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PREGAES DO PADRE RANIERO CANTALAMESSA NO TEMPO DA
QUARESMA DO ANO DE 2014 NA CASA PONTIFICIA PAPA FRANCISCO
Padre Raniero Cantalamessa, da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, nasceu em
Colli del Tronto (AP-Itlia), em 22 de julho de 1934. Foi ordenado sacerdote em 1958.
laureado em Teologia pela Universidade de Friburgo, Sua, e em Letras Clssicas
pela Universidade Catlica de Milo. Foi professor ordinrio de Histria das Origens do
Cristianismo e Diretor do Departamento de Cincias Religiosas da Universidade do
Sacro Cuore de Milo. Foi membro da Comisso Teolgica Internacional de 1975 a 1981 e, por doze anos, membro da Delegao Catlica para o Dilogo com as Igrejas
Pentecostais
Primeira pregao da quaresma
COM JESUS NO DESERTO
A quaresma comea todos os anos com a narrao de Jesus que se retira para o deserto
por quarenta dias. Nesta meditao introdutria queremos tentar descobrir o que foi que
Jesus fez neste tempo, quais so os temas presentes na narrao evanglica, para aplica-
los nossa vida.
1. O Esprito conduziu Jesus ao deserto
O primeiro tema o do deserto. Jesus acabou de receber, no Jordo, a investidura
messinica para evangelizar os pobres, curar os quebrantados de corao e pregar o
reino (cf. Lc 4, 18s). Mas no se apressa para realizar nenhuma dessas coisas. Pelo
contrrio, obedecendo a um impulso do Esprito Santo, se retira no deserto onde
permanece quarenta dias. O deserto em questo o deserto da Judia, que se estende a
partir de fora das muralhas de Jerusalm at Jeric, no Vale do Jordo. A tradio
identifica o lugar com o assim chamado Monte da Quarentena situado em frente ao Vale
do Jordo.
Ao longo da histria tem havido multides de homens e mulheres que escolheram imitar
este Jesus que se retira ao deserto. No Oriente, a comear por Santo Antnio Abade,
retiravam-se nos desertos do Egito ou da Palestina; no ocidente, onde no existiam
desertos de areia, se retiravam em lugares solitrios, montanhas e vales remotos. Mas o
convite a seguir Jesus no deserto no dirigido somente aos monges e aos eremitas. De
forma diferente, dirigido a todos. Os monges e os eremitas escolheram um espao de
deserto, ns temos que escolher pelo menos um tempo de deserto.
A Quaresma uma oportunidade que a Igreja oferece a todos, sem distino, para viver
um tempo de deserto sem ter que, por isso, abandonar as atividades dirias. Santo
Agostinho lanou este triste apelo:
Retorneis para dentro do vosso corao! Onde quereis ir longe de vs? Retorneis da vagabundagem que vos levou para fora do caminho; retorneis ao Senhor. Ele est
pronto. Primeiro retorne ao teu corao, tu que te tornaste estranho a ti mesmo, por
fora de vagabundar fora: no conheces a ti mesmo, e procuras aquele que te criou!
Volta, retorna ao corao, separa-te do corpo regresse ao corao: l examina o que talvez percebas de Deus, porque ali se encontra a imagem de Deus; na interioridade do
homem habita Cristo[1].
Reentreis no prprio corao! Mas o que e o que representa o corao, que tanto se
fala na Bblia e na linguagem humana? Fora do contexto da fisiologia humana, onde no
mais do que um rgo do corpo, embora vital, o corao o lugar metafsico mais
profundo de uma pessoa; o ntimo de todo homem, onde cada um vive o seu ser
pessoa, ou seja, o seu subsistir em si, em relao a Deus, do qual tem origem e no qual
encontra o seu fim, aos outros homens e criao inteira. At mesmo na linguagem
comum, o corao designa a parte essencial de uma realidade. Ir ao corao de um problema quer dizer ir parte essencial dele, da qual depende a explicao de todas as outras partes do problema.
Assim, o corao de uma pessoa mostra o lugar espiritual onde possvel contemplar a
pessoa na sua realidade mais profunda e verdadeira, sem vus e sem fixar-se nos seus
aspectos marginais. no corao que acontece o juzo de cada pessoa, sobre o que traz
dentro de si e que a fonte da sua bondade e da sua maldade. Conhecer o corao de
uma pessoa quer dizer ter penetrado no santurio ntimo da sua personalidade, pelo qual
se conhece aquela pessoa pelo que realmente ela e vale.
Retornar ao corao, portanto, significa retornar ao que h de mais pessoal e interior em
ns. Infelizmente, a interioridade um valor em crise. Algumas causas desta crise so
antigas e inerentes nossa prpria natureza. A nossa composio, ou seja, o sermos constitudos de carne e esprito, faz com que sejamos como um plano inclinado, porm,
inclinado, para o exterior, o visvel e a multiplicidade. Como o universo, depois da
exploso inicial (o famoso Big Bang), tambm ns estamos em fase de expanso e
distanciamento do centro. Estamos perpetuamente de sada, por meio daquelas cinco portas ou janelas que so os nossos sentidos.
Santa Teresa de vila escreveu um trabalho intitulado O castelo interior que
certamente um dos frutos mais maduros da doutrina crist da interioridade. Mas existe,
infelizmente, tambm um castelo exterior, e hoje constatamos que tambm possvel estar trancados neste castelo. Trancados fora de casa, incapazes de reentrar. Prisioneiros
da exterioridade! Quantos de ns deveramos fazer prpria a amarga constatao que
Agostinho fazia sobre a sua vida antes da converso: Tarde te amei, beleza to antiga e to nova, tarde te amei. Sim, porque tu estavas dentro de mim e eu fora. Ali te buscava.
Deformado, me jogava nas belas formas das tuas criaturas. Estavas comigo, e no estava
contigo. Mantinham-me distante de ti as tuas criaturas, inexistentes se no existissem
em ti[2].
Aquilo que se faz no exterior exposto ao perigo quase inevitvel da hipocrisia. O olhar
de outras pessoas tem o poder de desviar a nossa inteno, como certos campos
magnticos fazem desviar as ondas. A ao perde a sua autenticidade e a sua
recompensa. O parecer toma a dianteira do ser. por isso que Jesus nos convida a jejuar
e dar esmolas e orar ao Pai no segredo (cf. Mt 6, 1-4).
A interioridade o caminho para uma vida autntica. Fala-se tanto hoje de autenticidade
e se faz disso o critrio de vitria ou no da vida. Mas onde est, para o cristo, a
autenticidade? Quando que uma pessoa realmente ela mesma? Somente quando
acolhe, como medida, Deus. Fala-se tanto escreve o filsofo Kierkegaard de vidas desperdiadas. Mas desperdiada somente a vida daquele homem que nunca se deu
conta, porque nunca teve, no sentido mais profundo, a impresso de que existe um Deus
e que ele, justo ele, o seu eu, est diante deste Deus[3].
De um retorno interioridade tm necessidade especialmente as pessoas consagradas ao
servio de Deus. Em um discurso dado aos superiores de uma congregao religiosa
contemplativa, Paulo VI disse:
Hoje estamos vivendo num mundo que parece tomado por uma febre que se infiltra at no santurio e na solido. Barulhos e estrondos invadiram todas as coisas. As pessoas
no conseguem mais recolher-se. Vtimas de milhares de distraes, elas dissipam
normalmente as suas energias atrs das vrias formas da cultura moderna. Jornais,
revistas, livros invadem a intimidade das nossas casas e dos nossos coraes. mais
difcil do que antes encontrar uma oportunidade para aquele recolhimento no qual a
alma consegue estar plenamente ocupada em Deus.
Mas procuremos tambm ver como fazer, concretamente, para reencontrar e conservar o
hbito da interioridade. Moiss era um homem muito ativo. Mas est escrito que ele
tinha mandado construir uma tenda porttil e em cada etapa do xodo fixava a tenda
fora do acampamento e regularmente entrava nela para consultar o Senhor. Ali, o
Senhor falava com Moiss cara a cara, como um homem fala com outro (Ex 33, 11).
Mas at isso nem sempre possvel fazer. Nem sempre possvel retirar-se a uma
capela ou a um lugar solitrio para reencontrar o contato com Deus. Por isso, So
Francisco de Assis sugere outra soluo mais ao alcance das mos. Enviando os seus
freis pelos caminhos do mundo, dizia: Ns temos um eremitrio sempre conosco onde
quer que estejamos e toda vez que o queiramos podemos, como eremitas, reentrar neste
eremitrio. Irmo corpo o eremitrio e a alma o eremita que ali habita dentro para orar a Deus e meditar. como ter um deserto sempre em casa ou melhor dentro de casa, onde possvel retirar-se com o pensamento em cada momento, at mesmo andando pelo caminho.
Conclumos esta primeira parte da nossa meditao escutando, como dirigidas a ns, a
exortao que Santo Anselmo de Aosta dirigiu ao leitor em uma sua famosa obra:
nimo, msero mortal, fuja por um curto perodo das tuas ocupaes, deixa um pouco os teus pensamentos tumultuados. Afasta nesse momento os graves problemas e coloca
de lado as tuas extenuantes atividades. Espera um pouco Deus e descansa nele. Entra no
ntimo da tua alma, exclua tudo, exceto Deus e o que te ajude a procura-lo, e, fechada a
porta, diga a Deus: Busco o teu rosto. O teu rosto eu procuro, Senhor[4].
2. Os jejuns agradveis a Deus
O segundo grande tema presente na narrao de Jesus no deserto o jejum. Por quarenta dias e quarenta noites esteve jejuando. Depois teve fome (Mt 4, 1b). O que significa para ns, hoje, imitar o jejum de Jesus? Antes, com a palavra jejum se entendia
somente o limitar-se nos alimentos e nas bebidas e o abster-se das carnes. Este jejum
alimentar conserva ainda a sua validez e altamente recomendado, quando, claro, a
sua motivao religiosa e no apenas higinica ou esttica, mas no mais o nico e
nem sequer o mais necessrio.
A forma mais necessria e significativa de jejum chama-se hoje sobriedade. Privar-se
voluntariamente de pequenos ou grandes confortos, do que intil e s vezes tambm
prejudicial sade. Este jejum solidariedade com a pobreza de tantos. Quem no
lembra as palavras de Isaas que a liturgia nos faz ouvir no comeo de toda Quaresma?
Por acaso no consiste nisto o jejum que escolhi:
em repartir o teu po com o faminto,
em recolheres em tua casa os pobres desabrigados,
em vestires aquele que vs nu
e em no te esconderes daquele que tua carne? (Is 58, 6-7).
Tal jejum tambm uma resposta a uma mentalidade consumista. Em um mundo, que
fez do conforto suprfluo e intil um dos fins da prpria atividade, renunciar ao
suprfluo, saber privar-se de algo, deixar de recorrer sempre soluo mais cmoda, do
escolher a coisa mais fcil, o objeto de maior luxo, viver, em suma, com sobriedade,
mais eficaz do que impor-se penitncias artificiais. , acima de tudo, justia para com as
geraes que viro depois da nossa, que no devem ser obrigadas a viver das cinzas do
que ns consumimos e desperdiamos. A sobriedade tambm tem um valor ecolgico,
de respeito pela criao.
Mais necessrio do que o jejum de alimentos hoje tambm o jejum das imagens.
Vivemos em uma civilizao da imagem; viramos devoradores de imagens. Por meio da
televiso, a imprensa, a publicidade, deixamos entrar, em jorros, imagens dentro de ns.
Muitas delas no so saudveis, transmitem violncia e maldade, no fazem mais que
incitarem os piores instintos que ns trazemos dentro. So embaladas expressamente
para seduzir. Mas talvez o pior que do uma ideia falsa e irreal da vida, com todas as
consequncias que se derivam no impacto depois com a realidade, especialmente para
os jovens. Pretende-se inconscientemente que a vida oferea tudo o que a publicidade
apresenta.
Se no criamos um filtro, uma barreira, transformamos, em um curto espao de tempo, a
nossa fantasia e a nossa imaginao em um depsito de lixo. As imagens ruins no
morrem quando chegam ao nosso interior, mas fermentam. So transformadas em
impulsos para a imitao, condicionam terrivelmente a nossa liberdade. Um filsofo
materialista, Feuerbach, disse: O homem o que ele come; hoje, talvez, devssemos dizer: O homem o que ele olha.
Outro destes jejuns alternativos, que podemos fazer durante a Quaresma, aquele das
palavras ms. So Paulo recomenda: No saia dos vossos lbios nenhuma palavra inconveniente, mas, na hora oportuna, a que for boa para edificao, que comunique
graa aos que a ouvirem (Efsios 4, 29).
Palavras inconvenientes no so s os palavres; so tambm as palavras cortantes,
negativas que iluminam sistematicamente o lado fraco do irmo, palavras que semeiam
discrdia e desconfianas. Na vida de uma famlia ou de uma comunidade, estas
palavras tm o poder de fechar cada um em si mesmo, de congelar, criando amargura e
ressentimento. Literalmente, mortificam, ou seja, causam a morte. So Tiago dizia que a lngua est cheia de veneno mortal; com ela podemos abenoar a Deus ou
amaldioa-lo, ressuscitar um irmo ou mata-lo (cf. Tg 3, 1-12). Uma palavra pode ser
pior do que um soco.
No Evangelho de Mateus aparece uma palavra de Jesus que abalou os leitores do
Evangelho de todos os tempos: Eu vos digo que toda palavra sem fundamento que os homens disserem, daro contas no Dia do Julgamento (Mt 12, 36). Jesus certamente no pretende condenar toda palavra intil no sentido de no estritamente necessria. Tomado no sentido passivo, o termo argon (a = sem, ergon = obra) usado no Evangelho
indica a palavra privada de fundamento, portanto, a calnia; tomado em sentido ativo,
significa a palavra que no fundamenta nada, que no serve nem mesmo para a
necessria descontrao. So Paulo recomendava ao discpulo Timteo: Evita o palavreado vo e mpio, j que os que o praticam progrediro na impiedade (2 Tm 2,16). Uma recomendao que o Papa Francisco nos repetiu mais de uma vez.
A palavra intil (argon) o oposto da palavra de Deus, que de fato definida, pelo
contrrio, energes, (1Tess 2,13; Hb 4,12), ou seja, eficaz, criativa, cheia de energia e til
a tudo. Neste sentido, o que os homens tero de dar conta no dia do juzo , em primeiro
lugar, a palavra vazia, sem f e sem uno, pronunciada por quem deveria, pelo
contrrio, pronunciar as palavras de Deus que so esprito e vida, especialmente no momento em que exercita o ministrio da Palavra.
3. Tentado por Satans
Passemos ao terceiro elemento da narrao evanglica no qual queremos refletir: a luta
de Jesus contra o demnio, as tentaes. Em primeiro lugar uma pergunta: existe o
demnio? Ou seja, a palavra demnio indica realmente alguma realidade pessoal,
dotada de inteligncia e vontade, ou simplesmente um smbolo, um modo de dizer
para indicar a soma do mal moral no mundo, o inconsciente coletivo, a alienao
coletiva e assim por diante?
A principal evidncia da existncia do demnio nos Evangelhos no est nos vrios
episdios de libertao de possessos, porque na interpretao destes fatos pode ter
influenciado as crenas antigas sobre a origem de certas doenas. Jesus tentado no
deserto pelo demnio, esta a prova. A prova tambm os muitos santos que lutaram
na vida contra o prncipe das trevas. Eles no so uns Dom Quixote que lutaram contra moinhos de vento. Pelo contrrio, eram homens muito concretos e com a
psicologia muito saudvel. So Francisco de Assis uma vez confidenciou a um
companheiro: Se os freis soubessem quantas ou quais tribulaes eu recebo dos demnios, no haveria um s que no iria comear a chorar por mim[5].
Se para muitos um absurdo crer no demnio porque se baseiam em livros, passam a
vida nas bibliotecas ou em escrivaninhas, enquanto o demnio no est interessado nos
livros, mas nas pessoas, especialmente, claro, nos santos.
O que pode saber sobre Satans quem nunca teve que lidar com a realidade de satans,
mas somente com a sua ideia, ou seja, com as tradies culturais, religiosas, etnolgicas
sobre Satans? Esses costumam tratar este assunto com grande confiana e
superioridade, descartando tudo como obscurantismo medieval. Mas uma falsa segurana. Como algum que se gabasse de no ter nenhum medo do leo, aduzindo
como prova o fato de que j o viu tantas vezes pintado ou fotografado e nunca se
assustou.
completamente normal e coerente que no acredite no diabo, quem no cr em Deus.
Seria realmente trgico se algum que no cr em Deus, cresse no diabo! No entanto,
pensando bem, o que acontece em nossa sociedade. O demnio, o satanismo e outros
fenmenos conexos so hoje de grande atualidade. O nosso mundo tecnolgico e
industrializado est cheio de magos, feiticeiros de cidade, ocultismo, espiritismo,
adivinhadores de horscopos, vendedores de feitios, de amuletos, bem como de
verdadeiras seitas satnicas. Expulso pela porta, o diabo voltou pela janela. Ou seja,
expulso pela f, voltou com a superstio.
A coisa mais importante que a f crist tem a dizer-nos, no entanto, no que o
demnio existe, mas que Cristo venceu o demnio. Cristo e o demnio no so para o
cristo dois princpios iguais e contrrios, como em certas religies dualsticas. Jesus o
nico Senhor; Satans no nada mais do que uma criatura apodrecida. Se lhe foi concedido ter poder sobre os homens, para que os homens possam ter a possibilidade
de fazer livremente uma escolha de campo e tambm para que no se encham de soberba (cf. 2 Cor 12,7), achando-se auto-suficientes e sem a necessidade de algum redentor. O velho Satans louco diz um canto espiritual negro. Deu um tiro para destruir a minha alma, mas errou a mira e destruiu, em vez disso, o meu pecado.
Com Cristo no temos nada a temer. Nada e ningum pode nos prejudicar, se ns
mesmos no o quisermos. Satans, dizia um antigo padre da Igreja, depois da vinda de
Cristo, como um co amarrado no quintal: pode latir e atacar o quanto quiser; mas, se
no somos ns que chegamos perto, no pode morder. Jesus no deserto se libertou de
Satans para libertar-nos de Satans!
Os Evangelhos nos falam de trs tentaes: Se tu s o Filho de Deus, diga para essas pedras se transformarem em po; Se eres o Filho de Deus, atira-te para baixo; Todas estas coisas eu te darei, se, prostrando-te, me adorares. Elas tm um objetivo
nico e comum a todas: desviar Jesus da sua misso, desvia-lo do objetivo pelo qual
veio terra; substituir o plano do Pai por outro diferente. No batismo, o Pai tinha
apontado a Cristo o caminho do Servo obediente que salva com a humildade e o
sofrimento; Satans prope um caminho de glria e de triunfo, o caminho que todos
ento esperavam do Messias.
Ainda hoje, todo o esforo do diabo de desviar o homem do objetivo pelo qual veio ao
mundo que o de conhecer, amar e servir a Deus nesta vida para goz-lo depois na
outra. Distra-lo, ou seja, atra-lo para outro lugar, para outra direo. Satans, porm,
tambm astuto; no aparece pessoalmente com chifres e cheiro de enxofre (seria muito
fcil reconhece-lo); serve-se das coisas boas levando-as ao excesso, absolutizando-as e
transformando-as em dolos. O dinheiro uma coisa boa, como o o prazer, o sexo, o
comer, o beber. Mas se eles se transformam na coisa mais importante da vida, o fim,
no mais meios, ento se tornam destrutivos para a alma e muitas vezes tambm para o
corpo.
Um exemplo particularmente relevante para o tema o divertimento, a distrao. O
descanso uma dimenso nobre do ser humano; Deus mesmo recomendou o repouso. O
mal fazer do jogo o objetivo da vida, viver a semana como espera do sbado noite ou
do jogo no estdio no domingo, por no mencionar outros passatempos muito menos
inocentes. Neste caso, a diverso muda de significado e, mais do que servir para o
crescimento humano e aliviar o estreasse e o cansao, aumenta-os.
Um hino litrgico da Quaresma exorta a usar com mais moderao, neste tempo, as
palavras, alimentos, bebidas, sono e diverses. Este um tempo para redescobrir por que viemos ao mundo, de onde viemos, aonde iremos, que rota estamos seguindo.
Seno, pode acontecer conosco o que aconteceu com o Titanic ou, mais prximo de ns
no tempo e no espao, com a Costa Concordia.
4. Por que Jesus foi para o deserto
Tentei destacar os ensinamentos e exemplos que nos chegam de Jesus para este tempo
da Quaresma, mas tenho que dizer que at agora no falei do mais importante de todos.
Por que Jesus, depois do seu batismo, foi para o deserto? Para ser tentado por Satans?
No, nem sequer pensava nisso; ningum vai de propsito buscar tentaes e ele mesmo
nos ensinou a rezar para no sermos levados tentao. As tentaes foram uma
iniciativa do demnio, permitidas pelo Pai, para a glria do seu Filho e como
ensinamento para ns.
Foi ao deserto para jejuar? Tambm, mas no principalmente para isso. Foi para rezar!
Sempre quando Jesus se retirava em lugares desertos era para orar ao seu Pai. Foi para
sintonizar-se, como homem, com a vontade divina, para aprofundar a misso que a voz
do Pai, no batismo, lhe tinha feito vislumbrar: a misso do Servo obediente chamado a
redimir o mundo com o sofrimento e a humilhao. Foi em definitiva para orar, para
estar em intimidade com o seu Pai. E isso tambm o objetivo principal da nossa
Quaresma. Foi ao deserto pelo mesmo motivo pelo qual, segundo Lucas, um dia, mais
tarde, subiu ao Monte Tabor, ou seja, para orar (Lc 9, 28).
No se vai ao deserto somente para deixar algo o barulho, o mundo, as ocupaes -; vai-se principalmente para encontrar algo, ou melhor, Algum. No se vai somente para
reencontrar a si mesmo, para colocar-se em contato com o prprio eu profundo, como
em tantas formas de meditaes no crists. Estar a ss consigo mesmo pode significar
encontrar-se com a pior das companhias. O crente vai ao deserto, desce ao prprio
corao, para renovar o seu contato com Deus, porque sabe que no homem interior habita a Verdade.
o segredo da felicidade e da paz nesta vida. O que mais deseja um apaixonado do que
estar a ss, em intimidade, com a pessoa amada? Deus apaixonado por ns e deseja
que ns nos apaixonemos por ele. Falando do seu povo como de uma esposa, Deus
disse: A conduzirei ao deserto e falarei ao seu corao (Os 2,16). Sabe-se qual o efeito do enamoramento: todas as coisas e todas as outras pessoas ficam pra trs, em
segundo plano. H uma presena que preenche tudo e faz todo resto secundrio. No isola dos outros, que, de fato, torna ainda mais atento e disponvel para com os outros,
mas como de reflexo, por redundncia do amor. Oh, se ns homens e mulheres de Igreja
descobrssemos o quanto est perto de ns, ao alcance das mos, a felicidade e a paz que
buscamos neste mundo!
Jesus est esperando por ns no deserto: no o deixemos sozinho em todo esse tempo.
[Traduzido do original italiano por Thcio Siqueira]
[1] S. Agostinho, In Ioh. Ev., 18, 10 (CCL 36, p. 186). [Trad.Livre]
[2] S. Agostinho, Confessioni, X, 27. [Trad.Livre]
[3] S. Kierkegaard, La malattia mortale, II, in Opere, edio de C. Fabro, Florncia
1972, p. 663. [Trad.Livre]
[4] S. Anselmo, Proslogion, 1, (Opera omnia, 1, Edimburgo 1946, p.97). [Trad.Livre]
[5] Cf. Speculum perfectionis, 99 (FF 1798).
Segunda pregao da quaresma
SANTO AGOSTINHO: CREIO NA IGREJA UMA E SANTA
1. Do Oriente ao Ocidente
Na meditao introdutria, da semana passada, refletimos sobre o significado da
Quaresma como um tempo para irmos com Jesus at o deserto, em jejum de alimentos,
palavras e imagens, para aprender a superar as tentaes e, sobretudo, crescer na
intimidade com Deus.
Nas quatro pregaes que restam, dando continuidade reflexo iniciada na Quaresma
de 2012 com os Padres gregos, frequentaremos agora a escola dos quatro grandes
doutores da Igreja latina: Agostinho, Ambrsio, Leo Magno e Gregrio Magno; para
ver o que cada um nos diz, hoje, sobre a verdade da f que mais particularmente
defendeu: respectivamente, a natureza da Igreja, a presena real de Cristo na Eucaristia,
o dogma cristolgico de Calcednia e a inteligncia espiritual das Escrituras.
O objetivo redescobrir, por trs desses grandes Padres, a riqueza, a beleza e a
felicidade de crer; passar, como diz So Paulo, de f em f (Rm 1,17), de uma f acreditada para uma f vivida. Teremos, assim, um aumento do volume de f dentro da Igreja para constituir depois a fora maior do seu anncio ao mundo.
O ttulo do ciclo vem de um pensamento caro aos telogos medievais: Ns, dizia Bernardo de Chartres, somos como anes sentados em ombros de gigantes, de modo a vermos mais coisas e mais longe do que eles, no pela agudeza do nosso olhar nem pela
altura do nosso corpo, mas porque somos carregados para o alto e elevados por eles a
uma altura gigantesca (1). Este pensamento encontrou expresso artstica em certas esttuas e vitrais de catedrais gticas da Idade Mdia, em que so representados
personagens de estatura imponente, que carregam, sentados sobre seus ombros, homens
pequenos, quase anes. Os gigantes eram para eles, como so para ns, os Padres da
Igreja.
Depois das lies de Atansio, Baslio de Cesareia, Gregrio de Nazianzo e Gregrio de
Nissa, respectivamente sobre a divindade de Cristo, sobre o Esprito Santo, sobre a
Trindade e sobre o conhecimento de Deus, podia-se ter a impresso de que restasse
muito pouco a ser feito pelos Padres latinos na edificao do dogma cristo. Um olhar
superficial para a histria da teologia nos convence imediatamente do contrrio.
Motivados pela cultura a que pertenciam, favorecidos pela sua forte tmpera
especulativa e condicionados pelas heresias que eram forados a combater (arianismo,
apolinarismo, nestorianismo, monofisismo), os Padres gregos tinham se concentrado
principalmente nos aspectos ontolgicos do dogma: a divindade de Cristo, as suas duas
naturezas e o modo da sua unio, a unidade e a trindade de Deus. Os temas mais caros a
Paulo, a justificao, a relao entre lei e evangelho, a Igreja como corpo de Cristo,
foram deixados margem da sua ateno ou tratados en passant. Aos seus escopos
respondia muito melhor Joo, com a sua nfase na encarnao, do que Paulo, que pe
no centro de tudo o mistrio pascal, isto , o agir, mais do que o ser de Cristo.
A ndole dos latinos, mais inclinada, excetuando-se Agostinho, a se ocupar de
problemas especficos, jurdicos e organizacionais, do que de questes especulativas,
unida ao surgimento de novas heresias, como o donatismo e o pelagianismo, estimular
uma reflexo nova e original sobre os temas paulinos da graa, da Igreja, dos
sacramentos e das Escrituras. So os tempos sobre os quais queremos refletir nesta
pregao quaresmal.
2. O que a Igreja?
Comecemos a nossa resenha pelo maior dos padres latinos, Agostinho. O doutor de
Hipona deixou a sua marca em quase todas as reas da teologia, mas especialmente em
duas: a da graa e a da Igreja; a primeira, fruto da sua luta contra o pelagianismo; a
segunda, de sua luta contra o donatismo.
O interesse pela doutrina de Santo Agostinho sobre a graa prevaleceu, do sculo XVI
em diante, tanto no mbito protestante (ao qual esto ligados Lutero, com a doutrina da
justificao, e Calvino, com a da predestinao), quanto no campo catlico, por causa
das controvrsias levantadas por Jansen e Baio (2). J o interesse pelas suas doutrinas
eclesiais prevalece em nossos dias, porque o Conclio Vaticano II fez da Igreja o seu
tema central e porque o movimento ecumnico tem na ideia de Igreja a questo crucial a
ser resolvida. Procurando ajuda e inspirao nos Padres da F para o hoje da f, vamos
nos ocupar desta segunda rea de interesse de Santo Agostinho, que a Igreja.
A Igreja no era um assunto desconhecido para os Padres gregos nem para os escritores
latinos anteriores a Agostinho (Cipriano, Hilrio, Ambrsio), mas as suas afirmaes se
limitavam principalmente a repetir e comentar afirmaes e imagens das Escrituras. A
Igreja o novo povo de Deus; a ela prometida a indefectibilidade; ela a coluna e a base da verdade; o Esprito Santo o seu mestre supremo; a Igreja catlica porque se estende a todos os povos, ensina todos os dogmas e possui todos os carismas; na
esteira de Paulo, fala-se da Igreja como do mistrio da nossa incorporao a Cristo por
meio do batismo e do dom do Esprito Santo; ela nasceu do lado aberto de Cristo na
cruz, como Eva do lado de Ado adormecido (3).
Tudo isso, porm, era dito ocasionalmente; a Igreja ainda no tinha entrado em
discusso. Quem ser forado a tratar dela justamente Agostinho, que, durante quase
toda a vida, teve de lutar contra o cisma dos donatistas. Talvez ningum se lembrasse
hoje daquela seita norte-africana se ela no tivesse sido a ocasio de origem do que hoje
chamamos de eclesiologia, ou seja, um discurso refletido sobre o que a Igreja no
desgnio de Deus, a sua natureza e o seu funcionamento.
Por volta de 311, um certo Donato, bispo da Numdia, se recusou a receber novamente
na comunho eclesial aqueles que durante a perseguio de Diocleciano tinham
entregado os livros sagrados s autoridades estatais, renegando a f para salvar a vida.
Em 311, foi eleito bispo de Cartago um certo Ceciliano, acusado, erradamente segundo
os catlicos, de ter trado a f durante a perseguio de Diocleciano. Ops-se a esta
nomeao um grupo de setenta bispos do norte africano, liderados por Donato. Eles
depuseram Ceciliano e elegeram em seu lugar Donato. Excomungado pelo papa
Milcades em 313, ele permaneceu no seu posto, provocando um cisma que criou no
norte da frica uma Igreja paralela catlica, mantida at a invaso dos vndalos, um
sculo depois.
Durante a polmica, eles tentaram justificar a sua posio com argumentos teolgicos.
Foi para refut-los que Agostinho desenvolveu, pouco a pouco, a sua doutrina da Igreja.
Isto aconteceu em dois contextos diferentes: nas obras escritas diretamente contra os
donatistas e nos seus comentrios Escritura e discursos ao povo. importante
distinguir entre esses dois contextos porque, conforme cada um, Agostinho insistir
mais em alguns aspectos da Igreja do que em outros e s a partir do conjunto que pode
ser entendida a sua doutrina completa. Vamos ver, portanto, brevemente, quais so as
concluses a que o santo chega em cada um dos dois contextos, a comear pelo
diretamente antidonatista.
a. A Igreja, comunho dos sacramentos e sociedade dos santos. O cisma donatista partiu
de uma convico: no pode transmitir a graa um ministro que no a possui; os
sacramentos administrados desta forma seriam desprovidos de qualquer efeito. Este
argumento, que no incio foi aplicado ordenao do bispo Ceciliano, acabou estendido
rapidamente aos outros sacramentos, em particular ao batismo. Com isto, os donatistas
justificavam a sua separao dos catlicos e a prtica de rebatizar quem vinha das suas
fileiras.
Em resposta, Agostinho desenvolve um princpio que se tornar uma conquista perene
da teologia e que lana as bases de um futuro tratado de sacramentis: a distino entre
potestas e ministerium, ou seja, entre a causa da graa e o seu ministro. A graa
conferida pelos sacramentos obra exclusiva de Deus e de Cristo; o ministro no passa
de um instrumento: Pedro batiza, Cristo quem batiza; Joo batiza, Cristo quem batiza; Judas batiza, Cristo quem batiza. A validade e eficcia dos sacramentos no impedida pelo ministro indigno: uma verdade da qual, bem sabemos, o povo cristo
precisa se lembrar tambm hoje
Neutralizada, assim, a principal arma do adversrio, Agostinho pode elaborar a sua
grandiosa viso da Igreja mediante algumas distines fundamentais. A primeira entre
a Igreja presente ou terrestre e a Igreja celestial ou futura. S esta segunda ser uma
Igreja de todos santos e apenas santos; a Igreja do tempo presente ser sempre o campo
em que se misturam o trigo e o joio, a rede que recolhe peixes bons e peixes ruins, ou
seja, santos e pecadores.
Dentro da Igreja em seu estgio terreno, Agostinho opera outra distino: entre a
comunho dos sacramentos (communio sacramentorum) e a sociedade dos santos
(societas sanctorum). A primeira une visivelmente entre si todos aqueles que participam
dos mesmos sinais externos: os sacramentos, a Escritura, a autoridade; a segunda une
entre si todos e apenas aqueles que, alm dos sinais, tambm tm em comum a realidade
escondida nos sinais (res sacramentorum), que o Esprito Santo, a graa, a caridade.
Dado que na terra sempre ser impossvel saber com certeza quem possui o Esprito
Santo e a graa, e, mais ainda, se eles perseveraro nesse estado at o fim, Agostinho
acaba identificando a verdadeira e definitiva comunidade dos santos com a Igreja
celeste dos predestinados. Quantas ovelhas que hoje esto dentro estaro fora, e quantos lobos que hoje esto fora estaro dentro! (5).
A novidade, neste ponto, mesmo no tocante a Cipriano, que, enquanto este fazia
consistir a unidade da Igreja em algo externo e visvel, na concrdia de todos os bispos
entre si, Agostinho a faz consistir em algo interno: o Esprito Santo. A unidade da Igreja
operada, assim, pelo mesmo que opera a unidade na Trindade: O Pai e o Filho quiseram que estivssemos unidos entre ns e com eles por meio do mesmo vnculo que
os une, o amor, que o Esprito Santo (6). Ele executa na Igreja a mesma funo que exerce a alma em nosso corpo natural: ser o seu princpio vital e unificador. O que a alma para o corpo humano, o Esprito Santo para o Corpo de Cristo, que a Igreja (7).
A plena pertena Igreja exige as duas coisas juntas, a comunho visvel dos sinais
sacramentais e a comunho invisvel da graa. Esta, no entanto, admite graus, e por isso
no quer dizer que se deva estar necessariamente dentro ou fora. Pode-se estar em parte
dentro e em parte fora. H uma pertena exterior, ou sinais sacramentais, em que se
situam os cismticos donatistas e os prprios maus catlicos, e uma comunho plena e
total. A primeira consiste em ter o sinal externo da graa (sacramentum), sem receber,
porm, a realidade interior produzida por eles (res sacramenti), ou em receb-la, mas
para a prpria condenao, no para a prpria salvao, como no caso do batismo
administrado pelos cismticos ou da Eucaristia recebida indignamente pelos catlicos.
b. A Igreja Corpo de Cristo animado pelo Esprito Santo. Nos escritos exegticos e nos
discursos ao povo, encontramos esses mesmos princpios bsicos da eclesiologia; mas
menos pressionado pela controvrsia e falando, por assim dizer, em famlia, Agostinho
pode insistir mais em aspectos interiores e espirituais da Igreja, mais caros a ele. Neles,
a Igreja apresentada, com tons muitas vezes elevados e comovidos, como o corpo de
Cristo (ainda falta o adjetivo mstico, que ser adicionado mais tarde), animado pelo Esprito Santo, to afim ao corpo eucarstico a ponto de, s vezes, igualar-se quase
totalmente a ele. Ouamos o que ouviram os seus fiis, numa festa de Pentecostes, sobre
esta questo:
Se queres entender o corpo de Cristo, ouve o Apstolo que diz aos fiis: Vs sois o corpo de Cristo e os seus membros (1 Co 12,27). Se vs sois o corpo e os membros de
Cristo, na mesa do Senhor est o vosso mistrio: recebei o vosso mistrio. Ao que sois,
respondeis amm e, ao respond-lo, o confirmais. dito a vs: o corpo de Cristo, e
respondeis: amm. S membro do corpo de Cristo, para o teu amm ser verdadeiro Sede o que vedes e recebei o que sois (8).
O nexo entre os dois corpos de Cristo se fundamenta, para Agostinho, na singular
correspondncia simblica entre o devir de um e o formar-se da outra. O po da
Eucaristia obtido da massa de muitos gros de trigo e o vinho de uma multido de
bagos de uva: assim a Igreja formada por muitas pessoas, reunidas e amalgamadas
pela caridade que o Esprito Santo (9). Como o trigo espalhado pelas colinas foi
primeiro colhido, depois modo, misturado com gua e assado no forno, assim os fiis
esparsos pelo mundo foram reunidos pela palavra de Deus, modos pelas penitncias e
exorcismos que precedem o batismo, imersos na gua do batismo e passados pelo fogo
do Esprito. Mesmo em relao Igreja, deve-se dizer que o sacramento significando causat: significando a unio de vrias pessoas em uma, a Eucaristia a realiza, a causa. Neste sentido, podemos dizer que a Eucaristia faz a Igreja.
3. Atualidade da eclesiologia de Agostinho
Vamos agora ver como as ideias de Agostinho sobre a Igreja podem ajudar a iluminar
os problemas que ela enfrenta em nosso tempo. Quero me concentrar em especial na
importncia da eclesiologia de Agostinho para o dilogo ecumnico. Uma circunstncia
torna esta escolha particularmente oportuna. O mundo cristo se prepara para celebrar o
quinto centenrio da Reforma Protestante. J comearam a circular declaraes e
documentos conjuntos em vista do evento (10). vital, para toda a Igreja, no
estragarmos esta ocasio permanecendo prisioneiros do passado, tentando apurar, talvez
com maior objetividade e serenidade, as razes e as culpas de um e de outro, mas sim
darmos um salto de qualidade, como ocorre na eclusa de um rio ou de um canal, que
permite que os navios continuem a sua navegao num patamar mais elevado.
A situao do mundo, da Igreja e da teologia mudou desde aquela poca. Trata-se de
recomear a partir da pessoa de Jesus, de ajudar humildemente os nossos
contemporneos a descobrir a pessoa de Cristo. Devemos nos remeter ao tempo dos
apstolos. Eles tinham diante de si um mundo pr-cristo; ns temos diante de ns um
mundo em grande parte ps-cristo. Quando Paulo quis resumir em uma frase a
essncia da mensagem crist, ele no disse Anunciamos esta ou aquela doutrina, mas Ns proclamamos Cristo, e Cristo crucificado (1 Cor 1, 23). E ainda: Ns proclamamos Jesus Cristo, o Senhor (2 Cor 4,5).
Isto no significa ignorar o grande enriquecimento teolgico e espiritual produzido pela
Reforma, nem querer retornar ao ponto de antes; significa, em vez disso, deixar que
toda a cristandade se beneficie das suas conquistas, uma vez libertadas de certas
foraes devidas ao clima polmico do momento e s posteriores controvrsias. A
justificao gratuita pela f, por exemplo, deveria ser anunciada hoje, e com mais fora
do que nunca, mas no em oposio s boas obras, o que uma questo superada, e sim
em oposio pretenso do homem moderno de se salvar sozinho, sem necessidade
nem de Deus nem de Cristo. Se vivesse hoje, sou convencido que isto seria o modo com
o qual Lutero predicasse a justificao por f.
Vamos ver como a teologia de Agostinho pode nos ajudar neste esforo para superar as
barreiras seculares. O caminho a percorrer hoje, em certo sentido, segue na direo
oposta que foi tomada por ele contra os donatistas. Na poca, era preciso ir da
comunho dos sacramentos comunho na graa do Esprito Santo e na caridade, mas
hoje temos que ir da comunho espiritual da caridade plena comunho, inclusive nos
sacramentos, entre os quais, em primeiro lugar, a Eucaristia.
A distino entre os dois nveis de realizao da verdadeira Igreja, o externo, dos sinais,
e o interno, da graa, permite que Agostinho formule um princpio que seria impensvel
antes dele: Pode haver algo na Igreja catlica que no seja catlico, e fora da Igreja catlica algo catlico (11). Os dois aspectos da Igreja, o visvel e institucional e o invisvel e espiritual, no podem ser separados. Isso verdade e foi reiterado por Pio
XII na Mystici corporis e pelo Conclio Vaticano II na Lumen Gentium, mas, devido s
separaes histricas e ao pecado humano, at que se realize a sua correspondncia
plena, no podemos dar mais importncia comunidade institucional do que
espiritual.
Para mim, isto levanta uma sria indagao. Posso eu, como catlico, me sentir mais em
comunho com a multido dos que, tendo sido batizados na minha prpria Igreja, se
desinteressam completamente de Cristo e da Igreja, ou se interessam por ela apenas para
falar mal, do que me sinto em comunho com as fileiras daqueles que, apesar de
pertencer a outras confisses crists, acreditam nas mesmas verdades fundamentais em
que eu creio, amam Jesus Cristo at dar a vida por ele, difundem o Evangelho, se
esforam para aliviar a pobreza no mundo e possuem os mesmos dons do Esprito Santo
que ns? As perseguies, to frequentes hoje em certas partes do mundo, no fazem
distino: os perseguidores no queimam igrejas nem matam pessoas porque elas so
catlicas ou protestantes, mas porque so crists. Para eles, ns j somos uma coisa s!
Esta, obviamente, uma pergunta que deveria ser feita tambm pelos cristos das outras
igrejas a propsito dos catlicos, e, graas a Deus, precisamente isto o que est
acontecendo de uma forma oculta, porm maior do que as notcias nos deixam
vislumbrar. Um dia, tenho certeza, ficaremos admirados, ou outros ficaro, por no
termos notado antes o que o Esprito Santo estava realizando entre os cristos do nosso
tempo, margem da oficialidade. Fora da Igreja catlica h muitssimos cristos que
olham para ela com olhos novos e comeam a reconhecer nela as suas prprias razes.
A intuio mais nova e fecunda de Agostinho sobre a Igreja, como vimos, foi a de
identificar o princpio essencial da sua unidade no Esprito, mais do que na comunho
horizontal dos bispos uns com os outros e dos bispos com o papa de Roma. Como a
unidade do corpo humano dada pela alma que vivifica e move todos os seus membros,
assim a unidade do corpo de Cristo. Esta unidade um fato mstico, mais do que uma
realidade que se expressa social e visivelmente em perspectiva externa. o reflexo da
unidade perfeita que existe entre o Pai e o Filho por obra do Esprito. Foi Jesus quem
fixou de uma vez para sempre este fundamento mstico da unidade quando disse: Que todos sejam um, como ns somos um (Jo 17, 22). A unidade essencial na doutrina e na disciplina ser o fruto desta unidade mstica e espiritual, nunca a sua causa.
Os passos mais concretos para a unidade no so dados, portanto, em torno de uma
mesa ou nas declaraes conjuntas (embora tudo isto seja importante); so dados
quando os crentes de diferentes confisses proclamam juntos, em acordo fraterno, o
Senhor Jesus, compartilhando cada um o prprio carisma e reconhecendo-se irmos em
Cristo.
4. Membros do corpo de Cristo, movidos pelo Esprito!
Em seus discursos ao povo, Agostinho nunca expe as suas ideias sobre a Igreja sem
apresentar imediatamente as consequncias prticas para a vida cotidiana dos fiis. E
isto o que ns tambm queremos fazer antes de concluir a nossa meditao, como se nos
colocssemos entre as fileiras dos seus ouvintes de ento.
A imagem da Igreja como Corpo de Cristo no uma novidade de Agostinho. O que
novo nele so as concluses prticas para a vida dos crentes. Uma delas que no temos
mais razo para nos olharmos com inveja e com cime. O que eu no tenho, mas os
outros tm, tambm meu. Ouvimos o apstolo elencar todos aqueles maravilhosos
carismas: apostolado, profecia, curas e talvez nos entristeamos pensando que no temos nenhum deles. Mas, cuidado, alerta Agostinho: Se tu amas, o que tens no pouco. Se de fato amas a unidade, tudo o que nela possudo por algum tambm
possudo por ti! Expulsa a inveja e ser teu o que meu, e, se eu expulsar a inveja, ser
meu o que tu possuis.
Somente o olho, no corpo, tem a capacidade de ver. Mas o olho, por acaso, enxerga
apenas para si? No todo o corpo que se beneficia da sua capacidade de ver? S a mo
age, mas ela age, acaso, apenas para si mesma? Se uma pedra est prestes a atingir o
olho, a mo por acaso permanece imvel, dizendo que o golpe, afinal, no contra ela?
O mesmo acontece no corpo de Cristo: o que cada membro e faz, Ele e faz para
todos!
Eis por que a caridade o caminho mais excelente (1 Cor 12 , 31): ela me faz amar a igreja, ou a comunidade em que vivo, e, na unidade, todos os carismas, e no apenas
alguns, so meus. E h mais: se amas a unidade mais do que eu a amo, o carisma que eu
possuo mais teu do que meu. Suponhamos que eu tenha o carisma de evangelizar; eu
posso me comprazer ou me vangloriar dele, e, assim, me torno um cmbalo que retine (1 Cor 13,01); o meu carisma de nada me aproveita, ao passo que o ouvinte no deixa de se beneficiar, apesar do meu pecado. A caridade multiplica realmente os dons; ela faz
do carisma de um, o carisma de todos.
Fazes parte do corpo de Cristo? Amas a unidade da Igreja?, perguntava Agostinho aos seus fiis. Ento, quando um pago te perguntar por que no falas todas as lnguas, se est escrito que aqueles que receberam o Esprito Santo falam todas as lnguas, responde
sem hesitar: claro que falo todas as lnguas! Eu perteno ao corpo da Igreja, que fala todas as lnguas e em todas as lnguas proclama as grandes obras de Deus (13).
Quando formos capazes de aplicar esta verdade no s s relaes dentro da
comunidade em que vivemos e nossa Igreja, mas tambm s relaes entre uma Igreja
crist e a outra, naquele dia a unidade dos cristos ser praticamente um fato
consumado.
Acolhamos a exortao com que Agostinho fecha muitos dos seus discursos sobre a
Igreja: Se quiserdes, pois, experimentar o Esprito Santo, mantenha o amor, amai a verdade e alcanareis a eternidade. Amm (14).
[Traduo do original italiano por ZENIT portugus]
(1) Bernardo de Chartres, coment. Joo de Salisbury, Metalogicon, III, 4 (Corpus Chr.
Cont. Med., 98, p.116).
(2) A este mbito da influncia de Agostinho dedicado o livro de H. de Lubac,
Augustinisme et thologie moderne, Paris, Aubier 1965.
(3) Cf. J.N.D. Kelly, Early Christian Doctrines, London 1968 chap. XV.
(4) Agostinho, Contra Epist. Parmeniani II,15,34; cf. todo o Sermo 266.
(5) Agostinho, In Ioh. Evang. 45,12: Quam multae oves foris, quam multi lupi intus!.
(6) Agostinho, Discursos, 71, 12, 18 (PL 38,454).
(7) Agostinho, Sermo 267, 4 (PL 38, 1231).
(8) Agostinho, Sermo 272 (PL 38, 1247 em diante).
(9) Ibidem.
(10) Cf. documento conjunto catlico-luterano Do conflito comunho, http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/chrstuni/lutheran-fed-
docs/rc_pc_chrstuni_doc_2013_dal-conflitto-alla-comunione_it.html (em italiano).
(11) Agostinho, De Baptismo, VII, 39, 77.
(12) Agostinho, Tratados sobre Joo, 32,8.
(13) Cf. Agostinho, Discursos, 269, 1.2 (PL 38, 1235 s.).
(14) Agostinho, Sermo 267, 4 (PL 38, 1231)
Terceira pregao da Quaresma
SANTO AMBRSIO E A F NA EUCARISTIA
1. A reflexo sobre os sacramentos
Junto do tema da Igreja, outro tema sobre o qual se nota um progresso na passagem dos
Padres gregos aos latinos aquele dos sacramentos. Nos primeiros tinha faltado uma
reflexo sobre os sacramentos em si, ou seja, sobre a ideia de sacramento, embora tendo
tratado de forma excelente de cada mistrio: batismo, uno, eucaristia[1].
O iniciador da teologia sacramental daquilo que, a partir do sculo XII, ser o De sacramentis ainda mais uma vez Agostinho. Santo Ambrsio com as suas duas sries de discursos Sobre os sacramentos e Sobre os mistrios, antecipa o nome do tratado, mas no o seu contedo. Tambm ele, de fato, se ocupa de cada sacramento e
no ainda dos princpios comuns a todos os sacramentos: ministro, matria, forma,
modo de produzir a graa
Ento, por que escolher Ambrsio como mestre de f de um tema sacramental como
aquele da Eucaristia sobre o qual queremos hoje meditar? A razo que Ambrsio
aquele que mais do que qualquer outro tem contribudo para o fortalecimento da f na
presena real de Cristo na Eucaristia e lanou as bases para a futura doutrina da
transubstanciao. No De sacramentis escreve:
Este po po antes das palavras sacramentais; quando acontece a consagrao, de po torna-se carne de Cristo [...] Com quais palavras se realiza a consagrao e de quem so
essas palavras? [...] Quando se realiza o venervel sacramento, j no mais o sacerdote
que usa as suas palavras, mas usa as palavras de Cristo. , portanto, a palavra de Cristo
que realiza este sacramento[2].
No outro escrito, Sobre os mistrios, o realismo eucarstico ainda mais explcito. Diz:
A palavra de Cristo que pde criar do nada o que no existia, no pode transformar em algo diferente aquilo que existe? De fato, no algo menor dar s coisas uma natureza
totalmente nova do que mudar aquela que j tem [...]. Este corpo que produzimos
(conficimus) sobre o altar o corpo nascido da Virgem. [...] Com certeza a verdadeira
carne de Cristo que foi crucificada, que foi sepultada; , portanto, realmente o
sacramento da sua carne [...]. O prprio Senhor Jesus proclama: Este o meu corpo. Antes da bno das palavras celestes usa-se o nome de outro objeto, depois da
consagrao significa corpo[3].
Sobre este ponto a autoridade de Ambrsio, no desenvolvimento posterior da doutrina
eucarstica, prevaleceu sobre aquela de Agostinho. Este certamente acredita na realidade
da presena de Cristo na Eucaristia, mas, como vimos na meditao passada, acentua
ainda mais fortemente o seu significado simblico e eclesial. Alguns dos seus discpulos
chegaro a afirmar no s que a Eucaristia faz a Igreja, mas que a Eucaristia a Igreja:
Comer o corpo de Cristo, no nada mais do que tornar-se o corpo de Cristo[4]. A reao heresia de Berengrio de Tours que reduzia a presena de Jesus na Eucaristia a
uma presena s dinmica e simblica, provocou uma reao unnime na qual as
palavras de Ambrsio tiveram um papel importante. Ele a primeira autoridade que
Santo Toms de Aquino cita na sua Somma em favor da tese da presena real[5].
A expresso corpo mstico de Cristo, que at agora tinha servido para designar a Eucaristia, passou aos poucos a indicar a Igreja, enquanto que a expresso verdadeiro corpo normalmente foi reservada somente Eucaristia[6]. Esta particular inverso marca, de certa forma, o triunfo da herana de Ambrsio sobre aquela de Agostinho.
Expresses como aquelas do hino Ave verum, onde o corpo eucarstico de Cristo
saudado como o verdadeiro corpo, nascido da Virgem Maria, que foi imolado na cruz e de cujo lado jorraram gua e sangue, parecem tiradas quase totalmente das palavras mencionadas acima por Ambrsio.
Podemos resumir dessa forma a diferena entre as duas perspectivas. Dos trs corpos de
Cristo o corpo verdadeiro ou histrico de Jesus nascido de Maria, o corpo eucarstico e o corpo eclesial Agostinho une estreitamente o segundo e o terceiro, o corpo eucarstico e aquele da Igreja, diferenciando-os do corpo real e histrico de Jesus;
Ambrsio une, de fato identifica , o primeiro com o segundo, ou seja, o corpo histrico
de Cristo e aquele eucarstico, distinguindo-os do terceiro, ou seja, do corpo eclesial.
Neste sentido, se poderia ir muito alm, caindo em um realismo exagerado, quase que como dizia uma frmula contrria heresia de Berengrio o corpo e o sangue de Cristo estivessem presentes no altar sensivelmente e fossem, na verdade, tocados e partidos pelas mos do sacerdote e mastigados pelos dentes dos fieis[7]. Mas o remdio de tal perigo estava na mesma noo de sacramento j claro na teologia. Que a
Eucaristia no uma presena fsica, mas sacramental, mediada por sinais que so, de
fato, o po e o vinho.
2. A Eucaristia e a Beraka judaica
Se existe um limite na viso de Ambrsio, esse a ausncia de qualquer referncia
ao do Esprito Santo na produo do corpo de Cristo sobre o altar. Toda a eficcia
reside nas palavras da consagrao. Elas so para ele palavras criativas, ou seja,
palavras que no se limitam a afirmar uma realidade existente, mas produzem a
realidade que significam, como a frase fiat lux da criao. Isso influenciou na pouca importncia que teve na liturgia latina a epiclese do Esprito Santo, que desempenha,
pelo contrrio, nas liturgias orientais um papel essencial como aquele das palavras da
consagrao.
As novas Oraes Eucarsticas fizeram explcito, sobre esse ponto, o que no Cnone
romano somente era mencionado implicitamente. A frase: Santifica, oh Deus, esta oferta com a potncia da tua beno, equivale na verdade a dizer: Santifica, Oh Deus, esta oferta com a potncia do teu Santo Esprito, e talvez teria sido melhor, no momento de traduzir o Cnone romano nas lnguas modernas, explicitar neste sentido o
significado da frase, de modo que nem sequer esta venervel orao eucarstica ficasse
sem uma verdadeira epiclese ao Esprito Santo.
Mas h uma lacuna maior, da qual se comea a dar-se conta, e que no diz respeito s a
Ambrsio e nem sequer somente aos Padres latinos, mas explicao do mistrio
eucarstico no seu todo. Mais do que nunca, vemos aqui como o estudo dos Padres no
s nos ajuda a recuperar tesouros antigos, mas tambm a abrir-nos ao novo que emerge
na histria; a imit-los no s no contedo, mas tambm no mtodo que era o de colocar
a servio da palavra de Deus todos os recursos e os conhecimentos disponveis no seu
contexto cultural.
O novo recurso que temos hoje para compreender a Eucaristia a aproximao entre
cristos e judeus. Desde os primeiros dias da Igreja, vrios fatores histricos levaram a
acentuar a diferena entre o cristianismo e o judasmo, at contrap-los entre si, como
faz j Igncio de Antioquia[8]. Destacar-se dos hebreus na data da Pscoa, nos dias de jejum, e em tantas outras coisas se torna uma espcie de palavra de ordem. Uma acusao frequentemente direcionada aos prprios adversrios e aos hereges aquela de
judaizar.
A respeito da Eucaristia, o novo clima de dilogo com o judasmo tornou possvel uma
melhor compreenso da sua matriz hebraica. Como no possvel entender a Pscoa
crist, a menos que seja considerada como o cumprimento do que a Pscoa hebraica
prenunciava, assim no possvel compreender completamente a Eucaristia se ela no
vista como o cumprimento do que os hebreus faziam e diziam ao longo da sua refeio
ritual. O prprio nome Eucaristia no nada mais do que a traduo de Beraka, a orao
de bno e agradecimento feita durante esta refeio. Um primeiro resultado
importante dessa mudana foi que hoje nenhum estudioso srio avana mais na hiptese
de que a Eucaristia crist seja explicada luz da ceia em voga em alguns cultos
mistricos do helenismo, como se tem tentado fazer por mais de um sculo.
Os Padres da Igreja conservam as Escrituras do povo hebraico, mas no a sua liturgia,
qual no podiam mais participar, depois da separao da Igreja da Sinagoga. Assim,
para a Eucaristia utilizaram as figuras contidas nas Escrituras o cordeiro pascal, o sacrifcio de Isaac, o de Melquisedec, o man -, mas no o concreto contexto litrgico
no qual o povo hebraico celebrava todas estas memrias que era a refeio espiritual
celebrada, uma vez por ano, na ceia pascal (o Seder) e semanalmente no culto da
sinagoga. O primeiro nome pelo qual a Eucaristia foi designada por Paulo no Novo
Testamento o de refeio do Senhor (kuriakon deipnon) (1 Cor 11, 20), com evidente referncia refeio hebraica pela qual se diferencia j pela f em Jesus.
a perspectiva em que se coloca tambm Bento XVI no captulo dedicado Instituio
da Eucaristia no seu segundo volume sobre Jesus de Nazar. Seguindo a opinio agora
predominante dos estudiosos, ele aceita a cronologia joanina segundo a qual a ceia de
Jesus no foi uma ceia pascal, mas foi uma solene refeio de adeus; com Lous Bouyer,
tambm Bento XVI acredita que seja possvel traar o desenvolvimento da eucharistia crist, isto , do cnone, da beraka hebraica[9].
Por vrias razes culturais e histricas, a partir da Escolstica, tentou-se explicar a
Eucaristia luz da filosofia, especialmente das noes aristotlicas de substncia e
acidente. Tambm isso era um colocar a servio da f os conhecimentos novos do
momento e, portanto, um imitar o mtodo dos Padres. Nos nossos dias, temos que fazer
o mesmo com os novos conhecimentos de ordem, desta vez, histricas e litrgicas mais
do que filosficas.
Com base nos estudos j realizados nessa direo, especialmente o de L. Bouyer[10],
gostaria de mostrar a luz intensa que recai sobre a Eucaristia crist quando colocamos as
narraes evanglicas da instituio sobre o fundo do que sabemos da refeio espiritual
hebraica. A novidade do gesto de Jesus no ser diminuda, mas exaltada ao mximo.
3. O que aconteceu naquela noite
Um texto que mostra os laos estreitos entre a liturgia judaica e a ceia crist a
Didaqu. Este texto no nada mais do que uma coleo de oraes da sinagoga, com o
acrscimo, aqui e ali, das palavras pelo teu servo Jesus Cristo; o resto idntico liturgia da sinagoga. O rito sinagogal era composto por uma srie de oraes chamadas
berakah que em grego traduzido por Eucaristia. A beraka resume a espiritualidade da antiga Aliana e a resposta de beno e de ao de graas que Israel d palavra de
amor dirigida-lhe pelo seu Deus.
O rito seguido por Jesus ao instituir a Eucaristia acompanhava todas as refeies dos
Hebreus, mas assumia uma particular importncia nas refeies em famlia ou em
comunidade no sbado e nos dias festivos. No incio da refeio, cada um por sua vez
tomava pela mo uma taa de vinho e, antes de leva-la aos lbios, repetia uma beno
que a liturgia atual nos faz repetir quase literalmente no momento do ofertrio: Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei dos sculos, que nos destes este fruto da videira. o primeiro clice de vinho.
Mas a refeio comeava oficialmente s quando o pai de famlia ou o chefe da
comunidade tinha partido o po que tinha que ser distribudo entre os convidados. E, de
fato, Jesus, logo aps a frase, toma o po, recita a beno, parte-o e o distribui dizendo:
Este o meu corpo E aqui o rito, que era somente uma preparao, se torna realidade. Depois da beno do po, que era considerada como uma beno geral por
todo o alimento, serviam-se os pratos de costume.
Se os precedentes da Eucaristia se encontram na refeio ritual dos Judeus, ento no
tem mais significado especial saber se a festa da Pscoa coincidia com a Quinta-feira
Santa ou com a Sexta-feira Santa. Jesus no associou a Eucaristia com nada particular
prprio do alimento da Pscoa (deixando de lado a incompatibilidade da data, no h
qualquer referncia ao consumo do cordeiro e das ervas amargas), mas apenas com
aqueles elementos que fazem parte do rito de cada dia: ou seja, a frao do po no
comeo e com a grande orao de ao de graas no final. O carter pascal da ltima
ceia inegvel, mas independente destas discusses e se explica com o nexo que Jesus
coloca entre a Eucaristia (o meu sangue derramado por vs) e a sua morte de cruz. ali que se realiza, de acordo com Joo, a figura do cordeiro pascal ao qual no se quebra nenhum osso (Jo 19,36).
Mas voltando ao ritual hebraico. Quando o jantar est acabando e as iguarias foram
consumidas, os comensais esto prontos para o grande ato ritual que conclui a
celebrao e d o significado mais profundo. Todos lavam as mos, como no comeo.
Estava prescrito que o presidente recebesse a gua do mais jovem dos presentes e talvez
Joo a tenha dado a Jesus. Mas, o Mestre, em vez de deixar-se servir, d uma lio de
humildade, lavando os seus ps. Terminado isso, tendo diante de si uma taa convida a
fazer as trs oraes de agradecimento: a primeira por Deus criador, a segunda pela
libertao do Egito, a terceira para que continue no presente a sua obra. Concluda a
orao, a taa passava de mo em mo e cada um bebia. Eis o rito antigo, realizado
tantas vezes por Jesus em vida.
Lucas diz que depois de ter ceado Jesus tomou o clice dizendo: Este clice a nova aliana no meu Sangue que derramado por vs. Algo decisivo acontece quando Jesus acrescenta a estas palavras a frmula das oraes de agradecimento, ou seja, a beraka
hebraica. Aquele rito era um banquete sacro no qual se celebrava e se agradecia um
Deus salvador, que tinha redimido o seu povo para estreitar com ele uma aliana de
amor, concluda no sangue de um cordeiro. O alimento cotidiano abenoava a Deus por
aquela Aliana, mas agora, do momento em que Jesus decide dar a vida pelos seus
como o verdadeiro cordeiro, ele declarou concluda aquela antiga Aliana que todos
juntos estavam celebrando liturgicamente.
Naquele momento, com poucas e simples palavras, ele abre, oferece e estreita com os
seus a nova e eterna Aliana no seu Sangue. Quando Jesus passa aquele clice como
se dissesse: At agora, todas as vezes que tivestes celebrado esta refeio ritual tivestes comemorado o amor de Deus Salvador que vos redimiu do Egito. A partir de agora,
toda vez que repetirdes o que fizemos hoje, o fareis no mais em comemorao de uma
salvao da escravido material no sangue de um animal; o fareis em memria de mim,
filho de Deus que d o seu Sangue para redimir-vos dos vossos pecados. At aqui
tivestes comido alimento normal para celebrar uma libertao material; agora comereis
a mim, alimento divino sacrificado por vs, para fazer-vos uma s coisa comigo. E me
comereis e bebereis o meu Sangue, no mesmo ato em que eu me sacrifico por vs. Esta
a nova e eterna Aliana no meu amor.
Acrescentando as palavras fazei isto em memria de mim, Jesus d um alcance ilimitado ao seu dom. Do passado, o olhar se projeta ao futuro. Tudo o que ele fez at
agora na ceia colocado nas nossas mos. Repetindo o que ele fez, se renova aquele ato
central da histria humana que a sua morte pelo mundo. A figura do cordeiro pascal
que sobre a cruz se torna evento, na ceia nos dado como sacramento, ou seja, como
memorial perene do evento. O evento acontece apenas uma vez (semel). (Hb 10,12), o
sacramento, sempre que o quisermos (quotiescumque) (1 Cor 11,26).
A idia do memorial que Jesus retoma do ritual hebraico do sbado e dos dias festivos, referida em xodos 12, 14 contm a prpria essncia da Missa, a sua teologia,
o seu significado ntimo para a salvao. O memorial bblico muito mais do que uma
simples comemorao, do que uma simples lembrana subjetiva do passado. Graas a
ele, intervm, fora da mente do orante, uma realidade que tem uma existncia prpria,
que no pertence ao passado, mas existe e obra no presente e continuar a obrar no
futuro. O memorial que at agora era o compromisso da fidelidade de Deus a Israel,
agora o corpo partido e o sangue derramado do Filho de Deus; o sacrifcio do
Calvrio representado (ou seja, tornado novamente presente) para sempre e para todos.
Aqui descobre-se o significado e a preciosidade da insistncia de Ambrsio e, atrs
dele, de forma mais evoluda, dos telogos escolsticos e do conclio de Trento, sobre a
presena verdadeira, real e substancial de Cristo na Eucaristia[11]. S assim, de fato, possvel manter no memorial institudo por Jesus o seu carter objetivo de dom absoluto, sem condies, independente de tudo, at mesmo da f de quem o recebe.
4. A nossa assinatura no dom
Qual o nosso lugar no drama humano-divino que temos lembrado? A nossa reflexo
sobre a Eucaristia deve levar -nos a descobrir justamente isso. para ns, de fato, para
envolver-nos na sua ao, que Jesus fez do seu dom um sacramento.
Na Eucaristia acontecem dois milagres: um aquele que faz do po e do vinho o corpo
e o sangue de Cristo, o outro aquele que faz de ns um sacrifcio vivo agradvel a Deus, que nos une ao sacrifcio de Cristo, como autor, e no apenas como espectadores. No ofertrio oferecemos o po e o vinho que para Deus no tinham,
claro, nem valor nem significado por si mesmos. Agora, na consagrao, Cristo que
coloca aquele valor que eu no posso colocar na minha oferta. Neste momento po e
vinho se tornam Corpo e Sangue de Cristo que se entrega morte em um supremo ato
de amor ao Pai.
Eis ento o que aconteceu: o meu pobre dom privado de valor tornou-se o dom perfeito
para o Pai. Jesus no d somente a si mesmo no po e no vinho, tambm nos pega e nos
transforma (misticamente, no realmente) em si mesmo, tambm nos d o valor que tem
o seu dom de amor ao Pai. Naquele po e naquele vinho estamos tambm ns; Naquilo que oferece, a Igreja oferece a si mesma, escreve Agostinho[12].
Gostaria de resumir, com a ajuda de exemplo humano, o que acontece na celebrao
eucarstica. Pensemos em uma grande famlia em que h um filho, o primognito, que
admira e ama desmedidamente seu prprio pai. Para o seu aniversrio deseja fazer-lhe
um presente precioso. Antes, porm, de apresenta-lo pede, em segredo, a todos os seus
irmos e irms que coloquem a sua assinatura nesse dom. Este chega, portanto, nas
mos do pai como sinal do amor de todos os seus filhos, sem distino, mesmo que, na
verdade, s um pagou o preo dele.
o que acontece no sacrifcio eucarstico. Jesus admira e ama infinitamente o Pai
Celestial. A ele quer fazer a cada dia, at o fim do mundo, o dom mais precioso que se
possa pensar, aquele da sua prpria vida. Na Missa ele convida todos os seus irmos a colocarem a sua assinatura no dom, de modo que ele chega a Deus Pai como o dom
indistinto de todos os seus filhos, mesmo que s um tenha pagado o preo de tal dom. E
que preo!
A nossa assinatura so as poucas gotas de gua que so misturadas ao vinho no clice; a
nossa assinatura, explica Agostinho, especialmente o amm que os fieis pronunciam
no momento da comunho: quilo que sois respondeis: Amm e respondendo o assinais. Ouves, de fato: O corpo de Cristo, e respondes: Amm. Sejas membro do
corpo de Cristo, para que seja verdadeiro o seu Amm Sejais aquilo que vs e recebeis aquilo que sois[13]. Toda a eclesiologia eucarstica de Agostinho que lembramos semana passada encontra aqui o seu campo de aplicao. Se no possvel
dizer que a Eucaristia a igreja (como chegam a afirmar alguns dos seus discpulos),
pode-se e deve-se dizer que a Eucaristia faz a Igreja.
Sabemos que quem assinou um compromisso tem o dever de honrar a prpria firma.
Isso significa que, saindo da Missa, temos que fazer tambm ns da nossa vida um dom
de amor ao Pai e aos irmos. Temos que dizer tambm ns, mentalmente, aos irmos:
Tomai, comei; este o meu corpo. Tomai o meu tempo, as minhas capacidades, a minha ateno. Tomai tambm o meu sangue, ou seja, os meus sofrimentos, tudo o que
me humilha, me mortifica, limita as minhas foras, a minha mesma morte fsica. Quero
que toda a minha vida seja, como aquela de Cristo, po partido e vinho derramado pelos
outros. Quero fazer de toda a minha vida uma eucaristia.
Recordei a Didaqu, como o texto que documenta a fase de transio da liturgia
hebraica para aquela crist. Terminamos com uma orao sua que inspirou tantas
oraes eucarsticas subsequentes:
Como este po partido estava
espalhado sobre as colinas e recolhido tornou-se
uma s coisa,
Assim a tua Igreja se recolha dos
confins da terra no teu reino
porque tua a glria e a potncia
por Jesus Cristo nos sculos. Amem
[Traduo Thcio Siqueira / ZENIT]
[1] Cf. J. Kelly, Il pensiero cristiano delle origini, cit., pp. 415 ss.
[2] Ambrsio, De sacramentis, IV,14-16.
[3] Ambrsio, De mysteriis, 52-53.
[4] Guglielmo di Saint-Thierry, PL 184, 403.
[5] Cf. S. Th., III, q.LXXV. aa. 1 ss.
[6] o processo reconstrudo por H. de Lubac, in Corpus Mysticum. LEucharistie et lEglise au Maoyen Age, Aubier, Paris 1949
[7] Denzinger-Schoenmetzer, Enchiridion Symbolorum, nr. 690
[8] Ignacio de Antiquioa, Epstola aos Magnsios, 10,3.
[9] J. Ratzinger Bento XVI, Jesus de Nazar, vol .II, LEV, Roma 2011, p.132-163; cf. L. Bouyer, Eucharistie. Thologie et spiritualit de la prire eucharistique. Descle,
Tournai 1966
[10] Alm do livro citado de L. Bouyer, cf. A. Baumstark, Liturgie compare,
Chevetogne 1953; L. Alonso Schoekel, Meditaciones biblicas sobre la Eucaristia, Sal
Terrae, Santander 1986 ; Seung Ai Yang, Les repas sacrs dans le Judaisme de lpoque hellnistique, in Encyclopedie de lEucaristie, du Cerf, Paris 2000, pp. 55-59.
[11] Cf. Conc. Tridentino, Canon 1 de SS. Eucharistiae sacramento (DS, 1651).
[12] Agostinho, De civitate Dei, X, 6 (CCL 47, 279 ( In ea re quam offert, ipsa offertur).
[13] Agostinho, Sermo 272 (PL 38, 1247 s.)
Quarta pregao da Quaresma
SO LEO MAGNO E A F EM JESUS CRISTO
VERDADEIRO DEUS E VERDADEIRO HOMEM
1. Oriente e ocidente unnimes sobre Cristo
Existem vrios caminhos, ou mtodos, para aproximar-se pessoa de Jesus. Pode-se,
por exemplo, partir diretamente da Bblia e, tambm neste caso, possvel seguir vrias
vias: a via tipolgica, seguida na mais antiga catequese da Igreja, que explica Jesus luz
das profecias e das figuras do Antigo Testamento; a via histrica, que reconstri o
desenvolvimento da f em Cristo a partir das vrias tradies, autores e ttulos
cristolgicos, ou dos diversos ambientes culturais do Novo Testamento. Pode-se, pelo
contrrio, partir das perguntas e dos problemas do homem de hoje, ou at mesmo da
prpria experincia de Cristo, e, de tudo isso, chegar Bblia. Todos esses so caminhos
amplamente explorados.
A Tradio da Igreja elaborou, bem rpido, uma via de acesso ao mistrio de Cristo, um
modo seu de recolher e organizar os dados bblicos relativos a ele, e esta via se chama o
dogma cristolgico, a via dogmtica. Por dogma cristolgico compreendo as verdades
fundamentais sobre Cristo, definidos nos primeiros conclios ecumnicos,
especialmente o de Calcednia, que, em substncia, se resumem nesses trs pilares:
Jesus Cristo verdadeiro homem, verdadeiro Deus, uma s pessoa.
So Leo Magno o Padre que eu escolhi para introduzir-nos nas profundidades deste
mistrio. Por um motivo bem especfico. Na teologia latina estava pronta por dois
sculos e meio a frmula da f em Cristo que se tornara o dogma de Calcednia.
Tertuliano tinha escrito: Vemos duas naturezas, no confusas, mas unidas em uma pessoa, Jesus Cristo, Deus e homem[1]. Depois de muita pesquisa, os autores gregos chegam, por conta prpria, a uma formulao idntica em substncia; mas no porque
eles tenham se atrasado ou perdido tempo, e sim porque s agora era possvel dar quela
frmula o seu verdadeiro significado, tendo eles evidenciado, enquanto isso, todas as
implicaes e resolvido as dificuldades.
O Papa So Leo Magno aquele que gerenciou o momento em que as duas correntes
do rio aquela latina e aquela grega se uniram e com a sua autoridade de bispo de Roma favoreceu o acolhimento universal. Ele no se contenta em simplesmente
transmitir a frmula herdada por Tertuliano e retomada por Agostinho, mas a adapta aos
problemas que apareceram nesse nterim, entre o conclio de feso do 431 e aquele de
Calcednia do 451. Eis, em grandes linhas, o seu pensamento cristolgico, como foi
exposto no famoso Tomus ad Flavianum[2].
Primeiro ponto: a pessoa do Deus-homem idntica do Verbo eterno: Aquele que se fez homem, sob a forma de servo, o mesmo que na forma de Deus criou o homem. Segundo ponto: a natureza divina e a humana coexistem nesta nica pessoa que
Cristo, sem mistura ou confuso, mas cada uma mantendo suas propriedades naturais
(salva proprietate utriusque naturae). Ele comea a ser o que no era, sem cessar de ser
o que era[3]. A obra da redeno exigia que o nico e mesmo mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo, tivesse que ser capaz de morrer em relao natureza
humana e no morrer com respeito natureza divina. Terceiro ponto: A unidade da pessoa justifica o uso da comunicao dos idiomas, pela qual podemos afirmar que o
Filho de Deus foi crucificado e enterrado, e tambm que o Filho do homem veio do cu.
Foi uma tentativa, em grande parte bem sucedida, de finalmente encontrar um acordo
entre as duas grandes escolas de teologia grega, a de Alexandria e a de Antioquia, evitando os respectivos erros que eram o monofisismo e o nestorianismo. Os
antioquenos tinham o reconhecimento, para eles vitais, das duas naturezas de Cristo, e
portanto, da plena humanidade de Cristo; os alexandrinos, apesar de algumas reservas e
resistncias, podiam encontrar na formulao de Leo o reconhecimento da identidade
da pessoa do Verbo encarnado e aquela do Verbo eterno, que estava nos seus coraes
por acima de tudo.
Basta recordar o cerne da definio de Calcednia para dar-se conta do quanto esteja
presente nela o pensamento do Papa Leo:
Ensinamos por unanimidade que deve-se reconhecer o nico e mesmo Filho Senhor nosso Jesus Cristo, perfeito na divindade e sempre o mesmo perfeito na humanidade,
verdadeiro Deus e verdadeiro homem [...], gerado antes dos sculos pelo Pai segundo a
divindade e nos ltimos tempos, por ns homens e para a nossa salvao, gerado por
Maria Virgem segundo a humanidade; subsistente nas duas naturezas de modo
inconfuso, imutvel, indivisvel, inseparvel, no sendo de forma alguma suprimida a
diferena das naturezas por causa da unio, pelo contrrio, permanecendo preservada a
propriedade tanto de uma quanto da outra natureza, elas combinam para formar uma s
pessoa e hipstase[4].
Poderia parecer uma frmula tecnicamente perfeita, mas rida e abstrata, porm, nela se
baseia toda a doutrina crist da salvao. S se Cristo homem como ns, o que ele faz,
nos representa e nos pertence, e somente se ele tambm Deus, aquilo que faz tem um
valor infinito e universal, a tal ponto que, como se canta no Adoro te devote, uma nica gota de sangue derramado salva o mundo todo do pecado (Cuius una stilla salvum facere totum mundum qui ab omni scelere)
Sobre este ponto, oriente e ocidente, so unnimes. Esta era a situao da humanidade
antes de Cristo, escrevem, com poucas diferenas entre eles, santo Anselmo entre os
latinos e o Cabasilas entre os ortodoxos. De um lado estava o homem que tinha
contrado a dvida pecando e que tinha que lutar contra satans para livrar-se, mas no
podia faz-lo, sendo a dvida infinita e sendo ele escravo daquele que deveria ter
vencido; por outro lado est Deus que podia expiar o pecado e vencer o demnio, mas
no deveria faz-lo, no sendo ele o devedor. Era preciso que se encontrassem unidos na
mesma pessoa aquele que devia lutar e aquele que podia vencer, e aquilo que
aconteceu com Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, em uma pessoa[5].
2. Jesus da histria e o Cristo do dogma novamente unidos
Estas tranquilas certezas sobre Cristo, nos ltimos dois sculos, foram atingidas por um
ciclone crtico que tendia a tirar-lhes toda a consistncia e a qualific-las como puras
invenes dos telogos. A partir de Strauss, tornou-se uma espcie de grito de guerra
entre os estudiosos do Novo Testamento: libertar a figura de Cristo dos grilhes do
dogma, para reencontrar o Jesus histrico, o nico real. A iluso de que Jesus possa ter sido homem no sentido pleno e que como nica pessoa seja superior toda a
humanidade a cadeia que ainda fecha a porta da teologia crist ao mar aberto da
cincia racional[6]. E eis a concluso qual o estudioso chega: A ideia do Cristo do dogma por um lado e o Jesus de Nazar da histria por outro esto separados para
sempre.
Declara-se sem hesitao o pressuposto racionalista desta tese. O Cristo do dogma no
satisfaz as exigncias da cincia racional. O ataque continuou, com solues
alternativas, quase at os nossos dias. Tornou-se ele mesmo, a seu modo, um dogma:
para conhecer o verdadeiro Jesus da histria preciso prescindir da f nele posterior
Pscoa. Neste clima proliferaram reconstrues fantasiosas da figura de Jesus a
benefcio do espetculo, algumas com pretenses de historicidade, mas que na verdade
se baseavam em hipteses de hipteses, todas respondendo a gostos ou reivindicaes
do momento.
Mas agora, eu acho, chegamos ao fim da parbola. hora de tomar nota da mudana
que aconteceu neste setor, a fim de sair de uma certa atitude defensiva e de vergonha
que tem caracterizado os estudiosos crentes nos ltimos anos, e ainda mais para fazer
chegar uma mensagem a todos aqueles que nestes anos divulgaram profusamente
imagens de Jesus ditadas por aquele anti-dogma. E a mensagem que no possvel
mais escrever na boa-f Investigaes sobre Jesus que fingem ser histricas, mas prescindem, ou melhor, excluem desde o incio, a f nele.
Quem personaliza de modo mais claro a mudana em ato um dos maiores estudiosos
vivos do NT, o ingls James D.G. Dunn. Ele resumiu em um pequeno livro, intitulado
Mudar perspectivas sobre Jesus, os resultados da sua monumental pesquisa sobre as
origens do cristianismo[7]. O autor ps a descoberto as razes dos dois pressupostos em
que se baseiam a contraposio entre Jesus histrico e o Cristo da f: primeiro, que para
conhecer o Jesus da histria necessrio prescindir da f ps-pascal; segundo, que para
conhecer o que realmente disse e fez o Jesus histrico, preciso libertar a tradio das
camadas e das adies posteriores e voltar para a camada original, ou primeira
redao, de uma determinada percope evanglica.
Contra o primeiro pressuposto, Dunn demonstra que a f comeou antes da Pscoa; se
alguns o seguiram e se tornaram seus discpulos porque tinham acreditado nele. Trata-
se de uma f ainda imperfeita, mas de f. Nesta f, o evento pascal marcar certamente
um salto de qualidade, mas saltos de qualidade, embora menos importantes, j tinham
acontecido antes da Pscoa, em momentos particulares, como a transfigurao, certos
milagres sensacionais, o dilogo de Cesaria de Filipe. A Pscoa no um incio
absoluto.
Contra o outro assunto, Dunn demonstra como, embora admitindo que as tradies
evanglicas circularam por um certo tempo de forma oral, os estudiosos aplicavam
sempre a tal tradio o modelo literrio, como se faz hoje quando se quer voltar, de
edio em edio, ao texto original de uma obra. Se levarmos em conta as leis que
regularizam at no presente, em certas culturas -, a transmisso oral das tradies de uma comunidade, veremos que no h necessidade de enxugar um dito evanglico, em
busca de um hipottico ncleo originrio, uma operao que abriu as portas a todo tipo
de manipulao dos textos evanglicos, acabando por repetir aquilo que acontece
quando se descasca uma cebola em busca do seu ncleo slido que no existe. Algumas
destas concluses so aquelas que os estudiosos catlicos desde sempre sustentaram[8],
mas Dunn tem o mrito de t-las defendido com argumentos dificilmente refutveis a
partir da mesma pesquisa histrico-crtica e com as suas prprias armas.
O rabino americano J. Neusner, com o qual Bento XVI estabelece um dilogo em seu
primeiro livro sobre Jesus de Nazar, d por suposto este resultado. Partindo de um
ponto de vista autnomo e por assim dizer neutro, ele faz notar como v a tentativa de
separar o Jesus histrico do Cristo da f ps-pascal. O Jesus histrico, o dos
Evangelhos, por exemplo do discurso da montanha, j um Jesus que exige a f na sua
pessoa como algum que pode corrigir Moiss, que senhor do sbado, pelo qual
tambm pode-se fazer uma exceo ao quarto mandamento; em suma como algum que
se coloca em p de igualdade com Deus. prprio por isso, diz o rabino, que embora
fascinado pela figura de Jesus, ele no poder mais ser um dos seus discpulos.
O estudo sobre o NT termina aqui; chega a provar a continuidade entre o Jesus da
histria e o Cristo do querigma, no vai mais longe. Resta provar a continuidade entre o
Cristo do querigma e o do dogma da Igreja. A frmula de Leo Magno e de Calcednia
marca um desenvolvimento coerente da f do Novo Testamento, ou representa, pelo
contrrio, uma ruptura com relao a ela? Este foi o meu principal interesse nos anos em
que eu me ocupava de Histria das origens do cristianismo e a concluso a que cheguei
no difere daquela do Cardeal Newman, em seu famoso ensaio Sobre o desenvolvimento da doutrina crist[9]. Houve certamente a mudana de uma cristologia funcional (o que Cristo faz) a uma cristologia ontolgica (o que Cristo ), mas no se trata de uma ruptura porque o mesmo processo se d j no interior do querigma, por exemplo, na passagem da cristologia de Paulo quela de Joo, e em Paulo
mesmo, na passagem das suas primeiras cartas quelas da priso, Filipenses e
Colossenses.
3. Alm da frmula
Desta vez o prprio argumento exigia fixar-se um pouco mais na parte doutrinal do
tema. A pessoa de Cristo o fundamento de todo o cristianismo. Se a trombeta emite um som incerto, quem se preparar para a batalha?, dizia So Paulo (1 Cor 14, 8): se no tem ideia clara sobre quem Jesus Cristo, que fora ter a nossa evangelizao?
Nos resta, no entanto, fazer agora uma aplicao prtica para a vida pessoal e a f atual
da Igreja, que o objetivo constante da nossa reviso dos Padres.
Quatro sculos e meio de formidvel trabalho teolgico deram Igreja a frmula:
Jesus Cristo verdadeiro Deus e verdadeiro homem; Jesus Cristo uma s pessoa. Mais sinteticamente ainda: ele uma pessoa em duas naturezas. A esta frmula se aplica perfeitamente o dito de Kiekegaard: A terminologia dogmtica da Igreja primitiva como um castelo encantado, onde descansam em um sono profundo os mais
graciosos prncipes e princesas. Basta somente acord-los, para que se coloquem de p
em toda a sua glria[10]. A nossa tarefa , portanto, a de despertar e de dar sempre nova vida aos dogmas.
A investigao sobre os Evangelhos mesmo aquela que lembramos agora de Dunn nos mostra que a histria no nos pode levar ao Jesus em si, ao Cristo como na realidade. O que alcanamos nos evangelhos sempre, em todas as fases, um Jesus
lembrado, mediado pela memria que dele conservaram os discpulos, embora se uma memria crente. como a ressurreio. Alguns dos nossos dizem os dois discpulos de Emas foram ao tmulo e encontraram as coisas tais como as mulheres haviam dito; mas no o viram (Lc 24, 24). A histria pode constatar que as coisas, com relao a Jesus de Nazar, esto como disseram os discpulos nos evangelhos, mas ele no o v.
O mesmo acontece com o dogma. Ele pode levar-nos a um Jesus definitivo, formulado, mas Toms de Aquino nos ensina que a f no termina com os enunciados (enuntiabile), mas na realidade (res). Entre a frmula de Calcednia e o
Jesus real existe a mesma diferena que h entre a frmula qumica H2O e a gua que
bebemos ou na qual nadamos. Ningum pode dizer que a frmula H2O intil ou que
no descreve perfeitamente a realidade; somente no a realidade! Quem nos poder
levar ao Jesus real que est alm da histria e por trs da definio?
E eis que nos deparamos com a grande notcia reconfortante. Existe a possibilidade de
um conhecimento imediato de Cristo: aquele que nos d o Esprito Santo enviado por ele mesmo. Ele a nica mediao no-mediata entre ns e Jesus, no sentido que no age como um vu, no constitui um diafragma ou um trmite, sendo ele o Esprito
de Jesus, o seu alter ego, da sua mesma natureza. Santo Irineu chega a dizer que o Esprito Santo a nossa mesma comunho com Cristo[11]. E nisso, aquela do Esprito diferente de qualquer outra mediao entre ns e o Ressuscitado, seja eclesial que
sacramental.
Mas a Escritura mesma que nos fala deste papel do Esprito Santo com o propsito do
conhecimento do verdadeiro Jesus. A vinda do Esprito Santo em Pentecostes se traduz
em uma repentina iluminao de todo o trabalho e a pessoa de Cristo. Pedro conclui o
seu discurso com aquela espcie de definio urbi et orbi do senhorio de Cristo: Saiba, portanto, com certeza toda a casa de Israel que Deus constituiu Senhor e Cristo aquele Jesus que vs crucificastes (At 2, 36).
So Paulo afirma que Jesus Cristo revelado Filho de Deus com poder pelo Esprito de santidade (Rm 1, 4), isto , por obra do Esprito Santo. Ningum pode dizer que Jesus o Senhor, a no ser por uma iluminao interior do Esprito Santo (cf. 1 Cor 12, 3). O
Apstolo atribui ao Esprito Santo a compreenso do mistrio de Cristo, que foi dada a ele, como a todos os santos apstolos e profetas (cf. Ef 3, 4-5). S se forem
fortalecidos pelo Esprito, continua o Apstolo os crentes podero compreender a largura e o comprimento, a altura e a profundidade e conhecer o amor de Cristo que
excede todo conhecimento (Ef 3, 16-19).
No Evangelho de Joo, o prprio Jesus anuncia esta obra do Parclito com relao a ele.
Ele tomar do que seu e o anunciar aos discpulos; recordar-lhes- tudo o que ele
disse; os conduzir toda verdade sobre a sua relao com o Pai; lhes dar testemunho.
Exatamente isso ser, de agora em diante, o critrio para reconhecer se se trata do
verdadeiro Esprito de Deus e no de um outro esprito: se leva a reconhecer Jesus vindo
na carne (cf. 1 Jo 4, 2-3).
4. Jesus de Nazar, uma pessoa
Com a ajuda do Esprito Santo, faamos ento uma pequena tentativa de acordar o dogma. Do tringulo dogmtico de Leo Magno e de Calcednia verdadeiro Deus, verdadeiro homem, uma pessoa nos limitamos a tomar em considerao somente o ltimo elemento: Cristo uma pessoa. As definies dogmticas so estruturas abertas, capazes de acomodar novos significados, o que possvel graas ao progresso do pensamento humano. Na sua etapa mais antiga, pessoa (do latim personare, ressoar)
indicava a mscara que o ator precisava para fazer ressoar a sua voz no teatro; disso
passou a indicar rosto, portanto, indivduo, at chegar ao seu significado mais elevado
de ser individual de natureza racional (Bocio).
No uso moderno, o conceito se enriqueceu de um significado mais subjetivo e
relacional, favorecido sem dvida pelo uso trinitrio de pessoa como relao subsistente. Indica, portanto, o ser humano em quanto capaz de relao, de estar como um eu diante de um tu. Nisso a frmula latina uma pessoa revelou-se mais fecunda do que aquela respectiva grega de uma hispstase. Hipstase se pode dizer de cada objeto particular existente; pessoa, somente do ser humano e, por analogia, do ser
divino. Ns falamos hoje (e tambm os gregos falam) de dignidade da pessoa, no de dignidade da hipstase.
Aplicamos tudo isso ao nosso relacionamento com Cristo. Dizer que Jesus uma pessoa significa tambm