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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO CENTRO DE EDUCAÇÃO CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS
CURSO DE HISTORIA LICENCIATURA PLENA
PRISCILA SOEIRO ASSUNÇÃO
NEGAÇÕES E AFIRMAÇÕES: O ESPAÇO DA MEMÓRIA NO MOVIMENTO NEGRO DO MARANHÃO
São Luís 2005
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PRISCILA SOEIRO ASSUNÇÃO
NEGAÇÕES E AFIRMAÇÕES: O ESPAÇO DA MEMÓRIA NO MOVIMENTO NEGRO DO MARANHÃO
Monografia apresentada ao Curso de História Licenciatura Plena da Universidade Estadual do Maranhão, para obtenção do grau de Licenciada em História. Orientadora: Profª MsC. Júlia Constança Pereira Camêlo.
São Luís
2005
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Assunção, Priscila Soeiro Negações e Afirmações: o espaço da memória no movimento negro do Maranhão / Priscila Soeiro Assunção. – São Luís, 2005. 68 - f. : it. Monografia (Graduação em História) – Universidade Estadual do Maranhão, 2005. 1. Negro 2. Novos Movimentos Sociais 3. Memória I Título. CDU: 323.13 (= 414) (812.1)
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PRISCILA SOEIRO ASSUNÇÃO
NEGAÇÕES E AFIRMAÇÕES: O ESPAÇO DA MEMÓRIA NO MOVIMENTO NEGRO DO MARANHÃO
Monografia apresentada ao Curso de História Licenciatura Plena da Universidade Estadual do Maranhão, para obtenção do grau de Licenciada em História. Orientadora: Profª MsC. Júlia Constança Pereira Camêlo.
Aprovada em / /
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________ Profª MsC. Júlia Constança Pereira Camêlo (Orientadora)
________________________________________ Prof. MsC. Marcelo Cheche Galves
__________________________________________ Prof. MsC. Carlos Alberto Ximendes
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AGRADECIMENTOS
Ao meu Deus e Salvador, pelo cuidado e provisão.
A Professora Júlia Constança, pela orientação e incentivo.
A todos que direta ou indiretamente contribuíram para a elaboração desta
monografia
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A Deus, minha razão de viver.
A meus pais e irmãos, pelo amor e
provisão no conhecimento secular e
espiritual.
Ao meu avô, Manoel Assunção, pelo
apoio nos estudos.
A minha comunidade de fé, pelas
orações a meu favor.
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“Se negro de alma branca pra você é
exemplo da dignidade, não nos ajuda,
só nos faz sofrer. Vem, resgata nossa
identidade”.
Jorge Aragão
“[...] eu vejo o presente repetir o
passado, eu vejo um museu de
grandes novidades. O tempo não
pára”.
Cazuza
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RESUMO
Apresentamos a relação entre memória coletiva e memória individual na
articulação entre passado e presente, através da leitura de Jacques Le Goff, Pierre
Nora e Maurice Halbwachs. Também observamos a memória coletiva na formação
da identidade do Movimento Negro no Maranhão através das atividades
desenvolvidas pelo Centro de Cultura Negra do Maranhão no mês de maio dos anos
de 1980, 1984 e 1989.
Palavras – Chave: Memória, Novos Movimentos Sociais, Negros.
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ABSTRACT
Presentation of relationship between collective memory and individual memory
at the articulation to present from past. Collective memory in the of formation of
negros movement identity at Maranhão.
Key – words: Negro, Social Movement, Memory.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................11
1. MEMORIA ......................................................................................................... 14
1.1 A Memória e seus Campos de Estudo .............................................................14
1.2 Breve Esboço Histórico da Memória ................................................................15
1.3 Memória Individual e Coletiva ..........................................................................21
1.4 Memória Coletiva e História..............................................................................26
2. OS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS...............................................................31
3. A MEMORIA COLETIVA NO CCN – MA...........................................................41
3.1 A Organização do Movimento Negro Unificado – MNU...................................41
3.2 O Contexto da Criação do CCN – MA..............................................................43
3.3 O Centro de Cultura Negra no Maranhão........................................................46
3.3.1 Lugares de Memória no CCN – MA..............................................................50
3.4 Memória Coletiva e Identidade Étnica.............................................................51
3.5 Negação e Afirmação - Lembranças de 13 de maio e
20 de novembro...........................................................................................,,.,53
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................,,,,59
5. FONTES CONSULTADAS............................................................................,,,,.62
6. REFERÈNCIAS..................................................................................................65
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INTRODUÇÃO
O debate aqui apresentado é fruto de uma inquietação que surgiu quando
estávamos desenvolvendo a pesquisa “Lutas Sociais e Organização Política no
Processo de Gestão Pública: o coletivo na diversidade” 1 junto ao Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
1 Sub - projeto: Estudo e análise do movimento negro nos fóruns e conselhos de gestão pública na área da cultura no Maranhão – Orientadora: Profª Dra. Teresinha Moreira Lima Centro de Ciências Sociais Aplicadas – UEMA. / Grupo de Pesquisa em Cultura, Poder, Lutas Sociais e Políticas Públicas – (Cult – polis), 2004.
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Nas pesquisas de campo desenvolvidas no decorrer do trabalho, junto a
entidades que compõem o Movimento Negro em São Luís, observamos um forte
sentimento de pertencimento que envolvia os militantes do grupo, bem como as
várias referências ao passado comum de discriminação racial e resistência.
Nesta perspectiva procuramos desenvolver um trabalho que relacionasse a
questão da identidade de grupo com a memória coletiva, entendida como conjunto
de tradições e costumes que ultrapassam a temporalidade linear da História
tradicional, e serve como instrumento de coesão e de mobilização dentro do
Movimento Negro.
Delimitamos o tempo e o espaço concentrando a nossa atenção nas
atividades desenvolvidas pelo Centro de Cultura Negra no Maranhão nas realizações
da Semana do Negro, no mês de maio, durante a primeira década de sua existência.
Para tanto, fizemos uma pesquisa na Biblioteca Pública Benedito Leite nos
jornais da década de 1980. Primamos pelos jornais O Estado do Maranhão, O Jornal
e O Imparcial, neste último, detectamos uma maior ênfase em relação às questões
culturais, principalmente as relacionadas ao negro. Priorizamos as notas informativas
que destacavam as atividades do Centro de Cultura Negra do Maranhão.
Em decorrência da escassez dos jornais utilizamos depoimentos de militantes
do Movimento Negro em São Luís. Extraímos outros relatos de sites e portais como a
entrevista de Abdias do Nascimento, pai do Movimento Negro Unificado no Brasil.
Elaboramos três capítulos sendo que nos dois primeiros optamos por trabalhar
temáticas específicas, somente no terceiro capítulo utilizamos expressivamente as
fontes primarias.
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O primeiro capítulo caracteriza-se pela nossa fundamentação teórica.
Debatemos sobre o embricamento entre memória individual e coletiva, a diferença
entre memória coletiva e a historia tradicional, bem como, as implicações de sua
utilização enquanto instrumento de poder.
O segundo capítulo tem como objetivo elucidar a importância dos Novos
Movimentos Sociais, que surgem na cena pública no final de 1970. Localizamos o
Movimento Negro, em São Luís, dentro deste contexto assim como a sua posição
como sujeito histórico coletivo, capaz de forjar mudanças reais e significativas na
sociedade civil. Ainda, neste capitulo, apresentamos um estudo de casos que
transcende ao CCN e nos dá uma visão mais geral da representatividade do
Movimento Negro em São Luís.
Com base nas fontes primárias enfatizamos no terceiro e último capítulo a
criação do CCN no Maranhão (a partir da década de 1980) e suas atividades no
Movimento Negro do Maranhão, uma vez que este Centro trabalha articulado com
entidades representativas da comunidade negra no interior do Estado. Analisamos a
busca por uma identidade de grupo partindo do processo de conscientização e (re)
educação dos militantes e da sociedade civil.
Tivemos a oportunidade de estar presente no Centro de Cultura Negra do
Maranhão e em outras entidades do movimento negro durante mais ou menos um
mês. Observamos uma atmosfera que remete ao passado africano, os membros do
grupo e quem os visita, quase tudo que é feito destaca elementos da negritude.
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A relevância da pesquisa está, sobretudo, nos traços de continuidade que
permeia este grupo histórico. A memória coletiva que o Movimento Negro em São
Luis resgata, possibilita a reconstituição da história do próprio Estado, quiçá do país.
1. MEMÓRIA
A memória caracteriza-se não só pela ordenação de vestígios ou lembranças,
mas por uma releitura desses vestígios com base no meio, no tempo ou nas
condições psíquicas em que o indivíduo ou o grupo está localizado. A capacidade da
qual o indivíduo é dotado de ordenar vestígios, relê-los e reconstituí-los, colocam a
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memória dentro dos estudos que permeiam as ciências sociais e humanas e isto
acontece quando entendemos que a ‘narrativa’ é uma das atividades exercidas pela
memória e de crucial relevância para a sociedade, no momento em que permite a
transmissão de informações a outros que não participaram diretamente do
acontecimento narrado e quando se apropria de instrumentos oriundos da sociedade
para que se desenrole a narrativa como a utilização de linguagem falada ou escrita.
(LE GOFF, 1984).
1.1 – Memória e os seus Campos de Estudo
O conceito de memória de forma geral nos remete a um conjunto de
atividades cerebrais (psíquicas) que permite ao indivíduo a capacidade de
armazenar, conservar e atualizar informações representadas como passadas. O
estudo sobre a memória vai além dos limites das ciências humanas, que
pretendemos observar nesta pesquisa, alcança a psicologia, a psicofisiologia, a
neurofisiologia, a biologia e a psiquiatria.
Compreendemos que quando as lembranças encontram-se ordenadas e
armazenadas em nossa memória total ou parcial, elas estão submetidas a um tipo de
linguagem específica que é imediatamente decodificada para a linguagem falada ou
escrita quando estas deixam de se limitarem ao domínio físico do corpo de um só
individuo, se ampliam, acumulam-se quando transmitidas a outro ou escrita em
livros.
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Os problemas que atingem a memória como a amnésia2 e a afasia3 retratam
perturbações graves de personalidade (quando se trata do individuo) e de identidade
coletiva (quando se trata da sociedade). A partir da segunda metade do século XX
observamos o surgimento de estudos, por parte dos psicólogos e psicanalista, das
manipulações conscientes e inconscientes que baseadas em interesses, desejos,
inibições, censura, resultam em lembranças ou esquecimentos dentro da memória
individual.
Ainda nessa perspectiva, as ciências sociais e humanas também trabalham a
partir das manipulações que permeiam e subjugam a memória coletiva. Se a
entendermos dentro do contexto de luta das forças sociais pelo poder fica mais fácil
compreendermos a disputa engendrada no seio da sociedade histórica pelos grupos
ou classes sociais no que diz respeito à manifestação ou silêncio da memória
coletiva.
1.2 – Breve Esboço Histórico da Memória.
O autor Jacques Le Goff, em sua obra “Memória – História” (1984), pautado
no raciocínio de Leroi – Gourhan, desenvolve um estudo histórico sobre a memória
coletiva com base nas diferenças entre sociedade de memória essencialmente oral e
sociedade essencialmente escrita. Nos ateremos a exposição que descortina a
importância da memória dentro das sociedades históricas.
O autor observou nas sociedades sem escrita uma estreita relação da
memória coletiva com os mitos de origem que se confundem com a história da
2 Amnésia – perda total ou parcial da memória – gr: amnésia (dicionário Aurélio) 3 Afasia – perda total ou parcial da voz – gr: aphasia (dicionário Aurélio)
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existência do grupo. A memória coletiva torna-se história ideológica, ou seja, os
acontecimentos históricos são ordenados e analisados com base nas tradições
estabelecidas.
Os depósitos dessa memória são os ‘homens – memória’ que possuem tanto
a história objetiva (que nos reporta a uma série de fatos que são analisados com
base em certos critérios universais, esquematizados e cronologicamente
estabelecidos) quanto a ideológica. São homens comuns, em geral chefes de família,
idosos que têm a função de manterem a unidade do grupo. Entendemos com base
nessas informações que o papel fundamental desses “homens – memórias” é na
realidade articular essas duas historias de modo que elas se completem.
Porém, é bom entendermos que a transmissão da memória coletiva nessas
sociedades é oral, portanto não há espaço para uma transmissão fiel, palavra a
palavra, muito menos uma rememorização. Nesse sentido, não há uma preocupação
com técnicas específicas de memorização, por isso as variações nas versões são
freqüentes. No entanto, o que se verifica é uma maior liberdade e poder de criação.
“A memória coletiva parece, portanto, funcionar nestas sociedades segundo uma
‘reconstrução generativa’ e não segundo uma memorização mecânica”. (LE GOFF,
1984, p. 15).
Com o surgimento da escrita a memória coletiva passa por algumas
mudanças e surgem novas formas de transmissão. A primeira forma é a
comemoração, que consiste na celebração de um acontecimento memorável. Le
Goff cita dois monumentos comemorativos que caracterizam bem este momento, as
estelas e os obeliscos, representações figuradas acompanhadas de inscrições. A
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partir daí o que se nota é a multiplicação de monumentos (cemitérios, lápides,
praças, avenidas, bustos e etc), bem como o surgimento de uma nova ciência, a
epigrafia. A comemoração, portanto, pode ser considerada uma atividade da
memória que visa a perpetuação da mesma. Tomamos como exemplo a referência
feita ao dia 13 de maio por José Machado:
Hoje está fazendo 92 anos que a Princesa Isabel, corrigiu, no Brasil, um erro que a humanidade vinha cometendo a muito: a escravidão do homem negro foi abolida através da Lei Áurea. A partir daí todos os cidadãos teriam direitos e deveres iguais, como pregava Cristo: ”Todos os homens são iguais diante do Senhor”. Mas isso foi apenas o começo de uma fase de libertação que se arrasta até hoje, porque os negros – um dos pais de nossa civilização – ainda encontra uma série de barreiras para a sua ascensão social, econômica e cultural. (O IMPARCIAL, 17 de maio de 1980, p. 4)
A segunda forma é o surgimento do documento escrito em algo
desenvolvido próprio para a escrita. Ao longo da história a escrita foi exercida em
vários outros materiais (ossos, pele, folhas de palmeira, pedra, pergaminhos e etc),
antes de chegar aos tipos de papéis utilizados hoje. Esta forma de transmissão, ora
funciona como apenas um registro que marca o tempo e permite a memorização, ora
como a transferência da memória coletiva do campo meramente auditivo para o
campo visual o que possibilita uma releitura, um exame mais detalhado ou uma
retificação da memória.
Com a escrita, já nos é permitido vislumbrar a técnica mnemônica palavra a
palavra que por sua vez desvaloriza a memorização de cor. Há uma acomodação
neste sentido, visto que se pode recorrer a monumentos comemorativos ou a
documentos escritos para recordar. No lugar de homens - memória, surgem as
instituições – memória, criadas inicialmente pelos reis: arquivos, bibliotecas e
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museus para imortalizar os grandes feitos do rei o que nos leva a crer que este
desenvolvimento da forma escrita de transmissão da memória está ligado
diretamente ao desenvolvimento urbano. È neste contexto que a memória se torna
história, pois ela não é mais vivida no cotidiano, a geração que dela toma
conhecimento está a uma distância significativa do fato. (LE GOFF, 1984).
Com o advento da imprensa no século XVI, a memória se amplia, a
transmissão oral já não a comporta mais, seu conteúdo não é mais fixável pelo
indivíduo, por outro lado esse indivíduo tem a oportunidade de explorar novos
escritos que possibilita não só a ampliação e acumulação da memória, bem como a
sua reconstituição.
Assim, a memória se expande e se divide. Temos então a memória
burocrática (século XI) que dava lembrança das contas financeiras e dossiês
administrativos e estava a serviço da monarquia. A memória tradicional que dentro
das artes promove no final da Idade Media (século XV) a renovação da literatura
antiga. A memória jornalística (século XVIII) que aproximava a memória da opinião
publica nacional e internacional e permitia que esta construísse sua própria memória.
No século XVIII a memória se apresenta bem mais fragmentada, através dos
dicionários que apresenta um pensamento bem reduzido e fragmentado e as
enciclopédias que ordenam alfabeticamente memórias fragmentadas de uma
memória total.
No século XIX, observamos a manipulação da memória por parte daqueles
que controlam a nação de acordo com os seus interesses. A memória é peça
fundamental na construção de uma identidade nacional. Da memória é subtraído
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todos os acontecimentos históricos que não dignificam o povo enquanto nação ou
que depõem contra a imagem “ilibada” dos que estão no controle. Le Goff demonstra
bem esta situação quando se reporta as datas comemorativas dentro do calendário
revolucionário na França:
Apenas três jornadas revolucionárias parecem aos termidoreanos dignas de serem comemoradas: o 14 de Julho, o 1º Vindimário, dia do ano republicano que não foi manchado por nenhuma gota de sangue e, com mais hesitação, o 10 de Agosto, data da queda da monarquia. Em contrapartida, a comemoração de 21 de Janeiro, dia da execução de Luís XVI, não terá êxito: é a comemoração impossível. (LE GOFF, 1984, p. 37).
Para o autor, as festas nacionais vão além da constituição de uma identidade
nacional e trazem em seu bojo a necessidade de lembrar ao povo recordações que o
coloque em contato com as instituições políticas existentes. Entendemos que é nesta
perspectiva que a memória pode atuar como promotora de um sentimento coletivo de
pertença da sociedade em relação à nação. Com as comemorações nacionais a
materialização da memória multiplica-se em instrumentos que são criados como
formas comemorativas, moedas, selos de correio, medalhas, placas e etc. Esta
memória permeia então o domínio do folclore aproximando-a assim do turismo e nos
permitindo falar de uma “comercialização da memória” através dos souvenires, ou
mais sugestivamente falando, das lembrancinhas.
No século XX é importante ressaltar dois fenômenos interessantes na
transmissão da memória. O primeiro ocorre com o fim da Primeira Grande Guerra
Mundial que revela uma comemoração funerária para além dos limites da própria
memória. Em alguns paises é erigido o “Túmulo ao Soldado Desconhecido”. Está
memória é dotada de um poder de coesão que une a nação em torno de uma
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memória comum. Então é fácil de entendermos que mesmo as famílias que não
perderam nenhum de seus homens na guerra, frente a este monumento, se
envolvam por um profundo sentimento fúnebre e de perda por algo ou alguém que
não está registrado em sua memória individual, mas que era membro de um mesmo
grupo nacional, partilhando assim de um passado comum.
O segundo é a fotografia que possibilita à memória uma maior fidelidade visual
e também “guardar a memória do tempo e da evolução cronológica” (LE GOFF,
1984, p. 39). Ao apresentar uma fotografia para um novo membro do grupo o
individuo possibilita uma integração social dentro da memória que está contida e que
une este grupo. O passado passa a ser comum e não mais retido no particular, no
individual.
Após 1950, descobre-se a memória eletrônica. Dentro das atividades de um
computador está a memória associada à escrita e a leitura. Entendendo o
computador como um cérebro artificial, podemos considerar que em certos
momentos sua memória pode ser ilimitada. Ao contrario da humana, ela é mais
estável e o poder de evocação bem mais amplo, contudo, a memória eletrônica só é
ativada através de uma intervenção humana, o que lhe remete ao patamar de
memória auxiliar da memória humana, servindo-a quando necessária, se solicitada
por intermédio de uma programação.
1.3 – Memória Individual e Coletiva
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Le Goff nos dá uma definição bem simples, mas elucidativa do que viria a ser
memória coletiva que se caracteriza como o que fica do passado no vivido dos
grupos, ou o que os grupos fazem do passado.
Ao individuo os autores atribuem duas memórias, a individual, que
compreende lembranças em torno de si, particulares, isoladas e que permite
considerações do ponto de vista do individuo em relação a ela. Esta, porém, não
possibilita a reconstituição do passado, pois apresenta lacunas que não estão bem
definas quanto às lembranças e por isso são ignoradas temporariamente. A outra
memória é a coletiva que se apresenta dentro de uma sociedade e é composta por
várias memórias individuais.
Há uma relação intrínseca entre estas duas memórias. A memória individual,
por ser parcial e falha, pode evocar a memória coletiva para que possa preencher as
lacunas de ausência de lembranças e assim precisar melhor e ajudar a memória
individual na reconstituição do passado. Por outro lado, a memória coletiva quando
envolve as lembranças pessoais de vários indivíduos provoca uma releitura e uma
reestruturação dessas lembranças dentro de uma consciência de grupo e não mais
individual. Os membros deste grupo descobrem um passado em comum e interesses
coletivos.
Só nos é permitido lembrar daquilo que vivemos num momento do tempo, por
isso as memórias individuais não se confundem, mas na busca pelo passado o
indivíduo é levado a recorrer à memória de outro ou de referências externas
presentes na sociedade como as palavras e as idéias. As lembranças individuais se
apóiam sobre as lembranças coletivas, isto proporciona uma tomada mais cômoda e
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mais segura, mas para que essa articulação ocorra a existência primeira das
lembranças individuais é pré-requisito para que a memória funcione.
A memória coletiva é bem mais ampla e antiga, que remonta a um passado
para além do nascimento do indivíduo. Para conservar essa memória ou mesmo
ampliá-la o indivíduo recorre a leituras ou a memória de outro, mas tanto uma como
outra são memórias emprestadas.
Quando uma criança que ainda não tem percepção total do meio em que vive
restringe-se a suas lembranças pessoais, as lembranças históricas e mesmo as
instituições nacionais carregadas de tradição não passam para ela senão por noções
e símbolos. Estas noções e símbolos só passam a ser consideradas memória
coletiva quando o acontecimento é reconstituído a partir de um grupo onde há a
possibilidade de uma junção de todas as reproduções deformadas e parciais de seus
membros. (HALBWACHS, 1990).
Os nossos ancestrais (pais e avós) estavam sobre múltiplas influências, viviam
em determinada época, determinado país e envolvidos por circunstâncias nacionais
e políticas que forjaram suas memórias individuais e lhes permitiram a participação
em uma memória coletiva. Eram homens de seu tempo, permeados por suas
tradições. Partindo desta base consideramos que os nossos ancestrais, aqueles com
quem tivemos contato direto, proporcionam uma reflexão baseada num período que
não é mais o nosso, mas que tivemos a oportunidade de vivermos indiretamente
através deles. Eles estão no centro de um quadro que o resumem e o condensam. É
a partir da historia vivida que se apóia a memória e por historia entende-se:
[...] não uma sucessão cronológica de acontecimentos e de datas, mas tudo aquilo que faz com que um período se distinga dos outros,
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e cujos livros e narrativas não nos apresentam em geral senão um quadro bem esquemático e incompleto. (HALBWACHS, 1990, p. 60).
Na busca de uma identidade, os indivíduos que possuem espíritos separados
e às vezes pensamentos contrários, se comunicam e harmonizam-se criando um
meio artificial, exteriores as suas lembranças pessoais que os envolvem em um
tempo, espaço e historia coletiva, ou seja, enquanto se reconhecem como grupo
deixam momentaneamente de serem eles mesmos, saindo do isolamento e partindo
assim para uma consciência coletiva. Parte do ponto de vista do grupo a
reconstituição do passado. Quando o individuo dele se apropria sua memória e as
lembranças pessoais se renovam e se completam. (HALBWACHS, 1990).
A memória coletiva não se resume em datas ou nomes, mas representa
dentro de um quadro histórico de acontecimentos, correntes de pensamento e
experiência que possibilitam um reencontro com o passado e é na historia vivida que
ela se perpetua ou se renova, bem como, as correntes filosóficas e históricas.
Os costumes modernos repousam sobre aspectos da vida cotidiana
profundamente marcada pelo passado, aspectos que podem ser visíveis ou não e
que se revelam através de expressões faciais ou de ambientes, nos lugares, no
modo de pensar e sentir e que são freqüentemente reproduzidos de forma tão
continuada que não nos apercebemos deles ou quando percebemos não os
encaramos como passado.
Ao analisarmos a dinâmica da memória individual e coletiva, compreendemos
que nos nossos pensamentos não existem imagens prontas e acabadas, muito
menos lembrança total, o que existe são lembranças parciais que recebem
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indicações oriundas da sociedade que reordenam e reconstituem as partes do nosso
passado que não nos eram claras. As lembranças que pensávamos não existirem
em nossa memória eram bem mais presentes na memória dos outros e é a partir
delas (da memória pessoal e dos outros) que a reconstrução do passado em nossa
memória é demarcada e delimitada. Apropriando-se de “bens alheios” as lembranças
que outrora não eram nossas se enraízam e passam a compor não só mais a
memória do grupo, mas a do individuo também.
As lembranças dos grupos devem estar ligadas aos acontecimentos do
passado do indivíduo, pois cada um pertence a vários grupos. Por exemplo, uma
mulher pode ao mesmo tempo participar do Grupo de Mulheres Negras - Mãe
Andrezza - do Centro de Cultura Negra do Maranhão e ser engajada no projeto
contra o racismo. Ambos os grupos partilham de um passado comum com esta
mulher, o de discriminação por gênero ou por raça.
Todo o indivíduo faz parte de um grupo maior que consideremos aqui a nação,
mas isso não impossibilita que este indivíduo participe de grupos menores com uma
memória coletiva própria e cujas transformações o afetem diretamente.
A lembrança enquanto vivida não precisa ser fixada, quando a memória
coletiva se apaga, quando acaba a tradição, quando o grupo que sustentava a
memória coletiva se dispersa dentro de uma sociedade para a qual essas
lembranças se tornaram fatos meramente exteriores, quando há uma distância
considerável entre a memória coletiva e a sociedade, não mais traços de
continuidade mais de afastamento, é aí mesmo que nasce a história, única salvação
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de tais lembranças que precisarão ser escritas para que não caiam no esquecimento
que assola as palavras e o pensamento.
1.4 – Memória Coletiva e História
A característica fundante do tempo no qual estamos inseridos, o tempo
moderno, pauta-se na necessidade constante de mudança dos homens, dos
sistemas e das instituições que compõem as sociedades históricas. Nada é fixo, tudo
é móvel, as experiências, os pensamentos, as verdades, as mentiras, o certo e o
errado. Tudo está em ebulição, nada é absoluto em si mesmo e o traço de
continuidade mais perceptível é paradoxalmente a transformação.
Inversamente a este movimento, porém dele tendo origem, o que percebemos
é uma grande vontade de preservação da memória. Pelas rápidas mudanças
engendradas no seio das sociedades há um receio geral de que as lembranças
caiam, rapidamente, no esquecimento, causando a perda daquilo que é comum aos
indivíduos. Daí a busca pela identidade ligada a um passado comum que direciona a
vida do grupo no presente e no futuro.
A memória coletiva entendida como arcabouço de tradições que norteiam os
grupos nos remete a relação intrínseca entre passado e presente. São as
continuidades, o que tem de passado nas nossas vidas, que não permite divisões
temporais entre estes dois períodos e que concerne o interesse comum entre os
membros de um grupo.
Maurice Halbwachs, em sua obra “Memória Coletiva”, identifica o passado
como evocação tanto da memória coletiva quanto da Historia, contudo os dois
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movimentos são distintos e não se confundem. O conceito de História trazida pelo
autor é conjeturado no seu tempo, a História Tradicional / Nacional, história dos
grandes eventos, dos grandes heróis (événementielle). Vale ressaltarmos que as
comparações feitas entre memória coletiva e história, apresentada nesta pesquisa
pautam-se no estudo de Halbwachs na obra acima referida, portanto, entendemos
tratar-se da história tradicional e não a dos Annales ou mesmo a Nova História.
Se entendermos a memória coletiva como lugar de tradição, compreendemos
que ela se sustenta no que é vivido afetivo ou fisicamente, a base de suporte é o
próprio grupo, seu tempo de duração é enquanto existe o grupo e a existência do
mesmo não é pontuada por divisões histórica exterior a ele. Se o grupo se
desassocia e desaparece, é por que de alguma forma seus interesses mudaram e o
que lhe identificava e dava unidade, o passado, não é mais comum a todos os
membros.
Para que outros grupos percebam sua existência outrora, é preciso escrevê-lo.
Já podemos notar uma distância considerável entre as lembranças que compunham
essa memória e os grupos que surgem, então é preciso “fixá-las por escrito em uma
narrativa seguida uma vez que as palavras e os pensamentos morrem, mas os
escritos permanecem”. (HALBWACHS, 1990, p. 80).
A memória coletiva é a historia vivida, campo de permanência. Ela se renova
quando o grupo cresce ou se modifica e essa dinâmica permite uma rememorização
de situações pertinentes e remotas que residem nas sociedades.
Para Halbwachs o sentimento de pertencimento que une os membros de um
grupo é colocado sobre as bases da afetividade. As experiências vividas tornam-se
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memória quando o indivíduo está ligado a um grupo por um passado afetivo. A partir
daí entendemos que para uma pessoa pertencer a um grupo sua memória individual
tem que estar relacionada ao passado daquele.
A História, entretanto, é pontual e se desloca no caminho da descontinuidade.
O que diferencia um período do outro, tudo aquilo que os tornam distintos. Essa
divisão da historia não é percebida pelos atores do fato narrado. A História4 é exterior
aos grupos, está acima deles, ela enxerga os grupos de fora, ela é reflexiva, crítica e
problemática enquanto a memória coletiva está em constante evolução, assim é
passível muito mais que a história de manipulações, ela enxerga o grupo de dentro,
por isso:
“[...] no desenvolvimento continuo da memória coletiva, não há linhas de separação nitidamente traçadas, como na história, mas somente limites irregulares e incertos. O presente [...] não se opõe ao passado, configurando-se dois períodos históricos vizinhos. Porque o passado não mais existe, enquanto que, para o historiador, os dois períodos têm realidades tanto um quanto o outro”.(HALBWACHS, 1990, p. 84).
O medo que assola as sociedades históricas quanto à questão da perda de
memória, como já citamos anteriormente, nos é elucidado por Pierre Nora quando
este coloca na sua obra “Mémoire et Histoire” (1984) a questão da aceleração
histórica e nos remete ao fenômeno da mundialização que é engendrado
principalmente pelos meios de comunicação.
A duração dos fatos históricos está condicionada à duração da notícia,
percebemos a invasão constante do presente no passado. Se a história é
eternamente contemporânea e o presente eterno, o passado torna-se efêmero,
4 Historia Conhecimento – operação intelectual que torna a história vivida inteligível.
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intensifica-se a perda de identidade, a desagregação mais rápida dos grupos que
dão conta da memória coletiva. É explicável a angústia pelos registros, pelos
arquivos, pela história frente ao esquecimento.
Neste contexto, nos reportamos ao que Pierre Nora chama de “lugares de
memória”. Esses lugares representam a preocupação angustiante do homem em
relação ao esquecimento inerente, é a fronteira do que éramos e do que somos.
Representa uma identidade ameaçada de extinção, pois, passa por essa identidade
a existência coletiva que dá autenticidade à identificação entre os membros de um
grupo.
Nos lugares de memória dois fenômenos observamos, o de pertencimento e o
de desconexão. “A ‘Marseillaise’ – diz o autor – ‘ou os monumentos aos mortos
vivem assim desta vida ambígua, plena do sentimento mesclado de pertencimento e
de desenraizamento’”.(NORA, 1984, p. 25). È o lugar onde a lembrança não é só
memória e não é só história, é uma história da história daquela memória.
È história, por que a ruptura com o tempo já foi feito, é passado reconhecido
como objeto da história conhecimento, pois já é necessário escrevê-la e recorrer a
registros para que retorne a memória. E ainda é memória por que ainda é ritualizada
através da comemoração e da celebração.
Dentro da historia dita nova a memória traça a linha que desencadeia novos
olhares e novas perspectivas de estudo. As pesquisas e a própria reconstituição da
memória não se localizam somente nos textos ou na história dos grandes homens e
dos grandes eventos, mas estendem-se às imagens, aos gestos, aos rituais, às
40
festas, ao cotidiano, ao modo de vida dos pequenos grupos que compõem essa
sociedade histórica, é a “conversão do olhar histórico”.
História que fermenta a partir dos ‘lugares’ de memória coletiva. ‘Lugares topográfico, como arquivos, as bibliotecas e museus; lugares monumentais como cemitérios ou as arquitecturas; lugares simbólicos como as comemorações, as peregrinações, os aniversários ou os emblemas; lugares funcionais como os manuais ou autobiografias ou as associações... (LE GOFF, 1984: 44).
A memória coletiva nessa perspectiva torna-se objeto de estudo da história
científica, renuncia a sua tradicional temporalidade linear em detrimento do tempo
vivido.
Para concluirmos este capítulo, nos resta a alusão a memória coletiva como
instrumento de poder, nas palavras de Jacques Le Goff (1984: 46).
[...] ela faz parte das grandes questões das sociedades desenvolvidas e das sociedades em vias de desenvolvimento, das classes dominantes e das classes dominadas, lutando todas pelo poder e pela vida, pela sobrevivência e pela promoção.
Quem se apropria e manipula a memória detém o poder. Os interesses das
classes dominantes se fazem presentes nos silêncios e também nas manifestações
da memória. O que foge aos interesses dessas classes ou que lhes impeçam de uma
perpetuação no poder é manipulado de modo a ser esquecido, apagado da memória.
A memória, onde cresce a historia, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado, para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens. (LE GOFF, 1984: 47).
Hoje os maiores instrumentos de produção da memória são o rádio e a
televisão que não escapam da vigilância do governo, ou dos que estão no poder. Em
41
contrapartida, as classes dominadas lutam pela manutenção de uma memória, ou
mesmo pela reconstituição desta que permite uma maior consciência de grupo, uma
identidade capaz de arregimentar força e resistência para lutar pelos anseios do
grupo.
2- OS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS
O Movimento Negro Unificado, criado em 1978, na grande São Paulo,
contextualiza-se com o processo de redemocratização brasileira, pós-ditadura militar
(1985) que trazia em seu bojo a reestruturação das formas clássicas de
42
representação popular, os sindicatos e partidos, e o surgimento de outras
representações populares com projetos políticos mais amplos e reivindicações mais
concretas que ficaram conhecidas na década de 1980 como os (Novos)5 Movimentos
Sociais.
Com esse cenário, observamos a necessidade de compreendermos como
esses Novos Movimentos Sociais surgem na cena pública brasileira e como o seu
processo de consolidação promove o surgimento de manifestações populares como,
por exemplo, o Movimento Negro.
Nesta pesquisa identificamos dezesseis entidades do Movimento Negro no
Maranhão, Movimento Hip-Hop Favelafro, Movimento Hip-Hop Quilombo Urbano, Clã
Nordestino GDAM, Tenda Tambor de Minas de Seu Jorge, Boi Oriente de Vila
Passos, Centro de Cultura Negra do Maranhão, Consciência Negra, ABIBIMAN,
Grupo de mulheres negras Mãe Andrezza, Grupo de Mulheres Negras Maria Firmina,
Casa Fanti-Ashanti, Casa das Minas, Casa de Nagô, Federação de Umbanda e
Cultos Afros do Maranhão e Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros.
Dentro da pluralidade de sujeitos localizamos sete questões identitárias que
são o gênero, a consciência, a cultura, a educação, a história – memória, a religião,
criança e adolescentes e as terras de preto. No centro dessas entidades podem
ocorrer duas questões identitárias, ou três, ou mesmo uma, mas em todas perpassa
uma unidade discursiva que em dados momentos proporciona a articulação de todas
as entidades em prol do Movimento Negro – a questão da discriminação racial.
5 Novos Movimentos Sociais – é uma rede de interações informais entre uma pluralidade de indivíduos, grupos
e/ou organizações, engajados em um conflito político ou cultural, com base numa identidade coletiva comum.
(SILVA, 2001)
43
O Centro de Cultura Negra do Maranhão é a entidade que congrega todas
essas matizes discursivas ou identidades o que faz com que o CCN se confunda
com o próprio Movimento Negro no Maranhão.
A tematização ‘cultura negra’ une todas as entidades em busca de uma
política de valorização cultural, construção de uma identidade positiva e conquista de
direitos. O Movimento anticapitalista enquadra-se no sentimento de repúdio a um
sistema que desde o inicio subjugou o negro ao trabalho compulsório e o relegou a
subalternização com base na discriminação racial e social.
A questão da discriminação racial, que une todos os negros, todas as
entidades negras e de direitos humanos em uma só voz requer por parte de seus
militantes uma consciência clara e verdadeira da situação do negro hoje, mas
também reivindica da história as suas memórias que trazem consigo suas tradições,
seu modo de (sobre) viver e forças para resistir à opressão presente na obscura
continuidade histórica, opressão esta, bem caracterizada na discriminação racial que
a história oficial faz questão de esquecer, com o mito da democracia racial brasileira.
De acordo com as mudanças que são engendradas pelo mundo capitalista,
percebe-se que os movimentos de cunho coletivo tendem a transformarem-se de
acordo com as necessidades de suas representações. Na época getuliana
observamos duas formas principais de representações populares, os sindicatos que
articulavam, acima de tudo, as reivindicações salariais da classe trabalhadora e os
partidos políticos. Entendemos que não apenas estas representações, mas outras
também eram visualizadas como as próprias eleições, no entanto, os sindicatos e
partidos são considerados as formas clássicas de representação popular, não
44
obstante o controle social de cima para baixo imposto pelo Estado Neoliberal que
geralmente definia a atuação dessas organizações.
Neste debate nos detivemos mais precisamente à crise que abateu os
sindicatos (1970-80) devido essencialmente, à pluralidade de seus agentes e suas
formas de atuação que não conseguiram se adequar às mudanças pelas quais
passam o mundo ‘globalizado’, cujas características são, exterioridade às empresas,
rigidez e enfrentamentos para a aquisição de direitos sociais e políticos.
Outras reivindicações surgiram, desencadeadas por novos agentes coletivos
que dentro da classe trabalhadora, assumem a luta de outras categorias, tais com
sexo, etnia e opção sexual. Novas problemáticas que transcendem as tradicionais de
classe, mas que não as excluem e sim as integram.
A classe trabalhadora e muitos projetos políticos, pensada uma, e com um compromisso histórico com a transformação social, dá sintomas de uma pluralização e se diversifica. Ela agora demandaria muito mais do que melhores salários e condições de trabalho. (SANTANA, 1998, p.56).
Os princípios de diversidade existentes dentro da classe trabalhadora eram
abafados sob pena de desarticulação do movimento. As atenções e o empenho
deveriam ser voltados para a matize principal, a luta contra o capital. As demais
problemáticas pertencentes à classe eram relegadas a segundo plano, ou mesmo
seriam resolvidas com o surgimento do socialismo que acabaria com a injustiça e a
desigualdade econômica e social.
Neste contexto, as pluralidades existentes dentro da classe trabalhadora
sofrem com a impossibilidade de se articularem com outros setores de identidade,
dentro da sua órbita ou fora da classe. Mas pensar a classe como uma esfera
45
aglutinadora de diversidade dentro do âmbito do trabalho, também levou a
dificuldades em atender a demanda de implementação das políticas setoriais.
Com o processo de redemocratização (1970 -80), surgem outras formas de
representatividades coletivas encabeçadas pelos subalternizados, que não mais
propunham o enfrentamento de direitos como a classe trabalhadora anteriormente
apregoou, mas a extinção da desigualdade social e conquista de direitos pela
organização dos grupos.
Várias identidades emergem desse processo de redemocratização, para além
das definidas economicamente como a inserção na vida social que pluraliza as
vontades políticas e diversifica os instrumentos para a sua realização. Esses vários
pólos são articulados dentro e fora da classe trabalhadora.
“(...) perceber e trabalhar a pluralidade no interior da classe, agenciando demandas que partam do centro referenciado no trabalho e que podem incorporar outras dimensões, mas, sobretudo, partindo-se daí, articulá-las com demandas transversais que perpassam diferentes segmentos sociais, consolidam novos pólos identitários”. (SANTANA, 1998, p. 62).
A redemocratização brasileira pós-ditadura militar ativou na sociedade, no final
da década de 1970 e inicio de 1980, expressões organizativas que visavam lutar pela
construção da democracia e estabelecimento de direitos. Surgem os (Novos)
Movimentos Sociais na cena pública, através de manifestações reivindicatórias que
almejavam solucionar problemas sociais, locais e do cotidiano. Como exemplos
destes movimentos temos as greves do ABC paulista, movimento feminista,
movimento contra a carestia, movimento da saúde da zona leste de São Paulo, o
movimento negro e etc.
46
O cenário que retratava a sociedade brasileira no inicio da década de 1980 é
repleto de movimentações sociais e tomado por um profundo sentimento
democrático, (Diretas Já e Movimento em prol da Anistia Política) em busca de
direitos por grupos que se encontravam econômica e politicamente à margem da
sociedade, direitos estes que nunca possuíram ou que foram usurpados pela
ditadura militar (1964 -1984).
Ademais não permitir que nossos exploradores continuem tirando proveito da fome e da miséria de nossa gente [...]. A uma efetiva resistência cultural e descolonização da mente ao exorcismo da lavagem cerebral de 400 anos de ideologia supremacia branca, impõe-se uma correlata resistência política com todas as suas implicações, e conseqüências. Inclusive, se a necessidade assim exigir, aquela resistência armada, cujo ensinamento superior nos foi transmitido pelo exemplo imortal de Zumbi. (O IMPARCIAL, 13 de maio de 1980, p. 4).
Em decorrência desta efervescência social, as leituras sobre este fenômeno,
na época, discorriam sobre a questão dos Novos Movimentos Sociais como sujeito
histórico e suas identidades.
Dentro dos estudos acadêmicos, havia divergências quanto ao sujeito histórico
que promoveria a transformação social. Para Eunice Durham (1984), os Novos
Movimentos Sociais não se enquadravam nas expectativas que os estudiosos e os
militantes políticos haviam construído sobre a forma pela qual deveria ocorrer tal
transformação. A autora baseia-se na tradição marxista-leninista que considera a
classe operária e suas formas clássicas de organização – sindicatos e partidos –
detentora do poder necessário para a transformação da sociedade.
Outra estudiosa do assunto é Ana Maria Doimo (1995), para ela o que ocorreu
foi um certo otimismo teórico dentro das academias, entre os intelectuais. Esses
47
Movimentos não poderiam ser considerados sujeitos pela heterogeneidade de base
social e a diversificação das temáticas específicas. Ocorreria uma disputa entre os
Movimentos pelos recursos e pelo poder. Com base nessa heterogeneidade, a
autora vislumbra a impossibilidade de uma ‘unidade identitária’ o que caracteriza o
“ser sujeito”.
Partia-se então da idéia de sujeito único centrado na estrutura econômica pela
qual o papel de transformação do capitalismo seria da classe despovrida dos meios
de produção e que vive da sua força de trabalho. Esta classe seria a única capaz de
propor a socialização dos meios de produção em função de sua inserção no
processo de trabalho – o operariado.
Já para o historiador inglês E. P. Thompson, com base na formação da classe
operária, é na experiência social que as pessoas constituem-se como classe.
As classes acontecem à medida que homens e mulheres vivem suas relações de produção e experimentam suas situações determinantes dentro do conjunto de relações sociais com uma cultura e expectativas herdadas, e ao modelarem essas experiências em formas culturais. (THOMPSON, 1981, p. 44).
A classe só é possível na experiência de organizar-se e movimentar-se, isto é,
fazer-se classe. O sujeito não pode ser determinado pelas condições sociais e/ ou
relações de produção, mas sim na experiência que possibilita uma identidade de
classe. Este raciocínio foi fundamental para ampliar o conceito clássico de classe
operária para ‘classe trabalhadora’.
Com base no pensamento de Thompson, podemos compreender os Novos
Movimentos Sociais a partir da idéia de interesses que passam a ser um agente
48
mobilizador, porém, os Movimentos ainda são colocados na esfera da reprodução e
se restringem a categorias da classe trabalhadora.
A partir da idéia de interesses como agente mobilizador de grupos, a
professora Carmem da Silva, em sua dissertação de mestrado (2001), faz uma
relação entre a noção de sujeito e de identidade, baseada nos estudos de Stuart
Hall.
Silva, citando Stuart Hall (1999), apresenta três abordagens sobre a
pluralidade de identidades que se relacionam ao sujeito do iluminismo, ao sujeito
sociológico e ao sujeito pós-moderno. O sujeito do iluminismo considera um ser
humano como um sujeito unificado, racional, consciente e ativo, cujo centro consistia
no núcleo interior que se desenvolve com o sujeito, porém permanecendo
essencialmente o mesmo, contínuo a ele por toda a existência do individuo. “O
centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa”. (HALL apud SILVA, 2001,
p. 34).
No sujeito sociológico, o núcleo interior não se apresenta como auto-
suficiente, mas é formado a partir da relação com o Outro significativo, ou seja, a
identidade é formada na interação entre o eu e a sociedade, o eu real é
continuamente modificado pela relação com o exterior. O sujeito passa a ser
previsível com um papel pré-determinado de transformação social.
O sujeito pós-moderno, parte da idéia de que o processo de identificação
tornou-se mais variável em um tempo mais curto. Não há então uma identidade fixa,
essencial.
A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais
49
somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeia. É definida historicamente e não biologicamente. (SILVA, 2001, p. 35).
Dependendo do momento, o sujeito assume identidades diferentes que não
são unificadas porque o próprio eu não é considerado coerente. Há no individuo
identidades contraditórias que o empurram para direções diferentes, deslocando
continuamente suas identificações. O sujeito na pós-modernidade vive o processo de
mudança do grupo e das normas coletivas. Podemos então pensar na existência de
várias identidades que se alteram e se integram em função das circunstâncias do ser
e em certos momentos históricos podem predominar algumas identidades e outras
não.
Outra contribuição valiosa para a compreensão do ser sujeito e suas
identificações relacionadas aos Novos Movimentos Sociais, procede da
pesquisadora Marilena Chauí que considera a construção de um sujeito coletivo
diretamente relacionada à formação de uma identidade coletiva de grupos. Para ela
o sujeito coletivo é: [...] uma coletividade onde se elabora uma identidade e se
organizam práticas através das quais seus membros pretendem defender interesses
e expressar suas vontades constituindo-se nestas lutas “. (CHAUÍ apud SADER,
1988).
Diferentemente da tradição marxista que caracterizava a classe trabalhadora
como sujeito, entendemos que é no processo de tornar-se grupo, manifestar-se,
expor problemas e articular soluções o sujeito vai se constituindo. Assim os Novos
Movimentos Sociais são considerados sujeitos coletivos, mas não O Sujeito, único,
capaz de um processo revolucionário, detentor de um projeto político pré-
50
estabelecido, mas sim como uma diversidade de sujeitos coletivos, autônomos,
promotores de algumas mudanças a partir de seus membros e das relações sociais
que articulam.
Como exemplificamos no início deste capítulo, ao citarmos a diversidade de
ações do Movimento Negro em São Luís, fica patente que a motivação central
dessas lutas sociais toca diretamente a conquista de direitos, a promoção de uma
sociedade mais democrática com uma distribuição igualitária de renda e a
desarticulação do domínio de poder estabelecido pelas classes dominantes.
Os movimentos realizados pela sociedade civil transcendem ao sujeito
histórico e revolucionário inicial – a classe operária. Hoje a pluralidade de sujeitos
históricos que atuam nesses movimentos, permite que tais sejam legitimados pela
soberania popular e direitos humanos na luta pela transformação da sociedade
construindo suas próprias ações, baseadas nas necessidades reais dos
marginalizados, ou seja, no processo de desigualdade social que é delimitado pela
reprodução e ampliação do capital.
A conseqüência básica dessa pluralidade de sujeitos e diversificação de
identidades é a capacidade que esses novos sujeitos coletivos têm de se articularem
em dados momentos em torno de uma ‘unidade discursiva’ ligada a um processo
político. No projeto “Centro de Referência da Cultura Negra” desenvolvido pelo
Centro de Cultura Negra do Maranhão (CCN), observamos esta realidade:
Gradativamente por força da conjuntura do país, ainda sob a égide da ditadura militar, por entender-se que nossa luta – enquanto Movimento Negro – não poderia estar isolada das lutas gerais do conjunto da sociedade, é que o CCN começou a engajar-se e apoiar as lutas sindicais, dos quilombolas, dos sem-terra, dos meninos de rua, das mulheres, dos palafitados, ou seja, de todos os oprimidos e
51
explorados desta sociedade capitalista. Um marco importante deste engajamento político deu-se em 1984 quando os militantes do CCN de forma massiva participaram com faixas de protestos da ‘Marcha pela Diretas Já’, em São Luís (CCN, 2000).
Partindo deste arcabouço teórico localizamos o nosso objeto de pesquisa, a
saber, o Movimento Negro no Maranhão, mais especificamente em São Luís, a partir
de suas várias identidades, ou matizes discursivas, bem como a sua unidade que se
articula e se consolida em uma identificação maior, a consciência negra.
3 – A Memória Coletiva no Centro de Cultura Negra do Maranhão
52
O Centro de Cultura Negra do Maranhão tem na memória coletiva dos seus
membros os balizares definidores da sua atuação enquanto grupo engajado na
sociedade e na busca de mudanças para a vida cotidiana de seus membros
3.1 – A organização do Movimento Negro Unificado – MNU
Em julho de 1978 surgiu, em uma manifestação pública em São Paulo, o
Movimento Negro Unificado – MNU, contra a discriminação racial no Brasil. Este
movimento desmistificava publicamente a tão propagada “democracia racial
brasileira”, assim como, promovendo atos públicos, denunciava as discriminações e
violência sofridas pelo negro desde tempos memoráveis.
A partir daí os grupos que se formam em todo o Brasil, mesmo sem a sigla
MNU, surgem dentro de uma nova perspectivas de resistência no que se refere às
estratégias de mobilização, conscientização e atuação, visando, não apenas atingir o
segmento negro da população, mas os diversos setores da sociedade.
No Maranhão, O CCN, engajado no Movimento Negro, já coloca em pauta
essas questões na I Semana do Negro promovida por essa entidade em 1980:
[...] o Centro “exercerá suas atividades de maneira aberta, proporcionando assim, uma participação maior da comunidade”. [...] vários grupos se jogaram em atividades iguais, mas não conseguiram ir em frente devido terem uma posição fechada, apenas com a participação de negros e acima de tudo, com uma proposição de trabalho não voltados para os problemas gerais da comunidade maranhense. (O JORNAL, 18 de maio de 1980, p. 9).
53
Em relação às novas formas de resistência a questão é abordada claramente
na V Semana do Negro em que foram apresentadas várias palestras que visavam
esta temática:
Perspectivas, o negro e o processo civilizatório mundial; Dilemas de luta organizada contra o racismo; A questão da identidade e a cultura do racismo; O negro e a política partidária; As organizações do negro e seu caráter. (O IMPARCIAL, 10 de maio de 1984, p. 7).
O Movimento Negro é entendido a partir dos traços de continuidade que
transpassam o passado e são percebidos como referências e engajamento
permanente na luta contra a discriminação racial. “O movimento negro tem várias
faces, mas sempre é a continuidade da grande luta de libertação, cujo maior líder e
referencia básica é Zumbi dos Palmares” (NASCIMENTO, Portal Afro, 2004, p. 2).
Com essa afirmação de Abdias do Nascimento, percebemos a atuação da
memória coletiva enquanto tradição de resistência do povo negro, herdada desde os
quilombos. Através desta percepção aferimos que o grupo procura sustentar e
realimentar esta memória coletiva para que ela permaneça enquanto exemplo das
primeiras formas de resistência na luta do povo negro. Daí o estudo sobre quilombos
e a comemoração das ações de seus lideres serem uma constante no Movimento.
As formas de atuação podem ter tomado outras configurações como os
movimentos abolicionistas de libertação, os movimentos de integração à sociedade
de classes e os Novos Movimentos Sociais, no qual o Movimento Negro Unificado
está inserido, mas isso não significa que o grupo tenha mudado.
Não estou propondo que voltem ao passado. Não é isto que prego. Devemos aproveitar a inspiração e os valores que são permanentes e adaptá-los a nossa época, com os critérios atuais, para construir nosso legado para o futuro. (NASCIMENTO, Portal Afro, 2004, p.4).
54
A historia foi dividida dentro do seu sistema de temporalidade linear, mas o
grupo que carrega a tradição ainda não se dissociou, pelo contrario, busca sempre o
elo com o passado para se movimentar no presente e articular projetos para o futuro.
3.2 – O contexto da criação do CCN – MA
Neste último capítulo pretendemos observar a constituição do Centro de
Cultura Negra enquanto sujeito coletivo, a formação da sua identidade e a
reconstrução da memória coletiva dentro deste processo. Para isso, se faz
necessário retomarmos o contexto da organização do CCN no final da década de
1970 e inicio de 1980, época que surgiram os aos Novos Movimentos Sociais e suas
afirmações como sujeitos coletivos.
Na transição entre as décadas de 1970 – 80, ocorreram fatos que modificam a
conjuntura mundial. Em 1978, a Frente Sandinista de Libertação Nacional venceu na
Revolução Nicaragüense. Em 1979, Margareth Thatcher assumiu o governo da
Inglaterra e intensificou o neoliberalismo; a crise do Leste Europeu colocou em
cheque o socialismo; ocorreram, ainda, as reformas do processo comunista chinês;
na América Latina os bispos católicos reuniram-se em Puebla, e resolvem fazer a
opção preferencial pelos pobres. (EQUIP, 1998).
Diante de todos estes fatos, O CCN centra sua atenção na situação da África,
nas lutas dos negros.
Na década de 1970 é sacudido por uma forte onda libertaria; nações que anos a fio estavam sob o jugo de paises europeus, iniciaram uma
55
caminhada com guerra, sangue, morte e heróis na busca de suas independências. Essas notícias ainda que deturpadas pela imprensa amordaçadas e submissas a ditadura militar e ao imperialismo, chegaram até as diásporas africanas, enchendo de orgulho os descendentes africanos nos mais diversos pontos do mundo. Também neste período dava-se a continuação da luta dos negros norte-americanos por igualdade civil, luta essa que iniciara desde a década de 1960, através do movimento armado Panteras Negras, alem dos movimentos comandados por lideres como Martin Luther King (pacifista) e Malcom X (que pregava a necessidade de luta armada). Foi nessa época que surgiu a moda Black Power, ou seja, os negros assumidos com cabelo natural, sem alisamento. (CCN, 2000)6.
No Brasil ocorre a abertura lenta e gradual da Ditadura Militar, instaurada pós-
golpe militar de 1964. Brasileiros exilidados no exterior, políticos e entidades da
sociedade civil, fazem campanha pela anistia ampla, geral e irrestrita e pela volta ao
Estado de Direito. Retornam ao cenário público as lutas de trabalhadores que são
protagonizadas pelos metalúrgicos do ABC paulista e pelos canavieiros de
Pernambuco. O Movimento Democrático Brasileiro vence as eleições de 1978 e em
1979, com a anistia, várias lideranças políticas retornam ao país. Ainda em 1979 a
União Nacional dos Estudantes (UNE) é reorganizada, também é realizado o
primeiro encontro nacional feminista dentro da reunião anual da Sociedade Brasileira
para o Progresso da Ciência – SBPC, em Fortaleza. (EQUIP, 1998).
Em 1980 é fundado o Partido dos Trabalhadores (PT) com a participação de
lideres do “sindicalismo autêntico” e dos movimentos populares, da Igreja católica e
intelectuais de esquerda. Neste contexto nacional surgem os Novos Movimentos
Sociais como: o movimento do custo de vida, movimento de mulheres, lutas por
transporte coletivo, luta pela causa negra, por creches, por melhorias urbanas e pelo
direito à posse da terra e à moradia. Em 1983 é fundada a Central Ùnica dos
6 Documento interno do Centro de Cultura Negra do Maranhão -capacitação de militantes
56
Trabalhadores, baseada no novo sindicalismo e composta por lideranças oriundas do
PT, da Central Geral dos Trabalhadores (CGT) e de partidos comunistas
clandestinos. Ocorre uma onda de saques e quebra-quebra no Rio e em São Paulo,
tentativas de greve geral organizadas pela CUT e um expressivo movimento de
desemprego em São Paulo. (GOHAN, 1995).
Em 1984 surge a campanha das Diretas Já para Presidente da República que
foi apresentada ao Congresso Nacional através da emenda “Dante de Oliveira”,
sendo esta derrotada. (EQUIP, 1998).
No Maranhão, o Estado cria a COMARCO (Companhia Maranhense de
Colonização) para administrar os conflitos agrários (grilagem, assassinatos e etc.).
Em setembro de 1979 ocorre a Greve de Meia Passagem - “Meia Passagem ou meia
cidade” – uma manifestação de caráter estudantil que terminou com a vitória dos
estudantes depois de várias ações violentas por parte da policia e dos próprios
estudantes. Ainda, neste ano, na praça Deodoro ocorreram manifestações Contra a
Carestia. São inúmeros no Estado os enfrentamentos nas ocupações de solo urbano.
Estas ocupações resultaram nos bairros que hoje conhecemos como João de Deus,
São Bernardo entre outros. (BORGES, 1998).
Os movimentos pela redemocratização do Maranhão são engendrados por
universitários, educadores, artistas, políticos de oposição que promovem, por
exemplo, a resistência feita pelo Comitê de Defesa da Ilha em relação à implantação
da Alcoa em São Luis e o engajamento na campanha pelas Eleições Diretas para
Presidente da Republica. Estes movimentos produziram em São Luis grupos
artísticos culturais, grupos de mulheres e o próprio CCN que traziam a tona questões
57
relevantes à dinâmica social e se congregavam em torno da Federação do Teatro
Amador e do Laboratório de Expressões Artísticas – Laborarte. (BORGES, 1998).
Com esses exemplos demonstramos de forma resumida a efervescência
política e social brasileira no final da década de 70 e inicio de 80, momento em que
aconteceu o processo de redemocratização.
O Centro tem como proposição defender a participação do negro dentro de atividades sócio-economico-politicas “como ser comum, não por ser negro e ser por isso bom, mas por merecer uma participação livre como qualquer pessoa” frisou a vice-presidente Maria Raimunda Araújo. (O JORNAL, 18 de maio de 1980, p. 9).
Com esta posição o Centro de Cultura Negra do Maranhão ressaltou a sua
preocupação em se manifestar na sociedade. O sentimento de libertação de um
regime que oprimia a sociedade há duas décadas influenciou todas as instancias,
inclusive, a formação de grupos sociais que reivindicavam direitos usurpados pelo
Estado e buscavam uma identificação coletiva que lhes permitissem um
reconhecimento da sociedade e respeito as suas características.
3.3 – O Centro de Cultura Negra do Maranhão
O Centro de Cultura Negra do Maranhão consiste em uma importante
organização do Movimento Negro no Maranhão. Nesta pesquisa, trabalho o CCN
como entidade do Movimento Negro, mas é pertinente destacarmos que entre os
militantes desta entidade e dentro da própria sociedade civil não há uma precisão do
que realmente seria o CCN.
58
Alguns militantes o consideram como sendo o próprio Movimento Negro no
Maranhão, pois, dele parte a maioria das atividades que permeiam a causa negra no
Estado. Outros por sua vez colocam-no como Organizações não Governamentais
(ONGs), pois os projetos desenvolvidos no CCN têm financiamento próprio, ou são
financiados por agencias internacionais e visam o bem estar de vários setores da
sociedade civil, como criança e adolescentes, mulheres, idosos entre outros. Porém,
a maioria dos cientistas sociais, entre estes a professora Carmem Maria Silva, o
localizam como entidade do Movimento Negro no Maranhão, e do Movimento Negro
Unificado, em primeira e segunda instancia, respectivamente. Entidade por que
representa uma organização por onde passam várias questões relacionadas à luta
do povo negro, mais não aborda toda a sua problemática, podendo em alguns
momentos se confundir com o Movimento Negro porque compõe várias identidades
que se congregam em torno da questão raça.
O CCN foi criado em 19 de setembro de 1979 na sede da Sociedade
Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos e oficializada em assembléia no dia 13
de março de 1980. Surgiu a partir de um grupo com formação universitária que vinha
desenvolvendo estudos e pesquisas sobre o negro e sua cultura.
Hoje com 26 anos, o CCN funciona na rua dos Guaranys, no Barés, próximo
ao bairro João Paulo em um prédio doado pela prefeitura de São Luís, em 1995.
Suas instâncias organizativas são atualmente: assembléia geral, diretoria
administrativa, conselho fiscal e departamentos: cultural, esportes, informação e
divulgação, estudos e pesquisas, eventos e promoções. Ainda dentro do CCN de
forma articulada ao departamento de cultura existem o Bloco Afro Akomabu, a
59
Associação Atlética CCN, o Grupo de Capoeira Raízes dos Palmares e o Grupo de
Dança Afro Abanjá. O objetivo geral do CCN é “lutar contra a discriminação racial e
contribuir para a articulação dos afro-descendentes na defesa do direito à igualdade
na sociedade brasileira”. (CCN, 2001).
Suas atividades estão ligadas diretamente à formação de uma consciência
negra em que se destacam as realizações de reuniões temáticas, debates,
seminários, encontros, passeatas, exposições, mostras culturais, atos públicos, que
são realizados em bairros periféricos, nas comunidades negras rurais e em escolas
publicas e privadas.
O CCN trabalha, basicamente, com voluntários que são chamados dentro
dessa entidade de militantes, pessoas que tem uma motivação para a causa negra,
ou seja, se identificam com as questões pertinentes a luta do povo negro.
Analisamos dentro da estruturação do CCN, a presença marcante da memória
coletiva enquanto unidade discursiva, elo que mantém o grupo unido em
determinado momento histórico. Para que um militante assimile a causa negra como
sua, é preciso que ele saia do seu isolamento e perceba o passado do ponto de vista
do grupo.
Estar no CCN, estar no Movimento Negro hoje, pra mim, faz parte da minha vida. Eu não saberia mais viver fora desse movimento, eu não vejo mais fora de mim, então eu tenho uma consciência muito forte da minha condição enquanto mulher negra, afrodescendente, e uma consciência de força muito grande. De luta. De continuar este processo de luta organizativa, política, que nossos antepassados já iniciaram desde a época da escravidão nos quilombos. Diziam que a gente era passivo, coitadinho, e não é nada disso, a organização dos quilombos taí pra provar isso. Então, pra mim, é como viver. Eu vivo 24 horas por dia essa luta, essa consciência de que eu preciso contribuir para que as crianças, os jovens, os adolescentes, as
60
mulheres e homens negros menos favorecidos, que somos nós, que é a maioria, tenham condições de vida digna [...]7 [informação verbal]
A partir deste depoimento aferimos três pontos de fundamental importância
para a articulação entre identidade e memória coletiva dentro do CCN. O primeiro
está relacionado ao embricamento entre memória coletiva e individual. As
lembranças individuais da militante já estão de tal forma articuladas com as
lembranças do grupo que a memória coletiva passa a ser a razão de sua existência.
O segundo ponto diz respeito à continuidade do mesmo grupo desde a época
da escravidão, como já nos referimos acima. A militante faz alusão à necessidade de
continuar a luta iniciada pelos antepassados nos quilombos. Ela se coloca como
guardiã e promotora da tradição de luta que começou em uma organização social
que historicamente não existe mais, os quilombos 8.
O terceiro e último ponto nos remete à dupla consciência que perpassa a
militante. Ela tem consciência de que é mulher e negra, ou seja, duas formas de
lembranças, uma que remete a discriminação em relação à mulher e outra mais
acentuada que passa pela discriminação de raça. Sendo assim, confirmamos a
presença de varias memórias coletivas que levam um individuo a pertencer a vários
grupos dentro da sociedade.
Quando eu entrei no CCN uma pratica muito interessante eram as reuniões de estudo as terças – feiras. Nessas reuniões a gente tinha a possibilidade de entender este processo de discriminação, de racismo. A gente estudava textos, informações sobre a situação do negro aqui e na África, nos Estados Unidos... E tinha o Mãe Andrezza (grupo de mulheres) onde a gente fazia a linha da vida. Era uma oportunidade da gente ta passando as experiências de
7 Entrevista concedida por Socorro Guterres, 46 anos, ex –coordenadora do CCN. 8 Hoje existem os novos quilombos organizados em terras de preto, mas não com a mesma composição política e social de outrora.
61
discriminação que a gente sofria, a situação de vida com relação à origem [...} isso nos fortalecia, fazia agente trabalhar outras perspectivas, pra ta tendo um sentimento mais positivo9. [informação verbal].
A memória individual é parte integrante da memória coletiva do grupo, as
lembranças compartilhadas pelos militantes em formas de experiências claras ou
obscuras e as adquiridas através da integração denotam um sentimento único de
pertença e a reconstrução de sua memória coletiva como fator primordial na
formação de sua identidade grupal. A imbricação entre vida e militância, o individual
torna-se coletivo no processo de pertencimento e de vivência integral de luta.
3.3.1 – Lugares de memória promovidos pelo CCN – MA
Os lugares de memória que podemos detectar dentro do Centro de Cultura
Negra do Maranhão são promovidos pelas atividades desenvolvidas dentro do
movimento. São lugares que contam as histórias da história da memória que são
depositadas naquele lugar. São instrumentos resgatados pelos militantes ou forjados
por eles para que a memória coletiva não caia no esquecimento promovido pela
efervescência midiática e as constantes mudanças do mundo pós-moderno que
transformam costumes e tradições em espetáculos folclorizados que não tem a
finalidade de identificação nem de mobilização, mas sim se restringindo à mera
diversão de turistas e entretenimento.
9 Entrevista concedida por Socorro Guterres, 46 anos, ex –coordenadora do CCN.
62
Assim então podemos falar em lugares topográficos quando nos remetemos,
por exemplo, a Cafua das Mercês, ao Museu do Negro, aos registros internos do
próprio CCN, com suas pesquisas e estudos arquivados e aberto ao público.
Para os que vivem nas chamadas ‘Terra de Preto”, a territoriedade se constitui um forte fator de identidade. Ela envolve as relações com os recursos naturais e contribui para que os aspectos culturais se consolidem. Não pode ser, pois, reduzida à simples noção de ‘terra’ . (PROJETO VIDA DE NEGRO, 2003, p.16).
Lugares monumentais como a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos
Pretos, ou Igreja do Desterro e as senzalas do Sítio do Físico, lugares Simbólicos
como a comemoração do dia da “Consciência Negra”, no dia 20 de novembro,
[...] os movimentos sociais escolheram essa data para mostrar o quanto o país está marcado por diferenças e discriminações raciais. Foi também uma luta pela visibilidade do problema. Isso não é pouca coisa, pois o tema do racismo sempre foi negado, dentro e fora do Brasil. Como se não existisse. (O BRASIL NEGRO, Revista Com Ciência, 2004, p. 1).
E por fim, lugares funcionais como as publicações: “Jamary dos Pretos: Terra
de Mocambeiros”, “A Verdadeira história do Brasil são outros Quinhentos”, “A
Resistência Histórica do Quilombo do Frechal, entre outras publicações criadas
dentro do CCN. (Projeto Vida de Negro, 2003).
3.4 – A identidade étnica enquanto memória coletiva
O CCN se entendido como entidade integrante do Movimento Negro está
contextualizado com os Novos Movimentos Sociais que prima pelo processo de
grupalização e manifestação em torno de identificações e que tem forte poder
motivador. No caso do CCN a identidade étnica é o elemento mais forte de estímulo
63
á participação, é uma forma peculiar de identificação mobilizadora de uma
subjetividade coletiva capaz de potencializar organização e ação de sujeitos.
O termo identidade étnica traz consigo uma carga de memória coletiva que
nos remete a prática de retorno às origens como forma de categorizar a si mesmo e
aos outros com objetivos de interação e resistência cultural. O militante passa a ser,
ele mesmo referência de memória, um lugar simbólico de memória coletiva, como
forma de continuidade da tradição. Essa prática é incentivada a partir do
engajamento do indivíduo no Movimento Negro:
Multiplicam-se entre a comunidade negra brasileira as manifestações de interesses pelas formas culturais de origem africana. O recurso dos alisamentos de cabelo, tão comum em outros tempos, em que o negro buscava, assimilar até fisicamente os padrões dos brancos, cedeu vez aos penteados e arranjos que visavam valorizar as características morfológicas próprias dos cabelos dos brasileiros de origem africana [...] um conjunto de outras atitudes que vão desde o estudo das línguas e dialetos africanos à pesquisa de seus costumes. (O IMPARCIAL, 07 de maio de 1980, p. 16).
O pertencimento ao grupo tem a ver com a vivência de elementos culturais
que naquele momento, são relevantes para o grupo e com o fato da pessoa declarar
sua sujeição à cultura compartilhada. A memória coletiva leva o militante através de
traços culturais e tradicionais a se reconhecer como negro e reconhecer os demais
enquanto negritude.
As pessoas procuravam o movimento, se aproximavam, isso no começo pelo desabafo, a indignação. Então as pessoas vão mudar radicalmente sua postura de vestir de cabelo, ninguém vai mais alisar cabelo. Hoje é que a negada voltou de novo10. [informação verbal]
10 Entrevista concedida por Magno José Cruz, 55 anos, militante e ex-coordenador do CCN.
64
Embora tenha sua situação de existência dada, seja pelos caracteres próprios
como cor da pele, feições, tipos de cabelo, seja pelas condições materiais de ordem
econômica e social, ou ainda pelas experiências marcantes em termos de
discriminação e opressão e os sentimentos semelhantes que isso provoca, é pelo ato
de fazer-se negro, apropriar-se da memória coletiva que engendra toda a tradição de
opressão e resistência, bem como costumes do povo negro, e fazer-se coletivamente
em uma comunidade de vivencias comuns, que se estabelecem novas práticas
capazes de colocar publicamente o que antes era vivido no espaço individual, no
espaço privado da dor e da revolta. Estes atributos são naturalizados como
estratégia de discurso que ajuda a construir uma identidade comum, o que por sua
vez, possibilita a expressão coletiva de necessidades e vontades.
3.5 – Negação e Afirmação - Lembranças de 13 de maio e 20 de novembro
Nos dez primeiros anos da atuação do Centro de Cultura Negra do Maranhão
observamos que os artigos publicados nos jornais da época faziam referência à
necessidade da desconstrução do mito da democracia racial, par isso teremos que
compreender como este se forma e se articula na sociedade brasileira desde os
tempos da abolição.
Quando a lei Áurea foi assinada em 1898, a situação dos descendentes de
africanos já era de liberdade, 95% desta população já era livre, alguns já faziam
parte da elite intelectual do país e eram engajados na luta abolicionista, como José
do Patrocínio (1854 – 1905), André Rebouças (1893 – 98), Luiz Gama (1830 – 82) e
65
Francisco de Paula Brito (1809 – 1861). Muito embora o adiantamento do processo
em relação à resolução definitiva que foi a Lei Áurea, dentro das elites observamos
um silencio em relação a questão da cor da pele e a situação formal de igualdade
pressuposta com a lei recém aprovada, era regra de etiqueta não se tocar neste
assunto. (D’ALESSIO, 2005).
Isto se configurou como forma da manipulação da memória coletiva,
mormente aos grupos negros, pois desencadeou dois processos que se
transformaram em problemas nas novas configurações de resistência, a saber, o
Movimento Negro Unificado e suas entidades.
O primeiro processo foi a formação do racismo “à brasileira”, através do mito
da democracia racial, muito destacado nas preocupações que perpassam o CCN na
década inicial de sua formação:
A Semana do Negro serviu, antes de tudo, para que fossem assentadas as bases do CCN no Maranhão, que apresentou do dia 13 a 17 de maio vasta programação com conferencias abordando temas como: ‘O mito da democracia racial do Brasil’[...] (O JORNAL, 18 de maio de 1980, p. 9). Tem inicio marcado no próximo dia 14 prolonga-se até o dia 19 do mês corrente, a V Semana do Negro no Maranhão, promovida pelo Centro de Cultura Negra do Maranhão [...]. As palestras serão realizadas no horário das 18:30 min ás 21:30 min, abordando temas como: I – ‘A luta organizada contra o racismo – A democracia Racial, um mito; As organizações do negro e seu caráter’. (O IMPARCIAL, 10 de maio de 1984, p.7). A X Semana do Negro no Maranhão, segundo seus organizadores, vem lembrar a sociedade que os movimentos negros no Maranhão lutam contra o racismo e que tentam desmenti a falsa historia difundida a séculos na s escolas e ‘bons livro’. [...] é falsa a historia de que a Princesa Izabel libertou os escravos por pura ‘bondade’, ou que no Brasil não há problemas de racismos, ou preconceito contra as minorias (os próprios negros, índios e mestiços) que são usados com mão – de – obra barata, gerando a miséria e a fome no Brasil. (O ESTADO DO MARANHÃO, 12 de maio de 1989, p. 5).
66
O segundo processo é a inibição e manipulação de toda uma memória coletiva
de luta e resistência dos últimos cativos na conquista da liberdade, bem como a luta
pela inserção no mercado de trabalho. “A partir de 1840 observamos um silencio
sobre as cores da população livre nos documentos oficiais e nas relações sociais”.
(MATOS, 2005, p.17). A libertação dos escravos não se deu às vias de fato em todas
as áreas, ficou meramente na área jurídica, mas os ex-escravos continuaram
escravos da discriminação e do preconceito racial e social.
Mas que liberdade é essa, que na deu condições até hoje, do negro poder assumir descentemente a sua cidadania/ Ele é e continua sendo o segmento social étnico mais explorado e oprimido na sociedade de classes. Continua discriminado, por exemplo, no mercado de trabalho, onde as barreiras sociais e raciais restringem sobremaneira a sua força de trabalho [...]. Outro exemplo é a manipulação do poder nas mãos dos brancos que constitui a minoria esmagadoras das classes dominantes, que detém os meios de produção e também o controle do poder político. (O IMPARCIAL, 20 de maio de 1984, p. 2).
Para o CCN e o Movimento Negro no Brasil, o dia 13 de maio se caracteriza
como um lugar simbólico, lugar de memória, onde a comemoração não nos remete a
uma lembrança de liberdade, como pressupõe a historia oficial, mas a traços de
continuidade de um sistema repressor que engendra até hoje a discriminação racial e
os silêncio da memória coletiva. Em relação ao dia 13 de maio, dia da “Abolição”:
É um dia que não comemoramos por que a Abolição não aboliu de fato a escravidão, e sim, aboliu os ex-senhores de engenho de assumir qualquer responsabilidade social para com o escravo. Abolição que se dá a revelia dos interesses daquele, que foi a classe mais oprimida e ultrajada no contexto da sociedade escravista colonial. Questionamos a Abolição porque nela há todo um discurso ideológico, escamoteado das classes dominantes, na medida em que após a Escravidão o ex-escravo vai para os porões da sociedade sem dispor das mínimas condições materiais para suprir a ‘vida em liberdade’. (O IMPARCIAL, 20 de maio de 1984, p. 2).
67
Além da memória coletiva que permeia a unidade discursiva e identitária do
Movimento Negro com as tradições de luta e resistência da negritude é importante
frisarmos que o CCN também se ocupa do resgate de parte dessa memória que é
manipulada pela classe dominante com o propósito de garantir o poder.
O que verificamos é que as atividades organizadas pelo CCN aqui no
Maranhão, principalmente no dia 13 de maio, podem se caracterizar como a tentativa
real de uma reconstituição verdadeira do passado da negritude a fim de promover
uma conscientização não só da realidade continuada do negro no Brasil, como a
importância social-cultural e econômica que ele engendra desde os primórdios da
escravidão no nosso país. “Demolir mitos reformistas como a abolição, para os
militantes do movimento Negro é mais que um direito é um irremediável dever” (O
IMPARCIAL 13 de maio de 1989, p. 16).
[...] a plena integração do negro na vida brasileira foi e continua sendo, dificultadas, por várias circunstancias alheias à sua vontade, mormente a escravidão e suas seqüelas socioeconômicas. Corrigir esses fatores e trabalhar por uma efetiva promoção do cidadão negro é hoje tarefa urgente. (O IMPARCIAL, 7 de maio de 1980, p.16).
Ainda nesta perspectiva, eram utilizados temas que procuravam desconstruir a
história oficial, ou mesmo, fazer falar lembranças adormecidas intencionalmente pela
elite dominante. Temas como, ”O Negro e a sua Historia -Brasil e Maranhão (O
IMPARCIAL, 10 de maio de 1984), abordado na V Semana do Negro ou temas como
”Revisão Bibliográfica sobre o Estudo do Negro no Maranhão com a finalidade de
discutir a historia do negro no Brasil e no Estado” ( O ESTADO DO MARANHÃO, 19
de maio de 1989, p.7).
68
A partir desta lembrança o CCN enquanto entidade do Movimento Negro aqui
no Maranhão constrói a sua memória coletiva de luta contra a discriminação racial
dentro de um Estado que possui a terceira maior população negra do Brasil,
perdendo apenas para a Bahia e Rio de Janeiro.
Em contraposição ao dia 13 de maio que é considerado pelos militantes do
Movimento Negro, ”traição, liberdade sem asas e fome sem pão” (REVISTA COM
CIÊNCIA apud SILVEIRA, 2004, p.1), é estabelecido nacionalmente o dia 20 de
novembro, como dia Nacional da Consciência Negra.
Em 20 de novembro de 1665 foi assassinado o maior líder de quilombo que o
Brasil já teve conhecimento, Zumbi, do quilombo dos Palmares. Este é imortalizado
como símbolo da resistência negra ao escravismo e da luta pela liberdade. Palmares
durou 140 anos, as evidências que remontam sua origem são de 1585 e há
informações de escravos fugidos da Serra da Barriga até 1740, ou seja, até bem
depois da morte de Zumbi. Embora tenham existido várias tentativas de acordo de
paz, prevaleceu a força e o poder colonial contra Palmares.
Esta data também é lembrada pelo Movimento Negro, mas ao contrário de 13
de maio, esta é celebrada, comemorada, festejada, pois carrega consigo uma
memória coletiva que traz em seu bojo a tradição de resistência, de luta, de força. O
dia 20 de novembro remete à força de vontade de um homem que contagiou toda
uma comunidade na luta contra a escravidão, este exemplo, deve ser seguido. Essa
herança de luta e resistência precisa continuar, em contrapartida à herança de
discriminação e preconceito racial do dia 13 de maio.
[...] resgatar a memória é importante porque informação é conhecimento e obter conhecimento é uma forma de obtenção de
69
poder. Seria necessário, então, promover a recuperação da dignidade dos ‘antepassados africanos’: embora o movimento negro tenha conseguido resgatar a memória de Zumbi e do quilombo dos palmares, praticamente não há monumentos dedicados à historia da população negra e seus antepassados. (Revista com Ciência apud BENEDITO, 2004, p. 4).
O dia da morte de Zumbi é para o Movimento Negro um momento que
promove reparação e esta por sua vez está intrinsecamente articulada ao resgate da
tradição de luta como forma de promoção do cidadão negro.
70
4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Movimento Negro, no Brasil, apresenta características próprias dos
Novos Movimentos Sociais que surgem na esfera pública no final da década de 1970
e início de 1980. Neste período os grupos da sociedade civil que se organizavam
traziam em sua formação a compreensão de que eram sujeitos coletivos capazes de
engendrarem mudanças reais e significativas que perpassavam os interesses do
grupo dentro da sociedade e buscava intensamente uma unidade discursiva que lhes
promovessem um sentimento de pertencimento, uma identificação com o grupo.
No Maranhão, o entendimento sobre a luta do povo negro fica mais claro com
a criação do Centro de Cultura Negra no Maranhão em 1979. Não podemos
considerá-lo a representação máxima do Movimento Negro aqui em nosso Estado,
visto que na presente pesquisa detectamos pelo menos 16 dessas entidades
representativas apenas em São Luís, mais é a partir da organização do CCN que
percebemos uma articulação maior das atividades em torno da causa negra dentro
de um campo estadual especifico.
Como em todo Movimento Negro, o CCN carrega a bandeira de luta contra o
racismo, através da resistência contra a discriminação racial e social. Percebemos
durante as entrevistas e depoimentos coletados, que os militantes envolvidos nesta
entidade comungam de um mesmo passado, de experiências semelhantes de
preconceito e de um mesmo ideário de combate e luta. A unidade discursiva que
permite esta coesão gira em torno de uma identidade étnica que vai além da cor da
pele e transcende as lembranças individuais, mas está relacionada com as tradições
aferidas ao grupo e a sujeição a elas.
71
Sendo assim a presente pesquisa percebeu a importância da memória coletiva
na construção da consciência negra em busca de uma identidade de grupo, através
das atividades desenvolvidas pelo Centro de Cultura Negra do Maranhão.
A busca angustiante por uma consciência negra está relacionada a
rememorização de um arcabouço de tradições e costumes que integram a base da
luta negra contra o racismo e na conquista de direitos individuais e coletivos.
Observamos então, que as referencias a tradição de luta e de resistência da
negritude sempre estão relacionadas com a tradição de discriminação racial. Para
que o militante se identifique com o grupo ele deve primeiramente lembra-se de que
é negro, e negro discriminado desde a época da Escravidão, mas também deve
resgatar na memória coletiva a herança de resistência desencadeada desde Zumbi
dos Palmares. O negro discriminado e que resiste, entende que essa luta vem desde
seus ancestrais, se apropria de suas tradições e desencadeia uma luta, no hoje, com
vista à conquista de direitos no futuro.
Esses traços de continuidade parecem dois movimentos contrários dentro da
memória coletiva, mas na realidade a lembrança de opressão é pré-requisito pra
existência de uma lembrança de resistência. Se a luta dos negros contra o
preconceito racial chegar ao fim e a tão esperada igualdade for atingida, não será
mais preciso resistir, pois, não haverá mais discriminação, o grupo que daria suporte
a tradição de luta se esvaziaria e então se perderia a memória coletiva, talvez outra
identidade se ergueria, mas não a de raça, e tudo viraria História, do ponto de vista
da tradicionalidade.
72
O lugar da memória coletiva dentro do movimento negro assume papel de
extrema relevância, uma vez que promove a construção da consciência negra nos
militantes que fazem parte desse movimento.
A comunidade negra tem que ser fiel a si mesma, ao seus antepassados, fiel a historia de nossas lutas [...] é preciso dar continuidade a grande luta de Zumbi dos Palmares. O direito está a nosso favor. Os orixás estão nos prestigiando e nos amparando. É nossa beleza. É nosso futuro. (NASCIMENTO, Portal Afro, 2004, p. 8).
A memória coletiva não só promove a identidade do grupo, também,
sedimenta a própria razão de existir do Movimento Negro. Para o grupo preservar os
traços de continuidade de luta é primar pela sobrevivência da causa negra.
73
5. FONTES CONSULTADAS
TIPO: Jornais
ACERVO: Biblioteca Pública Benedito Leite
Encerrada a Semana do Negro. O Jornal, 18 de maio de 1980, nº 1.062, p. 9.
FILHO, Acácio Caz de Lima. Racismo e Desagregação Nacional. O Imparcial, 7 de
maio de 1980, nº 14.830, p. 16
NASCIMENTO, Abdias do. Pelé não tem Pele. O Imparcial, 13 de maio de 1980, nº
14.836, p. 4.
MACHADO, José. Negro: discriminação com liberdade.O Imparcial, 17 de maio de
1980, nº 14.840, p. 4.
Começa dia 14 mais uma Semana do Negro. O Imparcial, 10 de maio de 1984, nº
15.951, p. 7
Cientista Social fala sobre Movimento Negro. O Imparcial, 20 de maio de 1984, nº
15.960, p. 2
74
Semana do Negro será encerrada hoje na UFMA. O Estado do Maranhão, 19 de
maio de 1984, nº 4.444, p. 7
JANSEN, Avelino RODRIGUES, Juan e CRUZ, Magno. Acabou a Escravidão? O
Imparcial, 13 de maio de 1989, nº 17.589, p. 16.
Debate marca hoje o 1º dia da Semana do Negro. O Estado do Maranhão, 12 de
maio de 1989, nº 9.299, p. 5
TIPO: Portais
ACERVO: Internet
REVISTA COM CIÊNCIA. O Brasil Negro. SBPC. Disponível em: www.
comciencia.br / reportagens / negros / 01. shtml. Acesso em: 13 dez. 2004.
REVISTA COM CIÊNCIA. Reivindicações por reparação caracteriza movimento
negro contemporâneo. SBPC. Disponível em:
www.comciencia.br/reportagens/negros/02.Shtml. Acesso em: 07 dez. 2004.
NASCIMENTO, Abdias do. Uma vida dedicada a um ideal, Entrevista concedida
em: 17 dez 2001. Disponível em:
http://www.portalafro.com.br/entrevistas/abdias/internet/abdias.htm. Acesso em: 13
dez 2004.
75
TIPO: Depoimentos
ACERVO: Centro de Cultura Negra do Maranhão
Perfil dos depoentes:
1 – Maria Socorro Guterres – 46 anos; formada em pedagogia; professora da rede
pública; ex-coordenadora do Centro de Cultura Negra do Maranhão (2001); foi
participante ativa do Grupo de Mulheres Negras Mãe Andrezza; atua no Projeto
Quilombo e Resistência Negra (PQRN), com educação e organização comunitária
em comunidades negras rurais e trabalha também com um projeto de erradicação do
trabalho infantil, desenvolvido pela Fundação Municipal de Assistência – FUMCAS.
2 – Magno José Cruz – 54 anos; casado; engenheiro; funcionário da Companhia de
Águas e Esgoto do Maranhão – CAEMA; dirigente do Sindicato dos Trabalhadores
nas Industrias Urbanas no Maranhão – SITU – MA; Três mandatos na direção do
Centro de Cultura Negra do Maranhão, sendo dois como coordenador (1985 – 87 /
1987 – 89); já foi candidato a vereador pelo PT em 1998.
TIPO: Documentação Interna
ACERVO: Centro de Cultura Negra do Maranhão
CCN. Projeto Centro de Referencia da Cultura Negra. São Luís, CCN, 2001.
76
6. REFERÊNCIAS
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Pesquisa: Lutas Sociais e Organização Política no Processo de Gestão Pública: o
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UEMA) - Relatório Final (CNPq). NUPDER / UFMA - Cult-Pólis.São Luís, agosto/
2004.
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Acesso em: 7 de dez. 2004.
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77
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REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA. Memória, História, Historiografia – Dossiê
Ensino de História. Vol 13, nº 25 / 26. São Paulo, ANPHU/Marco Zero, setembro 92 /
agosto 93.
DOIMO, Ana Maria. A Vez e a Voz do Popular – Movimentos Sociais e
Participação Política no Brasil Pós-70. Rio de Janeiro, Relume – Deimará /
ANPOCS, 1995.
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Novos Estudos. Nº 10. São Paulo, CEBRAP, 1984.
EQUIP. Relatório do Seminário de Atualização Metodológica e Movimentos
Sociais. Recife, EQUIP, 1998.
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Clássicos e Contemporâneo. São Paulo, Loyola, 1997.
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HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós- modernidade. Trad.: Tomaz Tadeu da
Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro, DP&A, 1999.
78
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SADER, Eder. Quando Novos Personagens Entram em Cena: experiências,
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