúde irrestrita é dever do
Estado e não do plano de saúde; o
procedimento não está incluído na
tabela vigente da Associação Médi-
ca Brasileira (AMB); a finalidade do
procedimento é meramente estética;
o usuário está inadimplente no pa-
gamento da mensalidade; o proce-
dimento não está incluído no Rol de
Alta Complexidade da ANS.
CONSIDERAÇÕES
SOBRE A DIMENSÃO
DO PROBLEMA
O perfil das coberturas assisten-
ciais negadas pelos planos de saú-
de e levadas ao Tribunal de Justiça
do Estado de São Paulo (TJ-SP) é pre-
ocupante, uma vez que relaciona
problemas de saúde e doenças res-
ponsáveis pelos maiores índices de
adoecimento e morte da população.
São negações de atendimento liga-
das a situações clínicas cuja demo-
ra no atendimento é uma variável
importante na determinação do prog-
nóstico e na sobrevida do paciente.
O problema da exclusão de co-
berturas ainda não foi considerado
à altura de sua gravidade e de suas
repercussões na saúde e na vida da
população assistida. Também não
são totalmente conhecidas a dimen-
são das ocorrências e suas implica-
ções para o sistema de saúde brasi-
leiro. É razoável supor que o pre-
sente artigo tratou da ‘ponta do ice-
berg’ do problema, ao analisar de-
malizadas, quando o desfecho para
o usuário é ser atendido nas unida-
des do Sistema Único de Saúde, ar-
car com os custos particulares ou
ficar sem o atendimento necessário.
Traçar a real dimensão das limita-
ções assistenciais na saúde suple-
mentar demanda pesquisas com de-
senhos específicos , que podem ser
assumidas pelo órgão regulador e
implementadas em parceria com
setores acadêmicos.
O estudo das demandas de usu-
ários de planos de saúde levadas à
Justiça é, sem dúvida, um instru-
mento relevante que merece ser con-
tinuado e aprimorado, não só junto
aos Tribunais de Justiça, mas tam-
bém junto aos Juizados Especiais
Cíveis e ao Ministério Público, ins-
tâncias que, cada vez mais, aco-
lhem os pleitos relacionados a ex-
clusões de coberturas assistenciais
e outros temas que envolvem a saú-
de suplementar.
Apenas o monitoramento da ba-
talha travada no Judiciário, no en-
tanto, não é suficiente.
Há que se considerar a dificul-
dade de acesso à Justiça, o ônus fi-
nanceiro da contratação de advoga-
do, o desconhecimento dos direitos
por parte do cidadão usuário de pla-
nos de saúde (tendo em vista a com-
plexidade e a fragmentação da le-
gislação), a morosidade na tramita-
ção das ações judiciais e o descré-
dito de parcela da sociedade quanto
à atuação do Judiciário.
mandas apresentadas ao TJ-SP, com
abrangência geográfica e espaço de
tempo delimitados e, ainda, restri-
tas às decisões de segunda instân-
cia.
As informações sobre negações
de cobertura não estão apenas nos
tribunais. Encontram-se pulveriza-
das nas várias instâncias que ser-
vem de porta de entrada para quei-
xas e reclamações desse tipo. Inú-
meras situações nem sequer são for-
A exclusão de coberturas assistenciais nos planos de saúde privados
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005 241
As demais instâncias, especial-
mente os Procons e o Disque ANS,
precisam ser integradas a um siste-
ma de informações. Da mesma for-
ma, deve ser aprimorado o registro
dos dados sobre os atendimentos de
usuários de planos de saúde nas
unidades do SUS.
SOBRE A NECESSIDADE DE
REVISÃO DA LEGISLAÇÃO
A convivência de dois ‘mundos’,
antes e depois da regulamentação,
com regras distintas nos contratos
de planos de saúde, somada às dis-
torções contidas em resoluções e
normas ditadas pela agência regu-
ladora, poderá levar a população
usuária a acionar, cada vez mais, o
Poder Judiciário na tentativa de so-
lucionar conflitos com as operado-
ras de planos de saúde.
O fato de a Lei dos Planos de Saú-
de (9.656/98) ter sido pouco citada
nas decisões analisadas – se com-
parada à menção ao Código de De-
fesa do Consumidor e ao Código Ci-
vil – demonstra a limitação e o al-
cance desta legislação. Ela é descon-
siderada até mesmo em acórdãos
que mencionam planos novos, ad-
quiridos após a sua vigência.
Ao menosprezarem a Lei 9656/
98 e ao darem ganho de causa à
concessão de cobertura na maioria
dos pleitos, as decisões judiciais
analisadas sugerem aos Poderes
Executivo e Legislativo que o apa-
rato regulatório em vigor é frágil e
que algo precisa ser feito para dar
respostas ao problema da exclusão
de coberturas na saúde suplemen-
tar, freqüentemente levado aos tri-
bunais.
São motivos de demandas judi-
ciais, conforme demonstrou o estu-
do, as exclusões de procedimentos
médicos de alto custo e alta com-
plexidade, doenças preexistentes,
transplantes, situações de urgência
potencialmente, poderão ser levadas
aos tribunais. Compõem este cená-
rio os planos segmentados (ambu-
latorial, hospitalar,hospitalar com
obstetrícia ou referência); os perío-
dos de carência (24 horas para aten-
dimento de urgências e emergênci-
as; 180 dias para consultas, exa-
mes, internações; 300 dias para par-
tos; 24 meses para coberturas rela-
cionadas a doenças preexistentes);
os reajustes por faixas etárias (que,
muitas vezes, ‘expulsam’ os usuá-
rios idosos); a interpretação por ve-
zes equivocada, pelos planos de saú-
de, do que são ‘procedimentos esté-
ticos’ passíveis de exclusão confor-
me preconiza a legislação; os limi-
tes da assistência psiquiátrica; a
exclusão de cirurgia de correção de
miopia nos casos de grau igual ou
superior a 7 (sete)1; as exclusões
contratuais e a não obrigatoriedade
de cobertura de doenças profissio-
nais e acidentes do trabalho nos pla-
nos coletivos; as limitações da co-
bertura geográfica; o controle de
acesso à rede e aos meios diagnós-
ticos e terapêuticos , dentre outras
possibilidades.
É inadiável, portanto, o retorno
da regulamentação dos planos de
saúde ao Congresso Nacional, pau-
ta que poderá ser assumida pela
nova Legislatura que teve início em
2007. Cabe ao Legislativo, e não só
à ANS por meio de suas resoluções,
a iniciativa de revisão da legislação
em vigor, de forma a corrigir as dis-
e emergência, órteses e próteses,
dentre outras restrições contidas
principalmente nos contratos anti-
gos. Portanto, a situação dos pla-
nos pré-regulamentação precisa ser
urgentemente tratada no âmbito do
Legislativo e da agência regulado-
ra.
Há, também, uma série de ou-
tras possibilidades de exclusões,
contidas na atual regulamentação,
que devem ser consideradas e que,
...A SITUAÇÃO DOS PLANOS PRÉ-REGULAMENTAÇÃO PRECISA SER
URGENTEMENTE TRATADA NO ÂMBITO DO
LEGISLATIVO E DA AGÊNCIA REGULADORA
SCHEFFER, MÁRIO
242 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005
torções contidas nas regras atuais e
de estender as novas normas aos
planos antigos e aos planos coleti-
vos, hoje excluídos ou parcialmen-
te alcançados pela legislação.
SOBRE O COMPORTAMENTO
E A AUTONOMIA DO JUDICIÁRIO
O estudo demonstra que o Poder
Judiciário vem sendo chamado a
garantir e dar efetividade em ques-
tões sensíveis como o direito do con-
sumidor e o direito à saúde previs-
tos na Constituição. A sociedade
bate às portas da Justiça para exi-
gir respostas no que se refere à atu-
ação das empresas de planos de saú-
de ou à omissão e à insensibilidade
do poder público e do órgão regula-
dor.
Em que pese o fato de a maioria
das decisões terem obrigado a con-
cessão de coberturas, é importante
ressaltar que há decisões contrári-
as, muitas vezes baseadas na mes-
ma legislação que serviu aos julga-
dos favoráveis – Código de Defesa
do Consumidor, Código Civil, Lei
9.656/98 ou Constituição Federal. A
utilização da mesma base legal em
decisões divergentes demonstra a
independência e a autonomia do Ju-
diciário nesta matéria. Isto não sig-
nifica que os juízes decidem estas
causas baseados exclusivamente
nas suas próprias noções subjetivas
de justiça, mas sim que tomam com
liberdade as decisões legais.
O que se espera do poder Judici-
ário em uma democracia é que suas
decisões sejam imparciais e indepen-
dentes, baseadas nos fatos de cada
caso apresentado, no mérito, nos
argumentos legais e nas leis mais
relevantes, sem qualquer influência
das partes interessadas, asseguran-
do a igualdade da proteção legal.
nos de saúde). Nesta concepção, o
que rege prioritariamente a relação
entre clientes e empresas de planos
de saúde são as normas do Código
de Defesa do Consumidor (CDC), que
predominam nas argumentações ju-
rídicas dos acórdãos analisados.
O entendimento de boa parte dos
juízes de que a assistência à saúde
reclamada nas ações judiciais é um
direito do consumidor, ainda que
crie farta jurisprudência favorável
à concessão de coberturas, não tra-
ta o problema em todas as suas di-
mensões. Muitas das decisões são
tomadas não pela necessidade de
saúde apresentada, mas pelas cober-
turas definidas na legislação ou nos
contratos. O direito do consumidor
estaria, assim, restrito à utilização
dos serviços, quando requisitados
por uma demanda individual. Con-
forme o resultado da pesquisa, não
há consenso, no TJ-SP, sobre a apli-
cação do CDC aos contratos coleti-
vos – maior fatia do mercado de pla-
nos de saúde – o que vem a ser ou-
tro limitador desta concepção con-
sumerista.
Em outro extremo, a redução da
saúde à condição de mercadoria está
também contida nas argumentações
das operadoras, quando da contes-
tação, em juízo, das solicitações de
coberturas. A existência de cláusu-
la contratual que explicitamente li-
mita a cobertura é o argumento mais
utilizado pelas empresas de planos
de saúde para negar o atendimento,
SOBRE A SAÚDE REDUZIDA
À CONDIÇÃO DE MERCADORIA
A partir das ações judiciais ana-
lisadas junto ao TJ-SP, é possível afir-
mar que prevalece no Judiciário a
visão de que a prestação de servi-
ços pelos planos de saúde é uma
mercadoria, um bem de consumo
oferecido por um fornecedor (as ope-
radoras) para um consumidor des-
tinatário final (os usuários dos pla-
... É POSSÍVEL AFIRMAR QUE PREVALECE NO
JUDICIÁRIO A VISÃO DE QUE
A PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PELOS PLANOS DE
SAÚDE É UMA MERCADORIA ...
A exclusão de coberturas assistenciais nos planos de saúde privados
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005 243
A EXISTÊNCIA DE CLÁUSULA CONTRATUAL QUE
EXPLICITAMENTE LIMITA A COBERTURA É OARGUMENTO MAIS UTILIZADO PELAS EMPRESAS
DE PLANOS DE SAÚDE PARA NEGAR OATENDIMENTO...
reforçando a concepção de que o que
está em discussão não é uma ne-
cessidade de saúde, mas uma mera
disposição contratual da descrição
do “produto” a ser entregue ao con-
sumidor.
Vários acórdãos mencionam,
com argumento favorável à conces-
são de coberturas, o direito funda-
mental à saúde e o direito inaliená-
vel à vida inscritos na Constituição
Federal. E mesmo quando prevale-
ce a visão consumerista, o Judiciá-
rio por vezes afirma que a saúde não
pode ser tratada como qualquer
outra mercadoria.
Argumenta-se que o consumidor
não consegue prever a ocorrência de
uma doença ou necessidade de saú-
de e, por causa desta imprevisibili-
dade, que abarca riscos e incerte-
zas, torna-se impossível o planeja-
mento do consumo futuro de assis-
tência à saúde. O tratamento e a
cura, afirmam alguns juízes, não
são produtos que estão à venda no
mercado; na verdade, os interessa-
dos compram serviços de atenção à
saúde que deveriam sempre resul-
tar na solução dos problemas de
saúde, quando eles surgirem.
Há quase duas décadas a socie-
dade decidiu, por meio das conquis-
tas constitucionais, como gostaria
de ver garantidos os direitos para
os seus cidadãos. Assim, precisam
ser revistos os valores e práticas –
presentes no mercado de planos de
saúde e no Judiciário – que tendem
a subestimar a concepção do direi-
to à saúde. Isto é fundamental para
a conquista de um processo civili-
zatório mais amplo no campo da
saúde, no qual prevaleçam a justi-
ça social e a solidariedade, garanti-
das por meio de políticas públicas e
também da maior atuação do Esta-
do.
O perfil das exclusões reclama-
das na Justiça - principalmente tra-
tamentos e procedimentos de alto
custo e alta complexidade– dá a di-
mensão dos aportes públicos ao sis-
tema supletivo, ainda que seja difí-
cil a quantificação exata dos recur-
sos despendidos pelo SUS para aten-
der aquilo que não é coberto pelos
planos de saúde.
O mercado da saúde suplemen-
tar foi artificialmente expandido e
ainda engloba centenas de empresas
sem as mínimas condições de ofere-
cer sequer as coberturas assegura-
das pela legislação. É possível su-
por que uma grande fatia deste mer-
cado sobrevive às custas das restri-
ções praticadas e de conseqüente
subsídio do Sistema Único de Saú-
de, que arca com as despesas dos
atendimentos negados pelos planos
de saúde.
Quanto ao ressarcimento ao SUS,
previsto na Lei 9.656/98, ainda não
se mostrou inteiramente viável na
prática. É irrisório o montante de
recursos destinados aos serviços
públicos de saúde, via ressarcimen-
to.
Desde março de 2005 todos os
procedimentos previstos nos contra-
tos de planos de saúde tornaram-se
objeto de ressarcimento. Trata-se de
pequeno avanço em relação às nor-
mas anteriores, que restringiam o
ressarcimento aos casos de interna-
ção e atendimentos de urgência e
emergência dos beneficiários dos
SOBRE A RELAÇÃO COM
O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE
É possível supor que os limites
de coberturas inscritos nos contra-
tos de planos de saúde, previstos na
legislação ou autorizados pela ANS
por meio de resoluções, são absor-
vidos, em grande parte, pelo Siste-
ma Único de Saúde (SUS). Assim,
pode-se afirmar que o SUS subsidia
o mercado de planos de saúde.
SCHEFFER, MÁRIO
244 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005
AO CRIAR CIDADÃOS DE PRIMEIRA E SEGUNDA
LINHA, SEM RESPALDO LEGAL NEM ÉTICO, A‘DUPLA PORTA’ IMPÕE A UTILIZAÇÃO PRIVADA
DO EQUIPAMENTO PÚBLICO E AFASTA ESSES
HOSPITAIS DOS PRINCÍPIOS DE
UNIVERSALIDADE E EQÜIDADE...
planos atendidos nas redes pública
e conveniada.
Os acórdãos estudados contêm
demandas de alto custo e alta com-
plexidade, sobretudo eletivas e não
urgentes. Como estas exclusões es-
tão previstas em contratos ou têm o
respaldo da regulamentação, não
são passíveis de ressarcimento nem
tampouco são registradas as referi-
das informações. Assim, são neces-
sárias mudanças na legislação para
que tudo aquilo que de fato é aten-
dido em hospitais públicos seja ob-
jeto de ressarcimento.
As decisões analisadas apontam
no sentido de que não há fundamen-
to jurídico na maioria das exclusões
de cobertura, tanto naquelas expres-
sas nos contratos antigos quanto
naquelas que encontram respaldo na
regulação recente. A ampliação das
situações de ressarcimento – por
meio de mudanças na legislação –
teria, assim, o respaldo da jurispru-
dência acumulada nos tribunais.
Cabe citar a preocupação levan-
tada por Scheffer e Bahia (op. cit):
na razão inversa do ressarcimento,
mas não menos eloqüente do ponto
de vista das distorções da relação
público-privado na assistência à
saúde suplementar, está a “dupla
porta” ou “fila-dupla” do SUS. Tra-
ta-se do atendimento a planos de
saúde nas unidades públicas, espe-
cialmente nos hospitais universitá-
rios. A desigualdade não se resume
apenas a acomodações e hotelaria,
mas estende-se principalmente ao
agendamento diferenciado, mesmo
em se tratando de necessidades de
saúde e atendimento de situações
clínicas semelhantes. Ao criar cida-
dãos de primeira e segunda linha,
sem respaldo legal nem ético, a ‘du-
pla porta’ impõe a utilização priva-
da do equipamento público e afasta
esses hospitais dos princípios de uni-
versalidade e eqüidade - que são
diretrizes constitucionais - e da Lei
Orgânica da Saúde.
vre acesso ao sistema público de
saúde.
As exclusões praticadas pelos
planos de saúde revelam uma das
faces da iniqüidade do sistema de
saúde brasileiro. A solução deste
problema requer não só o aprimo-
ramento da regulamentação especí-
fica, mas principalmente a revisão
da relação público-privado na saú-
de, que passa pela transformação
dos modelos assistenciais, de finan-
ciamento e de prestação de serviços
atualmente hegemônicos.
SOBRE UM NOVO
INDICADOR DE QUALIFICAÇÃO
O Programa de Qualificação no
Setor de Saúde Suplementar, lança-
do pela ANS em 2005, pretende, se-
gundo a Agência, incentivar a me-
lhoria da atenção à saúde prestada
pelos planos de saúde. O presente
artigo traz elementos que podem vir
a ser considerados pela ANS na cons-
trução ou aprimoramento de indi-
cadores que satisfaçam aos usuári-
os e da qualidade dos serviços pres-
tados pelas operadoras. As decisões
judiciais de segunda instância, ali-
adas a outras informações, podem
servir para o acompanhamento da
evolução do desempenho de quali-
dade das operadoras.
Para tal, a ANS teria que incor-
porar, em sua prática, o monitora-
mento permanente das ações contra
É imprescindível, para o deline-
amento das políticas de saúde e para
o aperfeiçoamento da regulamenta-
ção da saúde suplementar, explici-
tar a utilização das unidades do SUS
por clientes de planos de saúde, seja
porque foi negado o atendimento
pela operadora, seja porque o hos-
pital público tem convênio com o
plano de saúde, ou simplesmente
porque os usuários de planos exer-
ceram o direito de cidadania de li-
A exclusão de coberturas assistenciais nos planos de saúde privados
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005 245
os planos de saúde que tramitam na
Justiça , além de elaborar um novo
indicador semelhante ao já utiliza-
do em relação às reclamações regis-
tradas pelo Disque ANS.
SOBRE A NECESSÁRIA
AMPLIAÇÃO DO
CONTROLE SOCIAL
Tornam-se necessárias mudanças
na concepção e no funcionamento
dos espaços da agência reguladora
destinados a ouvir a opinião da so-
ciedade: Câmara de Saúde Suplemen-
tar, consultas públicas, Ouvidoria e
Disque ANS. Tais instâncias preci-
sam se viabilizar como mecanismos
democráticos de participação, para
que a sociedade não só tenha res-
postas adequadas, mas possa inter-
vir para a melhor solução de pro-
blemas que repercutem diretamente
em suas vidas, como é o caso da
exclusão de coberturas.
Há que se criar, sob a responsa-
bilidade do órgão regulador, meca-
nismos administrativos e alternati-
vas ágeis na solução de conflitos
relacionados à exclusão de cober-
turas.
Este instrumento deve ser descen-
tralizado nos estados, com envolvi-
mento dos gestores do SUS e dos
órgãos de defesa do consumidor.
A proliferação de demandas in-
dividuais para exigir coberturas
negadas pelos planos de saúde de-
monstra a utilização do meio exis-
tente para fazer valer direitos des-
respeitados.
Mas estas ações não são capa-
zes de interferir na lógica do siste-
ma de saúde em vigor. No âmbito
do Judiciário, são muito pouco ex-
ploradas as possibilidades de ações
coletivas, a exemplo das ações ci-
vis públicas que podem ser movi-
das pelo Ministério Público. Sejam
ações judiciais ou de controle soci-
al, elas devem caminhar na perspec-
lítica pública. Assim, é preciso se
efetivar o controle social sobre o
setor, entendido como o controle dos
cidadãos e da sociedade sobre a
política pública.
Atualmente, os espaços legal-
mente instituídos em torno do SUS,
os conselhos e as conferências de
saúde, não têm sido acionados para
tratar dos planos de saúde privados.
A exemplo do Conselho Nacional
de Saúde, que já discute o tema da
saúde suplementar em comissão
específica, os conselhos estaduais e
municipais, sobretudo aqueles de
Estados e cidades com grande con-
centração de população usuária de
planos de saúde, deveriam incorpo-
rar, em sua agenda permanente, o
debate sobre a relação do SUS com
a saúde suplementar.
É necessário, ainda, romper a
noção de que o segmento dos pla-
nos de saúde e o SUS são dois siste-
mas que não se relacionam, diferen-
ça hoje reiterada no plano legal e
institucional. A aproximação entre
as instâncias de regulação do siste-
ma público e da saúde suplementar
poderá trazer o potencial de forma-
lização de princípios e diretrizes
comuns a todos os componentes da
política nacional de saúde.
O diagnóstico preliminar apresen-
tado pelo presente estudo sobre ex-
clusões de coberturas dos planos de
saúde levadas à Justiça aponta pos-
sibilidades de desdobramentos para
além da quantificação de ações ju-
tiva de soluções coletivas que con-
siderem o sistema de saúde como
um todo.
A saúde é um item de relevância
pública, um direito de cidadania e é
obrigação do Estado fornecer dire-
tamente ou regularmente a oferta de
serviços de promoção e assistência
à saúde. Os planos de saúde priva-
dos são componentes do sistema
nacional de saúde e, por isso, de-
vem estar condicionados a uma po-
A PROLIFERAÇÃO DE DEMANDAS INDIVIDUAIS
PARA EXIGIR COBERTURAS NEGADAS PELOS
PLANOS DE SAÚDE DEMONSTRA A UTILIZAÇÃO
DO MEIO EXISTENTE PARA FAZER VALER
DIREITOS DESRESPEITADOS
SCHEFFER, MÁRIO
246 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 231-247, set./dez. 2005
diciais individuais, da análise do
comportamento do Judiciário, ou da
avaliação da intensidade e do alcan-
ce das normas regulamentadoras em
vigor.
Enquanto prevalecer a fragmen-
tação e a particularização das abor-
dagens no campo da saúde suple-
mentar, mais distantes dos cidadãos
estarão os princípios da universali-
dade e da eqüidade do direito à saú-
de. Para a conquista da saúde como
um direito de cidadania devem ser
estabelecidas novas alianças e pac-
tos entre a sociedade organizada,
atores e segmentos que tenham em
comum o compromisso com a me-
lhoria das condições de saúde e de
vida da população brasileira.
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so em: 23.06.05
GUIMARÃES, Luisa & GIOVANELLA, Ligia
248 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 248-257, set./dez. 2005
ARTIGOS ORIGINAIS / ORIGINAL ARTICLES
Municípios brasileiros fronteiriços e Mercosul: características einiciativas de cooperação em saúdeBrazilian border towns and the Mercosur: characteristics and initiatives of cooperationin health
Luisa Guimarães1
Ligia Giovanella2
Recebido: Mar./2006
Aprovado: Jun./2007
1 Doutoranda em Saúde Pública da
Escola Nacional de Saúde Pública
Sergio Arouca (ENSP), Fundação
Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), Ministério
da Saúde, Rio de Janeiro.
E-mail:
luisa.guimaraes@solar.com.br.
2 Pesquisadora titular ENSP ,
FIOCRUZ, Ministério da Saúde, Rio
de Janeiro.
E-mail: giovanel@ensp.fiocruz.br.
RESUMO
Os municípios brasileiros fronteiriços são, em geral, de pequeno porte,
com rede predominantemente de atenção primária, oferta hospitalar com-
patível com a média nacional, mas não homogênea. Apresenta-se parte
dos resultados de pesquisa, concluída em 2007 com o apoio do CNPQ, sobre
acesso e demanda por serviços de saúde nessas localidades. Revisa-se a
bibliografia sobre integração e MERCOSUL, apresentando-se a caracterização
selecionada em bancos de dados de aspectos geográficos, demográficos e
da rede de serviços destes municípios. Descrevem-se os resultados de estu-
dos e de duas iniciativas de cooperação em saúde nas fronteiras.
PALAVRAS-CHAVE: MERCOSUL; Saúde na Fronteira; Integração Regional.
ABSTRACT
In general, Brazilian border towns are small and possess basic health
care and hospital networks which are in line with national average, al-
though not homogenous. This article presents a portion of the results of a
research study completed in 2007 with the support of the Brazilian Resear-
ch Center about access and demand for health services in these locations.
The bibliography about integration into the Mercosur is revised, and infor-
mation is presented from databases about characteristics relative to geo-
graphic and demographic aspects as well as the service network present in
these towns. The results of studies and of two health care initiatives for
cooperation in border regions are described.
KEYWORDS: MERCOSUR, health care in border regions, regional integration
Municípios brasi leiros fronteir iços e Mercosul: característ icas e iniciativas de cooperação em saúde
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 248-257, set./dez. 2005 249
INTRODUÇÃO
O artigo é parte de estudos de-
senvolvidos no Programa Doutora-
do em Saúde Pública (ENSP/FIOCRUZ/
MS) sobre repercussões da integra-
ção econômica regional nas políti-
cas e sistemas de saúde. Aqui se
trata especificamente da situação de
municípios brasileiros fronteiriços
do MERCOSUL, nos segmentos com a
Argentina, Paraguai e Uruguai, lo-
cais privilegiados para observar e
analisar impactos da integração
econômica regional, considerando
que os efeitos desta são percebidos
com antecipação e cotidianamente.
Os processos de integração se
intensificaram com a globalização
e lentamente vem sendo construída
uma agenda social pari passu à re-
gulamentação da livre circulação
de pessoas, mercadorias, serviços
e capital (GUIMARÃES e GIOVANELLA
2006). A integração ocasiona nas
fronteiras aumento de fluxos, geran-
do tensões e desafios diversos para
os sistemas locais de saúde. Refle-
tir sobre a situação de municípios
fronteiriços, assim como observar
iniciativas de cooperação, contribui
no MERCOSUL para análises específi-
cas de repercussões da integração
nos sistemas de saúde, e pode in-
fluir na pauta de acordos e progra-
mas voltados para regiões frontei-
riças, apoiar esforços de garantia
de atenção integral e humanizada,
e para o fortalecimento das políti-
cas nacionais de saúde.
Objetiva-se propiciar análise do
processo de integração como con-
texto, as características de municí-
pios fronteiriços como desafios e as
iniciativas de cooperação fronteiri-
ça como potencialidades e discute
como a integração regional pode
somar-se à saúde para a redução
de desigualdades na fronteira.
Para tanto, revisa-se a bibliogra-
fia sobre integração e conformação
de saúde integral e humanizada na
fronteira, face ao avanço da integra-
ção econômica no MERCOSUL. Uma
versão preliminar deste artigo foi
apresentada no 10º Congresso Inter-
nacional do Centro Latino-america-
no de Administração para o Desen-
volvimento sobre Reforma do Esta-
do e da Administração Pública (GUI-
MARÃES e GIOVANELLA, 2005).
A linha de fronteira do MERCOSUL
é formada por 69 municípios brasi-
leiros, distribuídos nos limites com
Argentina, Paraguai e Uruguai. Nes-
se artigo é apresentada parte de re-
sultados de pesquisa concluída em
2007 com o apoio do CNPq, sobre
acesso e demanda por serviços de
saúde nestas localidades (GIOVANELLA
ET AL., 2007). A fronteira com a Ar-
gentina tem o maior número de
municípios (36), a maioria com
menos de 10 mil habitantes (24) e
no trecho correspondente ao Paraná
o maior número de leitos por habi-
tantes (3,5). A fronteira com o Para-
guai é a mais extensa (37%), predo-
minam municípios de médio porte
(16%), reside a maior parte da po-
pulação fronteiriça do MERCOSUL
(43%), existe o maior número de
hospitais (49%) e o menor número
de leitos por habitantes: 2,3, no Mato
Grosso do Sul, e 2,6, no Paraná. A
fronteira com o Uruguai é seca em
um terço; tem o menor número de
municípios do MERCOSUL (11), dos
quais seis são cidades-gêmeas; tem
a menor população fronteiriça resi-
do MERCOSUL e apresenta-se a carac-
terização selecionada em bancos de
dados nacionais de aspectos geográ-
ficos, demográficos e da rede de
saúde de municípios brasileiros
fronteiriços. Destacam-se os resul-
tados de estudo na tríplice fronteira
e registram-se duas iniciativas de
cooperação em saúde nas frontei-
ras, a partir de observação partici-
pante e informes. Nas considerações
finais, discutem-se as perspectivas
A INTEGRAÇÃO OCASIONA
NAS FRONTEIRAS AUMENTO DE FLUXOS,GERANDO TENSÕES E DESAFIOS DIVERSOS
PARA OS SISTEMAS LOCAIS DE SAÚDE
GUIMARÃES, Luisa & GIOVANELLA, Ligia
250 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 248-257, set./dez. 2005
dente (25%); o segundo maior nú-
mero de leitos hospitalares por ha-
bitantes (3,3); e de municípios sem
cobertura de saúde da família (7).
Em resposta aos desafios locais,
surgem iniciativas cooperativas
entre cidades fronteiriças de países
do MERCOSUL para o planejamento e
execução de atividades em saúde
que configuram espaços de ação
conjunta para a melhoria do acesso
integral e humanizado à saúde.
INTEGRAÇÃO ECONÔMICA E
CONSTITUIÇÃO DO MERCOSUL
O estabelecimento de relações
econômicas privilegiadas tem cada
vez maior relevância política e so-
cioeconômica (OMS/OMC, 2002; BO-
LIS, 2000). Os países elegem o grau
da integração que pretendem assu-
mir (BASSO, 1998; ALTVATER e MAHNKO-
PF, 1996). A inclusão de temas soci-
ais na agenda regional é tardia, con-
tudo, os ajustes para implementar
os acordos econômicos repercutem
nas políticas de saúde de modo in-
tencional e não intencional (BUSSE,
WISMAR e BERMAN 2002; LEIDL, 1998).
A integração européia busca re-
forçar os objetivos dos sistemas de
proteção social de combinar solida-
riedade com sustentabilidade, de
introduzir incentivos de mercado
mantendo o papel do Estado e de
adotar inovações na organização e
oferta de serviços (GUIMARÃES e GIO-
VANELLA 2006; FIGUERAS ET AL., 2002).
Fundado em 1991 por Argentina,
No MERCOSUL, a saúde é aborda-
da especificamente em duas estru-
turas: Reunião de Ministros de Saú-
de (RMS), criada em 1995, e
Subgrupo de Trabalho 11 Saúde
(SGT 11 Saúde), criado em 1996.
Nestas, os debates contemplam te-
mas prioritários relacionados às li-
berdades de circulação. Os consen-
sos se expressam em acordos e re-
gulamentação incorporada pelos
Estados-parte (BRASIL, 2006). A pauta
da saúde no MERCOSUL foi pouco a
pouco ampliada para além de temas
relacionados ao comércio de bens
(MERCOSUL, 2005; LUCCHESE, 2001).
No final do ano de 2006, foi apro-
vada na Reunião de Ministros da
Saúde do MERCOSUL Proposta de Pro-
jeto de Cooperação Técnica Interna-
cional. O objetivo geral dessa é
identificar estrategias para la in-
tervención en salud de fronteras, por
medio del análisis, desarrollo de expe-
riencias y sistematización de las mis-
mas, de manera de contribuir el desar-
rollo de los Sistemas Locales de Salud
integrando acciones de salud de las
Fronteras de los Estados Partes del MER-
COSUR (URUGUAY)
Ao afirmar a tese de que se (…)
considera que la salud es un factor
Brasil, Paraguai e Uruguai, o MER-
COSUL objetiva a constituição gradu-
al de mercado comum com livre cir-
culação de bens, serviços, pessoas
e capitais, como no caso europeu
(VENTURA, 2003; BASSO, 1998). Cinco
países são Estados Associados do
Mercosul: Bolívia, Chile, Colômbia,
Equador, Peru. A Venezuela passou
em 2006 à categoria de Estado-par-
te (BRASIL, s/d a; BRASIL, s/d b).
NO MERCOSUL, A SAÚDE É ABORDADA
ESPECIFICAMENTE EM DUAS ESTRUTURAS:REUNIÃO DE MINISTROS DE SAÚDE (RMS),
CRIADA EM 1995, E SUBGRUPO DE
TRABALHO 11 SAÚDE (SGT 11 SAÚDE),CRIADO EM 1996
Municípios brasi leiros fronteir iços e Mercosul: característ icas e iniciativas de cooperação em saúde
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 248-257, set./dez. 2005 251
favorecedor de la integración regi-
onal y que acciones concretas en
fronteras contribuirán a ese propó-
sito general os Países destacam a
importância das correlações entre
integração econômica regional e
saúde (URUGUAY).
ESPECIFICIDADES DOS MUNICÍPIOS
FRONTEIRIÇOS DO MERCOSUL
Os movimentos de integração
tendem a aumentar fluxos, primei-
ro e com maior intensidade, nas ci-
dades fronteiriças, onde mais que
diferenças de língua e cultura, dá-
se a convivência cotidiana entre sis-
temas políticos, monetários, de se-
gurança, de proteção social distin-
tos, geradores de tensões e contra-
dições entre as realidades local e
regional e o conjunto de instituições,
normas e práticas dos países (BAR-
CELLOS et al., 2001; BOLIS, 1999; CIC-
COLELLA, 1994). As bordas dos países
– os limites – são territórios dinâ-
micos que constituem unidades com
trocas espacial, demográfica, soci-
oeconômica, epidemiológica e cul-
tural específicas (BARCELLOS et al.,
2001). Nas fronteiras, as identida-
des nacionais são diluídas e na saú-
de impõem a realização articulada
de atividades de negociação e de
identificação e uso de recursos para
alcançar efetividade e adequada
provisão de ações face às particu-
laridades mantidas pela barreira de
fronteira e as diferenças normati-
vas e de direitos. As características
locais configuram segmentos defi-
nidos da fronteira (BARCELLOS, ET AL.,
2001).
As paisagens da fronteira brasi-
leira com o MERCOSUL conformam
territórios variados que ora apro-
ximam e ora afastam as populações
fronteiriças e criam interações e di-
nâmicas diversas (BRASIL, 2005). A
fronteira com a Argentina é de 1.263
km, dos quais 2% são secos; com o
Paraguai é de 1.339 km, dos quais
31% são secos; e com o Uruguai é
de 1.003 km, dos quais 30% são se-
cos (FIOCRUZ, 2007). A fronteira bra-
sileira com o MERCOSUL totaliza 3.605
km e representa cerca de um quinto
da fronteira continental do País. Nos
municípios fronteiriços residem
0,82% da população total brasilei-
ra, a maior parte na fronteira com
o Paraguai (43%) e 55% das cidades
têm até 10 mil habitantes (ver Tabe-
la 1). É território que, devido ao
dinamismo, tem importância signi-
ficativa no processo de integração
(BRASIL, 2005). Foz do Iguaçu, no
Paraná, com cerca de 300 mil habi-
tantes é a mais populosa de toda
fronteira brasileira e apenas dois
municípios brasileiros fronteiriços
têm mais de cem mil habitantes,
ambos no Rio Grande do Sul: Bagé
(cerca de 120 mil) e Uruguaiana (cer-
ca de 130 mil). Onze municípios
fronteiriços do MERCOSUL estão entre
aqueles com maiores taxas médias
de homicídios na população total
(WAISELFISZ, 2007).
NAS FRONTEIRAS, AS IDENTIDADES NACIONAIS
SÃO DILUÍDAS E NA SAÚDE IMPÕEM A REALIZAÇÃO
ARTICULADA DE ATIVIDADES DE NEGOCIAÇÃO E DE
IDENTIFICAÇÃO E USO DE RECURSOS PARA
ALCANÇAR EFETIVIDADE E ADEQUADA PROVISÃO
DE AÇÕES FACE ÀS PARTICULARIDADES MANTIDAS
PELA BARREIRA DE FRONTEIRA E AS DIFERENÇAS
NORMATIVAS E DE DIREITOS
GUIMARÃES, Luisa & GIOVANELLA, Ligia
252 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 248-257, set./dez. 2005
TABELA 1 – Características dos municípios brasileiros fronteiriços com Ar-
gentina, Paraguai e Uruguai, 2005.
1 Contagem populacional para os anos intercensitários (IBGE, 2004); 2 Índice de Desenvol-vimento Humano no Brasil (Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, 2003); 3Minis-tério da Integração Regional (Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira, 2005).
Fonte: Elaboração própria com base nas informações do Relatório Consolidado da Pesqui-sa Saúde nas Fronteiras: estudo do acesso aos serviços de saúde nas cidades de fronteiracom países do MERCOSUL, NUPES/DAPS/ENSP/FIOCRUZ/Pesquisa Saúde na Fronteira (FIOCRUZ 2007).
Da rede de serviços públicos de
saúde na linha de fronteira do MER-
COSUL constam 70 estabelecimentos
hospitalares, dos quais apenas nove
são de natureza pública e os demais
são contratados (FIOCRUZ, 2007).
Quase metade dos hospitais (49%)
localiza-se na fronteira com o Pa-
raguai, concentrados junto ao Pa-
raná (ver Tabela 2). Na fronteira do
MERCOSUL, a oferta de leitos na rede
pública é de 2,9 leitos por mil ha-
bitantes, entretanto, esta varia de
2,3 no segmento de Mato Grosso do
Sul com o Paraguai até 3,5/1.000
habitantes no trecho Paraná com a
Argentina. A estratégia de saúde da
família está implantada em mais da
metade dos municípios fronteiriços
com coberturas entre 81 a 100% da
população.
Os municípios fronteiriços são,
portanto, dependentes, para a ga-
rantia da integralidade da atenção,
de serviços especializados e de re-
ferência localizados em outros mu-
nicípios.
Municípios brasi leiros fronteir iços e Mercosul: característ icas e iniciativas de cooperação em saúde
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 248-257, set./dez. 2005 253
TABELA 2 – Características da rede pública de serviços de saúde nos
municípios brasileiros fronteiriços com Argentina, Paraguai e Uruguai, 2005
Fonte: Elaboração própria com base nas informações do Relatório Consolidado daPesquisa Saúde nas Fronteiras: estudo do acesso aos serviços de saúde nas cidades defronteira com países do MERCOSUL, NUPES/DAPS/ENSP/FIOCRUZ/Pesquisa Saúde na Fronteira (FIO-CRUZ 2007).
ESTUDOS E EXPERIÊNCIASDE COOPERAÇÃO EM SAÚDE NAS
FRONTEIRAS DO MERCOSUL
A análise da rede de serviços de
saúde na tríplice fronteira – Puerto
Iguazú/Argentina, Foz de Iguaçu/
Brasil e Ciudad del Este/Paraguai –
traça detalhado perfil epidemiológi-
co, populacional, de recursos (hu-
manos, infra-estrutura, equipamen-
tos, financeiros), modelos estrutu-
ral e funcional da rede de serviços
de saúde (OPAS/OMS, 2002). Os indi-
cadores de saúde refletem iniqüida-
des socioeconômicas, semelhanças
no perfil epidemiológico, diversida-
des no perfil da rede, nos recursos
disponíveis e no modelo de atenção
e déficits na troca de informações.
A maior parte dos atendimentos de-
rivados a outro país é espontânea e
não formalizada. As propostas apon-
tam para estratégias locais e regio-
nais de cooperação e articulação
entre redes assistenciais, capacita-
ção e intercâmbio de informações
em conformidade com as políticas
e os sistemas de saúde de cada país.
Destaca-se a importância de um
marco político para ações regionais
e locais com prioridades sanitári-
as, coberturas programáticas e me-
canismos de financiamento conside-
rando a situação de fronteira (idem).
Na paisagem da fronteira, inici-
ativas de cooperação em saúde en-
tre governos mostram-se como ob-
servatórios de repercussões da in-
GUIMARÃES, Luisa & GIOVANELLA, Ligia
254 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 248-257, set./dez. 2005
tegração. Uma destas iniciativas é
o Grupo de Trabalho para Integra-
ção das Ações de Saúde na Área de
Influência da Itaipu –GT Itaipu Saú-
de –, criado em 2003, pela Empre-
sa Pública Itaipu Binacional é inte-
grado por representantes dos gover-
nos locais, regionais e nacionais da
saúde do Brasil e do Paraguai e tem
caráter consultivo. Com atuação na
área de influência do Lago de Itai-
pu, articula ações de saúde entre
28 municípios brasileiros e 31 pa-
raguaios, que totalizam cerca de um
milhão e meio de habitantes. O ob-
jetivo do GT Itaipu Saúde é melho-
rar, com apoio da Empresa, a qua-
lidade das ações de saúde na fron-
teira mediante planejamento e exe-
cução de atividades conjuntas prio-
ritárias das políticas nacionais de
saúde, com atenção para especifi-
cidades regionais. Diagnóstico rea-
lizado pelo GT identificou os princi-
pais problemas na fronteira: infor-
mação, atenção primária e de mé-
dia complexidade, cultura partici-
pativa, articulação interinstitucio-
nal e recursos humanos. Elaborou-
se um plano de ação a ser empreen-
dido cooperativa e conjuntamente,
abordando sistemas e serviços, vi-
gilância, informação, educação per-
manente e saúde indígena.
Outra iniciativa de cooperação é
o Comitê Binacional de Saúde
Sant’Ana do Livramento e Rivera,
cidades-gêmeas do segmento Rio
Grande do Sul e Uruguai que so-
mam cerca de 200 mil habitantes
(NAVARRETE, 2006). O Comitê de Saú-
de foi conformado a partir do Pri-
meiro Encontro Binacional de Fron-
teiras Brasil-Uruguai realizado em
2005 e organizado pelo Conselho de
Saúde de Sant’Ana do Livramento.
O debate entre as duas localidades
sobre questões de saúde concen-
trou-se em temas de atenção à saú-
de, vigilância, direitos sexuais e re-
produtivos. O Comitê atua como
organismo de controle social e de
câmbios e fluxos, impõe na saúde
a articulação de estratégias para a
efetivação de programas e políticas
públicas nacionais. São espaços que
vão se afirmando frente ao desafio
comum de implantar prioridades
nacionais no território de fronteiras.
Tais iniciativas têm promovido par-
ticipação e debate com atores locais
sobre o processo de integração re-
gional e as problemáticas da saúde
na fronteira.
CONSIDERAÇÕESFINAIS
As repercussões da integração
econômica regional nas políticas e
sistemas de saúde de cidades fron-
teiriças do MERCOSUL ainda estão in-
suficientemente descritas, para im-
plicar atores na busca de soluções
objetivas nos debates regionais. Fal-
ta detalhar de cada lado da frontei-
ra implicações organizacionais e fi-
nanceiras, demandas e atenção pres-
tada, instrumentos para a garantia
do direito à saúde na rede assisten-
cial para não residentes, e tratar da
participação dos governos locais
nas relações bi e multilaterais. Es-
tes fatores combinados têm corres-
pondência na compreensão do pro-
blema e na formulação de alterna-
tivas, as quais podem tender para
aspectos financeiros ou distanciar
pautas regionais do cotidiano da
fronteira.
fomento de atividades conjuntas nas
políticas públicas em ambas as ci-
dades, integrado por representantes
de diferentes segmentos institucio-
nais e da sociedade civil organiza-
da.
Ambas as iniciativas configuram
espaços de debate e planejamento
de atividades reconhecendo as di-
versidades entre os sistemas sani-
tários de saúde e a integração regi-
onal que, ao incrementar os inter-
FALTA DETALHAR DE CADA LADO DA FRONTEIRA
IMPLICAÇÕES ORGANIZACIONAIS E FINANCEIRAS,DEMANDAS E ATENÇÃO PRESTADA,
INSTRUMENTOS PARA A GARANTIA DO DIREITO
À SAÚDE NA REDE ASSISTENCIAL PARA NÃO
RESIDENTES ...
Municípios brasi leiros fronteir iços e Mercosul: característ icas e iniciativas de cooperação em saúde
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 248-257, set./dez. 2005 255
As garantias de saúde são im-
portantes em processos de integra-
ção econômica, como demonstra a
União Européia. No MERCOSUL, a in-
clusão de temas sociais no debate
regional vem se consolidando. Fren-
te ao perfil dos municípios frontei-
riços brasileiros e à luz do estudo e
iniciativas de cooperação fronteiri-
ça em saúde aqui apresentados é
possível afirmar que no MERCOSUL é
fundamental permear o debate po-
lítico da integração com as reper-
cussões nos sistemas e serviços de
saúde, de modo que avanços daque-
la não impliquem em acentuar de-
sigualdades na saúde. As iniciati-
vas do GT Itaipu Saúde e do Comitê
de Saúde de Sant’Ana do Livramen-
to e Rivera revelam que temas coti-
dianos de comunidades e de servi-
ços de saúde fronteiriços devem se
incorporar à agenda e às estratégi-
as local, regional e multilateral da
integração.
As características gerais apre-
sentadas e da rede dos municípios
brasileiros fronteiriços do MERCOSUL,
ainda que não exaustivas, ilustram
as múltiplas faces da fronteira que
compõem segmentos não uniformes.
Na perspectiva interna do Brasil, os
segmentos fronteiriços são diferen-
ciados entre os estados federados,
exibindo contrastes dentro de um
mesmo estado, como é o caso do
Rio Grande do Sul e do Paraná. A
oferta de serviços e as coberturas
apresentadas exibem perfil desigual
e heterogêneo, em parte influencia-
do por aspectos estruturais, priori-
dades e critérios de distribuição de
recursos.
Embora seja prematuro traçar
um perfil definitivo de repercussões
da integração econômica regional
sobre as políticas e serviços de saú-
de de municípios fronteiriços e se-
jam necessários estudos sobre mo-
delo de atenção, sistemática de or-
ganização e de acesso nas políticas
de saúde de cada Estado-parte,
Projetar avanços do MERCOSUL a
partir da perspectiva e experiências
de cidades fronteiriças evidencia que
a convivência com a diversidade, ao
lado da construção da integração,
abre caminho para iniciativas coo-
perativas locais. As duas iniciati-
vas aqui apresentadas oferecem ele-
mentos para a formulação de estra-
tégias para fronteiras no MERCOSUL,
entre os quais: monitoramento de
condições de saúde, intercâmbio de
informações, aproximação entre
práticas sanitárias, oferta de capa-
citação conjunta, criação de condi-
ções de apoio mútuo. As experiên-
cias indicam a importância de for-
talecimento de mecanismos jurídi-
cos internacionais para a atuação
articulada e cooperativa em saúde
na fronteira.
As iniciativas fronteiriças de-
monstram que acordos bilaterais em
saúde podem ser considerados eta-
pas preparatórias para os entendi-
mentos multilaterais e que dispor
de recursos financeiros e estratégi-
cos para o planejamento conjunto
na fronteira incentiva a cooperação
e solidariedade. Além de fortalecer
os entes locais na gestão dos siste-
mas de saúde, apóia programas e
contrapõe mecanismos informais.
Os valores de universalidade, inte-
gralidade, equidade, e participação
social podem ser fortalecidos com
um modelo de integração econômi-
sabe-se que estes condicionam pa-
drões da busca por serviços na ci-
dade vizinha de fronteira. Cidades
fronteiriças têm concretizado a ar-
ticulação local, ainda com autono-
mias diferenciadas e graus varia-
dos de dependência das instâncias
nacionais. A descentralização do
sistema de governo brasileiro leva
os municípios a acumularem res-
ponsabilidades e autonomias signi-
ficativas na gestão da saúde.
AS GARANTIAS DE SAÚDE SÃO IMPORTANTES
EM PROCESSOS DE INTEGRAÇÃO ECONÔMICA,COMO DEMONSTRA A UNIÃO EUROPÉIA
GUIMARÃES, Luisa & GIOVANELLA, Ligia
256 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 248-257, set./dez. 2005
ca regional que se some à saúde na
busca de reduzir desigualdades, com
participação social.
AGRADECIMENTOSE COLABORAÇÃO
L. Guimarães, bolsista do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Cien-
tífico e Tecnológico (CNPq) e L. Gio-
vanella compartilham a autoria do
artigo na concepção, estrutura, bus-
ca de fontes de referência e análise
para a construção do texto, e na
aprovação final para a publicação.
L. Guimarães, a quem agadecemos,
preparou a primeira versão do tex-
to que foi revisada e elaborada con-
juntamente pelas duas autoras em
seguida.
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258 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 258-267, set./dez. 2005
ARTIGOS ORIGINAIS / ORIGINAL ARTICLES
O impacto da política econômica do governo Lula na SeguridadeSocial e no SUSThe impact of the Lula government economic policy on Social Security and theUnified Health System
Áquilas Nogueira Mendes1
Rosa Maria Marques2
Recebido: Dez./2006
Aprovado: Mar./2007
1 Professor Doutor do Departamento deEconomia da PUCSP e da Faculdade deEconomia da FAAP/SP, vice-presidente daAssociação Brasileira de Economia da Saú-de e coordenador da Coordenadoria deGestão de Políticas Públicas do Centro deEstudos e Pesquisa de Administração Mu-nicipal – Cepam/SP.E-mail: aquilasn@uol.com.br
2 Professora Titular do Departamento deEconomia e do Programa de Estudos Pós-graduados em Economia Política da PUCSPDepartamento de Economia – PUC-SPE-mail: rosamarques@hipernet.com.br
RESUMO
O artigo discute a relação entre a política econômica do governo Lula
(especialmente a adoção do regime de metas de inflação e a busca de ele-
vados superávits primários) e o financiamento da Seguridade Social e do
Sistema Único de Saúde - SUS. De forma específica, evidencia que o resul-
tante dessa política - baixo crescimento, manutenção de elevadas taxas de
juros, precarização do mercado de trabalho, redução do gasto público –
impede o crescimento das receitas e recursos como seria necessário, o que
compromete a plena aplicação dos princípios do SUS. Apesar disso, alguns
avanços são apontados, como o crescimento da cobertura do Programa de
Saúde da Família.
PALAVRAS-CHAVE: política econômica; seguridade social; SUS
ABSTRACT
The article discusses the relationship between the economic policy of
the Lula government (especially the adoption of inflation targets and the
attempt to achieve high primary surplus) and the funding of the Social
Security system and Unified Health System (SUS). It demonstrates in a
specific manner that the results of this policy – low economic growth,
maintenance of high interest rates, instability of the job market,
reduction in public spending — prevents the increase in revenue and
resources as would be necessary, thus compromising the full application
of the SUS principles. Despite this, some advances are identified, such as
the increased coverage of the Family Health Program.
KEYWORDS: Economic Policy; Social Security; Unified Health System
O impacto da política econômica do governo Lula na Seguridade Social e no SUS
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 258-267, set./dez. 2005 259
APRESENTAÇÃO
Esse artigo tem como objetivo
discutir de que forma a política
macroeconômica do primeiro gover-
no Lula condicionou as condições
de financiamento de dois importan-
tes ramos da Seguridade Social: a
Previdência e a Saúde. Em geral, o
acompanhamento das tensões entre
a área econômica e os ministérios
responsáveis pela aplicação das
políticas desses ramos, evidentes na
época em que a Lei de Diretrizes
Orçamentária é elaborada, restrin-
ge-se em destacar o tamanho do
déficit da Previdência (questionado
por muitos) e a demonstrar como,
mais uma vez, a equipe econômica
procura introduzir, como se fossem
da saúde pública, gastos que não
têm natureza nenhuma com as
ações e serviços contemplados pelo
SUS.
Compreendendo que é preciso ir
além dessas constatações e denún-
cias - mas sem desmerecê-las, pois
elas foram fundamentais na rever-
são das tentativas que ocorreram
durante o governo Lula, como se
verá adiante – este artigo procura,
num primeiro momento, esclarecer
quais são os pilares da política eco-
nômica do governo, e descrever,
mesmo que brevemente, quais fo-
ram os resultados dessa política.
Numa segunda parte, destaca o
impacto desses resultados sobre as
receitas da Previdência Social e dis-
cute como os fundamentos da polí-
tica econômica se concretizam em
proposições que visam a alterar o
quadro legal de vinculação de re-
ceitas para a Seguridade Social e o
amplo consenso construído em re-
lação ao financiamento do SUS.
É da compreensão de que a po-
lítica econômica subordina o soci-
al no país que se pode, de fato, uni-
ficar a luta pela retomada dos prin-
cípios do SUS com aquela de um
mo de divulgação na grande im-
prensa, que trataram de sua políti-
ca econômica. Afinal, entre outros
motivos, tratava-se de acompanhar
a experiência de quem havia sido
eleito exatamente para mudá-la,
promovendo o crescimento econô-
mico, o emprego, além da redistri-
buição da renda e da riqueza. Con-
tudo, desde os primeiros momentos,
ficou claro que, em matéria de po-
lítica econômica, Lula, no lugar de
implementar uma transição para
um novo modelo, defendida duran-
te a campanha eleitoral, não só ha-
via mantido a política macroeconô-
mica do segundo mandato de Fer-
nando Henrique Cardoso – FHC,
como a havia aprofundado, o que
fica evidente com a manutenção do
compromisso de promover superá-
vit fiscal primário, o que é descrito
mais a seguir.
Em linhas gerais, a política ma-
croeconômica foi fundamentada no
regime de metas de inflação; na ele-
vação do superávit primário; e na
manutenção do regime de câmbio
flutuante. No ‘regime de metas de
inflação’, de origem neoclássica, o
nível de inflação constitui o princi-
pal objetivo a ser atingido, de for-
ma que todas as demais variáveis
econômicas a ela devem se subor-
dinar. Assim, sempre que os direto-
res do Banco Central - Bacen - con-
sideravam que havia uma tendên-
cia de a inflação superar a meta
crescimento sustentável, com distri-
buição de renda e riqueza.
A POLÍTICA ECONÔMICA
DO GOVERNO LULA1
Durante os quatro anos do pri-
meiro governo Lula, não foram pou-
cos os artigos acadêmicos, e mes-
Lula, no lugar de implementar uma transição para um novo
modelo (...) não só havia mantidoa política macroeconômica dosegundo mandato de (...) FHC,como a havia aprofundado ...
1 Esta parte e a próxima se beneficiaram largamente de Sanchez et al (2006) e Marques e Nakatani (2007).
MENDES, Áquilas Nogueira & MARQUES, Rosa Maria
260 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 258-267, set./dez. 2005
fixada, elevava-se a taxa básica de
juros (taxa Selic, determinada pelo
Comitê de Política Monetária do
Bacen), para com isso deprimir a
demanda agregada. É isso que ex-
plica os ciclos de aumento e de re-
dução da taxa de juros vivenciados
nos últimos quatro anos. No início
do governo, frente à tendência al-
tista dos preços, a taxa de juros foi
elevada para 25,5% em janeiro e
26,5% em fevereiro de 2003. Já par-
tir de junho, estando a inflação sob
controle, inicia-se uma redução gra-
dual desta taxa, até que essa atin-
gisse 16% em abril de 2004. Mas, a
partir de setembro desse ano, no-
vos aumentos da taxa básica de ju-
ros começariam, até que essa ba-
tesse 19,75% em maio, ficando as-
sim até setembro, quando tem iní-
cio uma nova rodada de reduções,
de forma que, em outubro de 2006,
a taxa básica de juros chegou a
13,75%. Comparada à de fevereiro
de 2003, essa taxa estava 12,75
pontos percentuais menor do que
aquela. Mesmo assim, continuava
extremamente alta, para qualquer
padrão internacional que se adote.
Em relação ao ‘superávit primá-
rio’, medida de esforço fiscal que
visa o pagamento do serviço da dí-
vida, adotado no governo FHC no
momento da negociação com o Fun-
do Monetário Internacional – FMI,
esse foi aumentado para 4,25% do
Produto Interno Bruto - PIB, por li-
vre iniciativa do governo Lula, no
ano de 20032. Durante o governo
anterior, esse esforço girou em tor-
no de 3,5% do PIB e o acordado com
o FMI havia sido de 3,75%. Para os
anos seguintes, embora a meta não
tenha sido formalmente ampliada,
o superávit primário ficou em cer-
ca de cerca de 4,6% do PIB em 2004,
e de 4,8% em 2005.
Apesar desse esforço, a dívida
mobiliária federal (títulos públicos
para reduzir a dívida externa pú-
blica, como para diminuir a parce-
la da dívida interna corrigida pela
variação cambial. Além disso, os
resultados derivados da redução do
gasto público foram em parte anu-
lados pela elevação do peso da con-
ta juros, provocada pelo aumento
e/ou manutenção de alta taxa bási-
ca de juros. Dessa forma, os juros
nominais devido pelo setor públi-
co, que eram de 8,5% do PIB em
2002, e já eram bem elevados, au-
mentaram para 9,3% do PIB em 2003,
mas fecharam 2005 com 8,12%. A
diferença entre esses percentuais e
os do superávit primário resultou
em ‘rolagem’ de parte dos juros de-
vidos.
Em outras palavras, ao atrelar
os juros básicos à meta inflacioná-
ria, o governo impediu que sua po-
lítica fiscal restritiva fosse plena-
mente eficaz. A combinação do es-
forço fiscal com as elevadas taxas
de juros resultou em baixo cresci-
mento econômico, aumento das ren-
das dos detentores de riqueza finan-
ceira e contínua pressão sobre os
gastos sociais, como se verá adian-
te.
A manutenção do ‘regime de
câmbio flutuante’, por sua vez, re-
sultou em extrema valorização do
real, sem que as compras de dólar
realizadas pelo Bacen tenham con-
seguido alterar essa situação. As-
fora do Bacen) continuou a aumen-
tar: de R$ 623 bilhões em 2002, fe-
chou 2005 com R$ 980 bilhões. Já a
dívida líquida do setor público, de
55,5 % do PIB em dezembro de 2002,
caiu para 51,5% em dezembro de
2005 e, em agosto de 2006, estava
em 50,3% do PIB. Essa queda de-
veu-se especialmente à revaloriza-
ção do real, que contribuiu tanto
A combinação do esforço fiscal comas elevadas taxas de juros resultouem baixo crescimento econômico,aumento das rendas dos detentores
de riqueza financeira e contínuapressão sobre os gastos sociais...
2 Esse aumento foi anunciado em 28 de fevereiro, mediante a Carta de Intenção enviada ao FMI. Para sua efetivação, o governo Lulapromoveu cortes no orçamento da União de R$ 14,1 bilhões, o que reduziu a disponibilidade dos ministérios da área social em 12,44%.
O impacto da política econômica do governo Lula na Seguridade Social e no SUS
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 258-267, set./dez. 2005 261
sim, à parte os primeiros meses do
governo Lula, o câmbio registrou
quedas contínuas.
OS PRINCIPAISRESULTADOS ECONÔMICOS
Durante o primeiro governo
Lula, a evolução do PIB seguiu sua
trajetória anterior, indicando a difi-
culdade da economia brasileira em
crescer de forma continuada no qua-
dro dos marcos da política macroe-
conômica implementada: expansão
de apenas 0,5% em 2003, de 4,9%
em 2004 e de 2,3% em 2005. Em
dezembro de 2006, o Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada —
IPEA — estimava que o crescimen-
to do PIB em 2006 seria de 2,8%.
Nesses anos, o crescimento, mes-
mo que pequeno do PIB, foi princi-
palmente fundado na expansão das
exportações que, apesar da valori-
zação do real, aumentaram signifi-
cativamente durante todo o primei-
ro governo Lula. Em 2005, por
exemplo, o setor agropecuário ex-
pandiu-se somente 0,8%, a indústria
,2,5% e os serviços, 2,0%. Do lado
da despesa, o consumo das famíli-
as cresceu 3,1%, a formação bruta
do capital fixo, 1,6%, as importa-
ções, 9,5% e o consumo do gover-
no, 1,6%. Já a expansão das expor-
tações foi de 11,6%. Dessa maneira,
aumentou a dependência do país
com relação à performance do res-
to do mundo, principalmente da
China demandante de commodities.
Além disso, diversos economistas
passaram a dizer que o aumento da
participação relativa de produtos
com baixo valor adicionado na pau-
ta de exportação configura uma cer-
ta ‘reprimarização’ dessa mesma
pauta3. Os produtos básicos que
representavam, em 2000, 22,8% do
da participação dos produtos bási-
cos no total das exportações, o fato
de que parte dos manufaturados
apresenta baixa ou média intensi-
dade tecnológica, o que dá um sen-
tido mais amplo à utilização do ter-
mo ‘reprimarização’.
O mau desempenho econômico
ocorrido no primeiro ano do gover-
no Lula provocou redução de 12,6%
do rendimento médio habitual5 real
do trabalhador brasileiro em rela-
ção a 2002. Essa redução foi obser-
vada em todas as categorias de ocu-
pação, apesar de as mais organiza-
das terem firmado acordos de rea-
juste salarial favoráveis no segun-
do semestre, quando o nível de ati-
vidade se recuperou um pouco.
Nesse primeiro ano, ainda, a taxa
média de desemprego aberto das
cinco regiões metropolitanas, calcu-
lada pelo IBGE (IBGE, 2002), regis-
trou aumento (12,3%; quando era
11,7% em 2002). Em 2004, muito
embora a economia tenha crescido
4,9%, o rendimento médio real dos
ocupados recuou mais 0,7%, mas a
taxa média de desemprego no ano
caiu para 11,5%. Em 2005, o rendi-
mento médio habitual real apresen-
tou uma pequena recuperação, cres-
cendo 2% em relação ao ano anteri-
or. Esse desempenho, contudo, não
atingiu os trabalhadores com car-
total do valor das exportações, ti-
veram sua participação elevada
para 29,3% em 2005. Já a contribui-
ção dos produtos semimanufatura-
dos e dos manufaturados se redu-
ziu, passando de 15,4% para 13,5%,
e de 59% para 55,1%, no mesmo pe-
ríodo, respectivamente4. Soma-se a
esse movimento, de intensificação
Durante o primeiro governo Lula, aevolução do PIB seguiu sua
trajetória anterior, indicando adificuldade da economia brasileiraem crescer de forma continuada...
3 Ver Belluzzo e Carneiro, 2003.4 O total não atinge os 100% devido às operações especiais.5 No cálculo do rendimento habitual não são consideradas as horas extras, os atrasados, as férias, etc.
MENDES, Áquilas Nogueira & MARQUES, Rosa Maria
262 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 258-267, set./dez. 2005
teira assinada, os quais sofreram
redução de 0,8% em seu rendimen-
to médio habitual real (em 2004 ele
havia aumentado 0,3% e, em 2003,
havia se reduzido em 4,9%). Nesse
ano, a taxa média de desemprego
continuou a cair, registrando 9,8%.
Em relação ao rendimento, vale
salientar ainda que, além do rendi-
mento médio real habitual dos ocu-
pados ter registrado redução duran-
te o primeiro governo Lula, apro-
fundou-se o processo de concentra-
ção dos ocupados nas faixas de ren-
da mais baixas. Considerando-se o
rendimento principal dos ocupados
com 10 anos ou mais, 89,9% rece-
biam até 5 salários mínimos em
2004. Em 2002, esse percentual era
de 87,6% (IBGE, 2002).
Embora o salário mínimo não
seja reflexo direto da política ma-
croeconômica adotada, e sim resul-
tado de uma decisão política de
governo, o fato de o piso dos bene-
fícios previdenciários e o Benefício
de Prestação Continuada serem de-
finidos por ele, justifica seu desta-
que nesta parte do artigo. Vale lem-
brar que apesar de o governo não
ter cumprido sua promessa de cam-
panha de dobrar seu valor real, pro-
moveu um aumento de 40% em seu
poder aquisitivo, quando se com-
para a situação de dezembro de
2002 com a de setembro de 2006.
Contudo, vale mencionar que a re-
cuperação de seu valor teve início
durante o governo FHC. Dessa for-
ma, se compararmos o referido va-
lor ao de 1995, constatamos que
houve um aumento de 97% em ter-
mos reais. Nos primeiros dois anos
do governo Lula, o processo de re-
cuperação foi desacelerado, reto-
mando fôlego em 2005 e 2006.
ou mais no trabalho principal, não
contribuiam para qualquer institu-
to de previdência.
O IMPACTO DA POLÍTICAECONÔMICA E DE SEUS RESULTADOSNA SEGURIDADE SOCIAL E NO SUS.
O primeiro aspecto destacável,
entre a relação da política macroe-
conômica do governo Lula e a ‘Se-
guridade Social’, foi a extensão da
vigência da Desvinculação das Re-
ceitas da União – DRU6 para 2007.
No momento da criação desse dis-
positivo, em 1994, durante o primei-
ro governo FHC, houve franca opo-
sição dos setores comprometidos
com a Seguridade Social, e o Parti-
do dos Trabalhadores fechou ques-
tão contra sua aprovação no Con-
gresso Nacional. Por isso, os seto-
res que apoiaram a eleição de Lula
em 2002 esperavam que o novo
governo desse fim a esse dispositi-
vo. Contudo, não foi isso que acon-
teceu: no bojo da reforma tributá-
ria encaminhada pelo governo e
aprovada em 2003, ficou definida
sua vigência até 2007.
No ano de 2004, o volume de
recursos assim desviados da Segu-
ridade Social totalizou R$ 24,9 bi-
lhões, o que correspondeu a 77,5%
do gasto realizado pelo governo fe-
Um outro elemento importante
que deve ser registrado, e que tem
reflexo sobre a Seguridade Social,
diz respeito ao grau de precariza-
ção das relações de trabalho. Em
2005, segundo a Pesquisa Nacional
de Amostra por Domicílios (PNAD),
realizada pelo IBGE( IBGE, 2005),
52,8% dos ocupados, com 10 anos
O primeiro aspecto destacável,entre a relação da política
macroeconômica do governo Lula ea ‘Seguridade Social’, foi a
extensão da vigência daDesvinculação das Receitas da
União – DRU para 2007
6 Permite que 20% das receitas de impostos e contribuições sejam livremente alocados pelo governo federal, inclusive para pagamento dosjuros da dívida. Na época de sua criação, em 1994, chamava-se Fundo Social de Emergência; em 1997 foi renomeado como Fundo deEstabilização Fiscal e, em 2000, finalmente seu nome passa a expressar seu verdadeiro conteúdo – Desvinculação das Receitas da União.
O impacto da política econômica do governo Lula na Seguridade Social e no SUS
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 258-267, set./dez. 2005 263
deral em saúde nesse ano. Em 2005,
foram R$ 32,129 bilhões, isto é, 93%
do gasto em ações e serviços de
saúde, efetuados pelo Ministério da
Saúde (ANFIP, 2005). Desnecessário
dizer que os recursos desvincula-
dos mediante a DRU alimentam a
formação do superávit primário,
descrito na parte 1 deste artigo. Para
o segundo mandato do governo
Lula, as expectativas são ainda
mais desanimadoras, pois integran-
tes de seu governo, vinculados à
esfera econômica, falam em aumen-
tar o percentual da desvinculação
para cerca de 40%.
Em relação à ‘Previdência Soci-
al’ do Regime Geral - RGPS, o im-
pacto da economia se fez sentir prin-
cipalmente sobre a receita das con-
tribuições. Essas, resultantes da
aplicação de alíquotas sobre a mas-
sa salarial dos ocupados junto ao
mercado de trabalho formal, senti-
ram o peso da informalidade e o
elevado desemprego, principalmen-
te nos anos em que a economia apre-
sentou os piores resultados, estan-
do longe de evoluir de acordo com
as taxas de crescimento de décadas
anteriores. Mesmo assim, o total da
arrecadação líquida, depois de ter
decrescido em 2003, com relação ao
ano anterior, aumentou 9,3% em
2004 e 9,4% em 20057. Segundo o
Ministério da Previdência Social, a
expansão observada nesse último
ano deveu-se ao comportamento
favorável do mercado de trabalho
formal, à ação da Secretaria da Re-
ceita Previdenciária principalmente
na recuperação de créditos junto a
devedores, e à elevação do teto da
contribuição.
Ainda em relação à Previdência,
o governo promoveu, em seu pri-
meiro ano de mandato, uma refor-
ma no regime pertinente aos funci-
onários públicos. Essa reforma re-
tor privado, segurados pelo RGPS.
Essa contribuição, que fere o prin-
cípio previdenciário de reciprocida-
de, somente incide a partir de um
determinado valor de aposentado-
ria. À introdução de um valor má-
ximo para a aposentadoria dos fun-
cionários públicos, foi associada a
criação de fundos de pensão, os
quais, assim como para os traba-
lhadores do setor privado, podem
ser organizados e administrados por
sindicatos e pelas centrais sindicais
(MARQUES e MENDES, 2004). Até o
momento, contudo, eles não foram
regulamentados, pois a legislação
necessária não foi ainda objeto de
discussão e aprovação. Vale ressal-
tar que essas medidas foram de en-
contro com a tradição e o posicio-
namento dos representantes do PT
em momentos anteriores, quando da
reforma da Previdência encaminha-
da por FHC.
Evidentemente, como o cresci-
mento da arrecadação líquida das
contribuições não foi suficiente para
dar conta da defasagem existente
entre as receitas e as despesas pre-
videnciárias, membros do governo,
logo depois da reeleição de Lula,
têm firmado um diálogo intenso
com a mídia sobre um possível en-
caminhamento de novo projeto de
reforma da Previdência, desta vez
alterando as condições de acesso à
tirou direitos dos servidores, ao in-
troduzir um teto para o valor do
benefício (anteriormente o valor da
aposentadoria correspondia ao va-
lor do provento, não sofrendo redu-
ção). Além disso, o governo implan-
tou uma contribuição sobre o valor
da aposentadoria para os servido-
res e para os trabalhadores do se-
...o crescimento da arrecadaçãolíquida das contribuições não foi
suficiente para dar conta dadefasagem existente entre as
receitas e as despesasprevidenciárias ...
aA arrecadação líquida foi de R$ 92,3 bilhões em 2003; R$ 100,9 bilhões em 2004 e R$ 110,4 bilhões em 2005, a valores de dezembro2005. Diponível em: www.mpas.gov.br/pg_secundarias/previdencia_social_10.asp. acesso em: dezembro. 2006
MENDES, Áquilas Nogueira & MARQUES, Rosa Maria
264 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 258-267, set./dez. 2005
aposentadoria e o valor do benefí-
cio tanto para os trabalhadores do
setor privado da economia como
para os funcionários públicos.
Em relação ‘à saúde pública’, os
principais impactos da política eco-
nômica em seu financiamento ocor-
reram no momento da elaboração
da proposta orçamentária e não no
encaminhamento da regulamenta-
ção da Emenda Constitucional nº
29(BRASIL, 2000. A importância as-
sumida pela proposta orçamentária
deveu-se ao fato de a meta relativa
ao superávit primário, além de se
traduzir em contingenciamentos, re-
sultar em diferentes tentativas de re-
dução dos gastos, inclusive os so-
ciais. No caso da saúde pública, em
todos os anos do primeiro governo
Lula, a equipe econômica tentou
introduzir itens de despesa que não
são considerados gastos em saúde
no orçamento do Ministério da Saú-
de. Entre esses itens figuraram, en-
tre outros, o pagamento de juros e
a despesa com a aposentadoria dos
ex-funcionários desse ministério.
Embora essas tentativas estivessem
sendo apoiadas por toda a área eco-
nômica do governo, não foram a
termo, pois as entidades da área da
saúde — o Fórum da Reforma Sa-
nitária (Abrasco, Cebes, Abres, Rede
Unida e Ampasa) —, o Conselho
Nacional de Saúde e a Frente Parla-
mentar da Saúde rapidamente se
mobilizaram e fizeram o governo
recuar.
Tentativas de redução do orça-
mento do Ministério da Saúde
A Lei de Diretrizes Orçamentári-
as - LDO - para o orçamento de 2004
previa que os Encargos Previdenci-
ários da União - EPU, o serviço da
dívida e os recursos alocados no
Fundo de Combate e Erradicação da
Pobreza fossem contabilizados
como gastos do Sistema Único de
Saúde do Ministério da Saúde. Con-
tudo, a forte reação contrária do
Conselho Nacional de Saúde e da
Apesar de diversos e intensos
debates terem ocorrido entre entida-
des vinculadas ao SUS e o Ministé-
rio do Planejamento, nada foi mo-
dificado sobre essa questão. Somen-
te após o parecer do Ministério Pú-
blico Federal, contrariando a deci-
são presidencial e solicitando ao
presidente Lula a retirada do veto
ao dispositivo que esclarecia que os
recursos do Fundo de Combate à
Erradicação da Pobreza não poderi-
am ser contabilizados como gastos
em saúde, sob pena do orçamento
aprovado vir a ser considerado in-
constitucional, o governo recuou.
Foi assim que a Lei nº 10.777, de
25 de novembro de 2003, contem-
pla, no parágrafo segundo do arti-
go 59, que o EPU, o serviço da dívi-
da e as despesas do MS com o Fun-
do de Combate e Erradicação da
Pobreza não fossem considerados
como ações e serviços públicos de
saúde.
Da mesma forma, o projeto de
Lei de Diretrizes Orçamentárias
(LDO) para o orçamento de 2006,
encaminhado pelo governo federal
à Câmara, previa que as despesas
com assistência médico-hospitalar
dos militares e seus dependentes
(sistema fechado) fossem conside-
radas no cálculo de ações e servi-
ços de saúde. Caso fossem conside-
radas, os recursos destinados para
o Ministério da Saúde seriam dimi-
nuídos em cerca de R$ 500 milhões.
Frente à declaração pública do MS,
Frente Parlamentar da Saúde deter-
minou que o Poder Executivo envi-
asse mensagem ao Congresso Naci-
onal estabelecendo que, para efeito
das ações em saúde, seriam dedu-
zidos o EPU e o serviço da dívida.
Em relação ao Fundo da Pobreza a
mensagem era omissa.Essa omis-
são resultaria na redução de R$
3.571 milhões no orçamento SUS do
Ministério da Saúde.
... em todos os anos do primeirogoverno Lula, a equipe econômicatentou introduzir itens de despesaque não são considerados gastos
em saúde no orçamento doMinistério da Saúde
O impacto da política econômica do governo Lula na Seguridade Social e no SUS
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 258-267, set./dez. 2005 265
repudiando essa interpretação, e
frente à mobilização das entidades
da saúde, o governo federal foi obri-
gado a recuar, reformulando sua
proposta.
A vinculação da EC 29 é objeto
da atenção da área econômica.
Em fins de 2003, o governo Lula
encaminhou documento referente ao
novo acordo com o Fundo Monetá-
rio Internacional8, comunicando sua
intenção em preparar um estudo
sobre as implicações das vincula-
ções constitucionais das despesas
sociais — saúde e educação — so-
bre as receitas dos orçamentos da
União, dos estados ou dos municí-
pios. A justificativa apoiava-se na
idéia de que a flexibilização da alo-
cação dos recursos públicos pode-
ria assegurar uma trajetória de cres-
cimento ao País9. No âmbito do SUS,
a intenção do governo era tirar do
Ministério da Saúde a obrigação de
gastar, em relação ao ano anterior,
valor igual acrescido da variação
nominal do PIB; dos estados, 12%
de sua receita de impostos, compre-
endidas as transferências constitu-
cionais; e, dos municípios, 15%, tal
como define a EC 2910.
Quando Lula foi eleito pela pri-
meira vez, pensava-se que, final-
mente, não haveria obstáculos para
que finalmente saísse a regulamen-
tação da EC 29. Afinal, os temas tra-
tados por ela haviam sido objeto de
longa discussão entre representan-
tes dos conselhos municipais e es-
taduais, do Conselho Nacional de
Saúde, o Ministério da Saúde, os
Tribunais de Contas dos Estados e
absolutamente necessária para ga-
rantir o financiamento e o compro-
metimento das diferentes esferas de
governo na construção do SUS. É
por isso que, durante o primeiro ano
do governo Lula, a fim de finalizar
os encaminhamentos pró-regula-
mentação da EC 29, foram realiza-
dos, em Brasília, mais dois semi-
nários, promovidos pela Câmara
Técnica do Sistema de Informações
sobre Orçamentos Públicos em Saú-
de - SIOPS e pela Comissão para
Elaboração de Proposta de Lei Com-
plementar (PLC) do Ministério da
Saúde, onde foi intensa a discussão
das entidades presentes11.
Contudo, para surpresas de mui-
tos, a regulamentação da EC 29 não
se constituiu prioridade do gover-
no. Mesmo assim, em abril de 2003,
fruto da ação da Frente Parlamen-
tar da Saúde, passou a integrar a
pauta do Congresso, estando à es-
pera de sua votação.
A não prioridade da matéria ex-
pressa, na verdade, a tensão exis-
tente entre a área da saúde e a área
econômica do governo. A primeira,
compromissada com a trajetória
Municípios. O resultado dessas dis-
cussões era, portanto, expressão de
um grande consenso, visto como
Quando Lula foi eleito pelaprimeira vez, pensava-se que,
finalmente, não haveria obstáculospara que finalmente saísse a
regulamentação da EC 29
8 O documento referente ao novo acordo com o FMI é dirigido ao seu diretor executivo, Köhler (Ministério da Fazenda, 2003).9 Ministério da Fazenda, op. cit, p. 310 A Proposta de Emenda Constitucional 169, vinculando recursos para a saúde pública, foi elaborada pelos deputados Eduardo Jorge eWaldir Pires. A motivação foi o fato de o Ministério da Saúde, em 1993, não ter recebido os recursos previstos no orçamento da União, deorigem nas contribuições de empregados e empregados, o que levou à ocorrência do seu primeiro empréstimo junto ao Fundo de Amparoao Trabalhador - FAT (PEC 169). Depois disso, várias outras propostas de vinculação foram elaboradas e discutidas no CongressoNacional, mas somente em 2000 - foi aprovada a emenda constitucional (EC 29). De acordo com a EC 29, a União deveria alocar, parao primeiro ano, pelo menos 5% a mais do que foi empenhado no orçamento do período anterior, e, para os seguintes, o valor apurado noano anterior corrigido pela variação do PIB nominal.11 Conasems; Procuradoria Geral da República; Banco do Brasil; representante da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas;Conselho Federal de Contabilidade; assessoria do Deputado Roberto Gouveia; asssessoria do Deputado Guilherme Menezes – PT/Bahia;IBGE/Depto. Contas Nacionais; técnicos do SIOPS; Secretaria Gestão Participativa/MS; STN; técnicos do Departamento de Economia daSaúde/MS; assessoria da bancada do PT na Câmara Federal.
MENDES, Áquilas Nogueira & MARQUES, Rosa Maria
266 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 258-267, set./dez. 2005
histórica do SUS, e por isso, preo-
cupada em garantir seu financia-
mento e em definir as ações e servi-
ços de saúde pública; e a segunda,
restringida por uma política econô-
mica fundada em metas de inflação
e na geração de superávits primá-
rios. Nessa situação, a regulamen-
tação das vinculações previstas na
EC 29 é vista como um retrocesso,
pois impõe despesas mínimas e
comprometimentos mínimos de re-
ceitas, o que estaria contrariando o
esforço de geração de superávit. Ao
mesmo tempo, no entender da equi-
pe econômica, isso limitaria o po-
der discricionário do governo, o
qual não poderia alocar os recur-
sos de acordo com seus interesses
mais imediatos. Dessa forma, o
gasto mínimo definido e a vincula-
ção mínima de recursos estariam
respondendo a interesses que inde-
penderiam do governo de ocasião,
expressando compromissos de lon-
go prazo.
AVANÇOS RELATIVOS
DA SAÚDE PÚBLICA.
Apesar das restrições impostas
pelo marco macroeconômico, hou-
ve avanços na área da saúde públi-
ca durante o primeiro governo Lula.
Nos três primeiros anos dessa ges-
tão, a taxa de cobertura do Progra-
ma Saúde da Família, com relação
ao total da população brasileira,
aumentou significativamente: 35,7%
(2003); 39% (2004) e 43,04% em
2005. No último ano do governo
FHC, esse percentual era de 32,4%.
O grau de cobertura varia muito
entre as regiões e os municípios: em
2004, por exemplo, enquanto no
nordeste era de 54,85%, na região
sudeste atingia apenas 29%12.
Não se pode dizer, entretanto,
que esse programa tenha sido (e
seja) propriamente uma marca do
governo Lula, pois seu início data
de 1994, embora somente em 1998
tenha se consolidado como uma po-
lítica prioritária do Ministério da
Saúde. Poder-se-ia argumentar, con-
tudo, que o fato de o governo ter
dado continuidade a seu processo
de implantação é, em si, digno de
nota, indicando seu grau de com-
promisso com relação a um progra-
ma considerado prioritário por to-
das as instâncias participativas do
SUS.
Entre os programas iniciados
durante o primeiro governo Lula,
destacam-se o Brasil Sorridente e o
programa Farmácia Popular. O pri-
meiro, integrante da Política de Saú-
de Bucal, propiciou que a cobertu-
ra do atendimento da saúde bucal
aumentasse de 17,5%, em 2002,
para 33,7%, em 2005. Já o progra-
ma Farmácia Popular, consiste em
oferecer medicamentos essenciais a
baixo custo. Em 14 de dezembro de
2006, o Ministério da Saúde inau-
gurava a 243ª Farmácia Popular do
país. Dessa forma, segundo infor-
mação do site do MS, esse progra-
ma atingia “60 milhões de brasilei-
ros, em 193 municípios de 24 esta-
dos e do Distrito Federal”. Desde o
lançamento do programa, em junho
de 2004, já foram realizados mais
de 6,5 milhões de atendimentos e
fornecidos mais de 40 milhões de
produtos”. Essa iniciativa não está,
contudo, isenta de críticas. Há quem
considere que a cobrança pelo me-
dicamento fere o princípio da gra-
tuidade, presente no SUS.
12 Ver site do Ministério da Saúde, www.saude.gov.br. Acesso em: 10 de dezembro de 2006
Apesar das restrições impostas pelomarco macroeconômico, houve
avanços na área da saúde públicadurante o primeiro governo Lula
O impacto da política econômica do governo Lula na Seguridade Social e no SUS
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 258-267, set./dez. 2005 267
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para a Seguridade Social, em
geral, e para o SUS, em particular,
a forte possibilidade de que a políti-
ca econômica do segundo governo
Lula tenha como base os mesmos
fundamentos da que foi desenvolvi-
da em seu primeiro mandato é mais
do que preocupante. Isso porque, do
ponto de vista das políticas susten-
tadas pelos diferentes ramos da Se-
guridade Social, especialmente para
a Previdência e para a Saúde, não
será o enfretamento das mesmas
restrições e problemas. No caso da
Previdência, a crescente defasagem
entre as receitas de contribuições e
as despesas com benefícios (muito
embora a Seguridade como um todo
apresente um superávit também
crescente, mas que é desconhecido
do grande público e esquecido pela
mídia, para dizer o mínimo) é fonte
de argumento para justificar a im-
plantação de uma reforma radical,
que resulte na redução dos gastos
futuros com benefícios.
Em relação à Seguridade como
um todo, a intenção de aumentar o
percentual das contribuições na com-
posição da DRU - mais do que sig-
nificar mais um passo no sentido
da destruição da idéia de um orça-
mento para a Seguridade - pode re-
sultar na sua inviabilidade e/ou na
perda de sentido material. Em rela-
ção ao SUS, a luta incessante dos
últimos anos pela defesa de níveis
mínimos de recursos que, a bem da
verdade, não começou com o go-
verno Lula13, pode converter-se em
crescente descompromisso dos di-
ferentes níveis de governo com a
saúde pública. Frente à não-regu-
lamentação da EC 29 e ao efeito de-
monstração dado pela União, difi-
cilmente o MS, o Conselho Nacio-
nal de Saúde, o Conasems e o Co-
nass terão força para fazer valer o
pacto que gerou a proposta da EC
29.
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156, 160, 167 e 198 da Constitui-
ção Federal e acrescenta artigo ao
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Projeto Madison 2, 2006. Mimeo.
13 Para detalhes dessa luta, ver Marques e Mendes, 2006.
TEIXEIRA, Carmen Fontes & PAIM, Jairnilson Silva
268 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-283, set./dez. 2005
ARTIGOS ORIGINAIS / ORIGINAL ARTICLES
A política de saúde no governo Lula e a dialética do menos piorHealth Policy in the Lula government and the least worse dialectic
“Uma pessoa corresponde ao seu próprio tempo mais quando combatedo que quando colabora com as ‘formas de vida oficial’” (Badaloni,
1987:85).
Carmen Fontes Teixeira1
Jairnilson Silva Paim2
Recebido: Jun./2006
Aprovado: Jul./2007
1 Doutora em Saúde Pública. Professora
Adjunta do Instituto de Saúde Coletiva da
Universidade Federal da Bahia (ISC-
UFBA). E-mail: carment@ufba.br
2 Professor Titular em Política de Saúde do
Instituto de Saúde Coletiva da UFBA. Pes-
quisador 1-A do CNPq. E-mail:
jairnil@ufba.br
RESUMO
O objetivo do artigo é analisar a política de saúde do Governo Federalna conjuntura iniciada em 2003. A metodologia empregada incluiu pesquisadocumental de planos, programas, projetos e relatórios elaborados noMinistério da Saúde, bem como a extração de trechos de discursos deautoridades governamentais e dirigentes do setor, publicados em jornais erevistas de grande circulação. Os resultados incluem a sistematização ediscussão do processo de formulação e implementação de políticas de saúde,cotejando-o com algumas iniciativas do Governo Lula nas áreas econômicae social. Aponta a frustração das expectativas em torno da gestão do Estadopor forças consideradas de esquerda, embora reconheça esforços realizadospara a manutenção e continuidade do processo de reforma setorial emcurso.PALAVRAS-CHAVE: Política de saúde, Sistema Único de Saúde, Reforma SanitáriaBrasileira.
ABSTRACT
This article aims to analyze the federal government health policies inthe situation which began in 2003. The methodology employed includeddocumentary research of plans, programs, projects and reports elaboratedby the Ministry of Health, as well as the extraction of passages from speechesmade by governmental authorities and leaders of the sector published inlarge circulation newspapers and magazines. The results include thesystematization and discussion of the process of formulating andimplementing health policies, comparing it to some initiatives of the Lulagovernment in economic and social areas. It reveals how expectations ofState management by supposedly left-wing powers have been frustrated,whilst also acknowledging efforts that have been made to maintain andcontinue the sectorial reform process underway.
KEYWORDS: Health policies, Brazil’s Unified Health System, Brazilian HealthReform.
A política de saúde no governo Lula e a dialética do menos pior
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-2832, set./dez. 2005 269
INTRODUÇÃO
O término da gestão 2003-2006
do Presidente Lula estimula a refle-
xão e demanda por um balanço de
suas políticas públicas. No caso da
saúde, o respeito ao passado e o
compromisso com o futuro da Re-
forma Sanitária Brasileira
(RSB)exigem, que se proceda a um
exame crítico da política formula-
da e implementada nessa gestão.
Trata-se de “fazer uma análise dos
processos e questões políticas que
se acham envolvidas na avaliação
dos planos e programas do setor
público de um país” (BUSTAMEN-
TE & PORTALES, 1988 p. 79).
Para o desenvolvimento dessa
análise, algumas perguntas prelimi-
nares podem ser apresentadas:
quais os compromissos explícitos
no programa de governo antes das
eleições presidenciais de 2002?
Quais os fatos políticos relaciona-
dos com a saúde produzidos no pe-
ríodo de governo? Como os atores
políticos atuaram na conjuntura?
Que relações poderiam ser identifi-
cadas entre tais fatos e o programa
de governo? Perguntas como essas
sugerem uma avaliação centrada na
formulação e no processo político
correspondente à implementação.
Em outras palavras, remetem à aná-
lise da política de saúde em suas
dimensões de policy e de politics
(PAIM, 2003).
Analisar a policy implica identi-
ficar o conjunto de proposições re-
lativas ao enfrentamento dos pro-
blemas e ao atendimento das neces-
sidades de saúde da população, se-
gundo a perspectiva adotada por
um determinado ator social. Tais
proposições geralmente são apre-
sentadas e sistematizadas em docu-
mentos como programa de gover-
no, políticas, planos, programas e
projetos de intervenção, expressões
das políticas planificadas. Podem,
No que diz respeito à politics,
cabe considerar a luta política tra-
vada no âmbito do governo (inter-
namente as instituições de saúde e
destas com outras organizações go-
vernamentais enão-governamentais)
e na sociedade civil. A dinâmica
desse processo político tanto pode
contribuir para consolidar ou para
subverter, no cotidiano da imple-
mentação em organizações públi-
cas, a direcionalidade indicada no
programa de governo e nos planos
de ação derivados ou subsidiários.
Essa luta política se expressa pela
disputa entre atores das organiza-
ções visando à apropriação e ao
acúmulo de poderes técnico, admi-
nistrativo e político (TESTA, 1992).
Esses enfrentamentos podem se re-
velar em torno das opções estraté-
gicas a serem adotadas no cotidia-
no das instituições responsáveis
pela implementação da proposta
política que refletem a luta pelo
poder, quer no ambiente interno,
quer nas relações estabelecidas en-
tre os diferentes órgãos. Como exem-
plos, podem ser mencionadas as
relações de cooperação ou conflito
entre instituições do poder executi-
vo (Ministério da Saúde, secretari-
as estaduais e municipais de Saú-
de, agências executivas etc) e des-
tas com o poder legislativo, judici-
ário, organizações não-governamen-
tais, mídia e grupos organizados da
sociedade civil.
também, ser apreendidas mediante
declarações e discursos de autori-
dades e atores sociais que ilustram
certos componentes da agenda po-
lítica e podem ser examinadas, ain-
da, a partir de atos normativos, tais
como: leis, decretos, portarias, re-
soluções, etc. No caso em questão,
trata-se de identificar as propostas
de saúde incluídas no programa de
governo e seus desdobramentos ao
longo da gestão.
O TÉRMINO DA GESTÃO
2003-2006 DO PRESIDENTE LULA
ESTIMULA A REFLEXÃO E DEMANDA POR UM
BALANÇO DE SUAS POLÍTICAS PÚBLICAS
TEIXEIRA, Carmen Fontes & PAIM, Jairnilson Silva
270 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-283, set./dez. 2005
Conseqüentemente, as políticas
de saúde de um governo não podem
ser avaliadas apenas setorialmen-
te, ou seja, pelas ações exclusivas
do sistema de serviços de saúde ou
do ministério correspondente. Há
que se examinar passos, traços e
produtos do governo que têm reper-
cussões na saúde da população e
na organização do sistema de ser-
viços. Com essa perspectiva, o pre-
sente artigo tem como objetivo ana-
lisar a política de saúde do Gover-
no Federal na conjuntura iniciada
em janeiro de 20033.
DO PROGRAMA À EQUIPE DE GOVERNO:DISCURSO TÍMIDO E
PRÁTICA FRAGMENTADA.
Depois de perder as eleições pre-
sidenciais de 1989, 1994 e 1998, o
Partido dos Trabalhadores (PT) lide-
rou uma coligação partidária que
elegeu o ex-operário, ex-líder sindi-
cal e ex-deputado constituinte Luiz
Inácio Lula da Silva, como Presi-
dente da República, em 2002. Além
da relevância histórica do aconteci-
mento e das esperanças cultivadas
durante a campanha, amplas expec-
tativas foram expressas em relação
à direcionalidade da política de saú-
de, especialmente tendo em vista a
necessidade de se acelerar o proces-
so de mudança no financiamento,
gestão e organização do sistema
público de saúde. Também se apos-
tou na possibilidade de se intensifi-
car o processo de participação e con-
trole social do SUS, avançando-se
na democratização do conhecimen-
to, na reorientação das práticas e
na melhoria das condições de saú-
de da população.
Ao se tomar, como ponto de par-
tida, a análise do componente saú-
de do Programa de Governo apre-
mais abrangentes, inovadores e con-
sistentes.
Após a vitória, a excitação do
“mercado” e da mídia, pela indica-
ção imediata do Presidente do Ban-
co Central e do Ministro da Fazen-
da, correu ao lado da iniciativa do
então Presidente Fernando Henrique
Cardoso no sentido de disponibili-
zar cargos para integrantes do “gru-
po da transição” (GT) a serem indi-
cados pelo presidente eleito, visan-
do à passagem dos trabalhos de um
governo para o outro. Foi designa-
do para dirigir os trabalhos do GT,
o então prefeito da cidade paulista
de Ribeirão Preto, que se tornara
coordenador do programa de Lula
devido a uma tragédia (assassina-
to do prefeito de Santo André, Celso
Daniel, que seria o coordenador do
Programa de Governo). Nas várias
entrevistas concedidas à mídia, o
coordenador do GT reforçava o dis-
curso que, segundo a mídia, o mer-
cado precisava ouvir para se acal-
mar. Assim, era cada vez mais fes-
tejado pelos porta-vozes do “merca-
do” e pela mídia.
Tanto o presidente eleito quanto
o então presidente do PT, José Dir-
ceu, destacavam que o GT era ‘téc-
nico’, e que ninguém deveria espe-
rar tornar-se ministro a partir des-
se trabalho. Mas, na viagem a Wa-
shington, Lula deixou escapar, por
sentado no período eleitoral4 cons-
tata-se, de um modo geral, uma rei-
teração de proposições já contidas
e formalizadas na Constituição Fe-
deral, na Lei Orgânica da Saúde e
em distintas normas operacionais
do Sistema Único de Saúde (SUS).
Houve candidatos concorrentes que
chegaram a apresentar programas
O PRESENTE ARTIGO TEM COMO
OBJETIVO ANALISAR A POLÍTICA DE SAÚDE DO
GOVERNO FEDERAL NA CONJUNTURA INICIADA
EM JANEIRO DE 2003
3 O material utilizado na pesquisa documental será identificado mediante notas de pé de página ao longo do texto, reservando-se asreferências bibliográficas exclusivamente para publicações em livros e periódicos.4 Saúde para a família brasileira (Programa de Governo 2002 - Coligação Lula Presidente: PT-PC do BPL-PMN-PCB). Setembro, 2002.24p.
A política de saúde no governo Lula e a dialética do menos pior
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-2832, set./dez. 2005 271
aparente ato falho, o nome do Mi-
nistro da Fazenda que a mídia, o
‘mercado’, o governo americano e
os bancos aparentemente já sabiam.
E ainda fez piada com a tragédia
do país: se a economia brasileira
está na UTI, ninguém melhor que
um médico para tratar dela... As-
sim, para dirigir uma complexa eco-
nomia de um país de mais de 170
milhões de habitantes, foi indicado
um político cujo currículo insinua-
va algum interesse em questões fis-
cais e econômicas, mas que a mí-
dia comemorava entusiasticamen-
te.
O Relatório da Transição, apre-
sentado pelo seu coordenador e
transmitido ao vivo pela TV, prati-
camente nada informava sobre os
trabalhos dos grupos. Concentrava-
se em aspectos macro-econômicos,
sinalizando para tópicos que o ca-
pital financeiro valorizava. A pala-
vra saúde não foi mencionada uma
vez sequer, nem pelo coordenador
do GT nem por Lula no seu discur-
so, mesmo que fosse para se referir
à ‘saúde da economia’. Quanto ao
‘social’, apenas foram feitas men-
ções vagas à educação,à fome e
àsegurança pública. Esta omissão
era o primeiro sinal de como a saú-
de seria tratada pelo governo.
Tal como na Fazenda, o político
indicado para Ministro da Saúde foi,
também, um dos integrantes do GT,
desmentindo, mais uma vez, as de-
clarações anteriores do presidente
eleito. Seu nome foi um dos últi-
mos a ser divulgado numa equipe
de mais de três dezenas de minis-
tros5, muitos deles recentemente
derrotados nas urnas. Contudo, a
composição da equipe do segundo
escalão prestigiou atores políticos
com participação no movimento da
Atenção à Saúde); um destaque
para as questões dos recursos hu-
manos (Secretaria de Gestão do Tra-
balho e da Educação em Saúde);
uma atenção para os insumos es-
tratégicos (inclusive assistência far-
macêutica) e desenvolvimento cien-
tífico e tecnológico (Secretaria de
Ciência e Tecnologia e Insumos Es-
tratégicos); uma prioridade para a
gestão democrática (Secretaria de
Gestão Participativa); e certa ambi-
güidade em relação aos programas
especiais vinculados à Fundação
Nacional de Saúde (FUNASA) que
passaram a constituir a chamada
SVS (Secretaria de Vigilância em
Saúde).
Após a festa da posse do Presi-
dente, o Ministro da Saúde conce-
deu entrevista na televisão discu-
tindo um aumento de 9% no preço
dos remédios para março. Ao assu-
mir o cargo, diante da presença de
mais de 600 pessoas, deu destaque
para a mortalidade infantil, o ‘es-
cândalo’ da mortalidade materna, a
manutenção do Programa de Saúde
da Família (PSF), o fortalecimento
do SUS e o monitoramento da den-
gue. No seu discurso6, reafirmava
certos princípios e diretrizes da Re-
forma Sanitária, o compromisso
com o SUS, a continuidade dos pro-
gramas de controle da AIDS e do
RSB e com experiência prévia de
gestão pública.
A reforma administrativa do Mi-
nistério da Saúde, apresentada logo
no início do governo, sugeria uma
ênfase na integração da atenção
básica com a assistência especi-
alizada e hospitalar (Secretaria de
A REFORMA ADMINISTRATIVA
DO MINISTÉRIO DA SAÚDE(...) SUGERIA UMA
ÊNFASE NA INTEGRAÇÃO DA ATENÇÃO BÁSICA
COM A ASSISTÊNCIA ESPECIALIZADA EHOSPITALAR...
5 A prodigalidade com que foram criadas pastas ministeriais para acomodar interesses e apetites partidários visando à ocupação dosmilhares de cargos de confiança - “Ministério dos Derrotados” - já anunciava a reprodução ampliada do clientelismo, além de dificuldadesna coordenação política e na gestão. Se o Presidente reservasse por dia um despacho por ministro só conseguiria vê-lo de novo um mêsdepois. Mas os fatos foram demonstrando que a gestão não era o que mais importava para o Presidente.6 Ministério da Saúde. Assessoria de Comunicação Social. Divisão de Imprensa. Transmissão de cargo do senhor ministro da SaúdeHumberto Costa. 02.01.03.7p.
TEIXEIRA, Carmen Fontes & PAIM, Jairnilson Silva
272 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-283, set./dez. 2005
tabagismo7, mas não avançava com
proposições consentâneas com as
expectativas em relação à conjun-
tura que se iniciava: nada sobre a
regulação dos ‘planos de saúde’;
muito pouco em relação à indús-
tria farmacêutica e à produção de
genéricos; nenhum plano de expan-
são dos investimentos nos serviços
públicos; nenhum compromisso cla-
ro com a força de trabalho em saú-
de.
FATOS POLÍTICOS DA SAÚDE:REMANDO CONTRA A MARÉ DA
POLÍTICA ECONÔMICA EDO MODO CONVENCIONAL
DE FAZER POLÍTICA
Analisar o processo político da
Saúde no Brasil supõe caracterizar
a situação configurada no âmbito
das instituições, especialmente o
Ministério da Saúde e as agências
do setor, a Agência Nacional de Saú-
de Suplementar (ANS) e a Agência
Nacional de Vigilância Sanitária
(ANVISA). Busca-se, assim, estabe-
lecer um contraponto entre algumas
das iniciativas desencadeadas na
área da saúde e os fatos produzi-
dos em outras instâncias do gover-
no, cujos efeitos contribuíram para
fragilizar ou favorecer a formula-
ção e implementação das políticas
de saúde.
O INÍCIO DA GESTÃO
No encontro com os prefeitos,
realizado em março de 2003, o Pre-
sidente e o Ministro da Saúde anun-
ciaram a expansão da Atenção Bá-
sica e do PSF, além do aumento dos
valores do Piso da Atenção Básica
(PAB) e da assistência farmacêuti-
ca. Posteriormente, o anúncio da
implantação de 4.000 equipes de
saúde da família, do reforço ao aten-
dimento de urgência e emergência
ção à saúde: ampliação do acesso
da população aos serviços de saú-
de;
2. Combate à fome: atendimen-
to às carências nutricionais;
3. Atendimento a grupos com
necessidade de atenção especial:
atenção à saúde da criança, da
mulher e do idoso. Prevenção, con-
trole e assistência aos portadores
DST e AIDS;
4. Controle da dengue e outras
doenças endêmicas e epidêmicas.
Combate a endemias e doenças
transmitidas por vetores (priorida-
de para a dengue e a malária);
5. Acesso a medicamento: ga-
rantia do acesso da população a
estes produtos;
6. Qualificação dos trabalhado-
res do SUS. Qualificação dos traba-
lhadores da saúde 8.
Em consonância com tais dire-
trizes, podem ser destacadas as se-
guintes ações: expansão da atenção
básica, com ampliação de recursos
e de equipes de saúde da família;
convocação da 12ª Conferência Na-
cional de Saúde em caráter extra-
ordinário9; ampliação de credenci-
amento para leitos de unidades de
tratamento intensivo (UTI); apoio fi-
nanceiro aos hospitais universitá-
rios redefinindo suas relações com
o SUS; reajuste nos repasses para
consultas especializadas em hospi-
e do novo modelo de gestão dos
hospitais universitários indicavam
a produção de fatos políticos con-
sistentes com o programa de gover-
no. Além disso, um elenco de dire-
trizes foi estabelecido para o primei-
ro ano de gestão:
1. Melhoria do acesso, da qua-
lidade e da humanização da aten-
ANALISAR O PROCESSO POLÍTICO
DA SAÚDE NO BRASIL SUPÕE CARACTERIZAR ASITUAÇÃO CONFIGURADA NO ÂMBITO DAS
INSTITUIÇÕES, ESPECIALMENTE O MINISTÉRIO
DA SAÚDE E AS AGÊNCIAS DO SETOR...
7 “Aliás, eu quero avisar aos fumantes de plantão que serei tão implacável quanto o ministro Serra no combate ao tabagismo” op. cit. p.4.8 Ministério da Saúde. Diretrizes e Metas do MS para 2003 – Andamento das Ações. 10 de julho de 2003.p.11.9 Os temas selecionados foram: Direito à saúde; Intersetorialidade das Ações de Saúde; As Três Esferas de Governo e a Construção do SUS;Organização da Atenção em Saúde; Gestão Participativa; Trabalho em Saúde; Ciência, Tecnologia e Saúde; e Financiamento. Radis, 11:8,2003.
A política de saúde no governo Lula e a dialética do menos pior
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-2832, set./dez. 2005 273
tais públicos, em estados e municí-
pios de gestão plena; nova campa-
nha antitabagista na mídia (Fique
esperto!) para jovens de 13 a 19
anos; criação da Câmara de Regu-
lação do Mercado de Medicamentos
(CAMED) e fixação de normas para
o controle de preços destes produ-
tos (Medida Provisória Nº 123, de
26 de junho de 2003; apoio aos la-
boratórios oficiais, isenção de ICMS
para medicamentos de alto custo,
reforço aos genéricos, 18 novas re-
soluções da ANVISA regulamentan-
do os medicamentos e condenando
o uso de antigripais e hepatoprote-
tores, além da convocação da 1ª
Conferência Nacional de Medica-
mentos e Assistência Farmacêuti-
ca10; capacitação de profissionais de
saúde, com destaque para a pro-
posta de constituir Pólos de Educa-
ção Permanente nos estados e mu-
nicípios com mais de 100 mil habi-
tantes, estruturando núcleos inte-
rinstitucionais e envolvendo gesto-
res estaduais e municipais, univer-
sidades, escolas técnicas, hospitais
universitários, escolas de saúde pú-
blica, estruturas de formação dos
serviços de saúde, pólos de capaci-
tação de saúde da família, núcleos
de saúde coletiva, agências regio-
nais; e outras medidas específicas11.
O PRIMEIRO ANO DE GOVERNO
Nos seis primeiros meses de go-
verno, muita energia institucional
foi gasta para superar a fragmenta-
ção das ações e implantar a nova
organização do ministério. Assim,
segundo a equipe dirigente,
ais à promoção da eqüidade ”( BRA-
SIL, 2003)12.
Mereceu destaque o processo
participativo para a construção do
Plano Plurianual 2004-2007, envol-
vendo os trabalhadores, colegiados
e fóruns do ministério, inclusive as
instâncias de controle social, como
o Conselho Nacional de Saúde13. A
tentativa de mudança do modelo de
atenção à saúde, a partir de proje-
tos que priorizam o acolhimento e
a humanização14, poderia ser con-
siderada um ‘marcador’ dessa von-
tade política da nova equipe. Do
mesmo modo, a ampliação do PSF
e dos recursos do PAB, maiores re-
passes para atenção especializada
em hospitais públicos, expansão
dos Centros de Atenção Psicossoci-
al (CAPS), reforço do atendimento de
urgência e apoio aos hospitais uni-
versitários federais, indicavam
uma concepção mais abrangente
para a organização do sistema pú-
blico de saúde.
Os fatos acima mencionados si-
nalizavam para redefinições rele-
vantes na política de saúde,apesar
da falta de indicações de como en-
“os esforços concentraram-se, em
especial, na adequação da gestão do
ministério às diretrizes do governo e
na implementação de medidas essenci-
A TENTATIVA DE MUDANÇA DO MODELO DE
ATENÇÃO À SAÚDE, A PARTIR DE PROJETOS
QUE PRIORIZAM O ACOLHIMENTO E AHUMANIZAÇÃO , PODERIA SER CONSIDERADA
UM ‘MARCADOR’ DESSA VONTADE POLÍTICA DA
NOVA EQUIPE...
10 Ver, ainda: redimensionado o projeto da fábrica de preservativos em Xapuri/Acre e repasse de recursos para a assistência farmacêuticanos municípios do Fome Zero. Brasil. MS, 2003, Op. cit, .p.15.11 Vacinação de 12,3 milhões de pessoas acima dos 60 anos de idade, representando 82,2% de cobertura vacinal e de 93,45% de criançasentre zero e quatro anos de idade; mobilização e recursos para o combate à dengue tuberculose, hanseníase e AIDS; adoção do novo cartãoda criança; multas da ANS sobre planos de saúde; ações de controle da violência contra a mulher (Disque Saúde Mulher); notificaçãoobrigatória de óbitos de mulheres em idade fértil. Brasil. MS. 2003, op cit, .p.16; Saúde, Brasil, 87:7, junho de 2003.12 Ministério da Saúde. Diretrizes e Metas do MS para 2003 – Andamento das Ações. 10 de julho de 2003. p.1.13 op. cit.14 Todos os projetos novos do Ministério conteriam como requisitos o fortalecimento de práticas de acolhimento, respeito ao cidadão,capacitação dos profissionais de saúde, maior conforto, responsabilidade definida pelo paciente, com adoção de planos de metas dehumanização da atenção e da gestão. op. cit,.p.3.
TEIXEIRA, Carmen Fontes & PAIM, Jairnilson Silva
274 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-283, set./dez. 2005
frentar a segmentação do sistema
de saúde brasileiro. Embora a limi-
tação de recursos orçamentários
não permitisse assegurar a sufici-
ência de muitas dessas medidas em
relação às necessidades insatisfei-
tas acumuladas, elas apontavam
certa direcionalidade da política.
Nesse sentido - a redefinição do
modelo de atenção e a busca de
acesso universal e integral dos ser-
viços de saúde -, iniciava-se medi-
ante a reorganização da atenção bá-
sica articulada à vigilância da saú-
de e à atenção especializada.
Todavia, na contramão dessa
política de saúde, a Nação foi sur-
preendida com o contingenciamen-
to de recursos logo em março15 e
com um fato da maior gravidade,
ocorrido no início de abril. O Jornal
Hoje da Rede Globo anunciou, em
primeira mão, uma Medida Provi-
sória do Presidente Lula autorizan-
do propaganda de cigarro em even-
tos internacionais, desrespeitando a
Lei 10.167 de 27/12/2000 e, conse-
qüentemente, a Constituição da Re-
pública (BRASIL, 1988) quando de-
termina que a publicidade de taba-
co deve estar sujeita a restrições
legais. Assim, interesses econômi-
cos, políticos e midiáticos, vincu-
lados a pressões da Federação In-
ternacional de Automobilismo
(FIA), somente para beneficiar um
evento esportivo na cidade de São
Paulo, macularam uma política pe-
nosamente construída, com a aqui-
escência de um Ministro da Saúde
que, no discurso de posse, apresen-
tou-se como ‘implacável’ no com-
bate ao tabagismo..
Tal decisão envergonhava os bra-
sileiros aos olhos do mundo civili-
zado, pois a autoridade maior do
país descumpria a lei e a Constitui-
ção recorrendo a uma MP, procedi-
indignaram-se diante de uma deci-
são leviana e autoritária contra evi-
dências científicas e contra as lutas
históricas dos trabalhadores de saú-
de pela promoção e proteção da saú-
de. Cidadãos, eleitores e militantes
sentiram-se traídos quanto às espe-
ranças e confiança que depositavam
no novo Governo, alimentadas por
décadas de lutas democráticas.
Como assinalava a carta de um lei-
tor do Jornal Folha de São Paulo:
O fato de o Brasil ter se tornado re-
fém do circo da Fórmula 1, impedindo
a vigência de leis cujo objetivo é preser-
var a saúde pública (restrição à propa-
ganda de tabaco), causa consternação,
além de ser péssimo exemplo para a afir-
mação da cidadania. Melhor seria se o
país deixasse de fazer parte do roteiro
de um esporte mercenário e elitista e
passasse a respeitar a sua condição de
país soberano (FOLHA DE SÃO PAULO,
2003)16.
O próprio Ministro da Saúde,
durante audiência pública na Co-
missão de Seguridade Social e Fa-
mília, na Câmara dos Deputados,
revelava semanas depois que foi por
chantagem da FIA que o Governo
editou a Medida Provisória 118/03,
autorizando a propaganda de cigar-
ros em eventos esportivos interna-
mento tantas vezes criticado pelo
presidente e seu partido durante os
governos anteriores. Ministros con-
siderados de esquerda, como os da
Saúde, do Esporte e da Casa Civil,
sucumbiram às pressões do capital
comprometido com aquele evento
esportivo. Profissionais de saúde
PROFISSIONAIS DE SAÚDE INDIGNARAM-SE
DIANTE DE UMA DECISÃO LEVIANA EAUTORITÁRIA CONTRA EVIDÊNCIAS CIENTÍFICAS
E CONTRA AS LUTAS HISTÓRICAS DOS
TRABALHADORES DE SAÚDE PELA PROMOÇÃO EPROTEÇÃO DA SAÚDE
15 Como em outras oportunidades, a área econômica deu o tom para as políticas de saúde. Assim, o Ministério da Saúde sofreu logo noinício do governo- uma intervenção da área econômica com um contingenciamento de 1,6 bilhões de reais, o maior de todos os ministériosem termos absolutos. Promessas do Ministério do Planejamento de providenciar a liberação dos recursos não apagavam o sentido da açãopolítica de governo através dessa primeira surpresa negativa para o setor.16 Painel do Leitor, Folha de São Paulo, 8/6/03.pA.3.
A política de saúde no governo Lula e a dialética do menos pior
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-2832, set./dez. 2005 275
cionais até julho de 2005. Segundo
o ministro, a FIA deixou claro que
o Brasil seria excluído do circuito
da Fórmula 1, caso a MP não fosse
editada, permitindo que as escude-
rias tivessem a logomarca de cigar-
ros estampadas em seus veículos
durante o Grande Prêmio Brasil, re-
alizado no dia 6 de abril de 2003,
em São Paulo. Diante da ameaça, o
Governo teria levado em considera-
ção os empregos gerados pelo even-
to, a imagem do Brasil que um GP
projeta no exterior e a situação ju-
rídica complexa de um eventual
rompimento de contrato.17
Decisões semelhantes assumidas
pelo governo contra a saúde conti-
nuaram a ser tomadas como aque-
las relacionadas à liberação da ex-
portação da soja transgênica, bem
como o seu plantio, à importação
de pneus usados e às tentativas de
desobedecer à Emenda Constitucio-
nal 29 durante a elaboração das
propostas orçamentárias. Aliás, as
manobras para desviar recursos do
SUS vinham se configurando desde
que o Presidente e o seu Ministro
da Fazenda discutiram um acordo
com os governadores que permiti-
ria gastar livremente 20% das recei-
tas, ou seja, possibilitando a des-
vinculação dos recursos de saúde e
educação nos orçamentos dos esta-
dos18. E o Ministro da Fazenda con-
siderava natural o pleito dos gover-
nadores já que a União assim pro-
cedia: “Se nós aplicamos a DRU
(Desvinculação de Receitas da
União), por que seríamos contra que
eles (governadores) apliquem?” 19.
tra a saúde, urdido pelo Presidente
e seu Ministro da Fazenda:
É importante que se diga que o SUS,
e mesmo os seus nobres princípios bási-
cos, não são fruto de um consenso, mas
de um longo caminho de batalhas en-
frentadas por todos aqueles que, ao lon-
go das duas últimas décadas, coloca-
ram as questões de saúde pública aci-
ma das motivações políticas, ideológi-
cas, partidárias e corporativas (...). A
mais recente e expressiva vitória do
SUS se deu com a aprovação da emen-
da 29, no ano de 2000, pelo Congresso
Nacional. A emenda vincula as recei-
tas da União e de Estados e municípios
a gastos na área de saúde. Sua apro-
vação foi resultado de uma ampla mo-
bilização da sociedade civil, de parla-
mentares e gestores em todo o Brasil
(COSTA, H., 2003, p. A 3). 20
A postura do Ministro, desta vez,
provocava certo alento. Seu discur-
so enfatizava o fortalecimento da
descentralização, a responsabilida-
de partilhada, a melhoria do aces-
so e a qualidade do atendimento,
não a desresponsabilização sobre o
financiamento. Mas o Ministro,
Dessa vez, o Ministro da Saúde
reagiu diante de mais um golpe con-
O GOVERNO CONTINUA COMPROMETENDO AS
POLÍTICAS DE SAÚDE, TAL COMO OCORREU
DURANTE A ELABORAÇÃO DAS PROPOSTAS
ORÇAMENTÁRIAS NOS ANOS SEGUINTES
17 O ministro disse que, apesar de ser produto das pressões da FIA, a medida provisória teria pontos positivos. Dentre eles, o dispositivoque possibilita a transmissão de mensagens gratuitas, durante os eventos esportivos, com advertências sobre os malefícios do fumo. Emseu depoimento, Humberto Costa apresentou uma série de propostas para aperfeiçoamento da MP. Ele sugeriu, por exemplo, a proibiçãoda comercialização de produtos derivados do tabaco em estabelecimentos de livre acesso para menores de 18 anos. “A proibição atingiriapontos de venda como supermercados e mercearias e seria regulamentada pelas prefeituras no prazo máximo de dois anos”. Fonte:Agência Câmara.18 Governo libera Estados para reduzir verbas da área social. Para conseguir o apoio dos governadores às reformas tributária e daPrevidência, o presidente Luiz Inácio da Silva fechou um acordo que desobriga os Estados de aplicarem 20% de suas receitas em setorescomo educação e saúde. A Tarde, 1/07/03.p.1. Acordo autoriza Estados a gastar menos no social. Folha de São Paulo, 1/07/03.pA 1.19 A Tarde, 1/07/03.p.14. Aécio defende desvinculação em Estados: “mas quando veio à tona que os Estados poderiam cortar recursos daeducação e da saúde, as bancadas na Câmara ligadas às questões sociais reagiram. E em uma reunião da última quarta-feira na casa dopresidente da Câmara, João Paulo Cunha (PT), com a presença do ministro José Dirceu (Casa Civil), essa permissão aos estados foirechaçada”. Folha de São Paulo, 5 de junho de 2003.20 Costa, H. Em defesa da saúde. Folha de São Paulo, 6 de julho de 2003. P.A 3.
TEIXEIRA, Carmen Fontes & PAIM, Jairnilson Silva
276 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-283, set./dez. 2005
mais uma vez, se equivocara. O
governo continuava comprometen-
do as políticas de saúde, tal como
ocorreu durante a elaboração das
propostas orçamentárias nos anos
seguintes. Fatos políticos importan-
tes como a implementação da Re-
forma Psiquiátrica21, com base na
Lei 10.216/2001, e a manifestação
pioneira pela assinatura da Conven-
ção Quadro contra o Tabagismo22
não chegaram a sobrepor-se aos
efeitos negativos daquele “pacote de
abril” 23 e das manipulações ardilo-
sas dos recursos do SUS. As políti-
cas de saúde executadas nos primei-
ros meses de gestão, apesar de coe-
rentes com o programa do candida-
to, sofreram sérios constrangimen-
tos políticos e econômicos (MEN-
DONÇA et al., 2005).
Tal como nos governos anterio-
res, em que a área econômica do-
minava com sua política moneta-
rista, enquanto a gestão da saúde
tentava avançar nas franjas do pos-
sível, o primeiro ano do governo
Lula encontrou no Ministério da
Saúde um dos poucos espaços onde
a equipe dirigente procurava hon-
rar compromissos históricos, mes-
mo diante das limitações orçamen-
tárias e dos estratagemas de seg-
mentos do governo. Era possível
notar esforços para a gestão parti-
cipativa, a exemplo da antecipação
da convocação da 12ª Conferencia
Nacional de Saúde e a elaboração
do Plano Nacional de Saúde que exi-giu várias reuniões e seminários noâmbito do MS. Todavia, não foi pos-sível lograr a consolidação de umProjeto de Governo em Saúde mais“robusto”, de modo que o discursooficial ficou limitado a algumaspropostas cujo conteúdo parece re-
ção à saúde da população, não pa-
recem suficientes para produzir
mudanças na forma de organização
dos serviços, muito menos nas con-
dições de saúde e seus determinan-
tes.
O ano encerrou-se com a reali-
zação da 12a. Conferência Nacional
Saúde Sérgio Arouca, precedida de
conferências municipais e estadu-
ais. Pela primeira vez na história
das conferências nacionais o Minis-
tério da Saúde explicitou suas con-
cepções e diretrizes mediante docu-
mento prévio contemplando dez ei-
xos temáticos. Ainda que em alguns
tópicos insinuasse certo dirigismo
sobre movimentos sociais, o docu-
mento base tinha a possibilidade de
facilitar a discussão de grandes te-
ses, talvez no sentido de evitar a
reprodução das queixas e denúnci-
as locais que chegavam às confe-
rências nacionais. Tal propósito, en-
tretanto, não foi alcançado, impon-
do aos relatores um trabalho insa-
no para sistematizar centenas de
propostas apresentadas no evento,
o que impediu, inclusive, a vota-
ção do seu relatório final. A alter-
nativa criada foi a realização de con-
sultas aos delegados e a aprovação
fletir mais uma preocupação com a“marca” e o marketing do que como avanço da Reforma Sanitária. Al-gumas iniciativas, apesar de inci-direm sobre aspectos importantesdas carências e necessidades de aten-
... O DISCURSO OFICIAL FICOU LIMITADO AALGUMAS PROPOSTAS CUJO CONTEÚDO PARECE
REFLETIR MAIS UMA PREOCUPAÇÃO COM A“MARCA” E O MARKETING DO QUE COM O
AVANÇO DA REFORMA SANITÁRIA
21 Projeto de Lei instituindo o auxílio-reabilitação psicossocial para estimular a ressocialização de pessoas com transtornos mentaisegressas de longas internações. Contempla, ainda, a criação de mais 178 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) destinados a adultos,crianças e adolescentes a aos portadores de problemas mentais devidos ao álcool e outras drogas. Saúde, Brasil 87:3, junho de 2003.Assim foi lançada pelo Presidente da República, a política de saúde mental compreendendo o “incentivo-bônus” de R$ 200,00, destinadoa apoiar a reintegração sócio-familiar dos pacientes com alta hospitalar (“De volta para casa”). Brasil. Ministério da Saúde. Diretrizes eMetas do MS para 2003 – Andamento das Ações. 10 de julho de 2003.p.13.22 Brasil será o primeiro país a assinar a Convenção-Quadro. Veja, 10 de junho de 2003.23 Diante da “chantagem da FIA”, a MP autoritária faz merecer a alusão ao “pacote de abril” dos tempos do General Geisel, quando oCongresso foi fechado para ser instituída a figura do “senador biônico” que alteraria a composição do colégio eleitoral para indicar opróximo general-presidente.
A política de saúde no governo Lula e a dialética do menos pior
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-2832, set./dez. 2005 277
do relatório pelo Conselho Nacional
de Saúde meses depois.
Do ponto de vista político, cabe
registrar a presença do Presidente
da Organização Mundial da Saúde
(OMS), na cerimônia de abertura da
Conferência, apesar da ausência do
Presidente da República e dos mi-
nistros de Estado convidados, mes-
mo com o rigoroso esquema de se-
gurança montado, nunca visto nas
conferências anteriores. De última
hora, surgiu o Vice-Presidente da
República na solenidade, tendo o
Presidente Lula só aparecido no úl-
timo dia do evento para fazer o dis-
curso do encerramento.
A IMPLEMENTAÇÃO
DAS POLÍTICAS
Embora o Ministro da Saúde te-
nha declarado, publicamente, que
o Ministério apoiaria as conclusões
da 12a. CNS, nos anos seguintes, o
governo já não parecia ter o mesmo
ímpeto para iniciar processos e pro-
jetos. Uma das exceções foi a Re-
forma Psiquiátrica que alcançou
novo ânimo através do Programa
Anual de Reestruturação da Assis-
tência Psiquiátrica Hospitalar no
SUS – 2004 24, estimando que 15
mil pacientes pudessem voltar à so-
ciedade.25 Foram implantados 218
novos centros de atenção psicosso-
cial (CAPS) e 160 novas residências
terapêuticas, enquanto o programa
De Volta para a Casa devolveu 1264
pacientes para o convívio social. A
relevância dessa política pode ser
constatada pela redução de 5.519
leitos psiquiátricos entre 2003 e ju-
nho de 2005 26.
medicamentos essenciais27, um edi-
torial analisava a economia e des-
tacava a meta de inflação de 5,5%
em 2004 e 4,5% em 2005, a taxa de
câmbio flutuante, com livre movi-
mento de capitais, e o compromis-
so com o superávit fiscal de 4,25%
do PIB28. E se havia, ainda, algu-
ma esperança entre os otimistas
quanto a uma fase dois do gover-
no, o próprio presidente deu-lhes um
choque de realidade: “Não mexo na
economia, não tem volta. O cami-
nho está tomado e ponto final”29.
Mas, como afirmou um dos cola-
boradores do governo Lula,
sempre há os que buscam razões,
mesmo quando a irracionalidade vai
sendo percebida por quase todos, para
justificar as opções de um governo que
se deseja defender (POLETTO, 2005
p.81).
Restou para a saúde conformar-
se com as iniciativas de grande ape-
lo publicitário, tais como o Brasil
Sorridente, a Farmácia Popular e o
SAMU (Serviço de Atendimento Mó-
vel de Urgência). Assim, a política
de saúde bucal recebeu uma priori-
dade por parte do Ministério da Saú-
de, com um investimento previsto
24 PTGM - 60 de janeiro de 200425 Até o final de 2004, o MS esperava expandir para 650 o número de Caps implantados no país: “A ampliação da rede será fundamentalpara continuar crescendo o número de atendimentos realizados nos centros. Em 2002, foram 389,8 mil. No ano passado, ultrapassou amarca de 3,69 milhões de atendimentos , quase dez vezes mais em relação ao ano anterior www.saude.gov.br Brasília 2/2/04. Radis 19 -Mar/2004 - p.14. RADIS, n. 5 abril, 2004.. http://portalweb01.saude.gov.br/saude/23/06/04. http://portalweb01.saude.gov.br/saude/29/06/04.26 Ministério da Saúde. Balanço da Saúde, janeiro de 2003 a julho de 2005. 143p.27 Humberto Costa. Ver :Folha de São Paulo, 19/9/04.28 Editorial Folha de São Paulo (19/9/04).29 Frase em aspas atribuída ao Presidente Lula durante reunião com ministros na semana de 22/11/2004. Ver: Luiz Cláudio Cunha e WeillerDiniz. Coalizão X Colisão. Isto é. No. 1834, 1o de dezembro/2004, p.37.
Mas, no mesmo dia em que o
Ministro da Saúde anunciava o
compromisso com a ampliação do
atendimento e melhoria da qualida-
de dos serviços no SUS, com o com-
bate às endemias e com o acesso a
RESTOU PARA A SAÚDE CONFORMAR-SE
COM AS INICIATIVAS DE GRANDE APELO
PUBLICITÁRIO, TAIS COMO O BRASIL
SORRIDENTE, A FARMÁCIA
POPULAR E O SAMU
TEIXEIRA, Carmen Fontes & PAIM, Jairnilson Silva
278 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-283, set./dez. 2005
de R$ 1,3 bilhão para atendimento
básico e especializado. Em pouco
mais de dois anos foi duplicado o
número de equipes de saúde bucal,
passando de 4.261, em dezembro de
2002, para 10.628, em junho de
2005. Sob a marca foram criados
137 Centros de Especialidades Odon-
tológicas em 21 estados, possibili-
tando algum acesso à cirurgia oral,
endodontia e periodontia.30
No caso do chamado programa
Farmácia Popular do Brasil, trata-
se da concretização de um item da
campanha eleitoral, iniciado em ju-
nho de 2004, com grande apelo de
marketing, na contramão da pro-
posta da farmácia básica que vinha
sendo implantada na rede pública
de serviços de saúde, conforme a
política nacional de medicamentos
definida desde 1998. No que se re-
fere ao SAMU, representou um in-
vestimento de R$ 167 milhões, com
um repasse mensal de R$ 11,9 mi-
lhões para 275 municípios de vinte
estados e integra a Política Nacio-
nal de Atenção às Urgências desde
setembro de 2003 31.
O governo aprovou o Estatuto do
Idoso buscando suprimir o proces-
so asilar e atuar na promoção e re-
cuperação da sua saúde32, e apre-
sentou a Política Nacional de Aten-
ção Integral à Saúde da Mulher
(2004-2007). 33 Nesse particular,
cabe registrar a importância do
lançamento de duas normas técni-
cas para o atendimento às vítimas
de violência sexual e para atenção
humanizada ao abortamento34.
Quanto à saúde da criança e do ado-
lescente, o MS buscou articular o
Programa Saúde e Prevenção nas
Escolas ao Programa Nacional de
DST/Aids, além da educação sexu-
al nas escolas, tentando prevenir
DST e gravidez na adolescência.35
A implementação da Política Naci-
onal de Alimentação e Nutrição
contou com distribuição de suple-
mentos medicamentosos de sulfa-
to ferroso para crianças, gestantes
e mulheres.36 Em relação à saúde
do trabalhador, o MS tem procu-
rado implantar a Rede Nacional de
Atenção Integral à Saúde do Tra-
balhador (RENAST), com novas uni-
dades de saúde do trabalhador sob
gestão dos municípios e criação de
centros colaboradores, ligados a
universidades, laboratórios e ins-
tituições de ensino e pesquisa 37.
Finalmente, cabe mencionar
ações relativas à saúde da popu-
lação negra, dos quilombolas, dos
indígenas e dos assentados; ações
de vigilância sanitária e controle
de doenças transmissíveis e do ta-
bagismo; ciência e tecnologia;
transplantes; formação de recursos
humanos; e promoção da saúde
(Brasil Saudável)38 . Porém, um dos
30 Balanço da Saúde, 2005.op. cit.31 Cabe ainda registrar a Política de Qualificação da Atenção à Saúde no Sistema Único de Saúde, Qualisus/Emergência, contemplandohospitais de emergência, e o credenciamento de 2.749 novos leitos de UTI até julho de 2005. op cit.32 Jornal Folha de São Paulo (05/ 2003); Revista do Conselho Federal de Medicina (01/2003). Radis 02/2004 p. 6. http://www.quadranews.com.br/index.php?materia=7423.33 www.saude.gov.br Brasília, acesso em 27 de maio de 200434 Balanço da Saúde, 2005 op. cit.35 http://portalweb01.saude.gov.br/saude/aplicacoes/noticias/noticias_detalhe.cfm?co_seq_noticia=8974 acesso em 26/03/200436 http://portal.saude.gov.br/saude/ acesso em 04/03/04.37 http://portal.saude.gov.br/saude acesso em 05/03/04.38 Merece destaque, nesse particular, a formalização da Política Nacional de Promoção da Saúde no último ano do governo. Ver: Brasil.Ministério da Saúde. Política Nacional de Promoção da Saúde. Portaria No. 687. De 30 de março de 2006. Aprova a Política Nacional dePromoção da Saúde. Diário Oficial da União, No. 63, 31/3/2006. Disponível em: www.saude.gov.br/svs39 Balanço da Saúde, 2005 op cit.
...UM DOS FEITOS MAIS SIGNIFICATIVOS DA
GESTÃO FOI A AMPLIAÇÃO DA COBERTURA DO
PROGRAMA DE SAÚDE DA FAMÍLIA (PSF)...
A política de saúde no governo Lula e a dialética do menos pior
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-2832, set./dez. 2005 279
feitos mais significativos da gestão
foi a ampliação da cobertura do Pro-
grama de Saúde da Família (PSF),
com 22.683 equipes, em junho de
2005 (crescimento de 31,89%) 39, e
atingindo 25.141 em 2006 em 5.028
municípios, ou seja, mais da meta-
de da população brasileira.
Apesar desse conjunto de ações
produzidas pelo MS, a Subsecreta-
ria de Comunicação Institucional da
Secretaria Geral da Presidência da
República, ao realizar o balanço dos
30 meses de gestão, valorizava ou-
tros aspectos privilegiando o mode-
lo médico hegemônico:
A decisão política do Governo Fede-
ral de optar por mais recursos (...) fez
com que a saúde pública no Brasil pro-
movesse mudanças evidentes, como o
setor nacional de transplantes, que con-
seguiu, de janeiro de2000, a maio de
2005, realizar 33.189 transplantes de
órgãos e tecidos (...); implantação de
94 Serviços de atendimento Móvel de
Urgência (SAMU), envolvendo 606
municípios, com 901 ambulâncias dis-
tribuídas e cobertura populacional de
mais de 82 milhões de pessoas (...); cri-
ados 2.260 novos leitos em Unidades
de Tratamento Intensivo (UTIs)40.
COMENTÁRIOS FINAIS
Não sendo monolíticos nem o
Estado nem os governos, mas cris-
talização dinâmica de correlação de
forças políticas e culturais, cabe
ressaltar a possibilidade de produ-
ção de fatos políticos relevantes
mesmo por um setor não prioriza-
do pelo governo41. Se fosse possí-
vel avaliar a política de saúde na
conjuntura exclusivamente pelas
ações do Ministério da Saúde, po-
der-se-ia dispor de uma apreciação
positiva, mesmo faltando recursos
e ousadia para intervenções mais
amplas. A realização da Conferên-
cia Nacional de Saúde Sérgio Arou-
ca42, da III Conferência Nacional de
Saúde Bucal e da II Conferência Na-
cional de Ciência, Tecnologia & Ino-
vação em Saúde43 indicavam o com-
promisso do gestor federal do SUS
com o controle social. A ampliação
da atenção básica através do PSF,
os esforços para a formulação de
políticas para a assistência hospi-
talar, urgências e a chamada ‘mé-
dia e alta complexidade’, além da
elaboração e aprovação do Plano
Nacional de Saúde e dos Pactos pela
Saúde,44 também podem ser consi-
deradas intervenções relevantes
para o SUS.
Contudo, iniciativas como Far-
mácia Popular e Brasil Sorridente
,que compuseram a publicidade do
governo na saúde, reforçam a ten-
dência de privilegiar projetos de
impacto na mídia em detrimento de
políticas públicas comprometidas
com a radicalização da RSB. Por-
40 Ver; em questão. Balanço de 30 meses de governo - Parte 3 Especial Nº 14 - Brasília, 11 de outubro de 200541 Saúde não merecia destaque em publicações do governo nem no discurso dos dirigentes.Ver: em questão, Balanço - 36 meses de governo - Parte 3. No.17, 8 de fevereiro de 2006.42 www.ensp.fiocruz.br/publi/radis (04/03/2002), www.ensp.fiocruz.br/publi/radis (03/03/2003).43 Brasil. Ministério da Saúde. Saúde no Brasil. Contribuições para a Agenda de Prioridades de Pesquisa. Brasília, 2004. 306p.44 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Departamento de Apoio à Descentralização. Coordenação-Geral de Apoio à GestãoDescentralizada. Diretrizes operacionais dos Pactos pela Vida, em Defesa do SUS e de Gestão. Ministério da Saúde: Brasília, 2006. 76p.45 Somente no último ano de gestão foi criada por decreto presidencial, no âmbito do Ministério da Saúde, a Comissão Nacional deDeterminantes Sociais da Saúde (CNDSS), dispondo de um grupo de trabalho com representantes de vários ministérios (Decreto de 13 demarço de 2006). DOU, No. 50:21, 14 de março de 2006.
....AVALIAR A POLÍTICA DE SAÚDE NA
CONJUNTURA EXCLUSIVAMENTE PELAS AÇÕES
DO MINISTÉRIO DA SAÚDE, PODER-SE-IA
DISPOR DE UMA APRECIAÇÃO POSITIVA, MESMO
FALTANDO RECURSOS E OUSADIA PARA
INTERVENÇÕES MAIS AMPLAS
TEIXEIRA, Carmen Fontes & PAIM, Jairnilson Silva
280 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-283, set./dez. 2005
tanto, se saúde for considerada a
partir da conceituação expressa na
Constituição da República, a polí-
tica de saúde realizada pelo gover-
no Lula foi desastrosa: não se
avançou na ação intersetorial45; o
desemprego e a violência continu-
aram negando o direito à vida; fal-
tam evidências de prioridade para
a saúde; e o setor não foi poupado
nos cortes dos gastos públicos nem
no contingenciamento de verbas já
garantidas pelo orçamento46. En-
quanto o SUS enfrentava dificulda-
des, o sistema de assistência médi-
ca supletiva (SAMS) ganhou ânimo
novo durante o governo Lula, cres-
cendo 21%47.
Portanto, a continuidade das
políticas de ajuste macro-econômi-co e as reformas da previdência48 e
tributária contrastam com a debi-
lidade das políticas sociais49. Os
que desde o primeiro ano de ges-
tão tiveram a coragem de expor pu-
blicamente suas críticas foram acu-
sados de julgar “com crescente se-
veridade o governo Lula”50, ainda
mais diante da simpatia desperta-
da por um ex-metalúrgico carismá-
tico51. Alguns consideravam a crí-
tica precoce e precipitada, já que
muitos acreditavam na chamada
“fase dois” ou de reorientação do
rumo do governo:
“Não faz sentido dizer que o jogo
acabou sugerindo que o jogo poderia
ser jogado de outra maneira, quando
isso não é verdade”.52
Mas a possibilidade de redefini-
ção da política econômica já pare-
cia, desde o início do governo, mui-
to improvável. Seja por uma impos-
sibilidade lógica 53, seja pelo com-
promisso da ‘Carta aos Brasileiros’
e do Ministério da Fazenda com a
sua manutenção, seja pelas indica-
ções contidas no Plano Pluri-Anual
(PPA) com a reiteração da meta de
superávit primário de 4,25% até o
final do governo54. Assim, desde
aquela época, a análise do sociólo-
go Chico de Oliveira apresentava
uma conclusão desconcertante:
A luta foi ganha pela continuidade.
A vertente da ruptura perdeu (...) Para
falar a verdade, o programa do Serra
era melhor do que o do Lula. Mais bem
estruturado, mais claro. Talvez por isso
ele tenha perdido 55.
No interior do governo, alguns
reconheciam que a opção por uma
46 No final de 2005, a MP 261 tentou tirar R$ 1,2 bilhão da saúde para o Fome Zero, além de recursos para hospitais das Forças Armadas (11/2005), etransferiu R$ 186 milhões para o Ministério das Cidades tratar esgotos. Ver: Westin, R. Brecha na lei tira R$ 9 bi da saúde. O Estado de São Paulo, 28/11/2005. Ver, ainda: Entrevista: Financiamento do SUS é o grande desafio. Medicina CFM, 156:20-22, agosto/setembro/outubro 2005; Ministério da Saúdeinvestiu apenas 5,59% de seu orçamento. Medicina CFM, 156:23, agosto/setembro/outubro 2005; 2o Encontro Nacional do Ministério Público em Defesada Saúde. Palmas para a luta do MP! Radis, 39:14-17, novembro de 2005.47 Entre 2000 e 2002 o SAMS esteve estacionado na faixa de 35 milhões de beneficiados de planos de saúde, voltando a crescer na gestão petista:37.103.604 em 2003; 39.567.190 em 2004; e 42.452.067 em dezembro de 2005. www.ans.gov.br/portalv4/site/home/default.asp (acesso em 11/4/2006).48 “Cadê a ‘ampla e democrática negociação’ tanto sobre reforma trabalhista como sobre reforma previdenciária?” (item 56 do Programa de Governo –Coligação Lula Presidente). Rossi, C. Folha de São Paulo, 1º de julho de 2003. P. A 2.49 Não confundir políticas sociais com programas de assistência social (Pro poor programs) ou programas de transferência condicionada (PTC), prescritospelos organismos internacionais, a exemplo do Bolsa Família.50 Carta aos Petistas (Flávio Koutzii, deputado estadual, PT-RS, 29/6/03).51 “Lula atingiu aquele estágio em que não precisa provar nada, apenas que está realmente preparado para ser o presidente que ele prometeu ser e que todosnós também queremos que ele seja”. Cony, C.H. O presidente que todos desejamos. Folha de São Paulo, 18/7/03. p. E 10.52 Ver o cientista político Fábio Wanderley dos Reis (UFMG) na Folha de São Paulo, 8/06/03p.A.8.53 Segundo o filósofo Paulo Arantes, “uma vez adotada a atual política macroeconômica, que não é especificamente brasileira, mas mundial, a saída é umaimpossibilidade lógica (...) Não posso dizer para os mercados, para os investidores, para banco internacional, para a administração americana: ‘agora quevocês viram como sou eficiente, de absoluta confiança, que não vou fazer nenhuma irresponsabilidade na condução da política macroeconômica, agoraque vocês podem acreditar definitivamente em mim, eu vou mudar”. Folha de São Paulo, 8/06/03p.A.8.54 O Ministro Palocci “elevou a meta de superávit primário (a economia de receitas destinadas a pagar os juros da dívida) de 3,75% para 4,25% do PIB”,comprometendo-se a “manter esse patamar mínimo ao longo de todo o mandato de Lula”, apesar das divergências internas da área econômica: a alaliberal da Fazenda X intervencionistas do Planejamento (Mantega) e do Desenvolvimento (Furlan). Ver: Patú, G. Ajuste compromete “espetáculo”. Folhade São Paulo, 29 de junho de 2003, p. A.4.55 Folha de São Paulo, 8/06/03p.A.8.
...A CONTINUIDADE DAS POLÍTICAS DE AJUSTE
MACRO-ECONÔMICO E AS REFORMAS DA
PREVIDÊNCIA E TRIBUTÁRIA CONTRASTAM COM
A DEBILIDADE DAS POLÍTICAS SOCIAIS...
A política de saúde no governo Lula e a dialética do menos pior
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-2832, set./dez. 2005 281
política monetarista provocava au-
mento do desemprego e redução daatividade econômica, mas, por fal-ta de alternativa a tal política oupor insuficiência de poder para re-formulá-la, admitiam que interven-ções nas franjas do capitalismo se-riam capazes de retomar o desen-volvimento do país:
Lula está procurando combinar
uma política macroeconômica ortodo-
xa com políticas mesoeconômicas que
vão na direção oposta. Enquanto man-
tém juros altos e oferta de crédito ban-
cário restrita, o presidente promove a
liberação das cooperativas de crédito e
a ampliação do microcrédito. O resul-
tado esperado seria a expansão de cré-
dito a juros mais baixos para pequenos
e microempresários, enquanto as em-
presas de maior tamanho continuari-
am tendo de lidar com uma política mo-
netária restritiva. Lula aposta na vol-
ta do crescimento pela expansão dos pe-
quenos, ou seja, com distribuição de
renda. ( SINGLER, 2003 p.10)56
Mas se a política econômica au-mentava o desemprego, produziadoenças e violências, além de com-prometer os serviços públicos, comoavançar no SUS, movido a gente ea recursos públicos? Como implan-tar uma “carreira do SUS”, quandoos servidores públicos eram sata-
nizados, responsabilizados pelo su-posto déficit da previdência e ame-açados nos seus direitos como tra-balhadores que assinaram contra-tos sob determinadas regras, en-quanto estas eram mudadas sem asua participação?
Mesmo que as políticas sociaisnão apresentassem mais retrocessose conseguissem se proteger das in-vestidas do Banco Mundial e dosassessores da área econômica, her-dados do governo FHC, contra a
universalização estabelecida pelaConstituição da República, a políti-ca econômica continuava produzin-do desemprego, desigualdades, es-tagnação e vulnerabilidade externa.Esses tempos já eram anunciadosno documento do Secretário de Po-
lítica Econômica do Ministério daFazenda, em abril de 2003, regis-trando um controle severo dos gas-tos públicos até o final do governo:
“Uma das tarefas do governo é a
execução de uma política fiscal sólida,
nos próximos ano,s que traga consis-
tência de médio e longo prazo às con-
tas públicas, e uma melhoria da quali-
dade do ajuste fiscal realizado nos úl-
timos anos (p.7)(...).No que se refere a
políticas sociais, é fundamental que se
implementem reformas que corrijam
grandes distorções no que tange à es-
trutura tributária do governo e à foca-
lização e à eficácia dos programas so-
ciais”57.
Para o governo as medidas ado-tadas se faziam imprescindíveis,pois considerava que pior seria orisco de uma desorganização daeconomia. E o presidente, que de-sejava um crescimento com facehumana58 e anunciava, a cada ano,o espetáculo do crescimento, con-tentou-se por ter evitado o risco dedescontrole inflacionário e ter obti-do maioria parlamentar para apro-vação das propostas de reformasenviadas para o Congresso Nacio-nal, mediante uma articulação po-lítica com métodos escusos. Estespassaram a ser utilizados paramanutenção da base de apoio ao
56 Entrevista Paul Singer. A Tarde, 9/6/03.p.10.57 Ministério da Fazenda. Política Econômica e Reformas Estruturais.Brasília, abril de 2003. 95p. Esta mesma equipe volta a atacar ogasto social dedicando mais de três páginas à saúde com a seguinte conclusão: “Embora a proporção de gastos com saúde destinados aoatendimento hospitalar e curativo tenham diminuído nos últimos anos, o seu nível ainda é relativamente alto” (p.33).Ver: Ministério da Fazenda. Secretaria de Política Econômica. Gasto Social do Governo Central: 2001 e 2002. Brasília, novembro de2003.47p.58 Lula quer “crescimento com face humana” .Folha de São Paulo, 3 de julho de 2003.p. B 10. Ver também: ‘Espetáculo do crescimento’ nãoocorre neste ano, diz BC. Folha de São Paulo, 1/07/03 p.A 1. .
COMO IMPLANTAR UMA “CARREIRA DO
SUS”, QUANDO OS SERVIDORES PÚBLICOS
ERAM SATANIZADOS, RESPONSABILIZADOS PELO
SUPOSTO DÉFICIT DA PREVIDÊNCIA...
TEIXEIRA, Carmen Fontes & PAIM, Jairnilson Silva
282 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-283, set./dez. 2005
governo e desencadearam a crisepolítica conhecida como o escânda-lo do ‘mensalão’, que marcou o anode 2005 e progrediu em 2006. 59 Asreuniões do Congresso na espiral deCPIs representaram a face mais vi-sível do espetáculo de arrogância edesprezo pelos princípios e valoresrepublicanos60. E se a efetividadedas políticas sociais é reconhecidaa partir dos efeitos observados (in-dicadores sociais), as evidências,também, não são alentadoras:
A julgar pelo que foi realizado até
agora, a política de Lula segue a das
administrações anteriores (...). Ao mes-
mo tempo, a ênfase da atividade go-
vernamental parece ter se deslocado das
políticas universalizantes e habilitado-
ras, como educação e saúde, para os
programas assistenciais destinados
aos mais pobres, como o Bolsa-Família
(ALMEIDA, 2004, p.16-17).
Do balanço mais geral, fica aimpressão de um governo sem fisi-onomia, sem coluna vertebral, ca-racterizado pela rendição à políticaeconômica neoliberal e pela imple-mentação de um conjunto de medi-das de cunho populista, configuran-do uma situação apoiada pelos ex-tremos da sociedade brasileira, úni-cos a se beneficiarem com a manu-
tenção dessa situação, além dosquadros partidários que se deslum-braram com o exercício do poder esuas benesses: de um lado, os ban-queiros, ínfima minoria de privile-giados, e, do outro, a massa demiseráveis que continua apostan-do em Lula por agradecimento àsmigalhas recebidas por meio daspolíticas assistencialistas.
Melancólica a primeira experi-ência de gestão do Estado capita-lista no Brasil por forças conside-radas de esquerda. O ‘transformis-
mo’ brasileiro há tempos se apre-sentou como modernização conser-vadora, com revolução produtivasem revolução burguesa. Recorreuà ditadura militar (1964-1985) como‘via prussiana’, adotando o endivi-
damento externo como “solução” eabrindo as portas à financeirizaçãoda economia e das contas do Esta-do. No pós-85, possibilitou a emer-gência de uma nova classe socialque se estrutura sobre
(...) técnicos e economistas “dou-
blés” de banqueiros (núcleo duro do
PSDB) e trabalhadores transformados
em operadores de fundos de previdên-
cia (núcleo duro do PT) com controle do
acesso aos fundos públicos e conheci-
mento do “mapa da mina (OLIVEIRA,
2003 p. 147).
É possível creditar a essas for-ças aquilo que alguns autores (COS-TILLA, 2001; IVO, 2001). chamamde estatização de partidos políticos,destituição do social, reforma neo-liberal do Estado e esvaziamento dademocracia. O governo Lula, nocontinuísmo da política econômicade FHC (que tanto deplorou) e namesmice da gestão das políticassociais, brindou os brasileiros nãocom a dialética do possível, 61 mascom a dialética do menos pior.
Manter e consolidar conquistashistóricas permanecem como desa-fios, inclusive diante das modifica-ções da equipe dirigente do Minis-tério da Saúde62. Ao mesmo tempo,a natureza suprapartidária do mo-
59 O momento da verdade. Isto é, 19 de abril de 2006, p.28-32.60 Menos de duas semanas antes das eleições presidenciais a sociedade brasileira viu-se surpreendida com mais um escândalo político: ochamado, pela mídia, “dossiêgate”. Ver: Sismo sob o PT. Folha de São Paulo, 25 de setembro de 2006. A2 (Editoriais).61 Expressão utilizada por Campos (1988:189) para questionar a política de setores de esquerda que ocuparam posições de governo naNova República.62 Como parte das manobras realizadas com o intuito de administrar a crise e tentar levar o governo até o final, a reforma ministerial feitaàs pressas em 2005, contemplou a substituição do Ministro Humberto Costa, pelo Deputado Saraiva Felipe, do PMDB. Tal episódio revelou,entretanto, o esforço dos atores envolvidos com o movimento da Reforma Sanitária em continuar disputando, palmo a palmo, o terrenominado da política brasileira. Mesmo uma articulação partidária de caráter fundamentalmente fisiológico, contemplou um personagemvinculado ao projeto histórico da Reforma Sanitária. Assim, diversos atores continuam se revezando no espaço institucional, mesmodepois da saída do Ministro Saraiva Felipe, em 2006, para evitar o mal maior, no caso, a saúde voltar a ser “terra de ninguém”, presa doclientelismo, da irresponsabilidade e da corrupção endêmica.
...FICA A IMPRESSÃO DE UM GOVERNO SEM
FISIONOMIA, SEM COLUNA VERTEBRAL,CARACTERIZADO PELA RENDIÇÃO À POLÍTICA
ECONÔMICA NEOLIBERAL E PELA
IMPLEMENTAÇÃO DE UM CONJUNTO DE
MEDIDAS DE CUNHO POPULISTA ...
A política de saúde no governo Lula e a dialética do menos pior
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-2832, set./dez. 2005 283
vimento sanitário brasileiro ainda
permite pensar a Reforma Sanitária
como uma utopia concreta, um pro-
jeto civilizatório que
pretende produzir mudanças dos
valores prevalentes na sociedade bra-
sileira, tendo a saúde como eixo de
transformação e a solidariedade como
valor estruturante (CARTA DE BRASÍ-
LIA 2005) 63
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MORONI, José Antônio
284 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005
ARTIGOS ORIGINAIS / ORIGINAL ARTICLES
O direito à participação no Governo LulaThe right to participation in the Lula Government
José Antônio Moroni1
Recebido: Dez./2006
Aprovado: Mar./2007
1 Filósofo; é membro do colegiado de ges-
tão do Instituto de Estudos Socioeconô-
micos (INESC), da executiva nacional da
Associação Brasileira de Organizações Não
Governamentais (ABONG), secretário nacio-
nal do FNPP (Fórum Nacional de Partici-
pação Popular) e membro do CEBES.
E-mail: moroni@inesc.gov.br
RESUMO
Pretende-se analisar como o Governo Lula tratou a questão da
participação, tendo como olhar especial a criação e a reformulação de
conselhos de políticas públicas nacionais, a realização de conferências
nacionais e o processo participativo de debate do Plano Plurianual (PPA
2004-2007), ocorrido em 2003. A análise foca o sistema descentralizado e
participativo, sem deixar de reconhecer outras formas de participação e
sua importância. Procura-se trazer algumas questões para os movimentos
sociais e as organizações que se propõem a interferir de forma propositiva
na deliberação das políticas públicas, e, portanto, construir a participação
como um direito humano fundamental.
PALAVRAS-CHAVE: Participação no Poder; Conselho de Política Pública;
Conferências Nacionais.
ABSTRACT
This article intends to analyze how the Lula government has handled
the issue of participation, especially in terms of the creation and
reformulation of national public policy councils, the staging of national
conferences and the participative debate process of the Multi-Year Plan
(PPA 2004-2007) in 2003. The analysis focuses on the decentralized and
participative system, without failing to acknowledge other forms of
participation and their importance. It looks to drawn on some issues in
relation to social movements and organizations that purposefully
interfere in the resolution of public policies, and thus establish
participation as a fundamental human right.
KEYWORDS: Participation in power; Public Policy Council; National Conferences.
O direito à participação no Governo Lula
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005 285
INTRODUÇÃO
Homens e mulheres sempre lu-
taram para participar da esfera pú-
blica. Assim, além da igualdade e
da liberdade, a demanda por parti-
cipar sempre esteve presente nas
lutas sociais nos diferentes perío-
dos da historia e de diversas for-
mas. Por isso, participar significa
incidir politicamente nas questões
que dizem respeito à vida concreta
das pessoas, mas também, nos pro-
cessos de tomada de decisão do
Estado e dos governos, o que, por
sua vez, afeta sempre de uma for-
ma ou outra a vida concreta das
pessoas.
Ao longo dos tempos, as ‘dife-
renças’ entre as pessoas e grupos
sempre foram a origem das ‘desi-
gualdades’, por isso, quase sempre,
achamos que as duas coisas são a
mesma coisa. As estruturas de do-
minação e manutenção de privilé-
gios de uma classe ou de um grupo
sobre outros (status), que é a desi-
gualdade, têm como base as dife-
renças de etnia/raça, local de nas-
cimento ou de moradia, sexo, ori-
entação sexual, nacionalidade, etc.
e originaram formas muito diferen-
ciadas de participação e, em mui-
tas casos, de negação do próprio
direito a participar.
A própria idéia de participação
de todos e de todas como elemento
fundamental e constituinte do espa-
ço público foi abandonada em ra-
zão de seu potencial desestabiliza-
dor das estruturas de dominação.
A democracia passa a ser entendi-
da apenas como um método, ou
seja, um procedimento de escolha
dos representantes por meio de elei-
ções. Dentro dessa concepção, os
regimes políticos democráticos são
aqueles que seguem os procedimen-
resses dos ‘donos do poder’ que
suprimem a voz dos dominados,
criando a ilusão de que todos têm
as mesmas oportunidades e de que
as desigualdades entre as pessoas
têm origem nas diferentes capaci-
dades individuais ou depende de
sorte. Os mais bem-sucedidos seri-
am os mais capazes e talentosos.
Em especial nos países da Amé-
rica Latina, esta concepção de de-
mocracia e participação política li-
mitada, aliada a uma igualdade
estabelecida apenas do ponto de vis-
ta formal, esconde uma estrutura
de dominação e opressão construí-
da historicamente e perpetrada pelo
próprio Estado, que nunca foi de-
mocrático ou de fato público, mas
patrimonialista ao extremo, patri-
arcal e, no caso brasileiro, escra-
vocrata e burocrático.
UM POUCO DE HISTORIADA PARTICIPAÇÃO NO BRASIL
Em nosso país, sempre ocorre-
ram movimentos de resistência à
dominação e à apropriação do es-
paço e dos bens públicos e do pró-
prio Estado por interesses privados.
Recentemente, no final da déca-
da de 1970 e início dos anos 80, o
movimento social1 retomou a ques-
tão da democratização do Estado,
tos eleitorais e garantem certas li-
berdades e igualdades formais, para
que os/as ‘eleitores-clientes’ possam
escolher no mercado eleitoral a pro-
posta mais adequada às suas pre-
ferências racionais.
Essa redução da democracia e
da participação política a um pro-
cedimento formal atende aos inte-
A PRÓPRIA IDÉIA DE PARTICIPAÇÃO DE TODOS EDE TODAS COMO ELEMENTO FUNDAMENTAL E
CONSTITUINTE DO ESPAÇO PÚBLICO FOI
ABANDONADA EM RAZÃO DE SEU POTENCIAL
DESESTABILIZADOR DAS ESTRUTURAS DE
DOMINAÇÃO
1 Apesar de existirem vários e diversos movimentos sociais, usaremos a expressão’movimento socia’ no singular, pois não falamos de ummovimento específico mas de um conjunto de ações da sociedade civil que se materializou na organização de um movimento social amplo,com características, filosofias e concepções comuns – que se denominou ‘campo democrático e popular’ –, tendo como agenda política aconstrução do Estado Democrático e Social e o combate a todas as formas de desigualdades.
MORONI, José Antônio
286 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005
debatendo a seguinte questão: Que
mecanismos são necessários para
democratizar o Estado e torná-lo de
fato público? Na formulação desta
questão estava embutida a avalia-
ção de que a democracia represen-
tativa – via partidos e processo elei-
toral – não é suficiente para respon-
der às complexas necessidades da
sociedade moderna e da multiplici-
dade dos sujeitos políticos. Era ne-
cessário criar outros mecanismos de
participação que permitissem fazer
a expressão política desta multipli-
cidade emergir na esfera pública e,
ao mesmo tempo, influenciar as
decisões políticas.
Isso significava criar estratégi-
as e propostas para além da garan-
tia e efetivação de direitos civis,
políticos, sociais, econômicos e cul-
turais, permitindo e assegurando a
participação popular efetiva nas
políticas públicas e em todas as
decisões de interesse público. Por-
tanto, tornar a participação também
um direito humano fundamental,
fundante e estruturante dos demais
direitos.
No processo da Constituinte
(1986-88), essas concepções políti-
cas foram detalhadas e aprofunda-
das. O movimento social levou para
ela, além da luta pela democratiza-
ção e publicização do Estado, a ne-
cessidade do controle social, incor-
porando cinco dimensões: 1) formu-
lação; 2) deliberação; 3) monitora-
mento; 4) avaliação; e 5) financia-
mento das políticas públicas (orça-
mento público). A Constituição de
1988(BRASIL, 1988) transformou
essas questões em diretrizes de di-
versas políticas, em especial as cha-
madas políticas sociais.
O inciso II do artigo 204 da Cons-
tituição Federal (1988), que trata da
política pública de assistência so-
cial, por exemplo, diz: “participa-
Foi por ocasião da regulamenta-
ção dessas diretrizes constitucionais
que começaram a ser estruturados
espaços públicos institucionais
como os conselhos de políticas pú-
blicas e as conferências, mecanis-
mos que concretizam os princípios
constitucionais de democratização
e de controle social. A exceção é a
política de saúde, que incorporou a
participação na sua formulação
antes da Constituição de 1988.
Vale ressaltar que na política
econômica não se criou nenhum
mecanismo institucionalizado e
público de participação, assim
como não foi criado nenhum meca-
nismo participativo em arenas de
decisão que definem as diretrizes do
modelo de desenvolvimento brasi-
leiro.
A Constituição de 1988 apresen-
tou grandes avanços em relação aos
direitos sociais, apontando, clara-
mente, para a construção de um
Estado de Bem-Estar provedor da
universalização dos direitos soci-
ais.2 Além disso, introduziu instru-
mentos de democracia direta (ple-
biscito, referendo e iniciativa popu-
lar) – que foram regulamentados
pelo Congresso Nacional de forma
limitada, abrindo a possibilidade de
se criarem mecanismos de democra-
cia participativa (os conselhos de
políticas públicas, por exemplo).
ção da população, por meio de or-
ganizações representativas, na for-
mulação das políticas e no contro-
le das ações em todos os níveis”
(BRASIL, 1988, p. 41). Este proces-
so criou o que chamamos do ‘siste-
ma descentralizado e participativo’
das diferentes políticas públicas.
A CONSTITUIÇÃO DE 1988 APRESENTOU
GRANDES AVANÇOS EM RELAÇÃO AOS DIREITOS
SOCIAIS, APONTANDO, CLARAMENTE, PARA ACONSTRUÇÃO DE UM ESTADO DE BEM-ESTAR
PROVEDOR DA UNIVERSALIZAÇÃO DOS DIREITOS
SOCIAIS ...
2 Estamos utilizando como conceituação de Estado de Bem-Estar a definição apresentada por Falcão (1991). Conforme esta autora, o Estadode Bem-Estar é aquele constituído nos países de capitalismo avançado, possuindo como características: a) direitos sociais como paradigma;b) origem num pacto social e político entre Capital-Estado-Trabalho; c) configuração como agente central na reprodução social; d) gestorpoderoso das políticas sociais, que são a expressão essencial do Estado.
O direito à participação no Governo Lula
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005 287
Entretanto, no que se refere à
ordem econômica, ao sistema polí-
tico (financiamento público exclu-
sivo de campanha, democratização
dos partidos, processos eleitorais
transparentes, mecanismos que vi-
abilizem a participação da mulher
na política, possibilidade de cassa-
ção de mandato pela população,
etc.) e a democratização da infor-
mação e da comunicação, dimen-
sões fundamentais para a constru-
ção de um Estado democrático, a
Constituição de 1988 foi extrema-
mente conservadora.
Existe uma contradição entre
esse processo e o momento históri-
co vivido internacionalmente, mar-
cado pela ampliação e pelo fortale-
cimento das políticas neoliberais.
No Brasil, ao mesmo tempo que se
elaborava uma Constituição que
apontava para a construção do Es-
tado de Bem-Estar Social, do ponto
de vista da política entrávamos na
era neoliberal com a eleição de Fer-
nando Collor de Mello para a Presi-
dência da República. Aqui, é impor-
tante assinalar certa coincidência
dos discursos em relação à descen-
tralização e à participação. O mo-
vimento social falava em descentra-
lização no sentido do poder de deci-
são estar mais perto da população
e não concentrado em ‘Brasília’,
isto é, no município e não mais na
União. Falava em participação das
organizações da sociedade civil na
definição das políticas, de forma
autônoma e independente. A concep-
ção neoliberal entendia a descentra-
lização como estratégia de enfra-
quecimento do Estado (desregula-
mentação) e a participação como
meio de repassar para a sociedade
atribuições do Estado, sobretudo na
área social.
As mais importantes forças
sociais/políticas que atuaram na
construção desse ‘modelo’ de parti-
cipação foram o chamado campo
democrático e popular, cujo princi-
O presente artigo procura anali-
sar como o Governo Lula tratou a
questão da participação, tendo
como olhar especial a criação e a
reformulação de conselhos de polí-
ticas públicas nacionais, a realiza-
ção de conferências nacionais e o
processo participativo de debate do
Plano Plurianual (PPA 2004-2007),
ocorrido em 2003. Centramos a aná-
lise do sistema descentralizado e
participativo, o que não quer dizer
que não reconheçamos outras for-
mas de participação e sua impor-
tância. Procuramos trazer algumas
questões para os movimentos soci-
ais e as organizações que se pro-
põem a interferir de forma proposi-
tiva na deliberação das políticas
públicas, portanto, para construir
a participação como um direito hu-
mano fundamental.
DEMOCRACIA PARTICIPATIVAE O SISTEMA DESCENTRALIZADO
Como ponto de partida, quere-
mos fazer quatro afirmações: 1) que
a democracia participativa não se
reduz ao sistema descentralizado e
participativo; 2) que existem outras
formas legítimas de participação,
sejam institucionalizadas ou não
(não se pode reduzir a participação
ao sistema descentralizado e parti-
cipativo); 3) que a concepção de um
sistema descentralizado e participa-
tivo (conselhos e conferências com
pal canal partidário era o Partido
dos Trabalhadores (PT). Com a elei-
ção de Luiz Inácio Lula da Silva para
presidente da República, em 2002,
criou-se a expectativa de que o cha-
mado ‘sistema descentralizado e
participativo’ fosse realmente efeti-
vado. Esperava-se que os cidadãos
e cidadãs do Brasil pudessem par-
ticipar de modo ativo e cada vez
mais das decisões públicas e que
novos canais de participação fossem
criados.
NO BRASIL, AO MESMO TEMPO QUE SE
ELABORAVA UMA CONSTITUIÇÃO QUE
APONTAVA PARA A CONSTRUÇÃO DO ESTADO DE
BEM-ESTAR SOCIAL, DO PONTO DE VISTA DA
POLÍTICA ENTRÁVAMOS NA ERA NEOLIBERAL
COM A ELEIÇÃO DE FERNANDO COLLOR DE
MELLO PARA A PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA
MORONI, José Antônio
288 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005
caráter deliberativo) escapa aos tra-
dicionais mecanismos políticos de
decisão e legitimação (democracia
representativa ou direta); 4) Reco-
nhecemos, apesar das críticas e do
quadro atual do sistema, o não-es-
gotamento da estratégia construída
pela sociedade civil do campo de-
mocrático e popular nas últimas
décadas.
As modalidades tradicionais do
direito de participação política –
como o direito de votar e ser vota-
do, a filiação partidária, etc. – não
são suficientes para a cidadania de
hoje. Há necessidade de se criar
novas modalidades de participação
política, isto é, novas formas de
exercer o direito fundamental do ser
humano de “tomar parte no gover-
no de seu país diretamente ou por
intermédio de representantes li-
vremente escolhidos” (artigo XXI da
Declaração Universal dos Direitos
Humanos).
A participação tem valor em si
mesma, por isso não é instrumen-
tal de um projeto político. Podemos
dizer que a participação tem duas
dimensões fundamentais interliga-
das e que interagem permanente-
mente: a dimensão política e a pe-
dagógica. Participação, antes de
mais nada, é partilha de poder e
reconhecimento do direito a interfe-
rir de maneira permanente nas de-
cisões políticos (dimensão política).
É também a maneira pela qual as
aspirações e as necessidades dos
diferentes segmentos da população
podem ser expressadas no espaço
público de forma democrática, es-
tando associada ao modo como es-
tes ‘grupos’ se percebem como ci-
dadãos e cidadãs. A participação é
um processo educativo-pedagógico.
Expressar desejos e necessidades,
construir argumentos, formular pro-
postas, ouvir outros pontos de vis-
ta, reagir, debater e chegar ao con-
senso são atitudes que transformam
todos aqueles que integram proces-
agregando grupos sociais que pas-
sam a agir como sujeitos políticos
coletivos, com perspectivas e cons-
truções próprias, reivindicando re-
conhecimento, direitos, redistribui-
ção de riquezas e de poder perante
as estruturas de interesses domi-
nantes na sociedade e no Estado.
Na década de 1980 os então de-
nominados ‘novos sujeitos políticos’
– movimento negro, de mulheres,
socioambientalista, indígena, ho-
mossexual, de pessoas com defici-
ência, de crianças e adolescentes,
sem-terra, sem-tetos, etc. –, até en-
tão sub-representados na política
brasileira, juntamente com os mo-
vimentos e organizações tradicio-
nais, se inter-relacionam para trans-
formar demandas em direitos, cons-
truindo processos democráticos e
um outro modelo de sociedade.
Foi esse amplo movimento soci-
al e popular que elaborou a estra-
tégia de criação do sistema descen-
tralizado e participativo (conselhos
e conferências) como instrumento de
democratização e publicização do
Estado. Vale ressaltar aqui a impor-
tância que teve neste processo os
profissionais que atuavam no inte-
rior do Estado e que, em aliança
com esse movimento, ajudaram na
construção da estratégia política.
Partindo destas premissas, va-
mos situar e analisar o sistema des-
centralizado e participativo, pois
entendemos que sua legitimidade
está no reconhecimento da democra-
sos participativos. É uma verdadei-
ra educação republicana para o
exercício da cidadania, que amplia
um espaço público real, em que a
construção dialogada do interesse
público passa a ser o objetivo de
todos os homens e mulheres. Por
isso, participar também é disputar
sentidos e significados.
A interação de homens e mulhe-
res nesse espaço público produz
solidariedade e identidades comuns,
AS MODALIDADES TRADICIONAIS
DO DIREITO DE PARTICIPAÇÃO POLÍTICA –COMO O DIREITO DE VOTAR E SER VOTADO, A
FILIAÇÃO PARTIDÁRIA, ETC. – NÃO SÃO
SUFICIENTES PARA A CIDADANIA DE HOJE
O direito à participação no Governo Lula
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005 289
cia participativa como arranjo ins-
titucional que amplia a democracia
política e o espaço público. Por sua
vez, a legitimidade da democracia
participativa fundamenta-se no re-
conhecimento do direito à partici-
pação, da diversidade dos sujeitos
políticos coletivos e da importân-
cia da construção do espaço públi-
co de conflito/negociação. Por isso,
amplia os processos democráticos,
não atuando em substituição ou
oposição à democracia representa-
tiva.
O sistema descentralizado e par-
ticipativo é um espaço essencial-
mente político, instituído por repre-
sentações governamentais e não
governamentais, responsáveis por
elaborar, deliberar e fiscalizar a
implementação de políticas públi-
cas, estando presentes nos âmbitos
municipal, estadual e nacional. Des-
sa forma, inauguram uma nova
concepção de espaço público ou
mesmo de democracia. Podemos
afirmar, também, que a concepção
do sistema descentralizado e parti-
cipativo (especialmente os conselhos
e conferências) criado na Constitui-
ção de 1988 está relacionado à ques-
tão da democratização e da publi-
cização do Estado. Em outras pala-
vras, é uma das possibilidades cri-
adas para enfrentar a ausência de
mecanismos eficazes de controle da
população sobre os atos do Estado.
O sistema descentralizado e par-
ticipativo foi concebido com as se-
guintes características:
CONSELHOS
a) órgão público e estatal;
b) com participação popular, por
meio de representação institucio-
nal;
c) representantes da sociedade ci-
vil eleitos em fórum próprio e pela
própria sociedade;
d) com composição paritária entre
governo e sociedade (reconhecimen-
to da multiplicidade dos sujeitos
políticos);
j) Liberdade de escolha da presidên-
cia do conselho pelo próprio conse-
lho;
k) Presente nas três esferas de go-
verno, funcionado em forma de sis-
tema descentralizado.
Com base na concepção, pode-
mos definir ‘conselho de política
pública’ como espaço fundamental-
mente político, institucionalizado,
funcionando de forma colegiada,
autônomo, integrante do poder pú-
blico, de caráter deliberativo, com-
posto por membros do governo e da
sociedade civil, com as finalidades
de elaboração, deliberação e contro-
le da execução das políticas públi-
cas.
Na verdade, o conselho é um ins-
trumento para a concretização do
controle social – uma modalidade
do direito à participação política
que deve interferir efetivamente no
processo decisório dos atos gover-
namentais.
Numa leitura simplificada, po-
demos dizer que os conselhos des-
locam o espaço de decisão do esta-
tal-privado para o estatal-público,
dando oportunidade à transforma-
ção dos sujeitos sociais em sujeitos
políticos, em que a governabilida-
de é democrática e compartilhada
por todos.
CONFERÊNCIAS
São espaços institucionais de
deliberação das diretrizes gerais de
uma determinada política pública.
São espaços mais amplos que os
e) criado por lei ou outro instru-
mento jurídico, portanto, espaço
institucional;
f) com atribuições deliberativas e
de controle social;
g) espaço público da relação e da
interlocução entre Estado e socie-
dade;
h) mecanismo de controle da soci-
edade sobre o Estado;
i) com atribuições de discutir a
aplicação dos recursos, isto é, do
orçamento público;
... A CONCEPÇÃO DO SISTEMA
DESCENTRALIZADO E PARTICIPATIVO
(ESPECIALMENTE OS CONSELHOS ECONFERÊNCIAS) CRIADO NA CONSTITUIÇÃO DE
1988 ESTÁ RELACIONADO À QUESTÃO DA
DEMOCRATIZAÇÃO E DA
PUBLICIZAÇÃO DO ESTADO
MORONI, José Antônio
290 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005
conselhos, envolvendo outros sujei-
tos políticos que não estejam neces-
sariamente nos conselhos, por isso,
têm também caráter de mobilização
social. Governo e sociedade civil, de
forma paritária, por meio de suas
representações, deliberam de forma
pública e transparente. Estão inse-
ridas no que chamamos de ‘demo-
cracia participativa’ e do ‘sistema
descentralizado e participativo’,
construído a partir da Constituição
de 1988 e que permite a construção
de espaços de negociação, a cons-
trução de consensos e dissensos,
compartilhamento de poder e a co-
responsabilidade entre o Estado e a
sociedade civil. As conferências na-
cionais são precedidas de conferên-
cias municipais/regionais e estadu-
ais e são organizadas pelos respec-
tivos conselhos.
SISTEMA DESCENTRALIZADO
E PARTICIPATIVO
A criação do sistema descentra-
lizado e participativo (conselhos e
conferências nas três esferas de go-
verno e nas diferentes políticas pú-
blicas) foi – e ainda é – uma das
fórmulas encontradas para que haja
efetivo controle e exercício popular
do poder, tendo como pressuposto
a democracia participativa. Isso sig-
nifica que é uma das formas de
exercício do direito de participação
política cujo pressuposto é a exis-
tência de outras modalidades de tal
direito, como o direito de votar e
ser votado, liberdade de organiza-
ção, etc. Mas aqui vale a pergunta:
por si só, este processo democrati-
za a definição das políticas públi-
cas?
DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
Podemos afirmar que o princi-
pal objetivo estratégico da democra-
cia participativa é a universaliza-
ção da cidadania, portanto, a cons-
trução de uma democracia cotidia-
na. A democracia não pode ser algo
abstrato na vida das pessoas ou, de
foram tornados desiguais. ‘Univer-
salizar’ significa estender a todos e
a todas a cobertura de iguais direi-
tos e, também, responsabilizá-los
pela efetivação de tais direitos. A
universalização da cidadania, no
caso brasileiro, não será alcançada
sem a implementação de políticas
reparadoras dos danos causados
por séculos de exploração, desigual-
dades, preconceitos e discrimina-
ções.
A construção da democracia nos
impõe vigilância permanente e cons-
tante no sentido de criar mecanis-
mos institucionais de participação,
com regras definidas e claras, que
equacionem as pressões das maio-
rias sobre as minorias, ou das mi-
norias ativistas contra as maiorias
passivas. Neste sentido, esses espa-
ços devem ter estratégias claras e
eficazes com vistas a incorporar
indivíduos ou grupos sociais alhei-
os à participação – os chamados
‘desiludidos’ da vida social.
Da mesma forma que uma soci-
edade democrática força o Estado a
se democratizar, o inverso também
tem de ser verdadeiro, pois a demo-
cracia exige uma postura democrá-
tica dos cidadãos e cidadãs, seja nos
espaços públicos ou nos privados.
Um último registro: no Brasil,
por tradição (infelizmente temos de
reconhecer) a corrupção é uma for-
ma de se fazer e se pensar a políti-
ca. Em outras palavras, a corrup-
ção é o modo como o Estado bra-
concreto, apresentar apenas as elei-
ções. Deve proporcionar ao cidadão
e à cidadã a participação plena nas
questões que lhes dizem respeito,
além de favorecer sua soberania,
autodeterminação e autonomia.
A universalização da cidadania,
do ponto de vista ético-político, pres-
supõe o combate a todas as formas
de discriminação, a promoção da
igualdade de condições e de opor-
tunidades entre os diferentes que
... O PRINCIPAL OBJETIVO ESTRATÉGICO DA
DEMOCRACIA PARTICIPATIVA É AUNIVERSALIZAÇÃO DA CIDADANIA, PORTANTO, ACONSTRUÇÃO DE UMA DEMOCRACIA COTIDIANA
O direito à participação no Governo Lula
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005 291
sileiro opera, e serve para que gru-
pos se apropriem dos recursos pú-
blicos e do poder para defender in-
teresses privados. A corrupção não
se caracteriza apenas por aspectos
monetários/financeiros. Caracteriza-
se, principalmente, pelo uso do po-
der político em benefício de interes-
ses privados e particulares (aqui
incluído o desejo de se perpetuar no
poder). ‘O bem mais valioso rouba-
do pela corrupção é o poder de de-
cisão do povo’. Portanto, corrupção
e participação são formas comple-
tamente diferentes de operar a polí-
tica.
ALGUNS MITOS RELACIONADOSA PARTICIPAÇÃO
A participação da sociedade ci-
vil nas instâncias de decisão é, na
maioria das vezes, cercada de mi-
tos criados pelos discursos gover-
namentais e da sociedade civil. Va-
mos citar apenas quatro destes mi-
tos que dificultam a participação:
1) ‘A participação por si só muda
a realidade’. É um mito que despo-
litiza a participação, pois não per-
cebe que há sujeitos políticos que
não querem que as coisas mudem,
não percebe a correlação de forças
e, por conseqüência, não percebe
que há outras formas e interesses,
alguns legítimos, outros nem tan-
to, que definem também as políti-
cas. É a despolitização da partici-
pação.
2) ‘A sociedade não está prepa-
rada para participar, como protago-
nista, das políticas públicas’. Este
mito baseia-se no preconceito do
saber, em que a burocracia e/ou o
político detém o saber e a delega-
ção para decidir. Tal mito justifica
a tutela do Estado sobre a socieda-
de civil, o que leva, por exemplo, o
Estado a não criar espaços institu-
cionalizados de participação ou a
e cidadãs é o momento do voto. Esta
concepção torna o Estado privado,
por intermédio do partido que ga-
nha a eleição. Durante o mandato,
o partido decide o que fazer confor-
me os interesses partidários.
4) ‘A sociedade é vista como ele-
mento que dificulta a tomada de
decisões’, seja pela questão tempo
(demora em decidir, obrigatorieda-
de de convocar reuniões, etc.), seja
pela questão de posicionamento crí-
tico diante das propostas ou da au-
sência delas por parte do Estado.
Estes mitos, na verdade, são dis-
farces ideológicos forjados por
aqueles que detêm o poder político
no Brasil (seja este poder oriundo
do poder econômico, da ocupação
de um cargo burocrático ou de um
cargo eletivo). Por isso, tais mitos
devem ser desconstruídos com base
em uma concepção ampliada de
democracia e da politização da par-
ticipação.
A PARTICIPAÇÃOEM NÚMEROS
Não se tem levantamento atua-
lizado e preciso do número dos con-
selhos no Brasil, nem das organi-
zações e pessoas envolvidas, mui-
to menos, análises mais globais da
efetividade destes instrumentos na
construção de políticas públicas. O
que seriam hoje as políticas públi-
cas sociais no Brasil, com o des-
indicar, escolher e determinar quem
são os representantes da sociedade
nos espaços criados, assim como
não disponibilizar as informações
(por que a ‘sociedade não vai en-
tender’).
3) A sociedade não pode com-
partilhar da governabilidade, isto é,
da construção das condições políti-
cas para tomar e implementar deci-
sões, porque o momento de partici-
pação da sociedade e dos cidadãos
A PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL NAS
INSTÂNCIAS DE DECISÃO É, NA MAIORIA DAS
VEZES, CERCADA DE MITOS CRIADOS PELOS
DISCURSOS GOVERNAMENTAIS
E DA SOCIEDADE CIVIL
MORONI, José Antônio
292 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005
monte do Estado em curso com as políticas neoliberais, sem a criação do sistema descentralizado e participativo?
Ë uma bela pergunta a ser feita. A impossibilidade de responder a ela dificulta qualquer análise qualitativa que se
queira fazer. Portanto, só podemos – e ainda de forma limitada – nos ater aos números disponíveis, mesmo que
insuficientes e desatualizados.
O quadro que apresentamos a seguir se refere aos conselhos municipais em dez políticas sociais e foi elaborado
a partir da Pesquisa de Informações Básicas Municipais do IBGE(1999), portanto, praticamente com seis anos de
defasagem. Nota-se que o mesmo se refere aos conselhos criados, não entrando na análise do funcionamento e
eficácia deles. Não apresentamos dados de conselhos estaduais por não encontrá-los.
QUADRO 1 – Conselhos municipais existentes em 1999
Fonte: IBGE. Perfil dos Municípios Brasileiros, 1999. Elaboração Luciana Jaccoud e Frederico Barbosa do IPEA
QUADRO 2 – Conselhos Nacionais existentes em 2006
O direito à participação no Governo Lula
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005 293
O direito à participação no Governo Lula
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005 295
* Conselhos criados no Governo Lula; ** Conselhos reformulados no Governo Lula
Fonte: Pesquisa Realizada nos sites dos órgão dos quais os conselhos são vinculados e no Diário Oficial da União
MORONI, José Antônio
296 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005
Identificamos 64 Conselhos Na-
cionais, destes 13 foram criados no
Governo Lula, e nove foram rees-
truturados neste mesmo período.
Portanto, 42 foram criados antes do
Governo Lula.
Cabe ressaltar que a distribui-
ção por área foi uma escolha do
autor, que levou em conta o órgão
ao qual o conselho é vinculado e
suas atribuições. Neste estudo, tor-
nou-se, às vezes, difícil diferenciar
as atribuições entre dois conselhos,
ou até onde vai o poder de um e
começa o poder de outro, ou mes-
mo se tem algum poder, pois mui-
tos têm competências e atribuições
parecidas, difusas, concorrentes e
sobrepostas, mostrando a ausência
de uma política para esses espa-
ços, que chamamos de ‘arquitetu-
ra da participação’.
Não apresentamos dados
das conferências realizadas até o
momento por impossibilidade de
reunir informações. Vamos traba-
lhar as conferências no capítulo a
seguir e somente em relação ao
Governo Lula, período que permi-
tiu reunir informações consistentes
para análise.
O LUGAR DA PARTICIPAÇÃO NOGOVERNO LULA
Cabe registrar, de início, que por
mais que possamos fazer críticas
à questão da participação no Go-
verno Lula (e o texto a seguir é bas-
tante crítico) não podemos deixar
de mencionar o significativo avan-
ço que tivemos neste período. No
governo anterior, os movimentos
sociais e as organizações não go-
vernamentais que defendem direi-
tos eram chamados de “neobobos”
(isso pelo próprio presidente Fernan-
do Henrique Cardoso). Não é a toa
que foi neste período que o chama-
do Terceiro Setor foi alçado a in-
peito apenas ao fato de o presidente
ser operário, mas, muito mais, por
ser oriundo do chamado lumpen
proletariado. Isto, por si só, explica
as expectativas que se criaram nas
forças que apostaram em seu suces-
so ou em seu fracasso, por razões
políticas, ideológicas ou de precon-
ceito.
Analisar um governo com este
perfil, seja em que aspecto for, não
é tarefa fácil, pois o Governo Lula
trouxe para o interior do Estado to-
das as contradições e conflitos pre-
sentes na sociedade brasileira. Em
seu desenho político/institucional
há, por exemplo, um ministério que
cuida dos interesses do agronegó-
cio e outro que promove a reforma
agrária e a agricultura familiar; pre-
valece no ministério da Fazenda e
no Banco Central uma política anti-
desenvolvimento, mas há no gover-
no um ministério de ‘Desenvolvi-
mento’ ligado à produção e um ban-
co, o BNDES, para financiar o de-
senvolvimento. No que diz respeito
à participação popular, o Governo
Lula levou para seu interior setores
que nunca tiveram qualquer com-
promisso com a participação ou que
a viam unicamente como instrumen-
to para chegar ao poder e não como
força capaz de provocar transforma-
ções sociais, culturais e políticas.
Talvez o que melhor caracterize o
Governo Lula sejam suas contradi-
ções – aqui lembradas como falta
terlocutor político da sociedade ci-
vil organizada.
A eleição de um líder operá-
rio para a presidência da Repúbli-
ca, oriundo de uma classe social
originariamente excluída de qual-
quer conceito de cidadania, tendo
migrado de uma região miserável
para a capital econômica brasilei-
ra, é um marco histórico em nosso
país, que repercute em âmbito in-
ternacional. O marco não diz res-
... POR MAIS QUE POSSAMOS
FAZER CRÍTICAS À QUESTÃO DA PARTICIPAÇÃO
NO GOVERNO LULA NÃO PODEMOS DEIXAR DE
MENCIONAR O SIGNIFICATIVO AVANÇO QUE
TIVEMOS NESTE PERÍODO
O direito à participação no Governo Lula
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005 297
de um projeto de Nação e não no
sentido marxista do termo.
Um governo (aqui entendido
como o conjunto de forças políticas
que o apóia e/ou constitui) que não
tem um projeto de Nação, que não
tem forças ou não quer contrariar
interesses e privilégios, que acredi-
ta ser possível diminuir as desigual-
dades sociais distribuindo o fruto
do desenvolvimento (reedição do
‘primeiro crescer para depois dis-
tribuir’), por meio de políticas com-
pensatórias e focalizadas, portanto,
que não se propõe a redistribuir as
riquezas já produzidas, opera poli-
ticamente como? Por intermédio dos
tradicionais meios de fazer política
no Brasil, que são o clientelismo, o
fisiologismo e a apropriação priva-
da da coisa pública, isto é, a nega-
ção mais completa de qualquer pro-
cesso participativo. Mas, ao mes-
mo tempo, como vamos ver no item
5.2, é um governo que abriu dife-
rentes e diversos processos de in-
terlocução.
O Governo Lula foi eleito num
movimento construído ao longo de
décadas para mudar a forma de fa-
zer e pensar a política no Brasil.
Elementos essenciais dessa transfor-
mação seriam a participação popu-
lar e o controle social. Portanto,
participação e controle social como
elementos propulsores e fundantes
das transformações sociais, cultu-
rais, ambientais, econômicas e po-
líticas.
Analisar o Governo Lula, como
já mencionamos, é tarefa comple-
xa, ainda mais quando esta avalia-
ção é feita sob a perspectiva da par-
ticipação. Quando nos dispomos a
analisar e avaliar um governo, in-
dependentemente de ser o Governo
Lula ou qualquer outro, uma ques-
tão preliminar se apresenta diante
de nós: para realizar qualquer pro-
cesso de avaliação é necessário ter
uma referência. E qual é nossa re-
ferência se o governo foi eleito para
provocar grandes transformações?
Nossa referência não é o passado
e, sim, o futuro. Por isso, nossa re-
ferência para a avaliação deve ser
o que chamamos, de forma genéri-
ca, de ‘projeto de sociedade’. Ape-
sar de tal projeto ser um projeto em
construção, ele nos dá elementos
para essa avaliação.
Pelo discurso e pelas experiên-
cias de algumas administrações
populares, havia a ‘certeza’ de que
o PT (como força hegemônica na
aliança que venceu as eleições)
‘usaria’, no mínimo, a participação
como elemento de pressão para as
transformações. Algumas adminis-
trações municipais tiveram a parti-
cipação como elemento central da
estratégia política, priorizando a
participação de setores populares na
definição das políticas e dos orça-
mentos públicos.
Uma das primeiras ações do
Governo Lula foi repensar o dese-
nho institucional ou a arquitetura
da participação. Se nos basearmos
no desenho inicial, podemos con-
cluir duas coisas: 1) a participação
era vista como estratégia de gover-
nabilidade; 2) os diferentes sujeitos
políticos da participação eram re-
conhecidos com pesos diferencia-
dos, com prioridade para os sujei-
tos políticos da relação capital-tra-
balho.
O governo e, principalmente, a
esquerda (e aí não envolve apenas
o PT, mas os outros partidos, as-
sim como boa parte da intelectuali-
dade) ainda olham para a socieda-
de apenas do ponto de vista da re-
lação capital-trabalho. Até agora,
não houve rompimento radical com
essa visão bipolar. Ao enxergarem
a sociedade apenas do ponto de vis-
ta da relação capital-trabalho, re-
conhecem como atores políticos
somente os empresários e os tra-
balhadores, pois somente eles atu-
UMA DAS PRIMEIRAS AÇÕES DO GOVERNO
LULA FOI REPENSAR O DESENHO
INSTITUCIONAL OU A ARQUITETURA DA
PARTICIPAÇÃO
MORONI, José Antônio
298 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005
am nessa relação. Aqui vale ressal-
tar que se trata dos trabalhadores e
trabalhadoras sindicalizados, pois
esse olhar sobre a sociedade não
‘enxerga’ a imensa massa de ho-
mens e mulheres que estão na eco-
nomia informal.
Conforme essa concepção, as
organizações e movimentos sociais
não são reconhecidos como sujei-
tos políticos, mas como atores so-
ciais ou sujeitos sociais. Portanto,
bons na mobilização e na capilari-
dade, mas não para participar dos
processos de tomada de decisões
políticas. Historicamente, quem
trouxe para o debate político a ques-
tão da participação foi justamente
esse campo de organizações e mo-
vimentos sociais. O movimento sin-
dical nunca teve a participação
como estratégia política, que dirá
como elemento central na constru-
ção dos processos democráticos.
Outro complicador dessa concep-
ção é procurar nas organizações e
nos movimentos sociais a estrutu-
ra do movimento sindical – um
movimento centralizado, hierarqui-
zado e com rígida estrutura. Por sua
vez, as organizações e movimentos
sociais, pela própria natureza, não
apresentam tal hierarquia e muito
menos tal centralização. Organi-
zam-se de forma mais descentrali-
zada e mais horizontal, procuran-
do se construir mais como sujeitos
políticos coletivos e menos como
estrutura. Portanto, não existe uma
única voz a falar por esse conjun-
to, mas várias vozes e de lugares
diferentes. É o que chamamos de
‘multiplicidade de sujeitos políti-
cos’.
Acostumados a lidar com o
movimento sindical e com a con-
cepção de que a sociedade se orga-
niza com base apenas nos interes-
ses da relação capital-trabalho, o
Governo Lula não conseguia e não
consegue dialogar com esse conjun-
to de organizações e movimentos,
considerado ‘muito difuso’ por não
tem uma ‘central’ nem um ‘presi-
dente’.
Essa concepção bipolar está pre-
sente no desenho institucional do
governo, em que a interlocução com
os movimentos sociais e as organi-
zações da sociedade civil é feita pela
Secretaria-Geral da Presidência da
República (SGP). Por sua vez, cabe
à secretaria do Conselho de Desen-
volvimento Econômico e Social
(CDES)3 a interlocução com o mun-
do empresarial e com os sindicatos.
Por isso, o CDES é formado, em sua
grande maioria e de forma hegemô-
nica, por empresários e sindicalis-
tas, além de alguns intelectuais, que
são chamados de ‘personalidades’,
e representantes de movimentos so-
ciais e ONGs. Na concepção do go-
verno, o CDES é o espaço de diálo-
go e de atuação essencialmente po-
lítica (“colegiado de assessoramen-
to direto e imediato do presidente
da República”), em que se discutem
as questões da macroeconomia e da
agenda de desenvolvimento. Se nes-
se espaço estratégico, na definição
do governo, não há equilíbrio míni-
mo entre os diferentes sujeitos polí-
ticos é porque estes mesmos sujei-
tos não são reconhecidos como tais.
É importante ressaltar que usa-
mos o termo ‘interlocução’ porque
é dessa forma que esses espaços são
vistos pelo Governo Lula. Não são
espaços de deliberação e controle
social e, sim, de interlocução do
governo com representantes da so-
ciedade. E, na maioria das vezes,
esta representação é pessoal e não
institucional e o governo escolhen-
do com quem ele quer ‘interlocu-
tar’.
Há, no Governo Lula, desrespei-
to total à autonomia da sociedade
civil, pois na maioria dos novos
3 Um quadro com detalhes sobre os conselhos criados no Governo Lula é apresentado em outro item deste artigo.
... AS ORGANIZAÇÕES E MOVIMENTOS SOCIAIS
NÃO SÃO RECONHECIDOS COMO SUJEITOS
POLÍTICOS, MAS COMO ATORES SOCIAIS OU
SUJEITOS SOCIAIS
O direito à participação no Governo Lula
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005 299
espaços participativos criados e/ou
reformulados quem determina a re-
presentação da sociedade é o Gover-
no. As únicas exceções foram os
Conselhos das Cidades e Gestor da
Internet no Brasil. E isso em razão
da pressão do movimento de refor-
ma urbana e das organizações que
lutam por uma governança demo-
crática da Internet no país. Sem fa-
lar da não-possibilidade de escolha
do presidente pelos próprios conse-
lhos. Os presidentes são indicados
pelo Governo.
Na verdade, ocorreu no Gover-
no Lula a multiplicação dos espa-
ços de interlocução, sem que hou-
vesse nenhuma política de fortale-
cimento do sistema descentralizado
e participativo e muito menos de
ampliação dos processos democrá-
ticos. A participação ficou reduzi-
da à estratégia de governabilidade
e ao faz-de-conta, sem ter-se confi-
gurado como elemento essencial nas
transformações sociais, políticas,
culturais, ambientais e econômicas.
Cabe ressaltar, contudo, que
ocorreram algumas mudanças po-
sitivas no Governo Lula no que diz
respeito ao envolvimento dos agen-
tes governamentais nos processos
e espaços de participação, sobretu-
do os conselhos e as conferências.
Houve mudança de postura do atu-
al governo em relação aos gover-
nos anteriores. Nas conferências
realizadas em governos anteriores,
quem organizava e comandava todo
o processo era a sociedade civil. O
governo chegava, como se fosse um
espectador, e ia embora. Agora, es-
ses espaços têm registrado qualida-
de e participação governamental
bem diferente do que estávamos
acostumados. As conferências, por
exemplo, viraram verdadeiros espa-
ços de disputas políticas.
4 A Inter-Redes: Direitos e Política é um espaço de articulação de redes e fóruns de organizações da sociedade civil brasileira que atuam, dediversas formas e com diversos temas, para o fortalecimento da esfera pública, a promoção de direitos e a proposição de políticas.
PROCESSO DEPARTICIPAÇÃO NO PPA
A Constituição de 1988 criou o
processo orçamentário, que com-
preende três peças: PPA (plano plu-
rianual), LDO (lei de diretrizes or-
çamentárias) e LOA (lei orçamentá-
ria anual), elaborados pelo Execu-
tivo e aprovado pelo Congresso
Nacional. O PPA é elaborado a cada
quatro anos, a LDO e a LOA todos
os anos. O PPA é essencial no pla-
nejamento das políticas públicas,
pois define em linhas gerais, as
concepções, os programas, os ob-
jetivos e as metas para os próxi-
mos quatro anos. A LDO define os
programas prioritários, as metas
físicas e as linhas gerais de como
deverá ser elaborado o orçamento
do próximo ano. A LOA é como e
onde os recursos públicos serão
aplicados, isso é, o orçamento pú-
blico.
Em 2003, a Associação Brasi-
leira de Organizações Não Gover-
namentais (ABONG) e um conjunto de
redes e fóruns que constituem a
Inter-Redes4 estabeleceram relação
política com o governo federal para
contribuir na dinâmica de partici-
pação da sociedade civil no debate
sobre as orientações estratégicas
para a construção do ‘Plano Pluri-
anual 2004-2007: um Brasil para
todos e todas’. Foram realizadas
audiências públicas em todos os
estados brasileiros e no Distrito
Federal.
Essa iniciativa do governo fe-
deral, capitaneada pela Secretaria-
geral da Presidência, revestiu-se de
especial relevância, pois instalou
a possibilidade de debate entre go-
verno e redes, articulações e movi-
mentos da sociedade civil sobre as
...OCORREU NO GOVERNO LULA AMULTIPLICAÇÃO DOS ESPAÇOS DE
INTERLOCUÇÃO, SEM QUE HOUVESSE
NENHUMA POLÍTICA DE FORTALECIMENTO DO
SISTEMA DESCENTRALIZADO E PARTICIPATIVO EMUITO MENOS DE AMPLIAÇÃO DOS PROCESSOS
DEMOCRÁTICOS
MORONI, José Antônio
300 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005
diretrizes para um novo modelo de
desenvolvimento brasileiro, social-
mente justo e ambientalmente sus-
tentável, que também possibilitas-
se aprofundar as estruturas demo-
cráticas de controle social sobre o
processo orçamentário e sobre os
recursos públicos.
A expectativa era de que a par-
ceria do momento inicial de debate
se tornasse efetiva, com o acompa-
nhamento do PPA, para dar conti-
nuidade à abertura desse espaço de
participação cidadã e permitir que
a sociedade civil organizada, desa-
fiada no primeiro momento, pudes-
se participar do monitoramento da
implementação do PPA e dos proces-
sos de revisão anual, assim como
da elaboração de uma política de
participação e de controle social do
processo orçamentário federal.
Após os debates em todo o país
e o envio do Projeto de Lei do PPA
ao Legislativo, diversas organiza-
ções e redes acompanharam a tra-
mitação do PPA no Congresso Naci-
onal e constataram que o rico pro-
cesso participativo de consulta não
foi sequer tema de debate no con-
junto do governo e muito menos no
Congresso Nacional. O que mono-
polizou a atenção dos parlamenta-
res e da mídia foi a insistência do
governo e da base governista no
Congresso em manter, a todo o cus-
to, o compromisso de superávit pri-
mário de 4,25% do Produto Interno
Bruto (PIB) durante os quatro anos
de vigência do PPA. Definição esta
questionada em todo o processo de
participação no PPA.
Além disso, nenhum dos acor-
dos firmados com a Secretaria-ge-
ral da Presidência durante o processo
de consulta, até momento, não fo-
ram cumpridos. São eles:
• Formação de grupo de traba-
lho paritário entre governo e socie-
dade civil para acompanhar o mo-
nitoramento do PPA 2004-2007;
• Construção, com a sociedade
civil, dos mecanismos e da meto-
dologia de participação nos proces-
so orçamentários;
• Acesso às informações sobre
a execução física e financeira do
PPA, especificamente a disponibili-
dade on-line, para qualquer cida-
dão, dos dados do Sistema Integra-
do de Administração Financeira (SI-
AFI) e do Sistema de Informações
Gerais e de Planejamento (SIGPLAN);
• Elaboração de indicadores
desagregados por gênero, raça, et-
nia, rural, urbano, etc., permitin-
do acompanhamento mais qualita-
tivo do impacto real das políticas
públicas por parte da sociedade ci-
vil.
Um estudo realizado pela Inter-
Redes demonstrou que, do fruto da
participação, o Plano Plurianual
incorporou questões periféricas,
que ajudavam a desenhar melhor
os megaobjetivos das orientações
estratégicas do governo para o PPA,
mas nada que viesse a mudar a
lógica das políticas – a principal
demanda das organizações nas
audiências estaduais.
Contudo, o mais grave foi a to-
tal falta de continuidade do proces-
so. Havia um compromisso políti-
co de continuidade, inclusive cor-
rigindo os erros do processo inici-
al (pouco tempo para os debates,
objeto de discussão limitado, pou-
co espaço para a expressão da so-
ciedade civil, processo centraliza-
do no governo, etc.) para ampliar
a participação e os temas tratados.
Assim, verificamos que esse
processo foi um verdadeiro ‘espe-
táculo’ da participação, em que as
contribuições da sociedade civil
não foram consideradas nem exis-
tiu qualquer estratégia de governo
para criar e aprofundar, de fato,
espaços institucionais de participa-
... DO FRUTO DA PARTICIPAÇÃO, O PLANO
PLURIANUAL INCORPOROU QUESTÕES
PERIFÉRICAS, QUE AJUDAVAM A DESENHAR
MELHOR OS MEGAOBJETIVOS DAS ORIENTAÇÕES
ESTRATÉGICAS DO GOVERNO PARA O PPA,MAS NADA QUE VIESSE A MUDAR A LÓGICA DAS
POLÍTICAS ...
O direito à participação no Governo Lula
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005 301
ção popular em áreas estratégicas
para a efetivação de direitos no
país, como o orçamento e o plane-
jamento públicos e, principalmen-
te, o ‘modelo de desenvolvimento’.
Hoje, após muitas idas e vindas
e longos períodos de total silêncio,
a Secretaria-geral voltou a procu-
rar as organizações para retomar a
discussão sobre os acordos não
cumpridos desde 2003.
Uma grande contribuição deste
processo foi o de chamar a atenção
para uma peça essencial no plane-
jamento das políticas públicas que
é o PPA. Isso teve e ainda tem des-
dobramentos na elaboração dos
PPAs estaduais e municipais. Até
2003, a grande maioria das organi-
zações não sabia do que se tratava,
e os PPA eram elaborados por ‘es-
critórios de consultorias’. Este
mérito o Governo Lula tem.
A PARTICIPAÇÃO NOGOVERNO LULA EM NÚMEROS
Se olharmos unicamente na
perspectiva numérica e de quanti-
dade, vamos ver que no Governo
Lula houve grande avanço na cria-
ção de espaços de participação (con-
selhos, conferências, etc.) e de in-
terlocução.
CONSELHOS
No total foram criados 13 novos Conselhos Nacionais. Como demonstra-
mos antes (item 3), esses conselhos foram criados com concepções diferen-
tes da do movimento social que construiu a estratégia política de constru-
ção do sistema descentralizado e participativo nas diferentes políticas.
Além de criar novos conselhos nacionais, o Governo Lula reformulou
nove conselhos nacionais, adaptando as novas exigências legais e/ou polí-
ticas.
QUADRO 3 – Conselhos Nacionais criados no Governo Lula
QUADRO 4 – Conselhos Nacionais reformulados no Governo Lula
Fonte: Quadro sistematizado pela autor com base no quadro 2
Fonte: Quadro sistematizado pela autor com base no quadro 2
MORONI, José Antônio
302 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005
CONFERÊNCIAS
No total, foram realizadas no
Governo Lula 40 Conferências Naci-
onais (já incluídas as que vão se
realizar ate o final do mandato) e
três Conferências Internacionais.
Segundo dados oficiais do governo
federal, ao final do ciclo de confe-
rências nacionais 2003/2006, mais
de dois milhões de brasileiros e bra-
sileiras participaram das conferên-
cias municipais, regionais, estadu-
ais e nacional. Isso sem contar com
os estudantes que participaram das
conferências infanto-juvenis de meio
ambiente.
Vale ressaltar que das 37 confe-
rências nacionais, 15 foram reali-
zadas pela primeira vez, e a de Di-
reitos Humanos foi a primeira vez
convocada pelo Executivo.
Conferências realizadas pela pri-
meira vez: meio ambiente (versão
adulta e infanto-juvenil); aqüicultu-
ra e pesca; cidades; medicamentos
e assistência farmacêutica; terra e
água; arranjos produtivos locais;
políticas para as mulheres; espor-
te; cultura; promoção da igualdade
racial; povos indígenas; direitos da
pessoa com deficiência; direitos da
pessoa idosa; econômica solidária
e educação profissional e tecnoló-
gica.
QUADRO 5 – Conferências Nacionais/Internacionais realizadas no Gover-
no Lula
* Soma dos participantes das etapas municipais, estaduais e nacional; ** Soma dosparticipantes das etapas estaduais e nacional; *** Não foi convocada pelo Executivo esim pelo Congresso Nacional e Fórum de Entidades Não Governamentais (FNEDH).
Fonte: Informativo Especial da Secretaria-Geral da Presidência da República, 2006.
O direito à participação no Governo Lula
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005 303
DESAFIOS QUEDEVEMOS ENFRENTAR
Como organizações da socieda-
de civil que defendemos a partici-
pação como Direito Humano, pre-
cisamos enfrentar alguns desafios:
1. reconstruir a arquitetura da
participação, embora isso não sig-
nifique repensar apenas o sistema
descentralizado e participativo (os
conselhos e as conferências). Preci-
samos repensar os processos demo-
cráticos, o desenho da democracia
e a maneira de conjugar a demo-
cracia representativa, a democracia
participativa e a democracia dire-
ta. Enfim, uma verdadeira reforma
do sistema político brasileiro, por-
tanto, do poder.
2. resgatar o papel político dos
conselhos. Os conselhos ainda são
mecanismos, não os únicos, de par-
ticipação. Porém, não como se apre-
sentam hoje, em sua maioria sem
espaço para o debate político, a de-
liberação e o controle social, carac-
terizando-se como espaços formais
ou de faz-de-conta de participação.
Isso reflete a maneira como são
escolhidos os representantes da so-
ciedade civil, que não se vêem en-
quanto representação da sociedade
civil, mas como representação de
interesses da sua organização. Sem
falar que, em muitos casos, os pro-
cessos de eleição desta representa-
ção não ficam em nada devendo aos
métodos tão criticados na democra-
cia representativa.
3. resgatar o papel de mobili-
zação social das conferências. As
conferências foram pensadas com
um espaço ampliado dos conse-
lhos, nas quais se envolveriam
outros sujeitos políticos e de diálo-
go com a população que não parti-
cipa em organizações e movimen-
tos. Resgatar este papel das confe-
rências significa ter estratégias po-
líticas de mobilização e comunica-
ção com a população de modo ge-
ral.
4. respeitar a multiplicidade
dos sujeitos políticos. Estabelecer
comunicação e relação política en-
tre os diferentes espaços – conse-
lhos e conferências –, que até ago-
ra têm permanecido estanques, ver-
ticais, fragmentados e sem ligação.
Como a Conferência das Cidades,
por exemplo, comunica-se com a
questão da criança, com a questão
de segurança, com a questão do
meio ambiente? O desafio é o como
o reconhecimento da riqueza da
multiplicidade dos sujeitos políticos
e de suas ‘causas’ não levem à frag-
mentação total da luta política.
5. reconhecer outras formas de
organização. Como, nesses proces-
sos, agregar outros sujeitos políti-
cos, que possuem novas e criativas
formas de organização, na maioria
das vezes não institucionalizadas.
Olhar e enxergar estes novos atores
e articular esses processos partici-
pativos são um grande desafio para
as organizações e movimentos.
6. recolocar a questão da Re-
forma do Estado. Precisamos defi-
nir melhor que Estado queremos, o
papel e como exercer o controle pú-
blico do Estado. Aqui, é fundamen-
tal a luta pelo acesso universal às
informações públicas. Não podere-
mos pensar nenhum tipo de contro-
le social e de controle público do
Estado se este Estado não for pú-
blico. E isto envolve um projeto
maior, que é a definição de projeto
e projetos de sociedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O sistema descentralizado e par-
ticipativo é um instituto político não
tradicional de gestão de políticas
públicas, voltado para a democra-
tização do Estado e da sociedade,
podendo impulsionar mudanças
culturais, econômicas e políticas
que nos aproximam mais da utópi-
ca radicalidade democrática. Até
agora, temos como integrantes des-
PRECISAMOS REPENSAR OS PROCESSOS
DEMOCRÁTICOS, O DESENHO DA DEMOCRACIA EA MANEIRA DE CONJUGAR A DEMOCRACIA
REPRESENTATIVA, A DEMOCRACIA
PARTICIPATIVA E A DEMOCRACIA DIRETA
MORONI, José Antônio
304 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 284-304, set./dez. 2005
te sistema os conselhos e as confe-
rências. O desafio é como incorpo-
rar outras formas de participação
neste sistema, como por exemplo,
as ouvidorias, consultas públicas
e formas não institucionalizadas de
organizações da sociedade civil.
Não consideramos os conse-
lhos espaços únicos nem exclusi-
vos, mas importantes e estratégicos
para serem ocupados pela socieda-
de civil organizada e comprometi-
da efetivamente com as transforma-
ções políticas, econômicas e soci-
ais. Os conselhos são mecanismos
limitados para operar essas trans-
formações. Porém, para a realidade
brasileira, são mecanismos que
podem provocar mudanças substan-
tivas na relação Estado-sociedade.
Estes mecanismos podem contribuir
com a construção/consolidação de
uma cultura política contra-hegemô-
nica, por meio da prática da socia-
lização da política e da distribui-
ção do poder.
Não se deve desistir do processo
de implementação desses mecanis-
mos de participação democrática,
apesar do pouco avanço em dire-
ção a transformar em poder de fato
o poder legal que esses espaços
participativos possuem.
E a pergunta que não temos
como responder, agora, é: Qual o
impacto do Governo Lula neste pro-
cesso todo. Isso é uma incógnita e
com certeza ‘nada será como antes’.
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mocracia. Rio e Janeiro: Paz e Ter-
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Participação Social - Informativo
Especial da Secretaria-Geral da Pre-
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www.brasil.gov.br
Proteção social em um mundo globalizado
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 305-314, set./dez. 2005 305
305
ARTIGOS DE OPINIÃO / OPINION ARTICLES
Proteção social em um mundo globalizado1
Social Protection in a Globalized World
Sonia Fleury2
1 Doutora em Ciência Política; professora
da EBAPE/FGV e presidente do CEBES, elei-
ta em 2007.
Email: sfleury@fgv.br
RESUMO
Neste artigo, procura-se tratar as seguintes questões: Quais as alterações
nos padrões de proteção social e na saúde que estão em curso em face à
globalização?; Que contradições foram introduzidas por estas mudanças
no âmbito da proteção social?; Que potencialidades são geradas em
decorrência deste processo? Por meio da análise das transformações da
proteção social em um mundo globalizado, apontam-se as principais tensões
e contradições neste campo, mas também as novas energias e potencialidades
de geração de uma cidadania integral e emancipatória.
PALAVRAS-CHAVE: Proteção Social; Cidadania; Globalização.
ABSTRACT
In this paper the author addresses the following questions: What changes
to the patterns of social and health care protection are underway in light of
globalization?; What contradictions have been introduced by such changes
into the context of social protection?; What potentialities have emerged as
a result of this process? By analyzing the transformations to social protection
in a globalized world, the main tensions and contradictions in this field
are identified, as are the new powers and capacities to generate an integral
and emancipative citizenship.
KEY-WORDS:Social Protection, Citizenship, Globalized World.
Recebido: Jun./2006
Aprovado: Jul./2007
1Conferência pronunciada no 8° CONGRESSO BRASILEIRO DE SAÚDE COLETIVA – ABRASCO,
21 a 25 de agosto de 2006
FLEURY, Sonia
306 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 305-314, set./dez. 2005
Neste artigo, procura-se tratar as
seguintes questões: Quais as
alterações nos padrões de proteção
social e na saúde que estão em cur-
so em face à globalização?; Que
contradições foram introduzidas por
estas mudanças no âmbito da pro-
teção social?; Que potencialidades
são geradas em decorrência deste
processo?
Para tratar a primeira questão,
partimos da constatação de que a
emergência e consolidação dos sis-
temas de proteção social se deram
em um contexto radicalmente dife-
rente do atual, que chamamos ge-
nericamente de ‘globalização’. Os
diferentes modelos de proteção so-
cial foram originários de um mes-
mo contexto socioeconômico, carac-
terizado pelos processos de Moder-
nização, Democratização e Desenvol-
vimento Industrial. A modernização
social diz respeito à complexifica-
ção da estrutura social, que foi
acompanhada também por uma es-
pecialização funcional. A democra-
tização incluiu o reconhecimento de
atores políticos coletivos e a aber-
tura do sistema político competiti-
vo para a participação política das
massas. O processo de desenvolvi-
mento industrial em unidades fabris
alterou a estrutura produtiva e au-
mentou a produção de riquezas,
gerando processos concomitantes de
urbanização e de organização soci-
al.
... A PROTEÇÃO SOCIAL DEIXA DE SER PARTE
DAS RELAÇÕES TRADICIONAIS ENTRE DESIGUAIS
(...) PARA SE COLOCAR COMO UMA QUESTÃO
SOCIAL A SER RESOLVIDA NOS MARCOS DE UMA
NOVA SOCIEDADE
Neste contexto de profunda
transformação social, a proteção
social deixa de ser parte das rela-
ções tradicionais entre desiguais,
quando senhores protegiam e tute-
lavam servos leais ou entre iguais,
no interior das corporações, para se
colocar como uma questão social a
ser resolvida nos marcos de uma
nova sociedade que se fundava com
base nos valores de liberdade e
igualdade genérica dos indivíduos.
a polêmica sobre o crescimento po-
pulacional em Malthus (1983)
referência)e Marx (1980) – um ad-
vogando que o número crescente de
pobres era fruto do ritmo de cresci-
mento desproporcional da popula-
ção em relação ao crescimento da
riqueza, enquanto o outro demons-
trava que era a mesma lógica da
acumulação capitalista que produ-
zia uma superpopulação relativa.
As Leis dos Pobres, as profissões no
campo social, as instituições para
o cuidado da população são todos
instrumentos produzidos em respos-
ta à questão colocada pela pobreza
urbana.
Além da perda dos vínculos de
tutela, a necessidade de uma políti-
ca de proteção social decorre tam-
bém da dissolução das relações so-
ciais de solidariedade existentes no
interior das famílias e das comuni-
dades, e sua substituição por vín-
culos formais entre os indivíduos e
o Estado. Estes novos vínculos, abs-
tratos e impessoais, em base à igual-
dade natural entre os indivíduos,
foram o substrato da emergência do
elemento civil da cidadania.
O rompimento das relações de
solidariedade orgânica no seio da
comunidade requer a construção de
uma mediação entre os indivíduos
dispersos no mercado e o poder po-
lítico, o Estado, capaz de assegurar
a reconstrução, com base neste cons-
truto político igualitário – a cida-
dania –, de uma integração mecâni-
Libertos dos laços de tutela, os
indivíduos perderam seus vínculos
de proteção social e a pobreza emer-
giu como questão social, isto é,
como ameaça à coesão social. Uma
questão social, quando se coloca,
politiza o tema e requer, por conse-
guinte, uma intervenção política.
Para seu enquadramento são desen-
volvidos novos conhecimentos, no-
vas tecnologias, surgem novas pro-
fissões e instituições. Basta lembrar
Proteção social em um mundo globalizado
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 305-314, set./dez. 2005 307
307
ca na comunidade nacional. A co-
munidade se reconstrói como nação,
se identifica pelo pertencimento a
um legado de valores compartilha-
dos e a um patrimônio civilizatório
comum.
A necessidade de novas bases
para o estabelecimento da ação co-
letiva solidária encontra sua condi-
ção material na própria produção
coletiva nas fábricas e na reprodu-
ção cada vez mais interdependente,
nas cidades. A emergência da clas-
se trabalhadora como ator protago-
nista é fruto desta produção e re-
produção coletivizadas, da organi-
zação de classe com base em prin-
cípios de solidariedade e na luta
política que se trava para a trans-
formação da igualdade legal em
igualdade substantiva.
Se a demanda teve o operariado
industrial como seu porta-voz cen-
tral, a resposta à questão social foi
dada, fundamentalmente, pelo Esta-
do, por meio das políticas públicas.
As transformações nas formas pro-
dutivas e nas relações sociais foram
acompanhadas, ou mesmo antece-
didas, pela construção de uma au-
toridade pública central no âmbito
do território nacional, pela concen-
tração e centralização do poder es-
tatal. Assim, ocorreram: a subordi-
nação dos interesses privados ao
interesse público; a construção de
um aparelho estatal unificado e de
uma organização hierárquica e
burocrática; o domínio das técnicas
administrativas de gestão.
Este foi o ponto de partida bri-
lhantemente analisado por T.H. Mar-
shall (1967), quando propôs o para-
doxo do desenvolvimento da cida-
dania, um princípio igualitário e
individualista, no contexto de uma
economia de mercado, baseada na
desigualdade de classe, desigualda-
de esta baseada na condição de pro-
priedade, em face à construção do
Estado-nação.
sim, aprofundar a democracia de
massas.
Em resumo, as condições de
emergência dos sistemas de prote-
ção social foram dadas por vários
fatores, como: o fortalecimento da
autoridade pública; a construção de
uma ordem política baseada no prin-
cipio da igualdade; a existência de
um ator político protagonista, a
classe trabalhadora, organicamen-
te orientada por uma ideologia soli-
dária e uma prática política refor-
madora; e a expansão da cidadania
e inclusão dos direitos sociais como
forma de integração e preservação
da coesão social.
As conseqüências deste proces-
so de modernização, democratiza-
ção e desenvolvimento industrial
foram profundas e complexas, em
âmbitos como o territorial (a cidade
passa a ser o espaço da diversidade
e também o da igualdade dos cida-
dãos, materializando territorialmen-
te a democracia); o social (gerando
reconhecimento e integração, parti-
cipação e legitimação do exercício
do poder, distribuição da riqueza e
concentração dos meios de produ-
ção; o cultural (definição de um
novo padrão civilizatório com base
em valores de igualdade, liberdade
e autonomia dos indivíduos e em
certos pactos sociais sobre direitos
e dignidade humana); a política (am-
pliação do direito de participação no
processo eleitoral e inclusão dos
direitos sociais); o institucional
A possibilidade de compreender
a cidadania só se completa quando
entendemos que a negação real do
princípio igualitário que estrutura
a nova ordem jurídica e política leva
à existência de uma contradição
persistente. Esta contradição entre
igualdade formal e desigualdade
real é o motor das lutas sociais que
terminam por conformar o escopo
da condição de cidadania com a in-
trodução dos direitos sociais e, as-
... CONTRADIÇÃO ENTRE IGUALDADE FORMAL EDESIGUALDADE REAL É O MOTOR DAS LUTAS
SOCIAIS QUE TERMINAM POR CONFORMAR OESCOPO DA CONDIÇÃO DE CIDADANIA COM A
INTRODUÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS E, ASSIM,APROFUNDAR A DEMOCRACIA DE MASSAS
FLEURY, Sonia
308 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 305-314, set./dez. 2005
(transformação do aparato estatal de
um estado mínimo e repressor a um
Estado Ampliado, responsável pelos
direitos cidadãos e pela garantia de
benefícios e serviços sociais); e o
econômico (desmercantilização da
reprodução da força de trabalho,
socialização dos custos desta repro-
dução, produção capitalista estatal-
mente regulada, gerando condições
para o ciclo virtuoso do capitalis-
mo, no qual a maior geração da ri-
queza representava também melho-
res condições de sua redistribuição).
O desenvolvimento dos sistemas
de proteção social expressa este con-
junto de transformações, e a expan-
são dos direitos sociais por meio de
modalidades institucionais distintas
é conseqüência das diferenças nas
relações existentes, em cada socie-
dade, entre Estado e sociedade, e,
dentro desta última, variações acer-
ca da correlação de forças e valores
prevalecentes.
Os limites a esta expansão tam-
bém são conhecidos e podem ser lis-
tados:
• A capacidade de inclusão so-
cial e de redistribuição por meio de
políticas sociais tem seu limite últi-
mo na dinâmica de acumulação ca-
pitalista, mediada pela correlação de
forças sociais e pela institucionali-
dade existente;
• O processo de modernização
e expansão dos valores iluministas
e das instituições democráticas es-
teve limitado pela incapacidade de
a cidadania transcender o território
nacional, e ainda pela existência, no
seu interior do Estado nacional, de
discriminações de classe, etnia e
raça, gênero e idade e, no seu exte-
rior, pela possibilidade de convivên-
cia com o colonialismo;
• A proteção social institucio-
nalizada nos Estado do Bem-estar
Social contribuiu para minar os va-
lores libertários, a dimensão coleti-
vista e solidária – fatores necessá-
rios à manutenção de uma cidada-
nia ativa –, ao transformar a condi-
ção de cidadania em uma pauta de
benefícios individuais;
• As transformações, econômi-
cas, sociais, tecnológicas e culturais
provocaram mudanças demográfi-
cas profundas, relativas ao cresci-
mento populacional, expectativa de
vida, padrão de morbimortalidade,
custos de insumos e tecnologias in-
corporados aos cuidados sociais.
No último quarto do século XX,
assistimos à crise do padrão de de-
senvolvimento capitalista. Esta cri-
se permitiu gerar, cumulativamen-
te, acumulação e redistribuição nas
sociedades capitalistas desenvolvi-
das, ao mesmo tempo que a econo-
mia mundial se transformava em
uma economia cada vez mais glo-
balizada. Isto é, onde os processos
de produção e circulação de capital
e mercadorias estavam cada vez
mais conectados, com a liberaliza-
ção dos mercados e a interconexão
entre etapas produtivas, por meio do
uso intensivo das tecnologias de in-
formação.
As mudanças que acompanham
esta desterritorialização dos merca-
dos e da produção vão ter efeitos
sociopolíticos de grandes dimen-
sões, já que a construção da moder-
nidade envolvia o casamento entre
o mercado, o Estado e a cidadania,
com base no reconhecimento políti-
co de um povo e o exercício da au-
toridade sobre um território.
Enquanto o trabalho havia sido
a categoria organizadora da socie-
dade industrial, nesta nova fase ele
perde tal centralidade. O trabalho já
não se associa ao crescimento de
forma irreversível e a economia pas-
sa a crescer eliminando trabalho de
forma intermitente ou permanente,
gerando uma nova estrutura do
mercado de trabalho. Estas transfor-
mações na estrutura e relações de
trabalho ficaram caracterizadas pela
denominada ‘flexibilização do traba-
lho’ e também pela necessidade de
os indivíduos investirem em sua
condição pessoal de ‘empregabilida-
de’.
A vida dos indivíduos, a sua in-
serção social, seus mecanismos de
proteção social deixam de estar as-
sociados à sua inserção laboral. Isto
tem um enorme impacto na organi-
zação e no financiamento da prote-
ção social, baseada em uma incor-
poração maciça de trabalhadores
jovens que sustentariam os depen-
dentes e os idosos beneficiários do
Proteção social em um mundo globalizado
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 305-314, set./dez. 2005 309
309
sistema. Portanto, uma crise de fi-
nanciamento da proteção social tor-
na-se inexorável.
Por outro lado, os Estado nacio-
nais, que foram o fiador dos direi-
tos relativos à proteção social, são
enfraquecidos em sua autoridade
diante do surgimento e/ou fortaleci-
mento dos poderes supranacionais
e do aumento do poder das empre-
sas transnacionais e do capital fi-
nanceiro, favorecidos pela elevada
mobilidade e volatilidade dos inves-
timentos propiciados pela tecnolo-
gia informacional, que permite o
imediato deslocamento de um país
a outro. Os Estados nacionais pre-
cisaram se adequar a uma conjun-
tura de ajuste fiscal e redução de
seu aparato, aumentar sua capaci-
dade de regulação do mercado, in-
serir-se de forma estratégica no ce-
nário político e econômico interna-
cional.
Neste cenário, deixa de existir a
polarização ideológica entre EUA e
URSS, permitindo a consolidação do
poder econômico imperial do primei-
ro. Assiste-se a uma reorganização
do cenário internacional em blocos
regionais, mas, diferentemente da
polarização da Guerra Fria, o que
está em jogo são opções para forta-
lecer o poderio econômico e não
mais confrontações ideológicas.
Essa mudança na geografia do
poder vem embasada no predomí-
nio da ideologia liberal que propug-
na pela redução do papel do Estado
e conseqüente redução da sua atua-
ção em todos os domínios da pro-
dução e da reprodução social.
Um duplo movimento de deslo-
camento do poder se processou, des-
de o nível central estatal até os ní-
veis subnacionais, e, desde a dimen-
são estatal para a societária. Novos
arranjos entre Estado, mercado e
comunidade foram estabelecidos,
seja por meio de processos de pri-
vatização e descentralização, seja
pela rearticulação entre as organi-
tando o conhecimento da população
sobre suas condições de saúde. No-
vos padrões de desigualdade foram
resultantes dos fluxos migratórios
dos países do Sul para os do Norte,
drenando profissionais e cientistas
altamente capacitados por um lado,
e uma massa de mão-de-obra sem
qualificações por outro. Neste últi-
mo caso, tais grupos de imigrantes
permanecem sem direitos à proteção
social, mesmo em países onde exis-
te o Welfare State.
Essa mobilidade populacional
criou, por outro lado, enormes po-
tencialidades de conexões reais ou
virtuais entre indivíduos e organi-
zações em pontos diferentes do pla-
neta. Este novo tipo de coletivismo
difere, em muito, do coletivismo da
sociedade industrial, em que os in-
divíduos pertenciam a grupos, clas-
ses e organizações. No momento
atual, cada um, sejam indivíduos ou
organizações, vinculam-se a nume-
rosas redes das quais se sentem per-
tencendo enquanto estão ligados,
podendo desligar-se a qualquer
momento. As identidades, portanto,
são muito mais complexas e volá-
teis, porém, são também muito mais
capazes de coletar informações e
criar novas conexões.
Toda a lógica do pensamento li-
beral assentou-se em um reforço do
individualismo, que se bem rompe
com a homogeneização implícita nas
políticas e organizações coletivistas,
o que poderia anunciar uma pers-
zações não governamentais, as em-
presas e os governos. A estrutura
hierárquica que caracterizou o Es-
tado e suas políticas sociais vem
sendo substituída por novos arran-
jos reticulares, com a participação
de diferentes parceiros.
A globalização implicou em um
processo de circulação de capital,
informações, mercadorias e pesso-
as, aumentando a circulação de en-
fermidades, mas também, aumen-
UM DUPLO MOVIMENTO DE DESLOCAMENTO
DO PODER SE PROCESSOU, DESDE O NÍVEL
CENTRAL ESTATAL ATÉ OS NÍVEIS
SUBNACIONAIS, E, DESDE A DIMENSÃO ESTATAL
PARA A SOCIETÁRIA
FLEURY, Sonia
310 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 305-314, set./dez. 2005
A CONVIVÊNCIA DE POLÍTICAS SOCIAIS
UNIVERSALISTAS COM SISTEMAS FOCALIZADOS
DE COMBATE À POBREZA NÃO TEM SIDO CAPAZ
DE INCLUIR OS EXCLUÍDOS...
pectiva libertadora, não chega a ser
emancipadora, pois termina por re-
duzir-se a um individualismo nega-
tivo, um hedonismo egóico. A bus-
ca individual do prazer – o ideal do
sofrimento zero e da felicidade total
–, elevados à condição de norma
social, tornam possíveis todos os
tipos de experimentações do prazer,
até mesmo a reinvenção do eu, sua
produção e seu consumo. O corpo
passa a ser absolutizado como ex-
pressão do eu, um corpo que não é
natural, mas uma criação do indi-
víduo por meio de ginásticas, tatu-
agens e cirurgias plásticas.
A fisiocultura, para além dos
benefícios da promoção à saúde in-
dividual, pode ser vista como ex-
pressão desta perspectiva egocêntri-
ca; tende à perversão, pois a busca
individual do prazer sem a interme-
diação da normatividade social é
perversa, pois o outro é destituído
da condição de sujeito e passa a ser
objeto do meu prazer. Esta é a base
da perversão: a relação objetal. A
este fenômeno social denomino Sín-
drome de Michael Jackson.
Pensar a saúde como ausência
de sofrimento e busca do prazer nos
distancia da perspectiva solidária e
emancipadora da saúde como valor
universal e como núcleo subversi-
vo da estrutura social. Em outros
termos, como projeto civilizatório
que requer a radicalização da de-
mocracia por meio da ação coleti-
va.
Trata-se, portanto, de uma dis-
puta ideológica que se trava no cam-
po da saúde sobre concepções da
sociedade que queremos. A conjun-
tura atual na América Latina mos-
tra um cenário de contradições e
algumas tendências que afetam o
campo das políticas de proteção so-
cial.
É inegável que a região vive, pela
primeira vez e de forma difundida
em quase todos os países e por cer-ca de um quarto de século, em regi-
mes eleitorais competitivos que são
a base institucional da democracia.
sociais, cujos aumentos são insufi-
cientes para garantir proteção soci-
al universal de qualidade.
A convivência de políticas soci-
ais universalistas com sistemas fo-
calizados de combate à pobreza não
tem sido capaz de incluir os excluí-
dos na comunidade política daque-
les que possuem direitos sociais.
A financeirização das políticas
sociais se deu por meio da explo-
são dos seguros de aposentadorias
e de saúde, eliminando possíveis
laços de solidariedade entre aque-
les que participam dos sistemas de
proteção social. A individualização
dos riscos ocorre nas duas pontas
das políticas sociais: seja para a
classe média que alcança a prote-
ção por meio dos seguros privados,
seja para os pobres que recebem
bolsas e outros benefícios assisten-
ciais.
A insegurança deixa de ser vista
como uma condição coletiva e pas-
sa a ser um risco individual. Da
mesma forma, a proteção social
passa a ser para os indivíduos e não
para coletivos e grupos sociais.
A perda da centralidade do tra-
balho, acentuada em nossos países
pela escassez do trabalho formal,
não foi capaz de alterar os vínculos
existentes entre benefícios sociais e
contribuições, perpetuando assim a
exclusão social.
A desmontagem do aparato esta-
tal, das carreiras públicas e da inte-
ligência estatal ocorreu concomitan-
No entanto, persistem as desigual-
dades injustas entre as nações e in-
tranações, apresentando condições
sociais e de saúde incompatíveis
com o padrão nacional de acumu-
lação de riquezas e domínio tecno-
lógico.
A drenagem de recursos financei-
ros no sentido Sul-Norte, por meio
do pagamento dos serviços da dívi-
da tem acarretado uma escassez de
recursos para a área das políticas
Proteção social em um mundo globalizado
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 305-314, set./dez. 2005 311
311
temente ao fortalecimento sem regu-
lação do mercado de serviços soci-
ais, quando os interesses privados
predominam sobre os interesses
públicos.
As conseqüências deste proces-
so contraditório de democratização
sem inclusão social tem sido o au-
mento da discrepância entre a de-
mocracia eleitoral e a democracia
substantiva, entre os novos textos
constitucionais e as políticas reais.
Governos eleitos democratica-
mente que não cumprem suas pro-
messas de campanha e parlamentos
que são incapazes de defender algo
mais que seus próprios interesses
são os elementos causadores do de-
sencanto com a política. Se, por um
lado, assiste-se a uma tendência de
anomia social, caracterizada pela
consciência comum da irrelevância
da política, por outro, assistimos a
inumeráveis crises de governabili-
dade, com o povo nas ruas, por sen-
tir a incapacidade dos seus interes-
ses serem representados pelos go-
vernantes.
Esta ocupação da rua como es-
paço público denota a volta do povo
como categoria política na região e
também a emergência de lideranças
populistas que se apresentam como
representantes das massas inorgâ-
nicas, em detrimento da institucio-
nalidade democrática recém con-
quistada.
As grandes metrópoles da região
são reorganizadas de acordo com
uma lógica da ‘guetização’, na qual
ricos e pobres se fecham em guetos
intransponíveis, em uma cidade que
nada guarda do ideal democrático
de ser o espaço do ‘encontro das di-
ferenças’, igualadas na condição
política da cidadania. Ao contrário,
a cidade passa a ser a expressão da
incapacidade de coesionar socieda-
des tão profundamente injustas e
excludentes. A violência urbana
aflora como o sintoma da desagre-
gação social. O aumento da intole-
nacional e inclusão na esfera públi-
ca. A nossa questão social aparece
como sendo a exclusão e seus efei-
tos sobre a sociabilidade deteriora-
da.
A exclusão não pode ser confun-
dida com um grau a mais na desi-
gualdade por tratar-se de fenômeno
de natureza distinta, que implica em
transformar a diferença em uma
norma social que sanciona o impe-
dimento do outro partilhar da comu-
nidade, de pertencer à mesma esfe-
ra pública onde os cidadãos, igua-
lados politicamente, podem estabe-
lecer trocas simbólicas.
Este outro – favelado, mulher,
homossexual, negro, idoso, índio,
muçulmano, ou até mesmo o pobre
– é visto como algo a ser elimina-
do, não para ser incorporado sequer
na condição de dominado.
Isto leva a uma fratura sociopo-
lítica que se manifesta como convi-
vência, em uma mesma sociedade,
de um híbrido institucional, uma
institucionalidade para os que es-
tão incluídos e outra para os exclu-
ídos. Basta ver como o Estado está
ausente dos territórios marginais,
ou mesmo como a insidiosa diferen-
ça se manifesta na diferença de aco-
lhimento e qualidade dos serviços
públicos.
Uma democracia com exclusão
retira legitimidade da ordem políti-
ca, pois o poder político não é naci-
onal, já que não incorpora a popu-
lação na comunidade nacional; não
rância com a diferença, a visão do
outro como potencial ameaça, a
ausência de uma ética pública, a
visão do governo como corrompido
e incapaz de assegurar condições de
segurança, reforçam o individualis-
mo e corrompem a dimensão cívica
da cidadania.
Em resumo, esta é a nossa ques-
tão social, ou seja, aquela que pode
ser o analisador da perda dos vín-
culos sociais capazes de coesionar
a comunidade, gerando integração
A NOSSA QUESTÃO SOCIAL APARECE COMO
SENDO A EXCLUSÃO E SEUS EFEITOS SOBRE ASOCIABILIDADE DETERIORADA
FLEURY, Sonia
312 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 305-314, set./dez. 2005
é democrática, pois o exercício do
poder não se baseia em um princí-
pio de justiça e igualdade; não é re-
publicano, pois o Estado é patrimô-
nio das elites e está a seu serviço.
No âmbito das políticas sociais,
a dualidade institucional se repro-
duz na dicotomia entre políticas de
integração (de caráter universal) e
políticas de inclusão (dirigidas a
grupos focais). Neste último caso,
por não incorporar os benefícios
sociais à condição dos direitos de
cidadania, introduz-se a contradição
entre a redução da desigualdade
econômica por meio de um meca-
nismo que reafirma a diferença de
status político, além de disciplinar
o cotidiano dos assistidos.
No campo das políticas de saú-
de, assistimos a um movimento re-
formador importante na região, em
busca da superação dos elevados
níveis de exclusão ao direito à saú-
de, estratificação dos benefícios e
instituições para os incluídos, irra-
cionalidade e superposição institu-
cional e má qualidade da atenção.
São experimentados três mode-
los de reforma:
• Um modelo de mercado, es-
tabelecido pela reforma no Chile em
1980, o qual assume a dualidade
institucional como seu princípio de
estruturação: os que podem vão ao
mercado de seguros, e o Estado pro-
tege os remanescentes no sistema
público. Tal modelo aumentou a
segmentação e a desigualdade pois
não permite mecanismos solidários;
• Um modelo público univer-
sal, estabelecido no Brasil na Cons-
tituição Federal de 1988, implanta-
do de forma descentralizada e parti-
cipativa, carecendo, no entanto, de
recursos financeiros capazes de al-
terar a lógica da oferta curativa e
altamente concentrada da rede de
serviços. Tal sistema convive com
um mercado de seguros de saúde
para onde migrou a classe média;
Em todos os três casos, houve
aumento da cobertura, embora os
três sistemas tenham sido incapa-
zes de eliminar as desigualdades,
seja porque seu desenho já compor-
tava uma lógica diferencial, seja pela
incapacidade de construir uma éti-
ca do cuidado e as condições hu-
manas, gerenciais e materiais para
assegurar igualdade de acesso e
utilização de serviços de qualidade.
Diante destas experiências de li-
mitada eficácia para assegurar a
proteção social e a garantia do di-
reito à saúde nos perguntamos
quais são as tendências e potencia-
lidades que se apresentam neste ce-
nário de globalização.
Como procuramos mostrar, são
complexos os efeitos dos processos
atuais de reorganização das lógicas
produtiva e reprodutiva, gerando
ambivalências e contradições em
relação à inclusão social.
Novas e renovadas dinâmicas de
exclusão convivem com aquelas que
já fazem parte da nossa história na-
cional. Por outro lado, há uma ten-
são crescente entre o limitado invó-
lucro nacional da cidadania e as
potencialidades geradas pela circu-
lação de informações e o aumento
das expectativas em relação à pro-
teção social. As migrações questio-
nam o nacionalismo da cidadania;
os direitos humanos se impõem
como universais e desterritorializa-
dos, os poderes nacionais se su-
• Um modelo de seguro, es-
tabelecido na Colômbia com a Lei
100, de 1993, que se pretende plural
por comportar instituições públicas
e privadas, competitivas com base
na demanda de serviços. Criou tam-
bém um mecanismo solidário de in-
clusão progressiva dos pobres na
condição de assegurados, porém não
foi capaz de universalizar ou reduzir
as diferenças entre os dois tipos de
seguros.
NO CAMPO DAS POLÍTICAS DE SAÚDE,ASSISTIMOS A UM MOVIMENTO REFORMADOR
IMPORTANTE NA REGIÃO, EM BUSCA DA
SUPERAÇÃO DOS ELEVADOS NÍVEIS DE
EXCLUSÃO AO DIREITO À SAÚDE...
Proteção social em um mundo globalizado
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 305-314, set./dez. 2005 313
313
bordinam a estratégias regionais. A
perda do referente nacional mostra
a existência de uma sociedade cada
vez mais policêntrica, descentrada
e descentralizada.
Ainda que estes fenômenos pos-
sam ser vistos como ameaças à co-
esão social, porque geram identida-
des competitivas, também é certo
que fortalecem o poder local, seja
ele o poder público ou a sociedade
local, gerando novas condições de
governança local, potencialmente
mais favorável à inovação social.
Desta forma, existe a possibilidade
de reconciliar a cidadania com a
comunidade, resgatando a noção de
cidadania ativa, por meio de proces-
sos de deliberação e co-gestão.
A tensão entre o local, o nacio-
nal e o global impõem a busca de
uma nova territorialidade para a
cidadania, já que direitos distintos
passam a ser reivindicados em ní-
vel também diferenciado, como os
direitos humanos e ambientais cada
vez mais globalizados, os direitos
sociais e políticos em âmbito nacio-
nal e os de participação e delibera-
ção restringidos ao nível local.
Outra tensão presente é relativa
à igualdade implícita na condição
de cidadania e as reivindicações
atuais de respeito às diferenças. As
diferenças são afirmadas não como
incapacidades, mas como singula-
ridades que não podem ser desca-
racterizadas por meio de políticas
homogêneas, que terminam por rei-
ficar padrões normativos de domi-
nação.
Trata-se de repensar as políticas
sociais a partir da centralidade do
cidadão-usuário e não do predomi-
no da lógica da burocracia e das
especializações profissionais. En-
fim, trata-se de pensar em condições
de igualdade complexa e de cidada-
nia diferenciada.
A possibilidade de emancipação
é cada vez mais decorrente da com-
preensão do lugar desta singulari-
individual, para se colocar como
prática social transformadora, pois
a autonomia é mediada social e ins-
titucionalmente, requerendo a acei-
tação e reconhecimento do outro (al-
teridade) e das interdependências
mútuas.
A revolução dos excluídos nesta
perspectiva emancipadora tem sido
uma revolução molecular, que per-
mite formular os dramas cotidianos
em uma linguagem pública dos di-
reitos. Ao contrário dos modelos de
proteção social que tiveram como
ator central a classe trabalhadora,
o novo desenho das políticas e mo-
delos de proteção não é fruto de uma
ação coletiva organicamente direci-
onada. Ao contrário, enquanto todos
falam dos pobres e excluídos como
um lugar vazio de poder, estamos
deixando de reconhecer o intenso
movimento molecular de adensa-
mento da esfera pública e da cida-
dania que se processa de forma in-
visível e subterrânea. Restaria pen-
sar como as políticas públicas po-
dem favorecer estes processos mo-
leculares, sem correr o risco de que-
rer discipliná-los ou cooptá-los.
As novas formas organização em
forma de redes de políticas impõem
desafios quanto a uma gestão com-
partilhada, mais democrática porque
mais capilar, diversa e plural. Bus-
car mobilizar recursos e coordenar
interdependências passa a ser o
grande desafio da gestão. No entan-
to, não há como diluir o papel do
dade no contexto social e, a partir
daí, gerar condições para a recons-
trução de auto-imagens e hetero-
imagens deterioradas pelas políticas
universais normalizadoras. Lingua-
gens simbólicas que remetem à uni-
versalidade, como a arte e o traba-
lho corporal, se colocam como pos-
sibilidade de construção de sujeitos
autônomos e emancipados. A auto-
nomia deixa de ser pensada em ter-
mos liberais, do cálculo utilitário
EXISTE A POSSIBILIDADE DE RECONCILIAR ACIDADANIA COM A COMUNIDADE, RESGATANDO
A NOÇÃO DE CIDADANIA ATIVA, POR MEIO DE
PROCESSOS DE DELIBERAÇÃO E CO-GESTÃO
FLEURY, Sonia
314 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 305-314, set./dez. 2005
Estado nesta nova forma reticular
de sociabilidade e organização. Há
que ter em conta o papel do Estado
como mediador dos conflitos, espe-
cialmente os distributivos, o que
requer fortalecer sua institucionali-
dade e os princípios de transparên-
cia, mérito e imparcialidade de sua
burocracia.
A combinação de estruturas bu-
rocráticas com formas reticulares,
da responsabilização e regulação
com a co-gestão, a democracia re-
presentativa com a deliberativa, es-
tes são os novos desafios para cons-
trução de uma proteção social que
seja capaz de ampliar a esfera pú-
blica, por meio do reconhecimento,
participação e redistribuição. O fra-
casso em um destes elementos será
o fracasso da democracia entre nós.
As potencialidades, no entanto, são
tão grandes quanto os desafios que
estão colocados.
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Federativa do Brasil. DOU-I, Brasí-
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CONGRESSO MUNDIAL DE SAÚDE
PÚBLICA, 11.; CONGRESSO BRASI-
LEIRO DE SAÚDE COLETIVA, 8.,
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MALTHUS, T.R. Ensaio sobre a po-
pulação. São Paulo: Abril Cultura,
1983. (Coleção Os Economistas).
MARSHALL, Theodor H. Cidadania,
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ro: Zahar Editores, 1967.
MARX, Karl. O Capital. Rio de Ja-
neiro: Civilização Brasileira, 1980.
Saúde, Desenvolvimento e Global ização
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 315-326, set./dez. 2005 315
ARTIGOS DE OPINIÃO / OPINION ARTICLES
Saúde, Desenvolvimento e GlobalizaçãoHealth, Development and Globalization.
Edmundo Gallo 1
Janice Dornelles de Castro2
Joseane Carvalho Costa 3
Vivian Studart4
Sandra Willecke5
Recebido: Mar./2006
Aprovado: Jun./2007
1 Pesquisador Adjunto e Coordenador deProgramas e Projetos Estratégicos da Fio-cruz Brasília, Vice-presidente do Cebes(1989/1990), Conselheiro Editorial do Cebes.
E-mail: gallo@fiocruz.br
2 Doutora em saúde coletiva – Unicamp,Pesquisadora visitante da Fiocruz, direto-ria da Associação Brasileira de Economiada Saúde.
E-mail: janice@fiocruz.br
3 PhD em Ciências – Professora pesquisa-dora da Universidade Federal do Pará –Assessora da Coordenação de Programase Projetos Estratégicos da FundaçãoOswaldo Cruz/Brasília.
E-mail: joseane@fiocruz.br
4 Gerente de Projeto, Assessora Técnica daFiocruz, Especialista em Saúde Pública –ENSP/Fiocruz, Mestranda em Saúde Públi-ca – ENSP/Fiocruz.
E-mail: vivian@fiocruz.br
5 Analista em C&TSP da Fiocruz, Mestreem Políticas e Gestão Públicas – UFRN eAnalista em Relações Internacionais
E-mail: willecke@fiocruz.br
RESUMO
Uma das principais questões da atualidade é a articulação entre saúde
e desenvolvimento. Como alcançar o desenvolvimento soberano e susten-
tável com crescimento e justiça social?. O objetivo desse artigo é, através
da revisão bibliográfica, identificar estudos que analisaram o setor en-
quanto pólo dinâmico de desenvolvimento, gerador de renda e capaz de
propiciar a integração regional e entre países, contribuindo para a revisão
da visão da saúde enquanto uma atividade que apenas traz elevados cus-
tos para a sociedade. Abordando a discussão da saúde, desenvolvimento e
globalização buscando um novo sentido, e assim construindo uma nova
concepção de desenvolvimento que deve considerar a garantia das necessi-
dades sociais básicas.
PALAVRAS –CHAVE: Saúde Global, Economia da Saúde, Desenvolvimento.
ABSTRACT
One of the main contemporary issues is regarding the relationship be-
tween health and development. How can sovereign and sustainable deve-
lopment be achieved with growth and social justice? This article aims to
identify through a bibliographical review studies which examine the health
sector as a dynamic center for development and income, capable of gene-
rating regional and international integration, contributing to revise the
vision of health as an activity that only brings about high costs for the
society. The discussion of health, development and globalization is appro-
ached in order to establish a new meaning and therefore build a new con-
cept of development, which must consider ensuring basic social needs.
KEYWORDS: Global Health, Health Economics, Development.
GALLO, Edmundo et al
316 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 315-326, set./dez. 2005
APRESENTAÇÃO
Este artigo pretende identifi-
car como os conceitos de desenvol-
vimento e globalização foram abor-
dados pela política de saúde, espe-
cialmente em sua relação com as
políticas econômica, externa e de
desenvolvimento regional, propon-
do uma abordagem teórico-concei-
tual que possibilite analisar e des-
tacar o seu potencial de contribui-
ção para um projeto global contra-
hegemônico em uma perspectiva
multipolar e solidária. Para alcan-
çar este objetivo, o texto foi organi-
zado iniciando pela apresentação do
pensamento de alguns autores so-
bre o desenvolvimento econômico e
as possíveis articulações deste con-
ceito com a questão da saúde, se-
guido de um breve panorama da
relação entre desenvolvimento e
saúde no Brasil, continuando na
discussão das relações entre Saúde
e Globalização e, por fim, apresen-
tando o contexto atual do setor saú-
de no Brasil e seus desafios.
SAÚDE EDESENVOLVIMENTO
Existem alguns argumentos que
defendem a importância do setor
saúde para o desenvolvimento: o
primeiro salienta sua importância
para o desenvolvimento humano
com eqüidade e justiça social, e o
segundo destaca a saúde na totali-
dade de seu complexo produtivo,
valorizando-a como fator de desen-
volvimento pelo elevado grau de
inovação, lucratividade e emprega-
bilidade do setor, com potencial eco-
nômico e tecnológico para incremen-
tar a integração regional. (GADE-
LHA, 2003, 2006; GALLO et al, 2004,
2005; BRASIL, 2004; CASTRO,2004;
FERLA,2004).
No Brasil, o desenvolvimento as-
sumiu principalmente a característi-
Ao longo dos tempos, a teoria
econômica tem evoluído na sua con-
cepção de desenvolvimento. O libe-
ralismo de Adam Smith afirma que
são os interesses individuais reali-
zados livremente no mercado, har-
monizados pela “mão invisível”,
que levariam a sociedade ao está-
gio de bem–estar. A riqueza das
nações depende do trabalho produ-
tivo, capaz de produzir excedente de
valor sobre o custo de reprodução
da mão de obra. A divisão do tra-
balho é a força dinâmica deste pro-
cesso e depende da extensão dos
mercados interno e externo
Para Marx, o desenvolvimento
capitalista ocorre por meio de ciclos
e crises periódicas. O progresso téc-
nico libera trabalhadores e aumen-
ta a taxa de exploração, elevando a
taxa de lucro. Mas reduz a deman-
da por trabalho e, em longo prazo,
reduz a taxa de lucro, pois aumen-
ta a parcela de capital constante na
composição orgânica do capital, o
que diminui a capacidade de extra-
ir mais-valia, traduzindo-se em cri-
ses de subconsumo e crises de des-
proporção entre consumo e produ-
ção. (SOUZA, 2005; HUNT,1981).
Keynes centra a sua análise na
abordagem macroeconômica do ple-
no emprego, nos fatores de cresci-
mento dos investimentos e seus
impactos sobre a renda e emprego.
Focaliza na demanda efetiva, reali-
zando uma análise estática e de
curto prazo. As pessoas não gastam
ca de crescimento econômico, deter-
minando elevados índices de urba-
nização e industrialização, mas
também criando enormes desigual-
dades entre as regiões e em relação
à distribuição da renda.
O impacto na saúde se refletiu
em investimentos maciços em infra-
estrutura assistencial (obras e equi-
pamentos), marcadamente desigual
entre e inter-regiões.
NO BRASIL, O DESENVOLVIMENTO ASSUMIU
PRINCIPALMENTE A CARACTERÍSTICA DE
CRESCIMENTO ECONÔMICO, DETERMINANDO
ELEVADOS ÍNDICES DE URBANIZAÇÃO EINDUSTRIALIZAÇÃO, MAS TAMBÉM CRIANDO
ENORMES DESIGUALDADES ENTRE AS REGIÕES
E EM RELAÇÃO À DISTRIBUIÇÃO DA RENDA
Saúde, Desenvolvimento e Global ização
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 315-326, set./dez. 2005 317
toda sua renda em consumo e, ne-
cessariamente, não investem o que
não é consumido, parte da renda
“vaza”, sai da esfera da economia
(poupança, impostos, importação),
impedindo o pleno emprego. Com a
crise de 1930, ganha força esta abor-
dagem, que coloca ênfase no inves-
timento como motor do crescimen-
to. Mediante seu efeito multiplica-
dor, o governo influencia o nível de
emprego pelo uso de política fiscal
(gastos públicos, tributação, em-
préstimos), política monetária
(emissão ou controle de moeda, fi-
xação da taxa de juros) e política
cambial. Assim, o governo age so-
bre as expectativas dos empresári-
os influenciando o nível de investi-
mento. (SOUZA, 2005; HUNT,1981).
Há também o paradigma desen-
volvimentista latino-americano, da
CEPAL – Comissão Econômica para
Americana Latina e Caribe, cujo
principal idealizador foi Raul Pre-
bish. Para os cepalinos existe um
padrão específico de inserção inter-
nacional, de oposição entre centro
e periferia, sendo a última, produ-
tora de
(...) bens e serviços com demanda
internacional pouco dinâmica, e impor-
tadora de bens e serviços com deman-
da doméstica em rápida expansão, e
absorvedora de padrões de consumo e
tecnologias adequadas ao centro, mas
freqüentemente inadequadas à dispo-
nibilidade de recursos e ao nível de ren-
da da periferia (BIELSCHOWSKY, 2000,
p. 22).
Portanto, os processos de cres-
cimento, emprego e distribuição de
renda na periferia são distintos da-
queles dos países centrais, exigin-
do a industrialização para superar
o subdesenvolvimento e a pobreza.
Mas as economias periféricas têm
estruturas pouco diversificadas e
tecnologicamente heterogêneas, le-
vando à tese da tendência à deterio-
produção e emprego. É importante
o papel do empresário inovador e
do crédito. Distingue crescimento de
desenvolvimento. O crescimento
decorre de combinações antigas dos
meios de produção, trabalho e re-
cursos naturais, é um processo de
adaptação. O desenvolvimento é
produzido pelas variáveis inova-
ções e instituições; é um fenômeno
novo, desloca o ponto de equilíbrio
para um novo patamar, baseia-se
na função empresarial, inovações
tecnológicas e crédito. Mas existem
falhas de mercado, como retornos
crescentes à escala e às externali-
dades, que levam a falhas de de-
manda efetiva. Onde há concorrên-
cia imperfeita, o governo procura
intervir através de impostos, ofer-
tando bens públicos, regulando
monopólios, nacionalizando indús-
trias, criando leis antitruste. Mas as
falhas de mercado são substituídas
por falhas de governo, o bem-estar
reduz-se em vez de aumentar, os
recursos públicos são mal gastos,
há desperdício e redução de eficiên-
cia global. O empresário, por sua
vez, está sempre tentando romper o
equilíbrio, ao introduzir inovação
geradora de lucro puro e, portanto,
de imperfeições de mercado. Chama-
se a este processo de destruição cri-
adora (SOUZA, 2005; HUNT,1981,
CASTRO,2002).
Sen (2000), por sua vez, intro-
duz a idéia de desenvolvimento
como liberdade, acredita que o cres-
ração dos termos de trocas entre
centro e periferia.
Schumpeter, como os clássicos,
enfatiza o lado da oferta na expli-
cação do crescimento econômico.
Identifica, nos novos produtos e pro-
cessos, o motor do crescimento, pois
sempre haverá demanda para estes
bens. Assim, investimentos em má-
quinas e capacitação tecnológica
dinamizam a economia ao gerar
efeitos de encadeamento sobre a
OS PROCESSOS DE CRESCIMENTO, EMPREGO EDISTRIBUIÇÃO DE RENDA NA PERIFERIA SÃO
DISTINTOS DAQUELES DOS PAÍSES CENTRAIS,EXIGINDO A INDUSTRIALIZAÇÃO PARA SUPERAR
O SUBDESENVOLVIMENTO E A POBREZA
GALLO, Edmundo et al
318 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 315-326, set./dez. 2005
cimento do Produto Nacional Bruto
(PNB) ou da renda per capita, pode
ser um meio importante de expan-
dir as liberdades dos cidadãos, mas
depende também de condições soci-
ais e econômicas, como serviços de
saúde e educação, e dos direitos
civis, como a liberdade de partici-
par. Afirma que a industrialização,
a modernização ou o progresso tec-
nológico podem contribuir para o
desenvolvimento, mas que este
(...) requer que se removam as prin-
cipais fontes de privação de liberdade:
pobreza, tirania, carência de oportu-
nidades econômicas e destituição soci-
al sistemática, negligência dos servi-
ços públicos e intolerância ou interfe-
rência excessiva dos Estados repressi-
vos. (SEN, 2000, p.18).
A partir destas abordagens, pode-
se assumir que o conceito de desen-
volvimento, aplicado à saúde, deve
necessariamente levar em conside-
ração a dimensão da justiça social,
do acesso à educação, à saúde, à
água, ao saneamento e à terra, mas
também deve considerar o seu po-
tencial econômico, a inovação e a
intervenção do governo conduzindo
o processo de desenvolvimento, que
terá como conseqüência a geração
de consumo, emprego, lucro e dis-
tribuição de renda.. Assim, emerge
uma nova concepção de desenvol-
vimento que deve considerar a ga-
rantia das necessidades sociais bá-
sicas, mais vinculadas à garantia
do bem-estar social, articulado ao
crescimento econômico sustentável
com eqüidade e justiça social.
DESENVOLVIMENTOE SAÚDE NO BRASIL
A formação de um sistema de
atenção à saúde foi concomitante à
transformação da forma de organi-
produção, segundo Offe (1984),
pressupõe a existência de indivídu-
os “livres”, despojados dos meios
de produção e dispostos a vender a
sua força de trabalho no mercado.
Porém este processo não é espontâ-
neo. É importante a ação do Esta-
do, no sentido de organizar o con-
texto social, para o desenvolvimen-
to e reprodução da acumulação ca-
pitalista (O’DONNEL, 1980).
É neste contexto que o Estado
brasileiro implementou as primei-
ras políticas sociais (GALLO, 1993).
As principais políticas de saúde fo-
ram o saneamento básico dos por-
tos e dos núcleos urbanos e as cam-
panhas de vacinação de cunho im-
positivo. As políticas previdenciá-
rias pioneiras foram a garantia de
benefícios e auxílios viabilizados
pelo Estado e por algumas empre-
sas privadas. O desenvolvimento
destas políticas possibilitou a imi-
gração, a consolidação dos núcle-
os urbanos e a criação do mercado
de trabalho, favorecendo a integra-
ção da economia brasileira no mer-
cado mundial e viabilizando a acu-
mulação e reprodução do capital
(OFFE,1984).
Com o golpe militar de 1964,
modificou-se a relação entre o Es-
tado e as classes sociais, constitu-
indo-se novas alianças entre a bu-
rocracia civil e militar, o capital
nacional e o capital estrangeiro. O
Estado brasileiro deste período ti-
nha como característica a autono-
zação da produção, a qual corres-
pondeu à primeira etapa de desen-
volvimento capitalista. Ou seja,
quando a economia, escravocrata
produtora de algodão e açúcar para
exportação, deu lugar à lavoura
cafeeira exportadora com base na
mão-de-obra assalariada, tornou-se
necessário organizar o mercado de
trabalho e criar condições para via-
bilizar a acumulação cafeeira. A
forma capitalista de organizar a
A FORMAÇÃO DE UM SISTEMA
DE ATENÇÃO À SAÚDE FOI CONCOMITANTE ÀTRANSFORMAÇÃO DA FORMA
DE ORGANIZAÇÃO DA PRODUÇÃO
Saúde, Desenvolvimento e Global ização
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 315-326, set./dez. 2005 319
mia da sua dimensão política em
relação à dimensão econômica e
social (MARTINS, 1985), em função
da inexistência de mecanismos de
representação democrática que limi-
tasse sua ação, tornando-se cada
vez mais autônomo, criando inte-
resses burocráticos próprios e esta-
belecendo um novo padrão neo-cor-
porativo onde eram privilegiados os
grupos dominantes, e a maioria da
sociedade era excluída da partici-
pação.
Nesse contexto, foi novamente
reformulado o sistema de saúde: a
gerência financeira foi centralizada
no Estado; foram excluídos da par-
ticipação os trabalhadores e patrões;
aumentou-se e unificou-se a contri-
buição, crescendo a disponibilida-
de de recursos. A política do Esta-
do de exclusão da participação dos
trabalhadores e patrões e de defesa
de interesses burocráticos próprios
(MARTINS, 1984) permitiu o desen-
volvimento de um modelo de assis-
tência em que se privilegiavam os
interesses das classes dominantes,
ao mesmo tempo em que se ampli-
ava o poder da burocracia estatal.
Novas transformações importan-
tes ocorreram a partir de 1988 com
a aprovação da Constituição Fede-
ral e da Lei Orgânica da Saúde em
1990 (Lei 8.080 de 19 de setembro
1990). A nova Constituição estabe-
lece em seu art.196 que “A saúde é
direito de todos e dever do Esta-
do...” (BRASIL, 1988) e que o aces-
so aos serviços de saúde deve ser
igualitário, universal e integral.
O Estado brasileiro, portanto,
atuou e continua atuando como
principal financiador das políticas
de saúde no país desde a sua for-
mação. Apesar disso, não logrou
induzir o desenvolvimento susten-
tável e continuado, dinamizando a
economia, a partir dos investimen-
tos realizados nesta área. Isso ocor-
re, principalmente, porque não se
considerou a dinâmica do comple-
ga os setores envolvidos com a pres-
tação de serviços de saúde. Segun-
do o autor, é este último grupo que
confere organicidade ao complexo,
sendo seu motriz; ou seja, a sua
contração ou expansão impacta di-
retamente nos outros setores. Gallo
et al (2005) ampliam este conceito
para complexo produtivo, acrescen-
tando as cadeias produtivas de ci-
ência e tecnologia e de formação de
força de trabalho como outras di-
mensões do CPS.
Estas abordagens acreditam no
potencial de dinamismo e inovação
da área social para o desenvolvi-
mento. É necessário, no entanto, que
o Estado articule os diversos seto-
res do complexo produtivo com as
políticas sociais, situação que não
ocorre no Brasil (BRASIL, 2004).
Aqui assistimos a “...desarticulação
entre a política de saúde e uma po-
lítica para o desenvolvimento das
indústrias do setor” (GADELHA,
2003;), ou seja, o SUS é uma políti-
ca social bem- sucedida e que de-
termina, contraditoriamente, mai-
or dependência das importações,
pois não foram criadas as condições
para a produção interna dos insu-
mos necessários para o seu funcio-
namento, refletindo a incapacidade
das políticas de saúde de induzirem
o desenvolvimento (GALLO & COE-
LHO, 2005).
É nesta conjuntura que se colo-
ca uma grande questão, também
apontada na agenda política mun-
xo produtivo da saúde (CPS) na for-
mulação das políticas de investi-
mento setorial.
Conforme Gadelha (2003), o com-
plexo industrial da saúde é compos-
to por três grandes grupos de ativi-
dades: do primeiro, fazem parte as
indústrias de base química e bio-
tecnológica; do segundo grupo, as
atividades de base física, mecâni-
ca, eletrônica e de materiais; e, por
fim, há um terceiro grupo que agre-
O ESTADO BRASILEIRO (...) ATUOU ECONTINUA ATUANDO COMO PRINCIPAL
FINANCIADOR DAS POLÍTICAS DE SAÚDE NO
PAÍS DESDE A SUA FORMAÇÃO. APESAR DISSO,NÃO LOGROU INDUZIR O DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL...
GALLO, Edmundo et al
320 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 315-326, set./dez. 2005
dial: como alcançar o desenvolvi-
mento soberano e sustentável com
crescimento e justiça social? Este é
um dos principais desafios coloca-
dos para as sociedades na atuali-
dade, e para responder a ele, torna-
se necessário articular as políticas
de saúde e desenvolvimento, consi-
derando o contexto da globalização.
SAÚDE E GLOBALIZAÇÃO:A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA
A política externa do Brasil pas-
sou, paulatinamente, a tratar a saú-
de como uma questão relevante
(GALLO et. al., 2005; GOVERNO FE-
DERAL, 2005; MERCOSUL, SGT-11,
2003, 2004;19 e 2005; MERCOSUL,
GMC, 2005), demandando que a for-
mulação e implementação da polí-
tica de saúde se alinhem às suas
diretrizes, de modo a possibilitar a
construção da segunda mão dessa
via entre política externa e política
de saúde no Brasil (TREVAS, 2005;
GALLO & COSTA, op. cit.).
Atualmente as prioridades da
política externa são duas: (a) a in-
tegração da América do Sul, tendo
como base o Mercosul; (b) o aumen-
to das exportações e da inserção
política e econômica do Brasil no
cenário internacional, tendo por
base a integração. Algumas ques-
tões colocadas pela política exter-
na brasileira muitas vezes não es-
tão em consonância com a agenda
hegemônica internacional, como,
por exemplo, na discussão sobre a
função do Estado no desenvolvimen-
to econômico e social e sobre a ga-
rantia dos direitos sociais.
A área da saúde no Brasil – mes-
mo em uma conjuntura política e
econômica adversa, interna e exter-
namente, nos anos 80 e 90 – conse-
guiu realizar uma reforma no se-
tor, incluindo, na Constituição Fe-
deral de 1988, a criação da Seguri-
dade Social, em uma perspectiva
tanto política (saúde e seguridade),
quanto técnico-operacional (Sistema
Único de Saúde).
Há, portanto, um background
que habilita a saúde a ser uma das
áreas de ponta para fortalecer a pro-
posta da política externa, qual seja,
a de colocar o Brasil como um in-
terlocutor importante no cenário
internacional, tendo como perspec-
tiva a solidariedade, a diversidade
e a justiça social, promovendo uma
nova relação entre Estado e Socie-
dade.
CONTEXTO ATUAL DO SETORSAÚDE NO BRASIL
O setor saúde é dotado de espe-
cificidades decorrentes de sua apro-
ximação com os problemas reais ou
potenciais da população, que con-
dicionam a identificação de temas
prioritários para pesquisa científi-
ca, desenvolvimento tecnológico e
institucional ,e a conseqüente neces-
sidade de sistematização e incorpo-
ração dos novos conhecimentos e
tecnologias ao Sistema Único de
Saúde (SUS).
Este setor vem se deparando
com uma série de desafios, impos-
tos principalmente pelas modifica-
ções nas condições de vida da po-
pulação. A despeito das importan-
tes conquistas na área da saúde re-
gistradas nas últimas décadas, ain-
da persistem iniqüidades e novas
contrária à lógica da maioria dos
países. Além de avançar sob o pon-
to de vista ideológico e doutriná-
rio, também foi possível transfor-
mar esta perspectiva em um siste-
ma operacional com um conjunto
de experiências positivas importan-
tes: o Sistema Único de Saúde - SUS.
Esta característica reforça o argu-
mento de que a saúde seja um dos
vetores importantes da política ex-
terna, portadora de uma Agenda
A ÁREA DA SAÚDE NO BRASIL – MESMO EM
UMA CONJUNTURA POLÍTICA E ECONÔMICA
ADVERSA, INTERNA E EXTERNAMENTE, NOS
ANOS 80 E 90 – CONSEGUIU REALIZAR
UMA REFORMA NO SETOR ...
Saúde, Desenvolvimento e Global ização
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 315-326, set./dez. 2005 321
dificuldades surgem no esforço de
prover o acesso universal, equâni-
me e integral às ações e aos servi-
ços de promoção, proteção e recu-
peração da saúde, princípios que
norteiam o funcionamento do SUS
(BLOOM, 2005; DRACHLER, 2003;
PELEGRINI, 2005).
O quadro sanitário prevalente do
país é diversificado e reflete a pre-
sença de diferentes perfis epidemi-
ológicos: coexistem enfermidades
infecciosas e parasitárias, caracte-
rísticas de países em desenvolvimen-
to, e as doenças crônicas, como as
cardiovasculares e neoplasias, típi-
cas dos países desenvolvidos. Ain-
da nesse contexto, interagem aspec-
tos associados à migração para os
grandes centros urbanos, cujo con-
tingente populacional passa a viver
nas periferias, sem infra-estrutura
necessária de saneamento e habita-
ção.
Observa-se a importância cres-
cente das chamadas causas exter-
nas, expressão da violência social
em suas mais diversas formas, e
das doenças crônicas não-transmis-
síveis, ao lado da re-emergência e
permanência de doenças infecciosas
e parasitárias – se não como causa
de óbito, como morbidade detecta-
da pelo sistema de vigilância epi-
demiológica e pelos registros de
consulta ambulatorial e hospitalar
– configurando, assim, um “mosai-
co epidemiológico” de grande com-
plexidade. Complexidade esta que
se amplia em virtude da distribui-
ção diferenciada dos riscos e agra-
vos nos diversos grupos da popu-
laçãoe e desigualdade que se expres-
sa nas diferenças observadas nas
taxas e coeficientes das regiões do
país, ou entre regiões do mesmo
estado. Por outro lado, a ampliação
do acesso às medidas de controle e
aos serviços de saúde, associada ao
desenvolvimento de novas tecnolo-
gias, promoveu o aumento na ex-
pectativa de vida e, por conseguin-
protocolos clínicos e gerenciais e
ferramentas de tecnologia da infor-
mação, entre outras. Destaca-se,
também, a integralidade como um
dos principais aspectos da política
de humanização da atenção à saú-
de, entendida tanto do ponto de vis-
ta da articulação das ações de pro-
moção, prevenção e recuperação,
quanto do ponto de vista da conti-
nuidade do cuidado.
Este contexto tem demandado
insumos estratégicos para o siste-
ma, que são oriundos dos distintos
segmentos do complexo produtivo
da saúde. Essa demanda, entretan-
to, não tem sido utilizada como
política de indução ao desenvolvi-
mento e à integração regional. In-
vestimentos crescentes em unidades
de saúde e equipamentos, por exem-
plo, têm sido realizados sem que
haja uma mobilização articulada do
CPS, redundando em ineficiência e
desperdício de recursos financeiros
e, principalmente, em ineficácia so-
cial e em baixo impacto no desen-
volvimento e integração (BRASIL,
2004, GALLO & COELHO, 2005).
O enfrentamento desses proble-
mas, visando à qualificação da
atenção e da gestão, exige estreita
sintonia entre as políticas externa,
de saúde, de ciência e tecnologia,
de desenvolvimento e de integração
nacional, ampliando o foco que atu-
almente está centralizado na assis-
tência, a fim de abranger o CPS
como um todo.
te, o envelhecimento da população,
demandando ações e serviços espe-
cíficos (COHEN, 2005; PRESTON et.
al, 2001; FERLA, 2004).
Além disso, o aprofundamento
da descentralização do SUS gerou
demandas por competências de ges-
tão novas e diferenciadas das dis-
tintas esferas de governo, tais como:
regulação de serviços, gestão estra-
tégica, monitoramento e avaliação,
sistema de custos, implantação de
...O APROFUNDAMENTO DA DESCENTRALIZAÇÃO
DO SUS GEROU DEMANDAS POR
COMPETÊNCIAS DE GESTÃO NOVAS EDIFERENCIADAS DAS DISTINTAS
ESFERAS DE GOVERNO
GALLO, Edmundo et al
322 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 315-326, set./dez. 2005
As recentes políticas de investi-
mento setorial têm procurado ado-
tar o conceito de desenvolvimento
aqui discutido, buscando, na defi-
nição de suas prioridades, articu-
lar as distintas dimensões do CPS,
assim como atender às necessida-
des de enfrentamento de agravos
prioritários e das desigualdades in-
tra e inter-regionais (BRASIL 2003,
2004 e 2005; GALLO & COELHO,
2005, DRACHLER ,2003, PELEGRI-
NI, 2005). Entretanto, ainda não há
uma agenda estratégica claramen-
te definida que sirva de suporte à
tomada de decisões.
DESAFIOS PARA UMA AGENDADE SAÚDE E DESENVOLVIMENTO NO
CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO
A definição de variáveis relevan-
tes e seu comportamento provável,
em longo prazo, é condição sine qua
non para a elaboração dos cenári-
os que contextualizarão as diferen-
tes alternativas de desenvolvimen-
to nacional e de integração regio-
nal, e também para a adoção de
medidas governamentais, sociais e
empreendedoras em Saúde. Nesse
sentido, busca-se situar esta discus-
são no contexto da globalização,
tendo como referencial dois eixos:
(a) o projeto de desenvolvimento
nacional e (b) o projeto de integra-
ção regional (Mercosul, América do
Sul e Eixo Sul-Sul).
A globalização traz para a agen-
da dois grandes desafios: o desen-
volvimento soberano e sustentável,
que pressupõe crescimento com jus-
tiça social e manejo adequado do
ambiente; e a construção do poder
global multipolar, em contraposição
à hegemonia unipolar hoje preva-
lente.
Quanto ao primeiro desafio, o do
desenvolvimento soberano e susten-
tável, vale rever dois argumentos
relativos à importância do setor
potencial contribuição do setor para
o desenvolvimento. Um segundo
argumento é que a saúde, pensada
no contexto do Complexo Produti-
vo, pode vir a ser um dos instru-
mentos fundamentais de desenvol-
vimento, assim como um dos prin-
cipais motores da integração regio-
nal em função de sua importância
econômica e tecnológica.
Em outras palavras, independen-
temente de ser positivo ter uma po-
lítica de saúde adequada, seu im-
pacto também é estruturante tanto
na perspectiva econômica, quanto
na tecnológica. É pouco provável
que um país alcance o desenvolvi-
mento científico-tecnológico e, tam-
bém, que o processo de integração
regional e o desenvolvimento do
Mercosul ou da América do Sul se-
jam alcançadosa, sem que se con-
sidere a importância que o segmen-
to tem, econômica e produtivamen-
te, e o seu impacto no desenvolvi-
mento.
O segundo desafio - um projeto
de integração regional (Mercosul,
América do Sul e Eixo Sul-Sul) –
articula-se ao primeiro através das
categorias desenvolvimento e mul-
tipolaridade. Com efeito, o gap en-
tre quaisquer indicadores de quali-
dade de vida de países desenvolvi-
dos, em desenvolvimento e pouco
desenvolvidos, vis-à-vis a eficácia
da tecnologia disponível (combate
a doenças, fome, escassez de água,
saúde já apontados: em primeiro
lugar, o argumento tradicional que
destaca a saúde como um elemento
central do desenvolvimento huma-
no, da eqüidade e da justiça social.
Este sempre foi um dos pilares do
discurso do movimento sanitário
para justificar a importância da
política de saúde: é um direito hu-
mano e é justo. Embora esse argu-
mento seja correto, deve-se lembrar
que é insuficiente para mostrar a
... INDEPENDENTEMENTE DE SER POSITIVO
TER UMA POLÍTICA DE SAÚDE ADEQUADA, SEU
IMPACTO TAMBÉM É ESTRUTURANT
E TANTO NA PERSPECTIVA ECONÔMICA,QUANTO NA TECNOLÓGICA
Saúde, Desenvolvimento e Global ização
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 315-326, set./dez. 2005 323
entre outras) tem demonstrado a ne-
cessidade de atitudes globais mais
efetivas para redução de iniqüida-
des (SACHS, 2005; United Nations
Millennium Project, 2000 e 2005).
Pode-se afirmar que o Brasil está
inserido em um contexto de oportu-
nidades devido a sua posição geo-
política, sua base tecnológica e pro-
dutiva, sua biodiversidade, geodi-
versidade e, no que se refere à saú-
de, sua estrutura jurídico-organiza-
cional, sua experiência operacional
e sua articulação tecnopolítica.
Desta forma, considerando que
a saúde se caracteriza enquanto
produção histórica – seja como con-
ceituação (discurso teórico), seja
como possibilidade concreta de
apropriação e de transformação em
uma política (discurso prático)
(GALLO, 1995) – o primeiro grande
desafio em relação à integração da
América do Sul é entender qual o
significado da saúde para seus po-
vos - o que é mais complexo que o
olhar particular de cada país - e qual
a sua importância no âmbito da glo-
balização. Ou seja, faz-se necessá-
rio entender como os estados naci-
onais tematizam a saúde, e que
ações tencionam adotar dentro des-
te contexto, levando em considera-
ção uma determinada conjuntura
global. Esse seria o primeiro passo
para a consolidação de uma agen-
da estratégica comum.
CONCLUSÕES
Saúde e Economia têm estabe-
lecido um diálogo inacabado no
que refere à questão do desenvol-
vimento, incluindo-se o papel do Es-
tado e também sua articulação ao
processo de integração regional da
América do Sul. A tradição sanita-
rista sempre abordou a questão do
desenvolvimento a partir do olhar
dos determinantes sociais da saú-
de e sua relação com o capitalismo
enquanto forma de dominação; já a
teoria econômica liberal encarou o
setor saúde como espaço de merca-
do de baixa regulação e elevados
gastos, considerando a área sem
possibilidades de inovação e de ge-
rar desenvolvimento. O reflexo para
a política de saúde é o impacto ne-
gativo na sustentabilidade dos in-
vestimentos e a inclusão dos recur-
sos da área no conjunto dos inves-
timentos considerados “não- pro-
dutivos”, portanto sujeitos ao ajus-
te fiscal e às restrições orçamentá-
rio-financeiras daí decorrentes. Nes-
te contexto, a saúde é tratada numa
dimensão estrita.
No entanto, é possível tratar esta
questão de forma mais abrangente
e em toda sua complexidade, con-
siderando os diversos setores da
economia e políticas institucionais
envolvidos. Assim poderão ser ela-
boradas políticas intersetoriais ar-
ticuladas e direcionadas às várias
dimensões da produção da saúde
que constituem o Complexo Produ-
tivo da Saúde. Nessa perspectiva, a
tomada de decisões deverá conside-
rar a dinâmica da estrutura técni-
co-produtiva, pensando conjunta-
mente nas reformas institucionais
do setor; em mecanismos de finan-
ciamento público e privado da aten-
ção à saúde; no mercado de traba-
lho da área; na pesquisa e desen-
volvimento tecnológico; no desen-
volvimento industrial farmacêutico,
farmoquímico, biotecnológico, imu-
nobiológico e de equipamentos mé-
dico-hospitalares, em um contexto
que avalie as conjunturas nacional
e internacional.
Geopoliticamente, a perspectiva
de utilização da saúde como um
dos instrumentos de integração sul-
americana foi adotada pelo gover-
no brasileiro. Ações intersetoriais do
Ministério da Saúde, Ministério das
Relações Exteriores, Subchefia de
Assuntos Federativos e Ministério da
CONSIDERANDO QUE A SAÚDE SE CARACTERIZA
ENQUANTO PRODUÇÃO HISTÓRICA (...) OPRIMEIRO GRANDE DESAFIO EM RELAÇÃO À
INTEGRAÇÃO DA AMÉRICA DO SUL ÉENTENDER QUAL O SIGNIFICADO DA SAÚDE
PARA SEUS POVOS ...
GALLO, Edmundo et al
324 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 315-326, set./dez. 2005
Integração foram desenvolvidas,
destacando-se a implantação do Sis-
tema Integrado de Saúde das Fron-
teiras (SIS-Fronteiras) e a inflexão
na Agenda do Sub-Grupo de Traba-
lho da Saúde do Mercosul (SGT-11),
que passou a investir em uma pers-
pectiva de integração dos Comple-
xos Produtivos de Saúde dos paí-
ses. Estas ações procuraram rom-
per com limitações burocráticas ao
acesso aos cuidados de saúde, as-
sim como utilizar o setor como ele-
mento motor de desenvolvimento.
O principal desafio é o de coor-
denar e integrar a ação nacional e
internacional dos diversos países e
áreas governamentais, da socieda-
de civil e empreendedores em torno
de uma política que aprofunde a
integração sul-americana e a rela-
ção sul-sul, na perspectiva de for-
mento soberano e sustentável.
Ações como a implantação do
SIS-Fronteiras em uma perspectiva
de integração real entre países; o
SGT-11 do Mercosul voltado para
uma agenda de integração concre-
ta, especialmente na área de servi-
ços; a coordenação das ações junto
a organismos internacionais; polí-
ticas de investimento integradas às
políticas industrial e externa; a in-
tensificação de parcerias com ór-
gãos, que não somente os da saú-
de, em torno de projetos de desen-
volvimento regional voltados para
a integração; e a definição de uma
Agenda estratégica para integrar os
CPS da América do Sul são possibi-
lidades de caminhar para uma in-
tegração efetiva dos países da re-
gião, construindo as bases para um
Complexo Produtivo Regional vol-
tado para o desenvolvimento na
perspectiva aqui apresentada.
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Desenvolvimento e saúde: em busca de uma nova utopia
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 327-338, set./dez. 2005 327
ARTIGOS DE OPINIÃO / OPINION ARTICLES
Desenvolvimento e saúde: em busca de uma nova utopia1
Development and Health: in search of a new Utopia
Carlos Augusto Grabois Gadelha1
Recebido: Jun./2006
Aprovado: Jul./2007
1 Carlos Augusto Grabois Gadelha
Vice-presidente de Produção e Inovação da
Fiocruz e pesquisador da Escola Nacional
de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz).
Email: gadelha@ensp.fiocruz.br
RESUMO
Procura-se contribuir para uma reflexão teórica e política que subsidiea construção de uma nova agenda que permita atualizar os grandes obje-tivos da Reforma Sanitária brasileira no contexto contemporâneo de umaglobalização fortemente assimétrica, de revolução tecnológica e de(re)colocação da situação de dependência e de atraso no campo da saúde.Discute-se as bases de um novo pacto político, social e econômico, pen-sando-se a retomada da perspectiva de se construir um Estado de Bem-Estar contemporâneo, que recupere as antigas promessas jamais imple-mentadas e que enfrente os novos desafios para articular a saúde com umnovo padrão de desenvolvimento do Brasil.
PALAVRAS-CHAVE: Reforma Sanitária; Complexo Produtivo e Industrial da Saúde;Globalização e Saúde.
ABSTRACT
This article intends to contribute to a theoretical and political reflecti-on to help form a new agenda enabling the main objectives of the Brazili-an Health Care Reform to be revised in the contemporary context of astrongly asymmetrical globalization, a technological revolution and the(re)establishment of a state of dependence and retrogression in the field ofhealth. The bases of a new political, social and economic pact are discus-sed with a view to readopting the stance to build a modern Welfare State,which would recover former promises that were never fulfilled and con-front new challenges in order to organize health care with a new patternof development in the country.
KEYWORDS: Sanitary Reform; Productive and industrial organization of healthcare; Globalization and Health
1 Este artigo constitui uma edição modificada da palestra proferida no dia 01/06/2007 noEncontro de Conjuntura e Saúde, promovido pelo Observatório de Conjuntura em Saúde daENSP e pelo CEBES, com a finalidade de subsidiar o debate sobre o tema “Saúde e Desenvol-vimento”. Apesar das idéias apresentadas serem de responsabilidade exclusiva do autor,é importante destacar a contribuição importante proveniente das atividades de pesquisadesenvolvidas com Cristiane Quental, Cristiani Vieira Machado, José Maldonado, LucianaDias de Lima e Tatiana Wargas de Faria Baptista.
GADELHA, Carlos Augusto Grabois
328 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 327-338, set./dez. 2005
A despeito de minha trajetória
acadêmica recente estar ligada ao
desenvolvimento teórico do tema do
complexo industrial e da inovação
em saúde, vou inserir este enfoque
onde, de fato, ele se situa: na recu-
peração contemporânea de uma
abordagem estruturalista e de eco-
nomia política para pensar a inser-
ção da saúde no padrão nacional
de desenvolvimento. O objetivo cen-
tral é o de contribuir para a cons-
trução de uma nova agenda que
permita atualizar os grandes obje-
tivos da reforma sanitária brasilei-
ra no contexto contemporâneo de
uma globalização fortemente assi-
métrica, de revolução tecnológica e
de (re)colocação da situação de de-
pendência e de atraso no campo da
saúde.
Esta perspectiva abrangente tor-
na necessário avançar no debate
mesmo que de modo ainda explo-
ratório, pouco estruturado e com
idéias em construção e, portanto, in-
conclusas. Todavia, entendo que ou
a saúde enfrenta de frente o tema
nacional ou os limites do avanço
da reforma sanitária continuarão a
ser recolocados a cada momento de
nossa história. É como se tivésse-
mos chegado a um limite em que o
país enfrenta os novos e velhos fa-
tores que reproduzem um círculo
vicioso entre dependência, atraso,
iniqüidade e uma estrutura econô-
mica pouco dinâmica. Os objetivos
‘setoriais’ para a saúde parecem
encontrar barreiras intransponíveis
ligadas ao nosso próprio padrão de
desenvolvimento.
Em síntese, estamos numa fase
em que, seguindo a perspectiva do
CEBES nesta sua nova etapa, se bus-
ca motivar o debate e contribuir
para a revitalização do movimento
sanitário e de uma visão crítica de
nosso país, sob o prisma da econo-
mia política, não sendo pertinente
dar uma ‘receita’ simples e fechada
para uma questão complexa do pon-
mia e das relações de poder vigen-
tes.
Esta perspectiva, a um só tem-
po teórica e política, parte (e procu-
ra avançar) na concepção de que a
saúde constitui uma condição de
cidadania, sendo parte inerente do
próprio conceito do desenvolvimen-
to. Não há país que possa ser con-
siderado como desenvolvido com a
saúde precária. Nesta direção, não
se torna necessário nenhum víncu-
lo entre saúde e crescimento econô-
mico para justificar as ações uni-
versalizantes e o gasto em saúde.
Isto permite ‘limpar um pouco o
terreno’ para quem está discutindo
a relação entre saúde, desenvolvi-
mento e estrutura econômica, pro-
curando superar falsos e pernicio-
sos dilemas entre uma dimensão
econômica restrita e uma visão
ampla da saúde como um direito,
que constitui uma premissa, inclu-
sive ética, para pensar o desenvol-
vimento.
Para ilustrar o debate contempo-
râneo, dominado pela literatura eco-
nômica neoclássica, e apresentar a
forma limitada com a qual o tema
saúde e desenvolvimento vem sen-
do trabalhado pelas escolas hege-
mônicas, proponho uma visita a
alguns textos muito recentes que
tratam do tema de modo convenci-
onal. Este trabalho incorpora, ex-
plicita ou implicitamente, a saúde
numa função de produção econômi-
ca, relacionando-a como um fator
to de vista teórico, político e insti-
tucional.
As implicações desta perspecti-
va são enormes e impõem a neces-
sidade de avançarmos na visão in-
tersetorial da saúde, o que remete
para a ampliação do escopo de nos-
so pensamento, superando o âmbi-
to específico, se bem que estratégi-
co, da seguridade social, para tam-
bém incorporar a dinâmica e padrão
de transformação de nossa econo-
NÃO HÁ PAÍS QUE POSSA
SER CONSIDERADO COMO
DESENVOLVIDO COM A SAÚDE PRECÁRIA
Desenvolvimento e saúde: em busca de uma nova utopia
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 327-338, set./dez. 2005 329
explicativo, de maior ou menor in-
tensidade, para a evolução da ren-
da per capita e, portanto, para o cres-
cimento econômico.
Este olhar panorâmico da litera-
tura recente, a meu juízo, fortalece
o desconforto com a tradição mais
recente do tratamento do tema saú-
de e desenvolvimento pelos econo-
mistas. Esta tradição foi muito re-
forçada com os trabalhos de Amar-
tya Sen, premiado com o Nobel de
Economia, de que havia uma rela-
ção indissociável entre saúde e de-
senvolvimento, a partir de sua re-
lação com a própria liberdade hu-
mana sempre associada, na tradi-
ção liberal, à liberdade do exercí-
cio da escolha pelos indivíduos.
No âmbito da saúde, a empol-
gação foi grande e começam a sur-
gir numerosos trabalhos teóricos e
com forte base estatística e econo-
métrica que incorporam a saúde da
função de crescimento, seja como
expectativa de vida, capital huma-
no, mortalidade infantil, entre ou-
tras possibilidades. Parecia, enfim,
que os economistas tinham desper-
tado e fizeram um ‘eureca’ para a
área da saúde, evidenciando sua
relação com o desenvolvimento.
Como desdobramento, a saúde pas-
sa a ser vista como algo positivo
porque aumenta produtividade e
gera desenvolvimento econômico,
não como um segmento da estrutu-
ra econômica, mas apenas como
uma área social que, indiretamen-
te, favorece o capital humano. Por
fim, seríamos aceitos não mais
como ‘dinossauros’ da intervenção
do Estado, mas como propulsores
do próprio desenvolvimento, desde
que nos ativéssemos a práticas efi-
cientes e voltadas para esforços fo-
calizados nos mais necessitados e
que não podem exercer sua liber-
dade em situações de vida tão pre-
cárias.
Todavia, os termos desta percep-
ção embutiam dois riscos que pas-
fosse tão funcional assim para o
crescimento econômico. E se os pa-
íses pudessem crescer – como os
casos da China ou da Índia ilustram
– com condições sanitárias perver-
sas? Ficaríamos desanimados e
mais uma vez ‘de pires na mão’,
solicitando uma lei (tupiniquim)
dos pobres para a uma ajuda hu-
manitária, ao menos para a aten-
ção básica focalizada? O segundo
risco, também grave, era de que
passássemos a ver o processo de de-
senvolvimento como suave, sem
conflitos, sem mudanças estrutu-
rais, bastando que aos esforços do
investimento em capital físico se
acrescentasse um esforço no inves-
timento social, e na saúde, em par-
ticular. Bastava um ‘empurrãozi-
nho’ e os países se desenvolveriam
e haveria uma grande convergência
global, não fazendo mais qualquer
sentido se falar em periferia, em
assimetrias estruturais e em depen-
dência. Na boa tradição liberal, o
mercado livre e o gasto compensa-
tório eficiente do Estado seriam su-
ficientes para um padrão de inter-
venção e de desenvolvimento sua-
ve denominado por Amartya Sen
(2004), citando Adam Smith (o gran-
de economista liberal), como GALA
(getting by with little assistance –
‘ir levando com uma pequena aju-
da’). Despolitizavam-se o desenvol-
vimento e os bloqueios estruturais
que, infelizmente, não deixam de
afligir a periferia capitalista.
savam despercebidos por diversos
autores da área da saúde preocu-
pados com a transformação social,
em geral compartilhando uma vi-
são política de esquerda, que em-
barcavam, inadvertidamente, numa
visão liberal da economia de mer-
cado.
O primeiro risco refere-se à pos-
sibilidade de que começassem a
aparecer estudos com fortes ‘evidên-
cias’ estatísticas de que a saúde não
.. OLHAR PANORÂMICO DA LITERATURA
RECENTE (...) FORTALECE O DESCONFORTO
COM A TRADIÇÃO MAIS RECENTE DO
TRATAMENTO DO TEMA SAÚDE EDESENVOLVIMENTO PELOS ECONOMISTAS
GADELHA, Carlos Augusto Grabois
330 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 327-338, set./dez. 2005
A literatura recente parece evi-
denciar estes riscos associados a
esta visão liberal mais avançada (de
corte ‘iluminista’) sobre a saúde e
desenvolvimento, que tanto animou
aqueles comprometidos com as re-
formas sociais. Visitando alguns
artigos muito recentes de institui-
ções acadêmicas ou internacionais
muito respeitadas, o risco começa-
va a aparecer. Deaton (2006), da
Universidade de Princeton, questio-
na a relação entre a taxa de cresci-
mento econômico e as condições de
saúde, utilizando a mortalidade in-
fantil como indicador. Conclui que,
na realidade, é a educação e o con-
texto institucional geral que deter-
minam tanto a taxa de crescimento
quanto as condições de saúde, não
havendo uma relação direta entre
ambas.
Um segundo artigo de autores
do renomado MIT – instituto ameri-
cano de excelência na área de Eco-
nomia (Acemoglu & Johnson, 2006)
– não encontrou nenhuma evidên-
cia de que um aumento da expecta-
tiva de vida gera crescimento da
renda per capita. Além disso, o que
é importante, os autores observa-
ram que a convergência na expec-
tativa de vida entre os países é
muito maior do que a convergência
na renda per capita. Ou seja, os
países atrasados estão com a saú-
de um pouquinho melhor em ter-
mos relativos, mas a distância eco-
nômica se mantém ou mesmo se
acentua. Provavelmente, muitos
destes países estão vacinando, tem
ajuda multilateral, conseguem im-
plementar alguns programas de
atenção básica, mas continuam po-
bres e subdesenvolvidos.
Ainda nesta vertente ‘pouco oti-
mista’, Weil (2006), num artigo em
que agradece a colaboração de pes-
quisadores e instituições também
internacionalmente renomadas – Ha-
vard, MIT, Banco Mundial, entre
muitas outras – efetua estimativas
Todavia, a despeito destes estu-
dos recentes, o relatório produzido
pela Organização Mundial da Saú-
de (WHO, 2001), cujo próprio título
já indica a perspectiva adotada –
“Macroeconomia e saúde: investin-
do na saúde para o desenvolvimen-
to econômico” – continua a ser uma
referência para o tema que, de cer-
ta forma, poderia fornecer um alí-
vio. Enfatiza que a saúde é um fim
em si e que, além disto, é um fator
favorável ao desenvolvimento eco-
nômico. Neste aspecto, ressalta,
sobretudo, regiões com condições
de saúde explosivas, como a epide-
mia da AIDS na África Subsaariana,
indicando que a carga de doenças
relacionadas a esta doença é de tal
envergadura que limita qualquer
possibilidade de crescimento econô-
mico e de desenvolvimento.
Esta percepção é seguida em um
trabalho muito recente, deste ano,
elaborado para o FMI. Os autores
(HSIAO & HELLER, 2007) são da
Escola de Saúde Pública de Harvard
e do próprio FMI, e voltam a enfati-
zar a questão do impacto da AIDS
na África na economia, como se a
região fosse desenvolvida antes des-
ta doença ou tivesse alguma traje-
tória de desenvolvimento abortada.
Este texto possui aspectos curiosos,
constituindo um manual para que
os macroeconomistas entendam o
que é a saúde. No receituário, colo-
ca-se claramente a questão do en-
frentamento das falhas de mercado,
econômicas que indicam que se fo-
rem eliminadas as diferenças nas
condições de saúde entre os países,
a variação (variância) da renda per
capita se reduz em apenas 10%. E
mais, com esta eliminação da dife-
rença das condições de saúde, a re-
lação entre o PIB per capita entre
os 10% mais ricos e os 10% mais
pobres cai de 20,5 para 17,9, o que
é muito pouco.
A LITERATURA RECENTE PARECE EVIDENCIAR
(...) RISCOS ASSOCIADOS A (...) VISÃO
LIBERAL MAIS AVANÇADA (...) SOBRE A SAÚDE
E DESENVOLVIMENTO, QUE TANTO ANIMOU
AQUELES COMPROMETIDOS
COM AS REFORMAS SOCIAIS
Desenvolvimento e saúde: em busca de uma nova utopia
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 327-338, set./dez. 2005 331
que, por sua abrangência na área,
a tornam muito peculiar. Além dis-
so, ao contrário de outros bens es-
senciais, como educação, habitação
e alimentação, as pessoas possuem
riscos e elevadas incertezas sobre o
futuro, decorrentes das doenças e
do envelhecimento, justificando o
estabelecimento de sistemas de pro-
teção social. Por fim, neste manual
aponta-se que a saúde constitui um
valor intrínseco para as pessoas e
para os países.
Ou seja, até organismos consi-
derados como conservadores, como
o FMI e representantes da hegemo-
nia liberal, concordam em associar
e justificar a saúde como uma área
peculiar, cuja intervenção, focaliza-
da, se justifica em função das fa-
lhas de mercado, do risco e da pró-
pria cidadania, além de seu impac-
to nas condições mais elementares
de trabalho de certas populações e
regiões. Nesta direção, também con-
cordam com o papel distributivo do
Estado com foco nos mais pobres
ou nas populações mais vulnerá-
veis, adicionalmente a um esforço
para tornar os gastos mais eficien-
tes, considerando o problema geral
do financiamento na saúde fruto das
mudanças demográficas e nos pa-
drões epidemiológicos, entre outros
fatores. Com relação à questão tec-
nológica, fator também central para
o aumento dos gastos, os autores
propõe a utilização de tecnologias
de baixo custo e complexidade para
o combate a doenças de alto impac-
to epidemiológico como a malária
e a AIDS.
O que surpreende nestes textos é
como a agenda liberal dominante,
se estudada com cuidado, tem inú-
meros pontos de convergência com
a forma como o tema saúde e de-
senvolvimento – ou a relação entre
saúde e economia – vem sendo tra-
balhado no Brasil. Falhas de mer-
cado, tecnologias de baixo custo e
complexidade (justificando inclusi-
que transborda para nosso contex-
to, a relação entre saúde e desen-
volvimento acaba se reduzindo à
visão de que a saúde deve ser apoi-
ada por ser um elemento constitu-
tivo dos direitos sociais ou indivi-
duais básicos, ou se também gera
um efeito indireto sobre o cresci-
mento econômico, decorrente ape-
nas de sua dimensão social, impli-
cando na melhoria das condições de
vida dos trabalhadores e do ambi-
ente geral para os investimentos.
Nesta segunda vertente, decerto, a
justificativa do gasto se torna mais
robusta ou generosa ao incorporar
a saúde como fator indireto de cres-
cimento, em analogia ao que ocor-
re na educação.
Com este referencial, entramos
na armadilha de restringir o debate
sobre saúde e desenvolvimento à
dimensão dos gastos requeridos e
ao tamanho do Estado e do Merca-
do no provimento de bens e servi-
ços e no financiamento. A agenda
estrutural que envolve o padrão
nacional de desenvolvimento, a con-
centração regional e pessoal da ren-
da e a fragilidade de nossa base
produtiva em saúde fica subsumi-
da nesta agenda ‘macro’ extrema-
mente empobrecedora, se bem que
todos nós estejamos na luta por um
financiamento e um papel do Esta-
do compatíveis com as necessida-
des de saúde como elementos essen-
ciais à consolidação de um sistema
de proteção social no Brasil.
ve o foco na atenção primária), o
foco prioritário no contexto local ou
no município e mesmo saúde um
direito individual são, pelo menos,
questões compatíveis com o ideá-
rio liberal dos países, instituições
acadêmicas e organismos interna-
cionais que fazem parte do núcleo
central da hegemonia capitalista
mundial.
Retomando o tema em debate, no
escopo dos paradigmas dominantes,
... ENTRAMOS NA ARMADILHA DE RESTRINGIR
O DEBATE SOBRE SAÚDE E DESENVOLVIMENTO
À DIMENSÃO DOS GASTOS REQUERIDOS E AO
TAMANHO DO ESTADO E DO MERCADO NO
PROVIMENTO DE BENS E SERVIÇOS E NO
FINANCIAMENTO ...
GADELHA, Carlos Augusto Grabois
332 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 327-338, set./dez. 2005
Belluzo (2006), ironizando a
questão do tratamento do Estado e
do Mercado como simples alterna-
tivas descoladas de suas conexões
políticas e econômicas e sociais, faz
o seguinte comentário que eviden-
cia o empobrecimento do debate
advindo dos paradigmas dominan-
tes em economia e, no nosso caso,
na economia da saúde:
[...] como o senhor prefere, mais Es-
tado ou mais mercado? Desconfio que
algumas teorias serviriam melhor como
um guia de instrução para garçons de
restaurantes baratos (BELLUZZO 2006,
apud VIANA et al., 2007, p.11)
Assim sendo, sugiro que a gente
não embarque nestas vertentes que
incorporam a saúde como um fator
genérico nas funções econômicas de
produção, se distinguindo apenas
na forma, mais ou menos favorá-
vel, em que a relacionam com o
crescimento econômico.
A idéia central apresentada nes-
te trabalho é que necessitamos re-
pensar a saúde, retomando e atua-
lizando uma agenda estruturalista
que privilegia os fatores histórico-
estruturais que caracterizam nossa
sociedade – nosso passado escra-
vista e colonial e a conformação de
uma sociedade desigual – e nossa
inserção internacional e sua relação
com uma difusão extremamente
assimétrica do progresso técnico e,
nos termos atuais, do conhecimen-
to e do aprendizado, dissociados
das necessidades locais.
É neste campo que se dá o corte
entre uma visão liberal e o pensa-
mento desenvolvimentista em seus
diversos matizes políticos e ideoló-
gicos. Para esta perspectiva, o tema
‘saúde e desenvolvimento’ deve ser
trabalhado a partir das necessida-
des de mudanças estruturais pro-
fundas em nossa sociedade, econo-
mia e política. É desta visão que se
Esta visão remete para a neces-
sidade de reconstrução de nossa
visão sobre saúde e sobre a agenda
de reforma. Pensar saúde não ape-
nas como ausência de doença e sim
como qualidade de vida – uma per-
cepção arraigada no campo da saú-
de coletiva –, remete para seguinte
pergunta: pode-se dizer que um país
e um povo pobre, dependente, desi-
gual, sem acesso a conhecimento,
com condições precárias de traba-
lho e sem capacidade de aprendiza-
do, mas que venha elevando sua ex-
pectativa de vida, é saudável? Eu
acho que não. A agenda de saúde
tem que sair de uma discussão in-
trínseca, insulada e intra-setorial e
entrar na discussão do padrão do
desenvolvimento brasileiro. Ou seja,
a saúde como qualidade de vida
implica pensar em sua conexão es-
trutural com o desenvolvimento eco-
nômico, a equidade, a sustentabili-
dade ambiental e a mobilização
política da sociedade. A saúde, nes-
ta perspectiva, se torna parte endó-
gena de discussão de um modelo
econômico de desenvolvimento.
Aceitando esta perspectiva, pro-
ponho que, em vez de se trabalhar
o tema saúde de modo analitica-
mente insulado e ver os nexos que
tem com o crescimento econômico,
procuremos associá-lo com a pró-
pria estratégia de desenvolvimento
econômico-social brasileiro, à luz
de nossa história recente. A trajetó-
ria do desenvolvimento brasileiro no
torna relevante e diferenciador a
necessidade de uma economia polí-
tica da saúde. A grande referência
neste contexto estruturalista é Cel-
so Furtado, numa (re)leitura atua-
lizada, uma vez que seus trabalhos
apontam tanto para as dimensões
relacionadas aos limites da estru-
tura produtiva quanto para a desi-
gualdade pessoal e regional como
marca estrutural da sociedade bra-
sileira.
A AGENDA DE SAÚDE TEM QUE SAIR DE UMA
DISCUSSÃO INTRÍNSECA, INSULADA E INTRA-SETORIAL E ENTRAR NA DISCUSSÃO DO PADRÃO
DO DESENVOLVIMENTO BRASILEIRO
Desenvolvimento e saúde: em busca de uma nova utopia
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 327-338, set./dez. 2005 333
período 1930/1980 foi uma trajetó-
ria de forte substituição de impor-
tação que engendrou uma das mai-
ores taxas de crescimento do mun-
do, sendo a maior em alguns sub-
períodos. Duas grandes críticas ao
modelo de desenvolvimento adota-
do se colocaram (ambas presentes
nos trabalhos de Furtado). Primei-
ro, a desigualdade social e regio-
nal se manteve ou mesmo se acir-
rou. Segundo, não houve uma ca-
pacitação tecnológica endógena ao
longo desse período. Como diriam
os estruturalistas clássicos, o capi-
talismo brasileiro não conseguia se
sustentar sobre seus próprios pés,
sendo excludente do ponto de vista
social e dependente do ponto de vista
do conhecimento e de sua capaci-
dade de inovação.
No âmbito da economia política
está havendo todo um processo,
pelo menos na academia, de recu-
peração do pensamento desenvolvi-
mentista em novas bases, conside-
rando as especificidades do mundo
contemporâneo. Esta preocupação
se mostra totalmente compatível
com a tradição estruturalista que
refuta ou qualifica a adoção de
modelos gerais que desconsideram
o momento e a experiência históri-
ca de cada processo nacional de
desenvolvimento.2
Indicarei algumas idéias, que
obviamente estão longe de sinteti-
zar o pensamento desenvolvimentis-
ta, a partir de Celso Furtado (2007),
mas que são importantes para a
nova perspectiva proposta para pen-
sar saúde e desenvolvimento.
1. A evolução do sistema capi-
talista brasileiro se associa a uma
contradição entre a modernização
do sistema produtivo e a margina-
lização social, caracterizando um
padrão de desenvolvimento dual
(ALBUQUERQUE, 2007). O padrão tec-
nológico é descolado da demanda
nização política e da própria socie-
dade.
2. A magnitude e a orientação
das inovações e da difusão do pro-
gresso técnico estão na raiz dos
modelos nacionais de desenvolvi-
mento. De um lado, as relações de
dependência e a hierarquização eco-
nômica e de poder entre os países
estão associadas, no presente, a
quem detém (ou não) os conheci-
mentos produtivos essenciais aos
paradigmas tecnológicos dominan-
tes no mundo contemporâneo (tec-
nologias de informação em bens e
serviços, biotecnologia, química
fina, novos materiais, equipamen-
tos, etc.). De outro lado, a transpo-
sição direta deste padrão tecnológi-
co-produtivo, para os países da pe-
riferia, desdobra a dualidade veri-
ficada na arena internacional para
dentro das sociedades locais, refor-
çando a situação da desigualdade
no acesso e no descompasso entre
a estrutura da oferta e da demanda
da sociedade. Em países como o
Brasil, esta dinâmica das inovações
e do conhecimento se acentuam e
se mostram funcionais para um ní-
vel de desigualdade da renda mui-
to perverso.
É nesta perspectiva analítica que
se coloca a capacidade de aprendi-
zado e de inovação em âmbito pro-
dutivo como fatores críticos para o
desenvolvimento. Apesar do modis-
geral da sociedade, havendo uma
estrutura produtiva funcional e ade-
quada para a péssima distribuição
de renda do país. Isto causa o que
Furtado (2007) denominava como
um processo de causação circular
em que a base produtiva reforça a
má distribuição de renda, tendo ain-
da, segundo minha percepção, um
impacto negativo no nível de orga-
NO ÂMBITO DA ECONOMIA POLÍTICA ESTÁ
HAVENDO TODO UM PROCESSO, PELO MENOS
NA ACADEMIA, DE RECUPERAÇÃO DO
PENSAMENTO DESENVOLVIMENTISTA EM
NOVAS BASES....
2 Tomou-se como base os artigos que constam da coletânea recente organizada por Saboia e Carvalho (2007), intitulada “Celso Furtadoe o século XXI” (vide bibliografia).
GADELHA, Carlos Augusto Grabois
334 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 327-338, set./dez. 2005
mo que o tema envolve, não se está
discutindo inovação porque é boni-
to, porque é moderno ou mesmo
porque as empresas que lideram o
mercado mundial são intensivas em
conhecimento e inovação. O que se
está discutindo é a dinâmica e os
rumos de um novo padrão de de-
senvolvimento brasileiro, remeten-
do, necessariamente, para pensar-
mos qual o padrão tecnológico e
quais os rumos e necessidades de
transformação na base produtiva
que uma sociedade dinâmica e me-
nos desigual requer. Era esta a
questão central de corte estrutura-
lista!
O avanço do Brasil no desenvol-
vimento com equidade envolve uma
grande diferenciação do sistema
produtivo (o que caracteriza a ino-
vação) e uma forte expansão do mer-
cado interno de massa (tema ‘dinos-
sáurico’ para o pensamento liberal),
incorporando segmentos enormes
da população que estão excluídos.
É óbvio que esta base nacional pode
ser uma alavanca para as exporta-
ções, o que é crítico para a autono-
mia das políticas nacionais, inclu-
sive na saúde. Todavia, é necessá-
rio colocar estas dimensões em seu
devido lugar, caso contrário conti-
nuaremos repetindo ‘como papagai-
os’ que a Índia é um exemplo a ser
seguido, possuindo uma indústria
farmacêutica competitiva, exporta-
dora, tendo, como detalhe, um povo
pobre e uma sociedade estratifica-
da e excludente e um sistema de
saúde muito inferior ao brasileiro.
Definitivamente, ou a inovação está
incorporada na mudança do padrão
de desenvolvimento ou perde o sen-
tido na perspectiva adotada.
A seguinte citação de Celso Fur-
tado (2007) evidencia esta percep-
ção da inovação como um proces-
ciação no sistema produtivo, gerado
pela introdução de inovações tecnoló-
gicas (FURTADO, 1964, apud GUI-
LLÉN, 2007, p. 143)
Isto posto, o desenvolvimento
econômico constitui um processo de
mudança social e envolve uma di-
ferenciação brutal da estrutura pro-
dutiva. É nesta dimensão que se
coloca o tema do complexo produ-
tivo ou industrial da saúde.3 Em
substância, o que se está apontan-
do é a necessidade de uma mudan-
ça profunda na estrutura econômi-
ca brasileira que permita, median-
te intenso processo de inovação,
adensar o tecido produtivo e direci-
oná-lo para compatibilizar a estru-
tura de oferta com a demanda soci-
al de saúde.
Aqui chegamos a uma visão al-
ternativa do vínculo entre saúde e
desenvolvimento. A saúde possui
uma dupla dimensão na sua rela-
ção com o desenvolvimento. Numa
primeira vertente, e concordando
com o ‘consenso’ já mencionado, é
parte do sistema de proteção soci-
al, constituindo um direito de cida-
dania inerente ao próprio conceito
de desenvolvimento. Numa segun-
da vertente, a base produtiva em
saúde – de bens e serviços – consti-
tui um conjunto de setores de ativi-
dade econômica que geram cresci-
so de transformação econômica e
social:
o desenvolvimento econômico pode
ser definido como processo de mudan-
ça social pelo qual o crescente número
de necessidades humanas, pré-existen-
tes ou criadas pela própria mudança,
são satisfeitas através de uma diferen-
O AVANÇO DO BRASIL NO DESENVOLVIMENTO
COM EQUIDADE ENVOLVE UMA GRANDE
DIFERENCIAÇÃO DO SISTEMA PRODUTIVO (...)E UMA FORTE EXPANSÃO DO MERCADO
INTERNO DE MASSA (...) INCORPORANDO
SEGMENTOS ENORMES DA POPULAÇÃO QUE
ESTÃO EXCLUÍDOS
3 O conceito de Complexo Industrial da Saúde (GADELHA, 2003), de fato, envolvia também a área de serviços, uma vez que esta passa a seguiro padrão industrial. Todavia, para evitar as confusões recorrentes, adotou-se o conceito de Complexo Produtivo para indicar a base deprodução de bens e serviços e o de Complexo Industrial para os segmentos industriais que fazem parte do primeiro. Observe-se que sãoas atividades de serviços que estruturam todo o Complexo.
Desenvolvimento e saúde: em busca de uma nova utopia
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 327-338, set./dez. 2005 335
mento e possuem uma participação
expressiva no PIB e no emprego
(respectivamente, em torno de 8% e
de 10% nos empregos formais qua-
lificados) que podem representar
uma diferenciação profunda da es-
trutura produtiva brasileira. Esta
diferenciação, que representa um
enorme esforço de inovação, é fun-
damental para viabilizar o consu-
mo social de massa de bens e ser-
viços, contribuindo para dotar o
país de uma base produtiva ade-
quada para uma sociedade mais
equânime.
Nesta direção, os anos 1990 fo-
ram uma tragédia para nossa base
produtiva e de inovação em saúde
em um duplo sentido. Por um lado,
nos tornamos mais dependentes nos
segmentos de maior densidade de
conhecimento, com o déficit comer-
cial saltando de US$ 700 milhões
no final dos anos 80 para mais de
US$ 4 bilhões no presente (GADELHA,
2006). Se incorporarmos outros seg-
mentos ainda não trabalhados no
complexo (intermediários da cadeia
produtiva farmacêutica, por exem-
plo) e os pagamentos pela transfe-
rência de tecnologia em saúde, che-
ga-se a um grau de dependência em
torno de US$ 6 bilhões. Isto é uma
questão de saúde ao tornar nossa
política social estruturalmente vul-
nerável, uma vez que as assimetri-
as no conhecimento e na inovação
não se revertem de modo fácil! Por
outro lado, o que produzimos e ino-
vamos no país parece estar, em gran-
de parte, descolado das necessida-
des do Sistema de Saúde ou repro-
duzindo a desigualdade em seu in-
terior.
Assim sendo, as idéias que per-
meiam a noção de Complexo Pro-
dutivo da Saúde constituem um es-
forço para costurar o elo saúde-de-
senvolvimento, retomando uma
perspectiva estruturalista contempo-
rânea que incorpora os dois gran-
des pontos frágeis de nosso modelo
de desenvolvimento: uma estrutu-
ra produtiva pouco densa em co-
nhecimento – agora a assimetria
não é mais entre indústria e agri-
cultura, mas sim entre atividades
densas em conhecimento e ativida-
des sem grande valor agregado – e
um sistema econômico e social de-
sigual e excludente.
O desafio que se coloca para um
aprofundamento da Reforma Sani-
tária em bases contemporâneas é
o de pensar, articular e implemen-
tar, a um só tempo, os princípios
constitucionais de universalização,
de equidade e de integralidade do
sistema de saúde com uma trans-
formação profunda da base produ-
tiva, tendo o Complexo da Saúde
como um elo forte e estratégico da
economia brasileira. Esta transfor-
mação implica elevar o peso dos
segmentos produtivos de bens e
serviços de saúde que atendem às
demandas sociais e que incorporam
grande potencial de inovação e de
transformação nos novos paradig-
mas tecnológicos.
Com isto, supera-se o tratamen-
to ‘insulado’ e setorial da saúde e
o debate (restrito) em torno de sua
funcionalidade para o crescimento,
inserindo a área de modo endóge-
no no debate político sobre o pa-
drão de desenvolvimento desejado
para nosso país. Esta perspectiva
pode implicar tanto na simplifica-
ção de diversas tecnologias utiliza-
das no sistema quanto em sua com-
plexificação, chamando a atenção
para não cairmos nas ‘armadilhas’
da tecnologia apropriada, da con-
centração dos esforços apenas na
atenção básica e nos produtos tro-
picais ou negligenciados (reconhe-
cendo-se, obviamente, a importân-
cia de todas estas áreas). Para ser-
mos coerentes com os princípios do
Sistema Único de Saúde (SUS) e com
os requerimentos dos novos para-
digmas tecnológicos, a definição
O DESAFIO QUE SE COLOCA PARA UM
APROFUNDAMENTO DA REFORMA SANITÁRIA
(...) É O DE PENSAR, ARTICULAR EIMPLEMENTAR (...) OS PRINCÍPIOS
CONSTITUCIONAIS DE UNIVERSALIZAÇÃO, DE
EQUIDADE E DE INTEGRALIDADE DO SISTEMA DE
SAÚDE COM UMA TRANSFORMAÇÃO PROFUNDA
DA BASE PRODUTIVA
GADELHA, Carlos Augusto Grabois
336 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 327-338, set./dez. 2005
das tecnologias estratégicas para o
Brasil não pode permitir a segmen-
tação entre práticas sofisticadas e
adequadas para alguns e práticas
‘simples’ para a maioria de nossa
população.
Esta dimensão que associa o eco-
nômico, o social e o político – ou
seja, a dimensão de economia polí-
tica – se aplica tanto para pensar-
mos a desigualdade de renda entre
as pessoas quanto para o desenvol-
vimento regional (mais uma vez,
esta questão estava na agenda prio-
ritária de Celso Furtado). Se pensar-
mos a regionalização da saúde a par-
tir configuração da rede do serviço
de saúde no território brasileiro,
cuja estrutura de oferta ‘congela’ o
padrão desigual da atenção à saú-
de, coloca-se a necessidade de se pen-
sar uma estruturação da base pro-
dutiva de serviços que não seja re-
produtora de desigualdades. Mais
uma vez, ‘por dentro’ da questão
geral do desenvolvimento (em sua
dimensão territorial) a saúde ‘mos-
tra sua face’ como parte do modelo
histórico adotado.
Não somos apenas atrasados
frente aos países desenvolvidos, so-
mos um país com desigualdades
regionais internas das mais expres-
sivas do mundo. Isto implica em
alterar, via política de investimen-
tos, a estruturação espacial de nos-
sa base produtiva. E mais, atuali-
zando a agenda, a escala macror-
regional se mostra totalmente insu-
ficiente para uma política nacional
de regionalização da saúde associ-
ada ao desenvolvimento. A desi-
gualdade é, de fato, observada nas
macrorregiões – nas quais a situa-
ção crítica são o Norte e o Nordes-
te, mas também é gritante no inte-
rior dos estados e das regiões de-
senvolvidas e esta situação não
muda sem uma visão e indução
nacional. Ou será que o noroeste
fluminense, o Vale do Ribeira, o oes-
te do Paraná, o Vale do Jequitinho-
nha e a metade sul do Rio Grande
do Sul ficam no Norte e no Nordes-
te? Se saúde está relacionada ao de-
senvolvimento da forma estrutural
proposta, a dimensão territorial se
mostra crítica e endógena ao padrão
nacional, sendo ponto de partida e
um dos elementos-chave de sua
transformação.4
Voltando à dimensão mais ge-
ral das questões colocadas na agen-
da nacional de desenvolvimento,
avançar em saúde é também enfren-
tar o hiato da sociedade do conhe-
cimento. Há autores brasileiros,
como José Cassiolato e Helena Las-
tres Instituto de Economia da UFRJ,
que indagam se estamos na socie-
dade do conhecimento ou na socie-
dade da ignorância, porque há uma
grande divisão nos potenciais de
aprendizado (muito mais forte do
que a divisão digital) entre os paí-
ses e as regiões. A saúde também
tem a ver com esta questão. Todos
os novos paradigmas tecnológicos
que marcam a nova assimetria glo-
bal se expressam de modo impor-
tante na área, com destaque para a
biotecnologia, a química fina, os
novos materiais, a eletrônica e todo
conjunto, pouco ressaltado, de prá-
ticas médicas nos serviços, altamen-
te intensivas em conhecimento, e
com vínculos precários com uma
nova estratégia de desenvolvimen-
to centrada na equidade.
Para dar uma idéia da dimensão
desta questão, a saúde é a área
mundial que concentra os maiores
esforços em pesquisa e desenvolvi-
mento do mundo, em conjunto com
o Complexo Industrial Militar. O le-
vantamento efetuado pelo Fórum de
Pesquisa Global em Saúde indica
que ela responde isoladamente por
20% de toda despesa mundial com
pesquisa e desenvolvimento tecno-
lógico (US$ 135 bilhões em valores
atualizados), sendo que apenas en-
tre 3% e 4% são realizadas nos paí-
ses de média e baixa renda per ca-
pita. Ou seja, a questão geral que
divide hoje as nações entre o mun-
do desenvolvido e os ‘outros mun-
dos’ se expressa de forma ultra re-
levante na área da saúde, eviden-
ciando que somos parte não autô-
noma de um determinado modelo.
4 O tema da regionalização da saúde está sendo trabalhado com mais detalhe num artigo em conjunto com Cristiani Vieira Machado,Luciana Dias de Lima e Tatiana Wargas de Faria Baptista, fruto de um trabalho efetuado para o CGEE e para o Ministério do Planejamentosobre
Desenvolvimento e saúde: em busca de uma nova utopia
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 327-338, set./dez. 2005 337
Do ponto de vista da organiza-
ção política da sociedade para um
novo modelo, que necessariamente
envolve interesses e lutas por po-
der na relação entre as pessoas e
grupos sociais e no território, a saú-
de também possui um vínculo in-
trínseco. A organização política da
saúde tanto reflete e reforça as de-
sigualdades existentes quanto cons-
titui um espaço estratégico de for-
talecimento da organização da so-
ciedade, sendo notório seu potenci-
al para gerar participação democrá-
tica e arranjos sociais com potenci-
al transformador.
Concluindo, articular saúde e
desenvolvimento ‘pra valer’ remete
para a necessidade de pensar o pa-
drão geral de desenvolvimento bra-
sileiro e como ele se expressa e se
reproduz no âmbito da saúde. Isto
não constitui uma perda de foco
sobre o tema saúde, mas sim reco-
nhecer que somos parte de um de-
terminado sistema capitalista, de
um país periférico e dependente e
com uma estrutura social e econô-
mica desigual e com fragilidades
estruturais marcantes.
Com esta perspectiva, podemos
entrar no debate nacional sobre o
desenvolvimento não como pedin-
tes, que, em troca, dizem, ‘saúde é
bom para o crescimento e no final
vai dar retorno’. Ao contrário, pro-
põe-se assumir que somos parte
deste processo e as perspectivas de
transformação nacional também
existem e se refletem na saúde, tan-
to em sua dimensão política e soci-
al quanto em sua dimensão econô-
mica. Mais ainda, no âmbito de um
novo modelo de desenvolvimento,
a saúde constitui uma das ativida-
des em que é possível – se bem que
não necessariamente – articular a
busca de equidade social e regio-
nal com o dinamismo econômico no
longo prazo, que caracterizam o
processo de desenvolvimento de um
ponto de vista substantivo.
Talvez a gente esteja numa fase
de construção de uma nova utopia
sobre um novo modelo de desenvol-
vimento. As novas propostas sobre
o desenvolvimento estão muito ca-
ladas ou tímidas. Sabemos que tudo
isto aqui é muito difícil, distante,
mas é preciso. Torna-se necessário
que as energias mobilizadoras da
sociedade brasileira sejam motiva-
das por novas utopias e projetos de
país. Na realidade, após a crise do
padrão de desenvolvimento do pós-
guerra e das experiências neolibe-
riais na política nacional, o momen-
to se mostra adequado para se re-
colocar as bases de um novo pacto
político, social e econômico, pensan-
do-se a retomada da perspectiva de
se construir um Estado de Bem-Es-
tar contemporâneo no Brasil, que re-
cupere as antigas promessas jamais
implementadas e que enfrente os
novos desafios.
Este texto de Celso Furtado
(2004, apud SABOIA, 2007) permite
expressar, com seu brilhantismo, a
perspectiva adotada:
Forçar um país que ainda não aten-
deu às necessidades mínimas de gran-
de parte da população a paralisar seto-
res mais modernos em economia, a con-
gelar investimentos em áreas básicas
como saúde, educação, para que se cum-
pram metas de ajustamentos de balan-
ça de pagamento impostas por benefi-
ciários das altas taxas de juros, é algo
que escapa a qualquer racionalidade
Compreende-se que esses beneficiários
defendam seus interesses. O que não se
compreende é como nós mesmos não de-
fendamos com idêntico empenho o di-
reito de desenvolver o País... A experi-
ência nos ensinou amplamente que, se
não se atacam de frente os problemas
fundamentais, o esforço de acumula-
ção tende a reproduzir, agravado, o
mau-desenvolvimento. Em contrapar-
... ARTICULAR SAÚDE E DESENVOLVIMENTO
‘PRA VALER’ REMETE PARA A NECESSIDADE DE
PENSAR O PADRÃO GERAL DE
DESENVOLVIMENTO BRASILEIRO E COMO ELE SE
EXPRESSA E SE REPRODUZ
NO ÂMBITO DA SAÚDE
GADELHA, Carlos Augusto Grabois
338 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 327-338, set./dez. 2005
tida, se conseguirmos satisfazer essa
condição básica que é a reconquista de
ter uma política de desenvolvimento,
terá chegado a hora da verdade para
todos nós (FURTADO 2004, apud SA-
BOIA, 2007, p. 24).
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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005 339
ARTIGOS DE OPINIÃO / OPINION ARTICLES
Regulamentar a EC-29, avançar o modelo de gestão e realizara universalidade com integralidade, equidade e participaçãoTo regulate the EC nº 29, to improve the management model and realize theuniversality with integrality, equity and participation.
Nelson Rodrigues dos Santos1
Recebido: Jun./2006
Aprovado: Jul./2007
1 Professor colaborador do Departamento
de Medicina Preventiva e Social da UNI-
CAMP e Ex-assessor do Gabinete do Mi-
nistro da Saúde.
Email: nelsonrs@fcm.unicamp.br
RESUMO
Este artigo aborda o significado do PLP 01/2003, substitutivo “Guilher-
me Menezes” de regulamentação da EC-29 de propor o atrelamento indivi-
sível entre a imprescindível elevação do financiamento federal e cumpri-
mento do estadual e municipal, ao imprescindível salto de qualidade nos
modelos de gestão, gerência e estrutura dos gastos. Por fim, formula-se
uma proposta viabilizadora, com atenuação na prática, do impacto finan-
ceiro nos gastos federais.
PALAVRAS-CHAVE: Financiamento Público em saúde, Gestão Pública em Saúde e
Política Pública em Saúde.
ABSTRACT
This paper discusses the significance of Bill n.º 1/2003, known as the
“Guilherme Menezes” replacement of the EC-29 regulation, which proposes
an indivisible binding between the essential rise in federal government
funding and the compliance of state and city governments, and the indis-
pensable improvement in the quality of the management systems, admi-
nistration and structure for spending. In conclusion, a proposal is formu-
lated which would attenuate the practical financial impact this would
have on federal spending.
KEYWORDS: Public Funding in Health Care, Public Administration of Health
Care; Public Policy in Health Care
SANTOS, Nelson Rodrigues dos
340 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005
APRESENTAÇÃO
Este texto é uma exposição de
motivos com a pretensão de subsi-
diar, com consistência e didática, as
discussões para fundamentação da
votação da regulamentação da
Emenda Constitucional n.29 (EC-29),
que trata do financiamento do Sis-
tema Único de Saúde (SUS). Pouco
inova e mais consolida as aborda-
gens amplamente debatidas desde
a aprovação da EC-29 no ano de
2000, em parte referida nos docu-
mentos de apoio apresentados a se-
guir, em ordem cronológica, que por
si inferem o exaustivo e perseveran-
te esforço da sociedade em busca
do direito social à saúde. A inova-
ção, exposta na última parte, cons-
ta de proposta de atenuação do im-
pacto financeiro na atual situação
macroeconômica da União, sem re-
dução dos montantes previstos na
proposta de regulamentação, dos
quais depende a própria construção
do SUS.
O CONFLITO
Foi estabelecido no momento em
que a área econômica do Governo
Federal definiu, a partir de 1990, não
destinar ao Sistema Único de Saú-
de, o mínimo de 30% dos recursos
do Orçamento da Seguridade Soci-
al, conforme indicado no ADCT da
Constituição Federal, e, a seguir,
seqüenciar medidas desvinculatóri-
as e restritivas no âmbito do SUS,
do Orçamento da Seguridade Social
(OSS) e da própria Seguridade Soci-
al.
O PRIMEIRO LADO DO CONFLI-
TO – é a conquista da sociedade bra-
sileira que se mobilizou na Assem-
bléia Nacional Constituinte (1987/
1988), garantindo no Capítulo da
Seguridade Social os direitos soci-
ais à saúde, previdência e assistên-
cia social, e aprovou orçamento
mento mínimo de 30% do OSS, sufi-
ciente para avançar na sua efetiva-
ção, tendo como base de cálculo o
crescimento populacional, a incor-
poração tecnológica, a correção in-
flacionária da saúde, e as mudan-
ças dos modelos de gestão.
O SEGUNDO LADO DO CONFLITO
– é o grave subfinanciamento que
vem levando os Gestores dos SUS à
exaustão, principalmente os estadu-
ais e municipais. A retração do in-
vestimento em saúde por parte do
governo federal implica em maior
aporte de recursos por parte dos
estados e municípios para o setor
saúde. O dilema do financiamento
se agrava com a atenção universal:
mais de 75% da população brasilei-
ra usuária exclusiva do SUS, e me-
nos de 25%, usuários não exclusi-
vos, consumidores de planos priva-
dos de saúde, que utilizam os ser-
viços do SUS em imunizações, ações
de vigilância epidemiológica e sa-
nitária, exames e tratamentos mais
sofisticados e de alto custo, como
transplantes, terapia renal substitu-
tiva, controle e tratamento de HIV/
AIDS, medicamentos de alto custo,
entre outros.
A fragilidade do Brasil se revela
ao compararmos os gastos públi-
cos com saúde com outros países.
Nossos U$ 150 a 200 por habitante-
ano correspondem por volta da me-
tade do que gasta a Argentina, Uru-
guai, Costa Rica e Panamá, e pouco
mais de 10% em relação ao Canadá,
suficiente para assegurar a realiza-
ção dos mesmos, aos moldes das
sociedades mais desenvolvidas e
civilizadas, reconhecendo a neces-
sidade de sua implementação gra-
dativa, com prioridades e etapas a
serem pactuadas. Assim, ficaram
consagrados para o SUS, os princí-
pios da Universalidade, Eqüidade e
Integralidade, Descentralização,
Regionalização e Participação, e
também, a indicação do financia-
A FRAGILIDADE DO BRASIL SE REVELA AO
COMPARARMOS OS GASTOS PÚBLICOS COM
SAÚDE COM OUTROS PAÍSES
Regulamentar a EC-29, avançar o modelo de gestão e realizar a universalidade com integralidade, equidade e participação
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005 341
países europeus, Japão, Austrália e
outros, cuja média é de US$ 1.400
públicos por habitante-ano. Nestes
países, os recursos públicos signi-
ficam no mínimo 70% dos gastos
totais com saúde, enquanto aqui
não ultrapassam 45%, correspon-
dendo a somente 3,2% do PIB. Da-
dos da Organização Mundial de Saú-
de mostram que os serviços públi-
cos de saúde representam um gas-
to entre 6 e 8% do PIB nos países
com melhores sistemas de saúde,
revelando o tênue compromisso do
Estado no Brasil com o Direito So-
cial à Saúde.
O baixo compromisso do Gover-
no Federal com o setor saúde, de
1990 até o momento, se revela nos
seguintes pontos:
a) a não-implementação da Se-
guridade Social preconizada na
Constituição, com a efetivação de
30% do OSS para a saúde;
b) a retirada arbitrária da maior
fonte do OSS (recolhimento em fo-
lha) em 1993, quebrando o SUS e
obrigando o MS contrair emprésti-
mo ao FAT/MT;
c) retirada de outras fontes do
MS, em 1996, quando a CPMF foi
aprovada para o SUS, mas utiliza-
da para outros fins;
d) a prática da área econômica
de impor o tríplice contingenciamen-
to na execução orçamentária do MS:
no empenho, na liberação e na li-
quidação/restos a pagar;
e) a desobrigação da esfera fe-
deral do cálculo da contrapartida
baseada em % sobre a base orça-
mentária, critério imposto aos es-
tados (mínimo de 12%) e municípi-
os (mínimo de 15%) por ocasião da
negociação para a aprovação da EC-
29 em 2000;
f) a tenaz resistência da área eco-
nômica, desde 2003, à discussão e
aprovação pelo Congresso Nacional
da regulamentação da EC-29.
tre 1995 e 2005, caiu de US$ 85,7
para US$ 77,4 per capita, a soma
das contrapartidas estaduais e mu-
nicipais, entre 2000 e 2005, cresceu
de US$ 44,1 para US$ 75,5 per ca-
pita;
c) enquanto a contrapartida fe-
deral no financiamento do SUS caiu
de 63,8% para 49,6% entre 1995 e
2004, a soma das contrapartidas
estaduais e municipais cresceu de
39,3% para 50,4%, neste mesmo pe-
ríodo; somente entre 2000 e 2004,
os gastos relativos federais com
saúde reduziram-se em cerca de
10%;
d) aconteceu a desastrosa pre-
carização da gestão do pessoal de
saúde no ingresso e carreira públi-
ca, na remuneração, na capacitação
e distribuição com base nas neces-
sidades e direitos de saúde da po-
pulação, sendo quase tudo substi-
tuído por terceirizações aleatórias
e ao sabor das possibilidades e in-
teresses de cada momento, e do
mercado, redundando altíssima e
incontrolável rotatividade de pesso-
al técnico e especialmente de nível
superior, concentrada na medicina
especializada assistencial, no su-
porte técnico da gestão e até nos
poucos médicos generalistas ade-
quadamente preparados. No Minis-
tério da Saúde restam pouco mais
de 25% de servidores no quadro do
pessoal, concentrados nas ativida-
des burocráticas e administrativas,
sendo o restante, o festival da mas-
Do baixo compromisso acima
pontuado vem decorrendo:
a) enquanto a relação das recei-
tas correntes da União com o PIB,
entre 1995 e 2004, cresceu de 19,7%
para 26,7%, nesse mesmo prazo, a
relação do gasto do MS com as des-
pesas correntes caiu de 8,12 para
7,2%, tendência que prossegue;
b) enquanto a contrapartida fe-
deral no financiamento do SUS, en-
... ACONTECEU A DESASTROSA PRECARIZAÇÃO
DA GESTÃO DO PESSOAL DE SAÚDE (...),SENDO QUASE TUDO SUBSTITUÍDO POR
TERCEIRIZAÇÕES ALEATÓRIAS E AO SABOR DAS
POSSIBILIDADES E INTERESSES DE CADA
MOMENTO ...
SANTOS, Nelson Rodrigues dos
342 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005
sa de cargos de comissão e confi-
ança, e técnicos terceirizados, fra-
gilizando o desenvolvimento da
missão institucional e influencian-
do negativamente a composição do
quadro do pessoal das secretarias
estaduais e municipais.
CONSEQÜÊNCIAS NAIMPLEMENTAÇÃO DO SUS
a) Os gestores do SUS e traba-
lhadores de saúde tentam efetivar a
qualquer custo o princípio da uni-
versalidade, elevando como nunca
a produtividade, a produção e a
cobertura das ações e serviços, com
base no pleno cumprimento do prin-
cípio da descentralização com ên-
fase na municipalização, e mesmo
premidos pela incontornável pres-
são de demanda, apresentam sur-
preendente eficiência, como atesta
a produção de 2006:
- 1,3 bilhão de atendimentos bási-cos,
- 1,2 bilhão de procedimentos espe-cializados,
- 600 milhões de consultas,
- 212 milhões de ações odontológi-cas,
- 360 milhões de exames,
- 11 milhões de ultra-sonografias,
- 11,8 milhões de internações,
- 3,1 milhões de cirurgias, sendo 141mil cirurgias cardíacas,
- 150 milhões de vacinas,
- 12 mil transplantes,
- 1,3 milhão de tomografias,
- 23 milhões de ações de vigilância
sanitária, etc.
Gestores, prestadores de serviços
e trabalhadores de saúde “tiram
água das pedras” e fazem aconte-
cer a política pública de maior in-
clusão social existente no Brasil.
Muitas experiências e projetos exi-
tosos são mostrados nacionalmen-
res de AIDS, no Programa Nacional
de Imunização (PNI), nos transplan-
tes de tecidos e órgãos, na redução
da mortalidade infantil, no forne-
cimento de medicamentos de alto
custo, na desospitalização de vári-
as patologias, etc.
b) os valores remuneratórios
pelos serviços de saúde estão bem
aquém do necessário para efetiva-
ção de serviços de qualidade, isto
é, bem abaixo do custo do serviço,
o mesmo acontecendo com mais de
90% dos procedimentos da tabela de
pagamento por produção (forma
predominante de pagamento); os
repasses federais aos estados e
municípios permanecem limitados
por tetos financeiros muito baixos,
e historicamente dispersos em qua-
se 130 fragmentos negociados um
a um, cuja revisão aconteceu só
agora com a implantação dos Blo-
cos de Financiamento, após a cria-
ção do Pacto pela Vida 2006;
c) os trabalhadores de saúde e
os prestadores de serviços, freqüen-
temente valem-se de ‘táticas de so-
brevivência’, que vão desde baixa
assiduidade, descumprimento de
jornadas, alta rotatividade empre-
gatícia, até a multiplicação de dis-
torções da oferta de serviços, gera-
da por interesses de mercado, como
pagamentos ‘por fora’ e ‘segunda
porta’ em hospitais públicos terciá-
rios para particulares e planos
te, sendo a maioria de caráter local
ou municipal, não conseguindo
aplicação/sustentabilidade regio-
nal, estadual e na maioria dos mu-
nicípios. Em situações especiais,
quando são alocados recursos mi-
nimamente suficientes e contínuos,
o SUS revela de pronto sua compe-
tência e qualidade e mostra resul-
tados surpreendentes como na aten-
ção integral à saúde dos portado-
GESTORES, PRESTADORES DE SERVIÇOS ETRABALHADORES DE SAÚDE “ TIRAM ÁGUA DE
PEDRA” E FAZEM ACONTECER A POLÍTICA
PÚBLICA DE MAIOR INCLUSÃO SOCIAL ...
Regulamentar a EC-29, avançar o modelo de gestão e realizar a universalidade com integralidade, equidade e participação
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005 343
privados; a situação real explica es-
sas táticas mas não as justifica en-
quanto mais uma subversão do di-
reito do usuário à saúde;
d) os próprios gestores são mui-
tas vezes compelidos a ‘táticas de
sobrevivência’, nada financiando
além do mínimo (União e estados),
ou mesmo descumprindo o mínimo
(a maior parte dos estados), deso-
nerando-se ao desviar demandas
(municípios vizinhos, município-
estado e estado-município). Outro
importante fator de oneração do SUS
é a inclusão nos Fundos de Saúde,
despesas como Bolsa-Família na
União, saneamento básico, alimen-
tação, planos privados de servido-
res, pagamento de inativos e outros.
A última e crescente oneração so-
bre o SUS é a demanda de consumi-
dores dos planos privados de saú-
de por serviços do SUS, principal-
mente de alta complexidade, não
restituídos pelas operadoras e sem
qualquer regramento à luz dos prin-
cípios da integralidade e equidade;
também aqui se explica, mas não
se justifica, essas subversões do
direito do usuário à saúde;
e) o desafio de construir o mo-
delo assistencial centrado na regio-
nalização, indutora da integralida-
de regulada com equidade, econo-
mia de escala, melhoria do acesso
e da eficiência, tem sua implanta-
ção ainda incipiente frente às gra-
ves barreiras do papel indutor do
Estado e as crises não superadas
do subfinanciamento, da precariza-
ção do trabalho e da exaustão dos
gestores;
f) a produção de serviços apre-
sentada carrega inaceitáveis percen-
tuais de ações evitáveis e desneces-
sárias, conseqüência de modelo ina-
dequado, centrado nas urgências do
atendimento em detrimento da pro-
teção contra riscos e danos à saúde
e diagnóstico precoce das doenças,
porcentuais estes agravados pela
O SIGNIFICADO DO SUBSTITUTIVO“GUILHERME MENEZES”
NA REGULAMENTAÇÃO DE EC-29
a) Incorpora os PLP n.01/2003 do
Dep. Roberto Gouveia, n.159/2004
do Dep. Geraldo Rezende e n.181/
2004, do Dep. Rafael Guerra, os dois
últimos apensados ao primeiro;
b) Aprimorado e aprovado nas
Comissões da Câmara dos Deputa-
dos: Seguridade Social e Família em
11.08.04, Finanças e Tributação em
10.11.04, e Constituição, Justiça e
Cidadania em 29.09.05;
c) Contempla o igualamento dos
critérios de cálculo das contrapar-
tidas das três esferas de Governo no
financiamento do SUS, conforme
estampado no art.6, § 2º e 3º da EC-
29, incorporados no Art. 198 da
Constituição, que explicita inequi-
vocadamente a prescrição para as
três esferas, de porcentuais para
cálculo, no caso da esfera federal,
a ser definido em Lei Complemen-
tar (ver art. 5º ao 10º do PLP);
d) Dispõe criteriosamente sobre
o rateio dos recursos repassados,
com base nas necessidades da po-
pulação e nos princípios da integra-
lidade, eqüidade e regionalização,
e sobre o planejamento ascendente,
metas e custos (ver art. 17º a 27º);
e) Amplia e aprofunda os meca-
nismos de avaliação, controle e fis-
calização, aclarando os papéis dos
conselhos de saúde, do Legislativo,
baixa resolutividade, estrutura de
trabalho deficiente, baixa capacita-
ção profissional e conduta ética
duvidosa;
g) em regra, a estruturação dos
modelos de atenção e de gestão na
saúde, com base nas necessidades
e direitos da população, está sendo
substituída pelo incrementalismo
da produtividade em assistência a
demanda espontânea.
... A ESTRUTURAÇÃO DOS MODELOS DE
ATENÇÃO E DE GESTÃO NA SAÚDE, COM BASE
NAS NECESSIDADES E DIREITOS DA POPULAÇÃO,ESTÁ SENDO SUBSTITUÍDA PELO
INCREMENTALISMO DA PRODUTIVIDADE EM
ASSISTÊNCIA A DEMANDA ESPONTÂNEA
SANTOS, Nelson Rodrigues dos
344 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005
dos Tribunais de Contas e do Minis-
tério Público (ver art. 28º a 37º);
f) Regulamenta e aclara a apli-
cação dos art. 2º ao 7º da Lei
n.8080/90, tornando inequívoco o
que são serviços públicos de saúde
financiados pelos orçamentos públi-
cos, e o que são serviços referentes
a fatores determinantes e condicio-
nantes da saúde (saneamento, ali-
mentação, serviço social, planos
privados de servidores, pagamento
de inativos, etc.) de responsabilida-
de orçamentária de outros setores,
mas que vêm onerando crescente-
mente o SUS e tergiversando a in-
terpretação da Lei n.8080/1990 (ver
art. 2º ao 4º);
g) Reconhece e define as comis-
sões Intergestores Tripartite e Bipar-
tites, e o Sistema de Informações dos
Orçamentos Públicos de Saúde (ver
art. 25º a 37º e 40º);
h) Estimativas da aplicação em
2007, dos 10% da receita federal
bruta, sem aplicar a DRU, e sem
contingenciamentos, estão por vol-
ta de R$ 65,24 bilhões, que repre-
sentam R$ 19,5 bilhões a mais que
os R$ 45,80 bilhões aprovados no
orçamento de 2007. Este acréscimo,
vertido para US$ per capita, signi-
ficará a evolução da atual faixa de
US$ 150/200 per capita, para a de
US$ 250/300, ainda insuficiente
para a viabilização do SUS, mas
apontando, junto aos demais avan-
ços constantes na regulamentação,
para novo patamar de esperanças,
confiabilidades e pactuações de oti-
mização dos gastos entre as três
esferas de Governo e delas com a
sociedade, incluindo resgate dos
recursos crescentes, ao contrário da
atual imposição de ‘Teto’ aos recur-
sos mínimos legais. É a proposta
que mais garante a reversão da re-
tração dos gastos federais, referida
na Parte II – O Conflito.
i) Apesar de ainda insuficiente,
este acréscimo pode causar uma
primeira impressão de ‘além do es-
Saneamento, Trabalho, Meio Ambi-
ente, Infra-estrutura do Desenvolvi-
mento e outras.
A ATUAL SITUAÇÃO MACROECONÔMICA DANAÇÃO E O MEMORIAL DAS SECRETARIAS
ESTADUAIS DE FAZENDA (CONFAZ)
Os secretários estaduais de Fa-
zenda, organizados no CONFAZ, divul-
garam em fevereiro de 2007 memo-
rial propondo alterações no Substi-
tutivo “Guilherme Menezes”, basi-
camente na:
• redução da contrapartida es-
tadual no financiamento do SUS de
12 para 10% de produto da arreca-
dação dos impostos, conforme dis-
posto na EC-29,
• e a inclusão de nove serviços
vinculados a outros setores, para
serem remunerados pelo SUS (ex.:
saneamento, inativos, planos priva-
dos de servidores, entidades priva-
das de pesquisa, serviço social,
hospitais universitários, edificações
de unidades de saúde privadas, saú-
de penitenciária, etc.), todos eles
orçamentados nos respectivos seto-
res por determinação constitucional,
da Lei n.8080/90 e legislação espe-
cífica.
Antes de me posicionar sobre esta
proposta e encaminhar uma saída,
é importante contextualizá-la:
a) a partir de 1990 foi organiza-
da a ‘financeirização dos orçamen-
tos públicos’, constando de:
perado ou cabível’, devido à insidi-
osa e paulatina redução das expec-
tativas, desde 1990, imposta e in-
trojetada nos formadores de opinião,
pela área econômica e o ‘marketing’
mercadológico, ao descolar cresci-
mento dos orçamentos públicos de
saúde, do crescimento das receitas
públicas correntes brutas. O que,
desastrosamente aconteceu com
outras políticas públicas: Educa-
ção, Habitação, Segurança Pública,
OS SECRETÁRIOS ESTADUAIS DE FAZENDA,ORGANIZADOS NO CONFAZ, DIVULGARAM EM
FEVEREIRO DE 2007 MEMORIAL PROPONDO
ALTERAÇÕES NO SUBSTITUTIVO “GUILHERME
MENEZES”...
Regulamentar a EC-29, avançar o modelo de gestão e realizar a universalidade com integralidade, equidade e participação
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005 345
• pronunciada elevação da ar-
recadação e receita federal, inclu-
indo a recentralização federal da
arrecadação nas três esferas, hoje
próxima ao nível pré-constitucional;
• desvinculação de 20% das re-
ceitas da União (DRU);
• tríplice contingenciamento na
execução orçamentária dos setores
sociais e de infra-estrutura;
• retração da contrapartida fe-
deral no financiamento de políticas
públicas;
• redução dos gastos com a fo-
lha de servidores;
• terceirizações aleatórias;
• estagnação ou retração dos
orçamentos na área social e de in-
fra-estrutura;
• retração do campo das respon-
sabilidades de Estado;
• ‘Cláusula pétrea’, vínculo sem
discussão, no pagamento dos juros,
taxas de risco e do refinanciamento
da dívida pública;
• aplicação inflexível da Lei de
Responsabilidade Fiscal no tocante
à folha de servidores dos setores
sociais em expansão com a descen-
tralização, e transferência de res-
ponsabilidades federais e estaduais,
sem regulamentação nem revisão.
b) A ‘financeirização dos orça-
mentos públicos’ ocorreu no bojo da
adoção pela União, a partir de 1990,
do modelo de ajuste da pressão in-
flacionária, concentrado na intensa
e contínua elevação da taxa de ju-
ros, sem qualquer proteção contra
o crescimento geométrico da dívida
pública, e justificado pela corrente
monetarista da área econômica do
Governo, como de curtíssimo pra-
zo, para golpear a inflação. O cres-
cimento e fortalecimento de uma
‘nova classe’ de credores/rentistas
da crescente dívida pública, cujos
juros anuais estão por volta de R$
170 bilhões, vêm perpetuando esse
modelo e já concentram o seu usu-
fruto: 75% desses juros vão para 20
mil famílias de credores/rentistas.
to produtivo, o rendimento médio
real dos trabalhadores cai continu-
amente, assim como cai a porcen-
tagem da massa salarial na forma-
ção da renda nacional; tudo presi-
dido pela permanência pouco justi-
ficada e debatida, aberta e demo-
craticamente, de taxa de juros por
volta do dobro da praticada nos
países desenvolvidos e em desenvol-
vimento, e taxa de crescimento anu-
al do PIB por volta da metade da
verificada nesses países.
d) Se for observado somente o
comportamento dos governos, des-
de 1990, sem olhar para a Socieda-
de, o Estado e a Nação, eles vêm
operando com poder discricionário
auto-investido, ao largo da partici-
pação social consciente, da socie-
dade e do próprio Legislativo.
e) A ‘financeirização dos orça-
mentos públicos’ no bojo deste mo-
delo vem levando os governadores
e prefeitos, ano a ano, a crescente
instabilidade e tensão imposta pela
limitação orçamentária ao exercício
das responsabilidades de governo
para com o processo produtivo e
direitos sociais das respectivas po-
pulações. É a crise na governança
e na governabilidade no conceito
das Ciências Políticas. É o sufoco
sem saídas legais ou com pseudo-
saídas informais, irregulares ou
mesmo ilegais, como as ‘táticas de
sobrevivência’ e as desonerações
exemplificadas na Parte III (itens c
e d). A proposta do memorial dos
c) A corrente monetarista da área
econômica assume a hegemonia,
tornando os governos reféns do cres-
cimento, também hegemônico, do
capital financeiro. A Nação, envol-
vida nesse modelo, vive o desloca-
mento ininterrupto de recursos bili-
onários do processo produtivo e dos
direitos sociais, para a acumulação
financeira e bancária: no setor em-
presarial, as aplicações financeiras
vêm ganhando longe do investimen-
SE FOR OBSERVADO SOMENTE OCOMPORTAMENTO DOS GOVERNOS, DESDE
1990 (...)ELES VÊM OPERANDO COM PODER
DISCRICIONÁRIO AUTO-INVESTIDO, AO LARGO
DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL CONSCIENTE, DA
SOCIEDADE E DO PRÓPRIO LEGISLATIVO
SANTOS, Nelson Rodrigues dos
346 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005
secretários de Fazenda insere-se nes-
se contexto, exacerbando além do
que até agora vem sendo feito, a tí-
tulo de sobrevivência e desonera-
ção. É a autofagia entre as unida-
des institucionais e orçamentárias
de um ‘varejo’ duramente sucatea-
do por um ‘atacado’ até agora frio,
inclemente e todo poderoso. O me-
morial é estruturalmente equivoca-
do: não soluciona, por si, as travas
na governança e governabilidade, e
avança no aniquilamento do SUS.
A proposta de encaminhamento
de uma saída ao memorial do CON-
FAZ deve estar na lógica de um en-
caminhamento maior de saídas para
a governança e governabilidade dos
estados, DF e municípios, e para a
própria União, calcadas em profun-
da, ampla e democrática revisão,
pela Sociedade e Nação, da sua re-
lação com o Estado, reapropriando-
o para si, como começava a acon-
tecer nos anos 1980. Apenas come-
çava!
Elementos estruturais constari-
am na base dessa revisão, como o
sistema Tributário e Fiscal, a pro-
teção da dívida pública contra ju-
ros altos, a queda dos juros, as Leis
da Responsabilidade Fiscal e Soci-
al, a desprecarização da gestão dos
servidores públicos, a precedência
das políticas públicas e dos valo-
res e direitos sociais sobre os indi-
viduais e outros.
Voltando ao memorial do CONFAZ,
propomos que seja instada perante
os Exmos. Governadores, a inicia-
tiva de convocação de uma oficina
analítica e propositiva entre o CON-
FAZ, o CONASS (Conselho Nacional de
Secretários Estaduais de Saúde) e o
CONASEMS (Conselho Nacional de Se-
cretárias Municipais de Saúde), com
participação dos presidentes das
comissões de saúde das Assembléi-
as Legislativas, dos presidentes dos
Conselhos dos Secretários Munici-
pais de Saúde (COSEMS), dos presi-
dentes dos Conselhos Estaduais de
Ambiente e outros, e dos setores
sociais entre si.
UMA PROPOSTA X ESTRATÉGICA NAAPLICAÇÃO DOS RECURSOS FEDERAIS
CORRESPONDENTES À DIFERENÇAENTRE OS CÁLCULOS PRÉ E
PÓS-REGULAMENTAÇÃO
Seguem os passos dados na for-
mulação, e a proposta, apenas es-
quematizada, deixa o necessário
aclaramento e detalhamento para a
riqueza da participação dos deba-
tes, por ex., o conceito e prática de
‘Integralidade Regulada’ e de ‘Re-
gionalização Cooperativa e Solidá-
ria’:
a) se o subfinanciamento e pre-
carização da gestão do pessoal de
saúde vêm levando às conseqüên-
cias negativas exemplificadas na
Parte III, a reversão dessas duas
causas, ainda que gradativa, deve-
rá incidir estrategicamente no res-
gate da equidade, integralidade e
regionalização para o centro da
construção dos novos modelos, isto
é, para a estrutura básica da cons-
trução do SUS. Sendo que a descen-
tralização /municipalização avan-
çaram bastante, está mais que na
hora de serem orientadas pela regi-
onalização. Sendo que a universa-
lização avançou bastante, está mais
que na hora de ser qualificada pela
equidade, integralidade regulada e
resolutividade. Com pena de ser se-
Saúde, de representantes da Asso-
ciação dos Membros dos Tribunais
de Contas (ATRICON) e da Associação
Brasileira de Economia de Saúde
(ABRES)
Esta oficina (ou seminário) de-
veria ser adequadamente prepara-
da, com documentos prévios enco-
mendados. Na seqüência, eventos
similares deveriam ser organizados
com os setores Educação, Assistên-
cia Social, Cultura e Lazer, Meio
O MEMORIAL É ESTRUTURALMENTE
EQUIVOCADO: NÃO SOLUCIONA, POR SI, AS
TRAVAS NA GOVERNANÇA E GOVERNABILIDADE,E AVANÇA NO ANIQUILAMENTO DO SUS
Regulamentar a EC-29, avançar o modelo de gestão e realizar a universalidade com integralidade, equidade e participação
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005 347
guido e consolidado um outro rumo
para um outro modelo, que não o
do SUS;
b) assunção pelos gestores, tra-
balhadores de saúde, usuários e
prestadores de serviços, da constru-
ção da regionalização (sistemas de
redes regionalizadas), enquanto eixo
aglutinador da construção da equi-
dade e integralidade. A equidade
intermunicipal na Região, articula-
da nas pactuações intermunicipais
e dos municípios com o estado; a
equidade inter-regional, sob respon-
sabilidade maior da Bipartite e do
estado e a equidade interestadual,
sob a responsabilidade maior da
Tripartite e da União. Sob a mesma
lógica deverão ser equacionadas as
situações limítrofes interestaduais;
c) este processo deve viabilizar-
se de acordo com o tamanho e perfil
populacional, distribuição de capa-
cidade instalada e dos profissionais
de saúde, as vias de acesso e os atu-
ais fluxos de demandas, e em arti-
culação com os processos de terri-
torialização das cadeias produtivas
de bens e serviços, e não de forma
setorial isolada. Não deve, por isso,
depender dos limites administrativos
das Diretorias Regionais das Secre-
tarias Estaduais de Saúde;
d) o modelo de gestão almejado
em cada região sanitária deve con-
templar basicamente:
• planejamento ascendente do
local ao regional, com metas quali-
quantitativas e de resultados da
atenção integral à saúde e respecti-
vos custos, conforme dispõe o subs-
titutivo Guilherme Menezes;
• valor de remuneração XXX de
todos os serviços preventivos e cu-
rativos não inferior aos respectivos
custos;
• autonomia gerencial para as
unidades hospitalares mais comple-
xas e para distritos sanitários;
• contratos de gestão para cum-
primento de metas, desempenho e
resultados, definidos, realizados e
avaliados sob lógica publicista, fi-
cando a remuneração por produção,
forma excepcional e residual;
• Gestão Colegiada da Região
Sanitária: deve ser pública gover-
namental (estadual/municipal) com-
partilhada, composta pelos di-
retores das Diretorias Regionais e
os Secretários Municipais de Saúde
da Região Sanitária;
• desprecarização da gestão do
pessoal de Saúde, incluindo o in-
gresso, capacitação, carreira, fixa-
ção dos profissionais e remunera-
ção mista (fixa e por desempenho/
resultados das equipes);
• investimento estratégico obe-
decendo o Plano Diretor de Regiona-
lização, universalizando o acesso à
capacidade instalada e de profissio-
nais subordinando-se à diferencia-
ções entre as regiões em função da
diretriz da equidade;
• adoção dos preceitos da pro-
dução em escala, otimizando a re-
lação custo/qualidade/efetividade,
balizada pela construção da equi-
dade;
• propiciamento de condições
para a qualificação da Atenção Pri-
mária, objetivando resolutividade de
no mínimo 80% das necessidades,
com base nas necessidades da po-
pulação, agregando o pronto-aten-
dimento contínuo, tornando-a refe-
rência para acesso garantido aos
serviços de média e alta complexi-
dade e centro de organização da rede
de serviços;
• participação efetiva da socie-
dade através dos Conselhos de Saú-
de na definição e aprovação das pri-
oridades e etapas perante os li-
mites do financiamento;
• resgate dos valores e práticas
da solidariedade e humanização das
relações com os usuários;
• definição e assunção da res-
ponsabilidade sanitária em todos os
níveis da prestação de serviços,
além dos entes federados.
... CONSTRUÇÃO DA REGIONALIZAÇÃO (SISTEMA
DE REDES REGIONALIZADAS), ENQUANTO EIXO
AGLUTINADOR DA CONSTRUÇÃO DA EQUIDADE EINTEGRIDADE
SANTOS, Nelson Rodrigues dos
348 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005
e) No processo de novo patamar
de financiamento, da desprecariza-
ção da gestão do pessoal e da cons-
trução dos novos modelos, será ina-
bdicável a construção de nova rela-
ção do SUS, em todos os níveis, com
a saúde suplementar (mercado de
planos privados de saúde), com ên-
fase no regramento da demanda dos
respectivos consumidores aos ser-
viços do SUS, de média e principal-
mente alta complexidade e custos,
com vistas ao efetivo cumprimento
dos princípios e diretrizes da equi-
dade, integralidade e regionaliza-
ção, em substituição à hoje predo-
minante desoneração das operado-
ras dos planos privados;
f) o processo da regionalização
dos serviços de saúde variará ine-
xoravelmente na forma e velocida-
de, de acordo com as realidades his-
tóricas populacionais, socioeconô-
micas, culturais, epidemiológicas e
de capacidade instalada, em cada
região, estado e macrorregião do
território nacional;
g) já se encontram estabelecidas
as responsabilidades da Tripartite,
nas pactuações genéricas no âmbi-
to nacional sobre a regionalização,
e das Bipartites em cada estado,
com autonomia de pactuações de
diretrizes nos respectivos territóri-
os, tudo discutido e legitimado nos
respectivos conselhos de saúde. O
eixo básico desse processo foi cons-
truído em 2006 pela Tripartite e
CNS, resultando o “Pacto pela Vida
em Defesa do SUS e de Gestão”;
h) a proposta de aplicação dos
recursos referentes à diferença en-
tre os cálculos pré e pós-regulamen-
tação é a de:
• maior parte destinada à apli-
cação parcelada em gastos orienta-
dos por metas estratégicas, com
direcionalidade e aceleração do pro-
cesso da Regionalização Cooperati-
va e Solidária;
• outra parte destinada à apli-
cação imediata conforme disposto
nos planos e orçamentos de cada
ente federado, com prioridades e
etapas pactuadas na Tripartite e
Bipartites, incluindo as situações
mais graves de desassistência, epi-
demias, retorno de endemias e de-
sarticulação do sistema, e a
• outra parte destinada aos in-
vestimentos públicos estratégicos
na ciência/tecnologia e cadeia pro-
dutiva do complexo econômico-in-
dustrial da Saúde, com potência de
induzir os investimentos privados
e reverter o grande déficit acumu-
lado desde os anos 1990.
i) os cronogramas de implanta-
ção e/ou implementação das Regi-
ões Sanitárias, com as respectivas
etapas, prioridades, requisitos com-
prováveis, tanto das atividades –
meio como finalísticas, articuladas
entre si –, assim como as alterna-
tivas da intervenção no processo
ocorrerá simultaneamente em todas
as regiões, ou seqüencial por re-
gião, serão objetos, entre outros,
das formulações e pactuações na
Tripartite, nas Bipartites e Biparti-
tes regionais, e discutidas nos res-
pectivos conselhos e plenárias re-
gionais de saúde.
j) aos cronogramas de implan-
tação e/ou implementação das Re-
giões Sanitárias, deverão corres-
ponder cronogramas de liberação
dos respectivos recursos para o
Fundo Nacional de Saúde, justifi-
cados pela Tripartite e executados
pelo MS-MPOG. O montante dos re-
cursos ainda não liberados (saldo),
não deverá ser objeto de contingen-
ciamentos e estornos, inclusive ao
final do ano fiscal. Possível acumu-
lação (saldo) findo o processo da
regionalização, deverá ser destina-
do à continuidade da elevação dos
recursos públicos per capita anu-
ais para o SUS, objetivando alcan-
çar patamar correspondente à pelo
...AOS CRONOGRAMAS DE IMPLEMENTAÇÃO E/OU IMPLEMENTAÇÃO DAS REGIÕES
SANITÁRIAS, DEVERÃO CORRESPONDER
CRONOGRAMAS DE LIBERAÇÃO DOS
RESPECTIVOS RECURSOS PARA O FUNDO
NACIONAL DE SAÚDE ...
Regulamentar a EC-29, avançar o modelo de gestão e realizar a universalidade com integralidade, equidade e participação
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005 349
menos a metade da média dos per
capita públicos vigentes nos países
mais desenvolvidos, como Canadá
e países europeus (por volta de U$
700 por habitante-ano);
k) esta proposta, assim como o
debate sobre os gastos do SUS, in-
cluindo os adicionais com a apro-
vação da regulamentação da EC-29,
deve se dar com a participação dos
Conselhos de Saúde e da sociedade
organizada, em especial, com as
representações dos usuários, sendo
que na questão da regionalização
não deverão deixar de ser valoriza-
dos, fóruns ou plenárias regionais
de saúde. A consciência coletiva das
necessidades e direitos à saúde am-
pliará em um valor a mais: “a mi-
nha região, que está social e legal-
mente obrigada a proteger minha
saúde e a da coletividade regional,
com atenção integral, equitativa e
universal”.
ANEXO
ENCAMINHAMENTOS DE APOIOÀS ARTICULAÇÕES
E NEGOCIAÇÕES SOBREA REGULAMENTAÇÃO DA EC-29
I – O projeto da Reforma Sanitá-
ria Brasileira insere-se no projeto
social maior civilizatório que defi-
ne e configura o Estado democráti-
co subordinado por igual ao conjun-
to dos segmentos da sociedade, a
eles garantindo equitativamente as
condições mínimas imprescindíveis
ao usufruto da dignidade do ser
humano e dos direitos sociais espe-
lhados em nossa Constituição: Edu-
cação Saúde, Trabalho, Moradia,
Lazer, Segurança, Previdência Soci-
al, Proteção à Maternidade e Infân-
cia e Assistência aos Desamparados.
Como nas sociedades mais desen-
volvidas, são garantias constituci-
onais do exercício da cidadania: o
Sistema de Proteção Social que ofe-
rece patamar básico digno de aten-
ção aos direitos sociais, e a Renda
que o complementa de acordo com
o estrato social.
II – O Sistema Único de Saúde
está legalmente compelido a buscar
integração e sinergismo permanen-
tes com os setores governamentais
responsáveis pelos fatores determi-
nantes e condicionantes da saúde no
âmbito das políticas públicas, espe-
lhados em nossa Lei Orgânica da
Saúde: Alimentação, Moradia, Sane-
amento Básico, Meio Ambiente, Tra-
balho, Renda, Educação, Transpor-
te, Lazer e Acesso aos Bens e Servi-
ços Essenciais. Da mesma maneira,
a Seguridade Social consagrada na
Constituição.
III – A oferta e utilização de ser-
viços públicos integrais de saúde,
preventivos e curativos, deve-se re-
alizar em patamar mínimo impres-
cindível correspondente à dignida-
de e direito de cada cidadão e da
coletividade, mas com regulação
pactuada com a sociedade das ten-
dências e pressões de utilização ili-
mitada de ações e serviços evitá-
veis, supérfluos e desnecessários.
IV – A elevada competência al-
cançada na gestão de sistemas nos
17 anos do SUS, com estabelecimen-
to da direção única em cada esfera
de governo, da gestão pactuada en-
tre as três esferas (Tripartite e Bi-
partites), da descentralização radi-
cal de competências, da criação dos
Fundos de Saúde e repasses Fundo
a Fundo, dos Conselhos de Saúde e
de respeitável vanguarda na gestão
estadual e municipal, pouco se es-
tendeu à gestão e gerência cotidia-
nas das unidades prestadoras de
serviços, das simples às complexas.
Apesar da grande elevação da pro-
dutividade e produção, permanecem
inaceitáveis proporções de desper-
dícios com ações e serviços evitá-
veis, supérfluos e desnecessários,
conseqüentes à impossibilidade de
reverter a atual lógica da oferta de
serviços onde pesam os interesses
de ‘sobrevivência’ de profissionais
de saúde, prestadores de serviços e
industria de medicamentos e outros
insumos, secundarizando as neces-
sidades e direitos da população. Por
sua vez, este peso depende direta-
mente do grave subfinanciamento
público (per capita público menor
do que em vários países da Améri-
SANTOS, Nelson Rodrigues dos
350 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005
ca Latina e pouco mais de 10% da
média dos países desenvolvidos), e
do baixíssimo nível da remuneração
e gestão do trabalho do pessoal de
saúde, o que tem colocado, em re-
gra, os gestores estaduais, e princi-
palmente os municipais de saúde,
em verdadeiro estrangulamento.
V – É de constatação inequívo-
ca, o esgotamento da viabilidade de
solução única: somente com a im-
prescindível elevação do financia-
mento público, ou só com a impres-
cindível reversão dos desperdícios
gerados pela lógica predominante
da oferta de serviços. Tornam-se
imprescindíveis e inadiáveis posici-
onamentos enfáticos e terminantes
por uma regulamentação da EC-29
estruturalmente voltada para o atre-
lamento da retomada do rumo para
o financiamento suficiente, à reto-
mada do rumo para as inadiáveis
transformações e impactos nos mo-
delos de gestão e gerência das uni-
dades prestadoras de serviços, vol-
tando definitivamente sua lógica
para a centralidade dos direitos do
usuário cidadão, para os resultados
na saúde da população, para o de-
sempenho das equipes de saúde e
para a efetiva participação da soci-
edade na definição das prioridades
e etapas da oferta de serviços, pe-
rante a finitude dos recursos aloca-
dos.
VI – O principal elo de extensão
da competência alcançada na ges-
tão de sistemas, para a construção
de novos modelos de gestão e ge-
rência das unidades prestadoras de
serviços, será o último espaço da
gestão sistêmica ainda não priori-
zado e assumido na prática, que é
o da diretriz Constitucional da Re-
gionalização, mas já reconhecido no
recente Pacto de Gestão como seu
maior eixo estruturante. Por meio
deste e outros elos, os gestores do
SUS e os Conselhos de Saúde nas
três esferas de Governo estão frente
a frente com desafios inadiáveis, tais
como: implantação e implementa-
ção das Regiões Sanitárias, plane-
jamento ascendente de metas quali-
quantitativas da oferta de ações e
serviços de saúde integrais e equi-
tativos, em cada realidade regional
e microrregional, os custos de cada
meta com base nos recursos mate-
riais e humanos minimamente ne-
cessários, remuneração do cumpri-
mento das metas com valores não
inferiores aos custos, autonomia
gerencial das unidades governamen-
tais, indicadores objetivos para
acompanhamento da eficiência, de-
sempenho das equipes e resultados
para a população, contratos de ges-
tão e participação efetiva da socie-
dade organizada na definição de
prioridades e etapas, perante a fini-
tude dos recursos alocados, em
cada unidade prestadora de servi-
ços, em cada município, em cada
região, em cada estado e ao nível
nacional, por meio dos Conselhos de
Saúde e da relação direta Governo-
Sociedade.
Um outro desafio inadiável para
a gestão do SUS, a ser tratado no
primeiro plano das negociações da
regulamentação da EC-29, é a deci-
siva questão da cadeia produtiva do
complexo econômico-industrial da
Saúde, portadora de grande déficit
acumulado desde os anos 1990, de
investimentos estratégicos gerado-
res de riqueza, emprego e sustenta-
ção da política pública de saúde.
VII – As questões e proposições
constantes nos encaminhamentos
anteriores vêm sendo profunda e
coerentemente debatidas e formula-
das pelo Congresso Nacional, na ela-
boração do PL substitutivo do Dep.
Guilherme Menezes, nos anteproje-
tos do Sen. Tião Viana e Marconi
Perilo, e pelo Governo, na elabora-
ção do Pacto pela Vida, em Defesa
do SUS e de Gestão, aprovado na
Tripartite e no Conselho Nacional de
Saúde, assim como o anteprojeto de
Lei da criação de Fundações Esta-
tais, com elaboração conduzida pelo
Ministério do Planejamento e enri-
quecida por respeitáveis especialis-
tas em gestão, gerência e Direito
Sanitário. A proposição mais com-
pleta debatida e legitimada no mo-
mento é o substitutivo “Guilherme
Menezes” do PLP n.01/03, aprimo-
Regulamentar a EC-29, avançar o modelo de gestão e realizar a universalidade com integralidade, equidade e participação
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005 351
rado e aprovado nas três comissões
obrigatórias da Câmara dos Depu-
tados: além de garantir a reversão
da retração dos gastos federais,
iguala os critérios de cálculo entre
as três esferas de Governo e respal-
da a construção do SUS, mantendo,
na sua formulação, todas as pon-
tes com as outras propostas com
vistas a negociações e consolidação
no Congresso Nacional.
VIII – Caso as atuais caracterís-
ticas macroeconômicas e relações
de forças políticas e sociais forem
desfavoráveis na negociação da re-
gulamentação e imponham a conti-
nuidade do cálculo segundo a vari-
ação nominal do PIB, deverão ser
construídas outras alternativas de
negociação, entre as quais a de pac-
tuar um acréscimo anual além da
variação nominal do PIB, correspon-
dente a um porcentual do PIB, ten-
do já havido a proposta de 0,25%
no mínimo. Este acréscimo poderá
ser prorrogado ou revisto após pe-
ríodos não inferiores a quatro anos,
ou ainda substituído pela alternati-
va original conforme dispõe o subs-
titutivo “Guilherme Menezes”. De
qualquer modo, deve ser observa-
do o atrelamento disposto nos en-
caminhamentos V, VI e VII deste
Anexo.
IX – Há que se considerar tam-
bém a disponibilização de aproxi-
madamente R$ 5 bilhões anuais,
vinculados ao cumprimento, pelas
três esferas de Governo, do que são
e não são os serviços de saúde fi-
nanciados pelo SUS, a constar na
regulamentação, além da disponibi-
lização pela União, dos restos a pa-
gar acumulados em anos anteriores
e dos recursos contingenciados em
2007. A aplicação dos recursos re-
feridos neste item permanece tam-
bém atrelada ao disposto nos enca-
minhamentos V, VI e VII deste Ane-
xo.
X – Deve constar também na re-
gulamentação, a avaliação sistemá-
tica a cada cinco anos, com as revi-
sões que se fizerem necessárias, e
com interação (mútua adequação)
com o PPA.
XI – Devem ser identificadas,
desde já, junto aos conselhos de saú-
de, as repercussões concretas na
atenção às necessidades e direitos
da população, no curto e médio pra-
zo, assim como imediata ampliação
da informação e participação para
a opinião pública em geral.
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DE COLETIVA Reafirmando compro-
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sileira de Pós-Graduação em Saú-
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da Constitucional 29, de 13 Setem-
bro de 2000. Altera os arts. 34, 35,
156, 160, 167 e 198 da Constitui-
ção Federal e acrescenta artigo ao
Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias, para assegurar os re-
cursos mínimos para o financia-
mento das ações e serviços públi-
cos de saúde. Disponível em: < ht-
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352 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 339-352, set./dez. 2005
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Apontamentos sobre o processo de descentralização na saúde
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005 353
353
ARTIGOS DE OPINIÃO / OPINION ARTICLES
Apontamentos sobre o processo de descentralização na saúde1
Notes on the decentralization process of health care
Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato2
1 Este trabalho contou com o apoio dos
alunos e pesquisadores Anne Carolina de
Melo Santos, Assis Mafort Olverney,Maria
Gabriela Monteiro e Thais Soares, partici-
pantes da pesquisa Municipalização da saú-
de: inovação na gestão e democracia local
no Brasil, realizada pelo Programa de Es-
tudos da Esfera Pública – PEEP da Escola
de Administração Pública da Fundação Ge-
túlio Vargas, Rio de Janeiro, sob coordena-
ção da Profa. Sonia Fleury.
2 Socióloga, Mestre em Administração Pú-
blica e Doutora em Saúde Pública. Profes-
sora do Programa de Estudos Pós- Gradua-
dos da Escola de Serviço Social da Univer-
sidade Federal Fluminense. Coordenadora
do Núcleo de Avaliação de Políticas – NAP/
UFF.
RESUMO
O artigo discute aspectos que estariam indicando o esgotamento do
modelo de descentralização até aqui adotado na área de saúde. Argumenta-
se que o modelo indutor de adesão dos entes subnacionais, através do
privilégio ao financiamento, esgotou suas possibilidades de estimular a
responsabilidade desses entes na construção de sistemas baseados nos
princípios do SUS, de estimular a democratização e de alterar as formas
tradicionais de intermediação de interesses na provisão de serviços, o que
tem comprometido a construção de um sistema de saúde baseado nas
necessidades sociais da população.
PALAVRAS-CHAVE: Descentralização, Política de Saúde, Sistema Único de Saúde
ABSTRACT
This article discusses aspects that would suggest the exhaustion of the
decentralization model adopted up to now in the area of health. It is argued
that the model to encourage adherence by subnational entities, by means
of offering privileges regarding funding, has exhausted the possibilities of
stimulating responsibility amongst such entities to construct systems based
on the principles of the Unified Health System, of stimulating
democratization and of altering the traditional forms of intermediating
interests in service provision. As a result this has compromised the
construction of a health care system based on the population’s social needs.
KEY-WORDS: Decentralization, Health Policy, Unified Health System
Recebido: Jun./2006
Aprovado: Jul./2007
LOBATO, Lenaura de Vasconcelos Costa
354 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005
INTRODUÇÃO
A descentralização do setor saú-
de no Brasil encontra-se hoje em um
ponto que pode ser considerado di-
lemático, já que aparentemente os
esforços da estrutura político-admi-
nistrativa do setor não estão sendo
suficientes para completar a descen-
tralização como prevista na Consti-
tuição e, em especial, na Lei 8080.
E, nesse sentido, pode ser questio-
nado o potencial da descentraliza-
ção intrasetorial como estimulado-
ra de inovações que permitam aden-
sar a esfera pública, consolidar o
poder democrático local e garantir
os objetivos da universalização da
assistência à saúde, princípios pre-
sentes na reforma sanitária brasilei-
ra.
Levantamos alguns pontos que
ao nosso ver expressam esse dile-
ma, com o objetivo de contribuir
para o debate sobre os rumos da
descentralização.
O que chamamos aqui de dile-
ma se expressa pelo cruzamento de
um conjunto de variáveis que se re-
ferem tanto ao processo de condu-
ção da descentralização desenvolvi-
da no setor, quanto por característi-
cas institucionais que compõem o
cenário da descentralização. Nossa
hipótese é que o conjunto dessas
variáveis demonstra um esgotamen-
to do modelo até aqui adotado de
descentralização, tanto no que toca
aos objetivos do SUS quanto à bus-
ca do aprofundamento da democra-
cia setorial, e que novas estratégias
deveriam ser pensadas.
AUTONOMIA DOSNÍVEIS DE GOVERNO
O primeiro ponto diz respeito à
responsabilidade partilhada entre
níveis de governo com alto grau de
autonomia. O caráter solidário da
descentralização como proposta na
legislação do SUS vai de encontro
Operacional Básica 01 de 1996 (NOB
96), é majoritariamente tratado como
o ponto positivo de impulso à des-
centralização, embora haja autores
que considerem que a NOB 96 feriu
a autonomia de gestão dos municí-
pios ao privilegiar o financiamento
dos programas de saúde da família
e de agentes comunitários da saúde
(SILVA, EGYIDIO e SOUZA, 1999). De
fato, os incentivos dados à adesão
dos municípios têm como premissa
a solidariedade aos princípios do
SUS, mas sempre estiveram forte-
mente pautados nas escolhas dos
órgãos centrais de gestão por meio
de incentivos financeiros. Assim,
houve uma potente adesão onde esta
implicava baixos custos e, ao con-
trário, onde havia necessidade de
uma ação própria do ente de gover-
no, em especial com aporte signifi-
cativo de recursos, a adesão não
aconteceu.
O resultado foi que a NOB 96 tor-
nou-se fundamental para a estraté-
gia de saúde da família, tanto pela
expansão da cobertura em si, como
pelo desenvolvimento e difusão de
uma tecnologia de gestão da aten-
ção básica. Contudo, avançou-se
pouco na autogestão dos sistemas
de saúde, segundo os princípios do
SUS. Assim, gerir o SUS, ‘segundo
os princípios do SUS’, com os in-
centivos financeiros repassados pelo
governo federal, não tem compen-
sado. Em março de 2006, apenas
7,7% dos municípios estavam habi-
litados em gestão plena do sistema
ao cálculo que municípios e esta-
dos fazem para aderir ou não aos
preceitos da descentralização. O pro-
cesso de adesão voluntária, base da
descentralização democrática nos
preceitos do SUS, não significa, con-
tudo, benefícios certos a estados e
municípios. Em verdade, como já
demonstrou Arretche (2000), há um
cálculo razoável na adesão, sempre
pesado entre custos e benefícios. O
processo de descentralização pelas
Normas Operacionais, em especial
aquele deslanchado pela Norma
A DESCENTRALIZAÇÃO DO
SETOR SAÚDE NO BRASIL
ENCONTRA-SE HOJE EM UM PONTO
QUE PODE SER CONSIDERADO
DILEMÁTICO ...
Processo democrático
Apontamentos sobre o processo de descentralização na saúde
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005 355
355
pela NOB 96 (implantada em 1998),
e apenas 4,6% habilitados pela Nor-
ma Operacional da Assistência à
Saúde - NOAS.
Outro fator que chama a atenção
é que aparentemente a adesão tem
dependido de estímulos para além
dos incentivos regulares, o que pode
ser plenamente legítimo, mas de-
monstra uma fragilidade tanto des-
ses incentivos como da disposição
dos entes subnacionais em assumir
de vez o SUS. A distribuição das
habilitações por estado mostra que
, em alguns deles, nenhum municí-
pio tinha se habilitado à NOB 96 e
todos se habilitaram à NOAS. Há
outros onde todos os municípios se
habilitaram à NOB 96, mas nenhum
à NOAS. Este último caso é até acei-
tável, já que a NOAS supõe intera-
ção com outros municípios e a par-
ticipação dos estados, o que extra-
pola a iniciativa municipal. Mesmo
assim, municípios ,em gestão ple-
na do sistema na NOB 96, já teriam
a experiência de gestão, contratação
e regulação de serviços que lhes
daria arcabouço para estimular as
parcerias pela regionalização, até
porque são poucos os municípios do
país que possuem auto-suficiência
de rede, sendo que maioria requer
serviços para além dos seus limites
municipais. Já no primeiro caso fica
claro que houve um estímulo espe-
cífico, provavelmente dos estados,
o que reforça a preponderância da
autonomia, seja na direção de ade-
rir ao SUS, ou não. A diversidade
regional foi outro fator apontado
como importante para a não adesão
às NOBs. De fato, também em mar-
ço de 2006, havia estados onde a
habilitação na condição de gestão
plena do sistema alcançava 45% dos
municípios, enquanto que, em ou-
tro extremo, há um estado onde ape-
nas 0,45% dos municípios estavam
habilitados.
A regionalização, um dos nós da
reforma sanitária e do SUS, também
encontra na autonomia um fator
sistema de saúde. Este impulso con-
solidou um formato de descentrali-
zação que não oferecia estímulos à
integração entre as estruturas de
municípios, dificultando o aprovei-
tamento racional de recursos e o
ordenamento hierárquico das bases
de serviços de uma região e/ou es-
tado. O processo de implementação
da NOAS, que tinha como objetivo a
regionalização, e possuía desenho
bastante apropriado, demonstra a
preponderância da autonomia dos
municípios e estados na adesão ao
processo de descentralização, já que
ela não se concretizou nem parcial-
mente.
O papel limitador das NOBs so-
bre outros fatores institucionais in-
tra e extra sistema de saúde, como
aqui a autonomia dos entes federa-
dos na condução do SUS, limita as
possibilidades de atuação através de
mecanismos como esse. Esse apren-
dizado contribuiu para que na nova
estratégia de impulso ao SUS, cha-
mada Pacto pela Saúde, as NOBs
tenham sido eliminadas. Curiosa-
mente, na leitura da Portaria 399 até
agora editada para normatização
dessa nova estratégia (que chama a
atenção por ser mais orientadora do
que normatizadora), fica evidente
que a realização dos objetivos do
SUS e da Reforma Sanitária reque-
rem a solidariedade dos entes naci-
onais aos princípios e objetivos do
SUS e que, além disso, supõe uma
profunda interdepen-dência entre
esses entes, o que pode encontrar
complicador que não foi resolvido
pela descentralização, já que esta
teria favorecido de forma desequili-
brada a dinâmica intramunicipal,
em prejuízo da relação entre muni-
cípios com a participação dos esta-
dos. O formato da estratégia de des-
centralização, adotado até o final da
década de noventa, privilegiou a
formação de bases isoladas e a ges-
tão da dinâmica intramunicipal
como expressão do caráter munici-
palista que orientou a reforma do
A REGIONALIZAÇÃO, UM DOS NÓS DA
REFORMA SANITÁRIA E DO SUS, TAMBÉM
ENCONTRA NA AUTONOMIA UM FATOR
COMPLICADOR QUE NÃO FOI RESOLVIDO PELA
DESCENTRALIZAÇÃO
LOBATO, Lenaura de Vasconcelos Costa
356 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005
limites na autonomia de estados e
municípios.
A autonomia foi um dos precei-
tos fundamentais da Constituição de
88, como mecanismo de aprofundar
a democracia e gerar eficácia, em
especial das políticas sociais. Mas,
muitos dos avanços do SUS só pu-
deram ser alcançados por impedi-
mentos a essa autonomia, caso das
NOBs e, em especial, da indução de
ações de assistência através de re-
cursos carimbados. Ao revés, o
avanço que é requerido ao SUS hoje,
no sentido da concretização da uni-
versalização com qualidade da aten-
ção, depende da adesão autônoma
dos entes, que têm ampla autono-
mia para não aderirem.
PROCESSODEMOCRÁTICO
A democracia foi um fator impulsi-
onador das demandas pelo direito à
saúde, calcada na bem-sucedida
articulação entre democracia e saú-
de. De novo a descentralização apre-
sentou mecanismos importantes,
entre eles as instâncias de pactua-
ção, o estímulo induzido à forma-
ção dos conselhos e à participação
e controle social através dos Conse-
lhos. Desnecessário apontar os
avanços nesses aspectos, mas sim
apontar possíveis entraves.
Principalmente os estudos sobre
Conselhos têm apontado o baixo
associativismo no Brasil como um
dos entraves ao crescimento do pa-
pel prescrito dos Conselhos. De fato,
a baixa interferência desses na con-
dução do SUS aparece sempre nas
reivindicações dos movimentos, e
mesmo como “a” solução para a
resolução dos graves problemas da
saúde e do SUS. O contraditório aqui
é que, apesar da valorização do pa-
pel dos Conselhos nas bases sociais
e atores institucionais do SUS, a
descentralização priorizou mecanis-
mos de gestão do sistema que, ao
invés de fortaleceram o controle so-
cial, favoreceram instâncias onde
eles estiveram fora. A CIT e CIBs fo-
ram fundamentais na condução da
descentralização, e boa parte do de-
senvolvimento do sistema esteve
dirigida pelo Ministério em conso-
nância com elas. Apesar de serem
instâncias de pactuação, onde a ne-
gociação é a pauta, em oposição à
tradição centralizadora e autoritá-
ria da política de saúde, o fato é que
os conselhos jamais foram vistos
como passíveis de fazer parte desse
jogo.
Estudo recente de Santos Junior
et al (2004) sobre conselhos de di-
versas áreas sociais, em diferentes
regiões metropolitanas, demonstra
que os conselheiros têm em geral
escolaridade, acesso à informação
e participação política bem superi-
ores à média do país. Suas recla-
mações versam sobre o que pode ser
atribuído à baixa disposição dos
governos em prover os elementos
necessários ao exercício do contro-
le social - como acesso à informa-
ção para fisca-lização e decisão, di-
vulgação, infra-estrutura, etc. -, e
que poderiam estimular a capacida-
de decisória dos conselhos. Apesar
do estímulo aos Conselhos, a políti-
ca setorial ao máximo desenvolveu
estratégia de capacitação para con-
selheiros, que se bem é funda-men-
tal, não toca no problema central,
que é a baixa disposição, mesmo no
setor mais organizado da área soci-
al, de contagiar práticas associati-
vas. Nesse sentido, faltaria à des-
centralização - e aí pensando ape-
nas na saúde, embora esta devesse
ser uma estratégia geral para a área
social -, gerar uma política de “in-
centivo à associação cívica” (SAN-
TOS JUNIOR ET AL, 2004).
Sem dúvida, a área de saúde é a
mais propensa a esse tipo de estra-
tégia e isso poderia gerar o adensa-
mento da reforma para as próximas
gerações, com impactos positivos
em outras áreas, como já tem sido
... APESAR DA VALORIZAÇÃO DO PAPEL DOS
CONSELHOS NAS BASES SOCIAIS E ATORES
INSTITUCIONAIS DO SUS, ADESCENTRALIZAÇÃO PRIORIZOU MECANISMOS
DE GESTÃO DO SISTEMA QUE (.....)FAVORECERAM INSTÂNCIAS ONDE ELES
ESTIVERAM FORA.
Apontamentos sobre o processo de descentralização na saúde
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005 357
357
demonstrado pela replicação do
modelo único e descentralizado do
SUS.
Os Conselhos de Saúde são críti-
cos também ao papel das Comissões
Intergestores, pela possibilidade de
assumirem competências que são
deles, enfraquecendo o controle so-
cial. Salientam que as Comissões
acabam decidindo políticas públi-
cas, gerando confusão e comprome-
tendo o caráter deliberativo dos Con-
selhos. Destacam que as Comissões
não são formas de democracia par-
ticipativa e que, portanto, o papel-
delas não pode ser confundido com
o dos Conselhos de Saúde, já que
elas foram criadas apenas para fa-
cilitar a execução e a relação entre
os gestores, tendo seus representan-
tes indicados pelo Poder Executivo.
Há hoje um esgotamento das instân-
cias de pactuação para o aprofun-
damento do SUS, embora sigam sen-
do fundamentais na definição da
distribuição de recursos entre esta-
dos e no processo de condução das
habilitações. Seu papel se restringe
ao patamar a partir do qual prova-
velmente se encontram as soluções,
que estariam além de mecanismos
técnicos que exigem negociação,
mas sim em decisões políticas de
adesão ao SUS como política de es-
tado, não só do nível federal, mas
também de todos os estados e mu-
nicípios.
O âmbito legislativo é outra are-
na que poderia ser mais utilizada
pelo processo de construção descen-
tralizada do SUS, pelo empenho na
condução mais transparente e asso-
ciada aos Conselhos na defesa e
aprovação de legislações que impo-
nham mais compromissos dos en-
tes responsáveis pelo SUS. Tanto no
nível federal como nos demais, essa
arena é tratada de forma utilitarista
pelos executivos, tanto em condições
de maioria quanto de minoria. A
visão recorrente de que o processo
legislativo é comandado pelo exe-
cu-tivo é contradita pelo estudo de
Rodrigues e Zauli (2002), que apon-
tam que, exatamente na área de saú-
de, há um potencial bastante signi-
ficativo do legislativo nacional na
aprovação de leis. Segundo os au-
tores, a predominância do executi-
vo na saúde se dá principalmente
pelo recurso às medidas provisóri-
as, que no período estudado por eles
não foram, em sua maioria, trans-
formadas em leis.
Na edição do novo Pacto pela
Saúde, a participação é um dos pon-
tos levantados, e a portaria 399 in-
dica a implementação de “projeto
permanente de mobilização social”.
Ainda não há indicação sobre a es-
tratégia para isso, mas curiosamente
um dos principais elementos do
novo pacto, a criação dos Colegia-
dos de Gestão Regional, não conta
com a participação de setores soci-
ais, mas somente representantes
governamentais, assim como nas
comissões intergestores regionais. A
questão aqui é em que essas ins-
tâncias se diferenciariam das comis-
sões bipartites que pactuaram a re-
gionalização pela NOAS, com os li-
mites conhecidos de efetividade. Os
colegiados de gestão e as comissões
intergestores regionais poderiam
seruma boa experiência de associa-
ção com conselhos.
POLÍTICA ECONÔMICARESTRITIVA
São já bem conhecidas as restri-
ções financeiras à ampliação dos
investimentos nas áreas de saúde e
social, decorrentes da política eco-
nômica que vem sendo adotada nos
últimos governos. Embora sempre
retorne ao debate a velha discussão
sobre se o problema é de falta de
recursos ou de má gestão, em espe-
cial quando a demanda por recur-
sos ganha força momentânea, ne-
nhum setor social, nem o próprio
governo, negam hoje a necessidade
de mais investimentos, embora para
COMISSÕES NÃO SÃO FORMAS
DE DEMOCRACIA PARTICIPATIVA (......) DELAS
NÃO PODE SER CONFUNDIDO COM O DOS
CONSELHOS DE SAÚDE ...
LOBATO, Lenaura de Vasconcelos Costa
358 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005
UM DOS PRINCIPAIS PROBLEMAS PARA AIMPLEMENTAÇÃO DA NOAS FOI A PACTUAÇÃO
DOS RECURSOS NECESSÁRIOS PARA ACOMPENSAÇÃO ENTRE MUNICÍPIOS PARA A
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS.
o governo federal isto nunca seja
obviamente associado às suas op-
ções de política econômica. Do pon-
to de vista da descentralização, e em
especial agora com o requerido re-
forço para a regionalização, a ques-
tão dos recursos volta à tona. Um
dos principais problemas para a
implementação da NOAS foi a pac-
tuação dos recursos necessários
para a compensação entre municí-
pios para a prestação de serviços.
Municípios pequenos com tetos fi-
nanceiros muito baixos não podem
arcar com o pagamento de certos
procedimentos para outros municí-
pios que prestam serviços a muní-
cipes seus, principalmente os de
maior complexidade. Isso gera pro-
blemas para os dois e, portanto,
para a regionalização, já que muni-
cípios com melhor capacidade sa-
bem que vão ter que arcar com aten-
dimentos de outros municípios, e
podem preferir optar pela não ade-
são, já que contam também com re-
cursos escassos.
Se a realidade da maioria dos
municípios é de baixa arrecadação,
a restrição de recursos pode limitar
a descentralização à atenção bási-
ca, já que o repasse aí é fundo a
fundo e conta com recursos agrega-
dos por ação complementar, quase
totalmente financiados por recursos
federais. A integralidade da atenção
fica prejudicada sem a injeção de
novos recursos, já que a rede ainda
não é suficiente, sendo ainda depen-
dente do setor privado, cuja lógica
não é de otimização de recursos e
sim de utilização intensiva de pro-
cedimentos. Afora isso, a baixíssi-
ma interferência da maior parte dos
municípios no controle dos serviços
de 2º e 3º níveis, com a conseqüen-
te baixa relação com a atenção bá-
sica, gera a reprodução não só da
carência de recursos, pela tendên-
cia ‘natural’ de utilização pelos pro-
vedores de todos os recursos dispo-
níveis, como a não realização dos
objetivos de um sistema que mini-
evitar o desvio dos recursos agre-
gados pela EC 29 com ações que não
as de saúde. A contenção de recur-
sos e a falta de prioridade à imple-
mentação do SUS como previsto leva
a situações curiosas. A vinculação
de recursos e agora a especificação
do que são ações de saúde restrin-
gem a realização de planejamentos
integrados para a solução de pro-
blemas sociais e limitam um dos
preceitos centrais da reforma, que é
a vinculação das medidas de aten-
ção à saúde aos problemas sociais.
E há o risco de que seja fortalecida
a produção de serviços, pela pres-
são dos provedores e da própria de-
manda. Além disso, é bastante pro-
vável que os governos se empenhem
em cumprir a lei e se restrinjam aos
patamares exigidos. Os municípios
do norte do estado do Rio de Janei-
ro, por exemplo, que arrecadam
vultosos recursos com os royalties
do petróleo - recursos que não são
considerados no cálculo da EC 29 -,
limitam-se aos patamares da emen-
da, embora apresentem situações de
saúde bastante precárias (CALIL,
2006).
FORMAS TRADICIONAIS DE NTERMEDIAÇÃODE INTERESSES E A APROPRIAÇÃO
PERSONALISTA DOS RECURSOS
Os problemas da adesão dos en-
tes federados aos objetivos do SUS,
através da descentralização, encon-
tra limites em formas tradicionais
mamente evite ser um mero prove-
dor de procedimentos de cura.
Atualmente, a mobilização ocor-
re pela aprovação do projeto de lei
complementar nº 01/2003 que regu-
lamenta a Emenda Constitucio-nal
nº 29. O projeto já foi aprovado em
todas as comissões da Câmara dos
Deputados, faltando apenas a vota-
ção no Plenário da Casa para que
seja encaminhado ao Senado Fede-
ral. O projeto de lei regulamenta as
ações e serviços de saúde e permite
Apontamentos sobre o processo de descentralização na saúde
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005 359
359
de intermediação de interesses, em
especial o clientelismo, assim como
no personalismo que marca as rela-
ções sociais no Brasil. A interseção
dessas formas de intermediação com
a apropriação patrimonial do esta-
do facilita a corrupção, na medida
em que obscurece as ações dos go-
vernos. Embora os mecanismos de
gestão e a legislação criem restri-
ções a esses fatores, são pouco efi-
cientes em alterá-las como prepon-
derantes nas relações entre os dife-
rentes interesses existentes na are-
na decisória, em especial no nível
local.
Os estudos na área de saúde têm
dado pouca atenção a esses aspec-
tos, embora muitas das conclusões
sobre a ineficiência e inefetividade
das políticas sejam ao fim e ao cabo
atribuídas a eles. Em especial no
nível local, as relações entre forne-
cedores, governos, profissionais e
prestadores de serviços são em gran-
de medida decididas por relações
pessoais, envolvendo ou não corrup-
ção. No plano da prestação de ser-
viços, permanecem práticas antigas
de favorecimento de prestadores pri-
vados através da relação pessoal
que, em geral, os gestores de saúde
guardam com os profissionais da
área, ou pela própria posição que
esses gestores têm como prestado-
res.
Os Conselhos deveriam ser as
instâncias de controle desses proce-
dimentos, mas muitas vezes parti-
lham dessas relações ou não têm
controle sobre elas. Essas práticas
podem conduzir o processo de con-
solidação do SUS a postergar inves-
timentos em serviços públicos, be-
neficiar a produção de serviços ofe-
recidos por prestadores da rede de
relações dos gestores ou dificultar
a interação com outros governos.
O SUS gerou inúmeras inovações
favoráveis a processos mais trans-
parentes de gestão, mas deve-se in-
vestigar até onde isso tem dependi-
do da disposição dos próprios ges-
nifica um claro avanço no processo
de descentralização e implementa-
ção do SUS, através de iniciativas
da própria gestão municipal, indo
além das diretrizes federais/estadu-
ais. Já em outros, observa-se a im-
plantação de progra-mas e experi-
ências formuladas exclusivamente
no nível federal/estadual, que são
incorporadas pela gestão municipal
como uma maneira de injetar recur-
sos externos – principalmente do
nível federal – no município (GERS-
CHMAN, 2001). Ou seja, dada a per-
manência de inúmeros sistemas lo-
cais onde as mudanças se resumem
quase à incorporação da atenção
básica através do Programa Saúde
da Família, há que se conhecer o
quanto essas mudanças são resul-
tado da descentralização por si, ou
se ocorreram onde ela foi assumida
como proposta específica de gover-
nos. Em outras palavras, deve-se
procurar investigar mais como es-
sas relações tradicionais conseguem
prevalecer às inovações e às inicia-
tivas de adensamento do SUS, para
que se possa tentar reduzi-las.
NÍVEL FEDERAL COMOINDUTOR DE POLÍTICAS
No primeiro item já abordamos
as questões relativas à autonomia
dos entes federados. Aqui cabe des-
tacar os problemas decorrentes de
uma descentralização com forte in-
dução do nível federal. Se esta in-
tores e seu compromis-so com os
princípios do sistema. A descentra-
lização através das NOBs foi respon-
sável pela criação de espaços de
negociação e de pactuação de inte-
resse na área de saúde e contribuiu
para a emergência e fortalecimento
de novos atores, por meio da incor-
poração de inúmeros centros de po-
der na arena decisória da política
(VIANNA et al, 2002).
Em alguns municípios, o tipo de
inovação gerencial incorporada sig-
OS PROBLEMAS DA ADESÃO DOS ENTES
FEDERADOS AOS OBJETIVOS DO SUS,ATRAVÉS DA DESCENTRALIZAÇÃO, ENCONTRA
LIMITES EM FORMAS TRADICIONAIS DE
INTERMEDIAÇÃO DE INTERESSES, EM ESPECIAL
O CLIENTELISMO ...
LOBATO, Lenaura de Vasconcelos Costa
360 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005
dução foi favorável à iniciativa da
atenção básica através do Pro-gra-
ma Saúde da Família, ela gerou in-
centivos que nem sempre corres-pon-
diam às necessidades dos sistemas
municipais. Já que o sucesso da es-
tratégia do Programa Saúde da Fa-
mília depende da integração com os
outros níveis de atenção, e na medi-
da em que os incentivos são dirigi-
dos desde o nível federal, o risco
seria compro-meter a integralidade
do sistema.
O fato de os incentivos terem se
tornado uma prática constante do
Ministério da Saúde, a partir de
1998, e dos municípios serem es-ti-
mulados a incorporar os progra-mas
que lhes acrescentam receita finan-
ceira é, na opinião de Marques e
Mendes (2002), um fato preocupan-
te. A vinculação dos recursos aos
programas incentiva-dos pelo Minis-
tério da Saúde não permite o redire-
cionamento para outros fins na área
da saúde, em um contexto no qual
os municípios enfrentam situações
em que falta o necessário até mes-
mo para manter sua rede de unida-
de básica, quanto mais para os de-
mais serviços de atenção à saúde.
Isso seria, segundo Marques e Men-
des, ‘o reflexo da política tutelada
da descen-tralização, que ao incen-
tivar a despesa em determinados
progra-mas, impede que os municí-
pios definam livremente sua políti-
ca de saúde, introduzindo o para-
doxo da existência da ‘pobreza’ em
um quadro de recursos ‘abundan-
tes’ e garantidos pelos incentivos’
(2002, p.171). Na verdade, não há
indícios de que a indução por incen-
tivos financeiros impeça a definição
livre dos sistemas pelos municípi-
os. Ou seja, o problema é menos da
tutela na adoção de programas atra-
vés do financiamento e mais da fal-
ta de mecanismos que estimulem,
auxiliem e induzam os municípios
à responsabilidade de construir seus
sistemas. Segundo Vianna et al
(2002), o esforço permanente do go-
às ações de transferência fundo a
fundo ou privilegiar ações não pri-
oritárias para sua população ape-
nas para favorecer interesses de
determinados prestadores.
ESTRUTURA DEPROVISÃO DO SETOR
A descentralização trouxe uma am-
pliação considerável da rede de ser-
viços e a expansão da rede de aten-
ção primária, com ampliação da
oferta pública. Entretanto, a mesma
expansão não é verificada nas ba-
ses especializadas de serviços devi-
do à ausência de investimentos pú-
blicos para a ampliação do número
de leitos hospitalares, terapia inten-
siva, de serviços de apoio diagnós-
tico, cirurgia, etc. A demanda por
estes serviços especia-lizados é di-
recionada, então, ao setor privado e
para municípios de maior capacida-
de de oferta de serviços especializa-
dos. Para Monnerat et all (2002), o
predomínio da oferta privada de ser-
viços reduz a capacidade do gestor
público de regulação de mercado, o
que somado à ausência de uma es-
tratégia de hierarquização em rede
das bases de serviços resulta em
baixa capacidade resolutiva e inefi-
ciência na alocação de recursos.
Vianna et al (2002), numa avali-
ação comparativa das capacidades
dos municípios em Gestão Plena do
Sistema Municipal de Saúde, de-
monstram que houve significativa
verno central pela indução e regu-
lação do processo de descentraliza-
ção pode ter pouco impacto nos in-
dicadores de oferta e acesso aos ser-
viços, tendo em vista os agudos con-
flitos de ordem federativa num con-
texto de restrição fiscal e de infortu-
nada herança de desigualdades eco-
nô-micas e sociais.
Essa indução dirigida também
pode facilitar os mecanismos levan-
tados no item anterior, já que os
gestores podem se limitar à adesão
A VINCULAÇÃO DOS RECURSOS AOS
PROGRAMAS INCENTIVADOS PELO MINISTÉRIO
DA SAÚDE NÃO PERMITE OREDIRECIONAMENTO PARA OUTROS FINS NA
ÁREA DA SAÚDE ...
Apontamentos sobre o processo de descentralização na saúde
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005 361
361
evolução, entre os anos de 1998 e
2000, tanto no que se refere à apren-
dizagem institucional, quanto na
melhoria do padrão de provisão de
serviços com a diversificação da
oferta. No entanto, os autores con-
cluem que esse fortalecimento ins-
titucional das bases locais de orga-
nização do SUS na Gestão Plena não
garante a equidade, em virtude de
ausência de relações intermunicipais
institucionalizadas.
É relevante o fato de que mesmo
os municípios com mais autonomia
e maior conjunto de serviços espe-
cializados apresentem significativas
dificuldades de articulação dos ser-
viços de forma a ampliar a integra-
lidade e racionalizar recursos eco-
nômicos e financeiros. Um aspecto
central aí é a relação com o merca-
do de provedores de bens e servi-
ços. Embora tenha se ampliado nos
últimos anos a oferta de unidades
públicas, a rede especializada per-
manece sendo majoritariamente pri-
vada.
Na ausência de uma estratégia
consistente de regulação que possi-
bilite aos entes estatais ordenar a
oferta e integrá-la às políticas locais
e regionais de saúde, a fragmenta-
ção induz à irracionalidade de gas-
tos, multiplicação de procedimentos,
aquisição indevida de bens, incor-
poração tecnológica inade-quada,
entre outros. A literatura sobre des-
centralização da política de saúde
tem negligenciado este aspecto, uma
vez que os estudos são escassos.
Mesmo no caso da regulação de pro-
vedores realizada pela União, os
poucos estudos existentes apontam
uma insuficiência estatal e uma la-
cuna a ser necessariamente exerci-
da. Para Matos e Pompeu, ‘não se
desenvolveu a capacidade de forma-
lização contratual de serviços pri-
vados de saúde por parte do setor
público. ... Compra-se o que o pres-
tador oferece, em detrimento de ser-
viços que se coadunam com as re-
regulação. Como lembram Matos e
Pompeu, um mesmo prestador pode
relacionar-se com os três níveis de
gestão do SUS sem ter contrato com
nenhum deles (2003:639).
A Portaria 399 do Pacto em
Defesa do SUS indica mudança ao
menos parcial nessa relação, ao es-
tabelecer que cada provedor deverá
responder a somente um gestor. Con-
tudo, isso não garante mudança na
regulação desses prestadores.
A descentralização alcançou,
portanto, alterar a estrutura insti-
tucional de muitos sistemas locais,
em especial os de gestão plena, mas
não alcançou alterar a forma de or-
ganização da rede e sua otimização,
pela falência dos mecanismos de
regionalização, pelas restrições or-
çamentárias, que impediram uma
maior ampliação das redes própri-
as, e permanece dependente da lógi-
ca de oferta do setor privado. Essa
dependência reduz a capacidade de
regulação do gestor público, o que,
somado à ausência de hierarquiza-
ção, resulta em baixa capacidade
resolutiva e baixa eficiência na alo-
cação de recursos.
As relações entre o setor público
e o privado ao nível local precisam
ser melhor investigadas e sistema-
tizadas. Embora sejam em linhas
gerais conhecidas, o próprio proces-
so de descentralização gerou novas
regulamentações que demanda-
mtambém dos prestadores novas
formas de intermediação com o se-
tor público. Do mesmo modo, são
ais necessidades da população’
(2003: 637).
A construção de uma estratégia
consistente de regulação do setor
privado adquire um contorno de
maior complexidade à medida que
o processo de descentralização se
aprofunda. Isto porque se ampliam
a divisão de competências e as res-
ponsabilidades sobre os provedores,
podendo levar a indefinições ou
ações superpostas, em virtude da
atual ausência de uma estratégia de
A CONSTRUÇÃO DE UMA ESTRATÉGIA
CONSISTENTE DE REGULAÇÃO DO SETOR
PRIVADO ADQUIRE UM CONTORNO DE MAIOR
COMPLEXIDADE À MEDIDA QUE O PROCESSO DE
DESCENTRALIZAÇÃO SE APROFUNDA.
LOBATO, Lenaura de Vasconcelos Costa
362 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005
pouco conhecidas as formas de pres-
tação de serviços, compra e venda
de produtos pelo setor de insumos,
equipamentos e fármacos, também
totalmente controladas pelo setor
privado.
Um último ponto aqui diz res-
peito ao problema dos recursos hu-
manos, até hoje sem uma política
nacional implementada, e ponto des-
considerado pelo processo de des-
centralização. A carência, a falta de
incentivo, os baixos salários e a fle-
xibilização das formas de contrata-
ção têm gerado baixa adesão dos
profissionais aos objetivos do SUS,
contribuindo para a baixa qualida-
de e desumanização dos serviços.
Poucos sistemas locais e estaduais
empreenderam planos de carreiras
e salários para a saúde e a maioria
tem privilegiado a contratação de
serviços sem concurso ou através
de cooperativas. A existência de es-
trutura funcional sólida é pré-requi-
sito para a efetividade dos sistemas
sociais. Contudo, as restrições or-
çamentárias e os impedimentos da
lei de responsa-bilidade fiscal têm
impedido a formação dessa estru-
tura.
FORMAS DE ENFRENTAMENTODAS NECESSIDADES DE SAÚDE
Alguns aspectos cruciais da re-
forma sanitária foram timidamente
enfrentados pelo processo de descen-
tralização. Um deles é a predomi-
nância, pelas razões já exploradas,
de um modelo assistencial curati-
vo. A estratégia do Programa Saúde
da Família é apontada como o prin-
cipal mecanismo de alteração desse
modelo. De fato, a expansão da es-
tratégia através do Piso da Atenção
Básica – PAB transformou significa-
tivamente o formato de transferên-
cia de recursos aos sistemas locais
e regionais, trouxe uma série de ino-
vações importantes, não só por es-
tabelecer um simples fator de incen-
tivo à prevenção, mas principalmen-
te por instituir um impulso para a
redefinição do modelo de atenção do
SUS e para o desenvolvimento de
programas inovadores (COSTA E PIN-
TO, 2002). Para estes mesmos auto-
res, a nova estratégia dissociou a
produção do faturamento, rompen-
do com a lógica de pagamento por
volume de produção, que perpetua-
va a estrutura de serviços distorci-
da transmitida pelo modelo anteri-
or e dificultava a implementação
sustentada de inovações nos siste-
mas locais de saúde.
Bodstein (2002) qualifica a ado-
ção do Programa Saúde da Família
como um poderoso mecanismo de
indução utilizado pelo governo fe-
deral para priorizar a atenção bási-
ca. Marques e Mendes (2002) acre-
ditam que um de seus aspectos po-
sitivos é sua potência como meca-
nismo de promoção da saúde e pre-
venção de doenças. Porém, questio-
nam se o Programa está de fato al-
terando o modelo assistencial e se
tem garantido, de forma sistemáti-
ca, o acesso de sua clientela aos
níveis de maior complexidade da
saúde, ou mesmo a desejada uni-
versalização da cobertura. Na ver-
dade, o fato de o Programa Saúde
da Família estar direcionado a po-
pulações pobres pode ser um fator
limitador para seu sucesso como
estratégia de mudança do modelo
assistencial prevalecente, e não há
ainda diretriz clara no sentido de que
ele alcance os setores médios da
população, apesar de seu inequívo-
co potencial de expansão de cober-
tura. A falta de relação com os ní-
veis mais complexos de atenção,
realidade da maioria dos municípi-
os pela forma de gestão em que se
inserem, pode contribuir para essa
limitação.
A entrada do Programa Saúde da
Família nos grandes centros vem
apontar para a necessidade de que
seja revista a relação da área de
saúde com outras áreas sociais.
... O PRÓPRIO PROCESSO DE
DESCENTRALIZAÇÃO GEROU NOVAS
REGULAMENTAÇÕES QUE DEMANDAM ...
Apontamentos sobre o processo de descentralização na saúde
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005 363
363
Esse é outro aspecto da reforma sa-
nitária que tem merecido pouca
atenção, e que pode comprometer
seu objetivo de pensar e tratar a saú-
de como questão social. A descen-
tralização, apesar de estimular prá-
ticas inovadoras em sistemas mu-
nicipais, onde há espaço efetivo
para ações intersetoriais, pode , na
verdade, haver dificultado a integra-
ção entre políticas, ao induzir práti-
cas determinadas vinculadas a in-
centivos financeiros e não alcançar
alterar o modelo centrado na pro-
dutividade de serviços curativos. As
inovações nesse sentido devem ser
investigadas, já que a premência de
um sistema integrado de proteção
social só é de fato visível no enfren-
tamento da questão social ao nível
local.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Procurou-se aqui, mais do que
apontar de novo os avanços conhe-
cidos do processo de descentraliza-
ção, indicar alguns possíveis pon-
tos de estrangulamento. Como dito,
supõe-se que o modelo de descen-
tralização adotado até então esteja
esgotado, em especial pelos seguin-
tes aspectos:
- a indução, via incentivos finan-
ceiros, ao mesmo tempo em que fere
a autonomia local, limita a respon-
sabilização sobre a condução pró-
pria dos sistemas de saúde e a possi-
bilidade de inovações significativas;
- a pactuação, via instâncias in-
tergestoras, alcançou seu limite
com as limitações decorrentes da
indução através do financiamento,
e elas tendem a se transformar em
burocracias técnicas com baixo im-
pacto na alteração do sistema, além
de disputarem espaço com o controle
social;
- os Conselhos de Saúde encon-
tram-se estagnados em sua função
ao interior do SUS, após o período
de sua institucionalização, em es-
ações e sua resolutividade. Em ou-
tras palavras, a descentralização
privilegia níveis de governo, quan-
do os problemas de saúde e sua so-
lução são territoriais - locais e re-
gionais;
- as necessidades de saúde e sua
articulação com as necessidades
sociais permanecem fora da agenda
da descentralização. Embora no Bra-
sil tenhamos uma visão bastante
avançada da questão social, os sis-
temas de políticas sociais, e o de
saúde entre eles, têm cada vez mais
se voltado para políticas setoriais,
o que faz com que prevaleça na saú-
de um modelo assistencial curativo
de baixa resolutividade, com o ris-
co de termos, em breve, estaciona-
dos os indicadores básicos de saú-
de, quando o impacto da estratégia
de extensão de cobertura via Progra-
ma Saúde da Família tiver se esgo-
tado;
- as possibilidades de expansão
do sistema esbarram nas restrições
financeiras do modelo econômico
vigente, não havendo mais espaço
para o modelo, até aqui bem suce-
dido, de definição de critérios de dis-
tribuição de recursos escassos.
Todos os aspectos levantados
merecem ser aprofundados também
sob a perspectiva do federalismo
brasileiro. Estudo de Stepan (1999)
demonstra que o Brasil estaria no
limite do continuum entre federalis-
mos que estimulam ou restringem
a participação do conjunto dos ci-
dadãos da pólis, situando-se no pólo
pecial por terem sido tratados como
mecanismos acessórios, e não como
centrais no processo de consolida-
ção do SUS;
- a interdependência entre níveis
de governo, base na constituição de
um sistema nacional e único, esbar-
ra nos limites municipais e estadu-
ais, que são preservados pelo finan-
ciamento induzido, impedindo prá-
ticas de gestão regional fundamen-
tais para a expansão da universali-
zação, para a integralidade das
... SUPÕE-SE QUE O MODELO DE
DESCENTRALIZAÇÃO ADOTADO ATÉ ENTÃO
ESTEJA ESGOTADO ...
LOBATO, Lenaura de Vasconcelos Costa
364 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 353-364, set./dez. 2005
de maior restrição (most demos-
constraining) e, no seu entender, as
instituições federativas são funda-
mentais para a conformação das
políticas públicas. A descentraliza-
ção encontra limites nessa estrutu-
ra federativa; contudo, esse aspecto
tem sido tratado como secundário
pelas políticas setoriais.
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A situação atual e as perspectivas dos sistemas universais de saúde
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 365-370, set./dez. 2005 365
ARTIGOS DE OPINIÃO / OPINION ARTICLES
A situação atual e as perspectivas dos sistemas universais de saúde1
The current situation and prospects of universal health systems
Hans-Ulrich Deppe2
Recebido: Dez./2006
Aprovado: Mar./2007
2 Professor de Sociologia Médica e
Medicina Social, com doutorado no
exterior; J.W. Goethe-Universidade de
Frankfurt /Alemanha.
Email:Ulrich.Deppe@em.uni-frankfurt.de
RESUMO
Há alguns anos, os diferentes sistemas universais de saúde estão sob
grande pressão do modelo econômico neoliberal. A competição global,
desregulamentação, privatização e comercialização têm fortes impactos na
maioria dos sistemas de saúde públicos sem fins de lucro. A questão é se os
sistemas universais podem resistir e/ou se adaptar a esta pressão, ou se
têm que mudar estruturalmente.
PALAVRAS-CHAVE: Sistemas Universais de Saúde; Globalização e Saúde; Saúde
Pública e Mercado.
ABSTRACT
For some years the various universal health care systems have suffered
great pressure from the neoliberal economic model. Global competition,
deregulation, privatization and commercialization have had a strong impact
on most the public health systems without profitable ends. The question is
whether the universal systems can bear and/or adapt to such pressure, or
whether they need to undergo structural changes.
KEYWORDS: Universal Health Systems; Globalization and Health; Public Health
Care and the Market.
1Conferência proferida no 11º Congresso Mundial de Saúde Pública, 21-25 de agosto, 2006,
Rio de Janeiro. Tradução de Heliete Vaitsman.
DEPPE, Hans-Ulrich
366 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 365-370, set./dez. 2005
1. Ao falarmos sobre a situação
atual dos sistemas universais de saú-
de, devemos falar sobre a situação
atual das sociedades em que se inse-
rem os sistemas de saúde. Hoje, pra-
ticamente todos os países enfrentam
processos de globalização, desregu-
lamentação e privatização – de dife-
rentes intensidades e em níveis dis-
tintos. Isso é o que chamamos de
‘onda neoliberal’! O setor público –
em especial o da universalização da
saúde – se vê muito confrontado, em
cada país, com essas novas circuns-
tâncias.
Globalização – a expansão inter-
nacional da acumulação de capital –
é um conceito amorfo. Alguns auto-
res falam de um novo imperialismo.
Nas duas últimas décadas, o proces-
so de acumulação de capital ganhou
um impulso importante no mundo
inteiro devido ao colapso dos Esta-
dos socialistas e ao desenvolvimento
das forças produtivas, impulsionado
pela tecnologia microeletrônica. A
área mais agressiva no processo de
globalização é o capital financeiro –
apoiado por instituições financeiras
globais como o Banco Mundial, o
Fundo Monetário Internacional (FMI)
e a Organização Mundial do Comér-
cio. Este setor determina, entretanto,
como serão estruturados e como de-
vem agir os outros setores da socie-
dade, para que utilizem como instru-
mentos essenciais créditos financeiros
com condições especiais.
A QUESTÃO SOCIAL ÉMARGINALIZADA NA AGENDA POLÍTICA
E NEGLIGENCIADA DE FORMA
IRRESPONSÁVEL
Essas condições associam-se com
freqüência à privatização da propri-
edade pública. (Em fevereiro,
estive na Turquia, onde soube
que o governo turco recebeu do
Banco Mundial e do FMI um cré-
dito de 10 bilhões de dólares,
com a obrigação de privatizar as
1.600 policlínicas públicas do
país e sua previdência social
pública.) O mercado e a compe-
tição regulamentarão cada vez
mais as relações sociais, com
forma irresponsável. A pobreza au-
mentou em muitas partes do mundo.
Isso também se aplica à presta-
ção de serviços de saúde, um setor
social que é, em geral, controlado e
subsidiado pelo Estado. A dissemina-
ção e a aplicação irrefletida e descon-
trolada de leis e instrumentos econô-
micos a circunstâncias e problemas
não econômicos é descrita como “eco-
nomização”. Sob as condições espe-
cíficas do modelo econômico neolibe-
ral ora dominante, trata-se de uma
comercialização. Neste contexto, acre-
dito ser útil acentuar que o neolibera-
lismo é apenas um modelo – uma
construção – e não uma condição fí-
sica. A pessoa ideal que participa des-
se processo neoliberal é reduzida a
um homo economicus, um indivíduo
naturalmente egoísta que maximiza
seus próprios benefícios. Isso não
constitui uma crítica geral à econo-
mia, mas a negação de sua onipotên-
cia. Não se trata apenas de apontar
uma influência excessiva dos princí-
pios econômicos, porém de verificar
se as ferramentas implementadas são
apropriadas às circunstâncias. Sob as
exigências hegemônicas do capital,
dos mercados e da competição, a so-
ciedade é reduzida a uma mera soci-
edade de mercado. Portanto, é uma
questão importante saber que mode-
lo econômico específico forma a base
da estrutura de poder criada pelo de-
senvolvimento histórico. A atual cir-
cunstância levantou questões funda-
mentais a respeito das estruturas bá-
sicas dos sistemas de saúde e, tam-
uma visão baseada em catego-
r ias da gestão empresarial pe-
netrando e ordenando todos os
nichos sociais. Como o principal
objetivo da gestão empresarial é ob-
ter lucros, uma de suas conseqüênci-
as é o crescimento da instabilidade e
da polarização social em escala mun-
dial – não apenas entre os países ri-
cos e os em desenvolvimento, mas
também no interior dos países ricos.
A questão social é marginalizada na
agenda política e negligenciada de
A situação atual e as perspectivas dos sistemas universais de saúde
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 365-370, set./dez. 2005 367
O SISTEMA DE SAÚDE É OESPELHO DA SOCIEDADE, REFLETINDO
SUA HISTÓRIA E SEU CARÁTER
bém, a respeito das adaptações tec-
nocráticas de tais estruturas às situ-
ações nacionais. Preocupam-nos, fun-
damentalmente, o desenvolvimento e
a renovação da relação entre saúde,
medicina e sociedade.
Os sistemas de atenção à saúde
não são construções sociais isoladas.
Têm raízes profundas na estrutura, na
cultura e na história de suas socieda-
des. São uma precondição para a paz
social no interior de sociedades con-
traditórias. Em oposição à globaliza-
ção crescente do capital, os sistemas
de saúde têm vínculos sólidos com
os Estados nacionais. A transforma-
ção desses sistemas envolve mais do
que meras transformações tecnológi-
cas. A transformação estrutural dos
sistemas de saúde sempre é o resul-
tado de lutas sociais e políticas – es-
pecialmente nas crises sociais e polí-
ticas. Isso significa que é preciso en-
trar numa disputa por um sistema de
atenção à saúde especial. Em muitas
partes do mundo, os sistemas de saú-
de passaram por mudanças estrutu-
rais após revoluções e guerras, a der-
rota de ditaduras fascistas e milita-
res ou o colapso dos países socialis-
tas. A disputa pelo sistema de saúde
não é uma ação isolada, mas uma
luta permanente. O sistema de saúde
é o espelho da sociedade, refletindo
sua história e seu caráter.
Há, na atualidade, uma preocu-
pação com os custos ascendentes de
todos os sistemas de saúde. É incrí-
vel: se por um lado há na Terra tanto
dinheiro, mais do que jamais houve,
sobretudo nos países ricos, por outro
lado não há dinheiro suficiente para
as necessidades básicas da atenção à
saúde. Trata-se, sobretudo, de uma
questão de distribuição e devemos
reconhecer – mesmo na ciência – que
esta é uma questão de decisão social
e poder político. Quase todos os siste-
mas de saúde são considerados ‘ca-
ros demais’. Foi disseminado o mito
da ‘explosão de custos’. Os custos
para a saúde são vistos unicamente
de política de saúde está mudando.
Ele muda da compensação tradicio-
nal de um risco social, que tem raí-
zes nacionais e recebe financiamento
coletivo, para um fator de respaldo à
acumulação de capital privado glo-
bal. A solidariedade na atenção à saú-
de é solapada por interesses indivi-
duais. É um processo de reindividua-
lização e comercialização.
Sabemos, todavia, que os países
que mais avançaram na transforma-
ção neoliberal de seus sistemas de
saúde não são necessariamente os
‘melhores’. Os Estados Unidos – onde
se desenvolveu o modelo neoliberal –
são o exemplo preferencial, mas não
único, desta regra. Os EUA têm os
gastos mais elevados em saúde, em
comparação com o Produto Interno
Bruto e a renda per capita, e seus
custos de administração são extrema-
mente elevados. A tecnologia médica
é bastante avançada, porém isso não
se reflete nos indicadores de saúde.
Além disso, a disseminação da pobre-
za social nos EUA aumenta a iniqüi-
dade social da prestação de serviços
de saúde. Lá, cerca de 43 milhões de
pessoas não têm cobertura do siste-
ma de saúde; um número ainda mai-
or tem cobertura insuficiente pelos
seguros de saúde; e, enquanto isso,
continua a crescer o total de pessoas
sem qualquer seguro e com cobertu-
ra insuficiente.
2. Neste cenário, são necessários
alguns esclarecimentos e comentári-
como uma carga para o desenvolvi-
mento econômico – à medida que são
uma questão relevante para a posi-
ção do capital na competição econô-
mica global. Atualmente, a política de
saúde é bastante pressionada a obter
recursos financeiros adicionais. A si-
tuação mais comum é que os custos
da atenção à saúde sejam cortados. A
economização dos temas sociais e
médicos chegou nesse meio tempo ao
limite da autodestruição. O conceito
DEPPE, Hans-Ulrich
368 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 365-370, set./dez. 2005
A ATENÇÃO À SAÚDE É UMA NECESSIDADE
SOCIAL. E A ORGANIZAÇÃO SOCIAL DA ATENÇÃO
À SAÚDE DEVE SER ORIENTADA PARA ESSA
NECESSIDADE - NÃO PARA OUTROS OBJETIVOS
E INTERESSES DETERMINADOS PELO MERCADO
E POR LUCROS
os acerca dos sistemas de atenção
universal à saúde.
A atenção universal à saúde ca-
racteriza um sistema de saúde em que
todos os residentes de determinado
país têm acesso a cuidados de saúde,
independentemente da condição mé-
dica que apresentem. Neste caso, a
medicina é orientada para a necessi-
dade – aquilo que é necessário do
ponto de vista médico. A maioria dos
sistemas universais de saúde é finan-
ciada principalmente pelas arrecada-
ções tributárias, a exemplo da Dina-
marca, Suécia e Canadá. Se os siste-
mas universais de saúde são financi-
ados sobretudo por impostos, deve-
mos observar qual é a estrutura da
política fiscal nacional e a quem ela
favorece ou discrimina. Devemos ob-
servar se essa política baseia-se em
princípios de solidariedade ou se res-
palda privilégios. Outros países, como
a Alemanha, a França e o Japão têm
um sistema de saúde universal em
que a atenção à saúde é financiada
por contribuições privadas e públicas.
Os sistemas universais variam no to-
cante à cobertura dos serviços, que
pode ser completa, parcial ou inexis-
tente.
3. Com base em tais considerações
e fatos, é importante repensar alguns
princípios básicos de como a socie-
dade lida com a doença e a saúde.
Saúde ou doença não podem ado-
tar totalmente o caráter de produto.
Nossas pesquisas mostram que não
existe sistema de saúde no mundo que
seja organizado exclusivamente com
base em princípios mercadológicos.
Isso se deve, entre outras, às seguin-
tes peculiaridades:
• A saúde é um bem existencial.
É um valor de uso, que em nossas
sociedades é coletivo e público (simi-
lar ao ar, à água potável, à educa-
ção, à segurança no trânsito e à se-
gurança jurídica). A atenção à saúde
é uma necessidade social. E a orga-
nização social da atenção à saúde
doença, ou o tipo de tratamento ade-
quado a ela. À doença não correspon-
de a regulamentação individual iso-
lada, já que ela é um risco de vida
coletivo.
• A soberania do consumidor do
sistema de saúde é muito limitada.
• O paciente que procura trata-
mento é confrontado com o monopó-
lio do saber médico, o que gera o do-
mínio da oferta.
• A procura do paciente por as-
sistência médica é, fundamentalmen-
te, não específica. É a competência de
um especialista que primeiro define e
especifica a procura. Há uma diferen-
ça essencial entre a competência e a
informação do médico e do paciente.
Os profissionais médicos têm um
grande poder discricional na determi-
nação de indicações, bem como de
medidas diagnósticas e terapêuticas.
Podemos imaginar o que significa
médicos serem empresários ou traba-
lharem cumprindo esse papel.
• E, por último, mas não menos
importante: o paciente se encontra
numa posição vulnerável de incerte-
za, fraqueza, dependência e necessi-
dade, não raro associada ao medo e
à vergonha.
Essa breve descrição da relação
entre mercado e paciente demonstra
que a proteção pública é necessária.
Tudo indica que os mecanismos da
oferta e procura não se aplicam à pres-
tação dos serviços de saúde. O siste-
ma de atenção à saúde é, por conse-
guinte, um exemplo da teoria do fra-
deve ser orientada para essa necessi-
dade – não para outros objetivos e in-
teresses determinados pelo mercado
e por lucros.
• O indivíduo não pode decidir
renunciar à doença – como pode fa-
zer em relação aos bens de consumo.
• O paciente não sabe quando e
por que ficará doente, nem sabe que
doença o acometerá no futuro. O pa-
ciente não tem a capacidade de deter-
minar a duração e o momento de sua
A situação atual e as perspectivas dos sistemas universais de saúde
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 365-370, set./dez. 2005 369
O LUCRO ECONÔMICO
TENDE A SUPRIMIR A NECESSIDADE MÉDICA,QUE DEVERIA SER O PRINCIPAL CRITÉRIO PARA
O TRABALHO DOS MÉDICOS
casso do mercado em economia. As
competências distributivas do merca-
do são, neste caso, insuficientes. O
mercado é uma força cega sem orien-
tação e é preciso dar-lhe direções e
objetivos. O Estado, representação
democrática da sociedade, tem, des-
se modo, responsabilidades importan-
tes, devendo ser políticas as decisões
sobre os rumos a tomar.
4. No âmbito dos modelos econô-
micos atuais, há diferenças entre a
racionalidade microeconômica e a
racionalidade macroeconômica. O que
mais interessa aos negócios não é
necessariamente o que melhor atende
à economia como um todo. Com efei-
to, os interesses das duas dimensões
costumam ser contraditórios, o que
se mostra especialmente em casos
como a proteção ambiental ou a in-
dústria atômica. A atual expansão da
racionalidade microeconômica traz
consigo, com freqüência, um enorme
desperdício de recursos da socieda-
de. A empresa singular evita os cus-
tos sociais associados, até que a so-
ciedade intervém nos aspectos macro-
econômicos, sociais ou ecológicos.
Pode-se observar esse fenômeno até
mesmo no sistema de atenção à saú-
de. Por exemplo, a transferência de
custos do setor ambulatorial para o
hospitalar pode ser vantajosa para
determinada instituição, embora seja
mais dispendiosa se analisada de
uma perspectiva mais ampla. Como
observam os economistas da saúde,
de maneira sarcástica, porém argu-
ta, de acordo com a perspectiva mi-
croeconômica e de racionalidade da
gestão empresarial, serviços de saú-
de ineficazes ou até mesmo causado-
res de riscos podem produzir os mes-
mos lucros que serviços eficazes e
úteis.
5. Na atualidade, os Sistemas Uni-
versais de Atenção à Saúde sofrem
enorme pressão. Em quase todas as
áreas do sistema de saúde, busca-se
Qual é, com base em pesquisas
teóricas e empíricas, minha mensa-
gem?
Esse conjunto de problemas leva
à conclusão de que uma sociedade
deve ter setores protegidos, orienta-
dos para o bem-estar comum, que não
podem ser confiados à força cega do
mercado nem ao poder desregulamen-
tador da competição. Acredito profun-
damente que há em nossas socieda-
des setores relevantes que não devem
ser privatizados nem comercializados,
pois isso irá contrariar e destruir os
valores humanos e sociais dessas
mesmas sociedades. Devemos respei-
tar e manter áreas em que a comuni-
cação e a cooperação não sejam co-
mercializadas e os serviços não te-
nham caráter de produto.
Tais setores protegidos relacionam-
se à maneira de tratar os grupos vul-
neráveis (crianças, idosos, pacientes
psiquiátricos, etc.), e a objetivos so-
ciais vulneráveis, tais como solidari-
edade e eqüidade, ou a estruturas de
comunicação vulneráveis – em espe-
cial aquelas com base em confiança,
como a relação médico-paciente. Es-
ses setores sociais protegidos consti-
tuem, sem dúvida, o alicerce de um
modelo social humano. Tal qualida-
de deve ser aceita e conquistar de novo
a hegemonia na sociedade civil. A
quantidade, a magnitude e a exten-
são de tal rede de segurança voltada
para o bem-estar dependem das for-
ças vivas das organizações políticas
e movimentos sociais de massa que
com grande afã a possibilidade de
aplicação de esquemas mercadológi-
cos auto-reguladores, competição eco-
nômica e marcos microeconômicos.
Assim, o lucro econômico tende a
suprimir a necessidade médica, que
deveria ser o principal critério para o
trabalho dos médicos. Trata-se de uma
mudança do tradicional paradigma
médico, que passa da atenção a uma
necessidade para atenção como cam-
po de acumulação de capital.
DEPPE, Hans-Ulrich
370 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 365-370, set./dez. 2005
articulam a disposição e a consciên-
cia da população.
De maneira nenhuma os campos
da doença e da saúde são fenômenos
periféricos ou marginais à sociedade.
Com efeito, o direito à saúde é um
direito humano. Às vezes, a instru-
mentalização cínica de valores soci-
ais básicos por interesses privados
disfarçados conduz à errônea suposi-
ção de que o desrespeito aos direitos
humanos é o que lhes dá significado.
Acredito, contudo, que não se de-
vem comercializar os direitos huma-
nos; eles não se prestam a ser objeto
de marketing, sob pena de ter seu sig-
nificado destruído. E isso vale para a
saúde em geral – o que se formula
como palavra de ordem política e ci-
entífica: Saúde não é mercadoria! Saú-
de não está à venda!
Da reforma do Estado à reforma da gestão hospitalar federal: algumas considerações
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 371-381, set./dez. 2005 371
ARTIGOS DE OPINIÃO / OPINION ARTICLES
Da reforma do Estado à reforma da gestão hospitalar federal: algumasconsideraçõesFrom state reform to the reform of federal hospital administration: someconsiderations
Lenir Santos1
Recebido: Dez./2006
Aprovado: Mar./2007
1 Advogada, especialista em direito sani-
tário Membro do Instituto de Direito Sani-
tário Aplicado – IDISA
www.idisa.org.br
E-mail: santoslenir@terra.com.br
RESUMO
O presente trabalho tece considerações a respeito da Reforma Adminis-
trativa do Estado inconclusa a partir da EC19/98. Estuda dois institutos
ali previstos que são: a possibilidade de o Estado criar fundações públicas
de direito privado a partir de uma autorização legislativa – art. 37, XIX, e
o contrato de autonomia previsto no art. 37, § 8º da CF. Propõe-se, ainda,
criar um regime administrativo para essas fundações que permita maior
agilidade e resultados qualitativos, além de estabelecer um liame com os
hospitais públicos que poderiam, de maneira mais consentânea com o
bem protegido que é a vida humana, serem mais efetivos e eficientes ao
adotarem esse modelo jurídico fundacional.
PALAVRAS-CHAVE: Saúde pública; administração pública; fundação estatal.
ABSTRACT
This paper offers some considerations regarding the unfinished State
Administration Reform based on EC19/98. It studies two institutes set
forth therein, which are: the possibility of the State creating public
foundations under civil law based on legislative authorization - art. 37,
XIX, and the contract of autonomy set forth in art. 37, § 8º of the Federal
Constitution. A proposal is also made for the creation of an administrati-
ve regime for these foundations that allow greater agility and qualitative
results, besides establishing a connection with the public hospitals that
could, in a manner that is more coherent with protecting human life, be
more effective and efficient by adopting this legal model as a basis.
KEYWORDS: Public health; public administration; state foundations.
SANTOS, Lenir
372 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 371-381, set./dez. 2005
INTRODUÇÃO
A consagração do direito à saú-
de na Carta Constitucional de 1988
foi uma conquista da sociedade bra-
sileira no campo dos direitos soci-
ais, tendo sido o resultado da luta
empreendida pelos ideólogos da
Reforma Sanitária durante muitos
anos antes.
O direito à saúde, como direito
público subjetivo, implica na garan-
tia pelo Estado da adoção de políti-
cas públicas que evitem o risco de
agravo à saúde, devendo ser consi-
deradas, nesse contexto, todas as
condicionantes da saúde, como
meio ambiente saudável, renda, tra-
balho, saneamento, alimentação,
educação bem como a garantia de
ações e serviços de saúde que pro-
movam, protejam e recuperem a
saúde individual e coletiva. Para a
garantia dessas ações e serviços
temos o Sistema Único de Saúde.
Dentre os serviços que incumbem
aos órgãos e entidades que com-
põem o Sistema Único de Saúde es-
tão os serviços hospitalares, hoje,
um dos problemas do sistema pú-
blico de saúde, principalmente no
que se refere a sua gestão que não
se modernizou nem conseguiu ca-
pacitar profissionais para gerir a
complexidade de um sistema hos-
pitalar que está fortemente marca-
do pela inovação tecnológica e prá-
ticas empreendedoras.
A administração pública tem
baixa capacidade operacional, fra-
co poder decisório, controles essen-
cialmente formais e sem qualidade
e influências políticas externas. As-
sim, a finalidade da administração
passou a ser os meios e seus pro-
cessos e não os fins. Tal contexto se
reflete na gestão hospitalar públi-
ca dificultando uma política de in-
corporação tecnológica, informati-
A CRISE DO ESTADOE A SUA REFORMA
É importante lembrar que a cri-
se do Estado e a necessidade de sua
reforma surgiram, na realidade, nos
anos 80, nos países centrais. Foi a
crise do Estado-Providência ou do
Estado de Bem-Estar Social. Era ne-
cessário diminuir custos sociais
(porque nesses países o Estado sem-
pre investiu muito em serviços pú-
blicos de saúde, educação, habita-
ção etc.), combater a ineficiência pú-
blica e os excessos e rever o tama-
nho do Estado.
No Brasil, a crise do Estado sur-
giu nos anos 90 e não foi a do Esta-
do-Providência, porque ele nunca
chegou a existir. O próprio direito à
saúde, bem como a garantia de ou-
tros direitos sociais, são conquis-
tas mais recentes, datada de 1988,
com a Constituição-cidadã.
A crise do Estado no nosso país
foi muito mais uma crise de gestão
e de qualidade, sem se esquecer que
o Estado nunca deixou de tentar mi-
nimizar os custos da Constituição
de 88 com os direitos sociais, mui-
tos deles de caráter universal e gra-
tuito, oneroso, pois, para os cofres
públicos. A intenção de enxugar o
tamanho do Estado sempre esteve
presente, e se iniciaria com a trans-
ferência dos serviços não exclusi-
vos, como saúde, educação, cultu-
ra, para entidades privadas1.
zação, modernização administrati-
va e gestão de recursos humanos
comprometidos com o serviço pú-
blico. Na maioria dos hospitais pú-
blicos falta gestão capaz, eficiente,
moderna e humana; esses serviços,
muitas vezes, tem alto custo e bai-
xo resultado.
NA MAIORIA DOS HOSPITAIS PÚBLICOS FALTA
GESTÃO CAPAZ, EFICIENTE, MODERNA EHUMANA; ESSES SERVIÇOS, MUITAS VEZES,
TEM ALTO CUSTO E BAIXO RESULTADO
1 Pregava-se nos anos 90, a transferência para o setor público não estatal dos serviços não exclusivos do Estado, transformando entespúblicos em organizações sociais, ou seja, em entidades de direito privado, sem fins lucrativos, com autorização para celebrar contratode gestão com o Poder Executivo. Propunha-se uma diminuição do tamanho do Estado, com o fim de provê-lo de maior eficiência e comoas organizações sociais seriam diversas geraria entre elas saudável competição (Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado).
Da reforma do Estado à reforma da gestão hospitalar federal: algumas considerações
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 371-381, set./dez. 2005 373
Contudo, a Reforma Bresseriana
dos anos 902 visou muito mais le-
var para o Terceiro Setor, sob regu-
lação estatal, a realização de servi-
ços públicos, ao invés de introdu-
zir modernos processos de gestão
no interior da administração públi-
ca, eivada de problemas já identifi-
cáveis, como excesso de controles,
ineficiência, limitados resultados e,
ainda, inadequada gestão de recur-
sos humanos, baixos salários,
amarras burocráticas desqualifica-
das, não capacitação de servidores
e fraco engajamento com a quali-
dade dos serviços executados.
Não se pensou em reestruturar
o Estado, com bem assevera Adria-
na da Costa Ricardo Shier, com a
intenção de adequá-lo, tornando-o
uma “instituição que efetivamente
assegurasse os mínimos direitos
capazes de garantir a sobrevivên-
cia digna dos cidadãos; ao invés,
preferiu-se, mais uma vez na histo-
ria, conceder tal tarefa ao merca-
do, à iniciativa privada. Optou-se
pela diminuição do Estado em re-
lação ao atendimento de demandas
sociais.”(SHIER, 2002 , p. 136)
Isso tudo levou a administração
pública a buscar mecanismos pa-
ralelos ao Estado para se safar da
imobilidade burocrática, dos baixos
salários e da retração de ingresso
de servidor no serviço público.Na
maioria das vezes, infelizmente,
somente as entidades e órgãos pú-
blicos que atuaram com entidades
paralelas conseguiram manter qua-
lidade nesses serviços3. Foi a era das
fundações de apoio, das cooperati-
vas de trabalhadores, das terceiri-
zações ilegais etc.; o próprio TCU,
no recente Relatório - Acórdão 1193/
2006-Plenário reconheceu que o
imobilismo e as amarras da admi-
nistração pública empurrou o ges-
aprimoramento da eficiência, eficá-
cia e efetividade, em consonância
com o previsto no Plano Diretor da
Reforma do Estado”(BRASIL,
2005b). Essas medidas tinham por
objetivo adequar o Poder Público ao
acordo que seria firmado com o
Fundo Monetário Internacional –
FMI (ajuste fiscal 5.7.99). A medida
mais importante, no que diz respei-
to à saúde pública, foi a redução
do gasto com a folha salarial de
todo o funcionalismo, fator que con-
tribuiu para a baixa expressiva no
quantitativo de profissionais da
área da saúde nos hospitais públi-
cos federais, situados no Município
do Rio de Janeiro”. (BRASIL, 2005b).
O Governo FHC arrochou os sa-
lários dos servidores públicos fede-
rais, no que foi acompanhado pe-
los Estados; o descalabro de con-
tratações de consultores por orga-
nismos internacionais para atuar na
administração pública federal, em
funções, desde as mais singelas às
de maior complexidade, com pro-
fissionais com mais de 10 anos atu-
ando mediante contrato de consul-
toria (que levou o Ministério Públi-
co a realizar Termo de Ajuste de
Conduta com o governo federal para
a realização de concurso público),
tudo isso reforçou os desvios já exis-
tentes na administração pública e
tor público para aliar-se a mecanis-
mos externos ao Estado para viabi-
lizar-se: “13. Exposto este quadro,
percebe-se que há exaustão do mo-
delo jurídico adotado para essas
unidades, situadas na órbita da
Administração Direta, que impossi-
bilita a adoção de mecanismos de
...A REFORMA BRESSERIANA DOS ANOS 90VISOU MUITO MAIS LEVAR PARA O TERCEIRO
SETOR, SOB REGULAÇÃO ESTATAL, AREALIZAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS, AO INVÉS
DE INTRODUZIR MODERNOS PROCESSOS DE
GESTÃO NO INTERIOR DA ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA...
2 Em 1995, foi lançado pelo Ministro Bresser Pereira, o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, o qual, buscou, na realidade, criarfiguras novas no Terceiro Setor, as quais deveriam se transformar em espaço público não estatal. Foram criadas pelas Leis ns. 9637/98e 9790/99 as Organizações Sociais e as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, ao lado das Agencias Executivas.3 A que preço essas entidades paralelas ajudaram a gerir o serviço público de maneira mais eficaz? Estamos em plena crise da FundaçãoZerbini, tida como modelo de eficiência, modelo de gestão ao custo de uma dívida de mais de R$250 milhões de reais, conforme veiculadopela imprensa nesses últimos meses (VERBA, 2006).
SANTOS, Lenir
374 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 371-381, set./dez. 2005
ocasionou uma paralisia na moder-
nização do serviço público, com
graves conseqüências para a popu-
lação usuária.
Não podemos negar que a Re-
forma do Estado nos dias de hoje
não poderá deixar de considerar o
Terceiro Setor como um espaço de
interesse público fora do Estado,
complementar ao Estado, mas não
substitutivo dele. Mas não podemos
nos esquecer que também o Tercei-
ro Setor, na saúde, tem suas maze-
las, falta de eficiência, qualidade,
modernização, precisando, também,
se qualificar.
Boaventura Souza Santos4 repor-
ta a esse tema ao afirmar que a
substituição e a complementarida-
de entre o Terceiro Setor e o Estado,
quando se funda na discussão en-
tre as funções do Estado exclusivas
e as não exclusivas, devendo o Es-
tado ser substituído em tudo aqui-
lo que não for de sua exclusividade
é altamente problemática, principal-
mente pelo fato de que
(...)nenhuma das funções do Esta-
do foi originalmente exclusiva dele; a
exclusividade do exercício de funções
foi sempre o resultado da luta política.
Não havendo funções essencialmente
exclusivas não há, por implicação, fun-
ções essencialmente não exclusivas
(SANTOS, 1998).
Concluindo, a Reforma do Esta-
do do final dos anos 90 somente
cuidou de retirar do Estado ativi-
dades consideradas não exclusivas
e transpassá-las para o Terceiro Se-
tor, principalmente as da área da
saúde, sem, contudo, trazer para si
a discussão de uma reforma admi-
nistrativa que desse conta de me-
implementadas e que serão objeto
deste trabalho. Visava a EC 19
amortecer o endurecimento da ad-
ministração pública.
A REFORMAADMINISTRATIVA DA EC 19/98
A Reforma Administrativa – EC
19/98 – trouxe, dentre outras, al-
gumas inovações, como: a) térmi-
no do regime jurídico único, possi-
bilitando à administração a escolha
do regime da CLT e não apenas o
estatutário; b) garantia de estabili-
dade apenas aos servidores deten-
tores de cargo público efetivo pro-
vido por meio de concurso; c) ga-
rantia de os órgãos e entes da ad-
ministração pública, direta e indi-
reta, gozarem de maior autonomia
gerencial, orçamentária e financei-
ra mediante contrato firmado entre
os administradores e o poder públi-
co; d) criação de fundação gover-
namental de direito privado, medi-
ante autorização legislativa.
Vamos nos deter apenas ‘no con-
trato de autonomia’, mencionado no
§ 8º do art. 37 e na ‘fundação go-
vernamental de direito privado’, pre-
vista no inciso XIX do art. 37 da CF,
lhorar o emperramento da máqui-
na pública, com alargamento dos
horizontes de sua gestão.
Não obstante a pouca atenção
aos melhoramentos internos da ad-
ministração pública, a EC 19/98 –
Reforma Administrativa - introdu-
ziu algumas inovações no Texto
Constitucional, as quais não foram
...A REFORMA DO ESTADO DO FINAL DOS
ANOS 90 SOMENTE CUIDOU DE RETIRAR DO
ESTADO ATIVIDADES CONSIDERADAS NÃO
EXCLUSIVAS E TRANSPASSÁ-LAS PARA OTERCEIRO SETOR, PRINCIPALMENTE AS DA
ÁREA DA SAÚDE...
4 A Reinvenção Solidária e Participativa do Estado – Boaventura Souza Santos – artigo publicado pelo Seminário Internacional Sociedadee a Reforma do Estado. (SANTOS, 1998).
Da reforma do Estado à reforma da gestão hospitalar federal: algumas considerações
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 371-381, set./dez. 2005 375
denominada doravante de ‘fundação
estatal’5, instrumentos que podem
modernizar a gestão da saúde.
DO CONTRATODE AUTONOMIA
Nos últimos anos a administra-
ção pública vem abrindo espaço
para “atuações administrativas ins-
trumentalizadas por técnicas contra-
tuais, decorrentes de consenso, acor-
do, cooperação, parcerias firmados
entre a Administração e particula-
res ou entre órgãos públicos e enti-
dades estatais” (MEDAUAR, 2005).
Tanto que o contrato de gestão – que
surgiu nos anos 90, no Governo
Collor, pelo Decreto 137/916 – tem
sido amplamente utilizado no âm-
bito da administração pública nas
relações que mantém com as Orga-
nizações Sociais, com o Serviço
Social Autônomo, com as agências
reguladoras, agências executivas7 e
com empresas estatais.
Entretanto, o contrato de gestão
tem sido um instrumento muito mais
de controle das organizações soci-
ais ou de fixação de responsabili-
dades e metas públicas do que de
expansão da autonomia dos entes e
órgãos públicos.
O contrato do § 8º do art. 37 tem
por objeto o ‘alargamento da auto-
nomia’ como meio para se alcan-
çar a melhoria da gestão de órgão
ou ente público e fixação clara de
responsabilidades do administrador
da Fundação das Pioneiras Sociais,
o do Grupo Hospitalar Conceição,
cuidam tão somente da fixação de
metas, avaliação de desempenho e
outros compromissos, sem flexibi-
lização da gestão.
O contrato de gestão não amplia
a autonomia, mas sim, especifica
metas e responsabilidades, critéri-
os de avaliação do ente público ou
privado, sem, contudo, conferir
maior autonomia gerencial, finan-
ceira ou patrimonial, muitas vezes,
essenciais para a obtenção de resul-
tados qualitativos na prestação de
serviços públicos.
O § 8º do art. 37 da CF que reza
que mediante contrato a ser firma-
do entre o Poder Público e seus ad-
ministradores poderão ser amplia-
das as autonomias gerencial, orça-
mentária e financeira de entidades
e órgãos da administração direta e
indireta, devendo a lei definir o pra-
zo de duração do contrato; os con-
troles e critérios de avaliação de
desempenho, direitos, obrigações e
responsabilidades de seus dirigen-
tes e remuneração de pessoal.público; já o contrato de gestão uti-
lizado pela administração, como o
O CONTRATO DE GESTÃO NÃO AMPLIA AAUTONOMIA, MAS SIM, ESPECIFICA METAS E
RESPONSABILIDADES, CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO
DO ENTE PÚBLICO OU PRIVADO, SEM,CONTUDO, CONFERIR MAIOR AUTONOMIA
GERENCIAL, FINANCEIRA OU PATRIMONIAL...
5 Em abril de 2005, a pedido de dirigentes do Grupo Hospitalar Conceição, de Porto Alegre, ente federal, realizei estudos para transformaraquelas entidades em fundação governamental de direito privado. Em outubro do mesmo ano, apresentei o resultado dos estudos numaoficina de trabalho organizada pelo Ministério do Planejamento, Projeto EuroBrasil 2006, Secretaria de Gestão, para discutir novasformas de gestão hospitalar. A partir daí, tanto o Ministério do Planejamento quanto o Ministério da Saúde decidiram aprofundar osestudos sobre o modelo de Fundação Governamental de direito privado (Fundação Estatal) proposta por mim para o Grupo HospitalarConceição, criando grupos de trabalho. Também venho participando, informalmente, como colaboradora, do grupo de trabalho doMinistério do Planejamento, Secretaria de Gestão, composto por Sábado Girard e Valéria Alpino Bigonha Salgado.6 O Decreto 137/91 definia o contrato de gestão como “instrumento do Programa de Gestão das Empresas Estatais – PGE, no qual seestipulam compromissos reciprocamente assumidos entre a União e a Empresa”. Esse contrato objetivava o aumento da eficiência ecompetitividade das empresas estatais.7 Abrindo um parêntese, as Agências executivas, criadas pelo art. 51 e 52 da Lei 9.649/98 são autarquias e fundações públicas que podem,por decreto do Presidente da República, ser qualificadas como agência executiva desde que tenham plano estratégico de reestruturaçãoe desenvolvimento institucional e celebre contrato de gestão com o Ministério supervisor, gozando, assim, de maior autonomia. Entretan-to, nenhum decreto pode ultrapassar os limites da lei que criou o ente qualificado como agencia executiva, garantindo-lhe autonomiamaior que a lei que a o criou. Decreto presidencial não pode expandir limites legais. As flexibilidades devem estar previstas em lei, comoacontece com a Lei 8.666 que ampliou o valor percentual de dispensa de licitação para as agências executivas.
SANTOS, Lenir
376 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 371-381, set./dez. 2005
Vê-se, desde logo, a diferença
entre o contrato de gestão e o con-
trato mencionado no § 8º do art. 37
‘o qual claramente refere-se à am-
pliação de autonomia gerencial, fi-
nanceira e orçamentária de uma das
partes contratante’.
Não há, ainda, no nosso país,
lei definindo o ‘contrato de autono-
mia’. No direito Português, o Decre-
to-Lei nº 115-/988, de 4 de maio,
aprova o regime de autonomia, ad-
ministrativa e de gestão dos esta-
belecimentos públicos de educação
pré-escolar, ensinos básico e secun-
dário. O contrato de autonomia por-
tuguês é definido como
o acordo celebrado entre a escola, o
Ministério da Educação, a administra-
ção municipal e, eventualmente, outros
parceiros interessados, através do qual
se definem objectivos e se fixam as con-
dições que viabilizam o desenvolvimen-
to do projecto educativo apresentado pe-
los órgãos de administração e gestão
de uma escola ou de um agrupamento
de escolas (BRASIL, 1998).
Sua finalidade é melhorar o de-
sempenho do serviço público de
educação mediante uma série de
autonomias e permitir que a admi-
nistração pública adote regras cla-
ras de responsabilização pelo con-
trato de autonomia. Reza o citado
Decreto-lei que
(...) se por um lado, a administra-
ção e gestão obedecem a regras funda-
mentais que são comuns a todas as es-
colas, o certo é que, por outro lado, a
configuração da autonomia determi-
na que se parta de situações concretas
distinguindo os projectos educativos e
as escolas que estejam mais aptas a as-
sumir, em grau mais elevado, essa au-
nho para o órgão ou entidade, a sua
duração, controles, critérios de ava-
liação de desempenho, direitos,
obrigações e responsabilidade dos
dirigentes e remuneração de pesso-
al.
A lei que dispuser sobre o con-
trato de autonomia, há que disci-
plinar todos esses elementos e con-
ferir aos administradores públicos
de órgãos (por não serem dotados
de personalidade jurídica própria)
poderes para firmar o contrato com
o Poder Público ou ‘uma competên-
cia especial’, no dizer de Silva
(2007)
(...) que lhes permita celebrar o con-
trato, que talvez não passe de uma es-
pécie de acordo-programa. Ainda, con-
forme o ilustre professor, a Constitui-
ção criou uma forma de contrato ad-
ministrativo inusitado entre adminis-
tradores de orgãos do poder público com
o próprio poder público, cabendo ao le-
gislador ordinário disciplinar a maté-
ria.
Tal lei poderá inovar garantindo
ao administrador que firmar o con-
trato de autonomia, dentre direitos
e responsabilidades mencionados no
texto constitucional, a sua perma-
nência frente ao órgão (mandato),
por um determinado prazo, que pode
tonomia, cabendo ao Estado a respon-
sabilidade de garantir a compensação
exigida pela desigualdade de situações
(BRASIL, 1998)9.
O contrato de autonomia – um
contrato inusual na administração
– deverá fixar metas de desempe-
O CONTRATO DE AUTONOMIA – UM
CONTRATO INUSUAL NA ADMINISTRAÇÃO –DEVERÁ FIXAR METAS DE DESEMPENHO PARA O
ÓRGÃO OU ENTIDADE, A SUA DURAÇÃO,CONTROLES, CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO DE
DESEMPENHO, DIREITOS, OBRIGAÇÕES ERESPONSABILIDADE DOS DIRIGENTES E
REMUNERAÇÃO DE PESSOAL
8 Alterado pela Lei Portuguesa 24/99.9 O contrato de autonomia português prevê duas fases do processo de desenvolvimento da autonomia, conforme negociação prévia entrea escola e a administração pública. Na primeira fase, concede-se gestão flexível do currículo, adoção de normas próprias sobre horários,tempos letivos, intervenção no processo de seleção de pessoal, gestão e execução orçamentária, possibilidade de autofinanciamento egestão de outras receitas.
Da reforma do Estado à reforma da gestão hospitalar federal: algumas considerações
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 371-381, set./dez. 2005 377
ser o do contrato; poderá, ainda, no
tocante às responsabilidades, impe-
dir a ocupação daquele administra-
dor de outros cargos de direção, por
determinado período, no caso de des-
cumprimento injustificado do con-
trato, com prejuizo publico.
Poderá, ainda, vincular as ques-
tões relativas a remuneração de
pessoal à economia de recursos or-
çamentários, os quais poderão ser
destinados ao pagamento de prêmio
de produtividade ao seu pessoal,
conforme disposto no art. 39, § 7º
da CF. O legislador haverá de ino-
var ao disciplinar esse dispositivo
constitucional, criando um novo
modelo de contrato administrativo
que garanta melhor desempenho aos
órgãos e entes públicos.
DA FUNDAÇÃO ESTATALCOM PERSONALIDADE
JURÍDICA DE DIREITO PRIVADO
Não é de hoje a discussão que
se trava no mundo jurídico sob a
personalidade jurídica das funda-
ções instituídas pelo Estado. A Cons-
tituição mencionou as fundações
públicas em vários dispositivos,
tendo causado mais confusão do
que solução para os díspares enten-
dimentos sobre a personalidade ju-
rídica das fundações.
Sem adentrar nesse campo com
maior profundidade, como diversos
autores já o fizeram exaustivamen-
te, podemos dizer de maneira sinté-
tica que a doutrina se divide entre
os que entendem que as fundações
instituídas pelo Poder Público po-
dem ser de direito privado ou pú-
blico, conforme dispuser a lei auto-
rizativa10 e aqueles que advogam
que todas as fundações quando ins-
tituídas pelo Poder Público sempre
serão de direito público. Há, ainda,
privado como pelo direito público,
conforme a lei dispuser, passaremos
a demonstrar que hoje, as funda-
ções estatais regidas pelo direito
privado podem ser um modelo de
entidade governamental com maior
autonomia e de grande utilidade
para a prestação de serviços públi-
cos não exclusivos do Estado, ou
seja, serviços públicos da área so-
cial, ‘em especial, os serviços de
saúde’.
O inciso XIX do art. 37 da Cons-
tituição reza que “somente por lei
específica poderá ser criada autar-
quia e autorizada a instituição de
empresa pública, sociedade de eco-
nomia mista e de fundação, caben-
do à lei complementar, neste últi-
mo caso, definir as áreas de sua
atuação”. (BRASIL, 1988). Antes da
EC 19/98 a redação desse dispositi-
vo constitucional mencionava que
“somente por lei específica poderá
ser ‘criada autarquia e fundações
públicas’ (grifo nosso)”. A EC 19 fez
duas alterações no texto anterior,
incluindo ao lado da empresa pú-
blica e da sociedade de economia
mista as fundações, as quais, do-
ravante, dependem apenas de lei
autorizativa e não de lei instituido-
ra, tendo ainda, retirado da expres-
são fundação a qualificação “publi-
ca”. (BRASIL, 1998).
administrativistas, como Meirelles
(1998), que sempre defendeu a fun-
dação estatal como de direito pri-
vado.
Entendendo que a melhor dou-
trina está com aqueles que admi-
tem fundações governamentais ou
estatais regidas tanto pelo direito
NÃO É DE HOJE A DISCUSSÃO
QUE SE TRAVA NO MUNDO JURÍDICO SOB APERSONALIDADE JURÍDICA DAS FUNDAÇÕES
INSTITUÍDAS PELO ESTADO
10 Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Odete Medauar, Jose dos Santos Carvalho Filho, Carlos Ari Sundfeld entendem que as fundaçõesinstituídas pelo Poder Público podem ser de direito publico ou de direito privado, conforme dispuser a lei autorizativa; Celso AntonioBandeira de Mello defende posição antagônica entendendo que as fundações instituídas pelo Poder Público sempre serão de direitopublico. O entendimento do STF é de que tanto pode haver fundação governamental de direito público como de direito privado, dependen-do de como a lei autorizativa ordenou a sua criação. (RE nº 101.126-RJ, Relator o Min Moreira Alves - RTJ 113/314; Ellen Gracie – Agravoem RE 219.900-1 RS 2002; e Eros Roberto Grau – MS 24.427-5 - 2006).
SANTOS, Lenir
378 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 371-381, set./dez. 2005
Três são as novidades dessa re-
gra constitucional – em relação ao
texto original – (a) criação de fun-
dação por lei autorizativa; (b) su-
pressão da expressão “pública” que
acompanhava a fundação; e (c) ne-
cessidade de lei complementar dis-
pondo sobre o campo de atuação
das fundações.
A Constituição ao afirmar que as
fundações somente necessitam de lei
autorizativa, cabendo ao Executivo
a sua instituição, reconheceu a pos-
sibilidade de essas entidades, ao
serem criadas pelo Estado, gozarem
de personalidade jurídica de direito
privado, ou seja, ser instituída de
acordo com o regime do Código Ci-
vil (mediante escritura pública re-
gistrada no Cartório competente e
regida pelos seus estatutos aprova-
dos por decreto).
Quanto à necessidade de lei com-
plementar dispondo sobre o campo
de atuação das fundações estatais,
enquanto tal lei não for editada, re-
cepcionado está o art. 5º, IV, do De-
creto-lei 200/67:
“Art. 5º.
IV – Fundação Pública – a entidade
dotada de personalidade jurídica de
direito privado, sem fins lucrativos, cri-
ada em virtude de autorização legisla-
tiva, para o desenvolvimento de ativi-
dades que não exijam execução por ór-
gão ou entidade de direito público, com
autonomia administrativa, patrimô-
nio próprio gerido pelos respectivos ór-
gãos de direção e funcionamento cus-
teado por recursos da União e de ou-
tras fontes” (BRASIL, 1967).
Como tal dispositivo refere-se às fun-
dações estatais de direito privado, en-
quanto nova lei complementar não for
editada, vigora a lei ordinária anteri-
da fundação para o desenvolvimento
de atividades que não exijam execução
por órgão ou entidade de direito
publico”(BRASIL, 1967).
Desse modo, somente atividades
que não exijam poder de autorida-
de, ou seja, pessoa jurídica de di-
reito público, podem ser objeto da
fundação estatal de direito privado.
Na área da saúde, excluída a vigi-
lância sanitária e outras atividades
que exijam função de autoridade,
poderão ser criadas fundações es-
tatais. Na área hospitalar seria de
todo conveniente a adoção do mo-
delo diante do esgotamento dos
modelos utilizados atualmente.
Resolvidas as questões mais
polêmicas sobre as fundações (ou-
tras podem existir, mas todas paci-
ficadas12), gostaríamos de destacar
de modo prático as vantagens des-
se modelo estatal para a prestação
de serviços de saúde, em especial,
os hospitalares.
‘As fundações estatais13 na área
da saúde federal’ podem ter as se-
guintes características14 (algumas
específicas e outras comuns a ou-
tras áreas que não a da saúde, lem-
brando, ainda que outras esferas de
governo também podem instituir
or, recepcionada pela Constituição11,
com força de lei complementar; assim,
no tocante ao seu campo de atuação
prevalece a regra do Decreto-lei acima
citado: “somente poderá ser instituí-
A CONSTITUIÇÃO AO AFIRMAR QUE AS
FUNDAÇÕES SOMENTE NECESSITAM DE LEI
AUTORIZATIVA (...)RECONHECEU APOSSIBILIDADE DE ESSAS ENTIDADES (...),GOZAREM DE PERSONALIDADE JURÍDICA DE
DIREITO PRIVADO ...
11 Nem seria necessário demonstrar que diversas leis ordinárias foram recepcionadas pela Constituição com força de lei complementar,sendo os exemplos mais clássicos, o Código Tributário Nacional (lei ordinária enquanto a Constituição exige lei complementar paramatérias tributárias) e a Lei 4.320/64 que dispõe sobre finanças públicas, também lei ordinária enquanto a Constituição preconiza leicomplementar.12 Como o disposto no parág. único do art. 62 do Código Civil que menciona “assistência” dentre os campos de atividades das fundações,devendo ser entendido que a assistência ali mencionada é lato sensu e não strictu sensu.13 Participei das discussões sobre a elaboração de um projeto de lei complementar, no Ministério do Planejamento, Secretaria de Moderni-zação da Gestão dispondo sobre o campo de atuação das fundações estatais.14 Características fundadas no modelo instituído para a transformação dos hospitais do Grupo Hospitalar Conceição e dos hospitais einstitutos federais situados no Rio de Janeiro, em estudo, pelo Grupo de Trabalho aqui mencionado, nota de rodapé 9.
Da reforma do Estado à reforma da gestão hospitalar federal: algumas considerações
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 371-381, set./dez. 2005 379
fundações estatais, com as adapta-
ções necessárias quanto à compe-
tência federal para legislar sobre
certos temas nem sempre ao alcan-
ce do Estado e Município, como é o
caso das normas gerais sobre lici-
tação):
1. gozar de autonomia adminis-
trativa, financeira, patrimonial e
orçamentária não devendo ter orça-
mento público, mas sim ser uma
prestadora de serviços para o Mi-
nistério da Saúde com o qual firma-
rá contrato de gestão;
2. ter em sua estrutura organi-
zacional (sistema de governança)
um conselho curador e uma direto-
ria executiva, com mandato, o qual
poderá ser encerrado antes do seu
término, no caso de descumprimen-
to do contrato de gestão;
3. ter receitas advindas do con-
trato de gestão e outros contratos
firmados com o poder público, ve-
dados contratos que cerceiem ou
inibam a universalidade do acesso
dos serviços de saúde (gratuidade e
igualdade);
4. reger-se pelo disposto na lei
que autorizar a sua instituição e
pelos seus estatutos baixados por
ato do Executivo;
5. sujeitar-se aos controles dos
Tribunal de Contas da União e do
Ministério da Saúde;
6. submeter-se a regime à lei de
licitação e contratos quanto ao seu
regime de compras de bens e servi-
ços, podendo a ‘lei federal’ que a
criar, instituir outras modalidades
de disputa pública, conforme ocor-
reu com o pregão público que nas-
ceu no âmbito de uma lei especifi-
ca, a que criou a Anatel. Advoga-se
que a fundação estatal federal da
saúde realize licitação sob a moda-
lidade do pregão e da consulta pu-
blica, está ultima conforme vier a
ser explicitada em lei especifica, po-
dendo, ainda, contar com regula-
mento próprio, em razão do dispos-
to no art. 119 da Lei 8666/93 (BRA-
SIL, 1993).
7. submeter-se ao regime finan-
ceiro (contabilidade) das empresas
estatais (Lei 6.404, 15.12.76) e não
o da Lei 4.230/64 (BRASIL, 1964)
8. submeter-se, quanto ao regi-
me de pessoal, à CLT, com ingresso
mediante concurso público; plano de
carreira e salários, dissídios, gestão
de pessoal e reajustes próprios; ter
limites de contratação de pessoal
previsto em lei ou nos seus estatu-
tos;
9. submeter-se ao regime especi-
al de penhora previsto no Código de
Processo Civil para as entidades es-
tatais (art. 678) quanto aos seus bens
e rendas.
10. inserir-se no sistema loco-re-
gional, sendo entidade integrante do
SUS, com observações de todos os
seus princípios, diretrizes e regra-
mentos.
11. sujeitar-se ao controle dos
conselhos de saúde, conforme situ-
ação geográfica e vinculação gover-
namental.
Ressalte-se, ainda, que:
a) a imunidade tributária previs-
ta na Constituição para as fundações
instituídas pelo poder público alcan-
ça a fundação estatal (art. 150, § 2º
da CF) (Lembramos que o art. 150,
VI,c, da CF, alcança, ainda, as enti-
dades privadas sem finalidades lu-
crativas das aréas de educação e
assistência social, latu sensu);
b) a Lei de Responsabilidade Fis-
cal (Lei Complementar 101/2000) só
terá incidência sobre a fundação
estatal se a mesma receber recur-
sos públicos para pagamento de des-
pesas com pessoal ou de custeio em
geral ou de capital (entidade depen-
dente). Quando suas rendas advie-
rem de serviços prestados a órgãos
ou entidades do SUS, em especial,
do Ministério da Saúde, conforme
contrato de gestão, a LRF não inci-
dirá sobre a fundação, como regra
geral (lembramos que a LRF adotou
como principio para a sua aplicabi-
lidade às entidades públicas de di-
reito privado, a sua dependência fi-
nanceira). O Professor Carlos Ari
Sundfeld, no Parecer mencionado
anteriormente, destaca que “As fun-
dações governamentais privadas
‘que recebam do ente controlador re-
cursos financeiros para pagamento
de despesas com pessoal ou de cus-
teio ou de capital’ devem, contudo,
SANTOS, Lenir
380 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 371-381, set./dez. 2005
ser entendidas como fundações de-
pendentes, à semelhança do que
ocorre com as empresas estatais na
mesma situação (lei complementar
n. 101, de 2000 – Lei de Responsa-
bilidade Fiscal, art. 1º, § 3º,I, b c/c
art. 2º, II)” – (FIOCRUZ, 200?).
c) poderão ser firmados contra-
tos com o Estado e Município (as
fundações estatais federais), no âm-
bito da regionalização, além de po-
der ter outras rendas advindas de
serviços voltados para a pesquisa
científica e formação de pessoal,
para os hospitais que tiverem essa
finalidade, também.
CONCLUSÃO
A Fundação Estatal é hoje sem
dúvida, o melhor instrumento de
gestão hospitalar (‘e para outras
áreas da saúde pública, como tam-
bém para a educação, cultura, meio
ambiente, turismo, assistência so-
cial da União, dos Estados e dos
Municípios’) dada a sua caracterís-
tica de ser uma entidade integrante
da administração pública indireta,
com autonomia administrativa, fi-
nanceira, orçamentária e patrimo-
nial.
A Fundação estatal, como enti-
dade hospitalar da administração
pública federal, será uma entidade
integrante do SUS, com inserção
loco-regional, hierarquizada, com
controle social exercido pelos con-
selhos de saúde, prestadora de ser-
viços universalizados e responsa-
bilidade explícita de seus dirigen-
tes no contrato de gestão; recursos
humanos comprometidos, os quais
deverão (é o que se advoga) ter par-
te de seus vencimentos atrelados ao
desempenho identificado com a qua-
lidade dos serviços prestados, tudo
em nome do interesse público.
Por outro lado, se o ‘contrato de
autonomia’ observar princípios
como: subordinação da autonomia
aos objetivos do serviço público e
à qualidade de sua prestação; com-
promisso dos órgãos e entes públi-
cos na gestão de um serviço de qua-
lidade; consagração do controle so-
cial; reforço da responsabilização
dos dirigentes públicos mediante o
desenvolvimento de instrumentos de
avaliação do desempenho do servi-
ço prestado; adequação dos recur-
sos aos resultados que se preten-
dem – ‘será um instrumento ino-
vador de gestão pública, em espe-
cial para a área da saúde’.
Finalizando, podemos afirmar
que existe hoje possibilidade, ain-
da não explorada, no âmbito da ad-
ministração pública direta e indi-
reta, de promoção de uma reforma
da gestão, com sua modernização,
sem que se tenha o olhar apenas
voltado para o Terceiro Setor, des-
qualificando-se a administração
pública como ineficiente e incapaz
sem, contudo, introduzir no seu in-
terior instrumentos inovadores da
gestão pública. A fundação estatal
e o contrato de gestão são modelos
que possibilitam modernizar o Es-
tado acabando com a visão dos
anos 90 de que isso somente seria
possível ‘fora’ do Estado, como se
o Estado pudesse ser ‘substituído’
pelo setor privado ao invés de ‘com-
plementado’ em algumas ações e
serviços, quando e se necessário.
Sem que se resolva ‘internamen-
te’ os problemas do Estado, o sim-
ples transpasse de serviços públi-
cos para o Terceiro Setor levará con-
sigo as mazelas não eliminadas da
área pública e, num espaço curto
de tempo, perderemos a ilusão de
que o setor privado poderá ‘substi-
tuir’ o setor público, com qualida-
de, eficiência e economicidade, tão
apregoadas nos últimos anos.
A FUNDAÇÃ O ESTATAL E O CONTRATO DE
GESTÃO SÃO MODELOS QUE POSSIBILITAM
MODERNIZAR O ESTADO ACABANDO COM AVISÃO DOS ANOS 90 DE QUE ISSO SOMENTE
SERIA POSSÍVEL ‘FORA’ DO ESTADO ...
Da reforma do Estado à reforma da gestão hospitalar federal: algumas considerações
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382 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 382-384, set./dez. 2005
DOCUMENTOS / DOCUMENTS
O lugar estratégico da gestão na conquista do SUS pra valerThe strategic place of management in the attainment of a genuine Unified Health System
Embora o financiamento seja o tema predominante na atual discussão acerca dos dilemas do sistema público de
saúde no país, ele não representa o único problema a impedir que tenhamos um SUS pra valer: humanizado,
integral e de qualidade.
Outro obstáculo importante consiste na falta de um projeto político claro para o setor. Afinal, o que o SUS
persegue hoje? Quais são as estratégias adotadas para esse fim? O que é tomado como prioritário nessa política?
Estas são questões que precisam ser levadas a público, aprofundadas e debatidas junto à sociedade. Somente assim
tal política poderá ganhar maior legitimidade. Somente assim ela poderá contar com ampla base de sustentação,
envolvendo cidadãos, usuários, profissionais da saúde e gestores do sistema. Somente assim esse projeto tornar-se-
á politicamente viável.
Dentre a lista de questões estratégicas a enfrentar, é preciso dar destaque também ao problema da gestão da
saúde. Não obstante, o debate que a questão tem suscitado, sua importância em relação ao SUS segue ainda mal
reconhecida.
De modo geral, a falta de capacidade gerencial acaba sendo remetida à esfera da prestação de serviços, ao âmbito
dos serviços de saúde, quando o problema em verdade perpassa todos os níveis do nosso sistema de saúde. Basta
lembrar o quanto estamos longe do Ministério Único da Saúde (MUS) e as conseqüências negativas dessa desarticu-
lação interna do Ministério da Saúde ou, ainda, se reportar às dificuldades gerenciais comumente observadas em
nossas secretarias estaduais e municipais. Vale assinalar, também, que os problemas gerenciais se manifestam nos
mais diversos domínios das organizações públicas de saúde: no planejamento, na gestão das pessoas, na gestão de
materiais, na gestão financeira, na gestão da clínica etc.
Outro aspecto a indicar a falta de entendimento sobre tal questão é que, ao contrário do que acontece com a
temática do financiamento, raras vezes se estabelece uma clara relação de causa-e-efeito entre o mau gerenciamento
do sistema e os resultados alcançados pelo SUS. Os problemas da ineficiência, da má qualidade do atendimento, da
insuficiente transparência ou da falta de democracia, todos eles dizem respeito e encontram raiz na forma como o
SUS é gerido. Caso não logremos estabelecer outro modo de geri-lo, caso não sejam adotados outro modelo e novas
práticas de gestão, esses problemas não encontrarão efetiva solução.
Neste sentido, o CEBES tem procurado se apropriar e debater a proposta de criação de fundações estatais para
hospitais públicos. Diante da complexidade do tema e necessidade de aprofundamento de várias de suas dimensões,
o CEBES não definiu uma posição favorável ou contrária a este projeto. Antes de tudo, queremos discutir mais! Não
se trata apenas de encampar ou descartar a alternativa proposta e sim viabilizar a realização de debates francos e
abertos com a sociedade brasileira. Quase 20 anos após a aprovação da Constituição de 1988, é preciso encarar de
vez a tarefa de traduzir os princípios do SUS, em efetivos direitos à saúde.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, 382-384, set./dez. 2005 383
DOCUMENTOS / DOCUMENTS
Para tanto, consideramos que:
1. Há um amplo consenso sobre a necessidade de melhorar a gestão dos serviços de saúde e que a atenção
hospitalar é ponto crítico do SUS. São numerosas as evidências de que o modelo atual de gestão de nossos serviços
de saúde encontra-se em crise. Contudo, os desafios para transformar as disposições favoráveis a mudanças em
ações efetivas requerem medidas adicionais: a definição do perfil assistencial destas unidades e a ampliação de seus
compromissos com as diretrizes do SUS, por meio de ações programadas. O que implica o alargamento e o aumento
de resolutividade das portas de entrada do sistema (o nível básico de atenção) e a reinserção qualificada dos hospi-
tais em redes de serviços efetivamente universais, regionalizadas, hierarquizadas e de qualidade.
2. É essencial impedir que os hospitais tenham sua gestão comprometida por barganhas políticas, o que requer
exigir a profissionalização da gestão e a criação de carreira de gestor para os dirigentes.
3. A política de gestão deve ser articulada a um projeto de fortalecimento do SUS, de profunda revisão dos
modelos de atenção, formas e valores de remuneração de todos os seus níveis de atenção.
4. Os problemas de gestão das unidades públicas de saúde, relativos à baixa qualificação técnica dos dirigentes,
não são nenhum segredo. O uso de tecnologias e ferramentas de gestão em saúde disponíveis é limitado e/ou mal
empregado pelos gestores. O mais grave da situação presente é que o poder decisório/discricionário que esses
dirigentes têm em mãos é muito reduzido – em certos casos, a gestão fica a depender, basicamente, de sua capacida-
de de liderança e de negociação política, seja perante suas autoridades superiores, seja junto ao corpo de funcioná-
rios da organização. Talvez, portanto, não seja mera coincidência que pouco hoje lhes seja cobrado.
5. É preciso aumentar o montante de recursos necessários ao investimento, à manutenção de redes físicas,
aquisição e reparo de equipamentos e qualificação de pessoal. Além disso, uma proposta voltada para ampliar a
autonomia da gestão deve vir acompanhada de maior grau de responsabilização dos dirigentes. O que implica a
observância de um duplo compromisso: dotar o gestor de poder para, dentro das regras definidas pelo Estado,
contratar e demitir pessoal e realizar compras e investimentos em obras e equipamentos e, avaliar, de maneira
sistemática, a execução das metas definidas pelas instâncias de controle social, pactuação e gestão do SUS.
6. O desafio é estabelecer, no âmbito da administração pública, um modelo que a um só tempo outorgue autono-
mia de gestão das unidades hospitalares e fortaleça a coordenação das redes de serviços de saúde, nas quais se
inscrevem essas unidades, e que, ao mesmo tempo, contemple a instauração de um sistema de responsabilização de
seus dirigentes por resultados alcançados, coerentes com os princípios do SUS.
7. A complexidade e as tensões envolvidas com o tema requerem a convocação de amplo debate com a sociedade
civil, organizada em todos os níveis. Para articular esforços em torno das reais mudanças, é imprescindível contar
com todos os setores e segmentos que, ao longo de quase duas décadas, defenderam com tenacidade o SUS. A fratura
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DOCUMENTOS / DOCUMENTS
entre os propositores das mudanças e as entidades de representação dos servidores públicos é indesejável e deve ser
evitada. Trata-se de atualizar, para o enfrentamento dos novos desafios, entre os quais a mudança do modelo de
gestão, a ampla coalizão que logrou resistir ao desmonte do SUS por mais de duas décadas.
8. As dimensões do Projeto de Fundações Estatais, tais como: 1) a adequação jurídico-legal de seu formato aos
objetivos propostos; 2) os custos atuais dos estabelecimentos públicos, os custos de transição, os custos previstos
para a operação das unidades pelas fundações e as repercussões orçamentárias da alteração do modelo; 3) a
definição dos papéis do controle social e instâncias de gestão do SUS, dada a responsabilização dessas unidades
pela cobertura de populações-território definidas; 4) a permeabilidade do modelo à necessidade de incentivar a
capacitação, a dedicação exclusiva, a remuneração adequada e o compromisso dos servidores públicos com o SUS,
requerem o debate com as mais diversas entidades da sociedade civil e com representante do Legislativo, do Judici-
ário e do Ministério Público.
CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE (CEBES)
13 de junho de 2007
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, 385-396, set./dez. 2005 385
DOCUMENTOS / DOCUMENTS
O SUS pra valer: universal, humanizado e de qualidade1
An Effective Unified Health System: universal, humanized and of high quality
Neste ano, mais uma vez a população brasileira vai ser chamada escolher seus dirigentes, reafirmando novamen-
te a democracia eleitoral. No entanto, este é o momento de transitarmos desde uma democracia eleitoral a um
verdadeiro sistema democrático, o que só existirá quando forem apresentadas opções concretas de radicalização do
processo de desenvolvimento nacional. Isso significa um padrão de desenvolvimento que coloque como objetivos
centrais o investimento em um crescimento autônomo e soberano, voltado para a geração de emprego, a distribuição
de renda e a garantia dos direitos de cidadania.
A estabilidade da economia nacional tem sido a principal preocupação dos últimos governos, com resultados
positivos em relação ao controle inflacionário e ao manejo da dívida. Estes foram fruto tanto de políticas públicas
que abriram novos mercados para exportações, reduziram a dívida externa atrelada à variação cambial e alongaram
os prazos de seu pagamento, quanto do dinamismo do setor produtivo nacional, que conseguiu se reciclar e tornar-
se competitivo no mercado internacional.
No entanto, os governos tornaram-se prisioneiros dos instrumentos de sua política monetária, o que acarretou a
consolidação de um padrão de capitalismo financeiro que, apesar de dinâmico e inserido na economia globalizada e
no comércio internacional, produz e reproduz a concentração da renda. Isso se dá, principalmente, pela manutenção
de taxas elevadíssimas de juros, drenando as riquezas produzidas pela população para o Estado, por meio da
elevação incessante da carga tributária, e pelo Estado para o setor financeiro nacional e internacional, com o
pagamento de juros.
Esse padrão é o resultado da política neoliberal implantada desde a década de 90, com conseqüências irreversí-
veis e/ou altamente deletérias para a sociedade, face à efetuada transferência de responsabilidades governamentais
e do patrimônio público para mãos privadas, ao desmantelamento da inteligência e das carreiras do Estado, às
restrições orçamentárias para as políticas sociais universais e à ameaça permanente de desvinculação das receitas
constitucionais a elas destinadas.
A população brasileira está cada vez mais consciente da distância entre as propostas eleitorais e as realizações
dos governantes, e exige que a democracia seja mais do que um jogo político: é preciso que a democracia se traduza
em medidas concretas, voltadas para o pleno emprego, a redução das desigualdades salariais e regionais, além de
exigir a garantia dos direitos sociais por meio da cobertura universal, humanizada e de qualidade. Mais do que
nunca, a sociedade sabe que isso só ocorrerá se aprofundarmos os mecanismos de participação, controle e transpa-
rência na gestão pública, fortalecendo os instrumentos de democracia direta, como a iniciativa popular legislativa,
os orçamentos participativos, os conselhos gestores e os fóruns deliberativos. No entanto, é preciso que esses
mecanismos deixem de ser restritos às áreas sociais e avancem para aumentar a transparência e a participação
1Documento-base em discussão com a Frente Parlamentar da Saúde.
386 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 385-396, set./dez. 2005
DOCUMENTOS / DOCUMENTS
social na definição e implementação das políticas macroeconômicas, pois sabemos que estes são fatores condicio-
nantes do êxito na democratização da política de saúde. Setorialmente, também temos que radicalizar para fazer
valer o texto constitucional. Mais do que isso, sabe-se que é possível, com as condições técnicas, políticas e econô-
micas que temos hoje no país, dar o salto que falta para termos um SUS pra valer: UNIVERSAL, HUMANIZADO, DE
QUALIDADE.
A REFORMA SANITÁRIA E O SUS
O Sistema Único de Saúde (SUS) é fruto de um longo processo deconstrução política e institucional nomeado
Reforma Sanitária, voltado para a transformação das condições de saúde e de atenção à saúde da população brasi-
leira, gestado a partir da década de 70, quando vivíamos sob a ditadura militar.
Mais do que um arranjo institucional, o processo da Reforma Sanitária brasileira é um projeto civilizatório, ou
seja, pretende produzir mudanças dos valores prevalentes na sociedade brasileira, tendo a saúde como eixo de
transformação e a solidariedade como valor estruturante. Da mesma forma, o projeto do SUS é uma política de
construção da democracia que visa à ampliação da esfera pública, à inclusão social e à redução das desigualdade.
Se a Reforma Sanitária é a expressão do nosso desejo de transformação social, sua materialização institucional no
SUS é a resultante do enfrentamento desta proposta com as contingências que se apresentaram nessa trajetória. Em
outras palavras, expressa a correlação de forças existente em uma conjuntura particular.
Originalmente uma idéia e um ideário de um grupo de intelectuais, a proposta se desenvolveu na transição
democrática, congregando entidades representativas dos gestores, profissionais da saúde e movimentos sociais que,
articulados na Plenária Nacional de Entidades de Saúde, conseguiu influenciar o processo constituinte e plasmar na
Constituição Brasileira de 1988 (CF/88) o texto aprovado
na 8a Conferência Nacional de Saúde que garante que “Saúde é um Direito de Todos e um Dever do Estado”. Em
outras palavras, a saúde passou a fazer parte dos direitos sociais da cidadania.
A partir de então, iniciou-se uma nova fase do processo da Reforma Sanitária em que, ao mesmo tempo, era
necessário prosseguir elaborando o referencial teórico e estratégico e começar a construir os métodos e instrumentos
de gestão do Sistema Único de Saúde (SUS). CEBES, ABRASCO, CONASS, o CONASEMS, a Rede UNIDA, ABRES,
AMPASA, parlamentares, entidades representadas nos Conselhos de Saúde, a Frente Parlamentar da Saúde e outros
têm liderado o debate e concentrado esforços para a concretização do projeto da Reforma Sanitária.
Ao incluir a saúde como um direito constitucional da cidadania no capítulo da Seguridade Social, avançamos na
concretização da democracia, fortalecendo a responsabilidade do Parlamento e da Justiça, cada dia mais presentes
na garantia dos direitos sociais. Mesmo coincidindo com o governo Collor e o início da implantação das propostas
neoliberais de ajuste do Estado, a construção do SUS foi realizada na contramão das políticas econômicas, configu-
rando, juntamente com a atuação do Ministério Público, alguns dos mais expressivos resultados dos preceitos
democráticos inscritos na CF/88.
No âmbito da reforma do Estado, o SUS desenvolveu um projeto de reforma democrática que se caracterizou pela
introdução de um modelo de pacto federativo baseado na descentralização do poder para os níveis subnacionais e
para a participação e controle social. Como conseqüência, ocorreu uma ousada municipalização do setor Saúde.
Foram criados Conselhos de Saúde, com caráter deliberativo, em todos os municípios e estados nos quais os re-
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, 385-396, set./dez. 2005 387
DOCUMENTOS / DOCUMENTS
presentantes dos usuários ocupam 50% dos assentos. Foram instituídos os Fundos de Saúde, substituindo os convê-
nios que regiam as relações entre as três esferas governamentais. A criação das Comissões Bipartites (CIB), nos
estados, e a Tripartite (CIT), no nível nacional, estabeleceu o espaço para o desenvolvimento de relações cooperativas
entre os entes governamentais.
O modelo de pacto federativo do SUS mostrou-se altamente adequado à realidade de uma sociedade marcada
pelas desigualdades sociais e regionais. Em um país com tais características só será democrático o poder exercido
de forma pactuada e socialmente controlada que considere as desigualdades entre grupos populacionais e regiões
como o principal problema a ser superado. Por isso, esse modelo do SUS está sendo expandido e reinterpretado para
a área de Assistência Social (SUAS) e também para a área de Segurança (SUSP).
O êxito da descentralização pode ser medido pelo seu impacto no aumento da base técnica da gestão pública em
saúde nos níveis local, regional e central. Também, a rede de atenção básica teve grande expansão, a partir de 1998,
ampliando enormemente o acesso das populações antes excluídas. O sistema universal e descentralizado permite
que o país realize um dos maiores programas públicos de imunizações do planeta e um programa de controle da
AIDS mundialmente reconhecido. Esses resultados constituem os esforços de milhares de trabalhadores da saúde, de
todos os níveis e especialidades de formação, para concretizar o direito à saúde no cotidiano da população brasilei-
ra.
Entretanto, tendo sido implementado em condições adversas, da década de 90 até hoje o SUS enfrentou obstáculos
que marcaram sua configuração como Sistema Nacional de Saúde, entre os quais os mais graves seriam: a não
implementação do preceito constitucional do Sistema de Seguridade Social com seus respectivos mecanismos de
financiamento e gestão; o drástico subfinanciamento desde a sua criação; a profunda precarização das relações,
remunerações e condições de trabalho dos trabalhadores da saúde; a insignificância de mudanças estruturantes nos
modelos de atenção à saúde e de gestão do sistema; o desenvolvimento intensivo do marketing de valores de merca-
do em detrimento das soluções que ataquem os determinantes estruturais das necessidades de saúde.
Por isso, apesar dos referidos e reconhecidos avanços na produção, produtividade e inclusão, muito pouco se
avançou na efetivação da integralidade, da igualdade, e só recentemente retomamos a questão da regionalização.
Sabemos que não será possível seguir expandindo a cobertura sem alterar os modelos de atenção e de gestão em
saúde. Tampouco a sociedade civil e os Conselhos de Saúde têm conseguido participar com efetividade e assim
influir na formulação de políticas e estratégias do SUS.
Estão inalteradas, ou crescentes, as doenças do perfil epidemiológico contemporâneo, previsíveis mas não preve-
nidas, as doenças agravadas pela ausência de intervenções oportunas e precoces, as mortes evitáveis e os altíssimos
percentuais de exames diagnósticos, tratamentos medicamentosos e encaminhamentos desnecessários e de baixa
qualidade, apesar dos conhecimentos e técnicas já disponíveis.
Por outro lado, entre os problemas enfrentados encontram-se aspectos relacionados com o funcionamento do
mercado em saúde no qual o Estado tem um papel a exercer considerando que a saúde é um bem público. Ressaltem-
se as importantes dificuldades vigentes na relação com o setor privado suplementar, seja na regulação das condições
de trabalho profissional, seja na produção de serviços e na garantia das coberturas contratadas. É também notória
a luta por democratizar o acesso a medicamentos produzidos por empresas multinacionais. Ambos os problemas
deverão ser enfrentados de forma mais vigorosa, transparente e contínua.
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Ainda está por ser reconhecido o impacto do setor Saúde – que movimenta parcela considerável do PIB na geração
de empregos, produção científica e tecnológica, aumento da produtividade do trabalho, redução do absenteísmo – na
economia brasileira. Os governos terão que deixar de falar da saúde como gasto e passar a encarar o investimento
que estão fazendo, além da melhoria da qualidade de vida da população.
No entanto, não se pode esperar que o setor Saúde seja capaz de responder à demanda crescente de atenção
provocada por uma sociedade desigual, injusta e cada dia mais violenta, cuja sociabilidade se encontra rompida e
na qual o outro é visto como uma ameaça. As conseqüências são a perda da coesão social, expressa não apenas em
milhares de mortes e internações, mas também no sofrimento mental, na insegurança e no desalento, que seriam
evitáveis onde predominassem uma cultura de paz e a justiça social.
O SUS universal, cujo melhor exemplo é o programa de AIDS –cartão de visitas de diversos governos –, convive
com avaliações negativas sobre o acesso e as condições indignas do atendimento efetuado pela rede de serviços de
saúde. A desfiguração da Seguridade Social, o adiamento sine die de direitos básicos de cidadania e o deslocamento
das políticas sociais em direção a programas de transferência de rendas, cujos efeitos redistributivos não incidem
especificamente sobre as condições que produzem os principais problemas de saúde dos brasileiros, retardam a
melhoria dos padrões de saúde e qualidade de vida. A organização do SUS deve pautar-se pela aproximação dos
indicadores de saúde, pelo menos, àqueles verificados na economia. É imprescindível ao desenvolvimento alcançar
padrões de saúde compatíveis com o progresso científico-tecnológico, cultural e político.
Os impasses antepostos ao SUS universal, humanizado e de qualidade exigem a reposição do usuário-cidadão
como o centro das formulações e operacionalização das políticas e ações de saúde. É essa a premissa que orienta a
reinvenção de modelos e alternativas de gestão para superar a crise dos sistemas públicos. A subordinação dos
problemas e necessidades de saúde da população a interesses econômicos das indústrias de equipamentos e insu-
mos, de prestadores de serviços, de burocracias governamentais ou corporativos, por vezes opostos aos da garantia
da atenção oportuna respeitosa, reflete-se no cotidiano da assistência à saúde. Os brasileiros em busca de assistên-
cia e cuidados à saúde na rede do SUS são submetidos a filas que se formam desde a madrugada para pegar senhas,
passam por triagens, aguardam horas em locais de espera, freqüentemente desconfortáveis, e necessitam, quase
sempre, percorrer mais de um estabelecimento nos casos exigentes de realização de exames e obtenção de medica-
mentos. A lógica que deve orientar a organização dos serviços de atenção e atuação dos profissionais da saúde é a
de tornar mais fácil a vida do cidadão usuário, no usufruto de seus direitos. Trata-se de organizar o SUS em torno
dos preceitos da promoção da saúde, do acolhimento, dos direitos à decisão sobre alternativas terapêuticas, dos
compromissos de amenizar o desconforto e o sofrimento dos que necessitam assistência e cuidados.
ESTRATÉGIAS PROGRAMÁTICASRomper o insulamento do setor Saúde
É sabido que melhores níveis de saúde não serão alcançados se as transformações não ultrapassarem o setor
Saúde, envolvendo outras áreas igualmente comprometidas com as necessidades sociais e com os direitos de cida-
dania (Previdência Social, Assistência Social, Educação, Segurança Alimentar, Habitação, Urbanização, Saneamento
e Meio Ambiente, Segurança Pública, Emprego e Renda).
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Para tanto, é necessário que os três níveis de governo deixem de operar em termos exclusivamente setoriais e
passem a priorizar o desenvolvimento social de forma integrada e integral. O governo nacional, o Congresso e a
Justiça têm que se responsabilizar por implementar os mecanismos que garantam a existência real da Seguridade
Social, com a implantação do orçamento deste setor, a convocação da Conferência Nacional da Seguridade e a
criação de fóruns de deliberação conjunta da Previdência, Saúde e Assistência Social.
Os governos locais e regionais precisam romper modelos ultrapassados de gestão e passar a atuar de forma
transversal, criando instâncias intersetoriais de políticas, implantando a gestão em redes e garantindo maior eficácia
e efetividade na redistribuição da renda e no acesso aos benefícios sociais.
É preciso construir canais de interação com a mídia que nos permitam divulgar nossa concepção ampliada de
saúde. Um esforço nesse sentido deve ser realizado pelos gestores, parlamentares, acadêmicos e militantes da
Reforma Sanitária para retomar espaços de debate, divulgação e difusão de concepções sobre saúde e criar novas
possibilidades de comunicação.
No âmbito internacional devem ser intensificados os esforços para ampliar o intercâmbio de experiências e o
debate em torno da defesa dos sistemas universais. A divulgação e o debate sobre o SUS, considerado um modelo
avançado de sistema de saúde na América Latina, nos fóruns internacionais contribui para sua consolidação e para
o protagonismo da luta por reformas do Estado democráticas e inclusivas.
Estabelecer responsabilidades sanitárias e direitos dos cidadãos usuários
As necessidades que a população apresenta de ações e serviços de saúde, preventivos e curativos, de acordo com
a realidade de cada região e microrregião, com base nas características demográficas, socioeconômicas e epidemi-
ológicas da população, devem presidir o planejamento estratégico de cada município e a programação local das
atividades. Sua divulgação deverá ser feita para a população usuária e suas entidades representativas de maneira a
contribuir para a formação da consciência das necessidades e dos direitos, e a permitir o controle popular e represen-
tativo.
A responsabilidade sanitária de cada ente governamental, de cada serviço e dos trabalhadores da saúde deve ser
normalizada e regulamentada, assim como os direitos e deveres do cidadão usuário do SUS. A qualidade dos
serviços prestados deve ser cobrada de cada um dos profissionais e dirigentes do setor. Mesmo sabendo que temos
condições muito limitadas em termos financeiros e operacionais, os gestores e profissionais deverão ser responsabi-
lizados por prestar o melhor cuidado possível dentro dessas condições. Isso só se tornará realidade quando metas
forem estabelecidas, parâmetros definidos e se a população conhecer e compartilhar estas metas, assim como puder
dispor de mecanismos efetivos de cobrança.
A responsabilidade sanitária deve ser exercida plenamente nos locais de trabalho, garantindo condições de produ-
ção que preservem a saúde do trabalhador e evitem os acidentes de trabalho.
Intensificar a participação e controle social
Os Conselhos e as Conferências municipais, estaduais e nacional de Saúde são as modalidades de participação
fortemente disseminadas no país, fazendo parte da dinâmica política da área da saúde. Entretanto, é necessário
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revitalizar tais fóruns no sentido de viabilizar relações sociais mais igualitárias entre os atores sociais que deles
participam. É sabido que principalmente gestores, mas, em menor medida, também prestadores de serviços e profis-
sionais da saúde dispõem de maiores recursos de poder do que usuários e controlam a agenda de debates desses
fóruns. É necessário ampliar a capacitação de conselheiros e democratizar a formulação da agenda da saúde.
Esforços devem ser realizados no sentido de aumentar a representatividade dos integrantes dos Conselhos, incenti-
vando uma relação mais constante e transparente com seus representados. Também, deverá ser avaliada a efetivida-
de do papel deliberativo dos Conselhos na formulação e acompanhamento das políticas de saúdepara superar os
obstáculos antepostos de diferentes naturezas.
Por outro lado, um conjunto de mecanismos inovadores de participação e de controle social não se generalizou no
sistema. É o caso dos Conselhos locais de unidades ambulatoriais e de unidades hospitalares. Apenas as unidades
próprias do SUS, nas três esferas de governo, têm apresentado experiências nesse sentido, sendo que na área hospi-
talar elas são dramaticamente escassas. Outros mecanismos de participação individual, tais como ouvidorias,
disque saúde, pesquisas sistemáticas de satisfação de usuários, carecem também de generalização no contexto do
sistema.
Unidades de serviços privadas que são financiadas com recursos públicos não dispõem de mecanismos de parti-
cipação ou de controle social, além dos exercidos pelo Ministério da Saúde ou Ministério Público. É necessário
definir quais seriam os mecanismos básicos indispensáveis para a democratização da gestão do sistema e constituir
instrumentos legais e administrativos que generalizem o funcionamento desses mecanismos em unidades de saúde
próprias e financiadas pelo SUS, levando em conta que a prestação de serviços de saúde, especialmente quando
financiados por recursos públicos, é uma concessão que o Poder Executivo faz para o exercício de um dever de
Estado.
Gestores do SUS, Ministério Público e Poder Legislativo precisam criar espaços para viabilizar ações cooperativas
e coordenadas. Compete ao Ministério da Saúde induzir a coordenação horizontal dessas instâncias estatais.
Aumentar a cobertura e a resolutividade e mudar radicalmente o modelo de atenção à saúde
A sustentabilidade político-econômica do SUS e sua legitimidade dependem da promoção de mudança radical do
modelo de atenção, pois a qualidade e a resolutividade das ações e serviços de saúde possibilitarão ao SUS tornar-
se patrimônio nacional e ser o local preferencial de atendimento para todos os segmentos sociais.
Uma mudança radical do modelo de atenção à saúde envolve não apenas priorizar a atenção primária e retirar do
centro do modelo o papel do hospital e das especialidades, mas, principalmente, concentrar-se no usuário-cidadão
como um ser humano integral, abandonando a fragmentação do cuidado que transforma as pessoas em órgãos,
sistemas ou pedaços de gente doentes. As práticas interativas, mais holísticas, devem estar disponíveis como alter-
nativas de cuidado à saúde. A humanização do cuidado, que envolve desde o respeito na recepção e no atendimento
até a limpeza e conforto dos ambientes dos serviços de saúde, deve orientar todas as intervenções.
A Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde deve ser amplamente divulgada e sua implantação acompanhada
pelos órgãos gestores e de controle social, visando à sua avaliação e a eventuais aprimoramentos. E os servidores
públicos devem estar comprometidos com o resultado de suas ações no cuidado das pessoas.
Para ampliar o acesso e garantir a cobertura de ações e cuidados à saúde, é necessário expandir e organizar redes
de serviços de saúde articuladas. As unidades básicas, acolhedoras, de qualidade e resolutivas nas suas ações
integrais, preventivas e curativas, baseadas nas necessidades e demandas da população, devem articular-se aos
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demais níveis do sistema local de saúde com garantias de referência e contra-referência. Nesse sentido, é imprescin-
dível articular atividades de saúde coletiva com ações de assistência clínica nos serviços de atenção básica, estabe-
lecer esses serviços como porta de entrada dos sistemas locais de saúde, equipar e expandir os serviços de urgência
e emergência e de referência, implantar centrais de marcação de consultas, exames e internação e o Cartão SUS como
instrumentos de garantia de acesso e atendimento.
A formação de microrregiões ou consórcios sob responsabilidade dos municípios e dos estados deve pautar-se
pela coordenação, programação e oferta de recursos para promover, prevenir e tratar problemas de saúde. A ampli-
ação e a garantia de investimentos na estruturação de redes articuladas e territorializadas são essenciais para
conferir mais qualidade e resolutividade aos serviços prestados.
A execução de ações de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica, deve se traduzir na garantia do
acesso universal da como no controle da segurança, eficácia e qualidade dos produtos e na promoção do seu uso
racional. A política nacional de medicamentos não se restringe à aquisição e à distribuição; envolve todas as
atividades relacionadas à garantia do acesso da população àqueles essenciais, incluindo investimentos e incentivos
em desenvolvimento científico e tecnológico e produção.
Formar e valorizar os trabalhadores da saúde
Deve-se enfrentar o desafio de superar as barreiras legais que dificultam a combinação das imprescindíveis
agilidade e eficiência da gestão com a vinculação regular dos trabalhadores ao SUS, de modo a evitar não apenas a
burocratização mas também a precarização, privatização e terceirização das relações de trabalho do SUS. Trata-se
de enfrentar esses problemas inadiáveis com a formulação e implementação de políticas articuladas entre os setores
da saúde e educação, para assegurar que a oferta (distribuição e abertura de cursos e programas e o respectivo
número de vagas) de formação técnica, de graduação e de especialização na área da saúde corresponda às necessi-
dades do SUS e da população, superando os desequilíbrios regionais e intra-regionais e as determinações do merca-
do. A par das políticas de corte nacional, é preciso responsabilizar as três esferas, de acordo com suas competências
e possibilidades, pela efetivação de políticas que favoreçam a interiorização do trabalho em saúde com qualidade,
bem como assegurar a autonomia dos municípios, DF e estados para criar mecanismos de atração e fixação de
equipes de saúde em todos os níveis do sistema.
Medidas voltadas para a formação, a educação permanente e a fixação das equipes de profissionais da saúde
com base nas necessidades e direitos da população têm papel crucial na implementação do conjunto dos princípios
e diretrizes do SUS e do novo modelo de atenção à saúde e de gestão.
A redução dos cargos de confiança para a gestão em saúde, nas três esferas de governo, e sua substituição por
quadros técnicos e administrativos de carreira são necessárias à estabilização e qualificação da gestão do SUS. Por
outro lado, trata-se de um meio de evitar que a gestão da saúde seja usada como moeda para garantia de governa-
bilidade. O provimento de cargos de direção deve obedecer a critérios objetivos e compatíveis com os requerimentos
de capacitação e habilitação específicos.
Esse conjunto de proposições concentra-se em torno da adoção de políticas públicas de gestão do trabalho (mu-
nicipais, estaduais e federais) que considerem as diversidades regionais, assegurem o caráter público do ingresso e
estabeleçam carreiras no SUS, que possibilitem a progressão associada não somente ao tempo de trabalho e quali-
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ficação, mas também aos resultados do trabalho e ao compromisso dos profissionais e das equipes com a melhoria
da saúde da população.
Aprofundar o modelo de gestão
No início deste ano os gestores dos três níveis de governo pactuaram em defesa da vida, do SUS e da gestão. Por
meio desse instrumento, comprometem-se a fazer avançar a Reforma Sanitária desenvolvendo ações articuladas,
repolitizando a saúde e promovendo a cidadania. Retomou-se a ênfase na diretriz constitucional da regionalização.
Trata-se de reconhecer a autonomia das Comissões Bipartites para pactuar as estratégias da regionalização nos
estados, com base nas diretrizes nacionais acordadas na Comissão Tripartite; promover a criação de Comissões
Intergestores regionais e microrregionais; resgatar o importante papel coordenador do ente estadual e estabelecer
formas de co-gestão entre os entes federados para promover a descentralização solidária e cooperativa do sistema de
saúde. É necessário cumprir cabalmente esse acordo em prol da população brasileira.
A definição de prioridades e metas é um componente imprescindível para o planejamento efetivo e a responsabi-
lização por seu cumprimento. Para aprofundar o modelo de gestão do SUS, tanto para os serviços de administração
direta quanto para os contratados, é necessário estabelecer a coresponsabilização por meio de contratos de gestão e
de financiamento misto que estabeleçam as metas sanitárias a serem cumpridas. Isso envolve, necessariamente,
realizar uma reforma administrativa que atenda às especificidades dos princípios e das organizações do SUS e lhes
permita agilidade e eficiência de suas decisões, sob a égide da ética e da responsabilidade pública.
Todas as unidades públicas de saúde, das mais simples às mais complexas, deverão usufruir de autonomia
gerencial, desenvolver modalidades de gestão participativa, colegiada ou co-gestão, com trabalhadores da saúde e
outras representações da comunidade, e definir metas quali-quantitativas em interação com os objetivos municipais
e regionais, por meio de contratos de metas ou de gestão.
Aumentar a transparência e controle dos gastos
As decisões da política de alocação de recursos e os critérios dos gastos devem ser transparentes e passíveis de
controle pela população, e visar ao acesso igualitário aos serviços de qualidade em todos os níveis do sistema.
As compras realizadas pelo setor público deverão ser feitas de forma a impedir a corrupção em todos as esferas
e níveis governamentais, utilizando os instrumentos tecnológicos disponíveis para realizar pregões que possam ser
acompanhados pelo público. A definição de parâmetros técnicos e financeiros deve permitir que a sociedade e
autoridades públicas possam acompanhar e monitorar os gastos governamentais.
Um trabalho mais afinado com a Procuradoria Geral da União e com os Tribunais de Contas será necessário para
criar mecanismos que impeçam os tipos de corrupção já detectados na área da saúde.
Torna-se necessário criar uma instância que congregue gestores públicos, Procuradoria, Tribunais, Ministério
Público, Legislativo e organizações da sociedade civil para desenvolver políticas e instrumentos efetivos de combate
a toda forma de corrupção, prevaricação ou malversação dos recursos públicos em saúde.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, 385-396, set./dez. 2005 393
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Ampliar a capacidade de regulação do Estado
As diversas áreas do setor Saúde – e suas derivações para setores desde a Educação até a mídia – integram o
complexo produtivo da saúde. Sob ta acepção resgata-se o significado econômico e produtivo das ações e produtos
ligados ao atendimento em saúde, considerando a estreita relação entre dois pólos: (1) um setor produtivo industrial
de bens como vacinas e soros, medicamentos e fármacos, sangue e hemoderivados, reagentes e kits diagnósticos,
equipamentos médicos e cirúrgicos; (2) um outro, da produção de ações de saúde pelos agentes públicos e privados
(filantrópicos e lucrativos).
É inescapável admitir que o não reconhecimento da influência dos fatores de mercado na saúde elimina um
importante elemento de análise e de formulação das políticas, especialmente na definição de prioridades de incorpo-
ração de inovações (produtos e processos) e na importância da influência dos agentes econômicos sobre a oferta de
serviços de saúde. Dado que a saúde é um bem de relevância pública, as relações público-privado devem ser objeto
permanente de regulação estatal, no sentido da preservação dos direitos dos usuários do SUS e dos consumidores de
planos e seguros de saúde. Além disso, o poder público deve atuar na regulação da reorientação das demandas dos
planos e seguros para os serviços especializados do SUS e na eliminação das interferências das empresas privadas
no sistema público.
A fragmentação e a segmentação vigentes no sistema nacional de saúde exigem a explicitação do montante de
recursos públicos envolvidos com o financiamento de planos e seguros de saúde, bem como dos interesses conflitan-
tes derivados da acumulação de postos gerenciais e administrativos por profissionais da saúde com “dupla militân-
cia”.
Aprofundar a construção de convivência das instituições públicas e privadas, em função das necessidades e
direitos da população usuária e sob a égide do princípio constitucional que estabelece o caráter complementar dos
serviços privados de saúde, é uma tarefa inadiável. Os serviços privados que integram o SUS devem pautar suas
atividades como se públicos fossem. Adicionalmente, é preciso induzir as empresas privadas prestadoras de servi-
ços, as que comercializam planos de saúde, bem como as empresas empregadoras que ofertam planos de saúde para
seus empregados, a participaremdecisivamente dos esforços para a construção de sistemas regionalizados, voltados
para o atendimento das necessidades e direitos da população.
A instituição de regras claras sobre o “trânsito privado-público de pacientes” deve fortalecer a rede de serviços do
SUS como a “única porta de entrada” para a admissão nos serviços públicos, quer para o atendimento de pacientes
de empresas de planos e seguros de saúde, quer para o acesso a medicamentos.
Para enfrentar a tendência à segmentação é preciso convocar a entidades sindicais, empresariais e de profissio-
nais da saúde para empreender novos compromissos em torno da saúde. O estabelecimento de tabelas de remunera-
ção de procedimentos que sejam compatíveis com os gastos dos profissionais e dos serviços e assegurem a qualida-
de da assistência prestada é essencial. A institucionalização do plano de saúde universal para os servidores civis da
esfera federal representaria a cristalização da descrença do próprio governo na universalização da saúde. Os recur-
sos envolvidos e programados para financiar os planos de saúde de funcionários públicos devem ser canalizados
para melhorar a qualidade de atenção à saúde nos serviços do SUS.
A adoção de critérios de ingresso nos serviços de saúde vinculados ao SUS baseados nas condições clínicas e
necessidades de saúde, e não na capacidade de pagamento, e a exigência da observância dos mesmos padrões
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assistenciais de casos com diagnóstico similar para todos os brasileiros são essenciais ao reordenamento das rela-
ções entre o público e o privado e à garantia do acesso e da qualidade da assistência.
Superar a insegurança e o subfinanciamento
As políticas sociais encontram-se permanentemente ameaçadas de terem seus recursos ainda mais reduzidos,
gerando uma situação de insegurança que impede a efetividade e eficácia de seu planejamento e execução.
A forma mais corriqueira, embora muito prejudicial à gestão social, é o permanente contingenciamento dos
orçamentos públicos para atender aos ditames do superávit primário estabelecido pela área econômica, ou até
mesmo superá-lo. Além de prejudicial, essa prática corrói a própria democracia, ao transformar o orçamento público
em uma peça de ficção.
Outra maneira de subverter os ditames constitucionais sobre os recursos a serem alocados na área social é a
introdução constante de outras despesas de programas governamentais considerados prioritários dentro dos orça-
mentos para os quais há recursos constitucionais definidos, como o da Saúde. Isso ocorre em função da não regula-
mentação da E.C. nº 29.
Uma outra maneira de retirar recursos da área social que tem sido reiteradamente usada e prorrogada é a DRU –
Desvinculação das Receitas da União, que, a pretexto de dar maior flexibilidade ao governo central, retira 20% dos
recursos constitucionalmente destinados à área social. A DRU está em vigor até 2007 e temos que exigir que o
governo, desde agora, crie mecanismos substitutivos dessa fonte espúria. O momento das eleições é importante para
pactuarmos com os candidatos a eliminação e substituição da DRU.
Em diferentes momentos, setores governamentais ou elites econômicas da sociedade civil têm se posicionado em
relação à necessidade de dar ainda maior flexibilidade orçamentária ao governo, desvinculando totalmente as recei-
tas constitucionais para a área social. Apoiados por organismos internacionais, são, a cada momento, lançados
balões de ensaio nesse sentido. A alegação é de que esses recursos são necessários para zerar o déficit nominal,
quando, então, sobrarão recursos para a área social. A sociedade brasileira conhece essa lógica e sabe que não
existe flexibilidade para o pagamento de juros da dívida e que esses recursos desviados das suas vinculações
constitucionais jamais retornariam. Por isso não permitiremos a desvinculação, e este compromisso deverá ser
assumido publicamente pelos candidatos comprometidos com a democracia social.
Outra ameaça constante é relativa à redução ou eliminação de benefícios sociais, vistos como causadores do
alegado desequilíbrio financeiro da Previdência Social. É preciso que este debate seja feito de forma séria e não como
sempre, sob a ameaça da espada do déficit e crise. É preciso fazer um debate aberto e transparente: há dados que
questionam o déficit, apontando a apropriação das receitas sociais para outros fins e a evasão de contribuições. O
debate sobre os benefícios previdenciários não pode ser restrito à dimensão contábil, prescindindo do princípio maior
que subordina a Previdência aos objetivos da ordem social de garantia do bem-estar e da justiça social. Ao invés de
desvincular os benefícios previdenciários do salário mínimo, é preciso desvincular os benefícios sociais da capaci-
dade contributiva de cada indivíduo. Só assim, com a socialização dos custos da proteção social, estaremos permi-
tindo que se realize uma redistribuição de renda via políticas sociais que garantem direitos universais. Para tanto,
é necessário rever o enfoque desta discussão, passando a buscar fontes que financiem a inclusão previdenciária de
milhões de trabalhadoras e trabalhadores cujo trabalho ainda não tem amparo legal.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, 385-396, set./dez. 2005 395
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Em relação ao financiamento da saúde, observamos:
* Acentuada retração da contrapartida federal, quando cotejada com o crescimento das contrapartidas estaduais
e municipais, tanto em termos das porcentagens no total do financiamento público como em dólares per capita.
Ainda que os recursos destinados à saúde representem um percentual considerado alto no orçamento, ele é totalmen-
te insuficiente face às necessidades da população.
* O Brasil gasta muito pouco com saúde. O total do financiamento público vem oscilando entre 125 e 150 dólares
per capita ao ano, enquanto no Canadá, países europeus, Japão, Austrália e outros, a média do financiamento
público é de US$ 1.400,00 per capita, na Argentina é US$ 362,00 e no Uruguai, US$ 304,00.
* O Projeto de Lei Complementar nº 01/2003, que regulamenta a E.C. nº 29/2000, foi exaustivamente debatido e
aprimorado pelas entidades da sociedade civil, representativas dos usuários, dos membros dos Tribunais de Contas
e do Ministério Público, dos gestores nas três esferas de governo, dos profissionais da saúde, dos prestadores de
serviços. Esse debate se deu nas Conferências e Conselhos de Saúde, por mais de dois anos, e finalmente nas
Comissões da Seguridade Social e Família, de Finanças e Tributação e da Constituição, Justiça e Cidadania da
Câmara dos Deputados. É preciso, pois, que governo e oposição se comprometam a aprová-lo.
* Fruto desse consenso é a proposta de estabelecer a contrapartida federal para a Saúde em 10% da receita bruta
da União, o que corresponde a um acréscimo de aproximadamente R$ 10 bilhões, ou US$ 30,00 per capita, ao ano.
Ainda que gritantemente insuficiente e aquém das referências internacionais citadas, significa um importante passo,
porque atrela essa contrapartida a uma base orçamentária, da mesma maneira com que foi definida para os estados
e municípios, dispõe sobre o que são serviços de saúde financiados pelo SUS e o que não são serviços de saúde, e
orienta os gastos e as prestações de contas com base no referencial da Eqüidade, Integralidade e Eficiência.
A SAÚDE UNIVERSAL, HUMANIZADA E DE QUALIDADE COMO POLÍTICA DE ESTADO
Essas estratégias programáticas representam as pontes a serem construídas para fazermos a transição entre o
SUS existente, reconhecendo-se seus avanços e limites, e para o SUS pra valer: Universal, Humanizado e de Qualida-
de. Hoje, é plenamente factível e necessário ampliar a garantia do direito à saúde.
As eleições que se aproximam repõem a saúde na agenda de prioridades dos candidatos e dos partidos. Nossa
intenção é abrir este debate de forma ampla, com todos os partidos políticos, de forma a alcançar um lugar de
destaque de nossas propostas em seus programas. A luta pela democratização da saúde sempre foi suprapartidária
e permitiu a construção de uma ampla e sólida coalizão reformadora que tem dado sustentação ao processo da
Reforma Sanitária.
Uma vez mais, estas forças comprometidas com o avanço da democracia por meio da implementação da Reforma
Sanitária reafirmam a necessidade de que os postulantes aos cargos eletivos se comprometam com o programa
expresso nas linhas programáticas acima enunciadas. Elas foram fruto de uma ampla discussão entre várias entida-
des, e seu delineamento nasceu da experiência acumulada pelo movimento da Reforma Sanitária em todas as suas
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frentes de trabalho: nas organizações e entidades de profissionais e usuários, nas universidades, no Executivo, no
Legislativo, no Judiciário etc.
Sabemos que é possível, hoje, atender a população em um SUS pra valer: universal, humanizado e de qualidade.
Para chegarmos a isso é necessária a firme vontade política dos nossos líderes de assumir o compromisso social com
nossas propostas. Temos certeza que, dessa forma, estaremos todos construindo uma sociedade mais justa e demo-
crática, o que transcende a mera perspectiva setorial, possibilitando o avanço em direção a uma sociedade inclusiva
na qual predomine a cultura da paz. Este é um momento crucial para transitarmos do SUS atual ao SUS pra valer:
não serão toleradas omissões.
Rio de Janeiro, julho de 2006.
Abrasco - www.abrasco.org.br
cebes - cebes@ensp.fiocruz.br
Abres - www.abres.fea.usp.br
Rede UNIDA - www.redeunida.org.br
Ampasa - www.ampasa.org.br
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, 397-399, set./dez. 2005 397
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A Identidade do CEBES1
The identity of CEBES
Reafirmamos os princípios expressos na Plataforma da Refundação do CEBES, e entendemos que este é um
processo que apenas iniciamos, mas que já nos reposiciona na cena política de forma a poder participar da constru-
ção coletiva de uma direção política para a saúde e para a democracia brasileira. Entendemos que a identidade
coletiva que nos agrega é a de uma instituição comprometida com o socialismo e, portanto com a radicalização da
democracia, o que requer participar da construção de uma nova correlação de forças na sociedade brasileira e
também mundial, que permita um real deslocamento do poder em direção aos setores dominados e excluídos.
Entendemos que a democracia eleitoral e a defesa do estado de direito são imprescindíveis para permitir a
aglutinação de forças e a construção de novos sujeitos políticos. No entanto, nossa perspectiva socialista vai além
da democracia formal e requer uma verdadeira transformação nas relações de poder, o que não ocorreu com a
mudança de regime político. O CEBES tem suas origens no movimento social de luta contra a ditadura e pela
democracia, e seu lugar sempre foi o de pensar esta construção social a partir da democratização da saúde. Não
sendo uma ONG nem um movimento social típicos, o CEBES se identificou sempre com um lugar da sociedade civil
de onde se possa pensar criticamente a saúde e a sociedade brasileira e, desde esta análise de conjuntura, construir
estratégias políticas transformadoras, difundi-las e buscar agrupar forças sociais capazes de impulsionar este pro-
cesso de transformação.
Para tanto, conta com pouco recursos, não sendo um partido ou um grupo acadêmico de produção de conheci-
mentos, mas considera fundamental usar os conhecimentos e saberes para demarcar este lugar de um pensamento
de esquerda, que tensione o espectro político mais tradicional e cobre mudanças institucionais e societárias. Por não
ser um grupo de origem corporativa o discurso do CEBES deve cobrar a universalidade, reivindicando um projeto
coletivo de reforma sanitária que transcenda interesses, que, embora justos são particularistas, exigindo a transfor-
mação da democracia atual em uma democracia substantiva.
AUTONOMIA E INSERÇÃO
O desafio atual é o de manter-se como uma organização autônoma, desvinculada do Estado, ao mesmo tempo em
que buscamos inserir nossas bandeiras na arena política, conquistando aliados dentro e fora do Estado.
11ª. Reunião de Planejamento Estratégico no Sítio Pedras Negras em 28 / 04 / 2007. PARTICIPANTES: Ana Costa; Ary Carvalho de Miranda; AssisMafort; Francisco Braga; Fuad Zamot (consultor); Lenaura Lobato; Ligia Bahia; Lígia Giovanella; Luciana Sucupira; Luiz Neves; Maria GabrielaMonteiro; Mario Scheffer; Paulo Amarante; e Sonia Fleury.
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DOCUMENTOS / DOCUMENTS
A preservação da autonomia necessária é difícil, na medida em que necessitamos de apoios políticos e materiais
de órgãos estatais, para estruturarmos uma base material minimamente eficiente e que assegure a eficácia de
nossas ações. No entanto, consideramos que esta relação de apoio não pode se configurar como dependência política
e temos convicção que seremos capazes de enfrentar este desafio.
Por outro lado, é importante reconhecer que nossos companheiros alcançaram chegar aos núcleos decisórios
governamentais e que é nosso dever apoiá-los e criar condições de sustentabilidade das medidas políticas que
consolidem a reforma sanitária. Mas, por mantermos a autonomia entre sociedade civil e Estado, temos que enfren-
tar as dificuldades inerentes à permanente postura crítica que é necessária para fazer a reforma avançar.
As condições para tanto são mais favoráveis agora que em outros momentos anteriores, considerando o fato de
termos como dirigente do Ministério da Saúde um companheiro que coloca nossas posições no seio do debate
político. Em pouco tempo, sua gestão foi capaz de reinserir a saúde como tema da sociedade (aborto, bebida,
prevenção), do governo (soberania em relação a multinacionais, separação Igreja e Estado, saúde como investimen-
to) e em relação ao mercado (patentes, preços de monopólio), para mencionar alguns aspectos. Somos solidários e
apoiamos estas iniciativas, mas reconhecemos que os limites para algumas das propostas encaminhadas serão
dados pela base de sustentação e orientação ideológica e econômica deste governo.
Por isto, nossa autonomia será imprescindível para inserir nossos interesses e também para cobrar posições
governamentais em relação a pontos nevrálgicos, nos quais a universalização da saúde seja ameaçada por medidas
econômicas que sigam retirando recursos da saúde – como a preservação da DRU, seja por medidas reformadoras
que signifiquem redução de benefícios para a população mais pobre – como algumas medidas propostas na reforma
previdenciária -, seja ainda pela ausência de uma proposta coerente de reforma do Estado na qual se defina uma
política para o funcionalismo público que assegure carreiras dignas e combata clientelismo, corrupção e troca de
favores , em detrimento da saúde da população.
Nossa capacidade de inserção de nossas estratégias na arena pública não depende de nossa adesão ao governo,
mas de nossa capacidade de fortalecer alianças na sociedade civil que garantam sustentabilidade às propostas que
defendemos.
Neste sentido, vemos como imprescindível nossa articulação mais orgânica com a rede de organizações, movi-
mentos e partidos políticos que possam revitalizar a sociedade civil em torno das questões sanitárias.
ESTRATEGIAS: UMA PRIMEIRA APROXIMAÇÃO
Consideramos que só poderemos ganhar o apoio da população para a defesa do sistema de saúde se conseguir-
mos que ele funcione pra valer, de forma humanizada e sem discriminações, com ações que sejam eficazes e efetivas
no acesso e utilização dos serviços. Portanto, temos claro que a construção, cotidiana e permanente, de um SUS de
qualidade é nosso ponto focal. Desde esta trincheira podemos lutar para que a democracia seja aprofundada. Enfren-
tar a desigualdade no acesso e atendimento, a drenagem de recursos públicos para o setor privado, a necessidade de
melhorar a qualidade do atendimento e de colocar o usuário cidadão como o centro do SUS; esta é nossa bandeira.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, 397-399, set./dez. 2005 399
DOCUMENTOS / DOCUMENTS
Para tanto, devemos manter o instrumento permanente da análise de conjuntura política, por meio do qual
podemos analisar o campo de lutas, os atores e suas arenas e estratégias. Desta forma, estaremos em melhores
condições para definir nossas alianças, escalonar prioridades em relação a manifestações e participações do CEBES,
não permitir que a organização seja usada para apoio a causas que sejam ou particulares ou confrontem com nosso
ideário, impedir o aparelhamento político e partidário dos núcleos e espaços do CEBES, atuar em conjunto com
outras forças sociais para dar a direção política da saúde na perspectiva da radicalização da reforma e da democra-
cia.
Em cada espaço que ocuparmos temos a obrigação de exercer a crítica a instituições e normas que, mesmo que
tenhamos sido favoráveis a sua criação, demonstrem sua inoperância ou desvirtuamento na conjuntura atual.
Revisitar os mecanismos decisores e participativos, repensar as relações entre instâncias governamentais, discutir a
articulação da saúde com outras políticas públicas, em especial na perspectiva de efetivação da Seguridade Social,
são nossos objetivos estratégicos.
Particularmente, neste ano devemos dar prioridade a nossa participação no Congresso da ABRASCO, ALAMES e
IHPS, marcando nossa presença política, divulgando nossa plataforma e estratégia e construindo uma rede de
alianças sólidas com outros atores sociais.Para tanto, precisamos fortalecer nossa linha de comunicação, com a
retomada da Revista Saúde em Debate, da coleção de livros, fortalecimento do boletim e desenvolvimento de uma
página eletrônica que permita nossa interação com os associados e simpatizantes.
Outra ação estratégica se concentra na discussão sobre a metodologia e o temário da XIII Conferência Nacional de
Saúde. Vamos discutir o que ocorreu até aqui com este poderoso instrumento de formação da vontade política, com
vistas a seu aprimoramento e melhoria da sua eficácia.
Este são os compromissos atuais do CEBES, aos quais se ajunta a necessidade de resgatar a história da reforma
sanitária, desde a perspectiva das lutas da sociedade civil organizada, da qual o CEBES é partícipe e detentor de um
enorme acervo que necessita resgatar e divulgar. Consideramos que estamos no caminho correto pois estamos sendo
capazes de desenvolver um trabalho de equipe, criar espaços de interlocução com outro atores, participar nas várias
frentes onde a sociedade civil se representa – como o Conselho Nacional de Saúde, aglutinar pessoas de diferentes
formações, posições e gerações em torno do debate da conjuntura, nos posicionarmos em relação a temas controver-
sos, enfim ampliar a esfera pública comunicacional no campo da saúde.
Estamos certos que este é apenas um começo e que muito mais poderá e deverá ser feito, na medida em que
formos capazes de mobilizar mais energias e recursos para ampliação do escopo da democracia atual.
TEMPORÃO, José Gomes
400 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 400-410, set./dez. 2005
ENTREVISTA / INTERVIEW
CEBES entrevista José Gomes Temporão, ministro da Saúde1
CEBES interviews José Gomes Temporão, the Health Minister
1 A entrevista foi gravada nos estúdios do Canal Saúde, no dia 7 de julho de 2007, cujo vídeo comporá o acervo histórico do ProjetoMemória do CEBES. Excelente oportunidade para agradecer à generosidade e à competência técnica de todos os profissionais do CanalSaúde e do Centro de Documentação da ENSP (CEDOC), que participaram da gravação. Pelo CEBES, participaram Sonia Fleury, Ligia Bahia,Francisco Braga, Luiz Antonio Neves, Lenaura Lobato e Paulo Amarante.
No ano passado, a atual Diretoria Nacional assu-miu a entidade com uma proposta que ficou co-
nhecida como ‘Refundação do CEBES’. Uma proposta quenão se restringe a nós, mas que tem como objetivo aretomada do movimento da Reforma Sanitária brasilei-ra. Afinal, em 2006, o CEBES e a revista Saúde em Deba-te completaram 30 anos, com uma contribuição indis-cutível para a construção do pensamento e das práticascríticas e transformadoras em saúde neste país. A Re-fundação é a reafirmação do projeto plural e não parti-dário do CEBES, projeto este comprometido com a cons-trução da democracia e da saúde enquanto um proces-so instituinte de permanente reinvenção da sociedade.Dentre os muitos projetos da Diretoria no contexto daRefundação, julgamos importante resgatar e preservara história do próprio CEBES, o que gostaríamos de terfeito ainda quando contávamos com a companhia deDavid Capistrano, um de seus fundadores, Eric JennerRosas, Sergio Arouca e mesmo com Eleutério Rodri-gues dentre muitos outros companheiros. Afinal, ape-sar de todas as crises, das numerosas dificuldades, fo-ram editados 71 números da Saúde em Debate e 40 daDivulgação, além de vários títulos de livros e docu-mentos.
Denominamos este projeto de ‘Memória do CEBES’ e écom muito otimismo que damos início a ele entrevis-tando o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, cebi-ano de primeira hora, presidente nacional no período1981-83, e membro da Diretoria Nacional em várias ges-tões. O ministro Temporão fala da importância do CEBES
no início de sua formação médica e política, de suasvivências como sanitarista e de suas metas e projetos,estratégias e obstáculos à frente do Ministério da Saú-de. Fala, ainda, da 13ª Conferência Nacional de Saúde edas fundações estatais de direito privado.
Mas, o melhor é ouvir tudo do próprio ministro.
Sonia Fleury – Você pode imaginar nossa satisfa-ção em recebê-lo aqui, um ministro cebiano! Com estaentrevista, inauguramos o Projeto Memória do CEBES.Fale sobre sua experiência no CEBES, e o que você achaque a mesma agregou à sua trajetória política e pro-fissional?
José Gomes Temporão – Primeiro, queria agradecero convite e manifestar minha alegria de estar aqui nes-se debate com os companheiros cebianos. Tudo come-çou quando eu estudava medicina na UFRJ. No iníciodo segundo ano, eu tinha um amigo, o Gerson, um gi-necologista, que me convidou para trabalhar em NovaIguaçu, na Maternidade Nossa Senhora de Fátima. Eudava plantão com ele nos domingos. Gerson foi o pri-meiro médico que conheci que me mostrou como se dáa relação médico-paciente. Não foi na faculdade queaprendi isso, foi lá na Baixada. Comecei a aprendermuita coisa com ele. Naquela época, eu não tinha mui-ta idéia do que ia fazer; achava que ia fazer clínicamédica. Vivíamos na ditadura. Então, havia aquele cli-ma complicado na faculdade, também. Ali, na Baixa-da, eu tinha um contato muito próximo com a situaçãosocial – que já conhecia desde a época que trabalhei no
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O CEBES tem duas linhas editoriais. a revista Saúde em Debate, que o associado recebe quadrimestralmente em abril,agosto e dezembro, e a Divulgação em Saúde para Debate, cuja edição tem caráter temático, sem periodicidade regular.
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Desde a sua criação em 1976 o CEBES tem como centro de seu projeto a luta pela democratização da saúde e dasociedade. Nesses 30 anos, como centro de estudos que aglutina profissionais e estudantes, seu espaço esteveassegurado como produtor de conhecimentos com uma prática política concreta, em movimentos sociais, nasinstituições ou no parlamento.
Durante todo esse tempo, e a cada dia mais, o CEBES continua empenhado em fortalecer seu modelo democráticoe pluralista de organização; em orientar sua ação para o plano dos movimentos sociais, sem descuidar de intervirnas políticas e nas práticas parlamentares e institucionais; em aprofundar a crítica e a formulação teórica sobreas questões de saúde; e, em contribuir para a consolidação das liberdades políticas e para a constituição de umasociedade mais justa.
A produção editorial do CEBES é resultado do trabalho coletivo. Estamos certos que continuará assim, graças a seuapoio e participação.
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e) as referências bibliográficas no corpo do texto, deve-rão ser apresentadas entre parênteses em caixa alta se-guidas do ano e, se possível, da página. Ex.: (MIRANDA
NETTO, 1986; TESTA, 2000, p. 15).
5. Referências Bibliográficas deverão ser apresentadas nofinal do artigo, observando-se a norma da ABNT NBR 6023:2000 (disponível em bibliotecas). Exs.:
CARVALHO, Antonio Ivo. Conselhos de saúde, responsabilidadepública e cidadania: a reforma sanitária como reforma do Es-tado. In.: FLEURY, Sônia Maria Teixeira (Org.). Saúde e demo-cracia: a luta do CEBES. São Paulo: Lemos, 1997. p. 93-112.
COHN, Amélia; ELIAS, Paulo Eduardo M.; JACOBI, Pedro. Participa-ção popular e gestão de serviços de saúde: um olhar sobre aexperiência do município de São Paulo. Saúde em Debate,Londrina (PR), n. 38, 1993. p. 90-93.
DEMO, Pedro. Pobreza política. São Paulo: Cortez, 1991. 111p.
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COHN, Amélia; ELIAS, Paulo Eduardo M.; JACOBI, Pedro.Participação popular e gestão de serviços de saúde: um olharsobre a experiência do município de São Paulo. Saúde emDebate, n. 38, 1993. p. 90-93.
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