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Sessão temática Imagens ˗ 44
Retraçando as tipologias dos becos da antiga Porto Alegre:
a arquitetura vernácula através de fotos e fatos (1890-1930)
Ana Luiza Goulart Koehler
Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional – PROPUR
Email: agoulartkoehler@gmail.com
RESUMO:
Sabe-se que os antigos becos, espaços estigmatizados de Porto Alegre na virada do século XIX para o
século XX, eram seguidamente descritos como sendo configurados morfologicamente por construções
modestas e em péssimo estado de conservação. De fato, eram espaços que seguidamente sofriam com
a especulação imobiliária, pois que destinados para os trabalhadores pobres da cidade que se
industrializava. O presente estudo objetiva identificar os tipos arquitetônicos que formavam esses
espaços, alguns remontando mesmo às origens coloniais da cidade, e que foram destruídos durante sua
modernização. Isso será feito através do estudo dos diferentes tipos arquitetônicos urbanos das cidades
brasileiras à época, seguido de um cruzamento de indícios documentais sob a forma de imagens e
textos.
Palavras-chave: História Cultural, becos, tipos arquitetônicos, Porto Alegre (RS).
Introdução: Porto Alegre na virada do século XIX para o XX
A partir de meados do século XIX, a até então pequena cidade colonial de Porto
Alegre conhece um período de crescimento econômico que trará à tona dificuldades nunca
experimentadas pela pacata capital do Rio Grande do Sul. Segundo Possamai (2006: 266),
[...] a Porto Alegre colonial da virada do século XIX para o XX fazia-se notar,
principalmente, pelos seus problemas urbanos. Aumento demográfico, carência de
água potável, inexistência de redes de esgotos, ruas mal pavimentadas e mal
iluminadas eram algumas das questões a serem equacionadas pelas cidades
brasileiras no advento da República.
Como afirma a autora, tratava-se de uma situação comum a outras capitais do país. Ao
longo daquele século, o Brasil foi destino de importante movimento migratório, e a população
migrante que se instalou nas colônias ao norte de Porto Alegre teve um papel fundamental ao
alavancar a função portuária da cidade. A produção de gêneros alimentícios diversificados
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para suprir o mercado interno brasileiro encontrava seu escoadouro no porto de Porto Alegre,
promovendo o desenvolvimento da cidade, que chegava então ao final do século XIX
ganhando contornos cosmopolitas, e “gozava, à época, de uma importância singular pelo seu
papel de 'sala de visitas do Estado'” (Bakos, sem ano: 2).
Concomitantemente, a industrialização promoveu a abertura de fábricas no restrito
perímetro do centro histórico, atraindo um grande contingente de trabalhadores pobres, muitos
oriundos do campo, outros tantos da imigração européia, que buscariam na cidade também
uma residência. Como Carvalho (1995: 124) afirma, o processo de industrialização implica
“na concentração espacial de uma numerosa mão-de-obra especializada em tarefas isoladas”,
e essa nova demanda passaria a tensionar de forma inédita a estrutura ainda colonial de Porto
Alegre.
Tal pressão sobre a cidade encontrará sua expressão espacial no problema habitacional,
levando ao adensamento e à degradação de determinados logradouros centrais da cidade.
Situados no espaço intra-urbano, estes espaços eram muito procurados por trabalhadores
pobres por serem próximos de uma maior variedade de oportunidades de empregos e serviços,
e, numa cidade ainda carente de transporte público eficiente, de onde se chegava facilmente a
pé ao local de trabalho.
Desta maneira, surgem no espaço intra-urbano o que Pesavento (1999: 2) chamou de
“'lugares de enclave', ou seja, imbricados com os espaços da 'cidade da ordem'” (Pesavento,
1999: 4):
No que chamamos 'lugares de enclave', há palavras específicas para designar as ruas
e as habitações dos pobres e, particularmente, negros, que ocupavam as zonas
'nobres' do centro da cidade numa coexistência indesejável com as ruas da elite.
Estas ruas da alteridade condenada são chamadas 'becos'. Na situação de enclave, os
'becos' surgiram na 'cidade alta', no coração do centro urbano, cortando as artérias
principais da urbe, nas encostas do promontório que se projeta no rio.
Assim, esses becos inseriam-se na cidade que a próspera burguesia reivindicava para si.
Esta, porém, buscava a “cidade da ordem” e não mais a acanhada Porto Alegre colonial. Seu
ideal era a Porto Alegre republicana, que se modernizava, e tinha na Paris de Haussmann o
seu modelo. A esse respeito, Lanna (1996: 502) sintetiza esse novo olhar sobre a cidade,
motivado pela introdução de novas sociabilidades urbanas que começavam a aparecer também
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em Porto Alegre:
As elites brasileiras neste momento construíam seu projeto [de] sociedade nacional e
reivindicavam para si o direito à cidade. [...] Elabora-se uma nova forma de viver
urbano. Os teatros, cafés, diversões fazem destas cidades que nascem, metrópoles.
Pequenas e acanhadas, vilas perante os olhares estrangeiros, serão remodeladas não
a partir do mundo do trabalho. Serão remodeladas pela exclusão do trabalhador, pelo
afastar dos olhos uma pobreza indesejável, necessária e permanente. O
encantamento com a velocidade, com as luzes, com a agitação noturna ganham
espaço no projeto ideal de cidade que as elites estão elaborando.
Travava-se, pois, uma guerra de discursos e políticas públicas contra a manutenção
dos becos na cidade que se modernizava, condenando-os tanto pelas sociabilidades que os
tinham por cenário, quanto pela sua materialidade como remanescentes insalubres da cidade
colonial.
As origens da forma da cidade: ruas e becos
O núcleo urbano de Porto Alegre é formado conforme a tradição urbanística
portuguesa, ou seja, em sítio estrategicamente elevado e cercado por um corpo d'água que lhe
garantia a defesa e mobilidade. Conforme Teixeira e Valla (1999: 133), “esta proteção natural
irá ser um dos fatores mais importantes da localização dos núcleos urbanos no Brasil.” Além
disso, o fato de ter sido traçada por um engenheiro militar enviado pela Coroa portuguesa
sinaliza um planejamento e erudição maiores na ação de ocupar o espaço. Nesse sentido,
Teixeira e Valla (1999: 136), afirmam que
No Brasil, a partir do século XVIII, a intervenção dos engenheiros militares vai
incidir no levantamento de inúmeras cidades agora mais no interior, inserida na
política de D. João V, seguida pelo Marquês de Pombal, de delimitação dum
território. A racionalidade da malha urbana das novas cidades vai-se impor às
condicionantes topográficas, a cidade estrutura-se segundo um traçado ortogonal em
que a praça já é um elemento estruturante [...].
Neste traçado ortogonal, os lotes urbanos eram também traçados conforme a tradição
portuguesa, que Mendes (2011: 49) descreve como “retângulos alongados, com pouca largura
voltada para o logradouro principal e longas faces laterais coladas às divisas [...]”, notando
ainda que, nos fundos, “a área livre do terreno era destinada à plantação e à pequena criação,
elementos de subsistência inclusive para períodos de inverno e escassez ou diante de cercos
prolongados de possíveis invasores.” (Mendes, 2011: 49)
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Figura 1. Foto de satélite de Porto Alegre, mostrando as três ruas principais (amarelo),
dispostas longitudinalmente, e os antigos becos (vermelho).
Dada sua implantação, Porto Alegre conformava-se inicialmente com lotes cujas
testadas ou frentes voltavam-se às das três principais ruas1 que percorriam longitudinalmente
o espigão. Por terem declividades mais suaves, eram esses os caminhos de mais fácil acesso
ao núcleo urbano, especialmente num período em que os meios de transporte dependiam de
tração animal.
Ligando estas ruas principais, estavam as “ruas travessas” que tipicamente dão origem
aos becos do final do século XIX. Teixeira e Valla (1999: 29) traçam a origem dessa
hierarquização de ruas já nas cidades medievais planejadas portuguesas dos séculos XIII-XIV,
em que a malha ortogonal alterna ruas hierarquizadas de acordo com sua largura: as ruas de
frente (principais), assim chamadas por serem configuradas pelas frentes das construções nos
lotes; e as ruas traseiras (ou secundárias), sendo ambas cruzadas por vias ortogonais de
ligação, também conhecidas como travessas ou ruas de serviço.
Nesse sentido, Pesavento (2001: 105-106) também relaciona o surgimento dos becos
em caminhos de ligação entre ruas principais com ocupações “espontâneas”, “fora da norma”:
As referências apontam para o fato de que, entre as ruas principais, abertas pelo
poder público ou mesmo por particulares, restavam terrenos vagos, sem proprietário
aparente, os quais iam sendo, paulatinamente, ocupados e apropriados pela
população. Parece, pois, que os becos se originam de uma ocupação 'espontânea' ou
'orgânica' da cidade que se adensa e espraia. Neste sentido, são também iniciativas
que se tomam fora da norma [grifo nosso] ou da regra. Se observarmos a planta da
cidade [de Porto Alegre], constatamos que eles são, em geral, situados de forma
transversal, em perpendicular e entrecruzando-se com as ruas 'oficiais' traçadas em
1A Rua da Praia, a Rua da Igreja (atual Duque de Caxias), e a Rua da Ponte (atual Rua Riachuelo).
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paralelo ao longo da península. São, portanto, em sua maioria, 'descida' ou 'subida'
com relação ao espigão central que constitui a 'cidade alta'.
Conforme a autora, as ruas transversais que deram origem aos becos de Porto Alegre
caracterizavam-se, frequentemente, por uma forte declividade. Esta característica topográfica
fazia o seu acesso mais difícil : Coruja (1983: 122) descreve o Beco do Jacques (atual Rua 24
de Maio) como “estreito e ladeirento [grifo nosso] cujas casas também se contavam por
unidades.[...]”; Franco, (1988: 80-83), descreve a antiga Rua General Paranhos (atual avenida
Borges de Medeiros), formada popularmente conhecida como Beco ou Travessa do Poço,
como “estreito beco que subia desde a Rua General Andrade Neves até a Rua Duque de
Caxias e dali descia em outra fortíssima ladeira até a Rua Coronel Genuíno”. Do ponto de
vista do transporte público, Spalding (1967: 137) indica que essa problemática provavelmente
afetava o acesso aos becos, uma vez que afirma que “os carris de ferro, entretanto, não
atendiam a todos os pontos da cidade. As grandes subidas não permitiam que fosse até o
centro urbano. Seria impossível aos animais vencerem as ladeiras.”
É possível relacionar essa dificuldade de acesso à ocupação inicialmente esparsa dos
becos. Segundo Pesavento (2001: 107), “tal ocupação parece revelar uma atividade
espontânea por parte de gente sem recursos, que se localiza nos espaços entre as ruas, daí a
sua rarefação ou aspecto modesto, com a recorrência do termo 'casinhas' para indicar as
habitações de seus moradores.” Ao mesmo tempo, nas esquinas em que encontram as ruas
principais, Coruja (1983: 111) dá indícios de construções de maior vulto quando fala, por
exemplo, do Beco do Pedro Mandinga (atual Rua General Canabarro):
[…] por trás mais ou menos da Igreja das Dores havia um pequeno sobrado [grifo
nosso] em que morava Pedro de Sousa Lobo (Pedro Mandinga) tendo ao lado um
grande sobrado [grifo nosso] em que morava seu futuro genro Israel Soares de
Paiva. Entre um e outro sobrado havia um curto e estreito [grifo nosso] beco que só
chegava ao alto da Bronze, e a que o povo dava o nome de Beco do Pedro Mandinga.
Estas são, pois, algumas das particularidades e contradições próprias dos becos na
história de Porto Alegre. Pode-se acrescentar outros enumerados por Pesavento (1998: 116-
117), tais como o Beco do Império ou do Cemitério (atual Rua Espírito Santo), o Beco do
Fanha ou do Inácio Manoel Vieira (atual Rua Caldas Júnior), o Beco da Cadeia (Travessa 2 de
Fevereiro), o Beco do Ópera ou dos Ferreiros (atual Rua Uruguai), entre outros.
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Tipos arquitetônicos referenciais
Para Rossi (1977: 45), o tipo é o princípio gerador de uma edificação, acrescentando
que “[os tipos] reagem dialecticamente com a técnica, com as funções, com o estilo [grifo
nosso], com o carácter coletivo e o momento individual do facto arquitectônico”. O mesmo
autor (1977: 90) ainda afirma que “a forma como se realizam os tipos edilícios residenciais e
o aspecto tipológico que os caracteriza estão intimamente ligados à forma urbana.”
A premissa é corroborada por Reis Filho (2006: 16), que ressalta a relação íntima entre
traçado urbano, lote urbano e tipos arquitetônicos: “um traço característico da arquitetura
urbana é a relação que a prende ao tipo de lote em que está implantada [grifo nosso]”. O
autor chama atenção para a maior permanência do traçado urbano ao longo do
desenvolvimento da cidade, enquanto que se pode observar uma ocupação por diferentes
arquitetônicos.
Na análise das fontes documentais, será possível observar esse fenômeno de renovação
de edificações – ou de seu estilos - que ocupam os becos sem alterar seu modo de implantação
no lote. Assim se dará a permanência de tipos coloniais, por vezes apenas dotados de uma
“roupagem” estilística atualizada, entremeados com edificações de porão alto. Cabe, portanto,
uma breve recapitulação dos estilos arquitetônicos que marcaram as diferentes temporalidades
presentes nos becos de Porto Alegre.
A arquitetura colonial
Como ainda trata-se de um período em que as mesmas edificações urbanas abrigavam
a função de habitação e local de trabalho, encontram-se, na origem colonial da cidade, dois
tipos básicos: a casa térrea, o sobrado, e suas variações adaptadas aos terrenos de esquina.
Reis Filho (2006: 28) apresenta estes dois tipos arquitetônicos como os mais comuns da fase
colonial brasileira:
Os principais tipos de habitação eram o sobrado e a casa térrea. Suas diferenças
fundamentais consistiam no tipo de piso: assoalhado no sobrado e de 'chão batido' na
casa térrea. Definiam-se com isso as relações entre os tipos de habitação e os
estratos sociais: habitar um sobrado significava riqueza e habitar casa de 'chão
batido' caracterizava pobreza. Por essa razão os pavimentos térreos dos sobrados,
quando não eram utilizados como lojas, deixavam-se para acomodação dos escravos
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e animais ou ficavam quase vazios, mas não eram utilizados pelas famílias dos
proprietários. No mais, as diferenças eram pequenas.
Assim, enquanto a casa térrea era a habitação das classes mais modestas, o sobrado
colonial era reservado aos mais abastados, caracterizando-se por uma ocupação comercial e
funcional no térreo, abrigando depósitos, lojas, cocheiras e alojamento de escravos. Reservava,
assim, o segundo andar para o uso familiar, preservando a intimidade da família patriarcal.
Em seu interior, reproduzia o mesmo esquema de planta da casa térrea.
Formalmente, derivava do estilo barroco português, acrescido de largos beirais afim de
proteger as paredes da chuva, aberturas com vergas retas ou em arco abatido, fechadas por
gelosias ou rótulas, e cobertura em duas águas.
A arquitetura colonial é a base sobre a qual a cidade brasileira evoluirá a partir de sua
fundação: os traçados coloniais e modo de ocupação total do lote permanecerão nos núcleos
antigos até os dias de hoje. Apenas com a popularização do ecletismo, no final do século XIX,
é que o objeto arquitetônico será implantado de modo a se descolar dos limites do lote.
A arquitetura neoclássica
Também conforme Reis Filho (2006: 36), a arquitetura de estilo neoclássico foi trazida
ao Brasil pela Missão Francesa que acompanhou a vinda da Corte portuguesa ao Rio de
Janeiro, em 1808:
[...] a presença da Missão Cultural Francesa e da Academia [de Belas-Artes do Rio
de Janeiro], prestigiando a difusão da arquitetura neoclássica, iria favorecer,
simultaneamente, a implantação de tipos mais refinados de construção, contribuindo
desse modo para o abandono das velhas soluções coloniais.
Entretanto, o mesmo autor (2006: 38) alerta que as edificações deste estilo que podem
ser encontradas nas fontes documentais mostram, muitas vezes, os mesmos tipos coloniais aos
quaise de fez a aplicação de decorações de fachada de estilo neoclássico sobre edificações
coloniais, dando-lhes uma roupagem “atualizada”.
Entre as características da arquitetura neoclássica encontram-se a presença da
platibanda em substituição ao beiral, e a instalação de calhas condutoras de águas pluviais.
Além disso, o novo estilo trouxe consigo a transição para outro tipo arquitetônico, pois,
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segundo Reis Filho (2006: 40),
Um novo tipo de residência, a casa de porão alto, ainda 'de frente da rua',
representava uma transição entre os velhos sobrados e as casas térreas. Longe do
comércio, nos bairros de caráter resindencial, a nova fórmula de implantação
permitiria aproximar as residências da rua, sem os defeitos das térreas, graças aos
porões mais ou menos elevados, cuja presença era muitas vezes denunciada pela
existência de óculos ou seteiras com gradis de ferro, sob as janelas dos salões.
Preserva-se, porém, a ocupação do lote de lado a lado, talvez mesmo em função da
adaptação de muitos exemplares coloniais ao estilo neoclássico. O beneficiamento da madeira
com maquinário de precisão também permitia executar não só esquadrias mais sofisticadas
para as aberturas, mas também coberturas de quatro águas. Segundo Reis Filho (2006: 38),
“em construções de muita profundidade, o esquema [do telhado de quatro águas] era
especialmente eficaz, uma vez que evitava estruturas com ponto muito elevado.”
A arquitetura eclética
Típica das camadas mais abastadas, a arquitetura eclética no Brasil encontra-se
associada à crescente burguesia industrial urbana da Primeira República e sua ideologia
dominante, o Positivismo. Segundo Reis Filho (2006: 179), “para a arquitetura brasileira, a
influência do Positivismo representava o estímulo ao desenvolvimento tecnológico. O
Ecletismo, como um movimento de conciliação, facilitava essa transformação.”
Neste estilo, o tipo de residência de porão elevado ganha um novo modo de
implantação no lote, contribuindo para uma preservação ainda maior do espaço interno em
relação ao contato direto com o espaço público: a entrada principal posicionada não na
fachada, mas na lateral da edificação liberada graças ao afastamento de um dos lados do lote.
Este detalhe é importante, cabendo notar que vive-se um momento de gradual separação entre
habitação e trabalho, e esse afastamento corresponde à valorização do espaço privado. No
plano estilístico, o ecletismo se vale desse descolamento parcial do lote, fazendo uso mais
livre de elementos decorativos – então tornados muito mais acessíveis graças à produção em
massa – quebrando a rigidez do cânone neoclássico ao adicionar elementos como janelas em
corpo saliente e torreões à volumetria da edificação.
De posse destas referências tipológicas e seus estilos distintivos, é possível analisar
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algumas das fontes documentais relativas aos becos da antiga Porto Alegre, visando identificar
nelas os tipos de edificação que configuravam aqueles espaços.
As tipologias dos becos
Em se tratando de espaços estigmatizados da cidade, pode-se esperar encontrar uma
documentação desigual sobre os becos, o que leva este estudo a focalizar alguns deles cujos
indícios chegam até a contemporaneidade em condições de servir como fontes de informação.
Assim, privilegia-as aqui aqueles cujas imagens e informações foram encontradas na pesquisa
de campo, a saber: o Beco do Poço ou antiga Rua General Paranhos (atual avenida Borges de
Medeiros); o Beco do Rosário ou antiga Rua 24 de Maio (atual avenida Otávio Rocha); o
Beco do Fanha (atual Rua Caldas Júnior); e a Travessa Angustura ou Beco do Leite (não mais
existente).
Beco do Poço ou Rua General Paranhos (atual Avenida Borges de Medeiros)
Figura 2. Fotografia da demolição da Rua General Paranhos.
Revista "Máscara", 06/02/1925.
É possível observar, apesar do ângulo pouco vantajoso, o conjunto do que parecem ser
casas térreas, provavelmente de origem colonial, revestidas de uma roupagem neoclássica.
Esta se evidencia pelos arcos plenos nas aberturas e presença de platibanda escondendo o
telhado, porém sem contar com porões elevados. Coruja (1983: 117) relata que havia
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proprietários que faziam construir esse tipo de “casinhas”, e cujo nome terminava associado
ao beco, como no caso do Beco do Freitas: “[...] como Manoel José de Freitas Travassos aí
fizesse edificar uma carreira de casas [grifo nosso] ao lado dos números ímpares, ficou-se
chamando Beco do Freitas”.
Ao fundo destas “casinhas”, vê-se um sobrado de meia-água com platibanda e duto de
coleta de águas da chuva descendo pela empena laterial. Em outras fotografias, pode-se vê-lo
com aspecto dilapidado, o que sugere tratar-se de um antigo sobrado convertido em habitação
multifamiliar. Sua altura e cobertura características fazem desta edificação uma referência que
pode, em outras fotografias, identificar o lugar como sendo o Beco do Poço ou antiga General
Paranhos. Também a respeito dos sobrados do Beco do Poço, Pesavento (2008: 183),
transcreve a seguinte passagem de jornal, descrevendo “[...] um sobradinho antigo, com três
janelas no pavimento superior, e duas janelas e porta com corredor [grifo nosso], […]”. Isto
parece indicar um sobrado do tipo colonial urbano descrito acima por autores como Reis Filho
(2006) e Veríssimo (1999).
Vê-se, assim, uma alternância de temporalidades nas edificações que configuram este
beco. No lado oposto na fotografia, marcado em rosa e ao lado de casas térreas e sobrados de
provável origem colonial, vê-se uma alterosa edificação de esquina em estilo eclético. Isto
indica, mais uma vez, a valorização dos terrenos de esquina dos becos junto às ruas principais.
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Beco do Fanha (atual Rua Caldas Júnior)
Figura 3. Fotografia dos Irmãos Ferrari mostrando
a esquina do Beco do Fanha com a Rua da Praia. (Pesavento, 1992: 44)
O Beco do Fanha parece seguir o padrão de distribuição de lotes menores e casas
térreas no meio da quadra, ou seja, no interior do beco, enquanto que suas esquinas com ruas
mais valorizadas (no caso, com a Rua da Praia e a Rua Riachuelo) são ocupadas por casarões.
Na foto, é possível identificar várias características da arquitetura colonial bastante presentes:
os beirais no casarão à direita na foto, suas aberturas de arcos abatidos e gelosias, e o que
parece ser um balcão de madeira no segundo piso. Ao seu lado, porém, nota-se o que
provavelmente é um casarão colonial com roupagens neoclássicas: aberturas em arco pleno no
primeiro piso, e vergas retas com platibanda no segundo piso.
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Beco do Leite ou Travessa Angustura
Figura 4. Fotografia do século XIX mostrando a entrada
do Beco do Leite ou Travessa Angustura, tirada da Rua Andrade Neves.
Na fotografia evidencia-se o contraste entre o casarão neoclássico marcado em rosa e
as edificações marcadamente coloniais da esquina oposta. É possível que o casarão
neoclássico tenha também sido construído na mesma época, mas foi renovado a fim de ganhar
a roupagem mais sofisticada do estilo, enquanto que do outro lado da esquina a construção
colonial manteve-se com todas as suas características: aberturas de arco abatido, beirais para
proteger as paredes, provavelmente de taipa de pilão, das chuvas, ausência de condutos
pluviais e a presença de camarinha afim de fazer a edificação parecer mais imponente, com
dois andares.
Sendo bastante curta, esta passagem – típica “travessa”, conforme Marx (1991: 104-
105) ou “rua de serviço”, conforme Teixeira e Valla (1999: 29), o Beco da Angustura foi
fechado por novas edificações após sua demolição.
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Beco do Rosário (atual avenida Otávio Rocha)
Figura 5. Fotografia do início do séc. XX
mostrando a subida entre a Dr. Flores e a R. Senhor dos Passos.
O Beco do Rosário parece seguir o padrão de privilegiar os lotes das esquinas com as
ruas mais valorizadas, concentrando a ocupação mais modesta no meio das quadras. A
sucessão de casinhas modestas na imagem faz pensar nas “casinhas de aluguel”, tão
procuradas pelos trabalhadores que queriam permanecer no espaço intra-urbano. A notas de
imprensa concernentes à venda dessas propriedades antes de sua demolição pelo poder
público, afim de abrir a Avenida Otávio Rocha, apontam neste sentido: “[...] os predios ns. 32-
E, 32-F, 36, 56 e 56-A, da rua 24 de Maio de propriedade do sr. Luiz Rothfuchs [grifo nosso]
por 307:435$, destinados à abertura da rua S. Raphael.”2
Os Cortiços
A palavra “cortiço” parece acompanhar o termo “beco” em várias instâncias. É
possível ver os dois termos associados de maneira íntima na imprensa da época, como no
seguinte trecho:
No cortiço, existente á rua dos Andradas n. 113-A, residencia de meia duzia de
raparigas, registrou-se, hontem, ás nove horas, um sarilho. […] Segundo as
informações obtidas pela policia, o agente poz-se a desafiar as pessoas que se
2Correio do Povo, 29/06/1926. Hemeroteca do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa.
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achavam no interior do becco [grifo nosso].3
Pode-se dizer que esta ambiguidade está relacionada ao caráter semi-público do
interior do lote a partir do momento em que era ocupado por casinhas enfileiradas,
configurando em seu centro uma espécie de “pátio central”, o que era chamado de “avenida”:
não era uma rua pública, mas também não era um quintal privado. Tratava-se de uma área de
uso comum aos moradores “amontoados” nas exíguas acomodações.
À “avenida” deve-se acrescentar também a “casa de cômodos”, que consistia em
sublocar grandes casarões senhoriais abandonados, fazendo co-habitar neles diversas famílias.
Tanto um quanto outro modo de ocupação inseriam-se nas tipologias elencadas acima: a casa
térrea, o sobrado, e as casas de porão alto.
Conclusão
É possível observar nos indícios disponíveis sobre os antigos becos de Porto Alegre
que existe um padrão de ocupação que tende a alternar sobrados e casas térreas ao longo de
suas extensões, com um predomínio das últimas nos interiores das quadras. Nesse sentido, o
grande número de menções a cortiços, casas de cômodos, avenidas e “casinhas de aluguel”
parece sugerir o adensamento da ocupação destes tipos arquitetônicos de origem colonial no
centro de Porto Alegre como resposta à grande demanda por moradia de baixa renda.
Embora observe-se com frequência os dois tipos tanto em estilo colonial português
como neoclássico, os exemplares do estilo eclético parecem estar ausentes dos becos, a menos
quando situados em esquinas e voltados para ruas mais valorizadas. Isso corrobora a tese de
que o caráter modesto da ocupação destes espaços da cidade limitava a remodelação de seus
exemplares arquitetônicos.
REFERÊNCIAS:
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http://cdn.fee.tche.br/jornadas/1/s11a7.pdf [acessado em 03/02/2015] CARVALHO, Lia de Aquino. Contribuição ao estudo das habitações populares: Rio de Janeiro:
3Correio do Povo, jan-ago 1927. Hemeroteca do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa. A grafia
original foi mantida.
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