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Fab10 Ventunn1
UM MONSTRO CRIADO POR QUEM QUER
DELE SE DEFENDER
Jornalistas e educadores denunciam uma perseguição o professores que não se comportam ou usam em solo de aula termos sem correção político. O antipatrulhamento, no entonto, requer análise cuidadoso poro não reforçar o luto pelo direito de continuar o discriminar
e asas como esses apresentados acima, na Cena 1 e na Cena 2, cuja notoriedade e denúncia têm se tornado corriqueiros no Brasil, levantam a
questão: o professor é perseguido por uma patrulha ideológica que tenta impor um "clima do politicamente correto" ou há um movimento diferente, no sentido de defender o direito de quem sempre discriminou a continuar discriminando?
Questão de bom senso A avaliação entre educadores sobre a ideia da correção política no Brasil tem pelo menos duas
1111111111111 CENA 1*
O professor entra na sala de aula de sua turma de ensino médio, em um colégio particular de alto padrão em São Paulo. Com dificuldade de acalmar os alunos para começar a ativi dade, ele grita: "Silêncio! Vocês parecem moleques da favela!". Prontamente a turma obedece à ordem, como resposta à comparação negativa. Um dos alunos se sente incomodado com o uso da ana logia pelo professor por JUigá-ia preconcei tuosa com a população das favelas, denotando que a condição de pobreza torna as pessoas indivíduos de modos reprováveis. Conversa em casa com o pai, que concorda com o filho mas prefere não levar o caso em frente por julgar o colégio excessivamente conservador, apesar de boa fama e bons resul tados nas avaliações externas. O Jovem comenta com colegas, e alguns mostram preocupação em impor uma correção política na fa la do professor.
CENA 2* Em um colégio católico de alto padrão na cidade de São Paulo, uma professora de Artes apresenta aos seus alunos imagens de obras desde a arte clássica grega até o Renascimento. Por uma questão óbvia e histórica, muitas das peças mostradas são de corpos nus. Alguns dias depois, pais de alunos levam a reclamação à direção da escola sobre o que julgam ser inadequado mostrar às crianças. A professora apenas fica sabendo do ocorrido, mas sequer chega a ser notificada formalmente porque a coordenação pedagógica encampa a causa e não cede a pressões da direção nem dos pais.
1111111111111 *Para preservar suas identidades, instituição e pessoas envolvidas foram mantidas em anonimato
vertentes distintas: uma é a crítica de um radicalismo gramatical travestido de luta por igualdade em vez de atacar o foco da discriminação; a outra é a falta de politização dos conflitos internos típicos da escola. Para a filósofa e educadora Tania Zagury, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e colunista da
Gestão Educacional, há uma fiscalização "até [sobre] as coisas mais simples do dia a dia. Quando se fala sobre homens e mulheres, em vez de usar brasileiros para descrever um grupo nacional, por exemplo, como sempre foi feito e gramaticalmente aceito, hoje se tem que usar 'brasileiros e brasileiras' para dar uma pseudoigualdade", critica. Para a educado-
ra, deve-se seguir o bom senso para que a exigência por correção política não se transforme em cerceamento da liberdade de expressão das pessoas ou que promova a autocensura do docente. "Há certo medo de falar certas coisas. Mas, na vida real, há também posturas segregacionistas . O que importa é a atitude. Devemos ser politicamente corretos com uma
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coerência entre a fala e a vida. Senão, acaba vi rando um dis-curso vazio", acredita .
posição do sujeito de direito e com direito à vida, não uma questão do correto e do incorreto, mas políti-
ca no sentido de No caso do professor que comparou o comportamento dos seus alunos com jovens de bairros pobres (Cena 1), a educadora avalia que em nenhuma situa-
"Há um certo medo de falar
garantir ao outro o seu direito. O preconceito mata, provoca depressão, ódio, afasta, nega o outro. Quem usa o termo se sente perseguido e se acha tendo a liberdade de humor e de expressão cerceada. Mas, na prática social, o que se vê é o desejo de manter o direito de humilhar, menosprezar, subalternizar o outro dessa rela-
certas coisas. Mas na vida real há
ção o professor pode ser veículo de ideias preconcebidas. "Na medida em que um professor fala dessa forma, traduz o seu preconceito. Essa
também posturas segregacionistas.
O que importa é a atitude. Devemos
ser politicamente corretos com uma
sua fala foi discriminatória, como se todas as crianças de classes A e B fossem bem educadas e as
coerência entre a fala e a vida.
crianças mais pobres, não. A má edu-
Senão acaba virando um
discurso vazio" ção, o outro na cação e a arrogância Tonia Zagury, fi lósofa, educadora sexualidade, na estão em todas as e professora da UFRJ classe, na raça,
no gênero", analisa.
classes", defende. Para Eduardo
Antonio Estevam Santos, professor do Departamento de História da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (UERN), na edu
Militante durante mais de dez anos do Movimento Negro Unificado da Bahia, Santos foi professor de ensino fundamental e
cação brasileira as práticas de pre- médio nos estados da Bahia, Ceará conceito e discriminação são cor- e São Paulo, e membro da coorderiqueiras e cotidianas porque refletem o caráter preconceituoso da própria sociedade. Quando se dá entre alunos, o ofensor justifica ter sido provocado pelo ofendido. Quando o professor é questionado pelo seu preconceito, diz-se perseguido. "A situação da prática racista e preconceituosa deve ser trabalhada no sentido de discutir as relações de poder que as permeiam, mais do que o racismo, a
Profissão Mestre joneiro 201 5
nação, já como ex-aluno, da implantação da política de cotas raciais na Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), na Bahia, onde se graduou em História. Ele nega qualquer forma de pautar movimentos sociais na ideia da correção política, sendo que a ênfase desses grupos é na politização da vida para que todos tenham iguais condições de opinião e participação, inclusive em sala de aula, sem agravar con-
flitos centrados no discurso. "O politicamente correto é uma ideia liberal, não dos movimentos sociais. Em todos esses anos nunca vi o termo, ele nem aparece nos textos e produções. E não deve aparecer justamente porque esvazia o debate e fala do direito de manter posições preconceituosas. Uma das questões centrais nas relações étnico-raciais, em que sempre atuei, é que vemos a tentativa de manter o privilégio imaterial e simbóJico da identidade da branquitude, do branco heterossexual, construído historicamente", diz. E completa: "Há
exemplos de professores revendo histórias e músicas infantis para atenuar a violência evidenciada na fala. Essas
sada, anacrônica, extremamente tradicionalista. Por outro lado, convém ao professor usar outras
obras dentro da histórias devem ser mantidas na forma original e problematizadas profun -damente, acompanhadas de reflexão evocando a carga de preconceito que sempre esteve presente nelas".
"Em todos esses concepção político-pedagógica da escola para evitar problemas, o que não vai impedi-lo de apresentar trabalhos adequados para as mesmas épocas da arte. Ele tem que ter consciência de qual realidade está trabalhando. Também seria conveniente conversar com os orientadores pedagógicos e com o diretor para tentar mudar essa consciência. No século XXI, as pessoas têm consciência do corpo e isso não traz nada de inconveniente ou negativo para a criança.
anos nunca vi o termo ['politicamente correto'],
Docente na encruzilhada Seja qual for o caminho trilhado pela ideia da correção política e quem a jogou na pauta da imprensa em diferentes países, o fato é que o controle externo sobre o professor penetrou nas escolas brasileiras, pressionando a atuação de docentes de todas as disciplinas
ele nem aparece nos textos e produções dos movimentos sociais. E não deve aparecer justamente porque esvazia o debate e falo do direito de manter posições precon
ceituosos" Eduardo Antonio Estevom
Santos, historiador e professor do UERN
e preferências políticas. O cerceamento do trabalho do professor por questões morais tem sido frequentemente colocado no pacote da correção política. De imagens de corpos despidos (Cena 2), passando por temas religiosos, sexuais e palavrões, educadores concordam, mesmo com sugestões distintas, que o válido é não generalizar qualquer tipo de evento.
Para Tania Zagury, em situações como a da Cena 2 cabe à escola dar respaldo ao professor, mas não seria inconveniente se o professor avaliasse o contexto em que ele está inserido antes de escolher um recurso pedagógico. "Evidentemente que a postura da escola é ultrapas-
O desconhecimento é que faz a malícia. A criança que encara a nudez com naturalidade desde cedo não verá nada de errado", sugere.
Para Santos, a saída é trazer os alunos para a reflexão no sentido de politizar as situações, sejam de preconceito ou de moralidade, fugindo da limitação a imagens ou terminologias. "Palavras e ideias não surgem para agradar um grupo, mas de uma luta, de um campo de disputas. São termos políticos que não se encerram neles mesmos, continuam se afirmando e se apoiando para afirmar direitos. É uma posição política que não dá para tornar superficial, se está certo ou errado", finaliza.
Na sala de aula Atenção para aspectos relacionados pelos educadores Tania Zagun,J e Eduardo Antonio Estevam Santos:
• A situação da prática racista e preconceituosa deve ser trabalhada para discutir as relações de poder que as permeiam.
• O professor deve avaliar o contexto e a concepção político-pedagógica da escola antes de escolher um recurso pedagógico.
• Em escolas com posições ultrapassadas, é conveniente conversar com os orientadores pedagógicos e com o diretor para tentar mudar essa consciência.
• Histórias, livros e músicas devem ser mantidos na Forma original e problematizados profundamente, acompanhados de reflexão.
• O que importa é a atitude. As pessoas devem ser politicamente corretas com coerência entre a Fala e a vida.
Profissão Mestre janeiro 2015 a
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O NOME E A COISA A"denúncia" de uma patrulha
do "clima politicamente correto" nas instituições de ensino
ganha força na imprensa de circulação nacional, com o trabalho de colunistas como Hélio Schwartsman e Luiz Felipe Pondé, da Folha de S. Paulo, e Reinaldo Azevedo, que além de colunista do mesmo jornal escreve um blog no portal e uma coluna na versão impressa da revista Veja. O tema, no entanto, não é somente brasileiro, tampouco recente. Historicamente, o termo e a ideia da "correção política" no uso da linguagem surgiram nos Estados Unidos, no final da década de 1980 e início dos anos 1990, também com a forma de denúncia feita por professores universitários conservadores que vinham sendo questionados por palavras e atitudes discriminatórias em ambientes de ensino superior.
Em reação ao que chamaram de perseguição feita por "radicais de esquerda" que estariam "infiltrados" como professores das universidades estadunidenses, os setores alvos de crítica social cunharam o PC (de política! correctness) como um inimigo a ser combatido, mostrado para o público geral em discursos políticos que adentraram rapidamente nos meios jornalísticos, tomando-se uma pauta educacional e nacional na América do Norte.
O fenômeno foi identificado e descrito já no ano de 1995 pelo escritor John K. Wilson, pesquisador na área de administração educacional da Universidade de Illinois. Em seu livro The myth of political correctness: the conservative affaJ:k on higher education (em tra-
dução livre: O mito da correção política: o ataque conservador na educação superior, Duke University Press, 1995), Wilson afirma que "a reação conservadora contra as universi-
Transgêneros - , latinos e judeus, entre outros) se tomou uma forma de os conservadores estadunidenses mais ortodoxos defenderem em público o
dades foi financiada por fundações de direita e apoiada por liberais e jornalistas que não simpatizam com a esquerda acadêmica. Usando uma longa lista de histórias imprecisas, infinitamente reciclada nas publicações conservadoras e tradicionais, têm distorcido e manipulado os debates sobre o ensino superior. Apresentando os homens brancos e conservadores como as verdadeiras vítimas da opressão no campus, eles convencem o público que são os radicais, e não eles, quem ameaçam as liberdades civis. Este é o mito do politica-
"A reação conservadora contra as uni
versidades foi financiada por fundações de direita e apoia
da por liberais e jornalistas que não
simpatizam com a esquerda acadêmi
ca. Usando uma longa listo de histórias imprecisas, infinitamente reciclada nas publicações conservadoras e tradicio-nais, têm distorcido
e manipulado os debates sobre o ensino
superior" John K. WiÍson, escritor estodunidense e pesquisador do
Universidade de Ill inois
direito de permane-cerem preconceituosos, como haviam sido até então, algo que em diversos países europeus se configuraria em crime de incitação do ódio.
Por outro lado, a ideia do politicamente correto foi acolhida por setores que levaram a cabo a luta no campo linguístico, alimentando as "denúncias" feitas pela grande imprensa privada dos Estados Unidos. Pretensamente defensores dessas "minorias" (termo impreciso ao se referir a negros, mulheres e latinos, por exemplo), foram cunhados novos vocábulos, como o afroamerican, usado
mente correto que os conservadores, com sucesso, têm criado e vendido para a mídia e o público em geral".
por lá para substituir o termo pejorativo em inglês "negro", enquanto os movimentos pelos direitos e a identidade negra preferiam o uso de black. De forma semelhante, fireman, ou bombeiro, que seria algo como "homem do fogo", foi trocado por firejighter, "combatentes contra o fogo", de sorte a mostrar que não apenas o
O autor descreve como o conceito da correção política, atribuído a uma censura do opressor pelo oprimido (mulheres, negros, LGBTs - Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e
gênero masculino é capacitado para tal tarefa. Em alguns textos, history deu lugar a herstory, jogando trocadilhos com os pronomes his (masculino) e her (feminino), buscando enfatizar o protagonismo feminino na história da humanidade.
Contudo, nos movimentos progressistas estadunidenses que efetivamente questionam posições conservadoras, assim como para acadêmicos e autores como o linguista Noam Chomsky, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, a ênfase tem sido dada desde aquela época na defesa da igualdade en -tre todos os setores da sociedade da -quele país. Logo, seus escritos se debruçam sobre direitos civis cuja negação seria fundamentada em discursos que deixam transparecer o preconceito. Seria, portanto, uma defesa de mudança de pensamento, não a adoção de palavras mais adequadas para ocultação de racismo, homofobia, sexismo, antissemitismo, sociopatia etc.
No Brasil, a ideia do "politicamente correto" percorreu o caminho inverso, ou seja, foi trazida para o país como recurso linguístico para amenizar preconceitos no texto jornalístico e posteriormente penetrou nas instituições de ensino. O jornal Folha de S. Paulo, que já era na década de 1990 o de maior circulação do país, em uma época em que não havia a alternativa da internet, foi pioneiro nesse movimento e publicou, em 1992, no seu Novo Manual da Redação (Publifolha, 1992), um guia de "palavras certas" para o que a empresa julgava politicamente correto. Em uma página, três colunas indicavam as palavras que possivelmente eram utilizadas, uma coluna dos verbetes que se indicavam empregar nos textos e outra que demonstrariam exagero no uso do politicamente correto.
Das 21 sugestões, 15 se tratavam de grupos sociais normalmente oprimidos (LGBTs, negros, pessoas com deficiências físicas e/ou mentais, orientais, pobres, crianças e jovens, idosos, mulheres, nordestinos, pessoas do interior, judeus, pessoas de baixa estatura, pessoas com sobrepeso ou obesidade, indígenas e homens "medrosos"); duas sobre preferências políticas (comunistas e reacionários); uma para religiosos; uma para termos chulos e uma para disfarçar com eufemismo a riqueza ("milionário" por "rico", "capitalista" por "empresário").
O próprio manual recomendava se usar a palavra "negro", preferida pelos movimentos de afirmação da identidade negra e da negritude no Brasil, em vez do consagrado politicamente correto "afrodescendente", importado pela imprensa brasileira do termo em inglês estadunidense afroamerican, e replicada em salas de aula. Por outro lado, recomendava usar "homossexual" em vez de "bicha, veado ou fresco", julgando a palavra "gay" um exagero. No entanto, como mostra o estudo A linguagem politicamente correta no Brasil: uma língua de madeira?, dos professores e linguistas Sirio Possenti, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e Roberto Leiser Baronas, da Universidade do Estado do Mato Grosso (Unemat), os movimentos LGBTs consideram o termo homossexualidade ligado a uma definição da medicina, que trata a sua condição como doença. Em busca de afirmação de identidade, motivo pelo qual preferem ser chamados de gays, pediram que o jornal reconsiderasse a opção por meio de uma carta do então presidente do grupo gay da Bahia, Luiz Mott.
Após as polêmicas restritas ao vocabulário que começaram a sur-
gir em suas próprias páginas e no seu time de colunistas, a Folha de S. Paulo retirou a relação de sugestões de termos politicamente corretos na edição seguinte do seu Manual da Redação, mas o clamor conservador pelo direito de continuar a discriminar, transformando o opressor em oprimido, foi acolhido pelo restante da imprensa brasileira com consequente influência nas instituições de ensino, completando o caminho inverso do que se realizou nos Estados Unidos: em vez de sair do conservadorismo universitário pa -ra a imprensa, aqui saiu da imprensa de circulação nacional, refletindo nas mídias regionais e segmentadas, para as instituições de ensino, levado por professores, alunos e funcionários técnicos.
Na década de 2000, a cruzada do antipoliticamente correto ganhou força no meio intelectual, com a publicação da série de livros Guia politicamente incorreto da História do Brasil, e da América Latina e do Mundo, do autor Leandro Narloch, da Editora Leya. O sucesso de vendas desta série, amplamente contestada por historiadores, teve desdobramentos para outras áreas, como o Guia Politicamente Incorreto da Filosofia, de Luiz Felipe Pondé. Assim como nos Estados Unidos, o antipoliticamente correto brasileiro penetrou até nos shows de comédia, tendo como principal expoente o humorista Danilo Gentili, como mostrou o diretor Pedro Arantes, no documentário O riso dos outros, financiado e exibido pela TV Câmara desde 2012. Atualmente, a correção política na internet e na sala de aula está em franco debate, inclusive com casos de jornalistas que denunciam o chamado cerceamento da liberdade de expressão.•
Profissão Mestre joneiro 2015 m
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