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Retiro
A vida e a espiritualidade do presbítero
em tempos de pandemia e pós-pandemia
A CRISE SEGUNDO PAULO
O Papa Francisco nos recorda que a lista de personagens bíblicos
em crise é infinda e cada um de nós pode encontrar neles o seu
próprio espelho e o seu lugar. E dá o exemplo de diversas crises.
A crise de Moisés que se revela na escassa confiança que ele tinha
nas suas capacidades para realizar a missão que Deus lhe confiara.
A crise de Elias, que ao contrário de Moisés se julgava forte e
impetuoso como o fogo (cf. Sir 48, 1), mas que lhe foi concedido
fazer a experiência de Deus, não através da força e do poder, mas
na fraqueza minimal “duma brisa suave” (cf. 1 Rs 19, 11-12).
Porque, explica o Papa, “a voz de Deus nunca é a voz rumorosa da
crise, mas é o murmúrio que nos fala dentro da própria crise”.
Outras figuras de crise são João Baptista e São Paulo. O Baptista
se sente confuso acerca da identidade messiânica de Jesus, pois
talvez esperasse um Messias com outro estilo. E a crise de Paulo.
Vejamos em 10 breves pontos a crise de Paulo.
1. Começar uma viagem caído por terra
Uma viagem inusitada a meio daquele caminho de Damasco se
abriu para Paulo. É verdade que ela ficou a marcar uma certa
tipologia da conversão: imediata, total, fulgurante, na forma
absoluta como acontece. Fala-se muito, por exemplo, da queda do
cavalo, mas em nenhum passo da Cartas ou dos Actos se diz que
Paulo ia a cavalo. Não se sabe, embora a tradição iconográfica
tenha representado amplamente o Apóstolo dessa maneira, e numa
intensidade tão impressiva, que estávamos prontos a jurar ter lido
em qualquer passo acerca dele. Há, de facto, um inesquecível
cavalo, mas nas imagens de Dürer, Miguel Ângelo, Tintoretto,
Rubens, Parmigianino… - uma lista interminável! Frequentemente
referido é o da pintura de Caravaggio, intitulada “Conversão de
São Paulo”: Paulo surge caído por terra, com os braços abertos e
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levantados, como quem acolhe o invisível; os olhos
completamente cerrados, ligados agora a um outro entendimento.
E, no centro, um cavalo imenso, a deslocar-se suavemente para
fora de cena, como se não fosse já necessário, ou adivinhasse que
começava, precisamente aqui, outro tipo de peregrinação para o
seu cavaleiro derrubado.
Se o texto bíblico não alude à presença de um cavalo, e se se sabe
que Paulo viajou por terra maioritariamente a pé, como se chegou
a essa representação? Há um motivo que joga com aquilo que o
relato não diz, mas que entra no puro território das probabilidades
(de facto, o cavalo seria um meio de transporte utilizado). E há
uma importante razão simbólica. O retrato inicial de Paulo é o de
um homem investido de força, acorrentado a uma convicção
implacável. Ora o que a narrativa da sua conversão vai mostrar é a
prostração e a fragilidade perante a revelação de Jesus («Saulo,
Saulo, porque me persegues?»).
Os textos bíblicos não dizem que Paulo tombou de um cavalo,
apenas que «caiu por terra». De facto, “apesar do papel de Paulo,
que leva autorização do sinédrio para deter os discípulos de Jesus,
o autor dos Actos não o apresenta como uma expedição militar”.
«Caiu por terra». Também Ezequiel perante a visão da glória de
Deus, descreve: “à sua vista eu caí de rosto por terra e ouvi uma
voz que falava” (Ez 1,28).
2 Cor 12, 7-10
Gal 4:13-14
2. Amadurecer com as crises
Há que ler, contudo, este momento da vida de Paulo em
profundidade. Quando ele declara a sua missão cumprida (Rm
15,23) não quer dizer que tudo esteja assente e resolvido. Aliás,
Paulo tem vivido em extrema turbulência aqueles anos. E ele sabe
que a crise que atravessa as suas igrejas, se é “provocada por
intromissões externas, não deixa também de encontrar
ressonâncias, para não dizer conivências, dentro das próprias
comunidades”. Temos de poupar-nos a leituras simplistas e, desde
já, aludir a um dos nós do problema. Claramente, a vulnerabilidade
que estala nas comunidades paulinas tem a ver com o processo
mesmo da sua constituição, alicerçada em torno daquilo que a
historiadora Marie-Françoise Baslez designa como prática de
“assimilação”. Um corpo o mais heterogéneo que se possa pensar,
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em termos étnicos, sociais e culturais, teria, como se veio a
verificar, naturais dificuldades em coincidir numa comunhão
estável de pontos de vista. Os cristãos de Corinto não se entendiam
quanto à circuncisão. Os de Colossos pretendiam manter a
separação de mesa entre os cristãos vindos do judaísmo e os de
extração pagã. Na Galácia guerreava-se por manter ou por abolir o
calendário das festas judaicas, mesmo depois de Paulo lhes ter
pregado a liberdade trazida por Cristo (“Ó Gálatas insensatos!
Quem vos enfeitiçou, vós a quem Cristo crucificado foi
apresentado”, Gal 3,1). Paulo vai tomando progressiva consciência
da necessidade de “sair da estrutura gruposcular”. A missão cristã
tem o seu dinamismo próprio e verdadeiramente depende de outro:
“Eu plantei, Apolo regou, mas Deus é quem fez crescer” (1 Cor
3,6). Paulo visitou as suas Igrejas ao longo do tempo, manteve
contactos directos, enviou-lhes os seus colaboradores, escreveu-
lhes cartas, formou um grupo de responsáveis para garantir a
coesão organizativa... Sente que fez a sua parte. A sua expectativa
agora é que estas igrejas estejam, mesmo com todas as hesitações,
preparadas para caminhar pelo próprio pé.
Neste inverno em Corinto, andando no movimentado porto de
Cêncreas que se abre sobre o mar Egeu ou recolhido em casa de
Gaio, Paulo tem o tempo interior necessário para reconfigurar a
sua missão. Talvez mais do que em outras estações, Paulo é aqui
“um homem livre e um apóstolo maduro”. No intenso debate
doutrinal com os seus adversários, teve oportunidade de testar a
coerência, mas também de compreender certas insuficiências da
sua própria pregação. O diálogo, nem sempre fácil, com as suas
comunidades em crise permite-lhe aprofundar as razões essenciais
da fé e do estilo de vida cristã. Andaria, agora, pelos sessenta anos
de idade, o vigor físico já não é o mesmo, e não lhe resta,
porventura, muito tempo. Mas é um Paulo surpreendentemente
sereno e esperançado aquele que encontramos.
3. Um ancião com sonhos
Paulo saberia que o território ocidental do Mediterrâneo era muito
diferente daquele que conhecera como a palma das suas mãos. Não
teria levado muito tempo a concluir de que lhe seria útil a
experiência de quem estivesse mais perto desse admirável mundo
novo. Roma emergiu então como a preciosa peça que faltava.
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Roma não lhe era completamente estranha. Os seus fiéis
colaboradores, Priscila e Áquila, provinham dessa Igreja. Eles
trabalham ao lado de Paulo, primeiro em Corinto e depois em
Éfeso (1 Cor 16,19). Há uma rede de relações que o capítulo 16 da
Carta aos Romanos nos faz supor, com muita certeza. Nesse
capítulo saúda vinte e seis pessoas, vinte e quatro das quais são
tratadas pelo nome. Além disso, refere três igrejas domésticas
(Rom 16, 5.14.15) e dois grupos de (ex)escravos (vv.10.11) que
podem corresponder a outras duas. De Andrônico e Júnia Paulo diz
serem seus “parentes e companheiros de prisão” (v.7). A
adjectivação de “caro amigo” (v.8) dedicada a Amplíato não pode
não ser considerada, e muito menos o que Paulo diz a Rufo: que a
mãe deste foi uma mãe para ele (v.13).
Mas não se tratava apenas de suporte logístico ou linguístico,
embora isso estivesse naturalmente na mente de Paulo. Se fosse
apenas isso, talvez Paulo o encontrasse mais à mão, entre as
comunidades por ele fundadas na Ásia Menor e na Grécia. Paulo
precisava de outra coisa dos cristãos de Roma. Jewett não tem
dúvidas: o seu propósito é desencadear uma “missão cooperativa”
a fim de evangelizar as Espanhas.
Os desenvolvimentos críticos na Galácia e em Corinto, com o
questionamento do seu estatuto de apóstolo e da sua autoridade,
mostrou-lhe o perigo que representava poderem dizer dele que era,
no fundo, um outsider, uma voz fora do coro que só se
representava a si próprio. Era preciso que existisse uma Igreja a
suportar as novas fundações de comunidades, e que pudesse, pelo
seu prestígio, exercer um magistério de autoridade. Paulo estava
pronto a estabelecer que esta responsabilidade seria de Roma, mas
precisava persuadir aquela comunidade a assumi-lo como seu
delegado e a dar-lhe o mandato de missionário (Rm 15,24).
É aqui que surge a Carta aos Romanos. A dizer a verdade Paulo
nunca tinha escrito uma carta desse tipo. Todos os seus escritos
anteriores tinham sido suscitados em diálogo com comunidades
que Paulo conhecia directamente e constituíam muitas vezes
resposta a problemas concretos. Que poderia ele, um
desconhecido, dizer que interessasse a membros de uma Igreja
estranha, na capital do Império? Paulo reveste-se de especiais
cuidados. Com a ajuda de um secretário de nome Tércio (Rm
16,22), Paulo vai ditar em tom didáctico e com uma argumentação
ponderada e universal uma espécie de manifesto das suas
convicções. Já Orígenes observara que em Romanos, de forma
diferente do que sucede, por exemplo, em Gálatas, Paulo não
critica a fé dos seus destinatários. A carta é pensada como a síntese
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do anúncio que o apóstolo vem há duas décadas fazendo, e que
conhece agora uma apresentação convenientemente orgânica e
articulada, sem deixar de ser intensa e pessoal. É claro que neste
momento Paulo não sabe, nem ele escreveu a carta com esse
propósito, mas de um ponto de vista histórico e teológico este texto
será considerado o seu testamento.
4. Um tradutor da experiência cristã
Paulo situa-se na dependência desse acontecimento chamado Jesus
e coloca-se, por inteiro, ao serviço do seu anúncio. Mas fá-lo de
uma maneira nova, com uma gramática diversa, em contacto com
espaços culturais inéditos. O cristianismo na dicção primeira de
Jesus era sociologicamente uma realidade oral e campesina. As
parábolas de Jesus falam com propriedade de campos e de
sementeiras acidentadas, de assalariados rurais e de colheitas, de
mães de família que amassam o pão de cada dia ou de pequenos
negociantes de passagem. Não raro, por detrás do grego corrente
em que os evangelhos as narram, ainda se pode como que sentir o
eco do aramaico falado nas aldeias palestinenses. Opina Wayne A.
Meeks: «Paulo era um homem de cidade e a toda a sua linguagem
respira o mundo urbano». Com Paulo o cristianismo ganhou a
amplidão que o próprio Jesus prometera (Mt 28,19-20), tornando-
se cosmopolita, transfronteiriço e...escrito. Paulo estava estava
apto para protagonizar uma das operações teológicas mais criativas
e complexas: a da tradução da mensagem cristã. Diz Romano
Penna: “Paulo é o homem de vários primados. Os seus são os
primeiros escritos em absoluto na história do cristianismo: a
literatura cristã começa precisamente com ele!”
No mundo das cidades greco-romanas onde os homens são
desiguais por nascimento e onde os grupos sociais parecem
separados por fronteiras raramente ultrapassáveis, o cristianismo
podia oferecer a cada um uma nova consciência de si e a
solidariedade real e simbólica de uma pertença comum. E podia
fazê-lo isto com as possibilidades de impacto e alcance da
mensagem escrita. O Baptismo, quer dizer, a decisão de colocar a
sua existência sob a senhoria de Cristo crucificado, pressupõe uma
escolha pessoal e a aceitação de um novo caminho (cf. 1Cor 7).
Cada baptizado reforça a sua singularidade por uma participação
pessoal no mistério de Cristo. Doravante, «não há judeu nem
grego, não há escravo nem livre, não há homem e mulher, porque
todos sois um só em Cristo Jesus» (Gal 3,28), garantiu Paulo e...
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por escrito. E falar assim desta nova realidade é também assinalar
o arranque da aventura cristã.
5. Manter um centro fixo num pensamento móvel
Possuímos de Paulo várias cartas, e há um consenso em
considerá-las os primeiros escritos cristãos que chegaram até nós.
Em década e meia de actividade epistolar intensa e de reflexão, o
seu pensamento evolui, as motivações amadurecem, alteram-se os
destinatários e as situações que enfrenta. Mas a evolução do seu
pensamento liga-se também a um amadurecimento da forma
literária em que se exprime. Se os primeiros escritos de Paulo são
cartas simples, sem especial elaboração, o apóstolo passa a
conhecer os recursos da oficina literária e a manejá-los, tornando-
se um verdadeiro escritor.
Esta evolução é ainda mais interessante – e é certamente um factor
que confere ao pensamento de Paulo um potencial de sedução
muito forte - se tivermos em conta que o mundo paulino tem um
centro que permanece imutável: a ressurreição de Jesus. «Se Cristo
não ressuscitou a nossa pregação é vazia, e vazia também é a vossa
fé» (1 Cor 15,12). Um centro fixo num pensamento móvel – assim
se poderia descrever em grande parte o génio do apóstolo que
inaugura o cânone cristão.
6. Trabalhar em equipa
Ao contrário daquilo que a imaginação cristã parece em traços
largos ter favorecido, Paulo não foi um navegador solitário e auto-
suficiente na extraordinária aventura que o cristianismo de matriz
paulina representou. A verdade é que ele sozinho não poderia levar
a cabo a ingente e complexa tarefa da fundação e acompanhamento
das comunidades. E não podia fazê-lo por três ordens de razões:
1) Uma primeira ordem de razões é de natureza teológica e
eclesial. O trabalho em equipa não é uma inovação paulina. O
testemunho mantido pelos evangelhos é que o próprio Jesus enviou
os apóstolos dois a dois (Lc 10,1; cf. Mc 6,7). E não deixa de ser
relevante que nos evangelhos, tal como nos Actos dos Apóstolos, o
termo “apóstolo” compareça sempre no plural e nunca no singular.
O próprio Paulo começou por ser um missionário ligado à rede da
Igreja de Antioquia. Podemos dizer que Paulo continuou
simplesmente a operar numa metodologia que identificara desde
sempre a construção da identidade cristã.
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2) Um segundo motivo prende-se com as modalidades de
edificação das comunidades paulinas. No estudo que lhes dedica,
Margaret Y. Macdonald sublinha duas palavras fundamentais:
“experiência” e “processo”. Muitas vezes houve a tendência de
olhar para a teologia de Paulo “num vácuo” como se a doutrina
moldasse de forma directa (e algo abstracta) as comunidades. Ora
a teologia de Paulo não se entende sem experiência, sem aplicação
prática e sem processo. A sua teologia avança experimentalmente,
dialogando com as circunstâncias históricas. Tem um ponto fixo:
“o Messias crucificado e ressuscitado ocupa o centro do sistema
simbólico paulino”, recorda Macdonald. Mas tem também uma
plasticidade que se justifica também pela multiplicidade de actores
envolvidos.
3) E temos, por fim, os constrangimentos pessoais do próprio
Paulo. No retrato que os Actos dos Apóstolos traçam dele, o
apóstolo é uma figura eminente, quase um enviado divino (como
em Listra, se julgou que fosse – Act 14,5-18), capaz de actuar
miraculosamente, possuindo altos dotes retóricos (Act 17,16),
falando grego, hebraico e aramaico (Act 21,37; 22,2), podendo ser
apresentado como a encarnação ideal de um judeu exemplar na
fidelidade à Torá, crente em Cristo e súbdito leal do Império
Romano, de que seria aliás cidadão. A tomar à letra os Actos,
Paulo possuiria “uma elevada condição social” e “notáveis meios
económicos para sustentar o seu nível de vida inclusive como
propagandista da comunidade messiânica”. Há que reconhecer
que esta importante posição social atribuída a Paulo não recebe
confirmação das Cartas Paulinas. Bem pelo contrário: “todas as
afirmações de Paulo nesta matéria nos obrigam a pensar que Paulo
tenha trabalhado manualmente para garantir o sustento próprio e
que tenha recebido ajudas económicas alheias.” O quadro traçado
por R. F. Hock pode parecer demasiado cru, mas tem mais
realismo histórico do que as imagens idealizadas de Paulo que
subsistem. Diz ele: “Paulo era o Paulo fabricante de tendas muito
mais do que habitualmente se imagina. Esta actividade absorvia a
maior parte do seu tempo... A sua vida era, em grande parte, a vida
de um homem empregado numa oficina...inclinado sobra a banca
de trabalho como um escravo trabalhando conjuntamente com
outros escravos.” Podemos, por isso, concluir que Paulo tinha de
recorrer a uma abundante rede de colaboradores para suprir os seus
constrangimentos de acção que seriam mais do que muitos.
Ora, lendo com atenção quer o seu epistolário quer os Actos dos
Apóstolos, apercebemo-nos de que um dos traços identificadores
do projeto pastoral de Paulo é o trabalho em equipa. O apóstolo
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valeu-se de uma importantíssima rede de colaboração, que em
parte conseguimos reconstruir pelos textos. Homens e mulheres,
mais jovens ou mais adultos, judeus e pagãos, compatriotas e
estrangeiros – foi amplo e diversificado o grupo de colaboradores
de Paulo, e para mais dotado de uma surpreendente mobilidade nas
grandes cidades do Império Romano. Para isso, na opinião de
Meeks, contribuiu muito o facto da composição social do
movimento cristão: por um lado, era um movimento societário
transversal, representativo da diversidade social e urbana daquele
tempo; e, por outro, o cristão “típico” de então começou por ser o
artesão livre e o pequeno comerciante, gente que, em qualquer
caso, podia viajar e contar com alguns outros sinais de bem-estar
económico.
7. A capacidade de um olhar profético e novo
Enquanto peregrino Paulo é capaz de olhar de forma nova e
profética e emprestar uma nova plástica à caligrafia do mundo.
Enumeremos apenas alguns dos seus contributos:
1) O mundo greco-romano que Paulo conhecia, era dominado
pelas oligarquias. Os cidadãos dotados de direitos políticos
representavam uma pequena minoria – calcula-se à volta de dez
por cento do total da população. Esta nomenclatura constituía
sociedades predominantemente homogéneas, defendidas por
fronteiras de convívio muito rígidas. A mobilidade das pessoas e a
cooperação entre classes ou os relacionamentos mistos eram
olhados com grande reserva, se não mesmo com repúdio.
Paulo enquanto peregrino alcançado por Jesus, vai ter a capacidade
de pensar numa configuração diferente, inclusiva e universal. Ele
arrisca, por exemplo, olhar para a cidade, para a polis – e não nos
podemos esquecer que, com Paulo, o cristianismo é urbano pela
primeira vez – com a liberdade de aproximar o distante, de reunir
no mesmo corpo social aquilo que é diferente: «não há judeu nem
grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque
todos sois um só em Jesus Cristo» (Gal 3,28). Este perspectivar da
convivência social, não já em dialéctica, mas numa corajosa
dinâmica integradora, é de facto algo novo, que só uma grande
peregrinação podia permitir. Um exemplo fortemente esclarecedor
é a própria palavra ecclesia/Igreja. Ela provém não do âmbito
religioso, mas tem uma imediata conotação política, porque a
ecclesia originariamente era o conselho dos homens bons que
conduzia a cidade. Paulo vai utilizar essas categorias societárias e
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políticas, mas emprestando-lhes um conteúdo novo. A Igreja
emerge como um inédita comunidade sem fronteiras.
2) Igual novidade repercute-se na luta em que Paulo se envolve
para que a mesa seja um reflexo da convivialidade fraterna e
igualitária, e não já das assimetrias e das exclusões. A ruptura que
Paulo ensaia com Pedro a esse propósito, na Carta aos Gálatas,
vale mais do que mil palavras (Gal 2,11-14: «Mas, quando Cefas
veio para Antioquia, opus-me frontalmente a ele, porque estava a
comportar-se de modo condenável. Com efeito, antes de terem
chegado umas pessoas da parte de Tiago, ele comia juntamente
com os gentios. Mas, quando elas chegaram, Pedro retirava-se e
separava-se, com medo dos partidários da circuncisão. E com ele
também os outros judeus agiram hipocritamente, de tal modo que
até Barnabé foi arrastado pela hipocrisia deles. Mas, quando vi
que não procediam correctamente, de acordo com a verdade do
Evangelho, disse a Cefas diante de todos: «Se tu, sendo judeu,
vives segundo os costumes gentios e não judaicos, como te atreves
a forçar os gentios a viver como judeus?»).
Sabemos como a mesa é um espaço, por excelência, das
identidades e da sua salvaguarda. A mesa é um lugar exclusivo. E
a grande revolução cristã é transformar a mesa num lugar
abrangente, num espaço de abertura, onde as nossas identidades se
reinventam a partir da universalidade do encontro.
3) Paulo adopta em grande medida os modelos de convivência
social do mundo romano, mas sempre adaptando-os, purificando-
os a partir da antropologia cristã e da novidade de Jesus Cristo. Por
exemplo, Paulo é por vezes criticado por não ter sido mais
explícito em relação à escravatura. Mas na Carta a Filémon, Paulo
é muito claro: por um lado parece manter um certo conformismo
social, mas por outro incendeia de novidade o seu discurso e a
realidade da História, dizendo que o dono e o escravo se devem
reconhecer como irmãos. Paulo dissemina elementos fundamentais
de novidade cristã, ousando uma configuração nova do mundo e
das relações, mostrando a possibilidade de ser cristão para lá das
fronteiras estritas do judaísmo ou do helenismo. Com Paulo, nós
percebemos que é a própria experiência cristã que peregrina, é a
própria experiência cristã que viaja.
8. O segredo de Paulo é Cristo
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O acontecimento de Cristo inaugura na vida de Paulo um estádio
radicalmente novo. Quando Paulo pensa o que é a sua própria
existência e a existência do homem no mundo, já não a dissocia da
revelação pascal de Cristo. Ele descobre que nós somos por Ele. É
por Cristo que nós somos, no Pai e no Espírito. Cristo, pela sua
morte e ressurreição, introduz-nos numa relação nova e dinâmica
com Deus. Temos acesso à Sua intimidade. É interessante a
palavra prosagogé – acesso – que nos é citada tanto em Romanos
5,2, como em Efésios 3,12. A etimologia desta palavra liga-se ao
ritual que, nas cortes, levava os íntimos do rei a ter com ele uma
proximidade directa, que, claramente, a maioria dos súbditos não
teria. Cristo é aquele que nos dá esse acesso à intimidade do Pai. E
é a esta luz que a existência humana pode verdadeiramente ser
qualificada de nova.Nós somos associados a Cristo e a nossa
existência torna-se uma existência crística.
Toda a teologia de Paulo é fundada sobre uma descrição das
transformações que acontecem ao homem no seu itinerário, na sua
peregrinação para Deus, em Cristo. A percepção da ressurreição é
um marco fundamental na teologia de Paulo. Paulo adere a Jesus
Cristo porque imediatamente O apreende como Salvador. O
indivíduo Jesus não interessa jamais a Paulo. Nem nas suas cartas
encontramos uma cristologia em torno ao Filho do Homem, tal
como encontramos nos Evangelhos Sinópticos. Enquanto que S.
Lucas, por exemplo, se esforça por relevar a continuidade entre o
Jesus histórico e a Igreja das origens, Paulo está muito mais
interessado na revelação de Jesus como Filho de Deus, e na
redenção e salvação que nos chega pela sua cruz. Ele faz a
experiência mística de um Jesus que está vivo. Ele morreu na cruz
mas Paulo descobre-O como bem-aventurado de Deus. E Paulo faz
da dicção do Mistério Pascal o centro da sua teologia.
9. Uma nova identidade
O cristianismo começa em Paulo pela operação necessária de
instauração ou de re-instauração do sujeito crente. Assim, a lição
de Paulo é que cristãos não somos, mas sim nos tornamos,
obrigando-nos a romper com o conformismo teológico de um
cristianismo como dado adquirido, que se dá meramente por
descontado, “como se ser cristão fosse a coisa mais óbvia deste
mundo”. Pelo contrário: o crer passa com Paulo a ser regido e
modalizado por uma experiência de transformação. Como escreve
ele na Segunda Carta aos Coríntios: “todos nós, com o rosto
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descoberto, refletindo como um espelho a glória do Senhor, somos
transformados (metamorphoumetha) nesta imagem” (2 Cor 3,18).
Um marcador desta nova identidade transformada é o baptismo,
que na perspectiva de Paulo se compõe de dois elementos: um
processo de radical assimilação que leva os batizados a viver “para
Cristo” (eis Christō) e, consequentemente, uma ética da
transformação que os conduz, no decorrer da história, a ousar viver
uma vida nova e peculiar, uma vida de batizados “em Cristo” (en
Christō). Aqui as preposições (eis: para; e en: em) têm uma
semântica efetiva a que é preciso atender. O acontecer de Cristo na
vida de cada um torna-se uma realidade tão transformante que
introduz uma radical contestação identitária. Há uma relativização
das fronteiras de género, étnicas ou de cidadania. A transformação
cristológica que instaura o sujeito crente determina assim uma
contínua “metamorfose das pertenças”. A existência cristã,
segundo Paulo, é uma existência metamórfica, que habita
criativamente a transformação trazida por Cristo. Crer em Cristo
significa participar do dinamismo de vida que está escondido e ao
mesmo tempo revelado no acontecimento da Sua ressurreição. É
uma novidade total, tornada possível apenas pela iniciativa de
Deus. Compreende-se assim o vocabulário da “nova criação”
(kainē ktisis) aplicado metaforicamente à existência dos crentes (2
Cor 5,17; Gal 6,5). Esse exprime de uma forma plástica a novidade
escatológica que doravante determina a sua existência. O que é um
cristão para Paulo: é um sujeito crente em construção, é uma
escolha de viver em estado de processo, de viver ao mesmo tempo
a plenitude e o inacabamento, o tesouro e o barro, a esperança e a
experiência. Um cristão para Paulo nunca é um assunto arrumado,
resolvido de uma vez por todas: mas é aceitar habitar uma tensão,
um fazer e refazer permanentes, sabendo que a fé que temos é
frágil e incompleta. Olhando, por exemplo, para a Primeira Carta
aos Tessalonicenses capta-se isso no uso que Paulo faz do verbo
“estabelecer/ confirmar” (stērixai). A fé da comunidade está, no
juízo de Paulo, em aberta e necessária maturação. O apóstolo
envia-lhes Timóteo para os “estabelecer/ fortalecer” (stērixai) (1
Tes 3,2) e reza para que o Senhor “faça crescer” e “estabeleça”/
“confirme” (stērixai) (1 Tes 3,13) os seus corações. E não só: ele
“especifica uma quantidade de caminhos onde ainda os seus
corações deverão ainda consolidar-se”. A fé não está por isso
fechada, em Tessalónica ou em lugar algum: ela é um declarado
work in progress.
10.O desafio a viver em estado de recomeço
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O Evangelho é, segundo Paulo, o meio pelo qual os crentes são
gerados (1 Cor 4,15). E é de uma verdadeira gestação que se trata.
Entre o ser e o tornar-se estamos inscritos, isto é, somos esta
“tensão entre o já e o ainda não que se reflecte nas imagens de
família: é verdade que podemos ser chamados família de Deus em
sentido estrito (Gal 3,26; Gal 4,6; Gal 4,7; Rom 8, 14; Rom 8,16);
mas também é verdade que ainda não recebemos a plenitude da
filiação (Rom 8,19.21.23)”. Precisamos por isso de ser gerados.
Parece-me pertinente, partindo desta premissa tipicamente paulina,
ir ao encontro daquilo que diz André Fossion sobre o presente
histórico da Igreja: “a fé cristã –diz ele - encontra-se hoje num
estado generalizado de começo ou de recomeço. Quem diz
«recomeço» diz, ao mesmo tempo, processo de morte e de
renascimento. Hoje assistimos, com efeito, tanto ao fim de um
mundo, como ao fim de um certo Cristianismo. Contudo, este não
é o fim do mundo nem o fim do Cristianismo. É antes um tempo
de germinação com tudo o que pode implicar de saudade – e
também de satisfação – por aquilo que morre, bem como de
incertezas e de esperança por aquilo que nasce. Trata-se, portanto,
de uma perda, mas também de reencontros noutros lugares e de
outra forma”.
Se é este o quadro histórico do nosso cristianismo, como favorecer
nele os começos da Fé? – pergunta-se Fossion. E ele próprio
responde: desaprendendo e reconstruindo um conjunto de
representações. A primeira dela liga-nos diretamente ao núcleo
vital da teologia de Paulo: precisamos de reaprender o significado
de criação. A criação não é o Big Bang inicial, como coisa que
deixamos no passado. A criação não só está atrás de nós: ela está
também no presente e, sobretudo, à nossa frente [no futuro]. Deus,
com efeito, não criou o homem; ele cria-o, e continuará a criá-lo.
Neste sentido, nós estamos sempre em estado de ser criados e de
criar: «Toda a criação geme e sofre as dores de parto até ao
presente», diz S. Paulo (Rm 8,22). A história humana, a aventura
crente é criação continuada, “é história de salvação que a potência
criadora de Deus acompanha, recomeçando, excedendo-se,
conduzindo-nos sem cessar para novos horizontes, para aspirações
ainda maiores”. Nós não somos simplesmente testemunhas de um
passado. Cada cristão é um documento do futuro.
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