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Quarta Turma
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO
ESPECIAL N. 737.860-PR (2005/0049322-1)
Relator: Ministro Antonio Carlos Ferreira
Agravante: GEAP Fundação de Seguridade Social
Advogados: Chrystian Junqueira Rossato e outro(s)
Rafael D’alessandro Calaf
Agravado: Ademar José Pamplona e outros
Advogados: Karine Saggin e outro(s)
Wilton Vicente Paese e outro(s)
EMENTA
Direito Civil. Plano de Pecúlio Facultativo – evento morte.
Rescisão do contrato. Ação ordinária para restituição de todas as
prestações pagas. Obrigação de natureza pessoal. Prescrição vintenária
(art. 177 do CC/1916).
1. Prescreve em 20 (vinte) anos, nos termos do art. 177 do
CC/1916 (fatos e ajuizamento da ação ocorridos na vigência do
Código revogado), ação ordinária na qual se postula, em decorrência
da rescisão do contrato com a ré por vontade dos autores, a restituição de
todas as parcelas pagas ao longo da relação contratual. Isso porque
se discutem as consequências obrigacionais, de natureza pessoal, da
mencionada rescisão contratual. Precedentes.
2. Agravo regimental desprovido.
ACÓRDÃO
A Quarta Turma, por unanimidade, negou provimento ao agravo
regimental, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros
Marco Buzzi, Luis Felipe Salomão, Raul Araújo (Presidente) e Maria Isabel
Gallotti votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 19 de novembro de 2013 (data do julgamento).
Ministro Antonio Carlos Ferreira, Relator
DJe 3.12.2013
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
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RELATÓRIO
O Sr. Ministro Antonio Carlos Ferreira: Trata-se de agravo regimental
interposto pela Fundação de Seguridade Social – GEAP (e-STJ fl s. 1.134-1.140)
contra decisão desta relatoria que, reconsiderando decisão anterior apenas
relativamente ao tema da prescrição, negou provimento integralmente ao recurso
especial da ora agravante “para declarar que o prazo prescricional é de 20 (vinte)
anos, na forma do art. 177 do CC/1916” (e-STJ fl . 1.130).
Alega ser aplicável a prescrição quinquenal, pois se trata de Plano de
Pecúlio Facultativo, cujo benefício decorre do evento morte. “Logo, a qualquer
momento em que ocorresse o evento morte, os benefi ciários receberiam o pecúlio
delimitado por força contratual. Por isso, a Geap vem cumprindo sua obrigação
em relação aos associados. Trata-se de cumprimento contratual e faz menção à
Estabilidade das Relações Jurídicas” (fl . 1.139). Acrescenta que as diretrizes
definidas legalmente “compõem as premissas atuariais dos planos, sendo
componentes fundamentais dos cálculos de equilíbrio. Guardam ainda, relação
com a preservação do propósito previdenciário dos planos, ou seja, se todo
cancelamento de inscrição possibilitasse o resgate de contribuições, as entidades teriam
caráter meramente depositário e nenhum plano suportaria arcar com os compromissos
prometidos” (e-STJ fl . 1.139).
Conclui que, “nessa conformidade, a ação pretende cobrar as contribuições
vertidas ao PPF, sendo que estas são as únicas fontes de custeio deste. É dizer:
pretendem os Agravantes parcelas devidas por planos de previdência privada”
(e-STJ fl . 1.139). A prescrição seria, então quinquenal.
Cita o acórdão proferido no julgamento do REsp n. 450.352-RS, Relator
Ministro Fernando Gonçalves, Quarta Turma, DJ de 3.2.2004.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Antonio Carlos Ferreira (Relator): A insurgência não
merece ser acolhida.
A agravante apresentou razões pertinentes ao mérito da ação, informando
que a pretensão deduzida não teria respaldo nenhum. Entretanto, o que se
decidiu na decisão agravada foi, apenas, o prazo prescricional para a demanda.
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 451
Ademais, o precedente indicado no regimental (REsp n. 450.352-RS)
aplicou o prazo prescricional de 5 (cinco) anos porque, naquela hipótese,
postulou-se judicialmente a revisão de pensão decorrente de previdência privada
e o recebimento das respectivas diferenças pretéritas, o que, evidentemente, não
ocorre no caso presente.
Enfi m, a agravante não trouxe nenhum argumento capaz de afastar os
termos da decisão agravada, razão pela qual deve ser mantida por seus próprios
fundamentos:
Agravo regimental interposto por Ademar José Pamplona e outros contra
apenas parte da decisão de fl s. 1.085-1.089, especifi camente no ponto em que
proveu o recurso especial da ora agravada para aplicar a Súmula n. 291 do STJ,
declarando “que o prazo prescricional é de cinco anos”, não de vinte anos.
Alegam os agravantes que o acórdão do Tribunal de origem deve ser mantido,
“uma vez que trata a presente demanda de ação visando à restituição de parcelas
que os ora Agravantes pagaram ao Plano de Pecúlio Facultativo mantido pela
Agravada, o prazo a ser aplicado é o vintenário, nos termos do artigo 177, caput,
do Código Civil de 1916, já que se trata de ação de âmbito de direito pessoal” (fl .
1.111).
Citam precedentes e impugnam a Súmula n. 291 do STJ e os julgados referidos
na decisão agravada, os quais, segundo os recorrentes, não servem para o caso
dos autos.
É o relatório.
Decido.
Com efeito, não se postulam, neste processo, parcelas ou diferenças de
complementação de aposentadoria nem saldos de reservas de poupança pagas
em valor menor que o devido, no âmbito da vigente relação contratual.
A ação ordinária foi proposta pelos agravantes contra a agravada requerendo
a restituição dos “valores de parcelas de contribuição ao Plano de Pecúlio
Facultativo-PPF” (fl . 11). Para tanto, narram na petição inicial que “os Autores são
funcionários autárquicos aposentados na função de Auditor-Fiscal da Previdência
Social, e como funcionários públicos têm direito aos benefícios previstos nos
Planos instituídos pela GEAP, a qual tem por fi nalidade promover a melhoria
da qualidade de vida dos Participantes, mediante a administração de planos
solidários de Previdência Complementar, Saúde e Assistência Social” – grifos
meus (fl . 7). Explicam os autores, igualmente, que, “desde quando os Autores se
associaram ao referido Plano de Pecúlio Facultativo-PPF, têm recolhido através de
desconto em folha o percentual em espécie do valor referente ao pagamento do
prêmio, estabelecido com relação ao valor do pecúlio instituído” (fl . 8).
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
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Ainda na petição inicial, alegam que, após encerrados os contratos de trabalho
em decorrência de aposentadorias, “os Autores requereram o desligamento em
caráter defi nitivo do referido Plano de Pecúlio Facultativo-PPF, com a expectativa
de receber em devolução o valor das contribuições pagas mediante desconto em
folha” (fl . 8). Entretanto, “em resposta aos requerimentos [...] receberam da GEAP a
comunicação de que o pleito de resgate das contribuições pagas não poderia ser
atendido, porque o cancelamento voluntário implicaria na perda do benefício” (fl .
8).
A ré, por sua vez, na sua contestação, confi rmou que o efetuado cancelamento
de inscrição no plano de pecúlio “decorrente da volição do próprio participante
não autoriza a devolução das contribuições suportadas para tal plano” (fl s. 306-
307).
Resumidamente, pede-se na inicial, em decorrência da rescisão do contrato com
a ré, a restituição de todas as parcelas pagas ao longo da relação contratual, agora
extinta por vontade dos autores. Com isso, tem-se que debater, não o contrato
propriamente dito, mas as consequências obrigacionais, de natureza pessoal, da
mencionada rescisão por vontade de apenas uma das partes.
O prazo prescricional, assim, não é o quinquenal previsto na Súmula n. 291 do
STJ, mas vintenário, na forma do art. 177 do CC/1916 (considerando que a ação foi
ajuizada em 21.11.2000).
Nesse sentido, os seguintes precedentes das Turmas de Direito Privado:
Agravo regimental no recurso especial. Previdência privada. Ação de
rescisão contratual. Prescrição. Relação obrigacional. Aplicação do art. 177
do Código Civil de 1916 vigente à época dos fatos.
1. A prescrição da ação de cobrança de parcelas devidas por planos de
previdência privada é quinquenal, consoante entendimento cristalizado na
Súmula n. 291-STJ.
2. Na hipótese de ação de rescisão do contrato fi rmado com a entidade
de previdência privada, uma vez configurada relação obrigacional de
natureza pessoal, incide a prescrição vintenária, prevista no art. 177 do
Código Civil de 1916, vigente à época dos fatos.
3. O participante do plano de previdência privada tem direito à
restituição da totalidade das contribuições pessoais vertidas ao plano,
atualizado monetariamente, quando do seu desligamento, sob pena de
enriquecimento ilícito da entidade contratada.
4. Agravo regimental não provido (AgRg no REsp n. 623.855-RS, Relator
Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, DJe de 13.3.2013).
Agravo regimental no agravo em recurso especial. Previdência privada.
Ação de rescisão contratual c/ devolução de valores pagos. Violação aos
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 453
artigos 165, 458 e 535 do CPC. Inocorrência. Prescrição. Súmula n. 83 do
STJ. Reexame fático-probatório e interpretação de cláusulas contratuais.
Súmulas n. 5 e n. 7 do STJ. Agravo a que se nega provimento.
1. Não há que se cogitar e ofensa aos artigos 165, 458 e 535, do CPC,
quando o Tribunal de origem dirimiu as questões pertinentes à solução
da lide e declinou os fundamentos nos quais suportou as conclusões
assumidas, de forma lógica e coerente.
2. Estando o acórdão recorrido em harmonia com a orientação fi rmada
nesta Corte Superior, o recurso especial não merece ser conhecido, ante a
incidência da Súmula n. 83 do STJ.
3. Alterar a conclusão da Corte local, acerca da restituição das parcelas
pagas, demandaria reexame do acervo fático-probatório e interpretação
de cláusulas contratuais, o que atrai a incidência das Súmulas n. 5 e n. 7-STJ,
impedindo o conhecimento do recurso.
4. Agravo regimental a que se nega provimento (AgRg no AREsp n.
104.452-MS, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe de
20.9.2013).
Agravo regimental. Previdência privada. Restituição de valores referentes
a contribuições pagas à entidade de previdência privada. Prescrição. Não
ocorrência. Precedentes. Recurso improvido (AgRg no Ag n. 1.376.456-MS,
Relator Ministro Massami Uyeda, Terceira Turma, DJe de 13.9.2012).
Agravo regimental no agravo de instrumento. Recurso que deixa de
impugnar especifi camente todos os fundamentos da decisão agravada.
Incidência, por analogia, da Súmula n. 182 do STJ. Precedentes. Ausência de
prequestionamento de dispositivo legal. Incidência da Súmula n. 282-STF. O
CDC é aplicável à relação jurídica entre a entidade de previdência privada e
seus participantes. Súmula n. 321-STJ. Não pretende o agravado a anulação
do contrato mas sim a sua rescisão. Não violação das Súmulas n. 291 e n.
427-STJ. O agravado não se enquadra na situação de ex-contratante ou de
atual segurado da entidade previdenciária. Inaplicabilidade da prescrição
quinquenal. Pretensão de rescisão contratual. Possibilidade. Restituição da
totalidade das contribuições pessoais vertidas ao plano.
Agravo regimental improvido (AgRg no REsp n. 692.959-RS, Relator
Ministro Luis Felipe Salomão, DJe de 31.8.2010).
Agravo regimental. Agravo de instrumento. Previdência privada.
Devolução integral do montante. Rescisão de contrato de trabalho.
Prescrição. Prazo vintenário. Divergência jurisprudencial. Não
demonstração. Fixação dos honorários advocatícios. Súmula n. 7-STJ.
1 - Tratando-se de ação na qual os associados a plano de previdência
privada, em razão da rescisão do contrato, buscam a restituição de
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
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montante pago antes da implementação do termo, esta ação possui
natureza obrigacional, cujo prazo de prescrição é vintenário, a teor do art.
177 do Código Civil. Precedentes.
2 - Impossível aferir, em recurso especial, percentuais e valores da
condenação para concluir ou não pela sucumbência em parte mínima do
pedido, tampouco há espaço para fi xação minuciosa do quantum de custas
e de honorários advocatícios, pois são intentos que demandam inegável
incursão na seara fático-probatória de cada demanda, vedada pela Súmula
n. 7-STJ.
3 - Malgrado a tese de dissídio jurisprudencial, há necessidade, diante
das normas legais regentes da matéria (art. 541, parágrafo único, do
Código de Processo Civil, c.c. o art. 255 do RISTJ), de confronto entre o
acórdão recorrido e trechos das decisões apontadas como divergentes,
mencionando-se as circunstâncias que identifi quem ou assemelhem os
casos confrontados - indispensável inclusive nas hipóteses de divergência
notória. Ausente a demonstração analítica do dissenso, incide a censura
Súmula n. 284 do Supremo Tribunal Federal.
4 - Agravo regimental desprovido (AgRg no Ag n. 685.136-RS, Relator
Ministro Fernando Gonçalves, DJe de 31.8.2009).
Previdência privada. Previ. Restituição das contribuições a ex-
empregado. Prescrição vintenária. Artigo 177 do Código Civil de 1916.
Atualização monetária. Inclusão dos expurgos infl acionários. Cabimento.
Termo inicial. Março de 1980.
I – Nos casos em que os associados, em razão da rescisão do contrato,
buscam a restituição dos valores pagos, antes da implementação do termo,
revela a ação relação obrigacional de natureza pessoal, sujeita, portanto,
à prescrição vintenária, em consonância com o artigo 177 do Código
Civil de 1916; não a qüinqüenal, nos termos do artigo 178, § 10, II, desse
mesmo diploma legal, cuja aplicação está adstrita à percepção das parcelas
oriundas de planos de previdência privada, assim entendidas as prestações
de trato sucessivo, representadas por rendas vitalícias ou temporárias.
II – A restituição das contribuições destinadas às entidades de
previdência privada deve se dar de forma plena, utilizando-se no cálculo da
atualização monetária índice que refl ita a real desvalorização da moeda no
período, ainda que outro tenha sido avençado.
III - À mingua de determinação legal obrigando a devolução das
contribuições efetivadas enquanto custeado o sistema sob a forma de
repartição de capital de cobertura e levando-se em conta que o atual
estatuto somente passou a viger quando de sua aprovação pela Portaria n.
2.033, de 4.3.1980, esta é a data a partir da qual deverão ser devolvidas as
contribuições do ex-associado.
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 455
Recurso especial parcialmente provido (REsp n. 665.300-RS, Relator
Ministro Castro Filho, Terceira Turma, DJe de 23.5.2005).
Para afastar qualquer dúvida, os Recursos Especiais n. 1.110.561-SP e n.
1.111.973-SP, Relator Ministro Sidnei Beneti, Segunda Seção, DJe de 6.11.2009,
julgados na mesma sessão sob o regime dos recursos repetitivos, firmaram
jurisprudência, tão somente, no sentido de que “a prescrição quinquenal
prevista na Súmula do STJ n. 291 incide não apenas na cobrança de parcelas de
complementação de aposentadoria, mas, também, por aplicação analógica, na
pretensão a diferenças de correção monetária incidentes, sobre restituição da
reserva de poupança, cujo termo inicial é a data em que houver a devolução
a menor das contribuições pessoais recolhidas pelo associado ao plano
previdenciário”.
O caso dos repetitivos acima referidos, sem dúvida, não guarda semelhança
com o presente feito.
Diante do exposto, reconsidero a decisão agravada apenas na parte relativa
à prescrição – única objeto deste regimental –, para declarar que o prazo
prescricional é de 20 (vinte) anos, na forma do art. 177 do CC/1916, conforme
reconhecido pelo Tribunal de origem, e negar provimento integralmente ao
recurso especial da GEAP.
Publique-se e intimem-se (e-STJ fl s. 1.127-1.131).
Ante o exposto, nego provimento ao agravo regimental.
É como voto.
HABEAS CORPUS N. 169.172-SP (2010/0067246-5)
Relator: Ministro Luis Felipe Salomão
Impetrante: Daniel Adolpho Daltin Assis
Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Paciente: R A A C (internado)
EMENTA
Habeas corpus. Ação civil de interdição cumulada com internação
compulsória. Possibilidade. Necessidade de parecer médico e
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
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fundamentação na Lei n. 10.216/2001. Existência na espécie.
Exigência de submeter o paciente a recursos extra-hospitalares antes
da medida de internação. Dispensa em hipóteses excepcionais
1. A internação compulsória deve ser evitada, quando possível,
e somente adotada como última opção, em defesa do internado
e, secundariamente, da própria sociedade. É claro, portanto, o seu
caráter excepcional, exigindo-se, para sua imposição, laudo médico
circunstanciado que comprove a necessidade de tal medida.
2. A interdição civil com internação compulsória, tal como
determinada pelas instâncias inferiores, encontra fundamento jurídico
tanto na Lei n. 10.216/2001 quanto no artigo 1.777 do Código Civil.
No caso, foi cumprido o requisito legal para a imposição da medida de
internação compulsória, tendo em vista que a internação do paciente
está lastreada em laudos médicos.
3. Diante do quadro até então apresentado pelos laudos já
apreciados pelas instâncias inferiores, entender de modo diverso, no
caso concreto, seria pretender que o Poder Público se portasse como
mero espectador, fazendo prevalecer o direito de ir e vir do paciente,
em prejuízo de seu próprio direito à vida.
4. O art. 4º da Lei n. 10.216/2001 dispõe: “A internação, em
qualquer de suas modalidades, só será iniciada quando os recursos extra-
hospitalares se mostrarem insufi cientes.” Tal dispositivo contém ressalva
em sua parte final, dispensando a aplicação dos recursos extra-
hospitalares se houver demonstração efetiva da insufi ciência de tais
medidas. Essa é exatamente a situação dos autos, haja vista ser notória
a insufi ciência de medidas extra-hospitalares, conforme se extrai dos
laudos invocados no acórdão impugnado.
5. É cediço não caber na angusta via do habeas corpus, em razão de
seu rito célere e desprovido de dilação probatória, exame aprofundado
de prova no intuito de reanalisar as razões e motivos pelos quais as
instâncias inferiores formaram sua convicção.
6. O documento novo consistente em relatório do Subcomitê
de Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis,
Desumanos ou Degradantes - (SPT) da Organização das Nações
Unidas (ONU) não pode ser apreciado por esta Corte sob pena de
supressão de instância.
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 457
7. A internação compulsória em sede de ação de interdição,
como é o caso dos autos, não tem caráter penal, não devendo ser
comparada à medida de segurança ou à medida socioeducativa à que
esteve submetido no passado o paciente em face do cometimento de
atos infracionais análogos a homicídio e estupro. Não se ambiciona
nos presentes autos aplicar sanção ao ora paciente, seja na espécie de
pena, seja na forma de medida de segurança. Por meio da interdição
civil com internação compulsória resguarda-se a vida do próprio
interditando e, secundariamente, a segurança da sociedade.
8. Não foi apreciada pela Corte de origem suspeição ou
impedimento em relação à perícia, questionamento a respeito da
periodicidade das avaliações periciais, bem como o pedido de inserção
do paciente no programa federal De Volta Para Casa. A jurisprudência
do Superior Tribunal de Justiça consolidou o entendimento de que
não se conhece de habeas corpus cuja matéria não foi objeto de decisão
pela Corte de Justiça estadual, sob pena de indevida supressão de
instância. (HC n. 165.236-SP, Rel. Ministro Moura Ribeiro, Quinta
Turma, julgado em 5.11.2013, DJe 11.11.2013; HC n. 228.848-SP,
Rel. Ministra Maria Th ereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em
24.10.2013, DJe 4.11.2013).
9. Ordem denegada.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros da Quarta Turma
do Superior Tribunal de Justiça acordam, na conformidade dos votos e das notas
taquigráfi cas a seguir, por unanimidade, denegar a ordem de “habeas corpus”,
nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Raul Araújo
(Presidente), Maria Isabel Gallotti, Antonio Carlos Ferreira e Marco Buzzi
votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 10 de dezembro de 2013 (data do julgamento).
Ministro Luis Felipe Salomão, Relator
DJe 5.2.2014
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
458
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão: 1. Cuida-se de writ impetrado pelo
advogado Daniel Adolpho Dantin Assis a favor de RAAC, decorrente de ação
de interdição cumulada com determinação de internação hospitalar compulsória
proposta pelo Ministério Público do Estado de São Paulo em face do paciente.
Na inicial da ação de interdição o Parquet narra que o réu, ora paciente,
praticou delito grave e de grande repercussão nacional - quando ainda menor
-, alegando ainda que este possui transtorno orgânico de personalidade e
retardamento leve; intensa agressividade latente, impulsividade, irritabilidade
e periculosidade, não estando apto ao retorno ao convívio social, carecendo de
tratamento em regime de internação compulsória, em local adequado, o que
o impediria de praticar por si os atos da vida civil, bem como de conviver em
sociedade.
O magistrado de piso decretou a interdição de RAAC, declarando-o
absolutamente incapaz de exercer pessoalmente os atos da vida civil, bem
como determinou sua internação compulsória em estabelecimento psiquiátrico
compatível e seguro (fl s. 33-41).
Sobreveio habeas corpus no Tribunal de origem, que manteve a decisão do r.
Juízo a quo, nos termos da seguinte ementa (fl s. 43-54):
Habeas corpus. Interdição. Internação compulsória. Jovem adulto que, quando
adolescente, participou de duplo latrocínio praticado com requintes de extrema
crueldade, violência sexual e demonstração de frieza. Vários diagnósticos,
omitidos no writ de mal psicológico que o torna perigoso para si e para outrem.
Necessidade da internação para conter a tendência violenta do jovem. Medida
terapêutica necessária na tentativa de recuperação de doente mental.
Irresignado, Daniel Adolpho Daltin Assis impetrou o presente habeas
corpus substitutivo de recurso ordinário, com pedido de liminar, em favor
de RAAC, aduzindo que o paciente se encontra atualmente privado de sua
liberdade em razão de ordem manifestamente ilegal, em estabelecimento
absolutamente desconforme denominado Unidade Experimental de Saúde, e
que a medida não encontra guarida em qualquer diploma legal.
Sustenta que a contenção experimentada pelo paciente é
fundamentadamente distinta de internação psiquiátrica compulsória,
preconizada pela Lei n. 10.216/2001.
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 459
Afi rma que o acórdão recorrido buscou fundamento no procedimento
para apuração de ato infracional que resultou na internação socioeducativa do
paciente - provas não trazidas por nenhuma das partes -, o que é descabido por
não haver em tal procedimento administrativo nada acerca do comportamento
clínico do paciente que evidencie a necessidade de internação psiquiátrica.
Aduz não ter havido a produção de laudo médico circunstanciado
recomendando a internação, nos termos do art. 6º da Lei n. 10.216/2001.
Assevera ser o caso de concessão da ordem ao menos para se outorgar um
modelo de desinternação progressiva, a exemplo do programa federal De Volta
Para Casa.
Pretende, pois, a decretação da nulidade do acórdão impugnado e a
cassação da sentença na parte em que determina a internação compulsória do
paciente. Subsidiariamente, requer seja determinada a imediata transferência do
paciente para hospital psiquiátrico, com duas ressalvas: a) não poderá aguardar
sua transferência por mais de cinco dias no local onde se encontra, de modo
que, superado o prazo, poderá aguardar a vaga em liberdade; b) assim que
encaminhado para um hospital psiquiátrico fi cará a critério do corpo clínico do
referido equipamento decidir se o caso é de internação ou não, segundo critérios
exclusivamente médicos, independentemente de alvará judicial.
Subsidiariamente, ainda, pleiteia que seja concedida a ordem para
determinar reavaliações sobre a necessidade da custódia a cada três meses, no
máximo, por equipe multiprofi ssional da qual não participem os peritos que já
avaliaram o caso.
Por fi m, requer seja o paciente incluído no programa federal De Volta Para
Casa, nos termos da Lei n. 10.708/2003, bem como seja o causídico intimado
para sustentação oral.
A liminar foi indeferida pelo então relator originário, Ministro Arnaldo
Esteves Lima (fl . 71).
Informações prestadas às fl s. 79-178, 198-203, 207-246, 250-255, 256-
451, 529-530, 533-535, 536-705, 708-710 e 711-714.
Nos autos da ação de interdição com determinação de internação
compulsória, após o julgamento da apelação, foram interpostos recursos especial
e extraordinário, denegados na origem. O agravo de instrumento ao Superior
Tribunal de Justiça (Ag n. 1.320.086) não foi conhecido, com trânsito em
julgado em 13.9.2011. O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, proferiu
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
460
decisão em 18.10.2011 dando provimento ao Agravo de Instrumento n. 810.193
e determinando sua conversão em recurso extraordinário, reautuado como RE n.
667.307, com vista ao Ministério Público Federal desde 6.6.2013.
Outrossim, o Juízo informou que foi agendada perícia no interditado na
data de 28.11.2013 (fl . 709).
O Ministério Público Federal ofertou parecer nos seguintes termos (fl s.
182-188):
Habeas corpus. Estatuto da Criança e do Adolescente: medida socioeducativa.
Interdição: internação hospitalar
1) A medida de internação compulsória decorrente de interdição (art. 1.777
do CC), ainda que não tenha caráter penal, pode ser questionada por meio de
habeas corpus, pois implica privação ou restrição da liberdade de locomoção do
internado.
2) No caso em análise, foram elaborados laudos psicológicos e psiquiátricos, os
quais são unânimes e coerentes em afi rmar a inaptidão do paciente/interdito ao
convívio social.
3) Embora a Lei n. 10.216/2001 (dispõe sobre a proteção e os direitos das
pessoas portadores de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial
em saúde mental) contenha a previsão de que a internação só será indicada
quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insufi cientes (art. 4º), no caso
em análise, é notória a insufi ciência de medidas extra-hospitalares, conforme se
extrai dos laudos psicológicos e psiquiátricos. Não se pode olvidar também o ato
infracional praticado pelo adolescente, ora paciente, o qual deu ensejo à aplicação
da medida socioeducativa de internação (estupro e homicídio de um casal de
jovens). Assim, ao cabo do cumprimento da medida socioeducativa de internação
pelo prazo de três anos, torna-se desnecessário e temerário experimentar-se
outro recurso terapêutico, extra-hospitalar, que lhe propicie o convívio social que
os peritos desacolheram.
4) A internação decorrente da interdição tem natureza diversa daquela a
que o paciente estava sujeito. A primeira, de natureza socioeducativa, tinha
também aspecto retributivo, pelo ato infracional por ele praticado. A presente, é
de natureza civil e tem fi nalidade médica, além de proteção da sociedade.
Parecer pela concessão parcial da ordem, apenas para que o paciente seja
recolhido em estabelecimento correcional onde se encontra, mas isolado de outros
adolescentes que cumprem medida socioeducativa por ato infracional.
O impetrante peticionou sustentando a existência de fato novo consistente
em relatório sobre a visita ao Brasil do Subcomitê de Prevenção da Tortura e
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 461
outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, tecendo
comentários a respeito da Unidade Experimental de Saúde (fl s. 467-504).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão (Relator): 2. A controvérsia em
exame é quanto à possibilidade ou não de internação compulsória, no âmbito
de ação de interdição, quando escoado o prazo de cumprimento de medida
socioeducativa de internação.
O paciente, quando adolescente, em 1º de novembro de 2003, esteve
envolvido em crime bárbaro (estupro e homicídio), com ampla repercussão
nacional, tendo-lhe sido aplicada a medida socioeducativa de internação. Ocorre
que, em data próxima à extinção do cumprimento de 3 anos de internação,
o Ministério Público ingressou com ação de interdição, cumulada com
determinação de internação psiquiátrica compulsória.
A sentença, após rejeitar as preliminares, dispôs (fl s. 33-41):
[...]
Do Merito Os pedidos formulados são procedentes. Da interdição “A ação e a
sentença de interdição tem por fi to organizar a defesa do incapaz e assegurar a
efi cácia erga omnes.” (Pontes de Miranda - Comentários ao Código de Processo
Civil, Tomo XVI. Forense. RJ. 1977. p. 368). Durante o cumprimento da medida
sócio educativa na Fundação do Bem Estar do Menor, o interditando foi submetido
a avaliações psicológicas e sociais (fls. 115-122; 144-147) que apuraram uma
deficiência no jovem que deveria ser melhor apreciada por uma junta de
profi ssionais da área, bem como submetê-lo a exames. Nesta fase inicial chamou
a atenção o histórico familiar do interditando, que mostrou difi culdade em se
expressar; difi culdade na escola, destacando que foi reprovado cinco vezes na
terceira série primária até que desistiu; fez uso de drogas, tem uma avó com
problemas psiquiátricos; familiares com antecedentes criminais, aos quinze anos
submeteu-se à exame neurológico com eletroencefalograma e usou
medicamento com prescrição médica (fl s. 122). O médico psiquiatra da Febem Dr.
Paulo Sérgio Calvo, em dezembro de 2003 (fls. 123), concluiu que o jovem
apresentava desenvolvimento mental retardado de grau moderado, demonstrando
comprometimento das capacidades de discernimento, entendimento e
determinação. O médico Dr. Merval Marques Figueiredo Junior (fl s. 146) avaliou o
jovem destacou o desenvolvimento intelectivo e a tendência anti-social do
interditando, suspeitando na oportunidade da deficiência mental, em razão de
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
462
desenvolvimento interrompido ou incompleto da mente. Submetido a exames na
Sociedade Rorschach (fl s. 174-180) no resultado dos exames a que o jovem se
submeteu consta: A) quanto ao pensamento: “No protocolo em exame verifi camos
a ausência de fatores determinantes indicativos da intervenção no pensamento
de processos cognitivos racionais (...), prevalecendo os determinantes que
traduzem imaturidade psíquica (...). Apesar da intervenção de concepções
irracionais no pensamento lógico, o examinando mostra-se capaz de voltar a sua
atenção para o que ocorre no ambiente, e mesmo de aprender com experiências
concretas (...), mobilizando sua memória e seu recursos subjetivos ao enfrentar
situações novas (...).” “O nível de elaboração e integração das experiências
apresenta-se demasiadamente rebaixado em ambos os conjuntos de estímulos,
indicando que as concepções do examinando pautam-se em impressões
imediatas, com elaboração mínima do signifi cado das situações.” (grifo nosso). B)
Faixa de interesse e categorização verbal: “A comunicação verbal do examinando
é precária, ele tem difi culdade em expressar suas idéias e de nomear os objetos
percebidos durante a prova. O ritmo de suas verbalizações é instável -
demasiadamente lento, com intervalos longos entre as frases, ou mais rápido,
quando a sua voz se eleva ligeiramente e as palavras se atropelam.” (...) “O
examinando não foi capaz de expressar qualquer interesse socialmente mais
diferenciado (arte, cultura, paisagem, abstração, ciêncía=O) e apenas elaborou
uma imagem humana integral, prevalecendo apenas as imagens parciais de mãos,
braços, olhos, tronco sem cabeça (...). Tal fato indica extrema pobreza de
conhecimentos culturalmente mais diferenciados mas sobretudo difi culdade em
compreender a complexidade do comportamento humano - tanto em relação a si
próprio (...) como no que se refere no comportamento alheio (...). A elaboração da
única fi gura humana percebida foi distorcida e sem qualquer recurso ao processo
de abstração: Uma mulher que cortou um braço, perdeu uma perna e só tem a outra.
E mulher porque usa tamanco” (III) - conteúdo mórbido que ressalta a deformidade
da imagem. A fragmentação da imagem humana em partes isoladas (...) indica no
caso, percepção imatura e parcial do comportamento alheio.” (grifo nosso). C)
Processo de adaptação à realidade: (...) O examinando não consegue adaptar-se
às condições da realidade de modo racional e fl exível, embora mantenha ligação
emocional e interesse pelo que ocorre no ambiente (...)”. “Adaptação à realidade
não deve ser confundida com noção de realidade. O examinando tem noção de
realidade, porém, concebe os fatos de modo pueril e imaturo, reagindo segundo
impulsos afetivos primários em detrimento do julgamento de realidade e afasta-
se de valores e normas sociais em circunstâncias onde diminui a consciência
refletida e prevalece o impacto afetivo. Apenas em condições afetivamente
neutras é que o examinando consegue expressar sociabilidade adequada, porém,
submete-se à elas de modo rígido, sem qualquer auto afi rmação ou criatividade.”
D) - Disposições conativas: “(..) A instabilidade conativa e a reduzida capacidade
de planejamento afetam a adaptação criadora e produtiva ao ambiente, o que
provoca uma discrepância entre as aspirações do examinando e a auto-confi ança
para realizá-las” E) - Condições afetivo emocionais - “O examinando não dispõe de
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recursos subjetivos sufi cientemente amadurecidos e racionais para controlar a
sua impulsividade quando se encontra sob tensão emocional. Ainda que em
experiências da vida cotidiana quando o estímulo afetivo se limita à mobilização
do interesse pelos eventos externos (conjunto monocromátíco), o examinando
atue de modo concreto estereotipado, submetendo sua conduta às regras sociais
de convívio com os demais, quando baixa a sua consciência (cansaço; tensão ou
sob ação de drogas) e sob impacto de provocações afetivas ele perde o controle
de seus impulsos agressivos.” O interditando foi, novamente, submetido à
avaliação médica e a conclusão foi no sentido da existência de distúrbio de
personalidade, retardo mental leve, conduta anti-social, ausência de crítica e
julgamento (fl s. 197-200). Já com dezessete anos e nove meses novo relatório (fl s.
228-241) foi feito à respeito do jovem cuja conclusão foi “Roberto é um jovem com
limitações na complexidade em desenvolver-se enquanto pessoa de direito.” Outros
relatórios da Febem instituição que nos últimos anos está em contato direto com
o interditando foram redigidos como o mesmo resultado. Entretanto, já com 20
(vinte) anos de idade Roberto foi submetido a exames por psicólogos e psiquiatras
do Hospital das Clínicas que apuraram que o Interditando não apresenta
transtornos mentais que determinem necessidade de internação e tratamento
(fl s. 1.229-1.235), destacaram que ele tem defi ciência intelectual, mas que não
tem benefícios a auferir de qualquer medida de internação, na fundação casa, ou
outra instituição para transtornos mentais. Estes mesmos profissionais que
concluíram a assertiva acima deixaram expresso no laudo que: No período em
que foi acompanhado pela nossa equipe, Roberto demonstrou interesse em sua
situação, e ao longo do acompanhamento não revelou resposta signifi cativa de
abstração que sugerisse indicativos de uma melhor adaptação, já que por suas
limitações intelectuais e personalidade imatura, ele carece de habilidade para
julgar adequadamente situações sociais, tendendo agir conforme as orientações
que recebe. (grifo nosso)” Vale dizer, mesmo da avaliação feita pelos profi ssionais
do Hospital das Clínicas de São Paulo é possível aferir que Roberto, por si só, não
consegue gerir sua vida, pois “ele carece de habilidade para julgar adequadamente
situações sociais.” Por derradeiro, Roberto foi submetido à equipe do Instituto de
Medicina Social e de Criminologia do Estado de São Paulo, doravante designado
apenas de IMESC que realizou a perícia no Interditando para este processo (fl s.
1.263-1.266). Este exame, que observa os ditames legais, levou em consideração
todos os já realizados, contato pessoal com o interditando e concluiu (fl s. 1.266):
“O examinando Roberto Aparecido Alves Cardoso é portador de história objetiva,
subjetiva, dados objetivos e exame psíquico compatível com Retardo Mental de Leve
para Moderado (CID F70/71) e Transtorna de Personalidade Dissocial (CID F 60.2),
piorado pelo uso de alcoólicos e drogas, tendo sua capacidade de entendimento
reduzida e, por conta da somatória de problemática de ordem mental, absolutamente
incapaz de auto determinação. Assemelha-se e gera efeitos, neste caso, estritamente
sob o ponto de vista médíco legal, á doença mental. É sob o ponto de vista médico
legal, absoluta e permanentemente incapaz de reger sua vida e administrar seus bens
e interesses.” Pois bem, as provas são sufi cientes a indicarem que o interditando é
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
464
absolutamente incapaz, pois, por enfermidade e defi ciência mental, não tem o
necessário discernimento para os atos da vida civil (artigo 1.767, inciso I do CPC).
De efeito, conforme classifi cação do Código Internacional de Doenças (CID) F60
transtorno de personalidade, trata-se de distúrbios graves da constituição
caracterológica e das tendências comportamentais do indivíduo, não diretamente
imputáveis a uma doença, lesão ou outra afecção cerebral ou a um outro
transtorno psiquiátrico. Estes distúrbios compreendem habitualmente vários
elementos da personalidade, acompanham-se em geral a angústia pessoal e
desorganização social; aparecem habitualmerute durante a infância ou a
adolescência e persistem de modo duradouro na idade adulta. Segundo a perícia
do IMESC, Roberto é portador de personalidade anti-social (fl s. 1.307), que segundo
CID - F60.2 consiste na personalidade dissocial, isto é: “Transtorno de
personalidade caracterizado por um desprezo das obrigações sociais, falta de
empatia para com os outros. Há um desvio considerável entre o comportamento
e as normas sociais, falta de empatia para com os outros. Há um desvio
considerável, entre o comportamento e as normas sociais estabelecidas. O
comportamento não é facilmente modificado pelas experiências adversas,
inclusive pelas punições. Existe uma baixa tolerância à frustração e a um baixo
limiar de descarga de agressividade, inclusive da violência. Existe uma tendência a
culpar os outros ou a fornecer racionalizações plausíveis para explicar um
comportamento que leva o sujeito a entrar em conflito com a sociedade.
Personalidade (transtorno da): amoral; anti-social; associal; psicopática,
sociopática. A interdição civil abrange as pessoas dotadas de sociopatia
(personalidade dissocial) como no vertente caso, porque, conforme a legislação
vigente, dar-se-á curatela aos que sofrem de enfermidade ou defi ciência mental
grave que os privem completamente da razão, “nessa situação os portadores de
alguma anomalia psíquica, como os alienados mentais e os psicopatas. (nesse
sentido: professor Militon Paulo de Arvalho Filho - Código Civil Comentado. São
Paulo, Manole. 2007. coordenador Ministro Cezar Peluso, p. 1.752).
Insofi smavelmente, a compreensão dos problemas da mente é complexa para a
Medicina e para o Direito, visto existir uma variação de pequenos distúrbios, até a
completa alienação. Porém, quando o legislador tratou do absolutamente
incapaz, os que por enfermidade ou defi ciência mental, não tiverem o necessário
discernimento para a prática desses atos (artigo 3, inciso II do Código Civil) quis na
verdade abranger a qualquer distúrbio mental que comprometa a vida civil do
sujeito; ora, “Tanto na expressão do texto revogado como, no texto atual, a lei
refere-se a qualquer distúrbio mental que possa afetar a vida civil do indivíduo. A
expressão abrange desde os vícios mentais congênitos até aqueles adquiridos do
decorrer da vida, por qualquer causa. Por essa razão, era muita criticada a expresso
loucos de todo gênero. De qualquer forma a intenção do legislador sempre foi a
de estabelecer uma incapacidade em razão do estado mental. Uma vez fi xada a
anomalia mental, o que é feito com a auxílio da Psiquiatria, o individuo pode ser
considerado incapaz para os atos da vida civil.” (Sílvio de Salvo Venosa -Direito
Civil. Parte Geral. 4 edição. Atlas. P. 177). Portanto, no vertente caso, uma vez
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 465
constatada a enfermidade e o transtorno dissocial, que inviabiliza o interditando de
gerir a si próprio, outras pessoas, seus bens, manifestar validamente seu
consentimento decreto a interdição do mesmo. Dos limites da interdição A
interdição, no caso é ampla e plena. O jovem encontra-se em estabelecimento
diverso do convívio doméstico, segundo o perito oficial, ele: “Necessita de
estímulos na área psico-pedagógica, bem como acompanhamento psicológico,
avaliação neurológica e acompanhamento psiquiátrico em local especializado,
conforme preconizado pela psicóloga da Febem-SP. (fl s.32). O acompanhamento
psicológico e psiquiátrico mencionado deverá ser realizado em regime fechado já que
o periciando não reúne ainda condições de ser reengajado ao meio social.” Os laudos
deixaram claros que o interditando revela periculosidade e personalidade voltada
a delitos, impondo-se sua internação compulsória, o fato dos profissionais do
Hospital das Clinicas terem uma opinião diversa dos profi ssionais do IMESC e da
EDEN sobre a efetividade ou não da internação, não gera dúvida que o interditando
tenha deficiêcias que comprometam a gestão de sua vida e o seu convívio em
sociedade, bem como não comprometem neste juízo a escolha da medida que seja a
mais adequada, por ora, já que não foi apresentada outra medida apta a defender o
próprio interditando e a sociedade da sua incapacidade. Não obstante, a medicina
não forneça ainda solução às patologias da personalidade, chegando o perito à
conclusão de que “Não existe tratamento para o Transtorno de Personalidade já
que não se trata de doença mental.” (fl s. 1.307), que a própria medicina abandone
as pessoas dotadas desta patologia, ou que o direito ignore esta situação.
Cumprindo o artigo 1.771 do Código Civil, este juízo, pessoalmente argüiu o
jovem, colheu detalhes de personalidade e comportamento que, embora não sob
o aspecto médico, trazem elementos de convicção (fls. 1.209-1.213) e as
impressões que deixou neste juízo foi insensibilidade e frieza ao responder as
perguntas formuladas. Por estes fundamentos entendo nos termos do artigo
1.777 do Código Civil e artigo 60, parágrafo único, inciso III da Lei n. 10.216/2001
deva o interditando ser recolhido em estabelecimento adequado, distinto do
convívio doméstico e social, em hospital psiquiátrico ou similar compulsoriamente,
com a segurança que o caso requer. Insta expor, “Como ensinava Carnelutti, na
interdição o juiz não decide frente a duas partes, com interesse em confl ito, senão
em face de interesse do próprio incapaz.” (Humberto Theodoro Junior. Curso de
Direito Processual Civil. 32 edição. Forense. P. 399). Do exposto, decreto a
interdição de Roberto Aparecido Alves Cardoso, declarando-o absolutamente
incapaz de exercer pessoalmente os atos da vida civil, na forma do artigo 3º, II, do
Código Civil; decreto sua internação, compulsória em estabelecimento psiquiátrico
compatível e seguro face à debilidade do interditado, nos termos do artigo 1.777
do Código Civil e art. 9º da Lei n. 10.216/2001 e nomeio-lhe Curadora a Sra. Maria
as Graças Figueiredo Cardoso, intimando-a para prestar compromisso em cinco
dias, bem como para Informar se Roberto herdou bens e, em caso positivo,
proceda à especialização da hipoteca legal em bens de sua propriedade. Em
obediência ao Imposto no artigo 1.184 do Código de Processo Civil e no artigo 12,
inciso, III, do Código Civil, inscreva-se a presente no Registro Civil e publique-se na
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
466
imprensa local e no Órgão ofi cial, 03 vezes, com intervalo de 10 dias. Ofi cie-se à
Secretaria de Saúde com urgência para que providencie local apropriado ao
interditado, isto é, estabelecimento psiquiátrico compatível com o tratamento
necessário, com contenção e segurança apropriada, informando que o interditando é
atualmente maior e incapaz. Mantenho tutela antecipada de fl s. 1.063-10.641, não
obstante eventual recurso de apelação tenha apenas efeitos devolutivos.
Expeçam-se ofícios via fax, para comunicação do DEIJ desta sentença, bem como
para requisitar à Febem que o jovem seja transferido apenas para o
estabelecimento indicado pela Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, não
podendo ser liberado sem que haja estabelecimento apropriado, eis que, é
absolutamente incapaz e atualmente, encontra-se já separado dos adolescentes,
recebendo tratamento por esta instituição. P.R.I.C. Embu-Guaçu, 28 de novembro
de 2007. Patricia Padilha Juíza de Direito.
O acórdão mantenedor da decisão de primeira instância asseverou (fl s. 43-
54):
[...]
A questão em exame é objeto também da Apelação Cível n. 560.901-4/1-00,
à qual foi negado provimento, por votação unânime, para manter a interdição e
a internação. Trata-se do então menor participante de estupro e homicídio, no
qual foi brutalmente assassinado um casal de jovens que resolveram acampar
num sítio, no Município de Embu-Guaçu, no final do ano de 2003, fato esse
que teve repercussão ao menos nacional e provocou forte comoção pública,
dada a extrema crueldade com que foi praticado e a torpeza do motivo do seu
cometimento.
Peço venia para transcrever o relatório do Inquérito Policial, constante dos
autos da Apelação Cível n. 560.901-4/1-00, porque, embora ausente dos autos, de
relevância indiscutível para fundamentar o julgamento deste writ.
“Durante as investigações, procederam-se à exaustivas oitivas tanto de
familiares como de possíveis testemunhas da eventual localização das vítimas,
acerca dos locais em que possivelmente teriam transitado ou sido visualizadas,
como até mesmo a hipótese de terem sido vítimas de alguma ação criminosa,
momento em que foram mobilizados também equipes da Delegacia Seccional de
Policia de Taboão da Serra e do Município de Juquitiba.
No curso dessas mesmas investigações, foram inquiridos diversos moradores
daquela região, dentre os quais Antonio Caitano da Silva, que preliminarmente
em declarações prestadas em data de 10.11.2003, afi rmou ter visto o adolescente
Roberto Aparecido Alves Cardoso, vulgo “Champinha”, na companhia de
uma jovem, com os traços fisionômicos da vitima Liana. Realizado auto de
reconhecimento fotográfi co Antonio Caitano da Silva apontou com certeza e
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fi rmeza de convicção ser a pessoa de Liana Bei Friedenbach a jovem que estaria na
companhia de “Champinha”, na oportunidade em que os avistara.
Foram determinadas ainda naquele mesmo dia, diligências com a fi nalidade
precípua de localizar e apresentar nesta Unidade o adolescente Paulo Roberto
Alves Cardoso o qual encontrava-se ausente de sua residência há vários dias
segundo seus familiares sendo posteriormente localizado no município de
Itapecerica da Serra-SP, onde encontrava-se escondido.
Conduzido a esta Unidade Policial Roberto Aparecido Alves Cardoso,
vulgo “Champinha” confessou sua participação no homicídio perpetrado em
relação à vitima Felipe Silva Caff é, atribuindo a autoria ao indivíduo de alcunha
“Pernambuco”, todavia, alegara a princípio que a vítima Liana Bei Friedenbach
estaria sob o domínio desse último, que exigiria o pagamento de resgate por sua
libertação.
Realizadas diligências com o adolescente, infrator, fora apontado pelo mesmo
o local em que o corpo da vítima Felipe Silva Caff é, jazia oculto no interior da mata
nativa, já em adiantado estado de putrefação, razão pela qual representou-se a
custódia do menor ao r. Juízo de Direito da Comarca de Embu-Guaçu-SP, tendo a
pretensão sido deferida.
Face à inconsistência das declarações apresentadas pelo adolescente em
relação à localização da vítima Liana, bem como das divergências apontadas em
seus depoimento, foram empreendidas novas diligências naquela noite, onde o
menor acabou confessando a morte de Liana, apontando inclusive o local em que
o corpo encontrava-se escondido, também no interior da mata.
Apurou-se através das declarações prestadas pelo adolescente infrator, que
o arrebatamento das vitimas ocorrera em data de 1º.11.2003, Sábado, no local
do acampamento, tendo as mesmas sido conduzidas à residência de Antonio
Caitano da Silva, onde pernoitaram, tendo sido a vítima Liana, neste ínterim,
submetida à prática de conjunção carnal, enquanto Felipe era mantido em outro
cômodo.
Pela vitima Felipe haver alegado aos autores não ser pessoa detentora de
posses, os autores “Pernambuco” e “Champinha”, com (...) desígnios e fi nalidade
de propósitos, decidiram na manhã de 2.11.2003, Domingo, em retirar sua vida,
conduzindo as vítimas até una trilha no interior da mata, onde Champinha
permaneceu com Liana, enquanto Pernambuco desferiu um disparo
com a espingarda calibre 28 que portava, na nuca de Felipe, matando-o
instantaneamente.
Após a ação criminosa, Pernambuco evadiu-se do local, devolvendo a arma do
crime ao adolescente infrator, enquanto a vítima Liana fora por este conduzida
novamente ao local de cativeiro, onde permaneceu durante todo aquele dia,
sendo obrigada a manter com aquele conjunção carnal.
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
468
Apurou-se ainda, que em data de 3º.11.2003, Segunda-feira, os autores
Antonio Caitano da Silva e Agnaldo Pires retomaram àquela casa, por volta das
l4hs00min, deparando-se com o adolescente infrator “Champinha” e a vitima
Liana completamente nua, tendo aquele oferecido a vitima a ambos, a fi m de
como ele, satisfazerem sua lascívia, oportunidade em que o segundo aceitou a
oferta, passando também a mante conjunção carnal com aquela jovem. Destaca-
se que apesar de recusar-se a participar das sevícias sexuais, Antonio Caitano da
Silva quedou-se inerte, concordando com a prática daquele crime, no interior de
sua residência.
No dia seguinte, 4.11.2003, Terça- feira, por volta das 12hs00nin, o grupo
integrado por Agnado Pires, Antonio Caitano da Silva, vitima Liana e o adolescente
“Champinha”, compareceram à residência de Antonio Matias de Barros, onde
passaram a pescar junto a uma pequena represa, tendo permanecido naquele
local por aproximadamente quatro horas, sendo que ali compareceu o irmão
de “Champinha”, de nome Gilberto Alves Cardoso, o qual lhe entregava uma
notifi cação da Delegacia de Policial de Emba-Guaçu-SP, a fi m de comparecer
naquela Unidade, no dia seguinte, visando prestar esclarecimentos a respeito do
desaparecimento das vitimas uma vez que todo os moradores daquela região
estavam sendo inquirido acerca dos fatos, tendo dali se retirado em seguida,
acreditando que a jovem que acompanha seu irmão seria sua namorada.
O grupo retornou para a casa do autor Antonio Matias de Barros, onde
enquanto este preparava o jantar para todos, Antonio Caitano da Silva, ausentou-
se daquela, indo embora para sua residência. A vitima permaneceu no interior
de um dos quartos, onde assistia televisão, sendo posteriormente submetida à
conjunção carnal tanto com o adolescente “Champinha” como com Agnaldo Pires,
fatos estes presenciados pelo proprietário do imóvel, Antonio Matias de Barros.
Na madrugada do dia 5º.11.203, Quarta-feira, por volta das 2hs00min,
Champinha solicitou a seu comparsa Antonio Matias para que guardasse a
arma de fogo calibre 28, e o acompanhasse juntamente com Liana à residência
de Antonio Caitano, enquanto Agnaldo Pires, permaneceria naquele imóvel,
dormindo. Segundo o adolescente, Agnaldo Pires teria sido noticiado da
pretensão de eliminar a vitima Liana.
Em comparecendo na residência de Antonio Caitano, Antonio Matias
permaneceu em sua companhia, enquanto o adolescente Champinha, alegando
a ambos que levaria Liana para o ponto de ônibus, com a fi nalidade de retornar
para sua residência, retirou-se com ela daquele local.
Caminhando pela denominada “Estrada do Pai”, a qual permite o acesso até
um ponto de ônibus, de maneira dissimulada Champinha adentrou com a vítima
Liana no interior da mata, onde de maneira cruel, sem qualquer possibilidade
de defesa por parte desta, passou a desferir golpes de faca contra seu pescoço,
peito, cabeça, braços e costas, extinguindo sua vida impiedosamente, deixando
seu cadáver ocultado naquela vegetação fechada.” (Fls. 794-798, dos autos da
Apelação Cível n. 560.901-4/1-00).
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Também não consta dos autos a conclusão do exame realizado no IMESC que
assim concluiu:
“0 examinando Roberto Aparecido Alves Cardoso é portador de história
objetiva, subjetiva, dados objetivos e exame psíquico compatível com Retardo Mental
de Leve para Moderado (CID F 70/71) e transtorno de Personalidade Dissocial (CID F
60.2), piorado pelo uso de alcoólicos e drogas tendo sua capacidade de entendimento
reduzida e, por conta da somatória de problemática de ordem mental, absolutamente
Incapaz de auto determinação. Assemelha-se e gera efeitos, neste caso, estritamente
sob o ponto de vista médico legal, à Doença Mental
É, sob o ponto de vista médico legal, absoluta e permanentemente incapaz de
reger sua vida e administrar seus bens e interesses. (fl s. 1.226, dos autos da Apelação
Cível n. 560.901-4/1-00).
Por óbvio que também não constam deste writ as conclusões dos vários exames
realizados na Febem-SP, na Sociedae Roscach, todos conclusivos para o diagnóstico
de Doença mental e necessidade de medidas protetivas ao paciente e à sociedade.
O paciente, comprovadamente padecente de doença mental agravada por
alcoolismo e toxicomania e que concretamente o levou a prática de crime de
extrema violência e crueldade, se liberado de qualquer tipo de confi nameno fi caria
evidentemente sujeito a cometer inclusive suicídio, ou novo ataque físico a qualquer
pessoa do qual poderia resultar inclusive em novo homicídio ou, se confi nado em local
inadequadamente estruturado geraria esse mesmos riscos, não havendo portanto
outra alternativa senão o seu confi namento em estabelecimento apropriado para
o tratamento do seu mal psíquico até que esteja defi nitivamente curado e deixe de
representar perigo à sociedade.
O paciente, através de atitudes concretas, exauriu as sua tendências
comportamentais nocivas a si próprio e às pessoas em geral, demonstrou que é
realmente capaz de praticar as maiores atrocidades contra quem sequer conhecia,
nenhum mal lhe fez, apenas teve a infelicidade de estar vulnerável em local
desprotegido e ao seu alcance, ou seja, representa o paciente perigo iminente erga
omnes e também corre o risco de acabar sendo gravemente ferido, ou morto através
de eventual reação bem sucedida de alguma de suas futuras vítimas.
A realidade do comportamento do interditando no caso concreto se
compatibiliza com as condições psiquiátricas no sentido da sua internação em
estabelecimento apropriado que evidentemente não é o comumente utilizado
em casos de menor gravidade de patologia psíquica.
A Secretaria de Saúde, por outro lado, prestou informações noticiando que
todas as providências necessárias à adequação e cumprimento da ordem judicial
estão sendo observadas (cf. fl s. 73-75).
Destaco tratar-se de caso gravíssimo que resultou em crime praticado com
inaceitáveis requintes de frieza, brutalidade, crueldade e barbaridade.
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
470
Não há afronta ou desconformidade à disposições contidas na Lei n.
10.216/2001. Entretanto, prevalece e se aplica à espécie o imperioso princípio da
igualdade que proclama o tratamento igual aos iguais, e desigual aos desiguais
na proporção de suas desigualdades.
Inexiste amparo legal para a liberdade do paciente que represente perigo a si
próprio e à sociedade.
Ademais, como assinalado anteriormente, a questão já foi decidida por esta
Corte no apelo, consolidando o farto conjunto probatório e a estrita observância
da simetria processual.
Não há ilegalidade ou abuso de poder.
Diante do exposto, voto pela denegação da ordem.
Releva notar que o agravo de instrumento ao Superior Tribunal de Justiça
(Ag n. 1.320.086) não foi conhecido, com trânsito em julgado em 13.9.2011.
O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, proferiu decisão em 18.10.2011
dando provimento ao Agravo de Instrumento n. 810.193 e determinando sua
conversão em recurso extraordinário, reautuado como RE n. 667.307, com vista
ao Ministério Público Federal desde 6.6.2013.
3. É bem de ver que a internação compulsória deve ser evitada, quando
possível, e somente adotada como última opção, em defesa do internado
e, secundariamente, da própria sociedade. É claro, portanto, o seu caráter
excepcional, exigindo-se, para sua imposição, laudo médico circunstanciado que
comprove a necessidade de tal medida.
O art. 6º da Lei n. 10.216/2001 - que dispõe acerca da proteção e
direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais estabelece: “A internação
psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que
caracterize os seus motivos”.
No que concerne à internação compulsória, o artigo 9º estabelece, ainda,
que esta é determinada segundo a legislação vigente, pelo juiz competente, que
deverá examinar, também, as condições de segurança do estabelecimento quanto
à salvaguarda do paciente, dos demais internados e dos funcionários.
Diante desse quadro, observo que a Juíza de piso discorreu de forma
exaustiva sobre as avaliações psicológicas e psiquiátricas pelas quais foi
submetido o paciente, afi rmando que, por meio delas, foi atestada a inaptidão do
paciente para reger a própria vida, bem como para o convívio social.
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 471
Ademais, observo também que, tanto no corpo da sentença quanto
do acórdão, foi feito menção ao laudo do Instituto de Medicina Social e de
Criminologia do Estado de São Paulo - IMESC, no qual fi cou consignado que
“O examinando Roberto Aparecido Alves Cardoso é portador de história objetiva,
subjetiva, dados objetivos e exame psíquico compatível com Retardo Mental de
Leve para Moderado (CID F70/71) e Transtorna de Personalidade Dissocial
(CID F 60.2), piorado pelo uso de alcoólicos e drogas, tendo sua capacidade de
entendimento reduzida e, por conta da somatória de problemática de ordem
mental, absolutamente incapaz de auto determinação. Assemelha-se e gera efeitos,
neste caso, estritamente sob o ponto de vista médico legal, à Doença Mental. É, sob
o ponto de vista médico legal, absoluta e permanentemente incapaz de reger sua
vida e administrar seus bens e interesses.”
Além desse laudo, a Juíza de piso fez menção a inúmeros outros laudos
médicos que juntamente com a oitiva do paciente foram sufi cientes para fi rmar
e balizar o seu convencimento.
4. Nesse passo, a interdição civil com internação compulsória, tal como
determinada pelas instâncias inferiores, encontra fundamento jurídico tanto
na mencionada Lei n. 10.216/2001 (antes referida), quanto no artigo 1.777 do
Código Civil:
Art. 1.777. Os interditos referidos nos incisos I, III e IV do art. 1.767 serão
recolhidos em estabelecimentos adequados, quando não se adaptarem ao
convívio doméstico.
James Eduardo Oliveira comenta o dispositivo:
Entre as pessoas que estão sujeitas à curatela (art. 1.767), esse artigo trata
dos enfermos ou defi cientes mentais, dos ébrios habituais e viciados em tóxicos,
dos excepcionais sem completo desenvolvimento mental, editando que, na
hipótese de eles não se adaptarem ao convívio doméstico, sendo impossível
ou inseguro mantê-los no seio da família, serão recolhidos em estabelecimento
adequado (casas de saúde, estabelecimentos psiquiátricos, clínicas ou centros de
recuperação, etc.)
(OLIVEIRA, James Eduardo. Código civil anotado e comentado: doutrina e
jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 1.620-1.621).
Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Junior sobre o mesmo
artigo:
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
472
Interdição por doença mental com internamento. Sua admissibilidade,
independentemente da extinção da punibilidade, pelo cumprimento da pena, de
crimes cometidos pelo interdito;
(NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 1.286).
Fabrício Zamprogna Matiello, em seu Código Civil comentado, leciona:
A permanência do incapaz na residência própria ou do curador nem sempre
será possível e recomendável, seja como decorrência do estado mental em que
se encontra ou das necessidades de recuperação em estabelecimento adequado.
Os curatelados agressivos, furiosos ou cuja inserção no convívio familiar não se
mostre viável em determinado momento, deverão ser encaminhados a locais
especializados no tratamento dos males que os acometem.
(MATIELLO, Fabrício Zamprogna. Código Civil comentado. 4a ed. São Paulo: LTr,
2011. p. 1.167-1.168).
Assim, tenho que, ao contrário do que afi rma o impetrante, foi cumprido o
requisito legal para a imposição da medida de internação compulsória, tendo em
vista que a internação do paciente está lastreada em laudos médicos, conforme
preceitua a Lei n. 10.216/2001 e o Código Civil.
Nesse contexto, diante do quadro até então apresentado pelos laudos
já apreciados pelas instâncias inferiores, entender de modo diverso, no caso
concreto, seria pretender que o Poder Público se portasse como mero espectador,
fazendo prevalecer o direito de ir e vir do paciente, em prejuízo de seu próprio
direito à vida.
Gabriel Figueiredo, professor titular de psiquiatria da faculdade de
medicina da PUC-Campinas pondera:
Às vezes, hesitamos diante de uma necessária internação. Pior ainda que
a hesitação é a radicalização de alguns profi ssionais da saúde mental que se
recusam terminantemente a qualquer tipo de internação, interpretando-a como
uma regressão ao Estado autoritário.
(FIGUEIREDO, Gabriel. Políticas de saúde mental no Brasil. Revista Jurídica
Consulex. Ano XIV. N. 320-15 de maio de 2010).
5. Quanto à argumentação do impetrante de que não houve priorização de
recursos extra-hospitalares, não lhe socorre melhor sorte.
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 473
O art. 4º da Lei n. 10.216/2001 dispõe: “A internação, em qualquer de suas
modalidades, só será iniciada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem
insufi cientes.”
Tal dispositivo contém ressalva em sua parte fi nal, dispensando a aplicação
dos recursos extra-hospitalares se houver demonstração efetiva da insufi ciência
de tais medidas.
Essa é exatamente a situação dos autos, haja vista ser notória a insufi ciência
de medidas extra-hospitalares, conforme se extrai dos laudos acima mencionados
e invocados no acórdão impugnado.
Nesse contexto, o acórdão denegatório da ordem asseverou (fl s. 52-53):
[...]
O paciente, comprovadamente padecente de doença mental agravada por
alcoolismo e toxicomania e que concretamente o levou a prática de crime de
extrema violência e crueldade, se liberado de qualquer tipo de confi namento fi caria
evidentemente sujeito a cometer inclusive suicídio, ou novo ataque físico a qualquer
pessoa do qual poderia resultar inclusive em novo homicídio ou, se confi nado em local
inadequadamente estruturado geraria esse mesmos riscos, não havendo portanto
outra alternativa senão o seu confi namento em estabelecimento apropriado para
o tratamento do seu mal psíquico até que esteja defi nitivamente curado e deixe de
representar perigo à sociedade.
O paciente, através de atitudes concretas, exauriu as sua tendências
comportamentais nocivas a si próprio e às pessoas em geral, demonstrou que é
realmente capaz de praticar as maiores atrocidades contra quem sequer conhecia,
nenhum mal lhe fez, apenas teve a infelicidade de estar vulnerável em local
desprotegido e ao seu alcance, ou seja, representa o paciente perigo iminente erga
omnes e também corre o risco de acabar sendo gravemente ferido, ou morto através
de eventual reação bem sucedida de alguma de suas futuras vítimas.
A realidade do comportamento do interditando no caso concreto se compatibiliza
com as condições psiquiátricas no sentido da sua internação em estabelecimento
apropriado que evidentemente não é o comumente utilizado em casos de menor
gravidade de patologia psíquica.
A Secretaria de Saúde, por outro lado, prestou informações noticiando que
todas as providências necessárias à adequação e cumprimento da ordem judicial
estão sendo observadas (cf. fl s. 73-75).
Destaco tratar-se de caso gravíssimo que resultou em crime praticado com
inaceitáveis requintes de frieza, brutalidade, crueldade e barbaridade.
Não há afronta ou desconformidade à disposições contidas na Lei n.
10.216/2001.
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
474
Diante do exposto, não vislumbro constrangimento ilegal apto a justifi car
a concessão da presente ordem. Ademais, é cediço não caber na angusta via do
habeas corpus, em razão de seu rito célere e desprovido de dilação probatória,
exame aprofundado de prova no intuito de reanalisar as razões e motivos pelos
quais as instâncias inferiores formaram sua convicção.
Em situação análoga esta Corte já decidiu:
Habeas corpus. Ação civil de interdição cumulada com internação compulsória.
Competência das Turmas da Segunda Seção. Verifi cação. Internação compulsória.
Possibilidade. Necessidade de parecer médico e fundamentação na Lei n.
10.216/2001. Existência, na espécie. Exigência de submeter o paciente a Recursos
extra-hospitalares antes da medida de internação. Dispensa em hipóteses
excepcionais. Exame de periculosidade e inexistência de crime implicam dilação
probatória. Vedação pela via do presente remédio heroico. Habeas corpus
substitutivo de recurso ordinário conhecido para denegar a ordem.
I - A questão jurídica relativa à possibilidade de internação compulsória, no
âmbito da Ação Civil de Interdição, submete-se a julgamento perante os órgãos
fracionários da Segunda Seção desta a. Corte;
II - A internação compulsória, qualquer que seja o estabelecimento escolhido
ou indicado, deve ser, sempre que possível, evitada e somente empregada como
último recurso, na defesa do internado e, secundariamente, da própria sociedade.
III - São modalidades de internação psiquiátrica: a voluntária, que é aquela
que se dá a pedido ou com o consentimento do paciente (mediante declaração
assinada no momento da internação); a involuntária, que é a que se dá sem
o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e, por fim, a internação
compulsória, determinada por ordem judicial.
IV - Não há constrangimento ilegal na imposição de internação compulsória,
no âmbito da Ação de Interdição, desde que baseada em parecer médico e
fundamentada na Lei n. 10.216/2001. Observância, na espécie.
V - O art. 4º da Lei n. 10.216/2001, fruto de uma concepção humanística, traduz
modifi cação na forma de tratamento daqueles que são acometidos de transtornos
mentais, evitando-se que se entregue, de plano, aquele, já doente, ao sistema de
saúde mental.
VI - Todavia, a ressalva da parte fi nal do art. 4º da Lei n. 10.216/2001, dispensa
a aplicação dos recursos extra-hospitalares se houver demonstração efetiva da
insufi ciência de tais medidas.
Hipótese dos autos, ocorrência de agressividade excessiva do paciente.
VII - A via estreita do habeas corpus não comporta dilação probatória, exame
aprofundado de matéria fática ou nova valoração dos elementos de prova.
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 475
VIII - Habeas Corpus substitutivo de recurso ordinário conhecido para denegar
a ordem.
(HC n. 130.155-SP, Rel. Ministro Massami Uyeda, Terceira Turma, julgado em
4.5.2010, DJe 14.5.2010).
6. Sustenta o impetrante, ainda, ilegalidade na manutenção do paciente na
Unidade Experimental de Saúde de São Paulo desde maio de 2007.
Em reforço a seu argumento, colaciona aos autos documento novo
consistente em relatório do Subcomitê de Prevenção da Tortura e outros
Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (SPT) da
Organizações das Nações Unidas (ONU) (fl s. 467-504).
De início, este Tribunal Superior tem entendimento no sentido de que
“Alegações formuladas e documentos novos, apresentados apenas perante o STJ, não
podem ser apreciados por esta Corte, sob pena de supressão de instância.” (HC n.
195.988-SP, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, Rel. p/ Acórdão Ministra
Assusete Magalhães, Sexta Turma, julgado em 27.8.2013, DJe 10.10.2013).
Nesse sentido, a via estreita do habeas corpus não comporta dilação
probatória. Ademais, quando proferido o acórdão combatido em setembro de
2008, o paciente já se encontrava na Unidade Experimental de Saúde de São
Paulo, e foi dito pelo Tribunal de origem que: “A realidade do comportamento
do interditando no caso concreto se compatibiliza com as condições psiquiátricas no
sentido da sua internação em estabelecimento apropriado que evidentemente não é o
comumente utilizado em casos de menor gravidade de patologia psíquica. A Secretaria
da Saúde, por outro lado, prestou informações noticiando que todas as providências
necessárias à adequação e cumprimento da ordem judicial estão sendo observadas.”
(fl s. 53-54).
Outrossim, a internação compulsória determinada pelas instâncias
inferiores está vinculada à sua interdição civil, nos termos do art. 1.777 do
Código Civil e da Lei n. 10.216/2001, não tendo qualquer relação com o
Estatuto da Criança e do Adolescente, como faz parecer o dito documento.
Vale lembrar que a internação compulsória em sede de ação de interdição,
como é o caso dos autos, não tem caráter penal, não devendo ser comparada à
medida de segurança ou à medida socioeducativa à que esteve submetido no
passado o paciente em face do cometimento de atos infracionais análogos a
homicídio e estupro.
Não se ambiciona nos presentes autos aplicar sanção ao ora paciente, seja
na espécie de pena, seja na forma de medida de segurança.
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
476
Por meio da interdição civil com internação compulsória resguarda-se a
vida do próprio interditando e, secundariamente, a segurança da sociedade.
7. Quanto ao pleito do impetrante para que sejam determinadas
reavaliações sobre a necessidade da custódia do paciente a cada 3 meses, por
equipe multiprofi ssional da qual não participem os peritos que já avaliaram o
caso, observo do acórdão que não foi apreciada pela Corte de origem suspeição
ou impedimento em relação à perícia, bem como qualquer questionamento a
respeito da periodicidade das avaliações periciais.
Igualmente, não há apreciação no acórdão combatido - proferido pelo
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo - quanto ao pedido de inserção do
paciente no programa federal De Volta Para Casa.
Em informações prestadas pelo Juízo de piso foi esclarecido que, sobre o
programa de inclusão social em questão, o advogado do interditando deixou
de trazer à colação qualquer informação acerca do endereço e qualifi cação
dos parentes interessados e aptos a receber o paciente (fl . 537). O Ministério
Público estadual alertou para que fosse realizada nova avaliação médica antes
da próxima audiência (fl s. 691) e que nova perícia foi agendada para o dia
28.11.2013 (fl . 709).
Sobre tais pontos, conforme já esclarecido, a jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça consolidou o entendimento de que não se conhece de habeas
corpus cuja matéria não foi objeto de decisão pela Corte de Justiça estadual, sob
pena de indevida supressão de instância. (HC n. 165.236-SP, Rel. Ministro
Moura Ribeiro, Quinta Turma, julgado em 5.11.2013, DJe 11.11.2013; HC n.
228.848-SP, Rel. Ministra Maria Th ereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado
em 24.10.2013, DJe 4.11.2013).
8. Ante o exposto, denego a ordem.
É o voto.
RECURSO ESPECIAL N. 512.406-SP (2003/0018532-5)
Relator: Ministro Raul Araújo
Recorrente: Banco do Brasil S/A
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 477
Advogados: Carlos Jose Marcieri e outro(s)
Patrícia Netto Leão e outro(s)
Recorrido: Empresa de Transportes Pantera Ltda. - Massa falida
Advogado: Cláudio Ghirardelo Gonzaga - Síndico
EMENTA
Recurso especial. Falência. Decreto Lei n. 7.661/1945.
Habilitação retardatária de crédito. Movimentação da máquina
judiciária. Necessidade de recolhimento de custas iniciais (DL n.
7.661/1945, arts. 23, 82, § 1º, e 98; Lei n. 11.101/2005, art. 10).
Recurso desprovido.
1. Embora os arts. 82 e 98 da anterior Lei de Falências, que
disciplinavam o procedimento de habilitação de créditos, não fi zessem
menção expressa ao recolhimento de custas processuais, pela leitura
do art. 23 do mesmo diploma legal constata-se que, em algumas
situações, havia a necessidade de recolhimento.
2. A análise do art. 98 da anterior Lei de Falências demonstra
que, em razão da inércia do credor que não se habilitou no prazo
determinado, toda máquina judiciária é novamente movimentada para
o processamento da habilitação retardatária.
3. Confi rmando o entendimento acima, a nova Lei de Falências
e Recuperação de Empresas (Lei n. 11.101/2005), em seu art. 10,
expressamente prevê que, na falência, os créditos retardatários
perderão o direito a rateios eventualmente realizados e fi carão sujeitos
ao pagamento de custas.
4. Recurso especial desprovido.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide
A Quarta Turma, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos
termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Maria Isabel Gallotti,
Antonio Carlos Ferreira, Marco Buzzi e Luis Felipe Salomão votaram com o Sr.
Ministro Relator.
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
478
Brasília (DF), 27 de agosto de 2013 (data do julgamento).
Ministro Raul Araújo, Relator
DJe 14.2.2014
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Raul Araújo: Nos autos da habilitação de crédito
quirografário que o Banco do Brasil S/A ajuizou contra Massa Falida de Empresa
de Transportes Pantera Ltda., o MM. Juiz de Direito da 3ª Vara Cível da Comarca
de Santo André-SP determinou o recolhimento das custas iniciais, em despacho
assim fundamentado:
A distribuição do presente feito se deu por ocasião de se tratar a presente de
Habilitação de Crédito intempestiva (art. 98 e seus incisos, da Lei n. 7.661/1945(LF),
por não atendido no prazo fi xado no art. 82 da referida lei.
Assim, este é um processo autônomo apesar de sua distribuição por
dependência ao processo original, por não atendidos no prazo fi xado nos artigos
acima mencionados.
Prazo para recolhimento: 5(cinco) dias. (fl . 111)
Inconformado, o Banco habilitante interpôs agravo de instrumento perante
o eg. Tribunal de Justiça de São Paulo que, por unanimidade de votos, manteve
o entendimento acima exarado, em aresto que guarda a seguinte ementa:
Falência. Habilitação retardatária de crédito. Credor que não se habilitou
no prazo assinalado pela sentença declaratória de quebra. Procedimento
autônomo que transcende a economia do próprio processo falimentar. Sujeição
ao recolhimento da taxa judiciária. Recurso improvido. (fl . 153)
Opostos embargos declaratórios, foram rejeitados (fl s. 175-178).
Banco do Brasil S/A interpôs, então, recurso especial, com fundamento na
alínea a do permissivo constitucional, sustentando, preliminarmente, violação
aos arts. 458, II e 535, I, do CPC, sob o entendimento de que o v. aresto
recorrido carece de fundamentação legal, o que não teria sido suprido mesmo
com a apresentação do recurso declaratório.
No mérito, sustenta ofensa aos arts. 82, § 1º, 98 e 208, todos da Lei de
Falências - DL n. 7.661/1945 - defendendo o seguinte, verbis:
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 479
O v. acórdão recorrido, sem qualquer motivação legal, determinou o
recolhimento das custas judiciais e paralisou inadvertidamente o processamento
da habilitação retardatária.
Entretanto, constata-se que o v. acórdão, embora sem fundamentação,
acompanhou os termos da manifestação da D. Procuradora de Justiça, juntada às
fl s. 123-125.
Como foi destacado pela D. Procuradora de Justiça, fl s. 124, “o procedimento
das declarações de crédito é regido pelo princípio da informalidade, não sendo
devido o pagamento de custas. Tampouco há honorários de advogado”.
Também a D. Procuradora de Justiça ponderou, nas razões de sua manifestação,
que “O artigo 98 do Decreto-Lei n. 7.661/1945 não faz qualquer menção ao
recolhimento de custas processuais.” Concluiu, assim, que estão isentas de custas
as declarações de crédito formuladas no prazo do edital de convocação de
credores.
Após, manifestou seu entendimento sobre a necessidade de recolhimento
de custas nas habilitações retardatárias, fundamentando tais considerações nos
dizeres de Pontes de Miranda, apontando que tais petições têm de satisfazer as
exigências dos artigos 158/160 do Código de Processo Civil, além do que diz no
artigo 82 § 1º do Decreto-Lei n. 7.661.
Ocorre, porém, que os artigos 158 a 160 não prevêem a necessidade do
recolhimento de custas nas habilitações de crédito, uma vez que, tão somente,
regulamentam dos atos da parte. Tampouco o artigo 82 §1º pressupõe essa
necessidade.
Também não pode servir de amparo para o recolhimento de custas o artigo 19
do CPC, mencionado no parecer da i. Procuradora da República, haja vista que tal
dispositivo, eventualmente, poderia ser interpretado harmonicamente com lei de
custas que exigisse o recolhimento judicial dessas.
A lei de custas do Estado de São Paulo, por seu turno, não previu a necessidade
do recolhimento de custas em casos de habilitação de crédito de falência. Os
artigos lº e 4º da Lei n. 4.952/1985 delimitam a incidência da taxa de juros para os
processos judiciais, nas ações de conhecimento, na execução, nas ações cautelares
e nos processos não contenciosos, onde existe uma causa, no sentido processual.
Assim, restou demonstrado que não há parâmetros legais capazes de exigir
o recolhimento de custas em casos de habilitação de crédito em falência, sejam
aqueles habilitados tempestivamente, sejam os que foram habilitados na forma
retardatária.
Vale notar que a pena imposta ao credor que não se habilita tempestivamente,
isto é, no prazo determinado pelo juiz na sentença declaratória da falência, consta
da própria lei de falências e consiste no fato de que os credores retardatários não
terão direito aos rateios anteriormente distribuídos.
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
480
Assim, além de omisso quanto ao fundamento legal, o v. aresto foi contraditório
ao determinar o pagamento de custas, tão somente, das habilitações de crédito
retardatárias, sendo que tanto a retardatária quanto a tempestiva tem o mesmo
tratamento legal, exceto pelo rateio já mencionado. (fl s. 210-211)
(...)
Outro ponto que não se pode desconsiderar é que o trânsito da habilitação
ficou obstado pelo decisum, violando, flagrantemente, o art. 208 da Lei n.
7.661/1945 (Lei de Falências). (fl . 216)
Sem contrarrazões (fl. 227), o recurso foi admitido (fls. 249-252) e
encaminhado a esta Corte.
A d. Subprocuradoria Geral da República opinou pelo não conhecimento
do recurso, em parecer assim sumariado:
Recurso especial. Art. 105, III, alínea a, da Constituição Federal. Alegada
violação aos arts. 458, II, 535, I, do Código de Processo Civil, e 82 § 1º, 98 e 208
do Decreto-Lei n. 7.661/1945. Decisão recorrida que não infi rma os dispositivos
legais apontados por malferidos.
Pagamento de custas. Habilitação de crédito intempestiva.
1 - O acórdão recorrido analisou a matéria debatida em toda a sua extensão,
não havendo obscuridade ou contradição que devessem ser supridas pela via
dos declaratórios. Inexistência de infração aos arts. 458, II e 535, I, do Código de
Processo Civil.
2 - O pagamento das despesas processuais pela parte é a regra geral que
impera no Processo Civil Brasileiro (art. 19), sendo a justiça gratuita exceção que
somente se aplica aos casos taxativamente ressalvados.
3 - A habilitação retardatária de crédito na falência é procedimento autônomo,
que movimenta extraordinariamente a máquina judiciária, razão pela qual se
justifi ca a cobrança de custas.
4 - Parecer pelo não conhecimento do recurso especial. (fl . 269)
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Raul Araújo (Relator): De início, não procedem as
alegações do recorrente de que o v. aresto recorrido seria obscuro e omisso, em
face de apresentar fundamentação insatisfatória para determinar o recolhimento
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 481
de custas em casos de declarações ou habilitações retardatárias de crédito em
concurso universal de credores.
Com efeito, todas as questões postas a debate foram efetivamente decididas,
com a devida fundamentação e clareza, nos limites necessários ao desate do
feito, ainda que contrariamente aos interesses do recorrente.
A jurisprudência desta Casa é pacífi ca ao proclamar que, se os fundamentos
adotados bastam para justifi car o concluído na decisão, o julgador não está
obrigado a rebater, um a um, os argumentos utilizados pela parte, nem se lhe é
exigido que se reporte de modo específi co a determinados preceitos legais.
Nesse contexto, impende ressaltar, em companhia da tradicional doutrina
e do maciço entendimento pretoriano, que o julgado apenas se apresenta como
omisso quando, sem analisar as questões colocadas sob apreciação judicial, ou
mesmo promovendo o necessário debate, deixa, entretanto, num caso ou no
outro, de ministrar a solução reclamada, o que não ocorre na espécie.
Outrossim, não se constata a alegada violação do art. 458, II, do CPC,
estando mantida a pertinência entre a fundamentação adotada e a conclusão
jurídica alcançada no acórdão recorrido, sendo possível inferir que o Tribunal
local apreciou a lide, discutindo e dirimindo as questões fáticas e jurídicas que
lhes foram submetidas, atendendo satisfatoriamente ao princípio da motivação
das decisões judiciais e ao princípio da correlação entre pedido, causa de pedir e
decisão judicial, razão pela qual a insurgência, no ponto, não prospera.
Quanto ao art. 208 da antiga Lei de Falências, que estabelecia que os
processos de falência e de concordata preventiva não deverim parar por falta de
preparo, não serviu o dispositivo de fundamento à conclusão adotada pela Corte
local, mesmo porque não houve discussão acerca da paralisação do processo
de falência. Não tem, assim, o mencionado artigo o alcance pretendido pelo
recorrente, já que seu pedido de habilitação retardatária de crédito constitui
incidente processado em apenso ao processo de falência.
Quanto ao mérito, sustenta o Banco do Brasil que não há comando legal
que exija o recolhimento de custas nos casos de falência e, por se tratar de
habilitação retardatária de crédito, seria desnecessário o recolhimento imediato
das custas iniciais “vez que poderia onerar ainda mais a massa falida” (fl . 205).
Os dispositivos legais que disciplinavam a habilitação de créditos na
anterior Lei de Falências eram os seguintes:
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
482
Art. 82. Dentro do prazo marcado pelo juiz, os credores comerciais e civis do
falido e, em se tratando de sociedade, os particulares dos sócios solidariamente
responsáveis, são obrigados a apresentar, em cartório, declarações por escrito,
em duas vias, com a fi rma reconhecida na primeira, que mencionem as suas
residências ou as dos seus representantes ou procuradores no lugar da falência,
a importância exata do crédito, a sua origem, a classifi cação que, por direito,
lhes cabe, as garantias que lhes tiverem sido dadas, e as respectivas datas, e
que especifi que, minuciosamente, os bens e títulos do falido em seu poder, os
pagamentos recebidos por conta e o saldo defi nitivo na data da declaração da
falência, observando-se o disposto no art. 25.
§ 1º À primeira via da declaração, o credor juntará o título ou títulos do crédito,
em original, ou quaisquer documentos. Se os títulos comprobatórios do crédito
estiverem juntos a outro processo, poderão ser substituídos por certidões de
inteiro teor, extraídas dos respectivos autos.
Art. 98. O credor que se não habilitar no prazo determinado pelo juiz, pode
declarar o seu crédito por petição em que atenderá às exigências do artigo 82,
instruindo-a com os documentos referidos no parágrafo 1º do mesmo artigo.
§ 1º O juiz determinará a intimação pessoal do falido e do síndico, os quais,
com observância do disposto no art. 84 e no prazo de três dias para cada um,
se manifestarão sobre o pedido, em seguida ao que o escrivão fará publicar
aviso para que os interessados apresentem, dentro do prazo de dez dias, as
impugnações que entenderem.
§ 2º Decorrido o prazo para impugnação dos interessados, o escrivão fará vista
dos autos ao representante do Ministério Público, que, no prazo de três dias, dará
o seu parecer.
§ 3º Com o parecer do representante do Ministério Público, os autos serão
conclusos ao juiz para os fi ns previstos no artigo 92, cabendo, da sentença que
julgar o crédito, recurso de apelação, que não terá efeito suspensivo. (Redação
dada pela Lei n. 6.014, de 27.12.1973).
§ 4º Os credores retardatários não têm direitos aos rateios anteriormente
distribuídos.
Ocorre que, embora os dispositivos acima elencados não fi zessem menção
expressa ao recolhimento de custas processuais, não se pode olvidar que o
art. 23 do mesmo decreto-lei estabelecia que, em algumas situações, haveria a
necessidade de recolhimento de custas judiciais:
Art. 23. Ao juízo da falência devem concorrer todos os credores do devedor
comum, comerciais ou civis, alegando e provando os seus direitos.
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 483
Parágrafo único. Não podem ser reclamados na falência:
I - as obrigações a título gratuito e as prestações alimentícias;
II - as despesas que os credores individualmente fizerem para tomar parte na
falência, salvo custas judiciais em litígio com a massa;
III - as penas pecuniárias por infração das leis penais e administrativas.
Ademais, como acertadamente ressaltado no d. parecer ministerial, da lavra
do il. Subprocurador, Dr. Henrique Fagundes, às fl s. 271-274:
Nesse contexto, observa-se ser a habilitação tardia do crédito na falência não
apenas um incidente no processo, mas sim um procedimento autônomo, que
se inicia por petição, seguida da intimação pessoal do falido e do síndico, além
de aviso destinado a terceiros eventualmente interessados, para a apresentação
de impugnações, abrindo-se novamente vista ao representante do Ministério
Público para apresentar parecer, vindo a ser proferida, então, somente após todo
esse iter, outra decisão pelo juízo, tudo nos moldes descritos no artigo 98 de
parágrafos, da Lei de Falências.
Percebe-se, pois, que ante a inércia do credor, que perdera o prazo inicial
conferido para a declaração de seu crédito, toda máquina judiciária é novamente
movimentada para a análise e o processamento da habilitação intempestiva.
Esse, de resto, é o entendimento pontifi cado por Pontes de Miranda in Tratado
de Direito Privado, ed. Borsoi, 1960, Tomo 29, p. 207:
Os credores retardatários são credores que foram convidados e não
compareceram. Em vez de as suas declarações de crédito serem simples
comunicações de conhecimento que se entregam à periferia da relação
jurídica processual falencial, são elementos da postulação, são petições e
têm de satisfazer as exigências dos arts. 158/160 do CPC, além do que se diz
no art. 82 e § 1º do Decreto Lei n. 4.661.
Por outro lado, a título comparativo, enquanto nas habilitações de crédito,
formuladas no prazo do edital de convocação de credores, impera a isenção de
custas, em razão de se tratar, então, de mero incidente processual, regido pelo
princípio da informalidade, em obséquio ao qual se prestigiam, de ordinário,
atos independentemente de intimações, valendo notar, em arremate, que, aos
credores, sequer se exige a representação por advogado, conforme se observa
do procedimento enumerado pelos artigos 82 a 86 do DL n. 7.661/1945, nas
habilitações retardatárias o regime é diverso, face as razões que acabam de ser
expendidas. A prestação jurisdicional oferecida ao negligente não pode ser a
mesma posta à disposição do credor atento e expedito.
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
484
Confi rmando esse entendimento, a nova Lei de Falências e Recuperação
de Empresas (Lei n. 11.101/2005), em seu art. 10 expressamente prevê o
seguinte:
Art. 10. Não observado o prazo estipulado no art. 7º, § 1º, desta Lei, as
habilitações de crédito serão recebidas como retardatárias.
§ 1º Na recuperação judicial, os titulares de créditos retardatários, excetuados
os titulares de créditos derivados da relação de trabalho, não terão direito a voto
nas deliberações da assembléia-geral de credores.
§ 2º Aplica-se o disposto no § 1º deste artigo ao processo de falência, salvo se,
na data da realização da assembléia-geral, já houver sido homologado o quadro-
geral de credores contendo o crédito retardatário.
§ 3º Na falência, os créditos retardatários perderão o direito a rateios
eventualmente realizados e ficarão sujeitos ao pagamento de custas, não se
computando os acessórios compreendidos entre o término do prazo e a data do
pedido de habilitação.
§ 4º Na hipótese prevista no § 3º deste artigo, o credor poderá requerer a
reserva de valor para satisfação de seu crédito.
§ 5º As habilitações de crédito retardatárias, se apresentadas antes da
homologação do quadro-geral de credores, serão recebidas como impugnação e
processadas na forma dos arts. 13 a 15 desta Lei.
§ 6º Após a homologação do quadro-geral de credores, aqueles que não
habilitaram seu crédito poderão, observado, no que couber, o procedimento
ordinário previsto no Código de Processo Civil, requerer ao juízo da falência ou
da recuperação judicial a retifi cação do quadro-geral para inclusão do respectivo
crédito.
Comentando o dispositivo acima, Paulo F. C. Salles de Toledo afi rma:
No mesmo dispositivo lê-se, ainda, que os credores retardatários, também só
na falência, “fi carão sujeitos ao pagamento de custas”, o que faz todo o sentido,
uma vez que eles é que terão dado causa às despesas com a efetivação dos atos
processuais da habilitação (Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e
Falência, ed. Saraiva, 2ª ed., p. 34).
Pelo exposto, não tendo ocorrido violação aos mencionados dispositivos
legais apontados no recurso especial, nego-lhe provimento.
É como voto.
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 485
RECURSO ESPECIAL N. 620.610-DF (2003/0230194-7)
Relator: Ministro Raul Araújo
Recorrente: Paulo César Gontijo
Advogado: Paulo César Gontijo (em causa própria) e outros
Recorrido: Lygia de Souza e Oliveira Lima e outro
Advogado: Cassiano Pereira Viana e outro
Recorrido: Marcos de Souza Dias e outro
Recorrido: João Carlos Sette Rocha e outro
Advogado: Lincoln de Oliveira e outro
Recorrido: Marina da Costa Carvalho
Advogado: José Eugênio Moraes Latorre
Recorrido: Nivalda Cossich Furtado
Advogados: Rodolfo José Marques
Vinicius de Figueiredo Teixeira e outro(s)
EMENTA
Recurso especial. Hipoteca judicial de gleba de terras. Posterior
procedência de ação de usucapião de parte das terras hipotecadas.
Participação do credor hipotecário na ação de usucapião como
assistente do réu. Ausência de cerceamento de defesa. Prevalência da
usucapião. Efeitos ex tunc da sentença declaratória. Cancelamento
parcial da hipoteca judicial. Recurso desprovido.
1 - Assegurada ao primitivo credor hipotecário participação na
posterior ação de usucapião, não se pode ter como ilegal a decisão
que reconhece ser a usucapião modo originário de aquisição da
propriedade e, portanto, prevalente sobre os direitos reais de garantia
que anteriormente gravavam a coisa. Precedentes.
2 - Recurso especial desprovido.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide
a Quarta Turma, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
486
termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Maria Isabel Gallotti,
Antonio Carlos Ferreira, Marco Buzzi e Luis Felipe Salomão votaram com o Sr.
Ministro Relator.
Brasília (DF), 3 de setembro de 2013 (data do julgamento).
Ministro Raul Araújo, Relator
DJe 19.2.2014
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Raul Araújo: Em 1987, houve sentença de procedência
de ação sumaríssima de cobrança de honorários advocatícios que Paulo César
Gontijo moveu contra Lygia de Souza e outros. Em decorrência do comando
sentencial condenatório de prestação em dinheiro, transitado em julgado,
procedeu-se ao registro imobiliário de hipoteca judicial (CPC, art. 466) de gleba
de terras da Fazenda Paranoazinho, de propriedade dos réus (fl . 70), seguindo-se
execução por liquidação de sentença.
Nesse ínterim, processou-se ação de usucapião ajuizada por João Carlos
Sette Rocha em desfavor de José Cândido Souza, posteriormente falecido (de
quem Lygia de Souza e outros são herdeiros), tendo por objeto justamente parte
daquelas terras objeto da mencionada hipoteca judicial. Saliente-se que o credor
hipotecário não foi citado para a ação de usucapião, porém, como se constata da
leitura da sentença da ação de usucapião (fl . 74), Paulo César Gontijo ingressou
no feito e ali atuou na qualidade de assistente do réu, sendo seu direito referido
e considerado na sentença que julgou a usucapião.
Em 1997, a ação de usucapião foi julgada procedente (fl s. 72-90).
Com isso, o autor da usucapião pleiteou, nos autos daquela referida ação
de cobrança de honorários, agora já na fase de liquidação, o cancelamento da
hipoteca judicial sobre as áreas usucapidas, o que foi deferido pelo Juízo de
Direito da Vara Cível de Brazlândia-DF, com base nas seguintes razões, verbis:
Na hipótese dos autos, considerando o pedido transcrito às fl s. 1.898-1.899,
ocorreu o reconhecimento judicial de prescrição aquisitiva transferindo aos
requerentes (aqui, terceiros interessados) parte da propriedade que, neste
processo, servia de garantia real para o pagamento da dívida ora em liquidação
contra os réus.
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 487
Atento a isso e às considerações jurídicas acima esposadas quanto à natureza
originária da aquisição ad usucapione, não há como ressalvar integralmente a
hipoteca judicial deferida nos autos, sem que se exclua do gravame as novas
propriedades e domínios declarados judicialmente em sentença declaratória
de usucapião. A hipoteca constituída para garantia de pagamento de dívida do
antigo proprietário não alcança nem ultrapassa a via da prescrição aquisitiva. (fl s.
94-96)
Contra tal decisão Paulo César Gontijo, credor da hipoteca judicial excluída,
interpôs agravo de instrumento, que, entretanto, foi desprovido pela 3ª Turma
Cível do eg. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, em aresto
assim ementado:
Agravo de instrumento. Hipoteca judicial. Exclusão. Prescrição aquisitiva. Ações
de usucapião trânsitas em julgado. Terras usucapidas. Pretendido cancelamento
da hipoteca judicial. Forma de aquisição originária. Recurso improvido. Unânime.
O reconhecimento da posse ad usucapionem confere ao seu titular os direitos
inerentes ao domínio, dentre os quais o de perseguir a integralidade de sua
propriedade sem eivas que possam maculá-la como a hipoteca judicial. O
usucapião é meio originário de se adquirir a propriedade, pois surge quando
a posse é mansa, pacífi ca e ostentada por sujeito que aparente a condição de
dominus do bem. (fl . 155)
Interpondo embargos de declaração, o credor hipotecário requereu
pronunciamento acerca dos seguintes dispositivos legais: a) art. 463 do CPC, por
ser incabível a modifi cação da sentença na ação sumaríssima, após seu trânsito
em julgado; b) arts. 56 a 80 do CPC, que tratam das formas de intervenção
de terceiros; c) art. 251 da Lei n. 6.015/1973, acerca das hipóteses em que a
hipoteca pode ser cancelada; d) art. 472 do CPC, sobre a sentença na ação
de usucapião só operar efeitos entre as partes (fl s. 176-182). Os embargos de
declaração foram rejeitados.
Ainda inconformado, o credor hipotecário interpôs este recurso especial,
com fundamento nas alíneas a e c do permissivo constitucional. Alega violação
aos arts. 128, 131, 458, II, 460, 515, 516 e 535, II do CPC. Afi rma, em síntese,
que o Tribunal de origem permaneceu omisso quanto à análise dos dispositivos
legais ditos por violados e respectivas fundamentações. Neste contexto, requer,
preliminarmente, a anulação do acórdão proferido pelo Tribunal local em
decorrência da falta de fundamentação e análise de todas as questões levantadas
nas razões recursais.
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
488
Ademais, sustenta afronta aos arts. 56 a 80 e 463 do CPC, aduzindo que:
a) “A intervenção de terceiros há de se fazer mediante comprovação de seu
legítimo interesse, segundo o processo previsto nos arts. 56 a 80 do CPC, e só
após sua admissão, mediante decisão do Juiz da causa, poderá peticionar” (fl .
211); b) “É inadmissível a intervenção de terceiros após o trânsito em julgado da
sentença” (fl . 211). Afi rma, ainda, que a jurisprudência já se pacifi cou no sentido
de não admitir o oferecimento de oposição após a sentença.
Quanto ao mérito, aponta violação aos arts. 677, 756, 809 a 851 do Código
Civil de 1916, arts. 46, 47, 466, 472, 615, II, 619, 698 e 1.047, II do CPC e
art. 251 da Lei n. 6.015/1973. Aduz, que: a) “o ônus hipotecário judicial não
se equipara à hipoteca consensual para efeitos da aquisição por usucapião” (fl .
187); b) “O art. 815 do CC diz que ao adquirente do imóvel hipotecado cabe
igualmente o direito de remi-lo, vale dizer, o adquirente não fi ca imune do ônus
que pesava sobre o imóvel” (fl . 213); c) “se o imóvel usucapido estava gravado
com hipoteca, sua aquisição fi cou onerada com o mesmo ônus” (fl . 214); d) não
existe no ordenamento jurídico pátrio legislação que determine que a aquisição
originária afaste a garantia contida no art. 466 do CPC; e) na ação de usucapião
deve ser formado litisconsórcio necessário com citação de todos os indicados no
art. 942 do CPC.
Aduz, ainda, violação aos arts. 5º, II, XXXV, LIV e LV, e 93, IX, da
Constituição Federal e aos respectivos princípios.
Sem contrarrazões, o recurso foi admitido (fl s. 597-599) e encaminhado a
esta Corte.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Raul Araújo (Relator): De início, no tocante à alegada
ofensa aos artigos 5º, II, XXXV, LIV e LV, e 93, IX, da Constituição Federal
e aos princípios da legalidade, da inafastabilidade da tutela jurisdicional e do
devido processo legal e seus consectários do contraditório, da ampla defesa e
da motivação, observa-se não ser cabível a análise de contrariedade direta a
dispositivos constitucionais, nesta via recursal, o que implicaria em usurpação
de competência constitucionalmente atribuída ao eg. Supremo Tribunal Federal
(CF, art. 102).
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 489
Quanto à violação à norma do art. 535, II, do CPC, as razões
recursais não procedem, na medida em que a eg. Corte de origem dirimiu,
fundamentadamente, as questões que lhe foram submetidas. De fato, inexiste
qualquer omissão no aresto recorrido, porquanto o Tribunal local, malgrado
não ter acolhido os argumentos suscitados pelo ora recorrente, manifestou-se
expressamente acerca do tema necessário à integral solução da lide.
Com efeito, ao afi rmar o acórdão recorrido que “o reconhecimento da posse
ad usucapionem confere ao seu titular os direitos inerentes ao domínio, dentre os
quais o de perseguir a integralidade de sua propriedade sem eivas que possam
maculá-la como a hipoteca judicial”, adotou o julgado o fundamento, sufi ciente
à solução da questão, de que a hipoteca judicial sucumbe à prescrição aquisitiva.
Esse fundamento mostra-se suficiente inclusive para sustentar a
legitimidade de João Carlos Sette Rocha, vencedor da ação de usucapião, para
postular a exclusão da hipoteca nos autos da ação de cobrança de honorários.
Confi ra-se:
Sobre a falta de legitimidade dos agravados para postularem a exclusão da
hipoteca judicial nos autos da ação de cobrança de honorários advocatícios, insta
vincar que o reconhecimento da posse ad usucapionem confere ao seu titular
os direito inerentes ao domínio, dentre os quais o de perseguir a integralidade
de sua propriedade sem eivas que possam maculá-la, tal qual a hipoteca em
comento. (fl . 159)
Impende ressaltar que “se os fundamentos do acórdão recorrido não se
mostram suficientes ou corretos na opinião do recorrente, não quer dizer
que eles não existam. Não se pode confundir ausência de motivação com
fundamentação contrária aos interesses da parte” (AgRg no Ag n. 56.745-SP,
Relator o eminente Ministro Cesar Asfor Rocha, DJ de 12.12.1994). Nesse
sentido, confi ram-se os seguintes julgados: REsp n. 209.345-SC, Relator o
eminente Ministro João Otávio de Noronha, DJ de 16.5.2005; REsp n. 685.168-
RS, Relator o eminente Ministro José Delgado, DJ de 2.5.2005.
Ademais, conforme a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o
magistrado não está obrigado a se pronunciar sobre todos os pontos abordados
pelas partes, mormente quando já tiver decidido a controvérsia sob outros
fundamentos (EDcl no REsp n. 202.056-SP, 3ª Turma, Rel. Min. Castro Filho,
DJ de 21.10.2001).
Outrossim, não se constata a alegada violação do art. 458, II, do CPC,
estando mantida a pertinência entre a fundamentação adotada e a conclusão
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
490
jurídica alcançada no acórdão recorrido, sendo possível inferir que o Tribunal
local apreciou a lide, discutindo e dirimindo as questões fáticas e jurídicas que
lhes foram submetidas, atendendo satisfatoriamente ao princípio da motivação
das decisões judiciais e ao princípio da correlação entre pedido, causa de pedir e
decisão judicial, razão pela qual a insurgência, no ponto, não prospera.
Quanto ao mérito, ressalte-se que os únicos dispositivos legais efetivamente
prequestionados foram os que se referem à tese defendida no recurso especial,
de prevalência do primitivo ônus hipotecário sobre o imóvel adquirido através
da procedência da ação de usucapião. Quanto aos demais, ressentem-se do
requisito do prequestionamento, o que atrai a incidência da Súmula n. 211-STJ,
segundo a qual “é inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito
da oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo Tribunal a quo.”
Saliente-se que não configura contradição afirmar-se a falta de
prequestionamento e, ao mesmo tempo, afastar-se a afronta ao artigo 535 do
Código de Processo Civil, uma vez que é perfeitamente possível o julgado se
encontrar devidamente fundamentado sem, no entanto, ter decidido a causa à
luz dos preceitos jurídicos colacionados pelo recorrente.
Merece apreciação a tese defendida no recurso especial, de prevalência do
primitivo ônus hipotecário sobre o imóvel adquirido através da procedência da
ação de usucapião.
Ocorre que, como se viu do relatório supra, o ora recorrente Paulo César
Contijo apresentou contestação naquela ação de usucapião, tendo sua participação
sido discutida inclusive em agravo de instrumento perante o Tribunal de Justiça
(v. fl . 80 e-STJ). Assim, embora não tenha sido citado, ingressou no feito e ali foi
admitido e atuou na qualidade de assistente do réu, tendo seu direito referido e
considerado na sentença que julgou procedente a usucapião.
Então, não pode agora alegar cerceamento de defesa, pois as questões
atinentes aos seus direitos de ver prevalecer a hipoteca judicial sobre a decretação
da usucapião fi caram alcançadas pela decisão de procedência da usucapião, ação
da qual participou.
No mais, uma vez assegurada ao ora recorrente participação na ação de
usucapião, não se pode ter como ilegal a decisão que reconhece ser a usucapião
modo originário de aquisição da propriedade e, portanto, prevalente sobre os
direitos reais de garantia que anteriormente gravavam a coisa. Esta eg. Corte,
inclusive, já se pronunciou no sentido de considerar que “com a declaração de
aquisição de domínio por usucapião, deve desaparecer o gravame real hipotecário
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 491
constituído pelo antigo proprietário, antes ou depois do início da posse ad
usucapionem, seja porque a sentença apenas declara a usucapião com efeitos ex
tunc, seja porque a usucapião é forma originária de aquisição de propriedade, não
decorrente da antiga e não guardando com ela relação de continuidade.” (REsp
n. 941.464-SC, Relator em. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe de 29.6.2012).
Confi ram-se, ainda, os seguintes precedentes:
Agravo regimental em recurso especial. Usucapião. Modo originário de
aquisição da propriedade. Hipoteca. Não subsistência. Violação do art. 535 do
CPC. Alegação genérica. Súmula n. 284-STF. Prequestionamento. Ausência.
Súmulas n. 211-STJ e n. 282-STF.
1. O recurso especial que indica violação do artigo 535 do Código de Processo
Civil, mas traz somente alegação genérica de negativa de prestação jurisdicional,
é defi ciente em sua fundamentação, o que atrai o óbice da Súmula n. 284 do
Supremo Tribunal Federal.
2. Ausente o prequestionamento de dispositivos apontados como violados no
recurso especial, sequer de modo implícito, incide o disposto nas Súmulas n. 211-
STJ e n. 282-STF.
3. A usucapião é forma de aquisição originária da propriedade, de modo que não
permanecem os ônus que gravavam o imóvel antes da sua declaração.
4. Agravo regimental não provido.
(AgRg no REsp n. 647.240-DF, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira
Turma, julgado em 7.2.2013, DJe 18.2.2013).
Agravo regimental. Agravo de instrumento. Ação de usucapião modo
originário de aquisição de propriedade. Extinção da hipoteca sobre o bem
usucapido. Súmula n. 83 desta Corte. Reexame do quadro probatório. Súmula n. 7
do STJ. Divergência não demonstrada. Decisão agravada mantida. Improvimento.
I - Consumada a prescrição aquisitiva, a titularidade do imóvel é concebida
ao possuidor desde o início de sua posse, presentes os efeitos ex tunc da sentença
declaratória, não havendo de prevalecer contra ele eventuais ônus constituídos pelo
anterior proprietário.
II - A Agravante não trouxe qualquer argumento capaz de modificar a
conclusão alvitrada, a qual se mantém por seus próprios fundamentos.
Incidência da Súmula n. 7 desta Corte.
III - Agravo Regimental improvido.
(AgRg no Ag n. 1.319.516-MG, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma,
julgado em 28.9.2010, DJe 13.10.2010).
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
492
Diante do exposto, nego provimento ao recurso especial.
É como voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.045.258-MA (2008/0071046-8)
Relator: Ministro Marco Buzzi
Recorrente: Antonio Carlos Bringel Machado e outro
Advogado: Carlos Seabra de Carvalho Coelho e outro(s)
Recorrente: Rosa Maria Melo Vasconcelos e outro
Advogado: Edgard Carvalho Sales Neto
Recorrido: Braga Diniz Arquitetura Engenharia Indústria e Comércio
Ltda.
Advogado: Gleyson Gadelha Melo e outro(s)
Interessado: Klima Comércio e Representações Ltda.
Advogado: Luiz Augusto Calmon Nogueira da Gama e outro(s)
EMENTA
Recursos especiais. Ação ordinária de nulidade de registros
imobiliários. Imóvel penhorado e arrematado em execução fi nda,
sem o registro dos respectivos atos. Posterior penhora e arrematação
do mesmo bem em outro processo executivo, com as correlatas
transcrições no assentamento imobiliário. Transmissão a terceiros de
boa-fé. Sentença de procedência mantida pelo Tribunal de origem no
sentido de haver fraude na segunda arrematação. Motivos elencados
pelas instâncias ordinárias inidôneos. Fraude afastada. Prevalência da
segunda penhora e arrematação por estarem devidamente registradas
no cartório imobiliário. Transmissão do bem a terceiros de boa-fé.
Manutenção do negócio jurídico. Recursos especiais parcialmente
providos.
Hipótese em que a ação ordinária é promovida pelo primeiro
arrematante, a fi m de reconhecer a nulidade da segunda arrematação
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 493
e, por conseguinte, a invalidade da transmissão da propriedade a
terceiros.
Sentença de procedência confi rmada pelo Tribunal de origem,
ao fundamento de que a segunda arrematação foi realizada em fraude,
a considerar a discrepância das avaliações e valores de arrematação,
bem como pelo fato de o bem não mais pertencer ao devedor comum,
quando da segunda alienação judicial.
1. Quanto à alegada negativa de prestação jurisdicional, nos casos
em que a arguição é genérica, não se conhece do recurso especial pela
alegada violação do artigo 535 do Código de Processo Civil. Incide, na
hipótese, o óbice da Súmula n. 284-STF.
2. Os motivos elencados pelas instâncias ordinárias para sustentar
a ocorrência de fraude são insubsistentes, razão pela qual esta deve
ser afastada. Como é cediço, a boa-fé se presume, logo a má-fé deve
ser devidamente evidenciada nos autos. Da análise da sentença e do
acórdão impugnado não se encontram circunstâncias que possam
assinalar a má-fé da segunda arrematante ou dos ora recorrentes,
todos co-réus na presente ação.
2.1. Não se pode imputar como irregular a segunda arrematação,
porque o descaso da primeira arrematante em não registrar a penhora,
bem como a sua carta de arrematação possibilitou o processamento de
posterior procedimento executivo sobre o mesmo bem, no qual foram
observadas todas as cautelas registrais.
2.2. Sendo assim, é a segunda arrematante a legítima proprietária
do bem, pois ela procedeu ao registro de sua carta de arrematação
(expedida no dia 5.11.1998), na data de 15.12.1998, enquanto a
primeira arrematante, possuindo semelhante documento desde o dia
30.1.1996, não efetuou o devido registro.
2.3. Portanto, os recorrentes, terceiros adquirentes de boa-fé,
confi antes no registro imobiliário, não podem ser prejudicados por
nulidade, ainda que eventual, ocorrida no anterior título aquisitivo de
propriedade, mormente, quando a cadeia dominial se mostra hígida.
3. Da análise dos autos, forçosa é a conclusão de inexistir fraude,
porquanto os motivos elencados pela Corte precedente para justifi car
a sua ocorrência são inidôneos. Muito pelo contrário, ressai evidente
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
494
que a segunda arrematante não detinha conhecimento sobre a primeira
penhora e a arrematação promovida pela autora da ação, ora recorrida,
porque tais atos não foram averbados na matrícula do imóvel.
4. Caberia à primeira arrematante ter no mínimo inscrito a
penhora no registro imobiliário, a fi m de que terceiros tomassem
ciência da existência do ato constritivo judicial. Ao se descurar de
sua obrigação, a primeira arrematante, em verdade, dispensou a
correspondente proteção legal, dando azo a que outro, legitimamente,
penhorasse e arrematasse o aludido bem.
5. Penhora. Direito de prelação. Inaplicabilidade, ante
a inexistência de concurso especial de credores. Na hipótese em
análise, não se divisa a concomitância de execuções ao tempo da
primeira penhora; mas, sim, a realização da segunda penhora após o
pagamento do preço e do término da primeira ação executiva, razão
pela qual não há como se invocar o direito de prelação para solucionar
a controvérsia dos autos, sobretudo, por não constituir a penhora, de
per si, direito de propriedade sobre a coisa penhorada, mas, apenas,
preferência no recebimento do produto de sua expropriação, quando
verifi cada a existência de execuções concomitantes sobre o mesmo
bem, circunstância ausente na espécie.
6. A arrematação, como dito no art. 694, caput, do Código de
Processo Civil, após a assinatura do auto, será considerada “perfeita,
acabada e irretratável”, contudo a efi cácia destinada pelo referido
dispositivo não pode se sobrepor a lógica posta pelo sistema registral
brasileiro. Ou seja, pela matrícula do bem é que se toma conhecimento
de eventuais gravames incidentes sobre ele e pelo registro do título é
que se opera a transmissão da propriedade. Dar efi cácia erga omnes
a primeira arrematação não registrada desprestígia a confi ança no
registro e a boa-fé daqueles que nele confi am.
6.1. A estabilidade outorgada ao auto de arrematação pela fórmula
“perfeita, acabada e irretratável” não é infensa ao tratamento ordinário
dado aos negócios jurídicos, pois “aperfeiçoada a arrematação, com
a lavratura do auto, resta materializada causa de transferência da
propriedade com todos os direitos que lhe são inerentes, ressalvados
aqueles que dependem, por lei, de forma especial para aquisição.” (REsp
n. 833.036-SP, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em
18.11.2010, DJe 28.3.2011)
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 495
7. O registro imobiliário é o meio adequado para a transmissão da
propriedade no sistema jurídico brasileiro. Não obstante a realização
de negócio jurídico subjacente, somente por meio do registro se
alcança a titularidade da propriedade. Assim o é porque o sistema
registral constitui mecanismo de proteção da fé-pública e garantia da
estabilidade do tráfi co jurídico negocial. Precedentes.
7.1. A carta de arrematação é título hábil a promover a alteração
da titularidade do registro imobiliário, nos termos dos arts. 532, III, do
Código Civil de 1916, 167, I, n. 26, da Lei n. 6.015/1973.
7.2. Dormientibus non sucurrit jus. O comportamento descuidado
da primeira arrematante não pode ser chancelado pelo Poder Judiciário,
pois existindo duas cartas de arrematação sobre o mesmo imóvel, há
de prevalecer aquela em que o exequente foi diligente na busca de seu
direito, em detrimento do comportamento desatendo do outro credor.
7.3. Na hipótese em foco, a efetividade da primeira arrematação
não é afastada em razão de equivoco judiciário ou ato de terceiro, mas
por incúria da própria arrematante que deixou de efetuar o registro da
penhora, bem como da carta de arrematação no cartório imobiliário.
Assim, a prevalência da segunda arrematação não depõe contra a
higidez do sistema, o qual se mostra efi caz na proteção dos direitos
dos credores, desde que sejam observados os regramentos próprios.
8. Ademais, não se pode esquecer que os ora recorrentes, co-
réus na ação ordinária, adquiriram o imóvel da segunda arrematante
confi antes no registro imobiliário, logo são terceiros de boa-fé, pois,
como já dito, a boa-fé se presume e não há nos autos elemento a
evidenciar a má-fé destes.
9. Recursos especiais providos em parte, para julgar improcedente
o pedido contido na exordial, invertendo-se os ônus sucumbenciais.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, dar parcial provimento aos recursos especiais, nos termos do voto
do Sr. Ministro Relator.
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
496
Os Srs. Ministros Raul Araújo (Presidente), Maria Isabel Gallotti e
Antonio Carlos Ferreira votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justifi cadamente, o Sr. Ministro Luis Felipe Salomão.
Brasília (DF), 26 de novembro de 2013 (data do julgamento).
Ministro Raul Araújo, Presidente
Ministro Marco Buzzi, Relator
DJe 10.12.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Marco Buzzi: Trata-se de dois recursos especiais, o
primeiro, interposto por Antonio Carlos Bringel Machado e outro, e o segundo, por
Rosa Maria Melo Vasconcelos e outro, ambos fundamentados no art. 105, inciso
III, alíneas a e c, da Constituição Federal, desafi ando acórdão proferido pelo
Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão.
Na origem, Braga Diniz Arquitetura, Engenharia, Indústria e Comércio
Ltda. promoveu ação ordinária contra Klima Comércio e Representações Ltda.,
Rosa Maria Melo Vasconcelos, José Helder Vasconcelos Filho, Antonio Carlos Bringel
Machado e Sebastião Porfírio da Silva, tendo por desiderato anular a arrematação
e, por conseguinte, todos os demais atos subsequentes a ela, ao fundamento de
que também arrematou o bem em litigio em hasta pública, inclusive em data
anterior ao procedimento expropriatório impugnado.
Narra na exordial que procedeu à execução de sentença contra Ozimar
Almeida Machado, sendo penhorado o imóvel da propriedade deste em 23.1.1992.
Frustrada a primeira praça, por ausência de interessados, o bem foi arrematado
por ela - autora da ação -, em segunda hasta, no dia 30.1.1996, sendo imitida
na posse do imóvel em 13.3.1996. Permanecendo lacradas as portas do bem, a
autora expõe ter sido surpreendida pela ocupação do imóvel por um grupo de
profi ssionais liberais, os quais alegam ser proprietários, em razão de contrato de
compra e venda celebrado com a empresa Klima Comércio e Representações Ltda.,
em 26.5.1999, que, por sua vez, sustenta ter adquirido a propriedade do bem em
arrematação datada de 5.11.1998, em sede de execução forçada proposta contra
Ozimar Almeida Machado.
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 497
Nesse passo, defende a nulidade da segunda arrematação, bem como dos
demais atos posteriores a ela, porquanto, ao tempo da segunda alienação judicial,
o bem já não mais pertencia a Ozimar Almeida Machado, mas, sim, à Braga
Diniz Arquitetura, Engenharia, Indústria e Comércio Ltda. - autora da ação.
A sentença de primeiro grau acolheu o pedido e declarou inválida a
segunda arrematação e, por conseguinte, a compra e venda realizada entre
os co-réus, ao fundamento de que o imóvel jamais poderia ter sido alienado
judicialmente pela segunda vez, já que era, na data da segunda arrematação, de
propriedade da autora da ação.
Irresignados, os réus apelaram para o Tribunal de Justiça do Estado do
Maranhão, que manteve a sentença, nos termos da seguinte ementa (fl s. 461-
462, e-STJ):
Processual Civil. Carência de ação. Inexistência. Presença das condições da
ação. Acolhimento por fundamento diverso. Julgamento extra petita. Inocorrência.
Bem arrematado por duas vezes. Inexistência de registro da primeira arrematação.
Boa-fé do primeiro arrematante. Fraude em relação a segunda arrematação.
Recursos não providos.
I - Não há carência de ação quando presentes todas as condições necessárias
ao desenvolvimento válido do processo.
II - Não há que se falar em julgamento extra petita quando o juiz, adstrito às
circunstâncias fáticas trazidas aos autos e ao pedido deduzido na inicial, aplica o
direito ‘com fundamentos diversos daqueles apresentados pelo autor.
III - Tendo o bem sido novamente arrematado em segunda execução, é de
se constatar a fraude, não sendo sufi ciente o fato de não ter havido registro da
primeira arrematação para descaracterizar sua legalidade, sobretudo diante da
evidente boa-fé do primeiro arrematante - circunstância dos autos.
IV - Recursos não providos.
Opostos aclaratórios (fl s. 473-485; 488-499, e-STJ), restaram rejeitados
(fl s. 502-511, e-STJ).
Daí os presentes recursos especiais.
Antonio Carlos Bringel Machado e outro, nas razões de seu apelo nobre,
apontam ofensa aos arts. 531, 532, II, do Código Civil de 1916, 458, II, 535, II,
659, § 4º do Estatuto Processual Civil, além de dissídio jurisprudencial.
Aduzem negativa de prestação jurisdicional.
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
498
Sustentam ter a recorrida inobservado o dever de registro da arrematação
no Cartório de Registro de Imóveis, razão pela qual a segunda arrematação
merece prevalecer.
Afi rmam inexistir fraude à execução, pois a empresa Klima Comércio e
Representações Ltda. não tinha conhecimento da anterior demanda promovida
pela recorrida contra o antigo proprietário do bem - Ozimar Almeida Machado.
Argumentam que, na data da segunda arrematação, o imóvel não era
registrado no nome da recorrida, mas, sim, do executado, logo não há se falar
em fraude por parte da empresa Klima Comércio Representações Ltda. - segunda
arrematante do bem.
Declaram ser adquirentes de boa-fé, razão pela qual devem ser declarados
como legítimos proprietários.
Apontam que o valor de aquisição do imóvel é regular, sendo a descrição
do imóvel no edital de praça igual a realizada na matrícula do bem datada de
27.1.1981, circunstância que revela o abandono do bem pela recorrida, após a
arrematação.
Rosa Maria Melo Vasconcelos e outro, além de dissenso pretoriano, alegam
violação dos arts. 531, 532, II, do Código Civil de 1916, 458, II, 535, II, 659, §
4º do Estatuto Processual Civil.
Agitam carência de manifestação judicial.
Mencionam que, nos autos, “jamais foi alegado que os Recorrentes e os
co-réus tinham, pelo menos, conhecimento da existência da demanda proposta
pela Recorrida, [com efeito] a matéria sequer foi objeto de prova. Ao contrário,
a própria exordial confessa que a penhora e a arrematação da Recorrida nunca
haviam sido levadas a registro na matrícula do imóvel, apesar de praticadas antes
da penhora e arrematação - devidamente registradas - por Klima Comércio e
[posterior] venda (também registrada) aos demais requeridos [ora recorrentes].”
(fl . 541, e-STJ)
Proclamam não ter conhecimento prévio da demanda instaurada entre
o proprietário original do imóvel - Ozimar Almeida Machado - e a recorrida,
circunstância que deveria ser provada por esta, mas não o foi.
Declaram que, “ao contrário do que [fora] dito no v. acórdão, não se
presta à comprovação da má-fé ou da ciência prévia dos adquirentes eventual
divergência entre as duas avaliações judiciais do mesmo bem, levadas a cabo em
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 499
processos distintos, que corriam perante Varas Cíveis diferentes, e ocorridos em
épocas diversas.” (fl . 544, e-STJ).
Sustentam equívoco na comparação dos editais, pois o “Edital de Praça
(datado de 21.10.1998), em que está contida a avaliação do imóvel (de 2.9.1998)
simplesmente transcreve a descrição datada de 21.7.1981, presente na averbação
n. 1 do imóvel, conforme se verifi ca da Certidão de fl s. 54. Ou seja, apesar de
ser posterior ao mandado de imissão (datado de 21.5.1997, fl . 33), o Edital
em questão descreve o estado do imóvel como ele era há 16 (dezesseis) anos
antes da própria imissão de posse. Basta confrontar do dois textos do Edital
e da Averbação: as palavras são as mesmas, a ordem da descrição materiais
encontradas idem. Até mesmo a expressão ‘todo acabamento com material de
primeira’ é comum ao textos.” (fl . 546, e-STJ)
Mencionam o comportamento desidioso da recorrida, haja vista o não
registro da penhora e da arrematação na matrícula do imóvel. Expressam,
assim, ter a empresa Klima agido de boa-fé, já que penhorou e registrou o bem,
procedendo aos competentes registros, sem ter conhecimento da lide travada
entre a recorrida e o proprietário original.
Contrarrazões às fls. 599-610; 611-622, e-STJ; e, após decisão de
admissibilidade do recurso especial, os autos ascenderam a esta egrégia Corte
de Justiça.
O Ministério Público Federal manifestou-se pelo não provimento do
inconformismo (fl s. 638-644, e-STJ).
É o breve relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Marco Buzzi (Relator): 1. Tendo em vista a identidade
de alegações entre os dois recursos especiais, passo a análise conjunta das teses
expostas em suas razões.
2. Inicialmente, quanto à alegada negativa de prestação jurisdicional,
nos casos em que a arguição é genérica, não se conhece do recurso especial
pela alegada violação do artigo 535 do Código de Processo Civil. Incide, na
hipótese, o óbice da Súmula n. 284-STF, assim redigida: “É inadmissível o recurso
extraordinário, quando a defi ciência na sua fundamentação não permitir a exata
compreensão da controvérsia”. Dentre os vários precedentes a respeito, destaca-
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
500
se: REsp n. 870.626-RS, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJ de
26.3.2007.
Na verdade os recorrentes limitaram-se a transcrever as razões dos
embargos de declaração, bem como os fundamentos do aresto que os apreciou.
Tal medida é insufi ciente para demonstrar a suposta violação ao art. 535 do
Código de Processo Civil, já que o recurso especial é meio impugnativo técnico,
onde as questões suscitadas devem ser expostas de forma clara e congruente,
requisito não atendido na espécie.
3. No mérito, busca-se afastar a existência de fraude e ver reconhecida a
validade da transferência imobiliária efetuada em favor dos recorrentes, em razão
de contrato de compra e venda celebrado com a segunda arrematante do imóvel,
alegando-se, para tanto, a inexistência de registro da primeira arrematação,
ao passo que a segunda arrematação sobre o mesmo bem foi devidamente
registrada no competente cartório de registro de imóveis.
Os motivos elencados pelas instâncias ordinárias para sustentar a ocorrência
de fraude são insubsistentes, razão pela qual esta deve ser afastada. Como é
cediço, a boa-fé se presume, logo a má-fé deve ser devidamente evidenciada
nos autos. Da análise da sentença e do acórdão impugnado não se encontram
circunstâncias que possam assinalar a má-fé da segunda arrematante ou dos ora
recorrentes, todos co-réus na presente ação.
Não se pode reputar como irregular a segunda arrematação, porque o
descaso da primeira arrematante, consubstanciado na inobservância de
formalidade indispensável para a efetividade do ato, ao não registrar a penhora,
bem como a sua carta de arrematação possibilitou o processamento de posterior
procedimento executivo sobre o mesmo bem, no qual fora observada todas as
cautelas registrais.
Sendo assim, não restando inquinada a validade do ato cometido pela
segunda arrematante, é ela a legítima proprietária do bem, pois ela procedeu
ao registro de sua carta de arrematação (expedida no dia 5.11.1998) na data
de 15.12.1998 (fl . 165, e-STJ), enquanto a primeira arrematante, possuindo
semelhante documento desde o dia 30.1.1996 (fl . 43, e-STJ), não efetuou o
devido registro, de sorte a validar o ato expropriatório e legitimar a titularidade
do bem arrematado.
O sistema registral brasileiro é baseado, por evidente, na literalidade
material dos atos, cuja higidez objetiva dessa forma constituir e tutelar as
práticas cometidas segundo as suas fórmulas, ciência, segurança, efi ciência,
higidez e efi cácia erga omnes.
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 501
Portanto, os recorrentes, terceiros adquirentes de boa-fé, confi antes no
registro imobiliário, não podem ser prejudicados por eventual nulidade ocorrida
no anterior título aquisitivo de propriedade, sobretudo, quando a cadeia dominial
se mostra hígida.
4. Primeiramente, mostra-se necessário delimitar certos aspectos da
controvérsia, para, então, identifi car o direito aplicável à hipótese em apreço.
Originariamente, Braga Diniz Arquitetura, Engenharia, Indústria e
Comércio Ltda. ajuizou ação executiva contra Ozimar Almeida Machado, que foi
distribuída à 4ª Vara Cível da Comarca de São Luís. Recaindo a penhora sobre
imóvel do devedor em 24.1.1992, após a realização da segunda praça, o bem
foi arrematado pela referida exequente no dia 29.1.1996 (fl s. 43-44, e-STJ) e
expedida a competente carta de arrematação em 30.1.1996. Assinale-se que a
aludida penhora e o mencionado auto de arrematação não foram registrados na
matrícula do imóvel pela exequente/arrematante.
Posteriormente (em 29.4.1997), Klima Comércio e Representações Ltda.
também promoveu execução contra Ozimar Almeida Machado, sendo distribuída
à 1ª Vara Cível da Comarca de São Luís. O mesmo imóvel, sobre o qual
recaiu os referidos atos executivos na ação promovida por Braga Diniz, restou,
nesta execução, penhorado em 3.6.1997 e arrematado pela exequente - Klima
Comércio e Representações Ltda. - no dia 5.11.1998. Anote-se ter a segunda
arrematante procedido ao registro de sua carta de arrematação no cartório de
registro de imóveis, ressaltando-se, ainda, que nos assentamentos registrais do
referido bem consta apenas a averbação da segunda penhora data de 18.8.1997
(fl s. 184-185, e-STJ).
Aponte-se, ainda, que o imóvel em litígio foi alienado por Klima Comércio
e Representações Ltda., segunda arrematante do bem, para Rosa Maria Melo
Vasconcelos, José Helder Vasconcelos Filho, Antonio Carlos Bringel Machado e
Sebastião Porfírio da Silva, co-réus na presente ação, mediante contrato de
compra e venda, que deu azo à lavratura de escritura pública de compra e venda,
a qual foi devidamente registrada no competente cartório de registro de imóveis,
constando, atualmente, no registro imobiliário os referidos compradores como
proprietários do bem (fl s. 184-185, e-STJ).
A par destas circunstâncias, o Tribunal de origem, chancelando a sentença
de primeiro grau, entendeu nula a segunda arrematação e, por conseguinte, a
alienação do bem aos co-réus, ora recorrentes, alegando a existência de fraude
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
502
por parte da segunda arrematante - Klima Comércio e Representações Ltda. -, bem
como a inexistência de propriedade a ser transmitida.
Todavia, afi guram-se insubsistentes os fundamentos adotados pela Corte
local para sustentar o seu convencimento.
5. Não se vislumbra a ocorrência de fraude pelo simples fato de o bem, no
segundo processo executivo, ter sido avaliado em valor menor (R$ 80.000,00) do
que aquele obtido na primeira avaliação (R$ 180.000,00), sendo certo que, entre
a expedição do primeiro laudo avaliativo, que lastreou a primeira arrematação, e
o segundo, que embasou a segunda arrematação, se passaram quase 3 (três) anos
(fl s. 101-105; 30-31, e-STJ).
Na verdade, a diferença entre os valores constantes nos laudos de avaliação
confeccionados em tempo e em processos distintos, por si só, não evidencia
a caracterização de fraude, que pressupõe a ciência, por parte do segundo
arrematante e dos posteriores adquirentes, de que o imóvel fora anteriormente
alienado a outrem, circunstância que refletiria, em tese, comportamento
deliberado a prejudicar o primeiro arrematante. De acordo com a moldura fática
delineada pelas instâncias ordinárias, não há, em absoluto, qualquer elemento
que aponte para essa conclusão.
Assim, o fundamento principal utilizado pelo Tribunal de origem,
consistente, segundo seu entendimento, na existência de substancial diferença
entre os valores pelos quais o bem foi, em duas oportunidades, arrematado, não
se afi gura, por si só, idôneo a provar a ocorrência de fraude.
Nessa linha intelectiva, a diferença entre os preços pagos na primeira (R$
114.741,00) e na segunda (R$ 65.000,00) execução, também, não é justifi cativa
sufi ciente para se reconhecer fraude, já que estes guardam correspondência com
os respectivos valores de avaliação (R$ 180.000,00 para a 1ª e R$ 80.000,00
para a 2ª), não se divisando, portanto, qualquer indicativo de ardil ou de engodo,
ou sequer a mera ocorrência de preço vil.
No ponto, não é demasiado anotar que ambas as avaliações foram efetuadas
por avaliador judicial, dos respectivos juízos, razão pela qual qualquer vício na
expedição do segundo laudo não pode ser imputada à segunda arrematante -
Klima Comércio e Representações Ltda. -, já que esta não interveio para a formação
do preço, sendo a conclusão sobre o valor do bem de exclusiva responsabilidade
do serventuário da justiça e, portanto, do próprio aparelho judicial. Desse modo,
ainda que houvesse erro sobre o preço do imóvel, tal circunstância não pode recair
sobre a segunda arrematante, sob pena de se transverter a responsabilidade do
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 503
autor do ato para terceiro não interveniente na cadeia causal. Não se olvide que o
valor da avaliação pode sofrer impugnação por qualquer das partes da execução,
entretanto no caso em apreço não houveram objeções, sequer do próprio juízo.
Ademais, não se pode conceber que a ocupação do imóvel pela segunda
arrematante e, posteriormente, pelos demais co-réus, ora recorrentes, tenha
se dado de forma clandestina, como indicado no aresto hostilizado, pois
houve carta de arrematação, expedida pelo Juízo de Direito da 1ª Vara Cível
da Comarca de São Luís, a justifi car o ingresso destes no imóvel, o qual se
encontrava lacrado, como confessado pela recorrida (fl . 8, e-STJ). Desta forma, a
suposta clandestinidade apontada pela instância ordinária, com fi m de justifi car
a ocorrência de fraude, mostra-se insubsistente, sendo tal fundamento inidôneo
para inquinar a segunda arrematação e o ingresso no imóvel que se dera sob o
pálio do Poder Judiciário.
Forçosa, portanto, é a conclusão de inexistir fraude, porquanto os motivos
elencados pela Corte originária para justifi car a sua ocorrência são inidôneos.
Muito pelo contrário, ressai evidente que a segunda arrematante - Klima
Comércio e Representações Ltda. não detinha conhecimento sobre a primeira
penhora e a arrematação promovida pela autora da ação, ora recorrida, - Braga
Diniz Arquitetura, Engenharia, Indústria e Comércio Ltda., sobretudo, por não
terem sido averbados tais atos na matrícula do imóvel.
Como é cediço, a boa-fé se presume, logo a má-fé deve ser devidamente
demonstrada nos autos. Da análise da sentença e do acórdão impugnado não se
denota circunstâncias que possam assinalar a má-fé da segunda arrematante ou
dos ora recorrentes, senão aquelas já rechaçadas por serem inidôneas a justifi car
a fraude apontada.
Efetivamente, não se identifi ca, seja por parte dos insurgentes, seja em relação
à recorrida, a existência de má-fé ou comportamento doloso destinado a prejudicar
a quem quer que seja. Ao contrário. Ambos os litigantes, cada qual em sua ação,
levaram a cabo os atos constritivos e de alienação. A primeira exequente, ao
fi nal, deixou de se acautelar quanto a terceiros, ao não efetuar o registro de sua
penhora e, posteriormente, de sua carta de arrematação. A segunda exequente,
por sua vez, sem ter conhecimento de anterior penhora e arrematação que
recaíra sobre o mesmo bem, efetuou os correspondentes registros, transferindo-o
a terceiros, também de boa-fé.
Assim, a solução da controvérsia perpassa pelo enfrentamento do direito
de prelação, da efi cácia das arrematações, do modo aquisitivo da propriedade de
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
504
bem imóvel e da proteção ao terceiro adquirente de boa-fé, tendo como norte
a segurança jurídica inerente ao sistema registral e própria das alienações feitas
sob o pálio do Poder Judiciário.
6. Se um bem chegou a ser arrematado é porque este, em momento anterior,
foi penhorado, pois, dentro do processo executivo, a penhora é antecedente
lógico da arrematação. A par disso, verifi ca-se que o exequente tem o dever de
providenciar a averbação da penhora no registro imobiliário, para que se opere a
presunção absoluta de conhecimento por parte da coletividade.
Veja-se, o parágrafo 4º do art. 659 do Código de Processo Civil:
§ 4º A penhora de bens imóveis realizar-se-á mediante auto ou termo de
penhora, cabendo ao exeqüente, sem prejuízo da imediata intimação
do executado (art. 652, § 4º), providenciar, para presunção absoluta de
conhecimento por terceiros, a respectiva averbação no ofício imobiliário,
mediante a apresentação de certidão de inteiro teor do ato, independentemente
de mandado judicial. (Redação dada pela Lei n. 11.382, de 2006).
Confi ra-se a redação do referido dispositivo ao tempo dos fatos:
§ 4o A penhora de bens imóveis realizar-se-á mediante auto ou termo de
penhora, e inscrição no respectivo registro. (Incluído pela Lei n. 8.953, de
13.12.1994).
Uma vez registrada a penhora, posterior alienação judicial do bem
promovida por outro credor que não seja o registrante não tem o condão de
elidir a penhora já inscrita, mas, sim, declarar inefi caz a arrematação em relação
ao direito do credor que primeiro penhorou o imóvel.
Vejam-se os seguintes precedentes deste Tribunal Superior:
Execução. Arrematação. Existência de penhora anterior, realizada em outro
processo e registrada anteriormente à penhora de que se originou a arrematação.
Cancelamento da penhora anterior, indeferimento, dada a inefi cácia relativamente
ao credor-penhorante, que não intimado para a hasta pública em que ocorreu a
arrematação. Recurso especial improvido.
1. - A averbação da penhora registrada com anterioridade não se cancela no
caso de arrematação cuja hasta pública tenha se realizado sem intimação do
anterior credor-penhorante;
2. - Ineficácia da arrematação relativamente ao credor-penhorante com
penhora anteriormente inscrita não intimado para a hasta pública em que
adquirida a propriedade pelo arrematante.
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 505
3. - Possibilidade de opção, pelo credor-penhorante não intimado, pela
preferência no recebimento do crédito, em concurso de preferências, ou pelo
novo praceamento do bem em hasta pública que providencie, conquanto
transcrito o bem em nome do arrematante, dada a ineficácia da aquisição
relativamente ao aludido credor-penhorante, com penhora anterior averbada no
Registro de Imóveis.
4. - Recurso Especial, que visou ao cancelamento da averbação da penhora,
improvido. (REsp n. 1.122.533-PR, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma,
julgado em 15.5.2012, DJe 11.6.2012).
Recurso especial (CF, art. 105, III, c). Processual Civil. Execução. Concurso de
credores. Marco temporal do direito de preferência de credor. Anterioridade
da penhora ou do registro (averbação) do ato constritivo. Direito de prelação
decorrente da mera formalização da penhora no processo. Relevância do registro
para fi m diverso.
1. Havendo pluralidade de credores com penhora sobre o mesmo imóvel, o
direito de preferência se estabelece pela anterioridade da penhora, conforme os
arts. 612, 613, 711 e 712 do CPC, que expressamente referem à penhora como o
“título de preferência” do credor.
2. A precedência da data da averbação da penhora no registro imobiliário,
nos termos da regra do art. 659, § 4º, do CPC, tem relevância para efeito de dar
publicidade ao ato de constrição, gerando presunção absoluta de conhecimento por
terceiros, prevenindo fraudes, mas não constitui marco temporal defi nidor do direito
de prelação entre credores.
3. Nos termos do art. 664 do CPC, “considerar-se-á feita a penhora mediante
a apreensão e o depósito dos bens, lavrando-se um só auto se as diligências
forem concluídas no mesmo dia”. Assim, o registro ou a averbação não são atos
constitutivos da penhora, que se formaliza mediante a lavratura do respectivo
auto ou termo no processo. Não há exigência de averbação imobiliária ou
referência legal a tal registro da penhora como condição para defi nição do direito
de preferência, o qual dispensa essas formalidades.
4. Recurso especial conhecido e provido. (REsp n. 1.209.807-MS, Rel. Ministro
Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 15.12.2011, DJe 15.2.2012) (grifo deste
subscritor).
Entretanto, na hipótese em apreço, a primeira arrematação não foi
precedida do registro da penhora no competente cartório de imóveis, muito
menos a própria carta de arrematação, razão pela qual o segundo arrematante,
o qual procedeu à inscrição de sua penhora no registro imobiliário, arrematou
o bem sem o conhecimento da existência de anterior alienação judicial sobre o
mesmo imóvel.
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
506
Caberia à primeira arrematante ter no mínimo inscrito a penhora no
registro imobiliário, a fi m de que terceiros tomassem ciência da existência do
ato constritivo judicial. Ao se descurar de sua obrigação, a primeira arrematante,
em verdade, dispensou a correspondente proteção legal, dando azo a que outro,
legitimamente, penhorasse e arrematasse o aludido bem.
À vista disso, não se pode imputar como irregular a segunda arrematação,
porque o descaso da primeira arrematante em não registrar a penhora, bem
como a sua carta de arrematação possibilitou o processamento de posterior
procedimento executivo sobre o mesmo bem, no qual fora observada todas as
cautelas registrais.
7. Não se desconhece o direito de prelação conferido ao credor que primeiro
penhorar o bem a ser executado. Contudo, tal instituto não se aplica à hipótese
em foco, por não se tratar de concurso especial ou particular de credores.
O certame especial estabelece-se quando diversos credores pretendem,
cada um para si, o objeto da expropriação judicial - o preço - e se encontra
disciplinado nos arts. 612, 613, 709, II, 711, 712 e 713 do Código de Processo
Civil, não se confundindo com o concurso universal, quando constatada a
insolvência civil do devedor - arts. 748 e seguintes do Estatuto Processual
Civil. Naquele (especial), os credores que detenham título legal de preferência/
privilégio (v.g. hipoteca, anticrese etc) sobre o bem alienado judicialmente ou
possuam prioridade pela anterioridade da penhora discutirão a primazia sobre
o produto da alienação judicial. Já no concurso universal, diversamente, todos
os credores do devedor, seja a qual título for, pleitearão a satisfação de seus
créditos pelo rateio da venda dos bens do devedor, respeitada a ordem legal de
preferência.
Desse modo, sendo o devedor solvente e existindo pluralidade de credores
objetivando o produto da expropriação judicial de certo bem, deve ser instaurado
o concurso especial de credores, a fi m de se estabelecer o direito de prelação sobre o
preço obtido pela venda da coisa, que se verifi cará em razão da primazia entre as
penhoras, caso não se verifi que a existência de título de privilégio ou preferência.
Isto é, será instalado incidente processual no bojo da execução, tendo em vista a
pluralidade de exequentes concorrentes entre si por melhor posição na ordem de
recebimento do preço.
Sobre o tema, elucidativo é o escólio de Cândido Rangel Dinamarco:
Se antes da entrega do dinheiro ao exeqüente algum credor se apresentar
no processo executivo com a pretensão a recebê-lo, entre eles instaurar-
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 507
se-á um concurso de preferência destinado a fazer prevalecer o crédito que
gozar de prelação entre os demais. Esse é um incidente do processo executivo,
não um processo novo e autônomo; cada um dos terceiros que comparecem com
suas pretensões à preferência é um interveniente e, para os fins limitados dessa
intervenção, torna-se parte no processo pendente e não autor de um processo novo
[...]. A instauração desse incidente do processo executivo tem o efeito de impedir
que a entrega seja feita a quem quer que seja até quando for proferida a decisão
a respeito [...].
Essa paralização não chega ao ponto de ser uma prestação do processo,
sequer imprópria. O que se deixa de realizar é somente a entrega do dinheiro
disputado, sem embargo de poder o procedimento executivo prosseguir, inclusive
para que seja entregue outra importância que eventualmente exista; isso poderá
ocorrer se houver sido penhorado um outro bem, distinto daquele em relação ao
qual um terceiro estiver no processo afi rmando sua preferência [...].
O concurso de preferência não se instaura de-ofício mas só por iniciativa do credor
ou credores que intervierem com pretensão a receber (“concorrendo vários credores
(...)” - art.. 711). Diferentemente do processo de insolvência civil (art. 748 ss. -
infra, nn, 1.863 ss), esse concurso versa exclusivamente as bens penhorados no
processo em que se instaura e envolve apenas o exeqüente e os credores que se
apresentarem voluntariamente, não se convocando os demais possíveis credores
do executado nem se arrecadando todo o patrimônio do executado.
Não se trata de discutir ou decidir sobre a existência de crédito dessas pessoas,
nem o seu valor, mas exclusivamente de defi nir “a preferência e a anterioridade
da penhora” (art. 712, parte final); [...]. O concurso de preferências pode ser
instaurado em duas situações bem tipifi cadas no Código de Processo Civil, a
saber: a) em caso de duplicidade ou pluralidade de penhoras sobre o bem cujo
produto pecuniário então se disputará e (b) se for alegada a preexistência de
“título legal à preferência” (arts. 613, 709, inc. II e 711),
Comparecendo um credor com direito real de garantia sobre o bem expropriado,
sua é a preferência e ele receberá em primeiro lugar, cabendo ao exeqüente e outros
eventuais credores quirografários somente as sobras que houver; a anterioridade
da penhora não prejudica as garantias reais constituídas antes. Entre credores
quirografários, prevalece o crédito daquele que houver obtido a penhora em primeiro
lugar - ainda que não se trate do credor que fi gure como exeqüente no processo em
que houve sido instaurado o incide. (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de
direito processual civil. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005, v. IV, p. 588-590) (grifo
deste subscritor)
Sendo assim, o concurso especial de credores, incidente instaurado em
processo executivo que não chegou ao seu f im, tendo em vista a pendência do
pagamento ao credor exequente, requer a pluralidade de execuções, todas estas
objetivando, ao mesmo tempo, a solvibilidade dos créditos excutidos pelo produto
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
508
oriundo da expropriação judicial promovida pelo credor exequente. Assim o é
porque o certame especial de credores justifi ca-se pela existência de concorrência
sobre o preço. Caso não se verifi que a disputa pelo produto da alienação judicial,
a razão de ser do concurso especial não se mostra presente. E mais, havendo
pagamento integral do preço ao credor promovente da alienação judicial, não há
se falar no concurso especial, já que, nesta última medida, o processo executivo
já teria se fi ndado, não se justifi cando, portanto, a instauração do incidente
processual.
A respeito, veja-se a lição de Cledi de Fátima Manica Moscon:
Para que se estabeleça o concurso especial de preferências, é preciso que existam
execuções pendentes. A prioridade da execução com a penhora pioneira fi xa a
competência do juízo, ante o qual correrá o incidente de preferência na execução
contra o devedor solvente, mesmo que a preferência posta em causa diga
respeito não à ordem das penhoras, mas ao direito preferencial do crédito em si.
(MOSCON, Cledi de Fátima Manica. Direitos de preferência e privilégios no concurso
particular de credores na execução. In:Revista de processo,v. 31, n. 131, jan. 2006, p.
131) (grifo deste subscritor)
Igualmente, com a percuciência que lhe é peculiar, o estudo de Cassio
Scapinella Bueno:
O entendimento majoritário é no sentido de que, para concorrer ao concurso
singular, é mister que os credores tenham já em curso suas respectivas execuções
nas quais o bem alienado tenha sido penhorado. É insuficiente que o executado
seja simultaneamente devedor de mais de um credor, sem que haja uma execução
já em curso. Para os fi ns do concurso de que trata o art. 711, é indispensável que os
diversos credores tenham suas execuções em curso e que um mesmo bem tenha
sido penhorado. Tratando-se de bens diversos, embora de propriedade do
mesmo devedor, não tem aplicação o incidente em análise. Não se trata, aqui,
de concurso coletivo, a exemplo do que ocorre na falência (Lei n. 11.101/2005) e
na insolvência civil (art. 751). (BUENO, Cassio Scaprinella. Curso sistematizado de
direito processual civil. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, v. 3, p. 343-344)
Ademais, a ratio essendi dos arts. 612, 613, 709, II, 711, 712 e 713 do
Código de Processo Civil é de premiar o credor predecessor na realização da
penhora em detrimento daqueles outros que não demonstraram o mesmo afi nco
na consecução de seus direitos. Nesse passo, a exegese a ser extraída dos aludidos
dispositivos é no sentido de se permitir a preferência sobre os bens penhorados,
ou melhor, sobre o produto da expropriação, uma vez que a simples penhora
do bem não confere a propriedade ao exequente sobre a coisa penhorada, mas,
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 509
apenas, marcará/reservará, em garantia, aquele bem para posterior expropriação
judicial, a qual, se levada a efeito, satisfará o crédito perseguido em juízo.
Resta, portanto, evidenciada a impertinência da aplicação do direito de
prelação ao caso vertente, porque, ao tempo da primeira execução que culminou
com a primeva penhora - 23.1.1992 - e arrematação - 30.1.1996 -, ainda não
havia sido instaurada a segunda execução - 29.4.1997 -, que gerou a segunda
penhora - 3.6.1997, a qual fora realizada muito depois do encerramento do
primeiro processo executivo - 21.5.1996.
Na hipótese em análise, não se divisa a concomitância de execuções ao
tempo da primeira penhora. A realização da penhora no segundo processo
executivo deu-se após o pagamento do preço e do término da primeira ação
executiva, razão pela qual não há como se invocar o direito de prelação para
solucionar a controvérsia dos autos, sobretudo por não constituir a penhora, de
per si, direito de propriedade sobre a coisa penhorada, mas, apenas, preferência
no recebimento do produto de sua expropriação, quando verifi cada a existência
de execuções concomitantes sobre o mesmo bem, circunstância ausente na
espécie.
Assinale-se o entendimento pacifi co nesta Corte Superior sobre o direito
de prelação conferido ao primeiro exequente que promoveu a penhora. Vejam-
se: REsp n. 1.209.807-MS, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado
em 15.12.2011, DJe 15.2.2012; REsp n. 829.980-SP, Rel. Ministro Sidnei
Beneti, Terceira Turma, julgado em 1º.6.2010, DJe 18.6.2010; REsp n. 976.522-
SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 2.2.2010, DJe
25.2.2010; AgRg nos EDcl no REsp n. 775.723-SP, Rel. Ministro Sidnei Beneti,
Terceira Turma, julgado em 20.5.2010, DJe 9.6.2010.
Todavia, do inteiro teor dos julgados deste Tribunal Superior, não se verifi ca
a existência da aplicação do direito de prelação quando já fi nda a execução, mas
sempre enquando pendente o pagamento do preço da expropriação judicial.
Reitere-se, portanto, a inaplicabilidade do direito de prelação à hipótese
em foco, tendo em vista o encerramento do primeiro processo executivo, em
que houve o pagamento do preço, antes mesmo do ajuizamento da segunda
ação executiva, sobretudo por não ser o referido instituto capaz de conferir
direito de propriedade ao exequente promovedor da penhora, mas, tão somente,
preferência sobre o preço da expropriação judicial, quando ocorrente o concurso
especial de credores.
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
510
8. Anote-se, ainda, que a primeira arrematação não pode subsistir em
prejuízo da segunda, haja vista a ausência de sólido fundamento jurídico apto a
embasar tal posicionamento. A referida ordem de prevalência só se justifi caria
pela aplicação equivocada do direito de prelação ou pela concessão de efi cácia
erga omnes à arrematação sem registro. Prevalecendo esta perspectiva, o sistema
executivo encontrar-se-ia subvertido, porquanto o adquirente do imóvel
praceado passará a exigir do Poder Judiciário ou do próprio exequente a dura
tarefa de instruir o edital de praça com certidões negativas de todas as comarcas
do País informando a inexistência de anterior penhora ou arrematação do bem
que está sendo levado a hasta pública. Se assim não proceder, o arrematante
poderá ser privado da coisa adquirida em procedimento judicial, tendo em vista
a ocorrência de anterior penhora ou arrematação não registradas, mesmo que
tenham ocorridas em processos executivos fi ndos, não competindo ao Estado
promover os atos de inscrição e traslativos de propriedade.
Nesta medida, a força coercitiva do Poder Judiciário não gozará mais
de prestígio perante a sociedade, já que o adquirente de imóvel alienado
judicialmente, ante o infactível cumprimento da aludida exigência, poderá
perder a propriedade do bem, tendo em vista a existência de anterior penhora
ou arrematação não registrada. Por isso, não se mostra correta a prevalência da
primeira arrematação sobre a segunda, como na hipótese dos autos.
A arrematação, como dito no art. 694, caput, do Código de Processo Civil,
após a assinatura do auto, será considerada “perfeita, acabada e irretratável”,
contudo a efi cácia destinada pelo referido dispositivo não pode se sobrepor a
lógica posta pelo sistema registral brasileiro. Ou seja, pela matrícula do bem é
que se toma conhecimento de eventuais gravames incidentes sobre ele e pelo
registro do título é que se opera a transmissão da propriedade. Dar efi cácia
erga omnes a primeira arrematação ou a penhora não registrada desprestígia a
confi ança no registro e a boa-fé daqueles que nele confi am.
A estabilidade outorgada ao auto de arrematação pela fórmula “perfeita,
acabada e irretratável” não é infensa ao tratamento ordinário dado aos negócios
jurídicos, pois “aperfeiçoada a arrematação, com a lavratura do auto, resta
materializada causa de transferência da propriedade com todos os direitos que
lhe são inerentes, ressalvados aqueles que dependem, por lei, de forma especial para
aquisição.” (REsp n. 833.036-SP, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma,
julgado em 18.11.2010, DJe 28.3.2011).
A expressão “perfeita, acabada e irretratável” destina-se a dar estabilidade
ao negócio jurídico intermediado pelo Poder Judiciário, evitando a sua
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 511
desconstituição por eventuais vícios/falhas em seu trâmite ou, até mesmo,
arrependimento por algumas das partes. Assim, a referida fórmula não confere
eficácia erga omnes ao auto de arrematação, mas dá segurança jurídica e
idoneidade ao negócio jurídico realizado por meio de intervenção judicial.
A propósito, pertinente são os comentários de Arruda Alvim, Araken de
Assis e Eduardo Arruda Alvim:
Conforme estabelece o art. 694, caput, assinado o auto de arrematação, o
negócio se considera perfeito, acabado e irretratável. “Perfeita” a arrematação
porque obtido consenso quando os termos do negócio, tendo o juiz aceito o
lanço (art. 692, caput); “acabada”, porque ultimado o procedimento licitatório,
antes disto sujeito a alterações (p. ex., remição pelo executado, art. 651); e,
fi nalmente, “irretratável”, porque o arrematante (salvo perante embargos, art. 746,
§ 1º) não pode mais, efi cazmente, arrepender-se. (ARRUDA ALVIM; AREKEN DE
ASSIS; EDUARDO ARRUDA ALVIM. Comentários ao código de processo civil. 1ªed.
Rio de Janeiro: GZ, 2012, p. 1.126).
Convém rememorar que o registro da penhora não é requisito para se
estabelecer o direito de prelação, conforme orienta a jurisprudência e a doutrina,
contudo é elemento essencial para se opor a penhora contra terceiros. No caso
em testilha, não há como afastar a condição de terceiro do segundo arrematante,
já que em nenhum momento fez parte da relação jurídica de direito material ou
processual travada entre o primeiro arrematante e o devedor comum.
Importa salientar, ainda, ser o registro imobiliário o meio adequado para
a transmissão da propriedade no sistema jurídico brasileiro. Não obstante a
realização de negócio jurídico subjacente, somente por meio do registro se
alcança a titularidade da propriedade. A título ilustrativo, a compra e venda de
imóvel entre particulares, levada a efeito por escritura pública, por si só, não tem
o condão de transferir a propriedade ao adquirente, em que pese a indiscutível fé
pública do título lavrado em cartório, afi gurando-se imprescindível, para tanto, a
sua transcrição no registro de imóveis.
Assim o é porque o sistema registral constitui mecanismo de proteção
da fé-pública e garantia da estabilidade do tráfi co jurídico negocial. Este tem
sido o entendimento reiterado da jurisprudência desta Corte Superior: REsp
n. 254.875-SP, Rel. Ministro Jorge Scartezzini, Quarta Turma, julgado em
5.8.2004, DJ 30.8.2004, p. 289; RO n. 10-DF, Rel. Ministro Castro Filho,
Terceira Turma, julgado em 3.6.2003, DJ 25.8.2003, p. 294; REsp n. 2.250-
SP, Rel. Ministro Cesar Asfor Rocha, Primeira Turma, julgado em 4.10.1993,
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
512
DJ 8.11.1993, p. 23.515; REsp n. 12.546-RJ, Rel. Ministro Humberto Gomes
de Barros, Primeira Turma, julgado em 21.10.1992, DJ 30.11.1992, p. 22.559;
REsp n. 38.032-SP, Rel. Ministro Assis Toledo, Quinta Turma, julgado em
1º.12.1993, DJ 21.2.1994, p. 2.181; REsp n. 848.070-GO, Rel. Ministro Luiz
Fux, Primeira Turma, julgado em 3.3.2009, DJe 25.3.2009; AR n. 2.830-SP, Rel.
Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Segunda Seção, julgado em 14.12.2011, DJe
1º.2.2012.
Portanto, a carta de arrematação, embora constitua título hábil a promover
a alteração da titularidade do bem imóvel, esta somente atingirá tal desiderato
se devidamente registrada no assento imobiliário, nos termos dos arts. 532, III,
do Código Civil de 1916, 167, I, n. 26, da Lei n. 6.015/1973, aplicáveis ao caso
concreto.
Neste sentido, sobreleva apontar o escólio de Araken de Assis:
Expedir-se-á, ao cabo do procedimento da praça, carta de arrematação, que
representa o “traslado do auto de arrematação mais os elementos históricos”,
indispensáveis ao registro, porque, conforme já se assinalou, o arrematante adquire
o imóvel através da transcrição (retro, 275.2). O registro ensejará, por outro lado,
a imissão na posse (retro, 275.2). Os elementos catalogados no art. 703 servem à
“comodidade do adquirente e à segurança da circulação dos bens.”
A carta de arrematação constitui o título formal da aquisição. O acordo de
transmissão consta do auto de arrematação.
O título formal habilita o arrematante à aquisição do domínio mediante a
transcrição ou registro (art. 167, I, n. 26, da Lei n. 6.015/1973). Diversamente do que
ocorria no direito antigo, a carta não abriga “sentença” de nenhuma espécie. De
modo implícito, é claro, o órgão judiciário proveu acerca dos pressupostos do
remate, aceitando o lanço, mas, exceção feita a entendimentos isolados, para
difícil localizar, aí, conteúdo compatível com a natureza sentencial.
[...]
A simples expedição de carta, guarnecida dos elementos arrolados no art. 703, não
importa, ipso facto, o registro do título. Implícito se encontra apenas o cancelamento
dos direitos reais de garantia (retro, 275.11).
O negócio jurídico de arrematação se mostra incapaz de transmitir efi cazmente
ao arrematante o domínio senão dos bens integrantes do patrimônio do executado.
Desse modo, o registro do título é tema estranho à execução em si, a despeito
dos esforços em penhorar bens realmente pertencentes ao devedor, interessando
unicamente ao arrematante obter o registro. É ônus seu, p. ex., retifi car o registro (art.
213 da Lei n. 6.015/1973) ou, se insubsistente a exigência, provocar a instauração de
dúvida (art. 198 da Lei n. 6.015/1973). A competência do juiz da execução cessa
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 513
com a expedição regular da carta. (ASSIS. Araken de. Manual de execução. 15ª ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 893 e 895) (grifo deste subscritor)
Sendo assim, é o adquirente da segunda execução o legítimo proprietário
do bem, pois ele procedeu ao registro de sua carta de arrematação (expedida
no dia 5.11.1998) na data de 15.12.1998 (fl . 165, e-STJ), enquanto a primeira
arrematante, possuindo semelhante documento desde o dia 30.1.1996 (fl . 43,
e-STJ), não efetuou a devida transcrição no assentamento imobiliário.
9. Dormientibus non sucurrit jus, a máxima latina é aplicável ao
comportamento descuidado da primeira arrematante, pois existindo duas
cartas de arrematação sobre o mesmo imóvel, há de prevalecer aquela em
que o exequente foi diligente na busca de seu direito, em detrimento do
comportamento negligente do outro credor.
Entendimento contrário colocaria em xeque, indubitavelmente, a
credibilidade do registro imobiliário, bem como de sua fi nalidade precípua de
conferir segurança jurídica nas relações negociais alusivas à bens imóveis, eis que
haveria a consolidação da propriedade em favor do exequente não cumpridor
das formalidades registrais (primeiro arrematante), em prejuízo daqueloutro
que, confi ando no registro imobiliário, procedeu à inscrição dos atos judiciais
(penhora e segunda arrematação), em observância às normas de transmissão de
domínio.
Cumpre destacar que o ordenamento jurídico considera ser a arrematação
um ato de alienação processado sob a garantia do Poder Judiciário. Sendo
assim, atribui-se a este tipo de aquisição a máxima segurança, a fi m de que o
procedimento não seja desprestigiado, fato que comprometeria a efetividade das
decisões judiciais.
Na hipótese em foco, a efi cácia da primeira arrematação não é afastada
em razão de equivoco judiciário ou ato de terceiro, mas por incúria da própria
arrematante que deixou de proceder ao registro de carta de arrematação no cartório
imobiliário.
Assim, a prevalência da segunda arrematação não depõe contra a higidez
do sistema, o qual se mostra efi caz na proteção dos direitos dos credores, desde
que sejam observados os regramentos próprios.
10. Ademais, não se pode esquecer que os ora recorrentes, co-réus na
ação ordinária, adquiriram o imóvel da segunda arrematante, que, conforme
exaustivamente demonstrado, constava da matrícula do imóvel sob comento
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
514
como a legítima proprietária do bem, então adquirido por meio de arrematação
judicial (precedida de penhora igualmente averbada no registro imobiliário,
ressalta-se). Resta, por conseguinte, evidenciada a boa-fé dos ora recorrentes que
adquiriram o bem em tela, sobre o qual inexistia qualquer gravame, revelando-
se desarrazoado presumir que poderiam deter ciência de anterior penhora e
arrematação não levadas a registro, a considerar que os elementos dos autos,
inegavelmente, não conduzem a esta conclusão.
Dessa forma, na esteira de precedentes do Superior Tribunal de Justiça,
“o terceiro adquirente de boa-fé, que confi ou no registro e hoje é titular do
domínio, não é atingido pelos efeitos da extinção da primitiva relação de direito
obrigacional que existia entre o primeiro proprietário e o que vendeu o terreno
[imóvel] aos réus.” (REsp n. 101.571-MG, Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar,
Quarta Turma, julgado em 14.5.2002, DJ 5.8.2002, p. 343).
A propósito:
Direito Civil e Processual Civil. Julgamento ultra petita. Não ocorrência. Matéria
de ordem pública cognoscível de ofício. Compra e venda de imóvel. Outorga
de escritura definitiva. Inadimplência da compradora. Rescisão contratual.
Cancelamento do registro imobiliário. Impossibilidade. Terceiros adquirentes de
boa-fé.
[...]
2. No caso, pretende-se o cancelamento do registro imobiliário - este
decorrente de escritura pública translativa defi nitiva -, em razão da procedência
do pedido de rescisão contratual por inadimplência e indenização por perdas e
danos em desfavor da incorporadora, que revendera as unidades imobiliárias a
terceiros.
3. Ocorre que a compra e venda gera, em regra, apenas efeitos obrigacionais, de
sorte que o desfazimento do contrato por inadimplência do comprador não tem o
condão de cancelar o registro imobiliário decorrente de escritura pública defi nitiva,
máxime quando terceiros de boa-fé tenham readquirido o imóvel, com base na
adequação da cadeia registral.
4. Recurso especial improvido. (REsp n. 687.087-SP, Rel. Ministro Luis Felipe
Salomão, Quarta Turma, julgado em 5.5.2011, DJe 13.5.2011) (grifo deste
subscritor).
Agravo regimental no recurso especial. Fundamentos insuficientes para
reformar a decisão agravada. Embargos de terceiro. Súmula n. 375-STJ. Ausência
do registro da penhora. Alienações sucessivas. Presunção de boa-fé do terceiro
adquirente. Lei n. 8.953/1994. Aplicação.
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 515
1. A agravante não trouxe argumentos novos capazes de infirmar os
fundamentos que alicerçaram a decisão agravada, razão que enseja a negativa de
provimento ao agravo regimental.
2. A teor da Súmula n. 375 do STJ, “O reconhecimento da fraude à execução
depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do
terceiro adquirente”.
3. A presunção de boa-fé se estende aos posteriores adquirentes, se houver
alienações sucessivas. Precedentes.
4. “Sem o registro da penhora não se podia, mesmo antes da vigência da Lei n.
8.953/1994, afi rmar, desde logo, a má-fé do adquirente do imóvel penhorado” (REsp
n. 494.545-RS, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, julgado em
14.9.2004, DJ 27.9.2004, p. 214).
5. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no REsp n. 329.923-SP,
Rel. Ministro Vasco Della Giustina (Desembargador convocado do TJ-RS), Terceira
Turma, julgado em 2.12.2010, DJe 17.12.2010) (grifo deste subscritor).
Portanto, os recorrentes, adquirentes de boa-fé, confi antes no registro
imobiliário, não podem ser prejudicados por eventual nulidade ocorrida no
anterior título aquisitivo de propriedade, sobretudo quando a cadeia dominial se
mostra hígida (fl s. 164-165, e-STJ).
11. Do exposto, dou parcial provimento aos recursos especiais, para
julgar improcedente o pedido contido na exordial, invertendo-se os ônus
sucumbenciais.
É como voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.068.355-PR (2008/0133023-5)
Relator: Ministro Marco Buzzi
Recorrente: Cerealista Palotinense Ltda. e outros
Advogado: Enimar Pizzatto e outro(s)
Recorrente: Genésio Neilôr Finger - Espólio (recurso adesivo)
Representado por: Maria de Lourdes Casarotto Finger - Inventariante
Advogado: Ana Cláudia Finger e outro(s)
Recorrido: Os mesmos
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
516
EMENTA
Recurso especial. Execução de honorários advocatícios
sucumbenciais promovida pelo advogado substabelecido, com reserva
de poderes, sem a anuência do procurador substabelecente. Exceção
de pré-executividade acolhida pelo magistrado de primeiro grau.
Sentença reformada pelo Tribunal de origem. Acordo celebrado
entre as partes originárias. Impossibilidade de alcançar os honorários
sucumbenciais. Insurgência dos executados. Recurso especial provido
em parte.
Hipótese em que a ação executiva é promovida pelo advogado
substabelecido, com reserva de poderes, sem a anuência do procurador
substabelecente, com o intuito de receber honorários advocatícios
sucumbenciais.
Sentença reformada pelo Tribunal de origem, afastando a
declaração de inexistência de pressuposto de desenvolvimento válido
do processo, bem como considerando inoponível ao exequente a
celebração de transação fi rmada entre as a partes originárias.
1. O art. 26 da Lei n. 8.906/1994 é claro em vedar qualquer
cobrança de honorários advocatícios por parte do advogado
substabelecido, com reserva de poderes, sem a anuência do procurador
substabelecente. Incide, portanto, a clássica a regra de hermenêutica,
segundo a qual onde a lei não distingue, não pode o intérprete
distinguir.
1.1. Ademais, pouco importa tratar-se de execução de honorários
sucumbenciais, pois não se divisa a existência de peculiaridade a
justifi car a não aplicação da jurisprudência desta Corte Superior, que
exige a observância do referido preceptivo legal, porque, embora o
título executado seja certo e líquido, ainda se faz necessário aquilatar a
existência de eventual acordo entre os procuradores representantes da
parte vencedora a respeito da verba executada.
1.2. Tratando-se de um litisconsórcio necessário, curial a
intervenção do procurador substabelecente, para, nos termos do
parágrafo único do artigo 47 do Código de Processo Civil, determinar-
se a citação deste.
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 517
2. “A verba honorária constitui direito autônomo do advogado,
integra o seu patrimônio, não podendo ser objeto de transação entre as
partes sem a sua aquiescência.” (REsp n. 468.949-MA, Rel. Ministro
Barros Monteiro, Quarta Turma, julgado em 18.2.2003, DJ 14.4.2003,
p. 231).
3. O art. 26 da Lei n. 8.906/1994 visa impedir o locupletamento
ilícito por parte do advogado substabelecido, pois a aquiescência do
procurador substabelecente mostra-se fundamental para o escorreito
cumprimento do pacto celebrado entre os causídicos, a fi m de que
o patrono substabelecido, ao cobrar os honorários advocatícios, não
o faça sem dar saber ao outro profi ssional que manteve reserva de
poderes.
4. Independente da razão pela qual o advogado substabelecente
não tenha composto inicialmente o polo ativo da demanda, sua
ausência não enseja a imediata extinção do feito, sem julgamento de
mérito. Nos termos do parágrafo único do artigo 47 do Código de
Processo Civil, deve o juiz, ainda que de ofício, determinar a citação
daquele (Precedentes).
5. Ademais, não se afigura correta a extinção da presente
execução, como requerido pelos ora recorrentes, eis que a formalidade
exigida pelo o art. 26 da Lei n. 8.906/1994 é facilmente atendida pelo
retorno dos autos à origem, para que o exequente promova a citação
do procurador substabelecente, a fi m de que este tome ciência a
respeito do processo executivo. Tal solução do caso atende a fi nalidade
ética da norma em análise, bem como preserva os atos processuais até
então praticados, em atenção aos princípios da instrumentalidade do
processo e da inafastabilidade da jurisdição.
6. Recurso especial adesivo interposto por Genésio Neilôr Finger -
Espólio não conhecido. Apelo extremo aviado por Cerealista Palotinense
Ltda. e outros provido parcialmente, a fi m de determinar o retorno dos
autos ao Juízo de Direito de origem, para se intimar o exequente, no
intuito de que este promova a citação do procurador substabelecente
em 20 (vinte) dias, nos termos do parágrafo único do art. 47 do
Código de Processo Civil.
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
518
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, dar parcial provimento ao recurso de Cerealista Palotinense Ltda.
e outros e não conhecer do recurso especial adesivo, interposto por Genésio
Neilôr Finger - Espólio, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Luis Felipe Salomão, Raul Araújo (Presidente), Maria
Isabel Gallotti e Antonio Carlos Ferreira votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 15 de outubro de 2013 (data do julgamento).
Ministro Raul Araújo, Presidente
Ministro Marco Buzzi, Relator
DJe 6.12.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Marco Buzzi: Trata-se de dois recursos especiais, o primeiro
interposto por Cerealista Palotinense Ltda. e outros e o segundo, de modo adesivo,
por Genésio Neilôr Finger - Espólio, ambos, com fundamento no art. 105, inciso
III, alíneas a e c, da Constituição Federal, contra acórdão do Tribunal de Justiça
do Estado do Paraná.
Na origem, em 2.3.2000, Genésio Neilôr Finger propôs ação executiva
de título judicial contra Cerealista Palotinense Ltda., Joarcy Pedro Spessatto e
Vitélio Rubert, a fi m de receber honorários advocatícios sucumbenciais, no importe
de R$ 196.095,01 (cento e noventa e seis mil, noventa e cinco reais e um
centavo), decorrentes do êxito obtido em 3 (três) ações judiciais em favor de seu
constituinte - Unibanco - União de Bancos Brasileiros.
Proposta exceção de pré-executividade pelos executados (fl s. 500-515,
e-STJ), foram deduzidas as seguintes matérias defensivas: a) impossibilidade de
cobrança dos honorários advocatícios pelo exequente - advogado substabelecido
- sem a anuência do procurador substabelecente; b) responsabilidade do
Unibanco pela dívida, tendo em vista a existência de acordo fi rmando entre os
executados e a instituição bancária, que assumiu o ônus pelo pagamento dos
honorários advocatícios de seus causídicos.
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 519
Em resposta, o exequente afirmou ter legitimidade para promover a
execução dos honorários sucumbenciais, bem como declarou hígido o seu
direito, já que não opôs a sua anuência na transação fi rmada pelos executados e
o Unibanco.
Conclusos os autos, o magistrado de piso, acolhendo exceção de pré-
executividade oferecida pelos executados, extinguiu o feito ao fundamento de
inexistir pressuposto necessário para o processamento regular da demanda,
pois, sendo o exequente procurador substabelecido, com reserva de poderes,
é necessária a anuência do advogado substabelecente para a cobrança de
honorários, nos termos do art. 26 da Lei n. 8.906/1994.
É o que se denota do seguinte excerto da sentença (fl s. 692-963, e-STJ):
Compulsando os autos verifi ca-se que, efetivamente, o exeqüente, recebeu
poderes para atuar no feito através de substabelecimento e, em lugar algum é
possível encontrar autorização de quem lhe conferiu o substabelecimento para a
cobrança dos honorários.
O substabelecimento, ainda, inclui a reserva de poderes (vide fl . 409-410, 439-
441, 449).
Esses são os fatos relevantes.
O artigo 26, do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil é claro:
[...]
Ora, não há qualquer exceção na norma legal em debate, de modo que, não
é relevante o fato de os advogados substabelecentes não terem participado do
processo.
Falta, portanto, à execução, requisito necessário ao seu desenvolvimento
válido, isto é, a intervenção daqueles que lhes conferiu o substabelecimento para
a cobrança dos honorários.
Deve, portanto, se acolhida a preliminar levantada, com imediata extinção da
execução.
Pelo exposto, acolho a, exceção de pré-executividade motivo pelo. qual,
com fundamento: no artigo 267, IV, do Código de Processo Civil, julgo extinta a
execução.
Irresignado, o espólio de Genésio Neilôr Finger intentou recurso de
apelação perante Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, o qual concedeu
parcial provimento à insurgência, a fi m de reconhecer a legitimidade ativa do
exequente - advogado substabelecido -, para promover a execução de honorários
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
520
sucumbenciais, sem a intervenção do procurador substabelecente. O decisum
restou assim ementado (fl . 791, e-STJ):
Exceção de pré-executividade. Título judicial. Acolhimento. Cabimento do
recurso de apelação. Carência de ação. Matéria de ordem pública que pode ser
suscitada em qualquer tempo e grau de jurisdição. Inocorrência de ofensa à coisa
julgada. Execução de honorários advocatícios. Substabelecimento. Legitimidade
ativa ad causam do advogado substabelecido, sem intervenção do advogado
substabelecente. Acordo celebrado entre as partes sem anuência do advogado
não alcança os honorários. Possibilidade de execução. Sucumbência recíproca.
Custas processuais e verba honorária proporcionais. Apelação parcialmente
provida.
Daí, o recurso especial interposto por Cerealista Palotinense Ltda. e outros,
em que se aponta ofensa ao art. 26 da Lei n. 8.906/1994, além de dissídio
jurisprudencial.
Nas razões do apelo nobre, os recorrentes sustentam a imprescindibilidade
da autorização do procurador substabelecente para a cobrança de honorários
advocatícios promovida pelo advogado substabelecido, como preceituado no art.
26 da Lei n. 8.906/1994.
Aduzem a validade do acordo fi rmado por eles e o Unibanco, razão pela
qual a cobrança de honorários é descabida, já que pela referida avença, a casa
bancária se responsabilizou pelo pagamento de seus procuradores, motivo pelo
qual o recorrido não tem legitimidade para cobrar qualquer valor.
Explicam que o recorrido era advogado substabelecido, com reserva de
poderes, constituído para a defesa dos interesses do Unibanco, sendo assim,
mesmo que não tenha assinado o termo de transação fi rmado entre a instituição
fi nanceira e os recorrentes, não tem ele interesse de defl agrar a presente execução,
já que o banco assumiu expressamente a obrigação pelo pagamento de seus
honorários.
Vistas ao recorrido, foram apresentadas contrarrazões (fl s. 822-841, e-STJ)
e interposto recurso especial adesivo por Genésio Neilôr Finger - Espólio, no qual
aponta ofensa aos arts. 17 e 600 do Código de Processo Civil, além de dissídio
jurisprudencial.
Em suma, o apelo extremo adesivo traz alegações de extemporaneidade da
exceção de pré-executividade, litigância de má-fé e comportamento atentatório
contra a Justiça perpetrado pela parte ex adversa.
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 521
Contrarrazões à via excepcional adesiva oferecidas às fl s. 932-941, e-STJ;
e, após decisão de admissibilidade dos recursos especiais, aos autos ascenderam a
esta egrégia Corte de Justiça.
É o breve relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Marco Buzzi (Relator): 1. Inicialmente, não conheço do
recurso especial adesivo interposto por Genésio Neilôr Finger - Espólio, tendo em
vista a sua deserção.
A jurisprudência desta Corte Superior é iterativa no sentido de que, à
luz do disposto no art. 511, do Código de Processo Civil, o recorrente deve
comprovar a realização do preparo no ato de interposição do reclamo, dando
ensejo à deserção quando deixar de recolher ou o fi zer em momento posterior.
Compulsando-se os autos, não se verifi ca o comprovante de pagamento
das custas judiciais e, também, do porte de remessa e retorno dos autos. Assim,
impositiva, na hipótese, a aplicação da Súmula n. 187 desta Corte Superior: “É
deserto o recurso interposto para o Superior Tribunal de Justiça, quando o recorrente
não recolhe, na origem, a importância das despesas de remessa e retorno dos autos”.
Assim, inviável o conhecimento do recurso adesivo intentado pelo Espólio
de Genésio Neilôr Finger.
2. Passa-se, doravante, à análise do apelo nobre manejado por Cerealista
Palotinense Ltda. e outros.
A irresignação merece prosperar.
Com efeito, a controvérsia instaurada na presente insurgência recursal
cinge-se em saber se o advogado substabelecido (Genésio Neilôr Finger), com
reserva de poderes, pode promover a execução de honorários sucumbenciais
(fixados em sentença transitada em julgado, ressalta-se) em face da parte
sucumbente, sem a intervenção do advogado substabelecente. A hipótese dos
autos conta com a peculiaridade de que os litigantes (Cerealista Palotinense
Ltda. e Outros, de um lado, e Unibanco, de outro), quando da execução da
sentença (transitada em julgado), celebraram transação que pôs fi m ao litígio,
estipulando-se incumbir à cada parte os honorários advocatícios de seus
patronos (acordo, é certo, que não contou com a aquiescência dos advogados).
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
522
Assim delimitada a controvérsia, sobreleva deixar assente que, nos termos
do § 4º, do artigo 24, do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, “o acordo
feito pelo cliente do advogado e a parte contrária, salvo aquiescência do profi ssional,
não lhe prejudica os honorários, quer os convencionados, quer os concedidos por
sentença”.
Efetivamente, a verba honorária consubstancia direito autônomo do
causídico, de forma a integrar seu patrimônio jurídico, não se afi gurando possível
às partes transacionarem sobre referido direito, sem a anuência do titular (o
próprio advogado).
Desse modo, na esteira da remansosa jurisprudência deste Superior
Tribunal de Justiça, o acordo celebrado entre as partes, no qual o advogado
não tenha exarado sua anuência, não o impede de fazer jus aos honorários
advocatícios convencionados, ou advindos de sentença judicial, independente do
teor expendido na transação.
A propósito:
Processual Civil. Honorários advocatícios. Transação entre as partes. Direito
autônomo do advogado. Interpretação de cláusula. Contratual.
I - Nos termos do artigo 24, § 4º, do EOAB, “o acordo feito pelo cliente do
advogado e a parte contrária, salvo aquiescência do profi ssional, não lhe prejudica os
honorários, quer os convencionados, quer os concedidos por sentença”.
II - A “aquiescência do profissional” a que faz referência o texto legal não se
confi gura com a mera participação do advogado no acordo celebrado entre as partes
do processo, sendo necessário investigar, em cada caso, o sentido e o alcance da
cláusula avençada.
III - Na hipótese concreta, o Tribunal de origem afi rmou que o advogado não
consentiu em abdicar dos honorários sucumbenciais, pois a cláusula “cada um
suportará os honorários advocatícios de seus respectivos advogados” inserida no
termo de acordo e a qual aderiram os advogados que também o subscreveram, deve
ser interpretada restritivamente de modo a não alcançar os honorários devidos em
razão da sucumbência.
IV - O exame da pretensão recursal demanda, portanto, interpretação da
referida cláusula contratual, merecendo aplicação a Súmula n. 5 desta Corte
Superior. Agravo Regimental improvido. (AgRg no REsp n. 1.008.025-AL, Relator
Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, DJe 9.3.2009).
Recurso especial. Ação de cobrança de honorários advocatícios. Negativa de
prestação jurisdicional. Art. 535 do CPC. Não ocorrência. Prequestionamento.
Ausência. Súmula n. 282-STF. Reconhecimento jurídico do pedido. Transação.
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 523
Distinções e semelhanças. Consequências com relação aos honorários
advocatícios. Reexame de cláusulas contratuais e de provas. Inviabilidade.
Súmulas n. 5 e n. 7-STJ. Transação celebrada após a réplica. Ausência de
pronunciamento judicial fi xando honorários advocatícios. Direito autônomo do
advogado. Não infringência. Divergência não demonstrada. Súmula n. 13-STJ.
Ausência de similitude fática.
[...]
4. A transação é negócio jurídico bilateral, realizado entre as partes, caracterizada
por concessões mútuas a fi m de pôr fi m ao litígio e, se realizada sem a participação
do advogado, não pode prejudicar a verba honorária fi xada a seu favor em sentença
judicial.
[...]
9. Recurso especial conhecido em parte e, nessa parte, não provido. (REsp n.
1.133.638-SP, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em
6.8.2013, DJe 20.8.2013) (grifo deste subscritor).
Processual Civil. Administrativo. Servidor. Reajuste de 28,86%. Execução.
Transação firmada sem participação do advogado. Honorários advocatícios
devidos. Incidência dos artigos 23 e 24, § 4º, da Lei n. 8.906/1994.
1. [...]
2. No caso vertente, devem prevalecer as normas constantes dos arts. 23 e 24, §
4º, da Lei n. 8.906/1994, de sorte que o advogado tem direito autônomo de executar
a sentença quanto à verba de sucumbência, uma vez que a transação fi rmada pelas
partes, sem a sua aquiescência, não prejudica os honorários, tanto os convencionados
como os de sucumbência.
3. Agravo regimental não provido. (AgRg no REsp n. 1.247.115-MG, Rel.
Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 7.2.2012, DJe 16.2.2012) (grifo
deste subscritor).
Agravo regimental no recurso especial. Previdenciário. Processual Civil.
Transação firmada entre os litigantes. Honorários sucumbenciais. Direito
autônomo do advogado. Impossibilidade de afastamento. Agravo desprovido.
I. A jurisprudência desta Corte Superior de Justiça é uníssona no sentido de ter
o advogado direito autônomo de executar a sentença na parte que lhe caiba, qual
seja, os honorários de sucumbência.
II. A transação fi rmada pelas partes, sem a aquiescência do causídico, não tem, nos
termos elencados nos arts. 23 e 24, § 4º, da Lei n. 8.906/1994, o condão de prejudicar
a verba honorária que lhe é devida, vez que essa, tendo natureza remuneratória,
pertencente ao advogado pela sua atuação no processo.
III. Agravo regimental desprovido. (AgRg no REsp n. 1.214.899-PR, Rel. Ministro
Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 13.9.2011, DJe 28.9.2011). E ainda: REsp n.
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
524
468.949-MA, Rel. Ministro Barros Monteiro, Quarta Turma, julgado em 18.2.2003,
DJ 14.4.2003, p. 231).
Como bem assinalado pela Corte local, o advogado substabelecido, com
reserva de poderes, ora recorrido, não anuiu com a transação entabulada
pelos recorrentes - Cerealista Palotinense Ltda. e outros - e o Unibanco, partes
originárias nas ações judiciais, em que se formaram os títulos exequendos
(honorários sucumbenciais).
No ponto, oportuno destacar que o acordo entabulado entre as partes,
que pôs fi m ao litígio, deu-se em sede de execução de sentença (em que se
reconheceram os honorários sucumbenciais, ora exequendos), transitada em
julgado.
Assim, não tendo o advogado anuído com a transação celebrada entre
as partes, e, encontrando-se devidamente constituído título executivo judicial
(atinente aos honorários sucumbenciais), cabível, em tese, o manejo de execução
em face da parte sucumbente, e não, em face do mandante Unibanco, como
sustentado pelos ora recorrentes.
Destaca-se esse matiz hermenêutico dos seguintes precedentes:
Direito Processual Civil. Processo de execução. Honorários advocatícios.
Transação realizada diretamente pelas partes, em execução por título executivo
extrajudicial, sem assistência de advogado, não dispondo sobre honorários.
Execução movida por advogados da exequente contra o executado. Título
executivo inexistente. Execução extinta por falta de interesse de agir pela forma
executiva.
Movida execução por advogados do exequente contra o executado, ante a
extinção do processo de execução devido a transação realizada diretamente
pelas partes, sem intervenção dos Advogados e sem disposição a respeito dos
honorários destes, tem-se que reconhecer a inexistência de título executivo,
devendo a matéria remeter-se às vias ordinárias. Impossível a conclusão, nestes
autos, de que os honorários advocatícios fi cassem sob a responsabilidade cada
qual de seus constituintes, porque assim não pactuado e porque assim não
há bases conclusivas no caso, de modo que pretensões a honorários devem
ser formuladas em ação própria, mediante petição inicial dirigida a partes
entendidas adequadas e que contenha causa de pedir e pedido claros, de modo
a ensejar instauração de contraditório válido e decisão fi nal que avalie todas as
circunstâncias do caso. Recurso Especial provido. Processo de Execução extinto.
Sucumbência a cargo dos exequentes. (REsp n. 1.075.429, Relator Ministro Sidnei
Beneti, Terceira Turma, DJe 16.3.2009). E ainda: AgRg no Ag n. 810.876-PR, Relatora
Ministra Maria Isabel Gallotti, DJe 4.11.2010).
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 525
Portanto, neste ponto, não se pode acolher a argumentação expendida nas
razões do especial, pois, além de o advogado substabelecido, com reserva de
poderes, não ter assentido com a transação realizada entre os recorrentes e o seu
mandante - Unibanco -, motivo pelo qual os efeitos jurídicos daquela avença
não lhe atinge, possui ele, inegavelmente, a seu favor título executivo judicial,
alusivo aos honorários sucumbenciais, a cargo da parte sucumbente, e, reitere-se,
tudo o que foi fi xado em comando judicial já transitado em julgado.
3. Remanesce, contudo, a questão atinente ao ajuizamento de ação executiva
de título judicial, no intuito de receber honorários advocatícios sucumbenciais,
pelo advogado substabelecido, com reserva de poderes, sem a anuência do
procurador substabelecente.
O art. 26 da Lei n. 8.906/1994 é claro em vedar qualquer cobrança de
honorários advocatícios por parte do advogado substabelecido, com reserva de
poderes, sem a anuência do procurador substabelecente.
Pela pertinência ao deslinde da controvérsia, transcreve-se o teor do
dispositivo legal sob comento:
Art. 26. o advogado substabelecido, com reserva de poderes, não pode cobrar
honorários sem a intervenção daquele que lhe conferiu o substabelecimento.
Sobressai evidente a fi nalidade da norma, destinada a coibir possíveis
atitudes antiéticas cometidas por um causídico contra outro, pois, levando-
se em conta que ambos os advogados - substabelecente e substabelecido -
encontram-se atuantes no feito, a considerar a extensão do substabelecimento
(com reserva de poderes), eventual cobrança de honorários deve ser efetivada,
necessariamente, em conjunto pelos procuradores, ou, ao menos, mediante
a demonstração da inequívoca ciência dessa providência pelo causídico que
substabeleceu.
No ponto, oportunas as considerações exaradas pelo eminente Min.
Eduardo Ribeiro, por ocasião do julgamento do REsp n. 65.942-SP, sobre a
aplicação do art. 101 da Lei n. 4.215/1963, cujo conteúdo normativo assemelha-
se ao do art. 26 da Lei n. 8.906/1994:
As razões recursais baseiam-se em violação ao art. 101 da Lei n. 4.215/1963,
que dispõe: “O advogado ou provisionado, substabelecido com reserva de
poderes, não pode cobrar honorários sem a intervenção daquele que lhe conferiu
o substabelecimento.”
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
526
A solução do presente caso, passa pela interpretação sistemática e teleológica
da norma, segundo a qual o mandamento se apresenta como protetor dos valores
éticos da profi ssão, visando a disciplinar o relacionamento entre substabelecente
e substabelecido, tendo como objeto de preocupação a ética profi ssional e não o
vínculo de cada um, em separado, com o mandante. Como salienta o recorrido,
o fim da norma invocada ajusta-se ao disposto no antigo Código de Ética
Profi ssional, seção VIII, inciso IV:
O advogado substabelecido com reserva de poderes deve ajustar sua
remuneração com o colega que lhos outorgou. (grifo deste subscritor)
Desta forma, buscou o Legislador impedir o locupletamento ilícito
por parte do advogado substabelecido, pois a intervenção do procurador
substabelecente mostra-se fundamental para o escorreito cumprimento do pacto
celebrado entre os causídicos.
Ao afastar o referido mecanismo de controle, os interesses do procurador
substabelecente restariam desguarnecidos, porquanto o possível pagamento ao
advogado substabelecido, inclusive em quantia acima da convencionada entre os
causídicos, só poderia ser revertida em outra demanda judicial promovida pelo
patrono substabelecente prejudicado.
A respeito do tema, importa mencionar o entendimento de Marco Tulio
de Rose:
O substabelecimento com reservas cria um autêntico litisconsórcio necessário
entre os advogados que atuaram na causa, para fi ns de cobrança dos honorários. O
juiz da causa, em que se discutirem ou executarem os honorários, não poderá dar
prosseguimento ao processo sem que sejam chamados a integrar o pólo processual
ativo da demanda todos os advogados que estejam nesta condição, sob pena de
nulidade do próprio feito. (ROSE, Marco Tulio de, Comentários ao estatuto da
advocacia e da ordem dos advogados do brasil - oab. Org: CORRÊA, Orlando de
Assis. Rio de Janeiro: Aide, 1997, p. 113.) (grifo deste subscritor)
Na mesma linha, encontra-se o escólio de Paulo Lôbo:
O advogado que receber substabelecimento com reserva de poderes não
pode cobrar os honorários diretamente do cliente nem estabelecer com este
qualquer tipo de acordo de recebimento. Exige-se a intervenção necessária do
colega que substabeleceu, porque o substabelecimento se deu em caráter de
confi ança, mantendo-se aquele no patrocínio e direção principal da causa ou
questão. É regra de natureza ética, cuja infração está sujeita a pena disciplinar.
Conseqüentemente, o advogado que recebeu o substabelecimento não pode
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 527
executar isoladamente os honorários, devendo fazê-lo sempre em conjunto
com o outro. (LÔBO, Paulo. Comentários ao estatuto da advocacia e da oab. 4ª ed.
São Paulo: Saraiva, 2007, p. 152.) (grifo deste subscritor)
Em atenção ao supracitado regramento legal, destaca-se precedentes desta
Quarta Turma, nos quais se reconheceram a imprescindibilidade da intervenção
do procurador substabelecente para que haja a cobrança de honorários
advocatícios por parte do advogado substabelecido, com reserva de poderes.
A propósito:
Agravo regimental nos embargos de declaração no agravo regimental no
recurso especial. Recurso especial da Warner Brothers South Incorporation.
Alegação de ilegitimidade ativa. Fato incontroverso.
Condição da ação. Matéria de ordem pública. Extinção do processo nos termos
do artigo 267, inciso VI do Código de Processo Civil. A hipótese em exame não
enseja o reexame de questão de prova, o que é vedado pela Súmula n. 7-STJ, mas
sim a revaloração da prova.
Inexistência de contrato firmado entre as partes. Substabelecimento com
reservas de poderes. O advogado substabelecido, com reserva de poderes, não pode
cobrar honorários sem a intervenção daquele que lhe conferiu o substabelecimento.
Artigo 26 do Estatuto da OAB.
Precedentes. Agravo regimental improvido. (AgRg nos EDcl no AgRg no REsp
n. 1.122.461-SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em
22.6.2010, DJe 30.6.2010) (grifo deste subscritor).
Honorários advocatícios. Substabelecimento. Ação de arbitramento. Divisão.
Substabelecidos. Impropriedade.
1 - Na ação de arbitramento, quando não houver contrato formal e
escrito convencionando honorários advocatícios, o destinatário do quantum
encontrado é o advogado contratado (verbalmente). A relação entre ele e os
colegas substabelecidos é pessoal e, portanto, o valor que cabe a cada um depende
da estipulação entre os causídicos e não se inscreve no âmbito do arbitramento.
Interpretação do art. 26 da Lei n. 8.906/1994.
2 - Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, provido para
assegurar ao recorrente o recebimento do valor total dos honorários advocatícios
arbitrados. (REsp n. 525.671-RS, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, Quarta Turma,
julgado em 13.5.2008, DJe 26.5.2008).
Civil e Processual. Agravo regimental. Agravo de instrumento. Ação
indenizatória. Ressarcimento de verba decorrente de demanda procedente.
Mandato judicial. Contrato. Legitimidade passiva.
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
528
Intenção de compensar honorários de sucumbência pelo substabelecido.
Art. 26 do EOAB. Revisão. Reexame de provas e contrato. Súmulas n. 5 e n. 7-STJ.
Agravo desprovido. (AgRg no Ag 1.367.310-PR, Rel. Ministro Aldir Passarinho
Junior, Quarta Turma, julgado em 15.3.2011, DJe 18.3.2011).
Na hipótese dos autos, não se divisa a existência de peculiaridade a justifi car
a não aplicação da jurisprudência desta Corte Superior, que exige a observância
do aludido preceptivo legal, pois a aquiescência do procurador substabelecente
mostra-se fundamental para o escorreito cumprimento do pacto celebrado entre
os causídicos, a fi m de que o patrono substabelecido, ao cobrar os honorários
advocatícios, não o faça sem dar saber ao outro profi ssional que manteve reserva
de poderes. Incide, portanto, a clássica a regra de hermenêutica, segundo a qual
onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete tecer qualquer discriminação.
Desse modo, a intervenção do procurador substabelecente é imprescindível
para a instauração do processo executivo, razão pela qual a sua ausência constitui
óbice intransponível a impedir o prosseguimento da execução ajuizada pelo
advogado substabelecido, com reserva de poderes.
4. Entretanto, não se afi gura correta a extinção da presente execução, como
requerido pelos ora recorrentes.
É que, em se tratando de um litisconsórcio necessário, curial a intervenção
do procurador substabelecente, para, nos termos do parágrafo único do artigo
47 do Código de Processo Civil, determinar-se a citação deste.
Não se olvida a existência de divergência doutrinária e jurisprudencial
quanto à admissibilidade de formação de litisconsórcio necessário no pólo
ativo da demanda, especialmente por tangenciar interesses constitucionalmente
controvertidos, o direito de agir (de acionar), de um lado, e a liberdade de não
demandar, do outro.
Efetivamente, na hipótese em que o exercício de determinando direito
de alguém encontre-se condicionado ao ingresso no Poder Judiciário por
outrem, seja em virtude de lei, ou em razão da relação jurídica material existente
entre os litisconsortes, é de se admitir, em caráter excepcional, a formação de
litisconsórcio ativo necessário.
Nessa linha de entendimento, extrai-se do voto condutor proferido pelo
eminente Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, exarado por ocasião do
julgamento REsp n. 141.172-RJ, DJ. 13.12.1999, as seguintes considerações:
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 529
o tema da admissibilidade ou não do litisconsórcio ativo necessário envolve
limitação ao direito constitucional de agir, que se norteia pela liberdade de
demandar, devendo-se admiti-lo apenas em situações excepcionais. Não se pode
excluir completamente a possibilidade de alguém integrar o pólo ativo da relação
processual, contra a sua vontade, sob pena de restringir-se o direito de agir da
outra parte, dado que o legitimado que pretendesse demandar não poderia fazê-
lo sozinho, nem poderia obrigar o co-legitimado a litigar conjuntamente com ele.
Fora das hipóteses expressamente contempladas na lei (verbi gratia, art. 10, CPC),
a inclusão necessária de demandantes no pólo ativo depende da relação de direito
material estabelecida entre as partes. Antes de tudo, todavia, é preciso ter em conta a
excepcionalidade em admiti-la, à vista do direito constitucional de ação.
Conforme anteriormente assinalado, o artigo 26 do EAOB exige, para a
cobrança de honorários advocatícios efetivada pelo advogado substabelecido,
com reserva de poderes, a intervenção daquele que lhe conferiu o estabelecimento,
necessariamente.
Por determinação legal, portanto, afi gura-se imprescindível a ciência do
advogado substabelecente para viabilizar a execução dos honorários advocatícios
promovida pelo procurador substabelecido, com reserva de poderes, sob pena de
carência da ação.
O regramento legal, nestes termos postos, a pretexto de preservar
o comportamento ético entre os causídicos quanto ao recebimento dos
honorários, não pode importar, simultaneamente, em desmedida subordinação
do substabelecido em relação ao substabelecente, de forma, inclusive, a obstar
o exercício daquele direito (percepção de honorários sucumbenciais, como
contraprestação do labor desempenhado pelo causídico), indistintamente.
Na hipótese ora em foco, o procurador substabelecente não fi gurou, de
início, no polo ativo da demanda, tampouco foi instado, pelo magistrado, de
ofício, a integrá-lo.
Aliás, no contexto dos autos, não é desarrazoado antever, possivelmente,
a própria falta de interesse daquele em compor a lide, pois mantém vínculo
empregatício com o seu mandante - Unibanco (fl s. 519-521, e-STJ). Como já
dito anteriormente, houve transação entre os recorrentes - Cerealista Palotinense
Ltda. e outros - e o Unibanco, partes originárias nas ações judiciais, que foram
sentenciadas em favor da instituição fi nanceira, a fi m de pôr termo ao processo
executivo e declarar satisfeito o crédito da casa bancária decorrente das referidas
ações judiciais (fl s. 357-358, e-STJ). No termo de transação fi rmado pelos
recorrentes - Cerealista Palotinense Ltda. e outros - e o Unibanco (fl s. 357-358,
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
530
e-STJ), este assumiu a responsabilidade pelo pagamento dos honorários de
seus causídicos. Ainda que esta circunstância, como asseverado no tópico
próprio, afigure-se irrelevante para a execução sob comento, é duvidoso o
interesse do referido advogado em ingressar na lide, nos termos do art. 26 da
Lei n. 8.906/1994, já que a sua adesão confl itaria com a declaração de vontade
assumida por seu empregador.
Não obstante, independente da razão pela qual o advogado substabelecente
não tenha composto inicialmente o polo ativo da demanda, sua ausência não
enseja a imediata extinção do feito, sem julgamento de mérito. Nos termos do
parágrafo único do artigo 47 do Código de Processo Civil, deve o juiz, ainda que
de ofício, determinar a citação daquele, para cientifi cá-lo da existência da lide,
oportunizando eventual integração no polo ativo da demanda, posicionando-se
de acordo com os seus interesses.
Sobre o tema, destaca-se o escólio de Cassio Scarpinella Bueno:
Diante da ausência de um dos litisconsortes necessários, portanto, toda a
atividade jurisdicional a ser produzida tende à inutilidade do ponto de vista de
sua efi cácia, sendo, no particular, bastante clara a regra do parágrafo único do art.
47 do Código de Processo Civil.
Para evitar este desperdício de forças e de tempo, deve o juiz determinar, com
fundamento no art. 47, parágrafo único, do Código de Processo Civil, a sanção
das irregularidades que entender ocorrentes no prazo a fi xar: “o princípio do
aproveitamente, ligado ao da economia processual, tem orientado decisões no
sentido de não dever, em caso de ausência de litisconsorte necessário, ser extinto
o processo. Cabe o juiz mandar citar o litisconsorte faltante.”
[...]
Muito se discute em doutrina se o parágrafo único aplica-se também aos casos
em que o litisconsórcio faltante pertence ao pólo ativo da relação processual. A
grande preocupação identifi cada pelos autores é no sentido de que ninguém
pode obrigar ninguém a litigar em juízo e, mais ainda, porque o dispositivo refere-
se à citação do litisconsorte, realidade inconcebível para um autor.
A razão parece estar com aqueles que entendem que também para o litisconsórcio
necessário ativo a “convocação” do autor faltante faz-se necessária sob as penas
do parágrafo único. A “citação” a que a lei se refere pode ser entendida como mera
integração de alguém à relação processual, sem que isto signifi que qualquer prejuízo
para o sistema. É sufi ciente que a alguém seja dada ciência de que há uma ação
pende para que esteja a ela vinculado. Basta esta providência para que a relação
processual fi que completa a isenta de qualquer espécie de vício ou defeito (parte
plúrima). O agir em juízo deste autor, o litisconsorte necessário faltante, ademais, é,
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 531
como todo agir, ônus, faculdade, nunca obrigatoriedade. Neste sentido, afasta-se a
queixa de que alguém estaria sendo obrigado a efetiva e concretamente litigar em
juízo. Eventuais prejuízos que aquele que vai a juízo causar para o litisconsorte que,
não obstante “citado”, deixou de atuar é questão que, eventualmente, pode ensejar a
propositura de outra ação entre os litisconsortes.
A extinção do processo, medida extrema reservada para a hipótese pelo fi nal do
parágrafo único do art. 47, só será decretada na inércia do autor quando a promover
a “citação” dos litisconsortes necessários. (BUENO, Cassio Scarpinella. Partes e
terceiros no processo civil brasileiro. 2ª ed. São Paulo:Saraiva, 2006, p. 141-142.)
Percuciente mostra-se a lição de Cândido Rangel Dinamarco:
Há realmente casos nos quais o respeito à garantia da ação impede a exigência
do litisconsórcio ativo apesar da incidibilidade das situações compartilhadas por
vários sujeitos; mas outros há também nos quais o resultado a ser pleiteado mediante
o processo há de ser necessariamente querido por todos, sob pena de não poder ser
obtido por nenhum. Nesses casos o consenso é indispensável. Ou seja: há casos em
que o litisconsórcio ativo unitário e facultativo mas isso não signifi ca que não
sobre espaço algum para o litisconsórcio unitário e necessário.
Essa afirmação é feita em virtude de existirem, no plano do direito material,
situações em que é de duas ou várias pessoas, em conjunto e não isoladamente, a
legitimidade para realizar certos atos que serão relevantes para todas elas. Sirvam
como exemplos de litisconsórcio ativo realmente necessário:
[...]
Como é notório e está no parágrafo do art. 47 do Código de Processo Civil,
quando o litisconsórcio for necessário o provimento jurisdicional demandado só
poderá ser proferido se estiverem na relação processual todos os colegitimados,
extinguindo-se o processo se faltarem e sua inclusão não for adequadamente
providenciada. A satisfação da exigência litisconsorcial pode acontecer quase
imperceptivelmente e sem incidente algum, se a demanda for ajuizada por todos
os legitimados ativos, abrangendo também todos os passivos: citados estes e
pouco importando que venham a responder ou não, a exigência estará satisfeita e
por esse aspecto nada haverá a corrigir ou providenciar no processo.
Incidentes surgirão quando a petição inicial não satisfi zer por inteiro os ditames
do litisconsórcio necessário – quer ativo ou passivo.
Dando pela manifesta ilegitimidade de parte, caracterizada pela falta de um
litisconsorte necessário (supra, n. 81), haveria o juiz, em princípio, de indeferir a
petição inicial (CPC, art. 295, inc. II). Não o fará desde logo, porém. Já nessa fase ele
dará a solução indicada pelo parágrafo do art. 47, ordenando “ao autor que promova
a citação de todos os litisconsortes necessários, dentro do prazo a citação de todos os
litisconsortes necessários, dentro do prazo que assinar, sob pena de declarar extinto
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
532
o processo” [...]. Se não o tiver feito assim liminarmente, fá-lo-á a qualquer tempo do
processo.
[...]
Ocorre mais frequentemente, no entanto, que a petição inicial é deferida e o
réu citado, apesar da inobservância da regra da necessariedade (a intervenção
voluntária do colegitimado omisso é fato de extrema raridade). Às vezes o
demandado apercebe-se do vício da demanda e, convindo-lhe denunciá-lo,
faz a alegação ao contestar: tal é a excpetio plurium listisconsortium, de que fala
a doutrina. E sucede também que outras vezes o réu não faz essa alegação e
o próprio juiz, espontaneamente, dá pela falta do litisconsorte. Em ambas as
hipóteses, teremos chegado à fase ordinatória do procedimento ordinário.
Entre os vícios capazes de impedir o julgamento do mérito está o de que
tratamos, como defl ui da interpretação conjugada do art. 327 (“irregularidades ou
nulidades sanáveis”) com o art. 267, inc. VI (extinção do processo sem julgamento
do mérito, em virtude da carência de ação) e ainda do que dispõe o parágrafo
do art. 47. Se o réu tiver feito a alegação, cumprirá o juiz dar ao autor o prazo de
dez dias para dizer, “permitindo-lhe a produção de prova documental” (art. 327).
Após isso, ou sem alegação do réu, convencendo-se o juiz da necessariedade
do litisconsórcio, dará então ordem que o parágrafo do art. 47 determina; estará
determinando, em outros termos, que se supra uma nulidade sanável (art.
327), pois de outra natureza não é a que decorre da ausência de litisconsortes
necessários.
[...]
Foi em atenção à natureza cogente das normas de exigência do litisconsórcio
necessário que acima se disse que essa determinação é uma daquelas que a
lei qualifi ca como providências preliminares; embora específi ca e determinada
em específico dispositivo legal fora do capítulo reservado a estas (arts. 323-
328), tal determinação partilha de sua natureza e do espaço de impedir que o
processo caminhe eivado de vício. Seja lembrada a inquisitividade que preside às
providências preliminares em geral, a qual se liga justamente ao caráter cogente
das normas cuja efetividade se visa a preservar.
Não determinado a integração do litisconsórcio, o que deverá fazer a requerimento
ou de-ofício, incorrerá o juiz em grave error in procedendo e permitirá que o processo
leve consigo uma nulidade que depois poderá pô-lo a perder (infra, nn. 115 ss).
(DINAMARCO, Cândido Rangel. Litisconsórcio. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p.
258-285) (grifo deste subscritor).
Igualmente, veja-se o posicionamento de Luiz Guilherme Marinioni:
A obrigatoriedade da formação de litisconsórcio diz respeito à legitimação
para agir em juízo, dependendo da citação de todos os consortes para a causa
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 533
a efi cácia da sentença. Estando ausente litisconsorte necessário ativo, tem o juiz
de determinar a sua citação de ofício (intervenção iussu iudicis). (MARINONI, Luiz
Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil comentado artigo por
artigo. 2º ed. São Paulo: RT, 2010, p. 133.)
Desta sorte, a extinção da execução pela inobservância do art. 26 da Lei n.
8.906/1994 deixará a pretensão do advogado substabelecido desguarnecida de
tutela jurisdicional; porque, impedido de cobrar os honorários sucumbenciais dos
recorrentes, ante a inobservância do comando legal, o causídico substabelecido,
também, não poderá fazê-lo contra o mandante ou o procurador substabelecente,
já que estes não suportaram nenhum ônus sucumbencial. Ocorrerá, assim,
um enriquecimento indevido dos recorrentes, pois deixarão de pagar verba de
caráter alimentar àquele causídico que efetivamente labutou na condução do
processo.
Em observância ao parágrafo único do artigo 47 do Código de Processo
Civil, destaca-se os seguintes precedentes:
Embargos de divergência. Mandado de segurança. Litisconsórcio passivo
necessário. Citação. Necessidade. Nulidade do processo. Intimação do autor para
suprir a balda.
Para decretar-se a extinção do processo há de preceder-se à providência de
que trata o parágrafo único, do art. 47, do CPC.
Inerte o autor, impõe-se a extinção do feito.
Prejudicado o agravo regimental.
Embargos conhecidos e desprovidos. (EREsp n. 209.111-MG, Rel. Ministro José
Arnaldo da Fonseca, Corte Especial, julgado em 28.11.2002, DJ 19.12.2002). E
ainda: AgRg no RMS n. 15.939-PR, Relator Gilson Dipp, Quinta Turma, DJ 6.10.2003;
AgRg no RMS n. 39.040-TO, Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira
Turma, DJe 14.12.2012; AgRg na AR n. 4.429-MG, Relator Ministro Benedito
Gonçalves, Primeira Seção, DJe 1º.2.2012; REsp n. 1.159.791-RJ, Relator Ministro
Luiz Fux, Primeira Turma, DJe 25.2.2011.
Ademais, não se afi gura correta a extinção da presente execução, como
requerido pelos ora recorrentes, tendo em vista os princípios da economia dos
atos processuais, da instrumentalidade do processo e de sua duração razoável,
bem como da inafastabilidade da jurisdição.
Cuida-se de execução que tramita há mais de 13 (treze) anos, na qual o
exequente faleceu ao longo de seu curso, sendo o polo ativo ocupado atualmente
pelo seu espólio.
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
534
A par disso, cumpre destacar que os atos processuais devem ser praticados
de modo a propiciar o alcance da marcha processual na consecução de uma
prestação jurisdicional efetiva e justa. Nesta medida, as formalidades regentes do
processo civil não podem ser concebidas como fi ns em si mesmo, pois o direito
material das partes não pode ser relegado, em exacerbado destaque da liturgia
destinada a disciplinar o caminho jurídico do exercício da jurisdição.
Desse modo, a repetição de atos processuais que já alcançaram a sua
finalidade é veementemente repudiada tanto pela doutrina quanto pela
jurisprudência, pois, além de afl igir a parte com a repetição de atos de conteúdo
vazio, estende desarrazoadamente o fi m do processo, sobrecarregando o sistema
jurídico e enfraquecendo a sua credibilidade perante a sociedade.
Na hipótese em foco, a dívida requerida se refere a honorários
sucumbenciais, executados pelo advogado substabelecido, com reserva de poderes,
que, segundo o acórdão hostilizado, atuou exclusivamente nas ações judiciais das
quais se extraem os títulos judiciais ora executados, sem qualquer participação do
procurador substabelecente (fl . 794, e-STJ).
Portanto, a formalidade requerida pelo o art. 26 da Lei n. 8.906/1994
é facilmente atendida pelo retorno dos autos à origem, para que o exequente
promova a citação do procurador substabelecente, a fi m de que este tome ciência
a respeito do processo executivo. Neste ponto, poderá o patrono substabelecente
ingressar na lide, caso assim queira e as suas circunstâncias profissionais
permitam, ou apenas se abster de fazê-lo (caso em que sequer responderia por
eventuais verbas sucumbenciais, por não ter dado causa à demanda).
Tal solução do caso atende a finalidade ética da norma em análise,
bem como preserva os atos processuais até então praticados, em atenção aos
princípios da instrumentalidade do processo e da inafastabilidade da jurisdição.
5. Do exposto, não conheço do recurso especial adesivo interposto por
Genésio Neilôr Finger - Espólio e dou parcial provimento ao apelo nobre aviado
por Cerealista Palotinense Ltda. e outros, a fi m de determinar o retorno dos autos
ao Juízo de Direito de origem, para se intimar o exequente, no intuito de que
este promova a citação do procurador substabelecente em 20 (vinte) dias, nos
termos do parágrafo único do art. 47 do Código de Processo Civil.
É como voto.
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 535
RECURSO ESPECIAL N. 1.163.267-RS (2009/0206097-0)
Relator: Ministro Luis Felipe Salomão
Recorrente: Luiz Camilo Teixeira
Advogado: Claudio Gonsiorocki Mombru e outro(s)
Recorrido: Fundação BrTPREV
Advogado: Fabrício Zir Bothomé e outro(s)
EMENTA
Processual Civil. Ação rescisória. Sentença rescindenda.
Julgamento contrário a entendimento sumulado no STJ (Súmula n.
289). Dissídio jurisprudencial superado. Súmula n. 343-STF. Não
incidência. Segurança jurídica. Uniformidade e previsibilidade da
prestação jurisdicional. Necessidade.
1. A principiologia subjacente à Súmula n. 343-STF é
consentânea com o propósito de estabilização das relações sociais e,
mediante a acomodação da jurisprudência, rende homenagens diretas
à segurança jurídica, a qual é progressivamente corroída quando a
coisa julgada é relativizada.
2. Porém, o desalinho da jurisprudência - sobretudo o deliberado,
recalcitrante e, quando menos, vaidoso - também atenta, no mínimo,
contra três valores fundamentais do Estado Democrático de Direito:
a) segurança jurídica, b) isonomia e c) efetividade da prestação
jurisdicional.
3. A Súmula n. 343-STF teve como escopo a estabilização da
jurisprudência daquela Corte contra oscilações em sua composição,
para que entendimentos fi rmados de forma majoritária não sofressem
investidas de teses contrárias em maiorias episódicas, antes vencidas.
Com essa providência, protege-se, a todas as luzes, a segurança jurídica
em sua vertente judiciária, conferindo-se previsibilidade e estabilidade
aos pronunciamentos da Corte.
4. Todavia, definitivamente, não constitui propósito do
mencionado verbete a chancela da rebeldia judiciária. A solução oposta,
a pretexto de não eternizar litígios, perpetuaria injustiças e, muito
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
536
pelo contrário, depõe exatamente contra a segurança jurídica, por
reverenciar uma prestação jurisdicional imprevisível, não isonômica e
de baixa efetividade.
5. Assim, a Súmula n. 343-STF não obsta o ajuizamento de ação
rescisória quando, muito embora tenha havido dissídio jurisprudencial
no passado sobre o tema, a sentença rescindenda foi proferida já sob
a égide de súmula do STJ que superou o mencionado dissenso e se
fi rmou em sentido contrário ao que se decidiu na sentença primeva.
6. Recurso especial provido para, removendo-se o óbice da
Súmula n. 343-STF, determinar o retorno dos autos à Corte Estadual
para que se prossiga no julgamento da ação rescisória.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros da Quarta Turma
do Superior Tribunal de Justiça acordam, na conformidade dos votos e das notas
taquigráfi cas a seguir, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos
termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Raul Araújo Filho,
Maria Isabel Gallotti e Antonio Carlos Ferreira votaram com o Sr. Ministro
Relator.
Ausente, justifi cadamente, o Sr. Ministro Marco Buzzi.
Brasília (DF), 19 de setembro de 2013 (data do julgamento).
Ministro Luis Felipe Salomão, Relator
DJe 10.12.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão: 1. Luiz Camilo Teixeira, inicialmente,
ajuizou em 2004 ação em face de BrTPREV, objetivando recebimento da
diferença de reserva de poupança segundo índices de correção monetária que
contemplassem a real infl ação do período, bem como as contribuições patronais.
O Juízo sentenciante, em agosto de 2005, julgou improcedente o pedido
deduzido pelo autor, por entender cabível a restituição dos valores pagos
aos associados segundo os índices previstos nos estatutos e regulamentos da
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 537
entidade, tendo sido rejeitado também o pedido de devolução das contribuições
do empregador. O autor afi rmou que, em razão de erro na publicação, a sentença
acabou transitando em julgado.
Por isso, ajuizou então a presente ação rescisória perante o Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS), objetivando o reconhecimento
de violação a literal disposição de lei (art. 485, inciso V, do CPC), notadamente:
art. 31, inciso VIII e § 2º, do Decreto n. 81.240/1978; arts. 14, 17 e 19 da LC
n. 109/2001; MP n. 2.159/2001; arts. 421, 422 e 884 do Código Civil; arts. 3º,
inciso IV, 5º, caput, e inciso XXXVI, e 150, inciso IV, da Constituição Federal. O
autor sustentou que, à época em que a sentença de improcedência foi proferida,
já havia jurisprudência sólida do Superior Tribunal de Justiça a acolher sua
pretensão (Súmula n. 289).
O TJRS, invocando a Súmula n. 343-STF, julgou improcedente o pedido
deduzido na ação rescisória nos termos da seguinte ementa:
Ação rescisória. Violação à literal dispositivo de lei. Inocorrência. Inépcia da
inicial e trânsito em julgado. Preliminares rejeitadas.
Verificando-se que a decisão rescindenda pautou-se pela legalidade, em
que pese tenha firmado posição contrária à atual jurisprudência acerca do
alegado direito de receber o associado as diferenças da correção monetária plena
incidente sobre o resgate das contribuições vertidas ao plano, não há falar em
literal violação a dispositivos legais a ensejar a desconstituição da autoridade da
coisa julgada, com fundamento no art. 485, V, do CPC.
Preliminares rejeitadas.
Ação rescisória julgada improcedente (fl . 845).
Opostos embargos de declaração (fl s. 858-862), foram rejeitados (fl s. 864-
869).
Sobreveio então recurso especial apoiado na alínea a do permissivo
constitucional, no qual se alegou, preliminarmente, ofensa aos arts. 126, 131 e
535 do Código de Processo Civil, e, no mérito, ao art. 485, inciso V, do mesmo
diploma, sustentando-se inaplicabilidade da Súmula n. 343-STF e, ademais, a
ocorrência de ofensa literal aos dispositivos de lei apontados na exordial.
Contra-arrazoado (fl s. 893-907), o especial foi admitido (fl s. 910-913).
É o relatório.
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
538
VOTO
O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão (Relator): 2. Não há ofensa aos
arts. 126 e 535 do Código de Processo Civil, pois o Tribunal a quo dirimiu as
questões pertinentes ao litígio, afi gurando-se dispensável que o órgão julgador
venha a examinar uma a uma as alegações e fundamentos expendidos pelas
partes, bastando-lhe que decline as razões jurídicas que embasaram a decisão,
sem necessidade de que se reporte de modo específi co a determinados preceitos
legais. No caso, o julgamento dos embargos de declaração apenas se revelou
contrário aos interesses do recorrente, circunstância que não confi gura omissão,
contradição ou obscuridade.
No mais, a tutela jurisdicional foi efetivamente prestada, apenas em
desconformidade com os interesses do recorrente, circunstância que não revela
nenhuma irregularidade no julgamento a quo.
3. Quanto ao cerne do recurso, a controvérsia diz respeito ao cabimento
de ação rescisória contra sentença que julgou improcedente pedido deduzido
pelo ora recorrente, dos quais se destaca aquele referente a devolução de sua
reserva de poupança com correção plena, segundo índices que refl itam a real
desvalorização da moeda. No fundo, o cerne da controvérsia é quanto ao real
sentido e alcance da Súmula n. 343-STF.
A sentença rescindenda, proferida em agosto de 2005, na parte que
interessa, está assim fundamentada:
Não obstante o dissídio jurisprudencial que grassa a respeito do tema, o que
se reconhece, fi lio-me à corrente que entende estarem os fundos de previdência
privada fechada obrigados a restituir a seus associados apenas e exclusivamente
o que de seus estatutos e regulamentos se encontrar previsto. Especialmente
quando se considera o caráter voluntário, isto é, não compulsório, de adesão a tais
planos pelos funcionários, nos termos do art. 11 do aludido diploma.
Solução que enveredasse por outros caminhos, concedendo índices de
reajustes não previstos, certamente causaria desequilíbrio nas contas da FCRT e, a
médio prazo, levaria-a à insolvência, por desequilíbrio atuarial.
Os índices de correção monetária adotados obedeceram, o que a demandante,
aliás, não questiona, ao que dispõe o Estatuto da FCRT (art. 127, § 1º), ou seja,
OTN, BTN e TR. Lícito não lhe era, portanto, adotar IGPM, IPC ou outro qualquer,
como pretendido pelo suplicante (fl . 424).
O magistrado de piso também transcreveu ementas de julgados dos anos
de 1997 a 2000.
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 539
No julgamento da ação rescisória, por sua vez, o Tribunal a quo, em essência,
acolheu o parecer do Ministério Público, que obstava o pleito rescisório com
fulcro na Súmula n. 343-STF:
Da análise dos autos infere-se que o Magistrado de origem, ao julgar
improcedente a ação ordinária movida pelo autor, afi rmou que, “não obstante o
dissídio jurisprudencial que grassa a respeito do tema, o que se reconhece, fi lio-
me à corrente que entende estarem os fundos de previdência fechada obrigados
a restituir a seus associados apenas e exclusivamente o que de seus estatutos e
regulamento se encontrar previsto. Especialmente quando se considera o caráter
voluntário, isto é, não compulsório, de adesão a tais planos pelos funcionários,
nos termos do art. 11 do aludido diploma.” Logo, verifi ca-se que, acerca do tema,
há divergência na jurisprudência, tanto que foram colacionados à sentença
julgados que corroboram o entendimento adotado.
Portanto, estando a decisão rescindenda baseada em texto de lei com
interpretação controvertida em nossas cortes, não há que se falar em violação à
literal disposição de lei. Nesse sentido é o entendimento sumulado do Colendo
Supremo Tribunal Federal, segundo o Verbete n. 343, in verbis:
Súmula n. 343. Não cabe ação rescisória por ofensa à literal disposição
de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de
interpretação controvertida nos Tribunais.
Ademais, pretende o demandante, em verdade, a discussão, em ação rescisória,
de matéria já discutida na ação ordinária, na qual, após intimado da decisão que
rejeitou os embargos declaratórios opostos, não interpôs recurso, deixando
transcorre in albis o prazo contra-recursal. Contudo, é incabível a rediscussão de
matéria em ação rescisória, sob pena de ampliar-se, em demasiado, o objeto do
juízo rescindendo, transformando-se a ação rescisória em sucedâneo recursal.
Outrossim, a interpretação dos fatos e do direito contrariamente aos interesses
do autor, consubstanciada em entendimento jurisprudencial divergente, o
que efetivamente ocorreu quando da prolação da sentença rescindenda, não
confi gura violação à literal disposição de lei, sendo, portanto, inadmissível, ante
as hipóteses taxativamente elencadas na lei processual civil, o manejo da ação
rescisória. Nesse sentido é a lição trazida por Theotônio Negrão e José Roberto F.
Gouvêa na obra Código de Processo Civil e legislação processual em vigor, 38 ed.,
Ed. Saraiva, p. 567-568, item 20, em comentário ao art. 485, inciso V, do Código de
Processo Civil, citando julgado do Superior Tribunal de Justiça, in verbis:
Para que a ação rescisória fundada no art. 485, V, do CPC prospere, é
necessário que a interpretação dada pelo “decisum” rescindendo seja de
tal modo aberrante que viole o dispositivo legal em sua literalidade. Se, ao
contrário, o acórdão rescindendo elege uma dentre as interpretações cabíveis,
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
540
ainda que não seja a melhor, a ação rescisória não merece vingar, sob pena
de tornar-se recurso ordinário com prazo de interposição de dois anos (RSTJ
93/146),
Em face do exposto, opina o Ministério Público de Segundo Grau seja julgada
improcedente a presente ação rescisória, nos termos deste parecer. (fl s. 851-853).
Percebe-se, portanto, que a controvérsia de fundo, ao que tudo indica,
conduziria a solução favorável ao recorrente, sendo matéria sumulada que “[a]
restituição das parcelas pagas a plano de previdência privada deve ser objeto de
correção plena, por índice que recomponha a efetiva desvalorização da moeda”
(Súmula n. 289), contrariamente ao que entendeu o Juízo de primeiro grau, que
abraçou entendimento segundo o qual seria possível aplicar os índices previstos
no estatuto da entidade, muito embora em descompasso com a infl ação.
4. Primeiramente, embora não seja nem o cerne da controvérsia nem o
fundamento principal desenvolvido na origem, houve no julgamento a quo
uma insinuação de que a ausência de interposição de recurso de apelação
consubstanciaria - no mínimo como reforço de argumentação - um óbice ao
ajuizamento da ação rescisória, tese essa que há tempos é rechaçada no âmbito
desta Corte, na esteira da Súmula n. 514-STF: “Admite-se ação rescisória
contra sentença transitada em julgado, ainda que contra ela não se tenha
esgotado todos os recursos”.
No âmbito interno, confi ram-se os seguintes precedentes: AR n. 2.845-RS,
Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 14.9.2011; REsp n.
1.095.436-RS, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 28.2.2012;
AgRg no REsp n. 1.059.945-MG, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques,
Segunda Turma, julgado em 18.12.2008, DJe 16.2.2009.
5. Cumpre destacar que a sentença rescindenda - que colaciona paradigmas
julgados entre os anos de 1997 e 2000, a maioria do próprio TJRS - foi prolatada
em agosto de 2005, depois de já consolidada a jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça em sentido contrário, inclusive com a edição da Súmula n.
289, que ocorreu em abril de 2004. Ou seja, o magistrado manteve entendimento
contrário, a despeito de matéria já sumulada no âmbito do Superior Tribunal de
Justiça.
Nesse passo, parece certo que a estabilização dos litígios é providência
útil e absolutamente necessária à própria convivência social e à manutenção da
segurança jurídica, que é valor essencial a todo sistema jurídico minimamente
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 541
desenvolvido, sob pena de o passado estar sempre a comparecer com uma
coleção de surpresas desestabilizadoras das relações humanas. Contra isso, o
Direito estabiliza o passado e confere previsibilidade ao futuro por instrumentos
bem conhecidos de todos, entre os quais se encontra o respeito ao direito
adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada.
Revela-se claro, portanto, que a principiologia subjacente à Súmula n.
343-STF é consentânea com esse propósito de estabilização das relações sociais
e, mediante a acomodação da jurisprudência, rende homenagens diretas à
segurança jurídica, a qual é progressivamente corroída quando a coisa julgada é
relativizada, em não raras vezes.
O citado verbete tem a seguinte redação:
Súmula n. 343-STF: Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de
lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação
controvertida nos tribunais.
Roberto Rosas, no reconhecido Direito Sumular, expõe que o motivo
determinante da edição da Súmula n. 343-STF foi a necessidade de preservar o
entendimento adotado pelo Tribunal contra oscilações decorrentes de maiorias
episódicas, de modo que a composição transitória da Corte não ocasionasse, por
repetidas vezes, a alteração também de sua jurisprudência.
Eis a notícia histórica trazida na mencionada obra:
A orientação tomada pelo Min. Gonçalves de Oliveira nos EAR n. 602 deu
motivo a essa Súmula: “Entendo que não é possível, em rescisória, alterar o
julgamento proferido em grau de embargos ao recurso extraordinário, com
amplo debate, sem que se possa dizer que o julgamento é nulo por violação
de lei. O Tribunal tomou, após ampla discussão, uma interpretação razoável da
lei, fi rmada, de resto, de acordo com os precedentes. Destarte, não caberia ação
rescisória para anular a sentença anterior do Supremo Tribunal, porque, em favor
do mesmo, da tranquilidade pública, da tranquilidade jurídica, em razão mesmo
da eficácia da coisa julgada, terminou o julgamento, ainda que tomado por
maioria ocasional” (ROSAS, Roberto. Direito sumular. 13 ed. Malheiros: São Paulo,
2006, p. 149).
Esse entendimento, deveras, espelha algo por vezes esquecido, que é a
refl exão acerca da real importância dos julgamentos das Cortes Superiores e
onde, exatamente, reside sua força.
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
542
Nunca é ocioso relembrar, quanto ao tema, o magistério de Benjamin N.
Cardozo, o qual, ainda no alvorecer do século XX, ressaltava que a importância
e a força do julgamento colegiado não se hospedavam exatamente na aventada
superioridade intelectual dos juízes de Cortes colegiadas, mas na circunstância
de que, nas Cortes de justiça, ocorre o chamado “temperamento judicial”, que
emancipa o jurisdicionado do “poder sugestivo das aversões e predisposições
individuais”, de modo que a jurisprudência refl ita um vetor resultante cujo valor
sempre supere as forças singulares que o compõem:
As excentricidades dos juízes se equilibram. Um juiz examina os problemas do
ponto de vista da história; outro, do ponto de vista da fi losofi a; um terceiro, do
ponto de vista da utilidade social; um é formalista; outro, tolerante; um tem medo
de mudanças; outro está insatisfeito com o presente. Do atrito entre diversas
mentes cria-se algo que tem uma constância, uma uniformidade e um valor
médio maiores do que seus elementos componentes (CARDOZO, Benjamin N.. A
natureza do processo judicial. Tradução: Silvana Vieira. São Paulo: Martins Fontes,
2004, p. 131).
Todavia, se é assim, o respeito à coisa julgada, que é valor de elevada
grandeza e que foi, efetivamente, contemplado pela Súmula n. 343-STF, é
apenas uma - e não necessariamente a mais importante - manifestação da
segurança jurídica, conceito indeterminado de maior amplitude, cuja realização,
ao fi m e ao cabo, também constituiu desígnio último do mencionado verbete.
Vale dizer, com o Enunciado n. 343, o Supremo Tribunal Federal, a
propósito de proteger, de forma mediata, a segurança jurídica, acabou por
resguardar, de forma imediata, a coisa julgada.
Nessa ordem de ideias, para que a segurança jurídica não se transforme
em mero ingrediente vulgar de peculiar versatilidade, cumpre traçar - mesmo
que de modo não exauriente - o conteúdo mínimo de sua manifestação (e de
outras categorias jurídicas a ela correlatas) e aferir se, no caso concreto, esse
valor essencial estaria menos ou mais protegido se se fi zer incidir a Súmula n.
343-STF para obstar o cabimento da ação rescisória.
6. Quanto ao ponto, Ingo Wolfgang Sarlet afi rma com propriedade que,
no sistema constitucional atual, a segurança jurídica passa a ter o status de
“subprincípio concretizador do princípio fundamental e estruturante do Estado
de Direito. Assim, para além de assumir a condição de direito fundamental
da pessoa humana, a segurança jurídica constitui simultaneamente princípio
fundamental da ordem jurídica estatal” (SARLET, Ingo Wolfgang. A efi cácia
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 543
do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da pessoa humana, direitos
fundamentais e proibição de retrocesso social no direito constitucional brasileiro.
In. Revista de Direito Constitucional e Internacional, ano 14, n. 57, outubro-
dezembro de 2006. São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional
– IBDC p. 10-11).
Na mesma direção, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, o eminente
Ministro Gilmar Mendes asseverou que, “em verdade, a segurança jurídica,
como subprincípio do Estado de Direito, assume valor ímpar no sistema
jurídico, cabendo-lhe papel diferenciado na realização da própria idéia de justiça
material” (Pet n. 2.900 Q.O. –RS. Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes,
julgado em 27.11.2003).
Canotilho, na mesma linha que, de resto, é a da maciça doutrina, também
noticia que o Estado de Direito possui como princípios constitutivos a segurança
jurídica e o princípio da confi ança do cidadão, ambos instrumentos de condução,
planifi cação e conformação autônoma e responsável da vida (CANOTILHO,
J.J. Gomes. Direito constitucional. Coimbra: Livraria Almedina, 1991, p. 375-
376).
No que concerne especifi camente à segurança jurídica, o mestre português
entende que tal princípio reconduz-se a dois outros princípios materiais
concretizadores do princípio geral de segurança, quais sejam, o princípio da
determinabilidade das leis (exigência de leis claras e densas) e o princípio da
proteção da confi ança, consubstanciado na exigência de que as ações emanadas
do Estado e dirigidas aos administrados sejam estáveis, ou, ao menos, “não
lesivas de previsibilidade e calculabilidade dos cidadãos relativamente aos seus
efeitos jurídicos” (idem, ibidem).
Diante dessa força irradiante para todo o sistema jurídico, parece
claro que, para além do respeito à coisa julgada, ao ato jurídico perfeito e ao
direito adquirido - aos quais se pode somar a necessidade de leis de aplicação
prospectiva, claras e relativamente estáveis -, há mais a se descortinar.
Nesse passo, a postura do Poder Judiciário é de elevada importância
na concretização da segurança jurídica, notadamente pela entrega de uma
prestação jurisdicional previsível que não atente contra a confi ança legítima
do jurisdicionado (NUNES, Jorge Amaury Maia. Segurança jurídica e súmula
vinculante. São Paulo: Saraiva, 2010 [Série IDP], passim).
Deveras, parece não haver dúvida de que, se a ideia de previsibilidade e
de estabilidade está intrínseca à de coisa julgada, direito adquirido, ato jurídico
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
544
perfeito, leis de aplicação prospectiva, claras e estáveis - ou seja, manifestações
particulares do valor segurança jurídica -, a atividade jurisdicional não
pode extraviar-se desse prumo. Do contrário, causaria grave insegurança ao
jurisdicionado e, em última conta, um signifi cativo desajuste no sistema.
Com efeito, presta elevada reverência à segurança jurídica a jurisprudência
previsível, que efetivamente contribua com a ordenação da sociedade, ou,
nas palavras de Canotilho, uma jurisprudência de “condução, planifi cação e
conformação autônoma e responsável da vida”, qualidade essa que é atingida, em
alguma medida, com a prestação jurisdicional uniforme e relativamente estável -
o que não é sinônimo de imutável.
De fato, a dispersão jurisprudencial deve ser preocupação de todos e,
exatamente por isso, tenho afi rmado que, se a divergência de índole doutrinária
é saudável e constitui importante combustível ao aprimoramento da ciência
jurídica, o dissídio jurisprudencial é absolutamente indesejável (REsp n.
753.159-MT).
Se bem analisado, o desalinho da jurisprudência - sobretudo o deliberado,
recalcitrante e, quando menos, vaidoso - atenta, no mínimo, contra três valores
fundamentais do Estado Democrático de Direito: a) segurança jurídica, b)
isonomia e c) efetividade da prestação jurisdicional.
Contra a segurança jurídica porque a previsibilidade ínsita ao próprio
Estado de Direito estaria comprometida, instalando-se uma anárquica “loteria
judiciária” a exigir um “dom premonitório do jurisdicionado”, precisamente
na esteira do que afirmou Ovídio Araújo Batista da Silva, no sentido de
ser o processo uma “máquina diabólica de transformação de direitos em
expectativas” (Apud. ZANETI JÚNIOR, Hermes. Processo constitucional: o
modelo constitucional do processo civil brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Lúmen
Júris, 2007, p. 206).
Contra a isonomia porque a igualdade perante a lei não se completa com
a edição de leis equânimes, gerais e abstratas, se a iguais jurisdicionados são
entregues prestações jurisdicionais díspares.
E, fi nalmente, contra a efetividade da prestação jurisdicional porque o
processo efetivo há de congregar direito material e celeridade, ou, nos dizeres
da doutrina, “processo efetivo é aquele que, observado o equilíbrio entre os valores
segurança e celeridade, proporciona às partes o resultado desejado pelo direito
material” (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica
processual. 3ª ed. Malheiros Editores: São Paulo, 2010, p. 49).
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 545
Nesse particular, é inegável que a dispersão jurisprudencial acarreta -
quando não o perecimento do próprio direito material -, a desnecessária dilação
recursal, com perdas irreversíveis de toda ordem ao jurisdicionado e ao aparelho
judiciário.
Basta dizer, por exemplo, que, no caso em exame, entre a sentença proferida
em 2005 - graças à recalcitrância em se aplicar a Súmula n. 289-STJ - e a
presente data, já escoaram 8 (oito) anos - até agora.
7. Com efeito, o fundamental valor segurança jurídica que está
subentendido na Súmula n. 343-STF signifi ca bem mais que imutabilidade
da coisa julgada. Agrega-se - entre outros atributos - a qualidade de uma
jurisprudência previsível, capaz de oferecer balizas às relações jurídicas, a cuja
materialização se faz necessária a uniformidade dos pronunciamentos judiciais.
Com base nesse amplo espectro de incidência do valor segurança jurídica,
e à luz dos contornos do caso concreto, não se afi gura cabível a aplicação da
Súmula n. 343-STF, uma vez que, no caso em exame, bem menos que genuíno
dissídio jurisprudencial, houve pura recalcitrância do magistrado singular em
alinhar-se a entendimento consolidado em súmula do STJ.
Consoante aventado, a Súmula n. 343-STF teve como escopo a estabilização
da jurisprudência daquela Corte contra oscilações em sua composição, para que
entendimentos fi rmados de forma majoritária não sofressem investidas de
teses contrárias em maiorias episódicas, antes vencidas. Com essa providência,
protege-se, a todas as luzes, a segurança jurídica em sua vertente judiciária,
conferindo-se previsibilidade e estabilidade aos pronunciamentos da Corte.
Todavia, defi nitivamente, não constitui propósito do mencionado verbete a
chancela da rebeldia judiciária.
A solução oposta, a pretexto de não eternizar litígios, perpetuaria injustiças
e, muito pelo contrário, depõe exatamente contra a segurança jurídica, por
reverenciar uma prestação jurisdicional imprevisível, não isonômica e de baixa
efetividade - já se vão 8 (oito) anos perdidos, em franca desarmonia com o
direito à duração razoável do processo.
Barbosa Moreira esclarece bem o alcance limitado do enunciado sumular
em apreço:
Deve receber-se com reservas a tese. Sem dúvida, no campo interpretativo,
muitas vezes há que admitir certa fl exibilidade, abandonada a ilusão positivista
de que para toda questão hermenêutica exista uma única solução correta.
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
546
Daí a enxergar em qualquer divergência obstáculo irremovível à rescisão vai
considerável distância: não parece razoável afastar a incidência do art. 485,
n. V, só porque dois ou três acórdãos infelizes, ao arrepio do entendimento
preponderante, hajam adotado interpretação absurda, manifestamente contrária
ao sentido da norma (MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao código de
processo Civil. vol. V. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 132
Como advertiu Calmon de Passos em ácidas palavras, “infelizmente,
no Brasil pós 1988 se adquiriu a urticária do ‘autonomismo’, e todo mundo é
comandante e ninguém é soldado, todo mundo é malho e ninguém é bigorna”
(CALMON DE PASSOS, J.J.. Súmula vinculante. in Revista do Tribunal
Regional Federal da 1ª Região. 9(1) 163-176, jan.-mar. 1997, p. 176).
Penso, portanto, que a “recalcitrância judiciária” não pode ser referendada
por esta Corte, fechando-se as portas da ação rescisória com base na Súmula n.
343-STF, a qual, como se viu, esconde propósitos bem distintos e, efetivamente,
de inegável juridicidade.
8. No caso em julgamento, a sentença rescindenda simplesmente
desconsiderou a jurisprudência pacifi cada neste Superior Tribunal, inclusive
sedimentada em enunciado de súmula, preferindo, ao reverso, agarrar-se a
precedentes da década de noventa do século passado.
Em caso bastante semelhante, aceitou-se o ajuizamento de ação rescisória:
Processual Civil. Previdência privada. Resgate de contribuições. Prescrição.
Ação rescisória. Divergência de entendimentos. Não cabimento.
1. “Nos termos do Enunciado n. 343 da Súmula do STF, não é cabível ação
rescisória por violação de literal dispositivo de lei quando a matéria era
controvertida nos Tribunais à época do julgamento. A jurisprudência, contudo,
tanto do STF como do STJ evoluiu de modo a considerar que não se pode admitir
que prevaleça um acórdão que adotou uma interpretação inconstitucional (STF) ou
contrária à Lei, conforme interpretada por seu guardião constitucional (STJ). Assim,
nas hipóteses em que, após o julgamento, a jurisprudência, ainda que vacilante, tiver
evoluído para sua pacifi cação, a rescisória pode ser ajuizada.” (2ª Seção, AR n. 3.682-
RN, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 19.10.2011)
2. Recurso especial provido. (REsp n. 1.324.072-DF, Rel. Ministra Maria Isabel
Gallotti, Quarta Turma, julgado em 4.9.2012, DJe 14.9.2012).
Nesse particular, ressalte-se também que há muito tempo foi abandonado
o entendimento segundo o qual a “literal violação” é sinônimo de ofensa
teratológica e aberrante à letra da lei.
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 547
Uma vez mais com Barbosa, embora se exija, efetivamente, ofensa de
razoável monta, que não se confunde com a escolha de uma, entre as várias
interpretações possíveis, convenço-me ser mais bem compreendida a locução
do art. 485, inciso V, do CPC como violação de “direito em tese”, porque o
“ordenamento jurídico evidentemente não se exaure naquilo que a letra da lei
revela à primeira vista. Nem é menos grave o erro do julgador na solução da
quaestio iuris quando afronte norma que integra o ordenamento sem contar
literalmente de texto algum” (MOREIRA, José Carlos Barbosa. Op. cit., p. 131).
Nesse sentido, confi ra-se o seguinte precedente da Corte Especial:
Direito Tributário. Processual Civil. Embargos de divergência em recurso
especial. Afronta ao art. 475 do CPC. Princípio do non reformatio in pejus em
remessa obrigatória. Ação rescisória. Cabimento. Embargos de divergência
rejeitados.
1. O fundamento para o ajuizamento da ação rescisória, mormente aquele
previsto no inciso V do art. 485 do CPC – violação de literal disposição de lei –, é de
tipifi cação estrita, em respeito à estabilidade das relações jurídicas acobertadas
pela coisa julgada, visando a paz social.
2. A interpretação restrita do art. 485, V, do CPC não importa em sua
interpretação literal, sob pena de não ser possível alcançar seu verdadeiro sentido
e intento, e, por conseguinte, assegurar uma efetiva prestação jurisdicional.
3. É cabível ação rescisória, com amparo no art. 485, V, do CPC, contra provimento
judicial de mérito transitado em julgado que ofende direito em tese, ou seja, o
correto sentido da norma jurídica, assim considerada não apenas aquela
positivada, mas também os princípios gerais do direito que a informam.
Precedente do STJ.
4. A proibição da reformatio in pejus, cujo status principiológico é inegável,
porquanto exprime uma noção primordial do sistema recursal, encontra-
se implicitamente contida na regra do art. 475 do CPC, que trata da remessa
necessária.
5. É cabível ação rescisória contra acórdão transitado em julgado que, em
remessa necessária, houver afrontado o princípio da non reformatio in pejus.
6. Embargos de divergência rejeitados.
(EREsp n. 935.874-SP, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Corte Especial,
julgado em 17.6.2009, DJe 14.9.2009)
Na mesma linha, são os seguintes precedentes: REsp n. 409.417-RS,
Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 17.8.2010, DJe
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
548
24.8.2010; REsp n. 329.267-RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma,
julgado em 26.8.2002, DJ 14.10.2002.
Em suma, no caso concreto, parece que a segurança jurídica e, de resto, a
higidez e harmonia do próprio sistema estão mais bem resguardadas com a não
incidência da Súmula n. 343-STF, razão pela qual estou a afastar o mencionado
verbete, com a devolução dos autos ao Tribunal a quo.
Não se analisa, já de agora, a concreta ofensa a literal dispositivo legal,
seja porque a matéria não foi efetivamente apreciada pela Corte estadual - que
aplicou, de início, a Súmula n. 343-STF -, seja porque demandaria a análise dos
fatos constitutivos do direito alegado pelo autor, providência incabível neste
momento processual.
9. Diante do exposto, removendo-se o óbice da Súmula n. 343-STF, dou
provimento ao recurso especial para que os autos retornem ao Tribunal a quo e
prossiga-se no julgamento da ação rescisória, como se entender de direito.
É como voto.
VOTO-VOGAL
O Sr. Ministro Raul Araújo (Presidente): Srs. Ministros, entendo que a
Súmula n. 343, por sua própria natureza, pelo seu enunciado, comporta mesmo
esses temperamentos sempre que se ponderar a esse respeito.
Dou provimento ao recurso especial, acompanhando o voto do Sr. Ministro
Relator.
VOTO
A Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti: Sr. Presidente, também acompanho
o voto do Relator e não faço sequer a ressalva de que a decisão que afronte
súmula ou entendimento pacifi cado da Corte Especial ou da Seção competente
do STJ tenha que ser necessariamente anterior à súmula ou à decisão no
repetitivo. Assim entendo, na linha de evolução que está sendo vista, como bem
relatado no voto do eminente Relator, no Supremo Tribunal Federal e agora no
STJ, no sentido de que, para que se assegure adequada força aos precedentes do
Tribunal e à uniformidade da interpretação do direito federal, que é a missão
constitucional do STJ, e o tratamento isonômico dos jurisdicionados, não deve
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 549
ser obstada ação rescisória, quando houver confronto da decisão rescindenda
com a jurisprudência pacifi cada no STJ em matéria de ofensa à lei federal, assim
como no Supremo Tribunal Federal não se aplica a Súmula n. 343 quando se
trata de interpretação de Constituição.
Dou provimento ao recurso especial, acompanhando o voto do Sr. Ministro
Relator.
RECURSO ESPECIAL N. 1.221.817-PE (2010/0203210-5)
Relatora: Ministra Maria Isabel Gallotti
Recorrente: Nova Pirajuí Administração S/A Nopasa
Advogados: Carlos Augusto Sobral Rolemberg
Paulo Roberto Saraiva da Costa Leite
Carlos Andrade Lima
Recorrente: Anita Louise Regina Harley
Advogados: Peter de Camargo e outro(s)
José Augusto Pinto Quidute e outro(s)
Recorrido: Robert Bruce Harley Júnior - Espólio e outros
Representado por: Francisca de Paula Tavares da Silva Harley -
Inventariante
Advogados: Eduardo Guimarães Falcone e outro(s)
Luiz Armando Badin
EMENTA
Direito Civil e Processual Civil. Sucessão testamentária.
Fideicomisso. Fideicomissário premoriente. Cláusula do testamento
acerca da substituição do fi deicomissário. Validade. Compatibilidade
entre a instituição fi duciária e a substituição vulgar. Condenação de
terceiro afastada. Efeitos naturais da sentença.
1. Se as questões trazidas à discussão foram dirimidas pelo
Tribunal de origem de forma sufi cientemente ampla, fundamentada
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
550
e sem omissões, deve ser rejeitada a alegação de contrariedade do art.
535 do Código de Processo Civil.
2. A sentença não prejudica direitos de pessoa jurídica que não
foi citada para integrar a relação processual (CPC, art. 472). Como ato
estatal imperativo produz, todavia, efeitos naturais que não pode ser
ignorados por terceiros.
3. O recurso de apelação e a ação cautelar são instrumentos
processuais distintos e visam a diferentes objetivos. O ajuizamento de
ambos para questionar diferentes aspectos do mesmo ato judicial não
confi gura preclusão consumativa a obstar o conhecimento da apelação.
4. De acordo com o art. 1.959 do Código Civil, “são nulos
os fi deicomissos além do segundo grau”. A lei veda a substituição
fi duciária além do segundo grau. O fi deicomissário, porém, pode
ter substituto, que terá posição idêntica a do substituído, pois o que
se proíbe é a sequência de fi duciários, não a substituição vulgar do
fi duciário ou do fi deicomissário.
5. A substituição fi deicomissária é compatível com a substituição
vulgar e ambas podem ser estipuladas na mesma cláusula testamentária.
Dá-se o que a doutrina denomina substituição compendiosa. Assim, é
válida a cláusula testamentária pela qual o testador pode dar substituto
ao fi deicomissário para o caso deste vir a falecer antes do fi duciário ou
de se realizar a condição resolutiva, com o que se impede a caducidade
do fi deicomisso. É o que se depreende do art. 1.958 c.c. 1.955, parte
fi nal, do Código Civil.
6. Recurso especial de Nova Pirajuí Administração S.A. Nopasa
a que se dá parcial provimento.
7. Recurso especial de Anita Louise Regina Harley a que se dá
parcial provimento.
ACÓRDÃO
A Quarta Turma, por unanimidade, deu parcial provimento aos recursos
especiais de Nova Pirajuí Administração S.A. - Nopasa e de Anita Louise
Regina Harley, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros
Antonio Carlos Ferreira, Marco Buzzi, Luis Felipe Salomão e Raul Araújo
(Presidente) votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 551
Sustentou oralmente Dr. José Diogo Bastos Neto, pela parte Recorrida:
Robert Bruce Harley Júnior.
Sustentou oralmente Dr. José Augusto Pinto Quidute, pela parte
Recorrente: Anita Louise Regina Harley.
Sustentou oralmente Dr. Carlos Augusto Sobral Rolemberg, pela parte
Recorrente: Nova Pirajuí Administração S/A Nopasa.
Brasília (DF), 10 de dezembro de 2013 (data do julgamento).
Ministra Maria Isabel Gallotti, Relatora
DJe 18.12.2013
RELATÓRIO
A Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti: Trata-se de recursos especiais
interpostos com fundamento no art. 105, III, alínea a, da Constituição da
República, por Nova Pirajuí Administração S.A. - Nopasa - na qualidade de
terceira interessada - e por Anita Louise Regina Harley.
Consta dos autos que o espólio de Robert Bruce Harley Junior, sua
inventariante Francisca de Paula Tavares da Silva e os herdeiros Ana Paula
Harley, Ana Cecília Harley de Noronha, Robert Bruce Harley, Ana Beatriz
Harley e Hugh Anthony Harley ajuizaram ação declaratória de extinção de
fi deicomisso em face de Anita Louise Regina Harley.
Alegaram que sua avó, a falecida Erenita Helena Groschke Cavalcanti
Lundgren - da qual a ré é fi lha e testamenteira - em disposição de última
vontade distribuiu a parte disponível de seu patrimônio da seguinte forma:
das ações e cotas de que era titular em sociedades mercantis deixou 50% à
testamenteira e, em fi deicomisso, 25% para o fi lho Robert Bruce Harley Junior
(do qual os autores são herdeiros) e 25% para a fi lha Anna Christina Harley,
nomeando fi duciária a própria testamenteira.
Ocorre que o fideicomissário Robert Bruce Harley Junior morreu
anteriormente à própria fi duciária. Os autores, por isso, pretendem a declaração
de extinção do fi deicomisso para que lhes sejam transmitidos os bens que
compunham a cota de seu pai na deixa testamentária. A ré, a seu turno, em
reconvenção, defendeu a tese de que, falecido o fideicomissário antes de
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
552
realizado o termo imposto pela fi deicomitente, a propriedade se consolidou em
nome dela, fi duciária.
A sentença foi pelo julgamento de improcedência do pedido e julgamento
de procedência da reconvenção, com revogação da tutela antecipada até então
deferida. O juízo de primeiro grau apoiou-se nas regras dos artigos 1.735, 1.738,
1.739 e 1.740 do Código Civil de 1916, das quais concluiu que o fi deicomisso
caduca quando o fi deicomissário falece antes do fi duciário. Considerou nula
a cláusula do testamento que determinava a substituição dos fi deicomissários
falecidos por seus herdeiros e, assim, impedia a consolidação da propriedade
em nome da fi duciária. Entendeu que a disposição contrariava regras de ordem
pública do Código Civil.
O Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco excluiu o espólio de
Robert Bruce Harley Junior e sua inventariante do pólo ativo da lide, pois
considerados partes ilegítimas. Deu provimento à apelação dos outros autores
para julgar procedente o pedido e declarar extinto o fi deicomisso em 7 de
novembro de 2001. Afi rmou que, com a morte do fi deicomissário, os bens que
a este caberiam em razão do fi deicomisso passariam a ser titularizados por seus
herdeiros, a fi m de fazer prevalecer a vontade expressa da testadora. Considerou
que esta, a par de instituir o fi deicomisso, dispôs também sobre a substituição
em caso de morte do fi deicomissário, o que está de acordo com as regras
pertinentes do Código Civil.
O acórdão foi assim ementado (e-STJ fl . 348):
Direito Civil. Sucessão. Testamento público. Fideicomisso. Extinção. Discussão.
Interpretação de cláusulas. Adoção daquela que melhor prestigia a vontade do
testador. Ação declaratória de extinção do fi deicomisso provida à unanimidade
de votos. Reconvenção não acolhida indiscrepantemente. Cautelar prejudicada.
Preliminarmente excluem-se a viúva Francisca de Paula Tavares da Silva Harley
e o Espólio de Robert Bruce Harley Junior do Pólo Ativo da Ação Declaratória de
Extinção de Fideicomisso por carecerem de legitimidade e de interesse processual
para fi gurarem no litígio. Decisão unânime.
Mérito - Sentença de 1º grau que, interpretando cláusula testamentária, se
inclinou pela improcedência da ação, sob o fundamento de que havia caducado
o fi deicomisso em face do falecimento precoce do fi deicomissário, enquadrando-
se assim nas hipóteses legais previstas nos artigos 1.738 e 1.739 do Código Civil
Brasileiro de 1916, sobretudo ao afi rmar que não seria possível admitir-se que o
fi deicomisso fosse além do segundo grau, confundindo a substituição fi duciária
com a substituição vulgar do fi deicomissário.
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 553
- Inaplicabilidade, no caso concreto, das hipóteses legais previstas nos artigos
1.738 e 1.739, do Código Civil Brasileiro de 1916, diante da prevalência da vontade
do Testador (inteligência dos Artigos 1.738 “in fi ne”, 1.735 e 1.666, do Código Civil
Brasileiro de 1916).
- Aplicação incompleta do artigo 1.738 do Código Civil Brasileiro de 1916, pelo
Juízo de 1º grau e dissociada do artigo 1.735 do mesmo Diploma legal, que estão
intrinsecamente ligados, para considerar indevidamente caduco o fi deicomisso
diante do falecimento prematuro do fi deicomissário Robert Bruce Harley Junior.
- É plenamente possível ao Testador dar substituto ao fi deicomissário, caso
venha o mesmo a falecer antes do fiduciário ou de se alcançar à condição
resolutiva do fi deicomisso, impedindo, com tal determinação, a caducidade do
fi deicomisso (Cláusula XXIV, do Testamento).
- Ao instituir o fideicomisso a Testadora designou a sua filha Anita Louise
Regina Harley como fi duciária e responsável pela administração e conseqüente
devolução do patrimônio fi deicomitido, incluindo os acréscimos decorrentes dos
rendimentos e frutos deles proveniente, sendo a mesma precisa e contundente,
ao assinalar, na Cláusula XXIV do Testamento, a possibilidade de ocorrer à
substituição vulgar/compendiosa dos fi deicomissários, pois assim fazendo não
estará indo além do segundo grau da instituição/vocação, já que o substituído
terá idêntica e igual posição do substituto, sem que se possa afi rmar a existência
da sucessão fi duciária além do segundo grau de instituição.
- Prevalência da vontade do Testador ao expressar que no caso de morte dos
fi deicomissários ou de um deles, as ações e quotas legadas não se consolidarão no
fi duciário, devendo ser administrados pela Fiduciária em nome dos descendentes
dos fideicomissários ou pelo tempo que restar do prazo estabelecido de 20
(vinte) anos ou até a idade de 21 (vinte e um) anos de cada descendente, se
essa condição testamentária ocorrer antes de 20 (vinte) anos (Cláusula XXIV, do
Testamento).
- Ademais, pelas disposições expressas nas cláusulas XXII e XXIV do
Testamento, verifi ca-se que a Testadora fi xou termo, tempo e condição resolutiva
para a extinção do fi deicomisso, de modo que em nenhuma hipótese os bens
fideicometidos viessem a se consolidar na pessoa da fiduciária, devendo,
portanto, se buscar ao máximo prestigiar a declaração de última vontade do
testador, conforme estipulado no artigo 1.666 do então Código Civil Brasileiro.
Assim, alcançada a condição resolutiva em 7 de novembro de 2001, faz
cessar o fideicomisso e obriga a administradora/fiduciária a proceder com a
respectiva devolução dos bens legados, com os devidos acréscimos resultantes
dos rendimentos e frutos dos referidos bens, bem como o pagamento dos
dividendos, vantagens ou quaisquer outros rendimentos, sem apego a quaisquer
formalidades ou dúvidas ou interpretações que possa servir de apanágio para
deixar de cumprir a soberana vontade da Testadora.
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
554
- Feitos em pauta, julgados por convocação extraordinária do Exmo.
Desembargador Presidente do Tribunal de Justiça, quando me encontrava
de férias, em face da desconstituição temporária da Câmara, por ausência do
núimero legal de Desembargadores para a sua composição.
- Apelos providos - Reconvenção julgada improcedente - Cautelar não
conhecida, tudo à unanimidade de votos.
Além de declarar extinto o fi deicomisso em 7.11.2001, determinou que
os descendentes do fideicomissário Robert Bruce Harley Junior passem à
condição de proprietários de 25% das cotas e ações das empresas Zodiac
Empreendimentos e Participações Ltda. e Nopasa - Nova Pirajuí Administração
S/A e que as referidas empresas paguem aos autores dividendos, vantagens e
quaisquer outros rendimentos decorrentes dos bens que integram o fi deicomisso,
com efeitos a partir de 7.11.2001.
Foram opostos embargos de declaração, rejeitados.
Nova Pirajuí Administração S.A. Nopasa alega violação dos arts. 267, VI,
301, X, e 472 do Código de Processo Civil. Sustenta ser parte ilegítima para a
causa, porque nesta se discute questão sucessória afeta somente aos recorridos.
Além disso, não foi parte no processo, motivo pelo qual não poderia ter sido
condenada ao pagamento de rendimentos referentes à participação societária
aos autores vencedores.
Anita Louise Regina Harley aponta negativa de vigência dos arts. 155,
267, VI, 301, X, 472, 513, 535, II, 554 e 560 do CPC; 119, 1.580, 1.666, 1.721,
1.733, 1.734, 1.735, 1.738, 1.739 e 1.740 do Código Civil de 1916. Afi rma
negativa de prestação jurisdicional, pois rejeitados seus embargos de declaração
sem exame da matéria neles suscitada (CPC, art. 535, II).
Alega, também, não ter sido dada publicidade aos atos processuais, pois
não teria tido informação de que o relator do acórdão recorrido reassumiu a
atividade jurisdicional para participar do julgamento no dia em que ele estaria
em gozo de férias, o que fez com o que os advogados dela, recorrente, estivessem
ausentes e não fi zessem sustentação oral (CPC, arts. 155 e 554).
Afi rma que as pessoas jurídicas Nova Pirajuí Administração S.A. Nopasa
e Zodiac Empreendimentos e Participações Ltda. não poderiam ter sido
condenadas, pois não participaram formalmente da relação processual (CPC,
arts. 267, VI, 301, X, 472).
Além disso, afi rma ter-se operado preclusão consumativa e lógica, que
deveria ter sido reconhecida pelo acórdão. Os recorridos ajuizaram apelação
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 555
mesmo depois de ter impugnado a sentença por meio de ação cautelar (CPC,
arts. 513 e 560).
Discorre sobre a indivisibilidade da herança, parte da qual não poderia ser
deferida aos herdeiros antes de efetuada a partilha (CC, art. 1.580).
Pondera que o percentual deferido pelo acórdão aos recorridos é excessivo
e invade a parte que a ela mesmo coube tanto na sucessão testamentária quanto
na legítima (CC, art. 1.721).
Argumenta, por fi m, sobre a substituição fi duciária e a impossibilidade de
instituição desta além do segundo grau, o que teria sido permitido pelo acórdão
em contrariedade a disposição expressa da lei (CC, arts. 119, 1.666, 1.733,
1.734, 1.735, 1.738, 1.739).
Foram apresentadas as contrarrazões de fl s. 571-599 e 601-617.
É o relatório.
VOTO
A Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti (Relatora): Inicialmente, destaco
que o juízo de origem autuou em separado a ação declaratória e a reconvenção,
embora tenham sido julgadas pela mesma sentença e, em grau de recurso, pelo
mesmo acórdão.
O presente feito, Recurso Especial n. 1.221.817-PE, refere-se aos autos
que foram formados para a reconvenção. Os autos da ação declaratória foram
recebidos nesta Corte Superior e catalogados como Recurso Especial n.
1.215.953-PE.
Conforme relatado, a questão que se discute neste processo é relacionada
à validade de cláusula testamentária que determina a substituição do
fi deicomissário por seus dependentes no caso de vir este a falecer antes do
fi duciário. Os autores da ação sustentam a validade da cláusula com base na
parte fi nal do art. 1.735 do Código Civil de 1916. No entendimento da ré
reconvinte, ao contrário, com o falecimento do fi deicomissário, caducou o
fi deicomisso, tendo a propriedade plena se consolidado na pessoa da fi duciária,
na forma do disposto no art. 1.738 do Código Civil de 1916, regra legal que
sustenta ser de ordem pública e ter sido violada pela cláusula testamentária, a
qual seria, pois, nula.
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
556
O que se pretendia com a ação, portanto, era a declaração da extinção
do fi deicomisso, pois o mais jovem herdeiro do fi deicomissário morto atingiu
a maioridade, termo imposto pela fi deicomitente para que os substitutos do
fi deicomissário recebessem os bens fi deicometidos.
No pólo ativo da ação estavam os herdeiros do fi deicomissário e no pólo
passivo a irmã deste, testamenteira de Erenita Helena Groschke Cavalcanti
Lundgren e por esta escolhida para ser a fi duciária. Era o que bastava para a
triangularização da relação processual, dados o confl ito apresentado em juízo e o
tema posto em debate.
Nova Pirajuí Administração S.A., todavia, foi condenada a distribuir
dividendos aos autores retroativos à data de extinção do fi deicomisso (7.11.2001).
Não integrou - nem era o caso - nenhum dos pólos da ação, mas está submetida
aos efeitos do acórdão recorrido, que emitiu provimento desfavorável a ela.
Nesse contexto, por não ser parte do processo - já que não era parte na
relação jurídica material descrita na causa de pedir - a recorrente Nopasa não
pode sofrer condenação.
Não foi o que ocorreu, porquanto o acórdão recorrido não observou os
limites subjetivos que lhe foram impostos. A relação jurídica processual estava
regularmente formada entre herdeiros do fi deicomissário e a fi duciária; as partes
discutiam a validade e efi cácia das cláusulas da instituição do fi deicomisso.
Sujeitos alheios a essa relação não poderiam sofrer os efeitos da sentença. O
acórdão recorrido, então, não pode ter efi cácia contra Nopasa, embora válido e
efi caz entre as partes.
Violado foi, portanto, o art. 472 do Código de Processo Civil. É o sufi ciente
para se afastar a condenação de Nova Pirajuí Administração S.A. - Nopasa. São
oportunas, todavia, algumas outras considerações.
Como se verifi ca dos autos, os autores, apesar de indicarem como ré apenas
Anita Louise, pediram a condenação de Nopasa (fl . 387) ao pagamento de
verbas referentes a dividendos e distribuição de lucros.
E, tal como já consagrado pela jurisprudência consolidada desta Corte, a
petição inicial deve ser interpretada como um todo harmônico. Consideram-se
como pedidos não só os requerimentos formulados em tópico expressamente
intitulado “pedidos” ou algo semelhante, mas também o que como tal se possa
facilmente inferir do teor da petição.
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 557
No caso concreto, todavia, o pedido de condenação de Nopasa destoa do
conteúdo da petição inicial. A causa de pedir descreve relação travada entre
membros de uma família que não chegaram a um acordo sobre como deveria ser
cumprido o testamento que instituiu o fi deicomisso. Trata-se de típica relação
de família e confl ito sucessório e o que se pede, coerentemente, é a declaração de
extinção do fi deicomisso. O pleito de condenação de pessoa jurídica estranha à
relação material apresentada não está em harmonia com o texto apresentado em
toda a peça inicial e Nopasa, nesse contexto, é parte passiva ilegítima.
Embora o nome dado à ação pelos autores não vincule o provimento
judicial que se requer e que, ao fi nal, pode ser deferido, certo é que a narração
dos fatos e a argumentação por eles desenvolvida deve ser coerente e compatível
com os pedidos feitos. No caso, o nome dado à ação é mesmo indicativo de sua
real intenção de ser declarados benefi ciários do fi deicomisso instituído.
Não é, portanto, o caso de se anular o processo para que se faça a citação de
Nopasa. É o bastante considerar válido o acórdão e efi caz contra os sujeitos que
efetivamente participaram do processo, mas inefi caz contra aquela sociedade
anônima, mesmo porque sua condenação, pelos motivos expostos, foi inusitada e
desbordou dos limites da lide subjacentes.
Atente-se, também, para as considerações feitas na decisão proferida na
Reclamação n. 8.573, ajuizada pela sociedade. É certo que, embora não sendo
parte, submete-se a Nopasa aos efeitos naturais da decisão judicial sobre a
propriedade das cotas acionárias e, assim, não pode se opor ao pagamento
de rendimentos acionários a serem distribuídos nos exercícios posteriores ao
acórdão recorrido e vindouros a quem de direito.
Da doutrina, colhe-se o seguinte:
“Por alguns efeitos refl exos da sentença, todavia, são legitimamente atingidos
certos sujeitos que não hajam sido partes no processo. Trata-se de terceiros que,
embora não sejam sujeitos ativos ou passivos da própria relação jurídico-substancial
versada no litígio, são titulares de outras relações jurídicas que de alguma forma se
relacionam com esta ou dela são dependentes.
(...)
A projeção ultra partes dos efeitos refl exos da sentença é consequência da
efi cácia natural desta, que a todos se impõe na medida do objeto do julgamento
proferido e sem incluir a disciplina imperativa de relações jurídicas cujo titular
não haja sido parte (Liebman). A sentença que priva meu devedor de uma
propriedade, julgando procedente a demanda reivindicatória que alguém lhe
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
558
moveu, repercute economicamente em meu patrimônio porque já não disporei
do bem para futura penhora, sendo esse um legítimo efeito refl exo que não
posso evitar; mas a sentença que anula a compra-e-venda de um imóvel não
implica anulação de alienações subsequentes, realizadas antes da instauração do
processo, porque a isso se opõem as garantias constitucionais do contraditório
e do devido processo legal. (Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de Direito
Processual Civil, volume III, Malheiros, 6ª edição, p. 215)
A sentença, do mesmo modo que todo ato jurídico - diz Chiovenda - existe e vale
em relação a todos (...). Mas afi rmar que a sentença, e, pois, a coisa julgada, vale em
relação a terceiros, não quer dizer que possa prejudicar terceiros. Apenas quer dizer
que terceiros não podem deconhecê-la, não que por ela podem ser prejudicados
(AMARAL SANTOS, Moacyr. Primeiras linhas de Direito Processual Civil, 3º volume,
21ª ed., SP: Saraiva, 2003, p. 75-76)
A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não benefi ciando
nem prejudicando terceiros’. Não quer dizer isto que os estranhos possam ignorar
a coisa julgada. “Como todo ato jurídico relativamente às partes entre as quais
intervém, a sentença existe e vale com respeito a todos” [Chiovenda, Instituições
de Direito Processual Civil, 3ª ed., v. I, n. 133, p. 414]. Não é certo, portanto, dizer
que a sentença só prevalece ou somente vale entre as partes. O que ocorre é que
apenas a imutabilidade e a indiscutibilidade da sentença não podem prejudicar,
nem benefi ciar, estranhos ao processo em que foi preferida a decisão trânsita em
julgado (...). Assim, um estranho pode rebelar-se contra aquilo que foi julgado
entre as partes e que se ache sob autoridade da coisa julgada, em outro processo,
desde que tenha sofrido prejuízo jurídico. (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso
de Direito Processual Civil, vol. I, 51ª ed., RJ: Forense, 2010, p. 557)
Sobre o mesmo tema, assim já se manifestou este Tribunal Superior:
Processual Civil. Recurso especial. Mandado de segurança. Terceiro interessado.
Efi cácia natural e imutabilidade da sentença. Distinções. Efeitos perante terceiros.
Art. 472 do CPC. Súmula n. 202-STJ.
1. Não há dúvida de que a coisa julgada, assim considerada “a efi cácia que
torna imutável e indiscutível a sentença” (CPC, art. 467), embora tenha efeitos
restritos “às partes entre as quais é dada” (art. 472 do CPC, primeira parte), não
inibe que essa sentença produza, como todo ato estatal, efeitos naturais de
amplitude subjetiva mais alargada.
2. Todavia, conforme estabelece o mesmo art. 472 do CPC, a eficácia
expansiva da sentença não pode prejudicar terceiros. A esses é assegurado, em
demanda própria (inclusive por mandado de segurança), defender seus direitos
eventualmente atingidos por ato judicial produzido em demanda inter alios.
Aplicação da Súmula n. 202-STJ.
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 559
3. Precedente: REsp n. 1.251.064-DF, 1ª Turma, Min. Teori Albino Zavascki, DJ de
27.3.2012.
4. Recurso improvido.
(REsp n. 1.281.863-DF, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Turma,
julgado em 10.4.2012, DJe 16.4.2012).
Por essas razões, observa-se que a Nopasa, pessoa jurídica não integrante
da relação processual, não pode ser prejudicada com a condenação ao pagamento
aos autores, retroativo a 7.11.2001, de dividendos e outros rendimentos já
distribuídos nas épocas próprias aos acionistas então constantes de seus registros
societários.
Isso, todavia, em nada infi rma as providências determinadas pela decisão
objeto da Reclamação n. 8.573 no sentido de determinar o depósito à disposição
do juízo sucessório dos dividendos vindouros relativos às ações cuja propriedade
é controvertida.
O decidido nos presentes autos a propósito da extinção do fi deicomisso,
e a partilha das ações e cotas societárias no inventário, não poderá deixar de
ser observado pela Nopasa, à qual não é dado ignorar a sentença como ato
estatal e imperativo. O asserto judicial a propósito da propriedade das ações e
consequente distribuição dos respectivos dividendos e rendimentos outros entre
os sócios litigantes são efeitos naturais da sentença, cuja observância se impõe à
sociedade anônima, sem lhe afetar o patrimônio e a estrutura societária, e nem
nada prejudicar a situação jurídica da empresa.
Passa-se agora ao exame do recurso especial de Anita Louise Regina
Harley. Cumpre observar inicialmente que o acórdão recorrido se manifestou
de forma sufi ciente e motivada sobre o tema em discussão nos autos. Ademais,
não está o órgão julgador obrigado a se pronunciar sobre todos os argumentos
apontados pelas partes, a fim de expressar o seu convencimento. No caso
em exame, o pronunciamento acerca dos fatos controvertidos, a que está o
magistrado obrigado, encontra-se objetivamente fi xado nas razões do acórdão
recorrido. Afasto, pois, a alegada violação do art. 535 do CPC.
No que se refere aos arts. 267, VI, 301, X, 472 do CPC, verifi ca-se que
a recorrente busca defender interesse de pessoas que não representa nestes
autos. Afirma que Nova Pirajuí Administração S.A. Nopasa e Zodiac
Empreendimentos e Participações Ltda. não poderiam ter sido condenadas,
pois não participaram formalmente da relação processual. Ocorre que não cabe
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
560
à recorrente pedir provimento judicial a respeito, já que lhe é vedado em nome
próprio pleitear direito alheio (CPC, art. 6º).
Também não há como acolher a alegação de que não foi dada a devida
publicidade aos atos processuais, tendo o processo sido julgado sem que fosse
concedida aos advogados da recorrente a oportunidade de sustentação oral.
Consta dos autos que, desde a inclusão dos feitos em pauta de julgamento,
houve publicação desta no Diário da Justiça. A análise desse fato é inviável em
recurso especial, segundo dispõe a Súmula n. 7-STJ.
Os arts. 513 e 560 do CPC, a seu turno, são indicados pela recorrente como
violados porque, segundo ela, teria havido preclusão lógica e consumativa não
reconhecida pelo acórdão recorrido. Argumenta que a apelação dos recorridos
não deveria ter sido conhecida, pois versa a mesma matéria discutida na ação
cautelar ajuizada contra os efeitos da mesma sentença.
A argumentação, todavia, não procede. Com efeito, a apelação e a ação
cautelar são instrumentos processuais bem distintos e visam a diferentes
objetivos. A cautelar não é meio de impugnação de decisões judiciais com vistas
a sua reforma, ao passo que a apelação, sim, é recurso e objetiva nova decisão.
E assim esses meios processuais foram usados no caso concreto. Os recorridos
ajuizaram a cautelar a fi m de suspender os efeitos da sentença e fazer prevalecer
a tutela deferida antecipadamente. A apelação, por sua vez, foi interposta para
que a sentença fosse reformada. Não há que se falar, portanto, em ato repetido
que devesse ser desconsiderado em razão de preclusão lógica ou consumativa.
Os demais dispositivos versam sobre a questão principal resolvida pelo
acórdão recorrido, qual seja, a validade de disposições testamentárias referentes à
instituição fi deicomissária.
Transcrevo a seguir os dispositivos do Código de 1916 relevantes para a
solução da controvérsia:
Art. 1.729. O testador pode substituir outra pessoa ao herdeiro, ou legatário,
nomeado, para o caso de um ou outro não querer ou não poder aceitar a herança,
ou o legado. Presume-se que a substituição foi determinada para as duas
alternativas, ainda que o testador só a uma se refi ra.
Art. 1.733. Pode também o testador instituir herdeiros ou legatários por meio
de fi deicomisso, impondo a um deles, o gravado ou fi duciário, a obrigação de,
por sua morte, a certo tempo, ou sob certa condição, transmitir ao outro, que se
qualifi ca de fi deicomissário, a herança, ou o legado.”
Jurisprudência da QUARTA TURMA
RSTJ, a. 26, (233): 447-564, janeiro/março 2014 561
Art. 1.734. O fi duciário tem a propriedade da herança ou legado, mas restrita e
resolúvel.”
Art. 1.735. O fi deicomissário pode renunciar à herança, ou legado, e, neste
caso, o fi deicomisso caduca, fi cando os bens propriedade pura do fi duciário, se
não houver disposição contrária do testador.
Art. 1.738. Caduca o fideicomisso, se o fideicomissário morrer antes do
fi duciário, ou antes de realizar-se a condição resolutória do direito deste último.
Neste caso a propriedade consolida-se no fi duciário nos termos do art. 1.735.
Art. 1.739. São nulos os fi deicomissos além do segundo grau.
Mostram-se oportunas, neste passo, algumas considerações sobre o
fi deicomisso.
Segundo a doutrina, “o fi deicomisso constitui modalidade importante de
substituição, que repercute com frequência nas sucessões testamentárias. Consiste
na instituição de herdeiro ou legatário, com o encargo de transmitir os bens a
uma outra pessoa a certo tempo, por morte, ou sob condição preestabelecida.
O herdeiro ou legatário instituído denomina-se fi duciário ou gravado, e o
substituto ou destinatário remoto dos bens chama-se fi deicomissário.” (Caio
Mário da Silva Pereira, “Instituições de Direito Civil”, vol. VI, Direito das
Sucessões, Forense, 16ª edição, p. 325).
Constituem deveres do fiduciário inventariar os bens fideicometidos,
administrá-los, conservá-los e restituí-los.
No caso concreto, como visto, tem-se por testadora a Sra. Erenita Helena
Groschke Cavalcanti Lundgren, a fi duciária é a recorrente e o fi deicomissário
é o já falecido Robert Bruce Harley Junior, pai dos recorridos. Controverte-se,
então, se os recorridos devem receber os bens fi deicomitidos.
Estabelecia o então vigente art. 1.739 do Código Civil de 1916 (art. 1.959
do CC atual), tido por violado, que os fi deicomissos além do segundo grau são
nulos. De fato, não é possível nomear alguém como fi duciário a fi m de que,
depois de certo termo ou condição, transfi ra bens a outrem que, também, deve
cumprir aqueles deveres de fi duciário para, por sua vez e depois de outro termo
ou condição, novamente transferir os bens a outros e assim sucessivamente.
Evita-se, dessa maneira, concentrar na mesma pessoa a fi gura de fi deicomissário
e de fi duciário e impedir a livre circulação de bens.
Não é o que ocorre no caso concreto. Como já enfatizado, há apenas um
fi duciário (a recorrente) e um grau de fi deicomissário. Em nenhum momento se
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
562
falou em fi duciários sucessivos, nem em benefi ciários (fi deicomissários) que se
tornassem fi duciários de bens a serem transmitidos a outros benefi ciários.
O que houve, isso sim, foi a regular substituição de um dos sujeitos (no
caso, o fi deicomissário) em razão de sua morte, o que foi feito em conformidade
com o art. 1.729 do Código Civil de 1916 (atual art. 1.947), acima transcrito.
Ao contrário do que argumenta a recorrente, o acórdão recorrido não criou
tipo híbrido de fi deicomisso. Reconheceu, apenas, que a par da substituição
fideicomissária, operou-se a substituição vulgar do fideicomissário. Como
lecionava Caio Mário:
Não é, porém, vedado conciliar o fideicomisso com a substituição vulgar,
designando um substituto para o caso de o fi deicomissário não poder ou não
querer aceitar. Esta conjugação das duas espécies (vulgar e fideicomissária)
é o que na linguagem dos autores se designava, e ainda pode denominar-se
substituição compendiosa, por encerrar num só ato o resumo ou compêndio da
ambas. (ob. cit., p. 330).
A previsão testamentária, como se vê, é válida e não repugna o que se
entende sobre a matéria:
A substituição compendiosa constitui um misto de substituição vulgar e de
substituição fi deicomissária. É o que se verifi ca na hipótese em que o testador
dá substituto ao fi duciário ou ao fi deicomissário, prevendo que um ou outro não
queira ou não possa aceitar a herança ou o legado, hipótese essa que não viola
o Código Civil, art. 1.960, visto que tal substituição continua sendo de segundo
grau. (Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro, Direito das Sucessões,
Saraiva, 26ª edição, p. 402).
Também caduca o fi deicomisso se o fi deicomissário falecer antes do fi duciário,
consolidando-se a propriedade nas mãos deste (art. 1.958). Isso também ocorre
se o fi deicomissário falecer antes do testador. Tais disposições são de caráter
supletivo, e nada impede que o testamento estabeleça substituições vulgares no
caso de pré-falecimento, renúncia ou indignidade do fi deicomissário. (Arnoldo
Wald, Direito Civil, Direito das Sucessões, Saraiva, 15ª edição, p. 303)
Sobre a viabilidade da solução adotada pelo acórdão recorrido, assim
arremata Pontes de Miranda:
Se a verba estatui “lego a A, passando a B aos 30 anos, ou, se B tiver falecido,
ou se já se casou, a C, por morte de A”, vale. A é fi duciário, B e C fi deicomissários
condicionais disjuntivos (ou B ou C), substituindo C a B em caso de morte. (Tratado
de Direito Privado, Tomo 58, Bookseller, 1ª edição, p. 301);
Jurisprudência da QUARTA TURMA
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O próprio parecer citado pela recorrente, embora seja de conclusão que ela
aponta ser-lhe favorável, contém o seguinte trecho que se harmoniza com o que
dito acima:
Nosso ordenamento jurídico admite a chamada substituição vulgar plúrima,
que consiste na nomeação de vários substitutos para, simultaneamente,
assumirem o lugar do fi duciário e/ou do fi deicomissário, na falta de um deles ou
de ambos, no momento da abertura da sucessão e/ou da substituição.
Em resumo, o que se veda é a substituição fi duciária além do segundo
grau. O fi deicomissário, porém, pode ter substituto, que terá posição idêntica
ao do substituído. O substituto não recebe do fi deicomissário, mas do fi duciário
(continua no segundo grau), pois o que a lei proíbe é a sequência de fi duciários,
não a substituição vulgar do fi duciário ou do fi deicomissário. Assim, não se pode
mandar que o fi deicomissário entregue a terceiros, mas pode ser prevista sua
substituição em caso de sua morte.
Veja-se que o art. 1.738 do Código Civil de 1916 (atual art. 1.958),
que dispõe sobre a caducidade do fi deicomisso em caso de premoriência do
fi deicomissário com relação ao fi duciário, remete ao art. 1.735 (atual art. 1.955).
Este último prevê que, caducando o fi deicomisso, a propriedade do fi duciário
deixa de ser resolúvel, se não houver disposição contrária do testador. Não se
cuida, portanto, de regra legal cogente, mas, ao contrário, dispositiva, segundo
texto expresso de lei.
Conclui-se, portanto, que as disposições testamentárias questionadas pela
recorrente são válidas e atêm-se ao poder de disposição conferido pela lei.
Acrescente-se, ainda, que é dado ao testador regular termos e condições
da deixa testamentária. No caso, foi estabelecido o termo de 20 anos ou, no
caso de morte do fi deicomissário, a data em que o mais jovem sucessor deste
atingisse a maioridade, disposição que também se insere no poder de disposição
do particular.
Uma pequena correção, porém, deve ser feita no dispositivo do acórdão
recorrido. Não se deve entender que 25% das quotas das pessoas jurídicas devam
ser transmitidas aos recorridos, mas que devem ser transmitidas 25% das quotas
e respectivos rendimentos que a testadora possuía em sua parte disponível (e
que vinham sendo administradas pela fi duciária). Não se está aqui a reexaminar
fatos nem a dar nova interpretação a cláusulas contratuais, apenas se aceitam os
fatos tais como descritos no acórdão recorrido (e-STJ 979):
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
564
Na verdade, o testamento em discussão foi lavrado por Erenita Helena
Groschke Cavalcanti Lundgren em favor de seus fi lhos, Anita Louise Regina Harley,
Robert Bruce Harley Junior e Anna Helena Christina Harley Lundgren, quanto à
parte disponível do seu patrimônio, formado por ações e cotas societárias (...)
Não se defi niu, por ora, quantas ações ou quotas societárias compunham
o acervo transmitido. Do acórdão também se colhe o seguinte (e-STJ fl . 988,
grifei):
Naquela ocasião, entendeu a testadora, Sra. Erenita Helena Groschke Cavalcanti
Lundgren, de destinar, quanto à parte disponível de seu patrimônio, formada por
ações e cotas societárias das empresas Nopasa - Nova Pirajuí Administração S/A e
Zodiac Empreendimentos e Participações S/A, da seguinte forma: 50% (cinquenta
por cento) delas à Sra. Anita Louise Regina Harley; 25% (vinte e cinco por cento)
à Robert Bruce Harley Jr., e, fi nalmente, 25% (vinte e cinco por cento) à Anna
Christina Harley Lundgren.
Evidentemente que o resultado desses 25% será defi nido após ultimado o
competente processo de inventário e partilha, quando será apurada a legítima de
cada herdeiro necessário e a parte disponível, na qual se situam as ações e cotas
objeto da disposição testamentária e do fi deicomisso extinto em 7.11.2001. Não
signifi cam, necessariamente, 25% de todas as quotas das sociedades mercantis
em questão, a não ser que se admita, o que não é sequer alegado, que a testadora
detinha 100% das ações e quotas dessas sociedades e que todas elas estivessem
compreendidas na parte disponível de seu patrimônio.
Deve, portanto, ser efetuada a correção do item “b” dos dispositivos do
acórdão recorrido (e-STJ fl . 384), para que, onde se lê “passem à condição de
proprietários de 25% (vinte e cinco por cento) das cotas e ações das empresas”,
leia-se “sejam declarados proprietários de 25% (vinte e cinco por cento) das
cotas e ações que constituíam a parte disponível do patrimônio da testadora,
a serem oportunamente partilhadas, bem como seus respectivos rendimentos
desde a data da extinção do fi deicomisso 7.11.2001”.
Em face do exposto, dou parcial provimento ao recurso especial de Nova
Pirajuí Administração S.A. - Nopasa - e dou parcial provimento ao recurso
de Anita Louise Regina Harley, tão-somente para ser feita a correção acima
descrita.
É o voto.