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UNIVERSIDADE DE BRASLIA
FACULDADE DE DIREITO
REPRESSO POLTICA E USOS DA CONSTITUIO NO
GOVERNO VARGAS (1935-1937): A SEGURANA
NACIONAL E O COMBATE AO COMUNISMO
RAPHAEL PEIXOTO DE PAULA MARQUES
BRASLIA 2011
RAPHAEL PEIXOTO DE PAULA MARQUES
REPRESSO POLTICA E USOS DA CONSTITUIO NO
GOVERNO VARGAS (1935-1937): A SEGURANA NACIONAL
E O COMBATE AO COMUNISMO
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao da
Faculdade de Direito da Universidade de Braslia para a
obteno do ttulo de mestre em Direito.
rea de concentrao: Direito, Estado e Constituio
Linha de pesquisa 2: Constituio e Democracia: Teoria,
Histria, Direitos Fundamentais e Jurisdio Constitucional
Orientador: Prof. Dr. Cristiano Paixo
Braslia
2011
Aps sesso pblica de defesa desta dissertao de mestrado, o candidato
foi considerado ______________ pela banca examinadora.
________________________________________________
Prof. Dr. Cristiano Paixo
Orientador
________________________________________________
Prof. Dr. Gilberto Bercovici (FD-USP)
Membro
________________________________________________
Prof. Dr. Jos Otvio Nogueira Guimares (Departamento de Histria UnB) Membro
________________________________________________
Prof. Dr. Menelick de Carvalho Netto (FD-UnB)
Membro
Braslia, 2011
Para Babi
Sigamos ento, tu e eu,
Enquanto o poente no cu se estende
e
Samuel
Menininho, no cresa mais no, fique pequeninho na minha cano
AGRADECIMENTOS
A elaborao desta dissertao no teria sido possvel sem a ajuda e contribuio de
inmeras pessoas e instituies.
Gostaria de agradecer Advocacia-Geral da Unio pela concesso de licena-
capacitao que possibilitou, durante trs meses, minha dedicao integral pesquisa.
Agradeo aos Srs. Fernando Luiz Albuquerque, Secretrio-Geral de Consultoria, Jefferson
Cars Guedes, Diretor da Escola da AGU, e Carlos Alexandre de Castro Mendona, chefe da
Procuradoria Federal no FNDE.
Qualquer trabalho sobre a histria constitucional brasileira deve, obrigatoriamente,
realizar uma investigao de fontes primrias. Nessa rea, gostaria de agradecer imensamente
colaborao dos servidores do Centro de Documentao e Informao (CEDI) da Cmara
dos Deputados: a Lgia, Vnia e Paulo, da Seo de Documentos Histricos (SEDHI), aos
funcionrios da Seo de Histricos de Deputados (SEHID) e da Coordenao de
Relacionamento, Pesquisa e Informao (CORPI), pelas inmeras solicitaes de material.
Agradeo, tambm, ao Sr. Humberto Caetano de Souza, da Coordenao de Informao
Legislativa do Ministrio da Justia, ao Sr. Johenir Jannoti Vigas, Diretor da Diviso de
Acesso Informao do Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro, e a Sra. Lenora, da
Secretaria de Documentao e Produo Editorial do Tribunal Regional da 2 Regio.
Manifesto minha gratido, ainda, aos servidores do Setor de Arquivo do Superior Tribunal
Militar e do Supremo Tribunal Federal, especialmente ao Srs. Airton e Mrcio,
respectivamente.
Prestaram auxlio pesquisa, igualmente, a Coordenao de Atendimento Distncia
e Coordenao de Documentos Escritos do Arquivo Nacional, a Sala de Consulta do Centro
de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil (CPDOC/FGV), a Seo
de Arquivo do Senado Federal e as bibliotecas da Universidade de Braslia, Supremo Tribunal
Federal, Superior Tribunal Militar, Senado Federal, Cmara dos Deputados e da Advocacia-
Geral da Unio.
Tive a oportunidade de discutir parte da dissertao no primeiro encontro da Escola de
Graduados Alem-Argentina-Brasileira, realizado em Buenos Aires, nos dias 25 a 28 de abril
de 2011. Sou especialmente grato s observaes crticas de Airton Seelaender e de Walter
Guandalini Jr.
No mbito da Faculdade de Direito da Universidade de Braslia, sou grato a todos os
colegas e professores integrantes do grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e do
Observatrio da Constituio e da Democracia, com quem tive a oportunidade de discutir a
dissertao e enriquec-la com contribuies valiosas. Aprendi muito com todos vocs.
Obrigado, tambm, aos funcionrios da Secretaria da ps-graduao da FD, pela ateno e
disponibilidade.
Um reconhecimento especial deve ser feito a dois professores que contriburam de
forma decisiva para minha formao acadmica. Ao professor Menelick de Carvalho Netto
sou grato pelas lies crticas a respeito da teoria constitucional e as advertncias sobre o
carter limitado, provisrio, e histrico do conhecimento cientfico. Agradeo imensamente
ao professor Cristiano Paixo por ter aceitado o desafio de orientar a minha pesquisa.
Obrigado pela ajuda, pacincia e, acima de tudo, pelos valiosos ensinamentos sobre a histria
do constitucionalismo moderno. A abertura para a discusso de idias e o rigor acadmico do
professor Cristiano so caractersticas que inspiram e motivam os seus alunos.
Devo registrar, tambm, a ajuda de vrias pessoas que, direta ou indiretamente,
contriburam para melhorar esta dissertao; seja respondendo um e-mail, sugerindo
bibliografia, trocando opinies, indicando caminhos, emprestando livros, oferecendo auxlio.
Muito obrigado Diego Nunes, Milene Santos, Daines Karepovs, Fbio Koifman, Shawn
Smallman (Portland State University), Elisabeth Dale (University of Florida), Mariana
Santos, Valria, Silvinha, Anna Paula e Guillermo.
No plano familiar, agradeo a meus pais, Ana Izabel e Giovanni, pelo carinho e
dedicao. Obrigado por nunca pouparem esforos quando o tema era educao. A minha av
Terezinha deu-me a inspirao e o exemplo de vida. Meus sogros e cunhados, Marclio,
Ftima, Lucas e Natlia, foram essenciais na ajuda com Samuel.
Sou grato, por fim, a minha esposa, Bartyra. Sem a sua pacincia e dedicao, jamais
teria conseguido terminar a pesquisa. Alm do seu amor, pude contar com seu olhar crtico e
sua ajuda na melhoria da redao do texto. Este trabalho dedicado a ela e ao nosso filho
Samuel.
espera dos brbaros
Por que subitamente esta inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que to rpido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?
Porque j noite, os brbaros no vm
e gente recm-chegada das fronteiras
diz que no h mais brbaros.
Sem brbaros o que ser de ns?
Ah! eles eram uma soluo.
Konstantinos Kavfis
RESUMO
Esta dissertao tem por objetivo estudar a histria constitucional do primeiro governo
de Getlio Vargas, especialmente o perodo compreendido entre 1935 e 1937. Analisa-se, de
um ponto de vista histrico, a relao entre constitucionalismo e autoritarismo no contexto
conturbado da dcada de 1930. Embora governos autoritrios sejam regimes de exceo e o
constitucionalismo caracterize-se pelo respeito aos direitos fundamentais e pela separao de
poderes, parte-se do pressuposto de que ambos os termos so construes histrico-sociais e,
por isso, no interior de cada um latejam tendncias favorveis ao outro.
Observa-se essa tenso a partir do modo como a constituio moderna articula o
sistema do direito e da poltica na modernidade. Para analisar os usos da constituio e a
maneira como direito e poltica relacionaram-se no perodo estudado, adota-se, como fio
condutor, a represso estatal ao comunismo. Tenta-se compreender de que forma o
anticomunismo, principalmente o instalado depois do Levante Comunista de 1935, repercutiu
na Constituio de 1934. A hiptese que orienta a pesquisa sugere que, no contexto analisado,
a constituio foi relativizada em prol da salvao pblica do Estado e que o
anticomunismo da dcada de 1930 foi um fator chave para a suspenso do ordenamento
constitucional e para a criao das condies ideais ao golpe de Estado de 1937.
Considerando a seletividade de toda observao histrica, escolheu-se, como foco do
estudo e para responder ao problema levantado, fontes ligadas ao Executivo, Legislativo e
Judicirio, de modo a ampliar nossa percepo sobre a fora do discurso anticomunista. Para
isso, selecionaram-se as discusses legislativas relacionadas primeira lei de Segurana
Nacional, ao estado de emergncia e reforma constitucional que equiparou o estado de stio
ao estado de guerra. Investiga-se, ainda, a dinmica da represso policial sob o estado de stio
e de guerra. Por fim, examina-se a judicializao da represso, por meio do papel exercido
pelo Tribunal de Segurana Nacional, Supremo Tribunal Militar e Corte Suprema em alguns
processos especficos.
A dissertao demonstra a existncia de um pano de fundo que orientou grande parte
das decises tomadas pelos atores escolhidos: a compreenso de que o pblico est acima do
privado, de que o Estado precede a constituio. Embora seja esta a relao predominante,
resgatam-se prticas e discursos que privilegiam a formalidade constitucional e os direitos
fundamentais como limites atuao estatal.
ABSTRACT
The present text aims to study the constitutional history of the first government of
Getlio Vargas, especially the period 1935-1937. It analyzes, from a historical perspective,
the relationship between authoritarianism and constitutionalism in the context of the turbulent
1930s. Although authoritarian governments are regimes of exception and constitutionalism an
idea that reflects the respect for fundamental rights and the separation of powers, these terms
are historical and social constructions.
It is observed that tension from the way the modern constitution articulates the legal
and political systems in modernity. The study of law and politics in period studied and the
uses of the idea of constitution will be made in the context of the political repression of
communism. We try to understand how anti-communism, especially after the Communist
Rebellion occurred at 27th November 1935, reflected in the 1934s Constitution. The
hypothesis that guides the research suggests that the constitution was interpreted as a
instrument of government and anti-communism was a key factor in the suspension of
constitutional order and the creation of optimal conditions to the coup of 1937.
Considering the selectivity of all historical observation, it was chosen sources with
relation to the executive, legislative and judicial powers, in order to expand our perception of
the strength of the anticommunist discourse. For this, we selected the legislative discussions
related to the first national security law, the state of emergency and the constitutional reform.
It is investigated the dynamics of political repression under the state of siege and war. Finally,
it examines the role of the National Security Court, the Supreme Military Court and the
Supreme Court in some specific cases.
The dissertation demonstrates the existence of a background that has guided the
decisions taken by actors chosen: the understanding that the public is above the private, that
the state precedes the constitution. While this is the predominant relationship, we can identify
practices and discourses that emphasize the constitutional supremacy and the fundamental
rights as limits to the political power.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ACD Arquivo da Cmara dos Deputados
ANL Aliana Nacional Libertadora
ASF Arquivo do Senado Federal
ASTF Arquivo do Supremo Tribunal Federal
ASTM Arquivo do Superior Tribunal Militar
AGV Arquivo Getlio Vargas
AN Arquivo Nacional
ANC Assemblia Nacional Constituinte
CCJ Comisso de Constituio e Justia
CJPI Comisso Jurdica e Popular de Inqurito
CNRC Comisso Nacional de Represso ao Comunismo
CPDOC Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil
DANC Dirio da Assemblia Nacional Constituinte
DCN Dirio do Congresso Nacional
DCD Dirio da Cmara dos Deputados
DESPS Delegacia Especial de Segurana Poltica e Social
DOU Dirio Oficial da Unio
DPL Dirio do Poder Legislativo
FGV Fundao Getlio Vargas
HC Habeas corpus
LSN Lei de Segurana Nacional
PCB Partido Comunista do Brasil
PEC Proposta de Emenda Constitucional
PL Projeto de Lei
RHC Recurso em habeas corpus
SEDHI Seo de Documentos Histricos
STM Supremo Tribunal Militar
TSN Tribunal de Segurana Nacional
SUMRIO
Introduo________________________________________________________________12
Captulo 1 A construo do estado de exceo: criminalidade poltica, emergncia constitucional e suspenso de direitos fundamentais_____________________________22
1.1. O contexto do texto: represso poltica e anticomunismo na elaborao da Lei de
Segurana Nacional_________________________________________________________22
1.2. Emergncia constitucional e violncia policial no combate ao Levante Comunista____57
1.3. Da suspenso extino da constituio: mudana (in)constitucional e o golpe de Estado de 1937_____________________________________________________________96
Captulo 2 (In)justia poltica e anticomunismo: a judicializao da represso e a aplicao da Lei de Segurana Nacional______________________________________137
2.1. Julgando os subversivos: o Tribunal de Segurana Nacional e o Supremo Tribunal Militar
entre provas e possibilidades_________________________________________________137
2.2. A atuao da Corte Suprema: aplicando qual constituio?______________________166
Consideraes finais_______________________________________________________188
Referncias bibliogrficas__________________________________________________197
Fontes__________________________________________________________________205
Anexo I Composio da Corte Suprema (1935-1937)____________________________219
Anexo II Pedido de licena para instaurar processo-crime contra os parlamentares Abguar Bastos, Abel Chermont, Domingos Velasco, Joo Mangabeira e Octavio da Silveira_____221
Anexo III Arquivo da Comisso Nacional de Represso ao Comunismo_____________226
Anexo IV Processos n 1 e n 1-A do Juzo Comissionado para o Estado de Stio do Distrito Federal__________________________________________________________________231
INTRODUO
No dia 15 de setembro de 2010, foi aprovada a Lei n 12.326, autorizando a inscrio
de Getlio Dornelles Vargas no Livro dos Heris da Ptria, que se encontra no Panteo da
Liberdade e da Democracia em Braslia. De acordo com o deputado Severiano Alves, autor
do projeto de lei, a construo da nossa identidade nacional passa necessariamente pela
valorizao dos lderes [] sem o que no se cria entre os brasileiros os sentimentos de
pertencimento e de cidadania. Segundo a justificativa apresentada, Vargas teria sido o
brasileiro mais influente do sculo XX e o que mais tempo governou o pas. Para justificar
o perodo ditatorial do Estado Novo, o deputado argumentou que a par de sua natureza
autoritria e at mesmo fascista na anlise de alguns historiadores, consegue impor ao pas
uma modernizao na mquina poltico-administrativa com a implementao de vrias
medidas na rea trabalhista e a criao de inmeras estatais.1
No Senado Federal, uma de suas alas denomina-se Filinto Mller.2 Por sua vez,
Vicente Ro descrito como um dos grandes juristas brasileiros em livro dedicado ao tema
(RUFINO; PENTEADO, 2003). O que todos esses fatos tm em comum? So pequenas
amostras de como a memria relacionada ao governo de Getlio Vargas chega at ns.3
Esses trs personagens esto diretamente relacionados aos anos conturbados de 1935 a
1937, especialmente ao contexto poltico-jurdico que possibilitou a suspenso de grande
1 CMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de lei n 3.300/2004. Esse carter ambguo do Estado Novo tambm
seduziria Tancredo Neves: Toda ditadura abominvel. No h nada que justifique um regime de fora e usurpao de direitos, das liberdades essenciais e da dignidade da pessoa humana. Mas o Estado Novo tem a seu
favor realmente esse crdito: foi uma ditadura esclarecida, uma ditadura que impulsionou o pas para o encontro
do seu grande destino. Foi um governo muito audacioso, corajoso. Enfrentou a transformao industrial do
Brasil, enfrentou a mensagem social da poca e do momento, e trouxe algumas dimenses novas, da maior
importncia para o Brasil (apud CAMARGO et al, 1989, p. 242). 2 Houve uma tentativa de substituir o nome de Filinto Mller por Nelson Carneiro. A proposta de resoluo foi
de autoria do senador Srgio Cabral, que justificou a proposio no fato do Senado no poder ter uma das suas
mais importantes alas com o nome de um inimigo histrico das prticas democrticas. A proposta foi rejeitada e arquivada com base no parecer do senador Edison Lobo, com a seguinte motivao: Quanto ao seu passado nos acontecimentos que ingressaram na histria do nosso pas, o Senador Filinto Mller muitas vezes
confidenciou a amigos e colegas que as verses predominantes no correspondiam aos fatos acontecidos. No
correr da longa convivncia com Filinto Mller, os Senadores seus colegas deram crdito s suas palavras,
avalizadas pela correo, lealdade e cavalheirismo das suas atitudes pessoais (SENADO FEDERAL, Projeto de resoluo n 12/2003). Elio Gaspari (2004), em sua coluna na Folha de So Paulo, qualificou a proposta de
demaggica e autoritria, pois cassar homenagens coisa de ditaduras. 3 Na opinio crtica de Maria Tucci Carneiro, a memria de Getlio Vargas, poltico reverenciado pelas massas,
continua sendo lembrada por muitos brasileiros que, apesar de o saberem ditador, no se esquecem dos
benefcios que o cordial estadista trouxe ao pas. Alis, a persistncia dessa retrica , ainda nos dias de hoje,
sinal de que a doutrinao sustentada pela propaganda estado-novista surtiu efeitos e alcanou um dos objetivos
almejados: o do culto personalidade de Vargas, cuja imagem se confunde com a idia de nao e de Estado
moderno (CARNEIRO, 1999, p. 357).
parte da Constituio de 1934 e pavimentou o caminho para o golpe de 1937. De certo modo,
a dissertao relaciona-se com aquela memria. Afinal, a memria desse perodo tambm a
memria do direito (PAIXO, 2007).
A pesquisa pretende investigar a histria constitucional do governo de Getlio Vargas
no perodo 1935-1937. Para este objetivo, analisam-se os usos da constituio como forma,
como paramount law, e o papel exercido por ela entre direito e poltica a partir da experincia
constitucional brasileira no contexto da represso estatal ao comunismo. Tenta-se
compreender de que forma o anticomunismo, principalmente depois da Intentona
Comunista4 de novembro de 1935, contribuiu para o aprofundamento do autoritarismo e para
a suspenso da Constituio de 1934. Isto ser feito mediante a reconstruo da atuao do
Executivo, Legislativo e Judicirio. Qual foi a resposta do governo Intentona? Como a
Constituio de 1934 foi ativada diante de uma situao de emergncia? Qual o papel
exercido pelos direitos fundamentais durante a represso poltica aos comunistas? Como o
Judicirio e o Legislativo atuaram no contexto de exceo? Como foi observada a relao
entre Estado e Constituio?
Estas perguntas no podero ser respondidas sem um prvio esclarecimento,
conceitual e terico, dos termos adotados no presente trabalho acadmico. Partindo do
pressuposto de que a investigao do passado caracteriza-se como um conhecimento indireto
e conjectural, que no possibilita um encontro direto e imediato do historiador com a
realidade, pode-se afirmar que todo esforo de interpretao histrica um esforo de
interpretao de textos. Segundo Pietro Costa (2008, p. 25), a operao historiogrfica o
confronto de duas linguagens: a metalinguagem do historiador (a linguagem com a qual ele
trabalha) e a linguagem-objeto (a linguagem sobre a qual ela trabalha). Para Costa (2008, p.
26),
4 De acordo com Rodrigo Motta (2002, p. 76-77), alguns polticos e jornalistas utilizaram a expresso nos dias
seguintes revolta, mas a generalizao e a oficializao de Intentona Comunista para designar o levante de novembro de 1935 s se consolidou muitos anos depois. A adoo daquela expresso pela memria oficial
decorreu das necessidades estratgicas da luta anticomunista, na medida em que se tratava de desqualificar a
tentativa revolucionria de 1935. Intentona significa intento louco, motim insensato e exatamente esta a idia
que se pretende associar ao evento, representado desde ento como um captulo negro da histria brasileira. O termo no foi cunhado especialmente para a ocasio, ele j fazia parte do vocabulrio poltico brasileiro. [] no primeiro momento outras expresses prevaleceram como revolta, levante, insurreio e movimento extremista,
relegando intentona para o segundo plano. De acordo com Fernando Morais (1994, p. 362), teria sido Assis Chateaubriand o responsvel por batizar de intentona a revolta de 35. Por sua vez, o chefe de Polcia do DF, Filinto Mller, em relatrio enviado a Vargas depois da revolta, tambm utilizou o termo pejorativo
(FGV/CPDOC, GV c1935.12.03/03 XX-87, p. 11). Na dissertao, sero tambm utilizados os termos levante, rebelio, insurreio e revolta, para caracterizar o evento.
Convm estar ciente desse mecanismo. Esta cincia o principal
instrumento de que dispomos para evitar o jogo de espelhos, para evitar que
nossa narrao, fingindo representar o passado, fale na realidade somente do
nosso presente. Se realmente queremos dialogar com o passado, devemos
verificar de modo acurado as categorias conceituais que empregamos para
compreend-lo e para comunicar sobre ele. Devemos fazer um uso
instrumental e no final, operacional e no essencialstico das linguagens e
dos construtos tericos que usamos (e os que no podemos usar) para narrar
o passado, para interpretar os textos. [...] Em outras palavras: devemos
empregar a linguagem do nosso presente no para afirmar verdade (a nossa
verdade), mas para formular perguntas. O historiador no tem necessidade
de asseres, mas de perguntas: ele toma do seu presente os estmulos e os
materiais que servem para trazer problemas, para colocar perguntas: so
estas perguntas, as perguntas instigadas pelo seu presente, que lhe permitem
selecionar no conjunto catico dos textos do passado, os textos pertinentes; e
sero estes textos a oferecer respostas s perguntas previamente formuladas.
O que se entende, ento, por histria constitucional? Escrever sobre a experincia
constitucional falar do papel exercido pela constituio entre direito e poltica. Muito mais
que um simples estudo do texto constitucional, faz-se necessrio pr em relevo o aspecto
contingente de uma determinada constituio, suas vinculaes estrutura social, ao quadro
institucional, ao ambiente cultural e s circunstncias polticas do passado (SEELAENDER,
2007, p.172).5 Ademais, deve-se tentar compreender como os pressupostos do
constitucionalismo articularam-se concretamente em uma determinada prtica jurdico-
constitucional.6 Deve-se levar em conta, no entanto, que constituio e democracia so
termos que esto relacionados ao contexto histrico em que esto inseridos. Por isso, o
significado dos termos, e a relao entre ambos, distinto em cada poca. necessrio ter
isso em mente para evitar o risco do anacronismo: de interpretar conceitos e prticas do
passado com base em conceitos e prticas do presente.
Com o aumento do nmero de pases que adotaram um texto constitucional, a relao
entre constituio e constitucionalismo tende a ficar obscurecida. Ao longo do sculo XX,
5 Cf. no mesmo sentido, SUANZES-CARPEGNA, 2008; SARASOLA, 2009.
6 curioso notar a escassez de pesquisas sobre a histria constitucional brasileira. Para Leonardo Barbosa (2009,
p. 20-21), esse quadro alimenta a desconfiana de que estudos deste tipo so pouco importantes, pouco
interessantes e at mesmo constrangedores: Pouco importante porque a categoria explicativa central do direito seria a validade. Para determinar se uma norma ou no vlida e, portanto, se ela deve ou no reger uma relao
jurdica especfica, no necessrio qualquer investigao histrica alm da consulta aos dirios oficiais. [...] Por
que seria relevante para a prtica jurdica cotidiana questionar a respeito do que de fato ocorreu em determinado
episdio ou, ainda, por que as coisas correram daquela forma e no de outra? Pouco interessante porque a
histria constitucional do Brasil seria perifrica. Vive-se aqui um constitucionalismo de segunda mo, de iluses
importadas, sem qualquer glamour ou pedigree. [...] Por que deveramos procurar reabilitar o interesse em nossa cultura jurdica e, mais especificamente, em nossa experincia constitucional? E constrangedor, porque,
afinal, estaramos num pas que passou mais de um tero do ltimo sculo sob ditaduras que se valeram
descaradamente do direito constitucional para legitimar toda sorte de atrocidades. [...] Afinal, h algo de
relevante para a vivncia em um Estado democrtico de direito que possa ser apreendido por meio de uma
investigao sobre a experincia autoritria?
houve inmeras tentativas de estabelecer uma constituio escrita que negue manifestamente
os princpios do constitucionalismo moderno (DIPPEL, 2007, p. 11). Nem todos os regimes
constitucionais, portanto, atendem os pressupostos do constitucionalismo (ROSENFELD,
1994; HENKIN, 1994). A existncia de uma constituio escrita no implica, em absoluto,
uma garantia de distribuio e limitao do poder. Ao contrrio, ela no s incapaz de
impedir a irrupo do autoritarismo, como pode ser abertamente utilizada por regimes
autoritrios (BARBOSA, 2009, p. 11; LOEWENSTEIN, 1970, p. 213).
Essas consideraes abrem espao para discutir a relao entre constitucionalismo e
autoritarismo. A discusso sobre os dois termos sempre estimulante.7 Numa primeira
aproximao, so termos claramente antagnicos. Enquanto os regimes autoritrios8 so
regimes de exceo, espaos privilegiados de ao arbitrria, o constitucionalismo
caracteriza-se pela idia de limitao do poder, adeso ao estado de direito e pelo respeito aos
direitos fundamentais (ROSENFELD, 1994, p.3).9 Essa relao , todavia, bem mais
complexa, pois assim como as ditaduras so um constructo histrico, com suas bases
sociais, as democracias tambm o so. E, se esses regimes alternam-se no tempo, porque no
interior de cada um latejam tendncias favorveis ao outro (REIS FILHO, 2006, p. 17).
Nesse sentido, o exame da histria constitucional brasileira no perodo compreendido
entre 1935-1937 passa pelo necessrio resgate da maneira como os diversos projetos
autoritrios articularam-se no mbito do ordenamento constitucional. De acordo com Andrs
Saj (1999, p. 12):
Reconhecemos o constitucionalismo, ou melhor, a sua violao,
principalmente pela experincia. Ns aprendemos com a experincia que a
ausncia de determinadas condies e prticas, depois de um tempo ou em
grandes dificuldades, leva restrio da liberdade e opresso. [...] O
constitucionalismo um depsito de experincias, de governos mal
sucedidos e despticos inclusive, mas no uma coleo de receitas. No
pode fornecer frmulas concretas para uma constituio e para as prticas
7 Relativamente ao tema, os seguintes textos so particularmente interessantes: PEREIRA, 2010; BARBOSA,
2009. 8 No entendimento de Karl Loewenstein (1935, p. 580), regime autoritrio significa qualquer estrutura de
governo em que o princpio da separao e controle mtuo dos diferentes poderes pblicos passa a ter uma
concentrao de poder supremo nas mos de um homem ou um grupo de homens que no so controlados por
uma livre e irrestrita opinio pblica, e que exercem um poder absoluto sobre os poderes executivo, legislativo e,
geralmente, tambm sobre o poder judicirio. 9 o que consta no art. 16 da Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado de 1789: uma sociedade onde a
garantia dos direitos no for assegurada e a separao dos direitos estabelecida no tem constituio. Horst Dippel (2007, p. 10), ao escrever sobre o constitucionalismo moderno, fala de dez traos essenciais: soberania popular, princpios universais, direitos humanos, governo representativo, a constituio como direito supremo,
separao de poderes, governo limitado, responsabilidade e sindicabilidade do governo, imparcialidade e
independncia dos tribunais, o reconhecimento do povo do direito de reformar o seu prprio governo e do poder
de reviso da Constituio.
governamentais tecidas em torno dela, mas pode provocar repulsa e
indignao. [...] Idias constitucionais e constitucionalismo, em todos os
tempos, referem-se a abusos de poder porque eles existem na memria
coletiva. O texto constitucional, quando existe, pode nos ajudar a reconhecer
esses abusos.
Para analisar a prtica constitucional baseada na Constituio de 1934, e a forma como
foi articulada concretamente a relao entre direito e poltica, utilizar-se- a noo,
desenvolvida por Niklas Luhmann, de constituio como acoplamento estrutural do sistema
jurdico e poltico.10
A inveno da constituio no sentido moderno foi uma reao diferenciao
(moderna) entre direito e poltica e uma tentativa de resolver (ou esconder!) os seus
problemas: o problema da soberania poltica e o problema da positivao (autodeterminao)
do direito (CORSI, 2001). Com a secularizao da poltica e do direito, a idia de
constituio surge para responder a dois problemas de fundamento: a questo da fundao do
Estado, como forma moderna de organizao poltica, e a questo da fundao do direito,
como instrumento jurdico-coercitivo do Estado (MAGALHES, 1998).
Ao romper com o regresso infinito da fundao, a constituio oculta/prorroga o
paradoxo do direito e da poltica,11
transferindo o peso de um sistema para o outro: enquanto a
soberania agora atribuda ao povo, encontrando sua legitimao no vnculo jurdico-
constitucional, a legitimao da constituio como texto jurdico realizada pelo ato poltico
do poder constituinte originrio e pela legislao (LUHMANN, 1990).
Do ponto de vista jurdico, a novidade do conceito de constituio revela-se na
positividade de uma lei que funda todo o direito. A constituio a forma mediante a qual o
sistema jurdico reage sua prpria autonomia, negando qualquer tipo de fundamentao
externa. A inovao possibilita observar e avaliar todas as leis em vista de sua conformidade
ou no ao direito. Com isso, todo o direito colocado em situao de problematicidade, de
contingncia (LUHMANN, 1990).
Ao realizar a comunicao entre direito e poltica, a constituio legitima
juridicamente o exerccio do poder poltico e disponibiliza, para o direito, a coercibilidade da
esfera poltica. Consoante Giancarlo Corsi (2001), a constituio , mais que um vnculo, um
10
LUHMANN, 1990. Como complementos sero utilizados os estudos de Cristiano Paixo e Renato Bigliazzi
(2008), Giancarlo Corsi (2001) e Juliana Magalhes (1998). 11
Em ambos os casos, o problema manifesta-se como um paradoxo; o paradoxo do soberano que vincula/desvincula a si mesmo atravs de suas prprias decises e o paradoxo do direito que se arroga no direito
de discriminar de acordo com o direito, produzindo assim a diferena entre certo e errado, entre lcito e ilcito, e
assim por diante (CORSI, 2001).
fator de liberdade: o valor poltico das operaes jurdicas e o valor jurdico das operaes
polticas concentram-se, apenas, na referncia constituio, que estabelece os critrios de
organizao poltica do poder e os critrios de gerao do Direito. Para ambos os sistemas, a
constituio a fronteira interpretativa. A partir dela temos um critrio
(constitucional/inconstitucional) para centralizar a afirmao da validade ou da invalidade de
todo o direito e de toda a poltica (PAIXO; BIGLIAZZI, 2008, p. 16).
O fio condutor da nossa observao ser o impacto do anticomunismo, especialmente
aps o Levante de novembro de 1935, na forma constitucional. No decorrer do sculo XX, o
conflito entre comunismo e anticomunismo ocupou posio central, tornando-se elemento
destacado na dinmica poltica, jurdica e cultural, bem como nas relaes internacionais.
Depois da Revoluo Russa de 1917, o comunismo passou a ser percebido no s como um
movimento organizado, mas igualmente como uma alternativa poltica real em relao aos
regimes tradicionais. Na viso de Luciano Bonet (1998, p. 34), o anticomunismo assumiu
necessariamente valores bem mais profundos que o de uma simples oposio de princpios,
contida, no obstante, na dialtica poltica normal, tanto interna como internacional.
O termo anticomunista utilizado na dissertao no se resume apenas aos crticos das
idias comunistas ou dos integrantes do Partido Comunista do Brasil (PCB). Baseado no
contexto histrico examinado, interpreta-se o anticomunismo como uma justificativa plausvel
para a sistemtica represso da oposio poltica. Dentro desta lgica, comunista passa a ser
qualquer tipo de protesto poltico-social. Ser anticomunista, portanto, significa dividir
categoricamente a humanidade em dois campos e considerar o dos comunistas como o
campo daqueles que j no so homens, por haverem renegado e postergado os valores
fundamentais da civilizao humana (BONET, 1998, p. 35).12
Antes de Getlio Vargas tomar o poder, a questo social e os seus eventuais riscos
polticos ainda no eram associados diretamente ao comunismo. Alm dos anarquistas
possurem maior visibilidade poltica poca, o PCB s foi fundado no Brasil em 1922.
Inicialmente, o comunismo foi encarado como algo remoto, um problema exclusivo do velho
12
Conforme Ana Paula Palamartchuk (2004, p. 277-278), entre os anos 1920 e 1950, diferentes grupos imprimiram diferentes significados s palavras comunista e comunismo. No me refiro somente ao grupo
dissidente do PCB, que no incio dos anos 1930 definiram sua organizao como Liga Comunista de Oposio
de Esquerda ou aos trotskistas, mas tambm recorrncia com que as autoridades policiais colocavam no mesmo
caldeiro comunista grupos e pessoas que no tinham vnculos com o PCB, nem orgnicos nem de simpatia.
Atentar, por exemplo, para as noes de comunista e comunismo com as quais a polcia poltica trabalhava, entre
os anos 1930 e 1940, pode ser um bom caminho para perceber a multiplicidade de significaes que formaram
identidades comunistas e tambm anticomunistas. Comunista, ao menos para os anos 1920 e 1930, no era
sinnimo de membro do PCB e, de certa forma, era uma designao que expressava e reproduzia uma concepo
compartilhada socialmente e que podia ser aplicada a qualquer indivduo crtico ao capitalismo ou ao governo.
mundo (MOTTA, 2002, p. 6). A partir da dcada de 1930 esse quadro comeou a mudar. O
crescimento da agitao social e da polarizao ideolgica entre esquerda e direita, o
aumento dos quadros do PCB, a adeso de Luis Carlos Prestes s idias comunistas13
e a
criao da Aliana Nacional Libertadora so alguns dos fatores que chamaram a ateno das
elites polticas.
Entre 1930 e 1935, intensificou-se no interior de alguns grupos sociais a percepo da
necessidade de uma ofensiva anticomunista em defesa da ordem pblica.14
Em 1932, Vicente
Ro, ministro da Justia entre 1934 e 1937, escreveu um livro chamado Direito de famlia dos
Soviets. Era um alerta, aos patrcios menos avisados, sobre o mal que o veneno habilmente
distribudo pelos agentes de Moscou vem semeando por toda a parte. Consoante Ro (1932,
p. 5), pareceu ser necessrio oferecer e sujeitar meditao dos brasileiros a verdade nua e
crua, precisamente daquele aspecto do comunismo russo que lhes cautelosamente
sonegado. No livro, o professor da Faculdade de Direito de So Paulo tentava demonstrar a
obra diablica da dissoluo da famlia, ao denunciar a socializao das mulheres, a extino
do casamento religioso e a vulgarizao das relaes sexuais.
Contudo, foi a Revolta Comunista, ocorrida em novembro de 1935, a maior
responsvel pela instaurao do anticomunismo radical no Brasil.15
O perigo vermelho, at
ento presente apenas no mundo das idias, passou a ser visualizado, concretizado. O
ambiente de reprovao tornou-se ainda maior depois que a polcia revelou a participao de
agentes soviticos enviados pela Internacional Comunista (Komintern)16
e, tambm, aps a
divulgao de que alguns oficiais teriam sido mortos enquanto dormiam.17
Em saudao ao
povo brasileiro, no incio de 1936, Getlio Vargas definiu o comunismo como
13
A adeso de Prestes ao comunismo foi expressamente divulgada no seu manifesto Aos revolucionrios do Brasil de 06 de novembro de 1930 (BONAVIDES; AMARAL, 2002, p. 331). 14
Sobre o anticomunismo no Brasil, ver MOTTA, 2002; SILVA, C., 2001; FERREIRA, 2005. 15
A dissertao, nesse ponto, ser guiada principalmente pelos trabalhos de VIANNA, M., 2007; PINHEIRO,
2001; HILTON, 1986. 16
Os enviados de Moscou eram Olga Benrio, Arthur (Harry Berger) e Elise Ewert, Rodolpho e Carmen
Ghioldi, Leon-Jules e Alphonsine Vall, Franz e Erika Gruber, e Victor Allen Barron. 17
Essa talvez tenha sido, juntamente com o Plano Cohen, uma das maiores farsas do regime Vargas e com
maiores repercusses polticas e culturais para a histria do Brasil. Em relao aos revoltosos de 1935 no Rio,
apenas um foi condenado por homicdio de um oficial acordado pelo Tribunal de Segurana Nacional (ASTM, Processo n 01/1937). Em novembro de 1938, foi construdo um mausolu no cemitrio de So Joo
Batista para reunir os restos mortais dos oficiais e praas sacrificados na defesa da Ptria, contra o golpe comunista de 27 de novembro de 1935 (BRASIL, Decreto-Lei n 898, de 27 de novembro de 1938). O monumento serviu como local consagrado para as celebraes anuais da revolta comunista. A data somente
deixou de ser comemorada oficialmente na dcada de 1990 (DARAUJO, 2000, p. 17), o que no impediu o Clube Militar de comemor-la at hoje. Para Rodrigo Motta (2002, p. 120), o que a memria oficial pretendia comemorar, portanto rememorar nas celebraes da Intentona, era a vitria das Foras Armadas brasileiras sobre
o inimigo da ptria, o comunismo srdido e traioeiro. [] A nsia de apagar da memria a existncia de um levante comunista nas fileiras do Exrcito gerou atos oficiais curiosos e significativos. O principal foco da
rebelio no Rio, o quartel do 3RI, foi demolido. As trs unidades militares que aderiram quase inteiramente ao
O aniquilamento absoluto de todas as conquistas da cultura ocidental, sob o
imprio dos baixos apetites e das nfimas paixes da humanidade espcie de regresso ao primitivismo, s formas elementares da organizao social,
caracterizadas pelo predomnio do instinto gregrio e cujos exemplos tpicos
so as antigas tribos do interior da sia (apud FAUSTO, 2006, p. 75).18
Os reflexos do anticomunismo foram intensos no mbito constitucional. Depois do
Levante, instituiu-se o estado de stio e, posteriormente, o estado de guerra; foram suspensos
os direitos fundamentais e as imunidades parlamentares; criaram-se rgos especficos de
perseguio e julgamento dos subversivos. Pode-se afirmar que uma das maiores
consequncias dos acontecimentos de 27 de novembro foi o golpe de Estado de 1937 e a
instituio do Estado Novo. No era gratuito o fato de uma das justificativas para a outorga da
Constituio de 1937 inclusive consta no seu prembulo ter sido o perigo iminente de uma
nova rebelio comunista.
Considerando esse quadro, uma das hipteses do trabalho afirmar que o
anticomunismo, aliado idia de precedncia do Estado em relao constituio, foi uma
justificativa convincente para a instrumentalizao da constituio pelo Executivo, para a
suspenso dos direitos fundamentais e subverso da separao de poderes. Isto no impediu
que a irritao representada pelo argumento anticomunista encontrasse algum tipo de
resistncia, seja no Poder Legislativo ou no Poder Judicirio. Com base nas fontes analisadas,
pode-se afirmar que a salvao pblica, a segurana nacional, vinha antes e acima do
respeito pela formalidade constitucional.
A reconstruo histrica a ser empreendida possui um campo previamente delimitado.
Implica dizer que a pesquisa no tem a pretenso de ser uma reconstruo completa do
perodo ou mesmo de estabelecer como realmente aconteceram os fatos. Apesar de a idia de
verdade ser um ideal para a atividade do historiador distinguindo o que histria do que
fico deve-se reconhecer que toda observao histrica parcial, datada e influenciada
pelas pr-compreenses do pesquisador e pelo problema levantado.19
Isto impe ao trabalho
um carter seletivo: significa privilegiar alguns eventos particulares, escolher determinado
movimento, o 21 BC e o 29 BC, alm do 3RI, foram extintas por decreto presidencial. Duzentos anos antes,
teriam feito uso do sal. 18
Esse imaginrio associava o comunismo aos mais diversos males da humanidade, como ao demnio (diabo,
inferno); criaturas assustadoras (serpente, hidra, drago); agentes patolgicos (vrus, quisto, germe); ameaa
estrangeira (judeu, Moscou); imoralidade (assassinos, estupradores, corruptos, defensores do amor livre, da
socializao das mulheres e do aborto). Mais detalhes podem ser encontrados no livro de Rodrigo Motta (2002,
p. 47-48). 19
Conforme anota Carlo Ginzburg (2007a, p. 328), princpio da realidade e ideologia, controle filolgico e projeo no passado dos problemas do presente se entrelaam, condicionando-se reciprocamente, em todos os
momentos do trabalho historiogrfico da identificao do objeto seleo dos documentos, aos mtodos de pesquisa, aos critrios de prova, apresentao literria.
tipo de documento, dar mais ateno a certos desdobramentos polticos, em detrimento de
outros eventos e fontes20
que poderiam ser igualmente teis (PAIXO; BIGLIAZZI, 2008, p.
12).
Como em qualquer pesquisa comprometida com a histria, revelou-se essencial uma
anlise documental. Foi necessrio, assim, debruar-se sobre fontes primrias. Estas fontes
podem ser: pronunciamentos e propostas legislativas, decises judiciais, interrogatrios,
relatrios policiais, legislao, atas de reunies, cartas, circulares etc. O exame do material
encontrado no revela, adverte-se, uma realidade dada, mas indica, como qualquer texto
sujeito a interpretao, caminhos que possibilitam uma determinada explicao do passado.
Tentou-se, sempre que possvel, o contato direto com as fontes. No Rio de Janeiro,
trabalhou-se com documentos do Arquivo Nacional, do Arquivo Pblico do Estado do Rio de
Janeiro, do Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil
(CPDOC/FGV). Em Braslia, visitou-se o Arquivo da Cmara dos Deputados e do Senado
Federal, o Arquivo do Superior Tribunal Militar e do Supremo Tribunal Federal. Devido a
questes de prazo e de distncia, no foi possvel utilizar jornais da poca, salvo alguns
poucos exemplares que foram encontrados em um dos arquivos acima referidos. Em alguns
casos, o acesso a determinadas decises judiciais no pde ser feito diretamente, mas por
meio da publicao do acrdo em peridicos especializados. Nestas situaes, foi de grande
valia a contribuio das bibliotecas do STM e do STF. Em razo da dificuldade de acesso,
alguns documentos tiveram que ser consultados indiretamente, como no caso do Plano Cohen,
de certas atas de reunies ou de alguns jornais.
A dissertao est dividida em duas partes. No primeiro captulo, ser investigado o
modo como foi construdo o estado de exceo constitucional entre 1935-1937. Sero
analisadas as medidas implementadas a partir de 1935 para conter o avano comunista: a Lei
de Segurana Nacional, os institutos de emergncia acionados para combater a Intentona e a
dinmica da represso policial da decorrente. No ltimo item do captulo, ser examinada a
reforma constitucional que proporcionou a subverso da constituio, a suspenso das
imunidades parlamentares e as condies para o golpe de 1937. Em todos esses momentos,
ser observado o modo como a idia de constituio foi articulada.
20
s vezes, a escolha das fontes independe do prprio pesquisador. Um exemplo pessoal: no perodo que passei
no Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro, tive negado o acesso ao pronturio de Harry Berger (Arthur
Ewert) com base no argumento de que existiam informaes no documento que, se divulgadas, violariam a
intimidade e a vida privada do referido cidado. A advogada da instituio negou-se, inclusive, a fornecer uma
cpia do despacho que indeferiu o meu pedido. Lembre-se que o pronturio desejado era de um alemo que
viveu no Brasil de 1935 a 1946 e que morreu em 1959.
No captulo 2, a observao recair sobre o papel do Judicirio. O exame ser feito
sobre a atuao do Tribunal de Segurana Nacional e suas contradies frente ao Supremo
Tribunal Militar. Em um segundo momento, sero estudadas as decises da Corte Suprema21
e sua interpretao das limitaes constitucionais execuo do estado de stio. Ao final,
tentar-se- indicar algumas concluses acerca da influncia do anticomunismo na prtica
constitucional da poca e na idia de constituio como forma, e sobre o pano de fundo que
orientava grande parte das decises tomadas, especialmente a relao entre Estado e
constituio, pblico e privado.
21
Corte Suprema era a denominao do tribunal de maior grau hierrquico no ordenamento constitucional de 1934. Na esfera militar, o rgo judicial chamava-se Supremo Tribunal Militar.
CAPTULO 1 A CONSTRUO DO ESTADO DE EXCEO: CRIMINALIDADE POLTICA, EMERGNCIA CONSTITUCIONAL E SUSPENSO DE DIREITOS
FUNDAMENTAIS
1.1. O contexto do texto: represso poltica e a anticomunismo na elaborao da Lei de
Segurana Nacional
Ou a lei de segurana nacional ou a ditadura.
deputado Adalberto Corra (1935)
Para a compreenso da dinmica e do significado da represso poltica empreendida a
partir de 1935 faz-se necessria uma breve explicao do contexto histrico do perodo
anterior ao Governo Vargas, de modo a evidenciar quais os instrumentos jurdico-penais
existentes e quais as circunstncias que motivaram a elaborao da primeira lei de Segurana
Nacional no Brasil. Para Paulo Srgio Pinheiro (1991, p. 87), sem situar o aumento da prtica
repressiva numa esteira de precedentes, no h outra maneira de compreender a autorizao
legislativa para a represso contra a Aliana Nacional Libertadora (ANL), em 1935, com
entusistico apoio de grupos que lutaram pela constitucionalizao em 1932.
Foi somente a partir da dcada de 1930, com a subida de Getlio Vargas ao poder, que
ocorreu a especializao da legislao do direito penal poltico. Um processo que se
concretizou com a edio da primeira lei de Segurana Nacional (1935) e, mais tarde, com a
edio de vrios decretos-lei e a ausncia, no Cdigo Penal de 1940, de qualquer dispositivo
sobre a criminalidade poltica22
. A Lei n 38, de 04 de abril de 1935, inaugurou o critrio de
deslocar para leis especiais os crimes contra a segurana do Estado, o que sempre se fez para
submeter tais crimes a um regime especial de maior rigor, com o abandono de garantias
processuais (FRAGOSO, 2010).
A maneira como foi construda a represso poltica aos comunistas no Governo Vargas
pode ser relacionada a alguns antecedentes do incio da dcada de 1920. O tempo decorrido
entre 1920 e 1935 foi um dos mais ricos em transformaes e mais importantes da
22
Salvo o artigo 360 das disposies finais estabelecendo que ressalvada a legislao especial sobre os crimes contra a existncia, a segurana e a integridade do Estado e contra a guarda e o emprego da economia popular, os
crimes de imprensa e os de falncia, os de responsabilidade do Presidente da Repblica e dos Governadores ou
Interventores, e os crimes militares, revogam-se as disposies em contrrio. Para uma anlise mais aprofundada sobre o processo de elaborao do Cdigo Penal de 1940 e sua relao com a legislao de
segurana nacional, ver NUNES, 2010.
histria republicana (CAMPOS, 1982, p. 23). Neste perodo, a sociedade brasileira viveu
tempos de grande efervescncia e profundas transformaes manifestadas nos mais variados
planos. O ano de 1922, em especial, acomodou uma sucesso de eventos que mudaram
significativamente o panorama poltico e cultural nacional: a Semana de Arte Moderna, a
criao do Partido Comunista, o movimento tenentista, a criao do Centro Dom Vital, a
comemorao do centenrio da Independncia e a prpria sucesso presidencial de 1922
foram indicadores importantes dos novos ventos que sopravam (FERREIRA & PINTO,
2003, p. 389). A represso ao crime poltico comeou a passar por uma reformulao devido
ao aumento de protestos sociais e crescente mobilizao poltica dos movimentos sociais
que surgiam (SZABO, 1972, p. 16). Foi dentro desse quadro que se implantou uma espcie de
regime de exceo republicano:
Desde o incio da Repblica, a ansiedade das classes governantes foi
intensificada pelas supostas ameaas das dissidncias no movimento
operrio ou das polticas vinculadas aos movimentos semelhantes no
exterior, seja dos anarco-sindicalistas, seja dos comunistas aps a Revoluo
Russa de 1917. Esse sentimento em que se misturavam encenao e genuno
sentimento de insegurana agravada pelas revoltas militares dos anos 20 e 30, alm dos movimentos urbanos nas grandes cidades aguou nos grupos dominantes do poder e no Estado a necessidade da legislao de exceo. E
esse empenho de criminalizao do dissenso, da oposio, do protesto pode
ser considerado como a manifestao mais evidente do terror do Estado em
perodos constitucionais (PINHEIRO, 1992, p. 280).
Um fator importante na montagem do aparato repressor estatal foi a crescente
importncia do movimento operrio.23
Como registra Paulo Srgio Pinheiro (1991, p. 117),
as classes dominantes e os grupos no governo se assustaram. Havia uma dificuldade notria
em distinguir entre insurreies e greves, umas e outras confundidas no pavor. Tal fato levou
associao entre movimento operrio, idias subversivas e doutrinas estrangeiras
(anarquismo e comunismo).
A luta dos trabalhadores intensificou-se no mbito de um movimento internacional de
rebelio do trabalho, que exprimiu uma enorme fora catalisadora, notadamente a Revoluo
Russa de 1917 (DEL ROIO, 2007, p. 227). Desde 1910, vrios movimentos sociais
reivindicatrios de melhores condies de trabalho tinham balanado os grandes centros
23
Boris Fausto (1988, p. 10), ao falar sobre a existncia de uma classe operria antes de 1930, lembra que
dificilmente seria possvel pens-la como fora estruturada no plano sindical e de alguma forma unificada na ao poltica em direo ao Estado. Mas, em nvel mais modesto, possvel falar na existncia de um
movimento operrio na Primeira Repblica, se os parmetros para medi-lo forem menos ambiciosos. Com
variaes de lugar, de setor e de tempo, os organizadores organizavam alguma coisa, tinham em certas situaes
influncia difusa na grande massa, propunham objetivos bsicos coerentes a alcanar, buscados persistentemente
ao longo dos anos. O perodo 1917-1920 no correspondeu apenas a um pipocar de greves desesperadas mas a
uma rica conjuntura de ascenso de um movimento social preexistente.
urbanos com intensos movimentos grevistas, como em 1917, 1918 e 1919.24
Ademais, as
revoltas tenentistas de 1922, 1924 e a Coluna Prestes justificaram a escalada da represso do
Estado no apenas contra os revoltosos, mas contra os dissidentes polticos que queriam estar
ligados classe operria (PINHEIRO, 1991, p. 87).25
Esse cenrio pode explicar o agravamento da chamada questo social, considerada
at ento caso de polcia pela elite governamental. Quando candidato ao governo de So
Paulo, Washington Lus teria observado, no dia 25 de janeiro de 1920, que em So Paulo,
pelo menos, a agitao operria uma questo que interessa mais ordem pblica do que
ordem social (MORAES FILHO, 1978, p. 210 apud FRENCH, 2006, p. 387). Na verdade, o
alvo da frmula26
que seria mais tarde to bem apropriada (de forma estratgica) pelo
regime de Vargas no era a questo social ou do trabalho, mas a agitao operria.
Conforme Washington Lus, era o fenmeno das greves e dos protestos dos trabalhadores que
dizia respeito ordem pblica; em outras palavras, significava represso policial. Mas, para
ele (assim como para homens do ps-1930) essa agitao representava o estado de esprito de
alguns operrios e no da sociedade brasileira como um todo, pois o brasileiro era pacfico,
ordeiro. Quais seriam, ento, os operrios perigosos ordem pblica e que reclamariam uma
ao policial?
Eles so, declarava Washington Lus, os homens vindos de outros climas, habituados a outras leis, martirizados por sofrimentos por ns
desconhecidos, exacerbadas por males que aqui no medraram. So esses estrangeiros, dizia ele, referindo-se s recentes greves gerais, que agitam-se e agitam, num momento propcio, como seja o da carestia da vida resultante da guerra na Europa. So esses os homens que falam de reivindicaes de direitos que lhes no foram negados e que reclamam contra situaes que no existem aqui. (FRENCH, 2006, p. 387)27
24
Segundo Marcelo Badar Mattos (2007, 424-425), entre 1900 e 1915 foram realizadas 151 greves no Estado
do Rio de Janeiro e 119 no Estado de So Paulo. 25
De acordo com Paulo Srgio Pinheiro (1991, p. 107-108), o estado de stio, decretado por sessenta dias a partir da revolta de 5 de julho de 1924, serviu como pretexto para a investida policial contra as associaes
operrias, consideradas inimigas do governo. Apesar de no terem participado da revoluo de 1924, os militares
operrios sofreram a retaliao das foras legalistas. [] No Rio, foram suspensas todas as publicaes operrias, fechados os sindicatos e presos os mais destacados militantes. Alguns foram expulsos do Brasil, outros
enviados ao presdio na ilha Rasa e a maioria mandada para o campo de internamento em Clevelndia, como os
redatores de A Plebe de So Paulo. 26
Para uma excelente anlise do contexto e do significado da frase e de como ela foi apropriada pelo governo de
Getlio Vargas, cf. FRENCH, 2006. 27
A questo dos estrangeiros no incio do sculo XX no era simples: O perodo compreendido entre 1890 e 1930 passou por vrias novidades nos diversos mbitos sociais. A imigrao em massa promovida pelo Brasil foi
uma delas, acarretando, consequentemente, mudanas no cotidiano do trabalhador nacional. [] Em So Paulo, nos idos dos anos de 1890, 55% da populao era de estrangeiros e trabalhavam nos setores da indstria que
mantinham a imagem da metrpole moderna. No incio do sculo XX, esses dados no se alteraram, de modo a
ainda predominar a mo-de-obra estrangeira no mercado nacional. (MAGALHES, 2008, p. 39).
Nessa poca, uma das correntes ideolgicas exticas ou aliengenas com grande
influncia sobre o proletariado brasileiro era o anarquismo. Pode-se dizer que, em matria de
represso poltica, o movimento anarquista foi uma espcie de antecessor do comunismo das
dcadas posteriores. Como ressalta ngela de Castro Gomes (2005, p. 81), inegvel que de
1906 a 1919/1920 foram os anarquistas os maiores responsveis pelo novo tom que
caracterizou o perfil e a atuao dos setores organizados do movimento operrio.28
Independentemente de sua influncia e organizao, o importante registrar a maneira e a
intensidade da atuao das instncias repressoras estatais.
No perodo conturbado iniciado no primeiro ps-guerra e dentro do cenrio nacional
agitado pelas greves do final da dcada de 1910, ficou claro um enorme esforo desenvolvido
pelos rgos policiais, pela classe patronal e pela imprensa, para qualificar o anarquismo
como inimigo objetivo, atravs de uma estratgia poltica que os identificava como
estrangeiros e terroristas (GOMES, 2005, p. 85).29 Essa realidade pode ser identificada,
durante a dcada de 1920, atravs de duas ticas distintas, porm complementares: a
reformulao da estrutura policial e a construo de uma legislao til represso poltico-
social. Por meio delas, percebe-se a formulao de um novo tipo de criminoso, ao lado do
poltico: o social.30
Isto significava que o protesto social passava a constituir uma ameaa para
a prpria existncia do Estado.31
28
O 1 de Maio de 1906, as vrias greves ocorridas no Rio no segundo semestre deste ano, a greve paulista de 1907, a formao da Federao Operrio do Rio de Janeiro (FORJ) e a publicao entre 1908 e 1909 do jornal A
voz do trabalhador do bem a idia da fora desta proposta no interior do movimento operrio (GOMES, 2005, p. 81). 29
Nesta posio de mal externo que corri a nacionalidade, eles se tornaram os mais radicais inimigos da ordem constituda. Era secundrio o fato de serem ou no uma ameaa real e de terem ou no estabelecido relaes com
outros movimentos contestatrios (GOMES, 2005, p. 85). 30
Significativo dessa nova denominao no aparato repressor foi, alm da inovao legislativa, a reforma pela
qual passou a estrutura policial. Em 1920, o Decreto Federal n 14.079 deu novo regulamento Inspetoria de
Investigao e Segurana Pblica. Esta era uma instituio autnoma, diretamente subordinada ao Chefe de Polcia. O destaque ficava por conta da criao de uma Seo de Ordem Social e Segurana Pblica, sob a responsabilidade imediata e a direo exclusiva da Inspetoria, encarregada de velar pela existncia poltica e segurana interna da Repblica, atender por todos os meios preventivos manuteno da ordem, garantir o livre
exerccio dos direitos individuais, nomeadamente a liberdade de trabalho, desenvolver a mxima vigilncia
contra quaisquer manifestaes ou modalidades de anarquismo violento e agir com solicitude para os fins da
medida de expulso de estrangeiros perigosos. Dois anos depois, atravs do Decreto Federal n 15.848, criou-se a famosa 4 Delegacia Auxiliar, com as Sees de Ordem Poltica e Social. Em So Paulo, a Delegacia de Ordem
Poltica e Social que era subordinada ao Gabinete Geral de Investigaes e ao Chefe de Polcia estadual foi criada pela Lei n 2.034, de 30 de dezembro de 1924. 31
Regina Clia Pedroso (2005, p. 104) defende que o crime poltico, esboado nas primeiras legislaes, aperfeioou-se a tal ponto no sculo XX, que a expresso tomou conotao cada vez mais ampla, confundindo-
se, em alguns casos, com o crime social. Relativamente ao tema, Nelson Hungria, ao analisar a Lei de Segurana Nacional de 1935, afirmou que no h razo alguma para serem diversamente tratados os crimes polticos e os crimes sociais, pois tirante o regime jurdico da propriedade, da famlia e do trabalho, tudo mais que se contm na ordem social, segundo este ltimo preceito, matria tipicamente de ordem poltica, ou de
ordem poltico-administrativa (HUNGRIA, 1935, p. 63).
A produo legislativa voltada represso poltico-social nos anos 1920 foi
sintomtica do temor do Estado com relao manuteno do controle social e das
manifestaes oposicionistas, que caminhavam a passos rpidos, ganhando adeso das classes
trabalhadoras (PEDROSO, 2005, p. 103-104). A onda grevista de 1917 a 192032 gerou uma
presso suficientemente grande para que se avaliasse a necessidade de reformular e ampliar o
aparato repressivo especializado (MATTOS, 2007, p. 426).
A expulso talvez tenha sido um dos mais eficazes mecanismos de controle social
ativados pelo Estado para conter o estrangeiro subversivo. Ao longo da primeira metade do
sculo XX, um conjunto de estigmas foi reabilitado pelo Estado, interessado em
domesticar o fluxo imigratrio e controlar a mobilidade do estrangeiro radicado em territrio nacional. Uma srie de leis promulgadas desde o final
do sculo XIX incluram no rol dos culpados [] o operariado rebelde (anarquistas, socialistas e comunistas), distintos por seu trabalho, moral e
idias. O elemento estrangeiro era, na maioria das vezes, visado como
mentor e promotor de aes contra a ordem social e poltica. (CARNEIRO,
2003)
Em 1921, foi editado o Decreto n 4.247 para regular a entrada de estrangeiros no
territrio nacional. Comparado com o anterior Decreto n 1.641/1907 (Lei Adolpho Gordo), as
regras relacionadas expulso tornaram-se mais ambguas, proporcionando o aumento da
arbitrariedade na aplicao da legislao.33
Mediante a alterao legislativa, o Poder Pblico
poderia expulsar os indivduos considerados nocivos ordem pblica ou segurana
nacional durante o prazo de cinco anos contados da entrada do imigrante (o prazo anterior
era de dois anos). A medida era adotada mesmo contra aqueles que fossem casados com
brasileiros ou tivessem filho de nacionalidade brasileira, ao contrrio do regime anterior que
possua estas duas limitaes.34
Por outro lado, foram criadas condies para a imigrao,
relacionadas idade e condio fsica, bem como o requisito de no ser nocivo segurana
nacional. A obrigao do Executivo de enviar listas de expulso ao Poder Legislativo foi
revogada, o que representava, anteriormente, uma possvel clusula de controle parlamentar.
32
Em comparao com os anos anteriores (1913-1916), nos quais foram realizadas, pelo menos no Rio de
Janeiro, 17 greves, no perodo compreendido entre 1917 e 1920 ocorreram 91 greves (MATTOS, 2007). 33
Embora tenha a denominao de decreto, a legislao analisada, pelo menos a que foi publicada durante a dcada de 1920, tinha status material de lei, pois foi discutida e formalizada atravs do processo legislativo
estabelecido pela Constituio de 1891. 34
Para uma excelente anlise do processo de legalizao da expulso dos estrangeiros ocorrido entre 1910 e 1920 e a interessante posio do STF sobre tais medidas, vide BONF, 2009.
Aps a Emenda Constitucional n 03/1926, que reduziu o campo de aplicao do habeas
corpus e facilitou ainda mais a expulso, a situao s piorou.35
Dentro do mesmo pacote de medidas repressivas, em 17 de janeiro de 1921 foi
sancionado o Decreto n 4.269, que regulava a represso ao anarquismo.36
Para Pinheiro
(1991, p. 121), atravs dos crimes descritos nessa lei pode-se reconstituir a percepo das
classes dominantes em relao s manifestaes do movimento operrio. Em grande parte
dos tipos penais estabelecidos pelo novo decreto, o objetivo pretendido pelo criminoso
deveria ser subverter a organizao social. A legislao aumentava as penas para o crime
previsto no art. 206 do Cdigo Penal de 1890, que era o de causar ou provocar cessao ou
suspenso de trabalho por meio de ameaas ou violncia para impor aos operrios ou patres
aumento ou diminuio de servio ou salrio.37 Por sua vez, o art. 12 autorizava o governo a
ordenar o fechamento, por tempo determinado, de associaes, sindicatos e sociedades civis
quando incorram em atos nocivos ao bem pblico.
Com a posse do Presidente Washington Lus no final de 1926 e com o fim do estado
de stio que durou todo o mandato do seu antecessor38
, a classe operria comeou a se
movimentar novamente. O PCB, que se encontrava na ilegalidade desde 1922, voltou a atuar
abertamente. Ps a servio de sua propaganda um jornal dirio, A Nao, fundou o Bloco
Operrio [que elegeu um representante para a Cmara dos Deputados] e intensificou o
trabalho nos meios operrios com a realizao de congressos e organizao de entidades
sindicais (MOTTA, 2002, p. 6-7).
Em 1927, ao analisar mais uma etapa da instrumentalizao do direito em prol da
criminalizao do dissenso poltico, encontra-se um indcio das primeiras mudanas no
discurso estatal; na verdade, uma alterao no alvo a ser atingido.
35
Segundo os dados do Anurio Estatstico do Brasil (IBGE, 1939-1940), entre os anos de 1921 e 1926 foram
feitas 56 expulses, ao passo que de 1927 at 1930 foram feitas 540 expulses. Os nmeros parecem indicar que
a alterao constitucional foi eficaz. 36
Vale a pena transcrever a defesa realizada por Nelson Hungria (1935, p. 61) dessa legislao: preciso convir que a legislao excepcional contra o anarquismo atendera a um sentimento de indignao universal. Com
o seu desvairado objetivo de retorno ao primitivo pr-estatal e os seus apstolos arrebanhados no seio da mais
feroz delinquncia, assassinando, incendiando, dinamitando, o anarquismo se torna um alarmante fenmeno de
patologia social, que precisava ser conjurado por honra mesmo da Humanidade e da Civilizao. Praticamente,
todos os processos de reao contra ele, por mais aberrantes das normas penais comuns, eram justificados. 37
Lembre-se que na redao original do Cdigo Penal de 1890, antes de ser alterado pelo Decreto 1.162/1890,
no existia a meno violncia ou ameaa, o que, na prtica, tornava qualquer tipo de greve praticamente
ilegal. 38
Arthur Bernardes governou durante todo o seu mandato (15.11.1922 at 15.11.1926) sob estado de stio. Ao
total, foram 1.287 dias em situao de emergncia constitucional (ESTADO DE STIO, 1964).
A alterao do olhar repressivo pode ser visto a partir da edio do Decreto n 5.221,
de 12 de agosto de 1927, a chamada Lei Celerada.39 O projeto original foi elaborado no
Senado em 1924, sendo reapresentado em 1926. Pretendia tornar inafianveis e aumentar as
penas dos crimes previstos no Decreto n 1.162/1890, que limitava o exerccio do direito de
greve. Durante o processo legislativo, o deputado Anbal de Toledo, aproveitou a atmosfera
anticomunista provocada por informaes da imprensa sobre uma suposta conspirao
revolucionria orientada por Moscou40
para oferecer um substitutivo, ao PL original, de modo
a alterar o art. 12 do Decreto n 4.269/1921 (represso ao anarquismo).41
O dispositivo
proposto parecia ter endereo certo: os comunistas.42
Antecipando uma ttica que iria ser repetida inmeras vezes durante o governo de
Getlio Vargas, as autoridades utilizaram o discurso anticomunista para justificar as medidas
repressivas preconizadas pela Lei Celerada. A estratgia baseava-se em documentos
secretos comprobatrios de um suposto compl internacional financiado pelo ouro de
moscou.43 De acordo com Paulo Srgio Pinheiro (1991, p. 123),
39
Alguns trabalhos historiogrficos divergem quanto denominao de lei celerada. A maioria, entre eles MOTTA (2002) e FERREIRA (2005), atribuem o apelido para o Decreto n 5.221/1927. Para outros, como
PINHEIRO (1991, 118), este decreto seria uma espcie de lei supercelerada, pois lei celerada seria o Decreto n 4.269/1921. 40
Para uma descrio sobre tais fatos, ver PINHEIRO, 1991, p. 127-130 e MEIRELLES, 2006, p. 65-77, em
especial o trecho a seguir: A cronologia e o encadeamento de fatos aparentemente sem ligao entre si obedeciam a uma lgica perversa. Primeiro, fora a intransigncia do patro em acatar a lei de frias, aumentando
o clima de revolta nas fbricas; depois, a violenta represso contra os trabalhadores da Light, acompanhada de
prises e demisses em massa; em seguida, a estroinice do livro branco para caracterizar a influncia do credo
vermelho na organizao do proletariado. A histria da greve e dos atentados alertava a populao sobre o perigo
que as idias exticas representavam para um pas que se dizia livre, soberano e cristo (MEIRELLES, 2006, p. 71-72). 41
A redao do art. 12 era a seguinte: o Governo poder ordenar o fechamento, por tempo determinado, de associaes, sindicatos e sociedades civis quando incorram em atos nocivos ao bem pblico. Pretendia-se dar autorizao para o governo proibir, tambm, a propaganda comunista. Depois da aprovao da lei, a redao do
artigo ficou assim: o Governo poder ordenar o fechamento, por tempo determinado, de agremiaes, sindicatos, centros ou sociedades que incidam na prtica de crimes previstos nesta lei ou de atos contrrios
ordem, moralidade e segurana pblicas, e, quer operem no estrangeiro ou no pas, vedar-lhes a propaganda,
impedindo a distribuio de escritos ou suspendendo os rgos de publicidade que a isto se proponham, sem
prejuzo do respectivo processo criminal. 42
Porm, como ressalva MOTTA (2002, p. 8), embora os comunistas fossem o principal alvo visado, os anarquistas tambm no estavam a salvo do aparato repressivo, o que pode ser observado pelo encerramento do
jornal A Plebe. Na verdade, neste momento os comunistas ainda no ocupavam sozinhos o papel de inimigo
revolucionrio. 43
Conforme Rodrigo Patto S Motta (2002, p. 7), em maio de 1927, a imprensa recebeu da polcia informaes sobre a descoberta de uma suposta conspirao revolucionria urdida pelos comunistas da capital federal, que
pretenderiam paralisar o transporte pblico e interromper o fornecimento de energia eltrica para a cidade. O
assunto foi objeto de grande explorao, pois a polcia e setores da imprensa transformaram o que parecia ser
uma greve em preparao num terrvel plano dos revolucionrios, cujo sucesso poderia implicar a transposio
do regime bolchevista para o Brasil. No ms seguinte, apareceram matrias jornalsticas falando da descoberta de
informaes sobre a interferncia da Internacional Comunista nas aes do PCB. Divulgou-se que o Komintern
decidira transformar o Brasil no centro principal do comunismo na Amrica do Sul, encaminhando para c
agentes estrangeiros e uma verba de 50 mil dlares para fomentar os ncleos bolchevistas operantes no pas.
O temor quanto presena de agentes russos e suas contribuies (inclusive
financeiras) para a revoluo era acompanhado, no debate pblico e
parlamentar, de alertas contra a propaganda bolchevique. Esse estado de
tenso, para o qual contriburam todas as greves ou manifestaes dos
comunistas, por mais limitadas que fossem, serviam para demonstrar uma
grande conspirao em curso.
Os debates ocorridos na Cmara dos Deputados antecipavam o que ocorreria nas
dcadas seguintes. A discusso mais acalorada envolveu o art. 2 do substitutivo que
praticamente anulava o direito de reunio, de associao e de liberdade de expresso previstos
no art. 72, 8 e 12, da Constituio de 1891.44
Aps a aprovao, em uma sesso
clandestina e com direito a apresentao de documentos secretos comprobatrios da
subverso iminente45
, a Comisso de Justia da Cmara dos Deputados aprovou o parecer do
relator Anbal de Toledo. O principal argumento a favor das novas medidas legislativas era o
perigo da onda vermelha, a defesa da entranhada organizao social [...] visada pelos
exploradores estrangeiros na propaganda subversiva irradiada de Moscou, que ora se assenta
em solo brasileiro a sua base de operaes na Amrica do Sul (DCN, 13.07.1927, p. 2016). E
continuava:
A imensa desigualdade social e econmica que as grandes indstrias vieram
estabelecer entre o capital e o trabalho, exigia e exige efetivamente do poder
pblico medidas tendentes a um meio termo nivelador que corrija e injustia
e a votar, quantas leis se tornem necessrias para atingirmos esse objetivo
profundamente humano e rigorosamente justo. Mas, desde que estas se no
conformam com a [] reivindicao pelos processos normais da evoluo, dentro da ordem instituda, e deixam se empolgar por agentes estrangeiros
que buscam instilar-lhes o sentimento da revolta, da sublevao e da
desordem [] o Estado e a sociedade so forados a reagir em defesa de suas tradies, do seu passado, do seu patrimnio poltico e moral, da sua
higiene mental, da sua prpria honra individual e coletiva (DCN,
13.07.1927, p. 2017).46
44
Art. 72. A Constituio assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no Pas a inviolabilidade dos direitos concernentes liberdade, segurana individual e propriedade, nos termos seguintes: 8 - A todos lcito
associarem-se e reunirem-se livremente e sem armas; no podendo intervir a polcia seno para manter a ordem
pblica; 12 - Em qualquer assunto livre a manifestao de pensamento pela imprensa ou pela tribuna, sem
dependncia de censura, respondendo cada um pelos abusos que cometer nos casos e pela forma que a lei
determinar. 45
Ao criticar tal fato, o deputado Azevedo Lima revelou que em sesso clandestina e secreta a Comisso de Justia desta Cmara resolveu no s adotar a idia que est sendo, neste momento, violentamente combatida
pelas classes trabalhadoras, ainda, ampliar-lhe os termos e estender as medidas repressivas no s aos indivduos
ou operrios, mas tambm aos sindicatos, institudos e aos rgos de publicidade que se manifestarem simpatias
a essas classes. [] No acredito Sr. Presidente, na veracidade dos documentos que o relator do projeto teve ocasio de exibir aos seus pares, na Comisso de Justia []. (DCN, 13.07.1927, p. 2022). Embora tenha sido aprovado um requerimento para que os documentos secretos comprobatrios do iminente golpe comunista
fossem apresentados, estes nunca se tornaram pblicos. 46
No entendimento de Paulo Srgio Pinheiro (1991, p. 125), aqueles que estavam patrocinando o projeto Anbal de Toledo agiam por medo do comunismo, tornando a situao pior por recorrerem represso em vez de
promoverem a legislao social: o Cdigo do Trabalho estava parado no Congresso, a Lei de Acidentes do
Trabalho sem efeito, e a Lei de Frias e Penses para os ferrovirios desrespeitada.
A estratgia da minoria parlamentar foi apoiar-se na constituio. O substitutivo, alm
de reprimir ainda mais o movimento grevista, violava expressamente o direito de liberdade de
expresso, associao e reunio previstos constitucionalmente. De acordo com o deputado
Plnio Casado, mais tarde membro da Corte Suprema, o legislador ordinrio poderia regular
os abusos praticados no exerccio dessas liberdades, mas no poderia diminuir, restringir e
adulterar a essncia da prpria garantia (DCN, 29.07.1927, p. 2446).
Um perigoso argumento surgido no debate, e que orientaria grande parte da atuao
estatal aps o levante comunista de 1935, tentava responder a seguinte pergunta: at que
ponto pode uma democracia tolerar os inimigos da democracia? Para Anbal de Toledo, a
Constituio no pode ter dispositivo suicida; no pode consentir em propaganda contra a sua
prpria vida (DCN, 13.07.1927, p. 2022). Ao responder o questionamento do deputado
Adolpho Bergamini (grande crtico da Lei de Segurana Nacional em 1935), sobre o respeito
do parlamento Constituio de 1891, o mesmo deputado Toledo forneceria uma soluo
para a indagao acima: V. Ex. tem o direito de se apoiar na Constituio, porque no
comunista. O Sr. Azevedo Lima, entretanto, quer a subverso no s da Constituio, como
de toda a ordem constitucional do Brasil; no tem, portanto, o direito de apelar para ela. O
que a oposio defende, na viso de Bergamini, no se trata [] de direitos, nem de
liberdade de opinio. A destruio da ptria no uma opinio: um crime! () Para o
governo e o parlamento, como para as massas trabalhadoras, a palavra de ordem deve ser a
mesma: o comunismo eis o inimigo! (DCN, 28.07.1927, p. 2398). A aprovao da Lei
Celerada ocorreu no dia 28 de julho de 1927.47 Logo depois, foi enviada ao Senado e
aprovada sem maiores dificuldades.48
Vale deixar claro, entretanto, que a pequena onda anticomunista de 1927 permanece
fato isolado no interior de uma fase em que predominava a caracterizao do comunismo
como um problema distante, um exotismo tpico das estepes asiticas, para usar linguagem
tpica da poca (MOTTA, 2002, p. 8). Ilustrativo desta hiptese a interessante deciso
tomada, em 1927, pelo Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus n 19.495. O HC,
47
Quanto ao placar da votao, Paulo Srgio Pinheiro (1991, p. 126) e Domingos Meirelles (2006, p. 94)
defendem nmeros distintos: Pinheiro afirma que foi 115 a 27 e Meirelles indica 118 a 27. Porm, a informao
mais correta a seguinte: a votao, devido a um requerimento parlamentar, foi realizada por artigos: o art. 1,
que aumentava as penas do crime previsto no Decreto n 1.161/1890, foi aprovado por 118 a 18 e o art. 2, que
autorizava o fechamento de sindicatos, associaes e rgos de propaganda subversivos, foi aprovado por 115 a 27 (DCN, 29.07.1927, p. 2447). 48
A aprovao da lei motivou vrios protestos populares, como o comcio promovido no dia 04 de agosto de
1927. De acordo com Domingos Meirelles (2004, p. 94), a manifestao surpreendera o governo. Cerca de 10 mil pessoas compareceram ao meeting organizado, na Praa Floriano, pelo Ncleo de Defesa dos Direitos
Constitucionais, formado, em sua maioria, por jornalistas e intelectuais.
impetrado pelo professor e advogado Edgard de Castro Rebello uma das vtimas da
represso em 1935 , tinha como objeto a realizao de um evento comemorativo dos trs
anos da morte de Vladimir Iliitch Ulianov, mais conhecido como Lnin. Na reunio, estudar-
se-ia a obra do grande morto, como escritor, como poltico, homem de ao e homem de
governo, e apontando-o como exemplo aos contemporneos e posteridade.49 Contudo, o
evento, que seria realizado em local cedido pela Unio dos Operrios em Fbricas de Tecido,
foi proibido pelo quarto delegado auxiliar, por seu suposto carter subversivo. No julgamento,
o STF decidiu de uma maneira impensvel aps 1935 conceder a ordem, com base no
direito liberdade de reunio:
Acordam conhecer do pedido, por ser caso de habeas corpus, visto como,
sem a garantia da liberdade de locomoo, no poderiam os pacientes
exercer o direito de livre reunio, e, De meritis, conceder a ordem impetrada,
nos termos expostos, porque esse direito de reunio e sem armas
expressamente assegurado pela Constituio, no podendo intervir a polcia,
seno para manter a ordem pblica.50
A partir de 1930, este quadro comea a mudar. As transformaes surgidas
contriburam para que o comunismo passasse a ser visto cada vez mais como um perigo
interno, digno de ateno cuidadosa das autoridades responsveis pela manuteno da ordem
(MOTTA, 2002, p. 8).
Chegou o momento de analisar a nota distintiva do regime Vargas. Quais os pontos de
ruptura e de continuidade? Houve mudana no tratamento do dissenso poltico? Qual o papel
exercido pelo anticomunismo, principalmente a partir de 1934, na relao entre direito e
poltica? Como a questo constitucional, a observncia a determinados limites impostos pelos
direitos fundamentais, foi vista no contexto que antecedeu a revolta comunista de 1935 e,
principalmente, na elaborao da Lei de Segurana Nacional?
A posse de Getlio Vargas na Presidncia da Repblica deu-se em 03 de novembro de
1930.51
Como todo regime autoritrio moderno, teve a necessidade de instituir-se
49
ASTF, Autos do HC n 19.495, 02.05.1927. 50
ASTF, Autos do HC n 19.495, 02.05.1927. O relator do HC foi o ministro Hermenegildo de Barros. Votaram
pela concesso da ordem Bento de Faria, Muniz Barreto e Geminiano da Franca. Como veremos mais frente,
Hermenegildo Barreto e Bento de Faria no seriam to liberais aps 1935. A argumentao do voto vencido,
elaborado pelo ministro Pedro dos Santos, era bem diferente e seria bastante reproduzida alguns anos mais tarde:
Est em causa o direito de defesa social contra elementos francamente subversivos da ordem []. Seria pueril supor-se que o regime sovitico, triunfante, tolerasse uma reunio dos denominados burgueses para propugnar
pelo restabelecimento do regime atual a garantia de todos os direitos e de proteo a todas as liberadades. O mais interessante, nesse caso, que a justificativa apresentada pela polcia e pelo ministro da Justia em 1927
antecipava os argumentos apresentados por Filinto Mller e Vicente Ro em 1935-1937. Em 1927, pelo menos,
o nus da prova ainda cabia a quem acusava. 51
Do ponto de vista historiogrfico, uma das melhores interpretaes do contexto e do significado da
Revoluo de 1930 a de Boris Fausto (2008).
juridicamente, de legitimar-se atravs de uma constituio. Embora no o fizesse de imediato,
a Revoluo de 1930, ao tempo que institua poderes discricionrios, assumia um
compromisso com a reviso da legislao vigorante e com a reintegrao da nao num
regime legal, atravs do processo poltico de convocao de uma Constituinte (GOMES,
2007, p. 20). Ao firmar o compromisso, desde logo, com o processo de constitucionalizao,
o novo regime tentava assegurar sua legitimidade. No era toa que se autodenominava
provisrio.
O ato jurdico fundador ocorreu em 11 de novembro do mesmo ano, com a publicao
do Decreto n 19.398. Na verdade, este decreto era, materialmente,52
uma constituio
(LOEWENSTEIN, 1944, p. 18), pois suspendia a Constituio de 1891, dissolvendo o
Congresso Nacional e atribuindo, ao governo, as funes no s do Poder Executivo, como
tambm do Poder Legislativo, at que, eleita a Assemblia Constituinte, estabelea esta a
reorganizao constitucional do pas (art. 1 e art. 2). Suspendeu as garantias constitucionais
e excluiu, da apreciao judicial, os atos praticados pelo governo provisrio e pelos
interventores, mantendo, apenas, a garantia do habeas corpus em favor dos criminosos
comuns (art. 5). Chama a ateno o disposto no art. 4, que manteve em vigor a Constituio
de 1891, porm sujeitas s modificaes e restries estabelecidas por esta lei ou por decreto
dos atos ulteriores do Governo Provisrio ou de seus delegados.
Iniciava-se, assim, o perodo de 15 anos do primeiro Governo Vargas. Um perodo
transcorrido, em sua maior parte, sob regime de exceo; normalidade constitucional mesmo,
somente em dois curtssimos perodos: a) entre julho de 1934 e novembro de 1935 e b) entre
julho e setembro de 1937. Apesar da marca distintiva do governo Vargas ter sido, desde os
primeiros dias, a centralizao poltica, isto no foi alcanado de imediato.
Pelo contrrio, o Governo Provisrio teve de tatear em muitas medidas, teve
de enfrentar o descontentamento de velhos amigos pertencentes s
oligarquias regionais, teve de enfrentar revoltas dos quadros inferiores,
presses tenentistas no mbito das Foras Armadas e, sobretudo, a guerra paulista, desfechada em 1932. Mas o processo poltico que se desenrolou ao longo do perodo levou ao reforo do poder central e reconstruo do
Estado, que ultrapassou vitoriosamente suas maiores dificuldades (FAUSTO,
2008, p. 22).
Para Paulo Srgio Pinheiro (1991, p. 269), o Governo Provisrio foi um estado de
exceo, uma ditadura como nunca se havia visto antes. Como bem diagnosticou
52
Segundo Rogrio Soares (1986, p. 36-38), o termo constituio material revela a idia de que qualquer comunidade poltica supe uma ordenao fundamental que a constitui e lhe d sentido, ou seja, que indica o titular do poder e que d corpo comunidade. J a noo de constituio formal relaciona-se com a idia de
Estado moderno, indicando um acto fundacional, uma lei positiva organizadora do Estado.
Loewenstein (1944, p. 19), o regime provisrio iniciado em 1930 continha muitas das
caractersticas da constituio de 193753
, o que torna o intermezzo constitucional (1934-1937)
mais um desvirtuamento que um encaminhamento natural ou o cumprimento de uma
promessa assumida anteriormente.54
Portanto, o processo de convocao da constituinte de 1933-1934 foi muito mais uma
decorrncia de fatores externos que uma vontade deliberada de Vargas. Adiou-se, durante
mais de um ano, qualquer expediente visando constituinte. A promulgao do Cdigo
Eleitoral e a fixao da data das eleies para a assemblia constituinte55
, medidas tomadas
em 1932 e relevantes para a constitucionalizao do pas, representavam uma tentativa de
acalmar o clima poltico. Todavia, no foram suficientes para evitar a ecloso, em julho de
1932, da Revoluo Constitucionalista. Apesar de derrotada militarmente, a revolta paulista
conseguiu impor o objetivo poltico a que se props: a imediata reconstitucionalizao do pas
(GOMES, 2007, p. 25). 56
Dois anos depois, em 16 de julho de 1934, foi promulgada a terceira constituio do
Brasil.57
Embora Vargas tenha exercido certa influncia sobre os trabalhos constituintes, o
53
Em sentido semelhante, Elisabeth Cancelli (1994, p. 19) defende que o golpe de 37 representava a confirmao definitiva do que se instalava desde os primeiros dias de Outubro de 1930. Durante todo o tempo o
regime tratou de disseminar, divulgar e jamais esconder sua verdadeira natureza. No se est querendo dizer que a implantao do Estado Novo foi uma decorrncia natural e obrigatria da revoluo de 30, mas que, analisando todo o perodo do primeiro Governo Vargas, o breve tempo