Post on 10-Dec-2018
1
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
O RETORNO DAS CARAVELAS: narrativas moçambicana e timorense à luz dos estudos culturais
Claudiany da Costa Pereira
Profª. Dr. Maria Luíza Ritzel Remédios Orientadora
Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Letras, na área de concentração de Teoria da Literatura
Data da Defesa: 24/03/2006
Instituição Depositária: Biblioteca Irmão José Otão
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Porto Alegre, maio de 2006
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
Para Dilá,
que é verdade, determinação
e carinho em forma de mãe.
3
Eu somos tristes. Não me engano, digo bem. Ou talvez: nós sou triste? Porque dentro de
mim, não sou sozinho. Sou muitos. E esses todos disputam minha única vida. Vamos tendo nossas mortes. Mas parto foi só um. Aí, o problema. Por isso, quando conto a minha
história me misturo, mulato não de raças, mas de existências. (Mia Couto, Vozes anoitecidas)
nenhum povo é grande por ter apenas fastos a cantar
mas pelas liberdades que soube viver e pelo amor que tiver para dar.
(Corrigenda - Fernando Sylvan)
As ruínas de uma nação começam no lar do pequeno cidadão.
(Provérbio africano)
Não tenhas medo de confessar o esforço De silenciar os meus batuques
E de apagar as queimadas e as fogueiras E desvendar os segredos e os mistérios
E destruir todos os meus jogos E também os cantares dos meus avós.
Não tenha medo, amigo, que te não odeio. Foi essa a minha história e a tua história.
E eu sobrevivi Para construir estradas e cidades a teu lado
E inventar fábricas e Ciência, Que o mundo não pode ser feito só por ti.
(Mensagem do Terceiro Mundo – Fernando Sylvan)
4
AGRADECIMENTOS
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Tecnológico e Científico – CNPq, pela bolsa concedida para a realização do Doutorado em Teoria da Literatura na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul;
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes, pelo auxílio financeiro concedido para realização do Doutorado Sanduíche na Universidade de Coimbra;
À coordenadora do Programa de Pós-Graduação, representada pela Prof.ª Dr. Regina Lamprecht, pela seriedade com que desenvolve seu trabalho e pela compreensão necessária ao exercício da profissão;
À Prof.ª Dr. Maria Luíza Ritzel Remédios, orientadora da pesquisa, pela amabilidade com que me abriu as portas da PUCRS, pelos muitos ensinamentos, pelo acompanhamento de sete anos de trabalho e outros tantos de cumplicidade, dos quais terei sempre muita saudade;
Ao sempre terno Prof. Assis Brasil, querido Mestre, pelo apoio, atenção, afeto, amizade e interesse demonstrados durante minha passagem pela PUCRS;
Aos caríssimos Professores Maria Eunice Moreira, Maria da Glória Bordini, Regina Zilberman e Vera Aguiar, pela generosidade com que desenvolvem suas aulas, compartilhando seus materiais de pesquisa e seus conhecimentos;
Ao Prof. Dr. José Luís Pires Laranjeira, pela simpatia e atenção com que me acolheu em Coimbra, e pelas indicações bibliográficas que complementaram este trabalho;
Às secretárias do Programa de Pós-Graduação em Letras Claudia de Los Angeles, Isabel Cristina e Mara Rejane, pelo trabalho incansável e pela disponibilidade com que resolvem nossos problemas burocráticos;
Ao escritor Mia Couto, por conceder entrevista à autora desta pesquisa; Ao escritor Luís Cardoso, pela entrevista concedida, pela gentileza,
entusiasmo e atenção com que acolheu às minhas solicitações; Aos queridos Esmeralda e Álvaro Lapa, pela calorosa acolhida em
Coimbra; Às queridas amigas Catarina Mateus e Sílvia Brunetta, pelo apoio,
camaradagem e pelos cafés durante os longos intervalos das aulas do Mestrado em Literaturas Africanas na FLUC;
Ao querido Leonel Borrela; À D. Neusa Costa pelo apoio em todas as horas;
5
Aos imprescindíveis amigos: Celestina Mendes, Cláudia Mentz Martins, Clóvis Dias Massa, Fabiane Bularmaque, Mara Lúcia Barbosa da Silva, Mauro Nicola Póvoas e Susana Dalcol, com especial carinho pelos bons momentos vividos nesta nossa nação de acolhida que é a PUC;
À minha família: berço, chão, abrigo, raiz e identidade.
6
ABSTRACT
THE RETURN OF THE CARAVELS: MOZAMBICAN AND TIMORESE WRITING
FROM A CULTURAL STUDIES’ PERSPECTIVE
Reflecting on the literature of both Mozambique and East Timor brings us
inevitably to the concept of Lusophony, taken in this paper to be the total sum of
linguistic, social, economic and cultural principles that comprise the idea of Lusophony.
It is not only a term that identifies a commonwealth of nations that possess the same
cultural matrix and a similar historiographic core, but it is also an issue that presents
itself to the contemporary world, where there is a constant culture-space interaction
among the countries that integrate the set of Lusophone nations. New, emerging
countries, such as the Lusophone African nations and East Timor, have been born with
the scars of both civil and colonial wars, and have put their mark on a new era of the so-
called Third World countries – not only in the political and economic fields, but also in
the cultural arena. This historical change, as observed in the social context, comes to
constitute the discursive universe of the contemporary fiction of Mia Couto, from
Mozambique, and Luís Cardoso, from East Timor, to be analyzed in this doctoral
dissertation, through the cultural identity portrayed in the writing of both authors.
Key Words: Post-Colonial Literature, Cultural Identity, Lusophone Community,
East Timor Literature, Mozambique Literature
7
RESUMO
O RETORNO DAS CARAVELAS: NARRATIVA MOÇAMBICANA E TIMORENSE
À LUZ DOS ESTUDOS CULTURAIS
Pensar as narrativas de Moçambique e Timor Leste remete à idéia de lusofonia,
aqui entendida como a soma de princípios lingüísticos, sociais, econômicos e culturais.
Mais do que um termo que identifica uma comunidade de nações, que possuem uma
matriz cultural comum e um núcleo historiográfico semelhante, é uma questão posta ao
mundo contemporâneo, onde há a constante interação espácio-cultural. As novas nações
emergentes como as africanas lusófonas e a timorense nascem com a cicatriz das guerras
civil e colonial e marcam uma nova era não apenas no campo político-econômico
terceiro-mundista, como também no cultural e identitário. Essa transformação histórica
observada no contexto social passa a integrar o universo discursivo da ficção
contemporânea dos escritores Mia Couto, de Moçambique, e Luís Cardoso, de Timor
Leste, que nessa tese é analisada sob o fio condutor da identidade cultural representada
nas narrativas dos dois autores selecionados.
Palavras-Chave: Literatura Pós-Colonial, Identidade Cultural, Comunidade
Lusófona, Literatura Timorense, Literatura Moçambicana
8
SUMÁRIO Vol. I 1 SOBRESCRITO À ESPERA DE MAIS ESCLARECIMENTO ........... 10 2 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS: DELIMITANDO TERRITÓRIOS:.. 22 2.1 IDENTIDADES SEM RÓTULO: OS LOCAIS DA LUSOFONIA........... 272.2 MICRO-HISTÓRIAS DE IDENTIDADES: O REGASTE DA
HISTÓRIA NA FICÇÃO.............................................................................. 50 3 CONDICIONAMENTO HISTÓRICO: CONSTRUINDO
IDENTIDADES ........................................................................................... 61
3.1 MOÇAMBIQUE: LITERATURA A CAMINHO DA ESPECIFICIDADE CULTURAL................................................................. 62
3.2 TIMOR LESTE: INDEPENDÊNCIA E FORMAÇÃO IDENTITÁRIA NO MUNDO DA DIÁSPORA....................................................................
86
4 A NORMA DA ERRÂNCIA: NARRATIVAS DE MIA COUTO....... 1004.1 ESCRITA LITERÁRIA E CRÍTICA PROFISSIONAL OU TEMÁTICA
NÃO É BARCO NAAVEGÁVEL A LUGAR ALGUM........................... 102 4.2 O LOCAL E O UNIVERSAL NA NARRATIVA
MOÇAMBICANA........................................................................................ 1194.2.1 Vozes anoitecidas: a semente da esperança............................................ 1194.2.2 Vinte e zinco: o espaço de todas as vozes................................................ 1334.2.3 Terra sonâmbula: a topografia da devastação........................................ 1444.2.4 Estórias abensonhadas: identidades em processo................................ 1544.3 MOÇAMBICANIDADE EM PROCESSO OU ESTAR DESILUDIDO
NÃO É DESISTIR.......................................................................................... 168 5 A LUZ DO PETROMAX: NARRATIVAS DE LUÍS
CARDOSO.................................................................................................... 180
5.1 HOSPEDEIRO POR IMPOSIÇÃO HISTÓRICA...................................... 1815.2 LITERATURA ÀS MARGENS DA LUSOFONIA................................... 1895.2.1 Identidades desmascaradas e literatura como protesto....................... 1895.2.2 Retrato do artista quando jovem: Luís Cardoso e a vivência da
diáspora......................................................................................................... 199
5.2.3 Babel contemporânea ou Ingredientes para o ressentimento histórico.........................................................................................................
217
6 OS ESCRITORES E SUAS TRAVESSIAS: DILUINDO FRONTEIRAS .............................................................................................
232
6.1 DIGNIDADE REPOSTA: IDENTIDADES NA DIFERENÇA................ 232
9
6.2 O RETORNO DAS CARAVELAS OU UM AJUSTE DE CONTAS COM FIANÇA DA HISTÓRIA .................................................................. 250
REFERÊNCIAS............................................................................................. 269 Vol. II CADERNO DE ANEXOS ANEXO A - Entrevistas............................................................................... 03 ANEXO B – Arte Africana.......................................................................... 18 ANEXO C – Mapas e fotografias.............................................................. 25 ANEXO D - Documentos coletados no Centro de Documentação 25
de Abril.......................................................................................................... 39
REFERÊNCIAS............................................................................................ 61
10
1 SOBRESCRITO À ESPERA DE MAIS ESCLARECIMENTO
Declaração Universal dos Direitos dos Povos1 estabelecida em 1976, em
Argel, determina na Seção IV, Artigos 13o, 14o e 15o que todos os povos
têm direito a falar a língua desenvolvida no seu território denominada neste documento
por “sua língua”, a fim de “preservar e desenvolver a sua cultura”. Fica estabelecido,
também, que todos os povos têm o direito de não sofrer imposição de nenhuma cultura
que lhes seja estranha.
O período histórico em que se proclama esse Direito Internacional é posterior à
Revolução dos Cravos em Portugal, movimento este estabelecido pelos Capitães de
Abril em 25 de Abril de 1974, quando a maioria das colônias lusófonas já havia passado
ou estava em processo de descolonização, encaminhado de forma omissa e displicente
por parte da potência colonizadora2.
A imagem formada com os quatrocentos anos de dominação ultramarina
corresponde à imagem da grande nação lusófona unida pela matriz cultural da língua
portuguesa defendida com empenho durante o último período de exceção democrática
pelo qual passou Portugal, o governo Salazarista. O domínio sobre as nações assegurava
1 A Declaração Universal dos Direitos dos Povos, proclamada em Argel (Argélia), em 04 de julho de 1976, aprovada pela Organização das Nações Unidas, pode ser conferida no Caderno de Anexos à página 40. Este documento surge da necessidade de se instituir uma nova ordem internacional, livre dos colonialismos. 2 A respeito deste assunto, que será recorrente nas discussões que seguem, incluindo a análise literária dos textos, a título de ilustração, poderão ser consultadas duas notas sobre a descolonização de Angola e de Timor Leste veiculadas pela imprensa portuguesa no ano de 1975. Tais documentos constam no Caderno de Anexos, às páginas 41 e 42.
A
11
à potência colonizadora não apenas o direito à exploração econômica e à determinação
política sobre outros territórios além fronteiras, mas, sobretudo, diminuía a pequenez
geográfica do país frente à Comunidade Internacional. Tal condição de inferiorização
geográfica3 sempre foi dirimida pela existência do império ultramarino e pela
recorrência aos mitos históricos que envergaram estas descobertas.
Com o colapso da Ditadura Salazarista em muito ocasionado pelos levantes nas
colônias (13 anos antes da queda do regime fascista do qual as colônias foram, em parte,
sustentáculo, Angola lutava pela autodeterminação), a imagem de nação deixou de ser
difundida pela linha espácio-territorial para ser difundia pelo fio condutor da língua
matriz. Alfredo Margarido (MARGARIDO, 2000) considera esta uma tentativa de
mantenimento do poderio colonial hoje composto por estados autogestores, uma vez
que Portugal continua sendo sede da Comunidade Lusófona e centro para onde
convergem as novas culturas oriundas das nações emergentes4.
3 A propósito desta questão, pode ser consultado, à página 30 do Caderno de Anexos, o mapa identificado pelo título “Portugal não é um país pequeno”, veiculado durante o período da Ditadura Salazarista em Portugal. Neste mapa fica clara a noção expressa sobre a condição territorial portuguesa, quando, no período citado, para dissimular esta realidade histórica, foi sobreposto ao mapa da Europa, o mapa das colônias portuguesas, dando, assim, a dimensão da imensa nação lusófona, propagada pelo regime de Salazar. 4 Preferimos a utilização do termo nações emergentes, ou jovens nações de língua portuguesa, mesmo que essa denominação não tenha um suporte teórico que a sustente, porque é antes de tudo uma convicção que surge em oposição ao termo “nações terceiro-mundistas”, que evoca uma situação político-econômica condicionada por um fator histórico unilateral. Ou seja, nenhuma colônia de exploração teve o direito de não se enquadrar no sistema colonial, cujo eixo de atuação esteve centrado na exploração dos recursos naturais e econômicos dos territórios dominados. Desgaste que confere, hoje, na contemporaneidade, o estatuto de nações terceiro-mundistas às nações emergentes do período imperialista, pela carência de recursos econômicos que enfrentam para sustentar o próprio desenvolvimento político-social interno.
12
A nova relação que alguns críticos reclamam por considerarem uma tentativa de
neo-colonialismo5 originou uma instituição questionável em sua eficácia social, porém
inegável em sua condição material que é a Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa (CPLP). Instituída em acordo em 1996, tem Portugal como sede e integra
como países-membro todos os povos onde a língua portuguesa é oficial, a saber: Angola,
Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, e, por
último, Timor Leste. O escritor moçambicano Mia Couto e o escritor angolano Pepetela
consultados em entrevistas a respeito desta comunidade dizem que ela está em vias de
implementação porque para efeitos de praticidade ela ainda não funciona. O escritor
timorense Luís Cardoso, em entrevista à autora desta tese, conclui: “a CPLP é uma
instituição de boas intenções, mas com falta de projetos comuns. Quiçá de recursos”6.
Sem deixar de mencionar o ressentimento histórico com relação à colonização, Mia
Couto diz que não vale a pena ajustar estas contas, e Luis Cardoso diz que Timor está
mais preocupado em reconstruir-se do que em ressentir-se contra o passado colonial.
Mas é inegável que essa mágoa sentida ou negada é elevada a status de discussão
quando o assunto é a CPLP ou a matriz lusófona.
Portanto, se daí decorre que as jovens nações se insurgiram contra a potência
colonizadora, temos também que tal condição era direcionada ao chamado “inimigo 5 Em alguns documentos consultados sobre o processo de libertação das colônias portuguesas, encontramos que, mesmo com a independência, o neocolonialismo foi imposto, entre outros exemplos, pela entrada e expansão das empresas multinacionais. No caso específico da comunidade lusófona, o debate se estende à finalidade desta em atender a uma necessidade do mundo contemporâneo - quando as nações sentem-se unidas por laços de afinidades econômicas, lingüísticas, geográficas e comerciais. Discute-se, também, o fato de isso ser uma forma sutil de Portugal continuar sendo o centro de um império sob a perspectiva lingüística. 6 A entrevista com o escritor timorense Luís Cardoso pode ser conferida em anexo nessa tese, às páginas 11-17.
13
comum” dos processos independentistas das colônias africanas e de Timor Leste. Isso
justifica o elo estabelecido com o povo português durante os processos de
descolonização e mesmo após a queda do regime fascista. No caso específico de Timor
Leste, esta ligação parece complexa porque Portugal, primeiramente, abandona o
território timorense sem auxiliar na descolonização e, posteriormente, na continuidade
da colonização Indonésia volta sua atenção para a ex-possessão, reivindicando a
paternidade pelos quatrocentos anos de colonização através dos laços lingüísticos e
culturais que os uniram. Assim sendo, a relação não deixa de ser marcada pelo
ressentimento, como também não deixa de ser marcada pelo reconhecimento de uma
identidade que na convivência de muitos séculos marcou a identidade local; esta, por
sua vez, não se sentindo identificada com o novo colonizador invoca o vínculo edípico
perdido.
Observamos, conforme documentos extraídos dos arquivos do MPLA, FRELIMO,
PAIGC, MLSTP e FRETILIN7, a compreensão que os militantes pró-independência
tinham sobre as diferentes instâncias que integram o poderio colonial. Nos manifestos,
panfletos e estatutos partidários consultados as mensagens dirigidas sobretudo à
população portuguesa elegiam o governo fascista como elemento comum a ser
combatido, isentando o cidadão português considerado igualmente como vítima do
regime tanto quanto os indivíduos dos povos em luta pela liberdade.
7 MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), FRELIMO (Frente de Libertação para Moçambique), PAIGC (Partido Africano de Independência da Guiné e Cabo Verde), MLSTP (Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe) e FRETILIN (Frente Revolucionária Timor Leste Independente).
14
Assim, no cruzamento de histórias cujo fio condutor é o imperialismo econômico
começado há mais de quatrocentos anos, as nações se unem por uma matriz cultural
comum. A literatura oriunda das sociedades pós-coloniais e seus agentes sociais – os
escritores - rememoram micro-histórias vividas ou representadas pelos agentes ativos e
passivos das guerras colonial e civil, assim como da descolonização e da reconstrução
nacional. Lídia Jorge, Lobo Antunes, João de Melo, Álamo Oliveira e Luísa Dacosta são
escritores que voltam o seu olhar de Portugal para as colônias, sendo alguns deles
autores migrantes que vivenciaram a história do outro lado dos acontecimentos. Assim
como Luís Cardoso e Mia Couto também voltam seu olhar para o local de origem e para
a metrópole para onde também se dirigem na condição de migrantes e, no caso de Luís
Cardoso, na condição de habitante do entre-lugar (BHABHA, 1998). Recompõem este
imaginário devolvendo às suas nações uma identidade que esteve em stand by por
algum tempo, enquanto os destinos políticos se dissolviam de um estatuto para se
concretizarem em outro.
As micro-histórias contadas por estes autores formam a imagem de nação
lusófona contemporânea que, longe da grande epopéia de Camões, quando Vasco da
Gama percorre a rota da vitória sobre a condição histórica imposta, é uma história de
caravelas retornadas, de desterrados exaustos, de lutas inglórias que o peso da história
não redimirá aos seus agentes, senão também como vítimas de um mito que se quis
permanecer e em não podendo sacrificou os lados envolvidos até ser destituído pela
ineficácia da continuidade da sua representação.
15
O fato é que o exílio, o entre-lugar, o desenraizamento, sendo ou não conceitos da
moda, como destaca Eduardo Lourenço (LOURENÇO, 2001), são antes de tudo
condições vivenciadas e, portanto, sentidas no contexto contemporâneo em qualquer
lugar onde a identificação com a diáspora ou o desterro esteja presente, por situações
econômicas, políticas ou socais.
Retomando a idéia de abertura desta introdução sobre a Declaração dos Direitos
Universais dos Povos, no que respeita ao desenvolvimento da cultura de cada nação,
voltamos nossa atenção para a representação que se faz da identidade8 cultural nas
literaturas oriundas dos países emergentes. Como no exercício literário e na sua inserção
social o jogo textual que dele emana precisa ser compartilhado para que se efetive o
contrato estabelecido entre literatura-autor-leitor, analisamos as narrativas do escritor
timorense Luís Cardoso e do moçambicano Mia Couto à luz dos estudos culturais,
embasados em conceitos que são, antes de tudo, pertencentes ao universo de inserção do
indivíduo diaspórico na sociedade contemporânea. A partir desses elementos extraídos
do campo textual componente da obra literária, permeia-se uma análise, do exterior,
dessa condição social emergente que povoa o imaginário das narrativas contemporâneas
diaspóricas. Ou seja, não está aqui expressa uma análise literária que privilegie as
estratégias narrativas consagradas à obra literária, realidade que não se ignora, mas, por
não ser ignorada também não foi eleita como fio condutor desta pesquisa.
8 Julgamos pertinente salientar a preferência pelo uso dos termos identidade cultural social ou identidade social abrangente, em detrimento da condição designada pelo uso da expressão “identidade nacional”, por levar-se em consideração a questão nacional desenvolvida durante os períodos fascistas, cujo eixo de sustentação do discurso político evocava o sentimento nacionalista e o desenvolvimento da identidade nacional calcada em mitos históricos, e em narrativas de caráter ideológico-fascista construídas para alicerçar estes governos.
16
Salientamos, igualmente, o fato de que as narrativas oriundas das nações
diaspóricas, escritas por indivíduos diaspóricos, não ignoram a tradição literária em que
estão inseridas, pelo contrário, por conhecer essa tradição é que inovam na sua forma de
inserção no mundo, porque também elas não são um retrato do que existe no mundo
como forma histórica vivida, mas são justamente pertencentes a uma nova ordem do
vivido e, assim sendo, do simbólico representado.
Aproximam-se, com isso, na ânsia da representação e na afirmação de uma
identidade em constante construção, do discurso histórico recente ou próximo da
formação do país. Não o retomam, entretanto, sem o distanciamento crítico e, por vezes,
irônico predominante na narrativa considerada por Linda Hutcheon (HUTCHEON,
1991) como pós-moderna, ainda que tal narrativa não seja entendida, especificamente,
como sinônima de contemporâneo, sendo antes uma tendência que se observa nos
estudos contemporâneos. O retorno crítico, irônico e paródico ao passado recente ou
distante ocorre através do distanciamento do que é vivido, ou do que é representado, e o
autor posiciona-se enquanto sujeito histórico que é condicionado pela realidade
circundante e agente passivo ou ativo da transformação que se processa na sociedade
por via do seu discurso ficcional.
Nossa pesquisa, partindo da premissa de Benedict Anderson (ANDERSON, 1989)
de que nações são comunidades imaginadas, de Homi Bhabha (BHABHA, 1998) de que
as nações se imaginam através de suas narrativas, e de Stuart Hall (HALL, 2003) de que
a impureza é a forma como o novo entra no mundo, segue o percurso das narrativas
escritas na pós-independência de Moçambique e Timor Leste para ver como se
17
processam suas identidades e como formulam o imaginário simbólico de nação no
momento do construto histórico. Segundo Stuart Hall, estas questões de como as novas
nações se imaginam são centrais “não apenas para seus povos, mas para as artes e
culturas que produzem, onde um certo sujeito imaginado está sempre em jogo” (HALL,
2003, p. 26).
Ao estudarmos as literaturas nascentes das jovens nações pós-coloniais vários
pontos são importantes para discussão. Um deles, especificamente, diz respeito ao lugar
que essa literatura ou os autores assumem na história da literatura de seu país. Em
Timor Leste, tal aspecto pode ser constatado em seu processo germinativo. Alguns
autores escrevem sobre Timor Leste do exterior, bem como timorenses escrevem fora
dos limites territoriais da pátria afetiva. Seja como tema ou nacionalidade a
representação literária deste jovem país está se fazendo na esteira das duas vertentes. Se
futuramente poderão ser deslocados do universo crítico da história da literatura autores
não genuínos, ou se a literatura por eles produzida receberá outra denominação, são
questões à descoberta. No entanto, é importante lembrar que tanto Ruy Cinatti, quanto
Ponte Pedrinha, Xanana Gusmão ou Luís Cardoso têm o mérito de fazer voltar os olhos
para essa terra distante, pertencente ao nosso imaginário de comunidade que se
reconhece através da língua portuguesa. Se a observância do nascimento da literatura
brasileira nos permitiu vislumbrar movimentos como o Romantismo, cuja tendência
estética partiu de um imaginário que não dava conta da realidade social, as literaturas
nascentes africanas de língua portuguesa e timorense nascem sob o signo da
representação intensiva da realidade social, a qual inclui 400 anos de colonialismo
18
português, governo ditatorial, guerra colonial, guerra civil, investida Indonésia e
processo de descolonização.
A cosmovisão africana e timorense é aqui abordada como representação de um
universo social. Se, de acordo com Lukács (LUKÁCS, [s.d]), o romance é representativo
do mundo moderno em sua relação com o contexto social, o contexto de onde emergem
essas literaturas está representado em sua ficção e não necessariamente precisa passar
pelos parâmetros estéticos eleitos pela herança cultural do ocidente para ser legitimada.
Portanto, o patrimônio literário dessas nações precisa ser analisado enquanto resistência
(ou recusa) à idéia de civilização européia e não em comparação com o mundo
ocidental, para quem a lógica mítica foge à convenção herdada pela sociedade.
Quando o assunto foi literatura africana o material recolhido levou-nos a um
contacto mais direto com o imaginário das guerras colonial e civil, num primeiro plano,
em outro, o contato com indivíduos cujas famílias participaram ativamente da guerra
proporcionou-nos uma compreensão alargada do sofrimento causado também ao
elemento que ocupa na metrópole a condição de imperialista ou colonizador,
esclarecendo que este fenômeno gera malefícios em todas as instâncias em que se
manifesta. Por último, mas não menos importante, porque as imagens de nação
imprimidas a estas sociedades não se desviam quer do imaginário construído pela
imprensa, quer do imaginário representado pelas narrativas deste fenômeno histórico
que constituía o imaginário dos livros escolares (estudávamos as guerras pelo viés por
vezes abonador da história), nos casos aqui citados estes fenômenos, sobretudo o que
19
diz respeito a Timor Leste, puderam ser observados (em seu desenrolar histórico) na
contemporaneidade.
As discussões apresentadas sobre literatura africana são fruto da leitura de
críticos africanistas e de questões consideradas tabus no estudo dessa literatura. Não
procuramos legitimar nenhuma das abordagens, mas chamamos a atenção, entretanto,
para o fato discutido (mas nem sempre respeitado) acerca do tratamento dado a essa
literatura não raro denominada fantástica. Alguns argumentos se repetem como, por
exemplo, a discussão em torno da cor da pele do escritor africano ser ou não
representativa de sua importância literária, enquanto elemento de representatividade do
seu país. Argumento envolto, certamente, pelos resquícios do movimento da Negritude
africana, afirmação extremamente necessária no momento histórico vivenciado, que é
distinto do contexto da atualidade.
Observa-se no elenco de escritores moçambicanos contemporâneos que
Moçambique, sua gente e sua cultura mesmo sendo influenciados pela ocidentalidade
não se sentem identificados pelas mesmas regras sociais, morais e religiosas que
caracterizam essa cultura. E essa particularidade para nós é imprescindível, pois a
cultura moçambicana não sendo pautada na mesma matriz cultural do Ocidente não
pode ser regida, igualmente, pelos mesmos padrões de análise social, moral e religioso
destinados à literatura canônica. Assim sendo, conceitos como “realismo mágico” ou
“maravilhoso” (TODOROV, 1992) podem não definir o que, nas palavras do autor Mia
Couto, é a representação indispensável de quem quer retratar a mundividência
moçambicana. Não nos passa despercebido o fato de que Moçambique completa 30 anos
20
de história política pós-independência, enquanto Timor Leste completou três anos de
autogestão em 2005, configurando a forma interstícia como vão prosseguindo as
formações identitárias no pós-colonialismo. O que aproxima estes autores é que ambos
são expoentes literários do seu local de origem, e o que os distancia, num primeiro
plano, é o fato de um, Luís Cardoso, rememorar histórias vividas, enquanto o outro, Mia
Couto, narrar um imaginário construído pela observação do cenário social.
Para desenvolver essa proposta, a tese foi assim estruturada: o capítulo intitulado
Delimitando Territórios introduz os estudos sobre nação e identidades nas sociedades
pós-colonias, bem como o viés de abordagem da literatura através das micro-histórias
ficcionais; Construindo Identidades trata dos locais da lusofonia através das
particularidades nacionais dos complexos culturais eleitos para discussão; Muito
Oralmente contém a análise das narrativas de Mia Couto9 considerando as imagens de
nação moçambicana e a formação da identidade africana daí depreendida; À Luz do
Petromax analisa narrativas de Luís Cardoso10 que privilegiam elementos como
hibridismo lingüístico, identidades associativas e desenraizamento cultural, no que eles
contribuem para a formação da imagem de nação timorense; Diluindo Fronteiras,
capítulo conclusivo, trata da análise literária comparativa dos dois complexos culturais
distintos em seus elementos conformativos ou destoantes, que delimitam a forma como
o novo entra no mundo.
9 Serão analisadas as obras Vozes anoitecidas, Terra sonâmbula, Vinte e Zinco e estórias abensonhadas. 10 A obra analisada é Crônica de uma travessia, seguida de comentários sobre Olhos de coruja olhos de gato bravo e A última morte do Coronel Santiago.
21
A proposta apresentada na tese teve como ponto de partida as disciplinas
oferecidas pelo Programa de Pós-Graduação em Letras desta Universidade, na área de
Tópicos de Literaturas Lusófonas, e, antes disso, de Literatura Portuguesa
Contemporânea, todas ministradas pela orientadora da pesquisa, Profa. Dr. Maria Luíza
Ritzel Remédios. Posteriormente, a pesquisa foi estendida ao Centro de Estudos de
Culturas de Língua Portuguesa (CECLIP), cuja atividade se volta ao estudo da
Literatura Portuguesa, Brasileira, Africana Lusófona, e, a partir desta pesquisa, alarga-se
o horizonte de expectativa do CECLIP para abranger a literatura de Timor Leste.
22
2 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS: DELIMITANDO TERRITÓRIOS
Restaurar a dignidade ofendida:
quem se identifica no pós-colonial?
termo cultura na sociedade contemporânea, sobretudo na sociedade
ocidental pode adquirir diversas significações. Analisada sob a
perspectiva do senso comum, cultura remete a um código de refinamento ou
aprimoramento intelectual que abrange obra de arte, livro, revista, jornal, elementos que
pertencem a um mundo em que a decodificação e o acesso escapam ao poderio
econômico das grandes camadas sociais. Do ponto de vista acadêmico, o conceito
adquire pelo menos duas concepções distintas: uma remete ao imaginário simbólico
social, que são as características não inatas, mas criadas, assimiladas e transmitidas num
meio social específico (que também podem ser antagônicas à atividade escrita ou em
outras palavras, transmitidas oralmente), como também pode ser o conjunto de valores
estabelecidos pela mídia, que caracterizam a denominada cultura de massa. Os
conceitos se solidificam em confrontamento ou complementarização uns com os outros.
Assim, os códigos que regulam a ação humana na sociedade contemporânea, bem como
a compreensão de cultura retratam a existência da alteridade como elemento social,
diverso de nós, e também da alteridade cultural ou identitária.
As afirmações identitárias coletivas não mais se distinguem somente em temos
nacionais, como foi observado ao longo da história. Se, num primeiro momento, quando
O
23
florescem os novos Estados após a Revolução Francesa a identidade das nações surge
como meio de afirmação de ordem política e simbólico-ideológica (BALAKRISHNAN,
2000, p. 239) diante das outras, na contemporaneidade, associa-se a essa identificação
cultural a busca por traços de similitude. Tais semelhanças culturais podem ocorrer no
âmbito econômico, como no caso da União dos Estados Europeus (U.E.E.), lingüístico-
cultural, como no caso da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP),
continental, como a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). A identidade no
mundo globalizado antes de ser algo que diverge é, também, além da identidade
marcada pela diferença, identificação por agrupamento.
O agrupamento torna-se possível, sobretudo no caso dos jovens Estados
nacionais, pelo reconhecimento de que constituem complexos culturais cuja diversidade,
multiplicidade e hibridismo são realidades da nova ordem mundial que passou a
integrar a compreensão do mundo contemporâneo, mas pela inserção no contexto
histórico de onde emergem mantêm-se ligadas a um passado imemorial através dos
antigos Estados nacionais. Se no passado que remonta ao expansionismo ultramarino a
idéia universalizante de civilização justificou o enfrentamento decorrido do choque
cultural entre Velho e Novo Mundo nas Américas, na África e na Ásia (TODOROV,
1999), no presente, a noção particularizante de cultura (o simbolismo que pauta as
relações contemporâneas) deveria evitar que os conflitos se repetissem com a mesma
barbárie.
Ernest Renan (RENAN apud ROUANET, 1997) afirma que se quiséssemos
identificar traços distintivos entre as nações na Antigüidade não poderíamos confundi-
24
las entre si uma vez que cada individualidade nacional possuía costumes, hábitos e
língua (na realidade sabemos que possuía cultura) comuns. E as pequenas ou grandes
comunidades que se identificavam por elementos afins eram o que denominamos de
nação. Por isso, as nações são também designadas como artefatos culturais,
comunidades imaginadas (ANDERSON, 1989) que já existiam na história, mas com o
desdobrar dos séculos e na contingência da evolução social intercambiam os conceitos
em novas realidades sociais e históricas.
Ainda na atualidade, numa análise superficial da sociedade recente, verificamos
que o significado abrangido pela noção de cultura por mais particularizante que se
apresente identificando a relação de alteridade existente entre os povos, não impede os
confrontos culturais, religiosos, étnicos, políticos e econômicos que ainda ocorrem.
Mesmo com a máxima evolução dos conceitos através do progresso científico,
tecnológico e social ainda existem nações impondo-se culturalmente ou
economicamente umas às outras.
O escritor moçambicano Mia Couto numa crônica dedicada à análise dos
atentados de 11 de Setembro de 2001 nos Estados Unidos da América reflete sobre a
questão e conclui: “o que se pretende em toda e qualquer guerra não é apenas ganhar. É
abolir o inimigo, dissolver o Outro. É fazer desaparecer não apenas o adversário, mas
todo o seu mundo. Pretende-se anular a sua história, apagar a sua memória” (COUTO,
2005, p. 42). Podemos citar como exemplo do que foi acima exposto e colhendo o ensejo
do momento histórico a que o autor refere a nação norte-americana que parece repetir os
padrões civilizadores que dominaram o contexto histórico dos grandes descobrimentos,
25
ao impor sua hegemonia cultural e econômica e, sobretudo, ao pretender homogeneizar
as divergências culturais que pontuam as identidades sociais abrangentes na
contemporaneidade. Fato que pode ser outorgado pela Constituição norte-americana,
mas, nem por isso, obriga-nos a aceitá-lo como argumento irrefutável.
Ao exercer a dominação de uma cultura sobre a outra os elementos de ambos os
lados hibridizam-se nessa convivência, seja no aspecto rácico, pois geram novos
cruzamentos; no aspecto lingüístico, pois comunicam e trocam experiências entre si,
apropriando-se e recriando elementos de seus códigos de comunicação, e nos costumes,
pois se misturam no mesmo cenário geográfico e social. Esta realidade em essência
multicultural e heterogênea compõe a formação identitária das jovens nações pós-
independentistas. Os países africanos de língua portuguesa e Timor Leste, que
constituem as últimas colônias portuguesas existentes na geografia mundial,
conquistaram sua liberdade política por intermédio de conflito armado e hoje estão em
processo de reconstrução identitária, ou, como refere Mia Couto, estão reconstruindo
uma memória violada, irrecuperável porque está miscigenada com a do colonizador. Tal
fato tomado isoladamente no que diz respeito à Comunidade Lusófona, ou em conjunto
por constituir uma nova ordem mundial determinante da forma como o novo entra no
mundo (HALL, 2003), consiste em um importante legado cultural.
Desse confronto específico – as lutas independentistas empregadas contra o
sistema colonial - surge o ressentimento histórico gerado pelos Descobrimentos, mote
temático que integrará uma parcela considerável da ficção contemporânea em língua
26
portuguesa. Não significa que as nações colonizadas estejam sempre a cobrar esta conta,
mas não significa igualmente que ignorem esse processo de subjugação político-cultural.
Se tomarmos como exemplo a sociedade brasileira, dentro da Comunidade
Lusófona, veremos que a violência urbana embora assuma contornos distintos dos
adotados nas guerras coloniais não deixa de compor uma marca identitária dessa nação
no exterior. A imagem que se forma não é apenas a da cultura carnavalesca, porque
centenas de pessoas morrem nas guerras civis não declaradas como a ocorrida no
momento da escrita desse trabalho no Rio de Janeiro, na Favela da Rocinha11. E essa
realidade também tem integrado o discurso ficcional contemporâneo brasileiro.
Invasões, intercâmbio cultural e dominação de território fazem parte da história
da humanidade. No caso das novas nações como as integrantes da CPLP (Comunidade
dos Países de Língua Portuguesa) essa dominação é presente e cotidiano. Por isso as
discussões acerca desse assunto nunca se esgotam, quer no âmbito político, quer no
econômico ou no cultural. Estas nações emergentes que nascem com a cicatriz das
guerras civil e colonial e do estigma de terem sido colônias de exploração marcam um
novo imaginário simbólico circunscrito para além da fronteira da língua portuguesa. São
novos cânones que estão formando história ao longo desse universo cultural. No campo
literário, da teoria literária aos estudos culturais, já não podemos categorizar as obras
literárias oriundas destas sociedades seguindo os padrões clássicos vigentes, os estudos
11 Referimo-nos ao conflito armado que recebeu reforço do exército nacional, para conter a luta entre traficantes de duas favelas rivais na cidade do Rio de Janeiro. Começado no dia 09 de abril de 2004, mesmo que tenha acabado o conflito, há ainda a agonia de esperar por uma solução que seja permanente, que não ratifique a imagem de que a violência está inserida como elemento identitário da cultura brasileira.
27
culturais nascem, assim, da necessidade de preencher esse hiato entre o discurso
academicista e a nova prática social.
As inovações lingüísticas observadas na escrita do angolano Luandino Vieira e do
moçambicano Mia Couto; a perspectiva do universo feminino, da cultura tribal
moçambicana e da força da dominação masculina representada na obra dos
moçambicanos Paulina Chiziane e Luís Bernardo Honwana; a descrição do espaço local
(descrito porque desconhecido) na obra do timorense Luís Cardoso e do brasileiro
Sérgio Faraco; e as canções e poesias de protesto de Zeca Afonso e Xanana Gusmão são a
expressão de uma sociedade oriunda do contexto imperialista e globalizado, capitalista e
subjugado. Mesmo as nações mais jovens como Timor Leste têm suas vozes de protesto
a narrar histórias de guerras, mas também de esperança e reconstrução identitária.
Consideramos necessário, portanto, trazer para o centro de discussão o universo dessa
literatura que ainda precisa reivindicar seu espaço para ser reconhecida. Ocorre que a
realidade social vivenciada hoje é a realidade destas nações emergentes - embora não
somente delas - e não dos antigos – porém clássicos – padrões estéticos.
2.1 IDENTIDADES SEM RÓTULO: OS LOCAIS DA LUSOFONIA
Pensar a formação identitária na sociedade recente, sobretudo como se processa
esse fenômeno sócio-político e cultural nas nações lusófonas; compreender quando
passa a existir na história, quer como idéia, quer como entidade política e questionar o
28
que vem a ser identidade social abrangente são questões que remetem a uma gama de
possibilidades de discussão, seja teórica, histórica, sociológica e antropológica.
Podemos traçar o perfil evolutivo desses conceitos partindo da Era das
Revoluções, porque nesse contexto histórico iniciado no século XVIII as modernas
nações passaram a se identificar como estados independentes e nacionais. Nas lutas por
liberdade buscavam afirmar uma identidade própria que fosse representativa da
comunidade de indivíduos antagonistas dos governos autoritaristas vigentes. Esta vem
sendo, salvo corte diacrônico, a mesma realidade vivenciada pelos países-membro da
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Uma vez tendo conquistado suas
independências pela ação da guerrilha estas nações encontram-se, hoje, em processo de
identificação coletiva, o que pressupõe o mascaramento das especificidades culturais
sociais em oposição a plataformas de governo homogeneizantes lingüística, cultural e
politicamente.
Os movimentos de independência política mostram num primeiro plano um
desejo conjunto de identificação. E a partir da identificação coletiva e da representação
imaginária coletiva é que se formam os preceitos componentes de nação. Ou seja, no
plano do discurso as nações se constituem no momento em que os indivíduos
identificam-se coletivamente (ou, em outras palavras, quando se tornam comunidades
imaginadas) por laços que podem ser de raça, etnia, língua, história e limites territoriais.
São os discursos históricos – e também literários – que trazem para a realidade histórica
as nações como construtos imaginários ou narrações.
29
Duas questões são imperativas quando pensamos as origens de nação e
identidades na sociedade moderna. A primeira questão parte da identificação para o
conceito de coletividade. Seria o caso de indivíduos que enquanto coletividade possuem
elos ou matrizes culturais afins e, por isso, reconhecem-se como nação e agrupam-se
nesta identidade comum, como a Comunidade Lusófona. Ou, no segundo caso, por
terem uma identidade comum (história, língua, cultura, memória, esquecimento)
reconhecem-se como nação, a exemplo das nações moçambicana e timorense.
Partindo da idéia de nação como entidade política, constructo ideológico e espaço
de identificação buscamos compreender seu lugar na história e sua inserção no mundo
contemporâneo a partir de Ernest Renan. A teoria desenvolvida por este historiador
remete ao contexto histórico do século XIX, enquanto outros estudiosos aqui
mencionados desenvolvem suas teorias nas últimas décadas do século XX, momento
posterior ao nascimento das novas nações oriundas do sistema colonial e do colapso de
modelos políticos até então vigentes. Algumas destas teorias estão em conformidade
com a teoria de Ernest Renan e buscam a essência do conceito de nação desenvolvido
por este historiador, como é o caso de Benedict Anderson e a idéia de comunidade
imaginada, de memória e de esquecimento.
Ernest Renan fala em comunidade imaginada como algo que se forma não
somente pela identificação lingüística de um povo ou pelos traços de raça e etnia, como
também por um sentimento de união e fraternidade em torno de uma história comum
que todos são capazes de esquecer e rememorar. Nesse sentido, Benedict Anderson
30
(ANDERSON, 1989) diz que nação como uma nova idéia11 é um conceito ao mesmo
tempo concreto e abstrato, pois existindo em sentido evolutivo às antigas formas de
organização política, que são os reinos dinásticos e as comunidades religiosas, a idéia de
nação é dotada de um forte sentimento de pertença pelo qual as pessoas são capazes de
combater, matar e morrer. Entram neste imaginário as memórias de guerra que Walter
Benjamin (BENJAMIN, 1993) diz ser das poucas experiências humanas que o homem
não é capaz de comunicar: não, ao menos, enquanto elas ainda são experiências
próximas do quotidiano.
Há traços que indiscutivelmente são abordados ao longo da história como sendo
constitutivos ou definidores das identidades nacionais, sendo eles a raça, a etnia, a
língua e o limite territorial. Ernest Renan analisa cada um deles através das
especificidades que poderiam torná-los elementos identificatórios, mas que deixam de
ser na medida da sua incompletude representativa. A Europa desde a desintegração do
império de Carlos Magno passa a se reorganizar sob a forma de pequenas nações que,
em dado momento da história, pretenderam exercer hegemonia sobre as demais sem, no
entanto, conseguirem fazer disso uma conquista ininterrupta justamente por causa desse
sentimento identitário que une os indivíduos em traços comuns e afins e os torna uma
comunidade imaginada.
Ernest Renan compreende nação como uma idéia também originária das
conquistas concretizadas por invasões de territórios, cujo imaginário coletivo se
11 Eric Hobsbawn (HOBSBAWN, 1990) salienta que a novidade da nação é ser um conceito político e um construto ideológico uma vez que, destaca Ernest Renan, traços distintivos de nação existiram na evolução da história social.
31
reproduz pela rememoração e pelo esquecimento: “a essência de uma nação é que todos
os indivíduos tenham muito em comum, e também que todos tenham esquecido muitas
coisas” (RENAN apud ROUANET, 1997, p. 20).
O esquecimento, como elemento constitutivo da idéia de nação contribui para a
construção de uma identidade sólida e soberana, segundo Renan, ao contrário do
rememorar ruínas que poderia excitar antigos ressentimentos infecundos para compor a
unidade desejada. Sobre essa questão, salienta o autor: “é por isso que o progresso dos
estudos históricos é muitas vezes um perigo para a nacionalidade” (RENAN apud
ROUANET, 1997, p. 19), pois eles trazem à tona elementos históricos que deveriam ser
esquecidos para a constituição de uma nação livre das amarras do passado. A lembrança
de determinados fatos gerados pela violência, por mais necessários que tenham sido
para a conquista da autodeterminação dos territórios, ao serem rememorados, não raro,
acirram os ressentimentos históricos. Entretanto, ao pensarmos sobre o contexto
contemporâneo estabelecendo como foco de análise as nações lusófonas percebemos que
rememorar os fatos passados, por um lado, torna-as identificadas com uma comunidade
maior, cujo mapeamento atende aos critérios lingüísticos e históricos; e, por outro, esta
mesma amarra histórica pautada nas relações imperialistas foi o motivo que as
impulsionou a se tornarem nações independentes. Tese que reforça e atualiza o
argumento de Ernest Renan de que nação, antes de tudo, precisa ser identificação
coletiva não dependendo somente da autoridade muito embora possa dela emergir
(como afirmará posteriormente Benedict Anderson), mas a autoridade sem a projeção
coletiva do nacionalismo não se sustenta.
32
Ao pensar sobre os traços identificadores e determinantes das nações Renan diz,
em primeiro lugar, que o conceito de raça é limitado, pois mesmo os países que se
julgam mais nobres em sua ascendência têm na sua origem o sangue misturado dos
invasores e dos rendidos. Enquanto para os antropólogos raça tem sentido semelhante
ao de permanência e, em zoologia, de parentesco de sangue, para os historiadores - e aí
se insere Ernest Renan - tem sentido transitório e distinto de pertença e familiaridade.
Em segundo lugar, o autor analisa o artefato lingüístico também considerado na sua
incompletude. A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, para exemplificar o
contexto cultural em discussão neste trabalho, parte da matriz cultural centrada na
língua portuguesa – porém não na mesma língua portuguesa -, e cada país-membro
constitui um Estado nacional, fato que, se levássemos em consideração a teoria de Ernest
Renan para esta realidade nos impediria de considerá-las comunidades que se
imaginam por possuírem uma matriz comum. Fica expresso, assim, que o conceito que
Renan atribui à nação parte da formação dos Estados nacionais considerados como
individualidades históricas. E, então, adotamos a noção de Benedict Anderson, porque
nos permite considerar as nações, na contemporaneidade, como agrupamentos por
afinidade.
A terceira proposição centra-se no princípio religioso que não serve de unidade
para o estabelecimento de uma nação, muito embora Benedict Anderson afirme mais
tarde que as modernas nações derivam também de comunidades religiosas, que se
faziam reconhecer por seus signos sagrados. Já no período histórico em que Renan
profere sua conferência, religião ou crença se tornaram algo individual e, portanto,
33
sectário. A quarta consideração do historiador volta-se à comunhão de interesses, que é
um elemento importante para a união entre os homens. Esta, segundo Ernest Renan, é
responsável pelos frutíferos acordos comerciais e pelos laços político-econômicos
internacionais, mas não é imprescindível para compor uma nacionalidade.
Os limites territoriais, para o historiador, desempenham uma função importante
na formação nacional, uma vez que abrigam uma infinidade de indivíduos que
coabitam o mesmo solo e que se sentem unidos por esse laço. Porém, os limites
geográficos tomados individualmente, ou aliados aos quatro elementos anteriormente
citados, não são responsáveis pela consolidação de uma nação, pois o que a constitui e a
torna indissolúvel é o indivíduo. E é exatamente aqui que queríamos chegar ao buscar
os conceitos deste historiador para embasar os traços identitários de nação: no tecido
humano que a compõe. Esse é o elemento fundamental na constituição de uma nação, o
que a torna, antes de tudo, um princípio espiritual que nos permite analisar, também, as
micro-histórias ficcionais como constitutivas de um imaginário que é individual e
coletivo concomitantemente.
Por ser princípio espiritual pautado no homem a nação carrega em si
características intrínsecas ao ser humano como, por exemplo, a memória, que é também
o revés do esquecimento. Os indivíduos têm em comum um legado de lembranças que
podem partilhar como herança dos antepassados e podem também cultivar para a
posteridade, fazendo desse legado – ou dessa matriz cultural ancestral – uma identidade
na diferença. Ernest Renan enfatiza que o homem é o princípio da nação e não pode ser
improvisado: “a nação, como o indivíduo, é o resultado de um longo passado de
34
esforços, de sacrifícios e de devoções” (RENAN apud ROUANET, 1997, p. 39). Deste
passado permanece a memória, a omissão e o esquecimento do que é sensível à
composição da identidade de uma nação.
Um princípio basilar observado no conceito de Ernest Renan é que nação seja
uma grande solidariedade constituída pelo sentimento dos sacrifícios que fazemos e
daqueles que ainda estamos dispostos a fazer. Teoria que será ampliada por Benedict
Anderson e Homi Bhabha, e de onde se desenvolve, portanto, o labirinto conceitual
contemporâneo acerca desse assunto. Em princípio, Anderson considera nação uma
grande fraternidade, tal como formula Renan. Já Homi Bhabha diz que as nações se
constroem através do discurso, o que Ernest Renan enfatiza quando salienta que a nação
pode ser construída, desconstruída ou compartilhada entre os seus compatriotas através
dos elementos já citados como a memória, a omissão e o esquecimento. Outro ponto de
discussão das modernas teorias que tem seu embrião plantado em Ernest Renan é o que
trata da identificação coletiva, que torna um povo capaz de matar e morrer por causa do
sentimento que o une, ao que Anderson chama de fraternidade em larga escala
(ANDERSON, 1989). Amin Maalouf (MAALOUF, 2001) no recente livro intitulado
Identidades asesinas diz que a insistência do indivíduo ou da nação em assumir para si
uma identidade unitária – e, portanto, excludente - é o que acirra hoje as guerras étnicas,
as segregações sociais e raciais. Logo, se o sentimento de fraternidade é suficiente para
unir os indivíduos componentes de uma nação, em um dado momento, esse fato
tomado isoladamente não garante a identidade na unificação, mas na diversidade.
Segundo Amim Maalouf: “la identidad no se nos da de una vez por todas, sino que se
35
va construyendo y transformando a lo largo de toda nuestra existência” (MAALOUF,
2001, p. 31).
Na esteira dos conceitos-fonte expressos por Ernest Renan estão as identificações
por agrupamento. Ao contrário dos Estados que se definiram como nacionais há aqueles
que não incluem uma nacionalidade específica nessa denominação, sendo precursores
de uma nova ordem internacionalista em que a busca identitária é conduzida pela
equivalência ou semelhança e não mais somente pela afirmação da diferença com o
exterior. Tanto esta denominação apresenta-se como precursora de um novo modelo,
que a podemos constatar através dos blocos econômicos e culturais como a NAFTA
(Organização dos Países do Atlântico Norte), o MERCOSUL (Mercado Comum do Cone
Sul), a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas), a CPLP (Comunidade dos Países
de Língua Portuguesa) ou a C. E. E. (Comunidade dos Estados Europeus). As duas
últimas associações não são propriamente uma tentativa de unificação com finalidades
comerciais, porém representam uma organização de estados independentes que se
inserem nessa nova perspectiva oriunda da globalização, da expansão e
concomitantemente da diluição de fronteiras - não que esta noção de agrupamento já
não existisse, mas é inegável que acabou por se tornar um traço marcante da sociedade
em que estamos inseridos.
Para atender à conceituação alargada de comunidade por agrupamento em que
se insere a grande nação lusófona buscamos a teoria do antropólogo, historiador e
teórico do nacionalismo Benedict Anderson (ANDERSON, 1989), que sustenta a idéia de
Ernest Renan afirmando que nação é uma comunidade imaginada como soberana e
36
limitada. As raízes do sentimento nacional, para ele, estão relacionadas aos sistemas
culturais que precederam à formação dos modernos Estados-nação, que são os reinos
dinásticos e as comunidades religiosas. Uma nova ordem social se impõe após a 2a
Guerra Mundial, quando as repúblicas que saíram vitoriosas da luta passaram a
enunciar suas identidades em termos nacionais, porque a definição identitária surgida aí
requeria uma situação concreta advinda do desejo coletivo de se tornar uma nação.
Ao decodificar o conceito que elabora, Benedict Anderson explica que nação é
uma comunidade imaginada porque seus membros não se podem reconhecer na
completude da coletividade que representam, encontrando-se ainda presente a idéia de
comunhão na memória do grupo de forma que a nação:
é imaginada porque nem mesmo os membros das menores nações jamais conhecerão a maioria de seus compatriotas, nem os encontrarão, nem sequer ouvirão falar deles, embora na mente de cada um esteja viva a imagem da sua comunhão (ANDERSON, 1989, p.14).
É, também, imaginada como soberana porque nasce em período de queda do
reino dinástico e de conseqüente elevação do status de liberdade do Estado soberano. Ao
considerá-la como comunidade, Benedict Anderson ressalta que, salvo as desigualdades
presentes em todas elas, a nação é vista (ou sentida) como um companheirismo
horizontal, ou uma fraternidade em larga escala: “que torna possível, no correr dos
últimos dois séculos, que tantos milhões de pessoas, não só matem, mas morram
voluntariamente por imaginações tão limitadas” (ANDERSON, 1989, p. 16). Esse ponto
específico da teoria do antropólogo, que já foi tangenciado por Ernest Renan, ajuda-nos
a compreender as perdas humanas causadas pelas guerras coloniais e civis vivenciadas
37
por algumas nações lusófonas, ou mesmo a formulação de narrativas de cunho
nacionalista que sustentaram os regimes autoritários no decorrer do século XX.
Essa conduta tem origem nas raízes culturais do nacionalismo, diz Benedict
Anderson, quando parte da noção de morte compreendida ou analisada pelo
pensamento religioso e integrada ao pensamento nacionalista. Seu argumento centra-se
na seguinte reflexão: se a morte é uma preocupação constante para o pensamento
nacionalista, e se a noção de morte compõe o imaginário religioso, é porque a idéia de
nacionalismo identifica-se também com a de comunidades religiosas. Walter Benjamin
(BENJAMIM, 1993), dissertando sobre a distinção que as faces da morte assumem no
decorrer da história humana diz que, num primeiro momento, ela adotava um caráter
público e espacial, já que era compartilhada com o meio social; posteriormente, com os
processos de higienização pública e privada há o deslocamento e, por conseqüência, a
desvinculação do indivíduo doente do espaço restrito da casa para o espaço público
(mas restrito) do hospital, subtraindo-se o ato da morte da vida quotidiana. Se para a
sociedade no decorrer do século XIX a erradicação da atmosfera da morte dos lares foi
uma opção consciente, para a sociedade moçambicana e a timorense não o foi. A
presença das guerras colonial e civil transformou seus mortos em espíritos sem ritual de
passagem, ou forças da natureza que, perdidas no meio social, convivem com os vivos.
A comunidade religiosa conjuntamente com o reino dinástico é interpretada
como uma espécie de origem das nações, pois entre as grandes religiões da humanidade
os fiéis, embora não adotassem o mesmo código de comunicação, reconheciam-se pelo
discurso e pelos ideogramas que os representavam. Ainda que as línguas sagradas
38
tornassem imaginadas comunidades como a cristandade, o efetivo alcance de tais
sociedades não pode ser explicado apenas através do âmbito lingüístico, uma vez que a
comunidade alfabetizada era restrita. A transcrição da realidade observável era
realizada pelos letrados bilíngües que serviam de mediadores entre o latim clássico e a
língua vulgar. Após o final da Idade Média, entretanto, dois fatores contribuíram para
dissolver a dominação dos representantes clericais: o primeiro deles é o alargamento das
fronteiras culturais e geográficas com a descoberta do mundo não-europeu, e o segundo
é a expansão do capitalismo editorial, que passou a privilegiar também as línguas
vulgares diluindo a soberania exercida pelo latim clássico.
Tomando a língua como fator preponderante, porém não determinante da
identidade de um povo, citamos o caso de Timor Leste: uma comunidade
plurilingüística que, durante a ocupação Indonésia (1975-1999), passou por um processo
de transição dos códigos de comunicação verbal primeiramente desempenhado pela
língua portuguesa (implantada pelo sistema colonial português) e pelo tétum (língua
franca timorense) para a bahasa (língua) indonésia. Entretanto, com o intuito de
despertar a consciência nacional da comunidade timorense o clero católico passou a
ministrar missas em tétum tornando esta população novamente imaginada através do
discurso religioso e da língua nacional. Até mesmo porque, no acirrar da repressão, a
escolha entre a língua nacional (o tétum) ou a língua da matriz colonizadora (o
português), bem como entre o culto islâmico (indonésio), animista (timorense) ou
católico (português) recaiu sobre a língua e a religião da primeira potência colonizadora.
39
Outra raiz cultural do nacionalismo é representada pelo reino dinástico e
justifica-se por ser, durante longo período histórico, o único sistema político imaginável
em que, num primeiro plano, reinava o papa e, em segundo, o rei. Contudo, durante o
século XVII a legitimidade automática da monarquia sagrada entrou em declínio e
desenvolveu-se uma nova forma de imaginar a nação pelo discurso através da
emergência do capitalismo editorial. Deslocando o foco de análise para Timor Leste,
tomando como base o que foi acima exposto, observamos que essa passagem de um
sistema a outro pode ainda ser verificada durante o desenrolar do século XX. A
autoridade do reino dinástico foi exercida de duas formas: a primeira foi dada pelo
sistema imperialista, e a segunda pela preservação da autoridade (ainda que
subordinada à autoridade colonial) dos chefes linhagísticos ou liurais12 responsáveis por
manter o controle sobre sua comunidade. Num momento posterior, essa passagem de
um sistema a outro foi consumada pelo código de comunicação verbal alinhado com a
sociedade timorense, de matriz oral, pela retomada e conseqüente desenvolvimento do
tétum no meio social. Este é o papel que a comunidade sagrada realizou no território
timorense aproximando o universal-cósmico do particular-mundano (ANDERSON,
1989), e tornando, com isso, indistinguíveis a cosmologia e a história. Assim,
compreendemos a importância da superação desta visão do mundo para outra que se
faz imaginada através de um público leitor do romance e do jornal.
O universo das representações exerceu papel fundamental na formação dos
Estados modernos uma vez que permitiu o nascimento da comunidade imaginada de
12 Denominação conferida aos chefes tribais ou régulos em Timor Leste.
40
leitores que passaram a organizar-se politicamente em torno de uma idéia comum: a
idéia de nação. Isso ocorre no exato momento em que o dogma religioso e o dinástico
começaram a ruir deixando, com isso, um espaço vazio na esfera social no qual o
nacionalismo foi o meio mais eficaz de preenchê-lo.
A evolução por meio da forma visual e auditiva para a impressa na comunidade
imaginada dá origem ao capitalismo editorial – o movimento ocasionado pela expansão
da imprensa no mundo, a partir do século XVI -, que se torna um grande impulsionador
da formação da consciência nacional. Isso ocorre porque esse fenômeno social permite
que um número grande de pessoas comece a tomar consciência de si mesmas e de si
enquanto coletividade pelos textos escritos e veiculados através da editoração. Para uma
realidade social onde o conhecimento está restrito ao domínio da língua latina (e,
portanto, associado à erudição da educação católico-cristã), ao transformar-se esse
código de comunicação verbal em signos representativos e identificados com a
coletividade automaticamente ele se populariza pela modificação e, assim sendo, auxilia
na formação de novas consciências sociais. Entretanto, uma ressalva precisa ser feita a
este respeito quando discutimos a formação da nova nação timorense. Uma vez tendo
sido proibida a veiculação do português e do tétum neste território, durante a última
invasão colonialista, a Igreja católica faz reincidir a língua franca timorense a partir da
veiculação do discurso religioso em tétum. Ocorre que o tétum é uma língua de matriz
oral e intermediária da diversidade lingüística característica daquele território. Desse
modo, a transposição para a outra forma de imaginar a nação, que é materializada pelo
suporte das narrativas, na sociedade timorense, é um fenômeno bastante recente que
41
remonta à década de setenta do século XX como desenvolvimento e circulação da mídia
impressa, e através da veiculação das poesias de protesto de Xanana Gusmão, Borja da
Costa, Fernando Sylvan entre outros.
Ao dar prosseguimento à decodificação do conceito de nação, Benedict Anderson
justifica a forma como a nação se faz imaginada justamente pelo desenvolvimento e
circulação dos livros pelo processo que ele denomina de capitalismo editorial:
Num sentido positivo, o que tornou imagináveis as novas comunidades foi uma interação semifortuita, mas explosiva, entre um sistema de produção e de relações produtivas (capitalismo), uma tecnologia de comunicações (a imprensa) e a fatalidade da diversidade lingüística do homem (ANDERSON, 1989, p. 52).
Nas nações européias, se esse processo foi possível a partir do século XVI com o
desenvolvimento da imprensa, na comunidade timorense e moçambicana esse processo
não foi diferente, com a ressalva de que essa realidade compõe o cenário
contemporâneo. Em Moçambique, no período pré-independência, já se desenvolvia uma
literatura de cunho nacionalista africano que foi denominada de Negritude. A forma
impressa, igualmente, já se fazia presente através de revistas como a Msaho e, convém
lembrar, a literatura colonial, embora reservasse ao elemento de raça negra uma posição
de resignação e subserviência, foi um componente que incentivou o sentimento
nacionalista a desconstruir essa imagem para construir a identidade africana.
Benedict Anderson cita a diversidade lingüística do homem como elemento
responsável pela eficácia do capitalismo editorial, realidade que, aliás, integra o cenário
42
cultural das jovens nações da Comunidade Lusófona donde há, ainda na
contemporaneidade, desenvolvimento simultâneo por um lado, e apropriação e
recriação da língua metropolitana, por outro. Quanto ao contexto histórico destacado
pelo antropólogo se houve o isolamento da língua latina pela expansão do capitalismo
editorial, disseminando as línguas vulgares, o uso destas mesmas línguas foi, também,
instrumento de poder por parte de representantes dissidentes das dinastias. Situação
esta que foi observada em Timor Leste pela ação do clero quando propiciou o uso do
tétum.
O capitalismo editorial possibilitou que se tornassem imaginadas as novas nações
e as conduziu a um agrupamento lingüístico e territorial em menor escala que os
agrupamentos religiosos. Isso, de certa forma, aproxima e agrega autoridade e
coletividade concomitantemente. Nesse aspecto, Benedict Anderson também defende a
idéia de que a unificação de nações como comunidades imaginadas se processa através
da língua: “por meio dessa língua, que se encontra no colo da mãe e se abandona apenas
no túmulo, reconstituem-se os passados, imaginam-se solidariedades, sonham-se
futuros” (ANDERSON apud ROUANET, 1997, p. 168).
Se um elemento que torna as nações imaginadas é conferido pela língua e pelo
discurso, como afirma Benedict Anderson, a justificativa para a transposição destes
traços discursivos em imagens foi buscada em Homi Bhabha, estudioso das questões de
identidade cultural e nação. A importância das propostas desse autor reside no fato de
ele trazer para o centro das discussões não apenas os conceitos de nação e nacionalismo
na sociedade contemporânea, mas a crítica da validade de tais discussões e
43
representações históricas, uma vez que elas se constroem através do discurso, podendo,
com isso, serem construídas ou desconstruídas a partir da ideologia de quem os produz.
Homi Bhabha esclarece que nação e narração como idéias históricas, contêm a
ambivalência entre a linguagem daqueles que a escrevem (os escritores que narram a
nação) e a daqueles que a vivenciam (que não necessariamente a narram, embora os
narradores também estejam inseridos neste grupo). Ao contrário de Benedict Anderson
que situa as origens das nações como pertencentes à modernidade em caráter evolutivo
oriundo das comunidades religiosas e do reino dinástico, Homi Bhabha afirma que as
origens das nações se perdem nos mitos do tempo e que, assim como as narrativas, elas
só se realizam pela memória. Nesse aspecto, o autor também aproxima sua teoria da de
Ernest Renan, associando nação à memória como suporte verbal e como revés de
esquecimento. E, de certa forma, aproxima-se também de Benedict Anderson que afirma
ser nação uma comunidade imaginada através do seu discurso.
A representatividade de nação como algo que pode ser narrado (ou construído
através da narrativa) e que se realiza plenamente na memória é uma idéia ou conceito
ficcional do que é imaginado, descrito e rememorado. Assim sendo, desde Renan
perseguimos uma elaboração aproximada de raciocínio: a nação é composta por
indivíduos que, mesmo sendo o princípio e o fim de tudo, não se conhecem na sua
totalidade, mas se reconhecem por traços que lhes identificam e que se tornam possíveis
através da narração ou da imaginação da sua nação.
Embora a nação em sua origem seja apontada como um signo da modernidade,
ela está em constante renovação social, cultural e histórica. Nas modernas identificações
44
sociais e culturais nas quais estão integradas as sociedades lusófonas podemos observar
como esse fazer histórico é um constante processo. Se, anteriormente, a realidade factual
exigia uma tomada de consciência com relação ao colonialismo, agora exige esta mesma
conscientização em torno da forma como é conduzido o desenvolvimento político e, com
ele, o cultural-social das novas nações. Na busca pela identificação através de um
sistema referencial baseado na diferença com relação ao indivíduo colonial, a
homogeneização das divergências etno-lingüísticas pela implantação maciça do
português como língua nacional pela ausência de interlocução partidária e pela
desconsideração política com os chefes linhagísticos e a população rural aproximaram o
modelo político adotado em Moçambique de um fracasso iminente, comprovando que a
independência desta nação foi um rompimento com uma identidade arbitrária para a
busca de uma identidade social que está em processo e, portanto, em constante mutação.
A mutação ocupa o espaço que Homi Bhabha define como sendo o entre-lugar,
que é também o espaço de construção de uma nova moldura social, uma vez que, no
interior dessa idéia, formam-se novos signos de identidade do sujeito e coletiva. Não
deixando de ser, igualmente, aquilo que está no excedente da soma das partes da
diferença, bem como de todas as relações incluindo as de poder que se formam a partir
daí. Assim:
esses entre-lugares fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação - singular ou coletiva - que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria idéia de sociedade. (BHABHA, 1998, p. 20).
45
Os novos signos de identidade integrantes da ordem de definição social das
sociedades pós-coloniais em países como os da Comunidade de Língua Portuguesa com
história recente de desterritorialização apresentam em comum o fato de os indivíduos
sentirem-se estranhos no novo lar, ou no mesmo lar sob nova realidade político-social,
sem que isso signifique o mesmo que estarem sem lar. É natural que as novas nações
partam para o advento de buscar a própria identidade ressuscitando antigas raízes e
trazendo à tona uma cultura anterior à desenvolvida durante o processo de colonização.
No entanto, o que importa nestes casos é observar que, por mais que esse seja um ponto
comum entre as culturas colonizadas, a nova cultura que emerge daí na sociedade pós-
colonial é híbrida pelo deslocamento da cultura do colonizador e pela mescla da cultura
do colonizado. Acrescenta Bhabha que o estranho é, aliás, uma condição colonial e pós-
colonial paradigmática:
se estamos buscando uma mundialização da literatura, então, talvez ela esteja em um ato crítico que tenta compreender o truque de mágica através do qual a literatura conspira com a especificidade histórica, usando a incerteza mediúnica, o distanciamento estético, ou os signos obscuros do mundo do espírito, o sublime e o subliminar. Como criaturas literárias e animais políticos, devemos nos preocupar com a compreensão da ação humana e do mundo social como um momento em que algo está fora de controle, mas não fora da possibilidade de organização (BHABHA, 1998, p. 34).
Pensando a literatura recente oriunda das sociedades pós-coloniais, Homi Bhabha
salienta o poder e a importância do crítico, uma vez que ele tem a capacidade de não
virar as costas para o passado histórico e pode dizer aquilo que não foi dito, por
circunstâncias variadas, conforme o momento histórico ou o cenário em que se
46
desenvolveram: “isso porque o crítico deve tentar apreender totalmente e assumir a
responsabilidade pelos passados não ditos, não representados, que assombram o
presente histórico” (BHABHA, 1998, p. 34).
Tais situações são marcadas pelo hibridismo social, étnico e cultural num mundo
em que oscila entre a diversidade da condição social e a pureza étnica, tornando essas
posições disfarçadas pelos discursos em defesa das minorias raciais. Na sociedade
contemporânea, em que não existe um passado único e uma cultura original abrangente,
verificamos uma nova forma de dizer o mundo também pelas narrativas ficcionais. A
literatura por ser inserida num contexto social e identitário dinâmico inaugura novos
padrões de elaboração e apreciação estética que não escapam à conjuntura social que
representam. Não podemos ignorar, assim, a existência do novo imaginário simbólico
que retrata os processos recentes de colonização e descolonização, bem como as novas
marcas da identidade das nações emergentes e dos sujeitos diaspóricos que a compõem.
Para entender o sujeito diaspórico que narra as nações contemporâneas e a
posição interstícia que ele ocupa na sociedade buscamos o pensamento de Stuart Hall
(HALL, 2003), seguindo a linha dos estudos culturais. O teórico que hoje reside na Grã-
bretanha - um local diverso do seu local de origem - constitui um elemento do corpus de
seu próprio estudo. O autor testemunha ter vivido as tensões típicas de um velho
mundo colonial dentro de sua família, pois seus pais provinham de classes étnicas e
culturais distintas. A prática multicultural foi vivenciada pelo autor enquanto sujeito
assim como a prática da negação dos valores coloniais para construir uma nova
47
identidade em que o ser jamaicano ou inglês equalizassem sua importância no contexto
histórico-social.
Stuart Hall define as novas identidades como um misto de culturas e etnias que
compõem o novo mundo diaspórico e que, por isso mesmo, ou apesar disso,
apresentam-se como culturas mistas e independentes. As nações, para Hall, têm sentido
que transcende às discussões já enumeradas, uma vez que todas elas questionam uma
origem e uma formação para sua simbologia. Aqui observamos uma reflexão sobre
como se porta o mundo hoje frente às diversidades culturais que o integram fazendo
disso uma realidade da qual não podemos fugir, mas, sim, tentar compreender.
Stuart Hall parte da observação da cena contemporânea, sobretudo no que diz
respeito ao deslocamento do debate teórico da condição de centro ou das relações de
poder que correspondem às diferenciações entre etnicidades. Para uma etnicidade
dominante, afirma, há um condicionamento social específico; para uma etnicidade
calcada no signo da subordinação as dificuldades são maiores e diversas como o caso
africano, por exemplo, historicamente associado à subordinação por imposição
econômico-cultural.
Ao refletir sobre a diáspora negra a partir da própria experiência e do seu local de
origem, Stuart Hall aponta questões tanto de formação cultural identitária nos países de
destino, quanto problemas de ajuste vivenciados pelo indivíduo diaspórico. Um desses
problemas diz respeito ao retorno dos emigrados. O indivíduo que retorna ao local de
origem sente-se estrangeiro pelas novas experiências que adquiriu na terra de destino.
Há a formação de um novo sujeito que não é nem o que saiu, nem o que vivenciou
48
novas experiências, mas um híbrido de ambos que, pelo hiato estabelecido na vivência
cultural, não se sente adaptado ao mundo do qual se apartou. Por outro lado, também
na terra de destino onde se torna um estrangeiro o indivíduo não é parte integrante
daquele contexto identitário senão como imigrante e, como tal, excedente. Sair e voltar
são experiências de quem vive no entre-lugar, este espaço que define a condição de não
estar ajustado a lado algum.
O escritor açoriano João de Melo em palestra na Feira do Livro de Porto Alegre
no ano de 1999 descreve uma experiência semelhante, focalizando como local de
imigração o arquipélago dos Açores. Diz ele que os indivíduos que partem das ilhas em
busca de melhores condições de vida, quando retornam não se sentem mais
participantes daquele cenário. Esse é também o motivo da obra de outro escritor
açoriano, Álamo Oliveira (OLIVEIRA, 1999) que em Já não gosto de chocolates narra a
experiência de adaptação de uma família de açorianos aos Estados Unidos da América
do Norte. Um dos pontos marcantes do livro é o momento em que o velho personagem
que abandonou a ilha em busca de trabalho, o Sr. José Silva – cuja nova identidade é
Joey Sylvia -, pede desculpas por estar falando em solo norte-americano a sua língua de
origem, marca pessoal de uma identidade híbrida que ficou no passado para o qual ele
jamais poderá retornar.
A escritora portuguesa Lídia Jorge (JORGE, 1998) em O vale da paixão igualmente
retoma o tema do desajuste ao cenário social dos emigrados. Se há personagens que
buscam suas raízes no universo fechado e sinistro vivenciado no momento histórico do
governo Salazarista, também há personagens que fogem do lar na busca por melhores
49
condições de vida em outros países. Aos poucos, os indivíduos abandonam a terra
consolidando, nesse ato, a diáspora portuguesa. A mesma autora trabalhará a geografia
da migração associada ao universo africano em O vento assobiando nas gruas. Na referida
obra, a sensação de despertença é experimentada por uma família de imigrantes cabo-
verdeanos que adota Portugal como pátria de acolhida, sem, com isso, sentirem-se
identificados com o novo lar.
Walter Benjamin (BENJAMIM, 1993) em seu clássico texto “O narrador:
considerações sobre a obra de Nikolai Leskov” faz referência a essa questão migratória
caracterizando os indivíduos que partem e os que ficam na terra natal como dois tipos
distintos de narradores: o comerciante e o camponês sedentário. O primeiro é aquele
que parte, adquire e, por conseqüência, narra experiências vivenciadas; por outro lado, o
camponês é aquele que fica e conhece a tradição local. Trata-se de vivências distintas
que formam outros saberes e outras maneiras de transmiti-los.
Citando Hall, os indivíduos que retornam:
Sentem-se felizes por estar em casa. Mas a história, de alguma forma, interveio irrevogavelmente. Essa é a sensação familiar e profundamente moderna de deslocamento, a qual parece cada vez mais – não precisamos viajar muito longe para experimentar. Talvez todos nós sejamos, nos tempos modernos, o que o filósofo Heidegger chamou de UMHEINLICHEIT - literalmente, ‘não estamos em casa’´. (HALL, 2003, p. 27).
Por ser a sensação de despertença uma condição do mundo moderno torna-se
cada vez mais premente pensarmos a construção da identidade pessoal ou coletiva em
termos de formação cultural: que é aquela intrínseca ao ser humano, que inclui laços de
50
parentesco e local de origem, que é uma mistura das experiências vividas por nós e por
outros, que constitui um mosaico de culturas nativas e de deslocamento, que é algo
sólido porque diz respeito ao nosso lugar no mundo enquanto sujeito e coletividade,
mas que se desmancha no ar enquanto conceituação histórica.
Nosso ponto de partida para a discussão da nacionalidade foi a compreensão do
conceito e do significado de nação na sociedade contemporânea, e disso concluímos que
todas as teorias apontam para um denominador comum: a nação é um princípio
espiritual cuja essência é o homem. É exatamente desse ponto que partiremos para a
análise das micro-histórias representadas e do que nos contam as narrativas postas aqui
para análise, para, posteriormente, retornarmos ao princípio da formação (narração) das
nações no espaço/tempo da atualidade.
2.2 MICRO-HISTÓRIAS DE IDENTIDADES: O RESGATE DA HISTÓRIA NA
FICÇÃO
As transformações históricas e sociais se materializam na contemporaneidade
através de elaborações discursivas que, comprovadas ou não, tornam-se as fontes
documentais de onde os historiadores buscam seu material de pesquisa. Como
produção humana, elas dependem da visão de mundo de quem as escreve, assim como
acontece na obra ficcional em que um narrador organiza e reproduz a fábula seguindo
um ou mais pontos de vista que deseja expressar. Os textos históricos não são a única
fonte de comprovação da realidade. Desde as suas primeiras expressões artísticas o
51
homem já manifestava essa tendência natural em registrar o momento vivido. Assim, a
arte e a ciência são, na mesma medida, fundamentais e complementares para a
representação do processo social.
O artista, nesse sentido, desempenha um papel social: o de inserir no universo da
linguagem realidades vividas ou criadas, para, nesse exercício, através do processo de
identificação individual ou coletiva, formar a memória cultural de uma dada
comunidade. Ao se reportar a universos desconhecidos, entretanto, o escritor está
analisando os fatos com a visão crítica que possui do acontecimento histórico narrado, e
aí reside a parcialidade do relato histórico.
Quando tratamos da relação entre ficção e história, a par da questão da
representação duas preocupações revelam-se importantes à sua elucidação: uma diz que
ambas são formulações da linguagem; a outra diz respeito ao modo como esse discurso
é transmitido à sociedade, ao ser adotado o ponto de vista de quem narra este fato
repercute na não-isenção do relato histórico.
Aristóteles (ARISTÓTELES, 1992) em sua Poética propôs-se a traçar a distinção
entre poesia e história já que o discurso ficcional, para ele, baseava-se em episódios que
poderiam ter acontecido, o que circunscreve a ficção ao âmbito da caracterização
mimética do discurso narrado. O relato histórico, entretanto, ocupava-se do que
realmente aconteceu, sendo elevado ao status de narração verídica consignada ao âmbito
dos acontecimentos particulares. Com isso, o filósofo aproxima a definição de história à
conceituação de verdade; a ficção, por sua vez, destinava-se a veicular não a veracidade
dos fatos, mas a verossimilhança dos mesmos abordando caracteres de cunho universal.
52
A discussão entre ficção e realidade foi retomada nos séculos XVIII e XIX com
contornos distintos da iniciada por Aristóteles, principalmente no que concerne à
vinculação da história à veracidade do relato. Assim, as fronteiras entre literatura e
história começam a ser delineadas no século XIX destacando-se o trabalho de Leopold
Von Ranke que foi significativo para a autonomia da história ao enquadrar a narração
dos fatos em duas categorias: história-arte e história-ciência. É o paradigma da história-
ciência que domina quase todo o século XIX e o início do século XX com o fundamento
na pesquisa de fontes, em especial nos documentos oficiais manifestando-se numa
narrativa restrita ao relato de acontecimentos políticos relevantes. Para Von Ranke
(RANKE apud BURKE, 1991) a tarefa do historiador é mostrar aos leitores os fatos como
eles realmente aconteceram, isto é, o autor defende que a escrita da história deve ser
objetiva. Já a história-arte como as crônicas medievais configura outra forma de
representação que mistura mitos, lendas, fatos reais e ficção.
No século XX, em 1929, Lucien Febvre e Marc Bloch fundam a revista Annales
constituindo a École de Annales, a qual questiona o método científico e combate a história
factual em nome de uma análise estrutural da história que considera outros elementos
como, por exemplo, as representações e práticas de uma determinada coletividade. Para
Fernand Braudel (BRAUDEL, [s/d]), da segunda geração da École, importam nos estudos
históricos as transformações econômicas, políticas e sociais de longa duração e não os
eventos pontuais e superficiais. Já Paul Veyne, Jacques Le Goff, Emmanuel Le Roy
Ladurie e Georges Duby, integrantes da terceira geração, trabalham em novos modelos
53
de análise histórica e fazem surgir as histórias do cotidiano, da mentalidade, da ordem
privada e, mais recentemente, do imaginário.
Paul Veyne (VEYNE, 1998) complementa a questão ao se referir à metodologia
utilizada pelos historiadores. Ao escolherem um ou outro ponto de vista, os teóricos
estarão fazendo mais do que adotar um foco narrativo, vão delegar à história um
episódio para além de seu tempo, sob uma ótica que não contém a totalidade dos fatos
ocorridos. Isso revela o comprometimento do relato histórico com a ideologia de quem o
produz, uma vez que o historiador, tanto quanto o escritor, é um sujeito social que está
vinculado, invariavelmente, ao contexto sócio-temporal que não lhe permite ler os
acontecimentos sem uma determinada parcialidade.
Os estudos históricos da modernidade separam a história de outras disciplinas
das ciências humanas. Entretanto, retoma-se, no final do século XX, o debate em torno
da legitimidade dessa autonomia porque a pós-modernidade propõe a diluição das
fronteiras entre as disciplinas, em particular, literatura e história. A convergência entre
as duas concretiza-se pelo questionamento sobre a intencionalidade do narrador sobre o
material histórico e o ficcional e sobre o caráter de construção das narrativas histórica e
ficcional.
O interesse em redefinir os limites que separam literatura de história tem-se
mostrado através dos atuais discursos críticos remodelados pela visão da corrente
denominada de Nova História na qual se vincula Hayden Withe (WHITE, 1992). As
reflexões desse historiador, em Meta-história, centralizam-se na análise dos elementos
políticos que compõem o discurso histórico. O autor, ao interpretar as principais formas
54
de representação histórica, no século XIX europeu, considera o texto histórico uma
estrutura verbal na forma de discursos em prosa. Assim, afirma que o objeto da história
se expressa através de formulações que se aproximam das estratégias típicas do material
ficcional. Desse modo, a diluição de fronteiras entre as áreas do conhecimento é
apontada como uma das principais características das ciências humanas
contemporâneas e resulta na aproximação maior entre história e literatura.
Contra o status de verdade absoluta levanta-se a moderna ficção e,
conseqüentemente, a ficção contemporânea lusófona. A narrativa ao ter como matéria a
história recorre ao passado remoto ou recente e aproveita, pois, criticamente esse
passado. Linda Hutcheon (HUTCHEON, 1991) e Seymour Menton (Menton, 1993)
denominam essa tendência, respectivamente, de metaficção historiográfica e de novo
romance histórico, analisando o romanesco e o historiográfico segundo a revisão
conceitual da noção histórica que está implicada no paradigma da pós-modernidade.
Hutcheon e Menton concordam em pelo menos dois pontos centrais: o primeiro é a
necessidade de denominar a nova tendência cultural; o segundo diz respeito à evidência
de que existe uma nova facção da literatura preocupada não somente em revisitar o
passado sob a ótica canônica, como é o caso do chamado romance histórico, mas analisá-
lo de forma crítica e questionadora, desmitificando-o enquanto relato de verdades. Para
Hutcheon, o texto não apresenta uma única verdade totalizadora e fechada, pois os fatos
podem ser vistos de múltiplas visões e perspectivas tanto quanto a historiografia. Nesse
aspecto retoma Veyne quando o mesmo analisa a história como narração de eventos
reais, delegando ao historiador o papel de um narrador de episódios vividos. A
55
literatura assim como as demais ciências humanas desempenha um papel primordial na
estruturação cultural das comunidades imaginadas (ANDERSON, 1989).
O argumento histórico e a preocupação com o leitor são importantes para o
romancista e tornam-se motivo de ele recorrer a diferentes e constantes recursos que
insiram o leitor na história, discutindo questões inerentes à sua cultura. Se observarmos
a formação sócio-cultural de povos em desenvolvimento vemos que há necessidade de
refletir sobre suas origens e sua identidade. Esse traço é também peculiar à nossa
cultura, pois, através de relações inter e intraculturais outras relações se estabelecem
como, por exemplo, a comunidade que se faz imaginada pelo ato de possuir uma
cultura e uma identidade próprias. Isso se presentifica em várias instâncias textuais
como na relação autor-leitor que pode ser entendida como a relação do eu com o outro,
o eu-autor com o outro-leitor, até mesmo porque estabelece uma condição de
estranhamento entre as partes que se identificam.
Para Homi Bhabha, está intrínseco no paradigma de nação o distanciamento que
existe entre o poder burocrático e a simplicidade do povo, quando afirma que as origens
da nação estão perdidas "nos mitos do tempo", ou seja, não há uma linha limítrofe que
defina o surgimento de nação assim como não há um conceito único e fechado que a
defina. Ele enfatiza que o tema central de seu estudo é justamente a representação
cultural da ambivalência contida na sociedade moderna. Preocupa-se em saber se ela é
resultado de sua história transitória, de sua indeterminação conceitual, e de outros
paradigmas de nacionalismo que estão intrínsecos nessa questão, tais como:
56
o conforto de pertencer à sociedade, as desvantagens encobertas de classe, os hábitos do paladar, os poderes de filiação política, o sentido da ordem social. A sensibilidade da sexualidade, a cegueira da burocracia. A estreita compreensão das instituições, a qualidade de justiça, o sentido comum de injustiça, a língua da lei e a fala do povo (BHABHA, 1998, p. 4).
Segundo o autor, para estudarmos a nação não devemos observar apenas a sua
linguagem e retórica, mas também o próprio objeto textual.
Os estudos contemporâneos apontam as relações entre ficção e história como
elaborações discursivas o que as torna, antes de tudo, produção humana tal como são as
fontes documentais de onde os historiadores retiram seu material de investigação.
Levando em conta essa perspectiva dos estudos teóricos como o posicionamento
defendido por Homi Bhabha é que pensamos no estudo do texto literário como fonte
documental de onde se extraem histórias do quotidiano: histórias de mitos, lendas e
crenças, do imaginário das guerras colonial e civil, da descolonização portuguesa e do
(des) ajustamento do indivíduo em meio às contingências históricas. Há, no texto
literário, uma infinidade de possibilidades de investigação. Assim, as micro-histórias
extraídas do universo das personagens permitem-nos a leitura da representação da
identidade pessoal e coletiva nos locais da lusofonia que integram o horizonte de
expectativa deste trabalho.
O estudo comparatista da literatura permite a análise entre potencialidades
artísticas de diferentes contextos culturais. Assim, a apreciação dos textos dos escritores
lusófonos Mia Couto e Luís Cardoso será feita conforme o recorte da “micro-história” da
57
representação identitária apresentada na ficção que assume o papel de fonte documental
para a história presente na narrativa.
Isso pressupõe estabelecer o inverso das relações: não é a história que serve de
material ao escritor para o mesmo criar realidades, é a ficção que oferece, no caso da
história recente das nações pós-independentistas, material para compor fontes
históricas. Cada contexto cultural adota uma forma específica de abordagem literária do
material histórico, embora ambas estejam calcadas na base comum de serem
representativas da sociedade de onde emanam.
No domínio da história, a micro-história lida com o fragmento como forma de
analisar uma questão social mais ampla, um problema histórico ou cultural significativo.
É, no dizer de Carlo Ginzburg (GINZBURG, 1987), como focalizar rostos na multidão,
ou, como prefere Laura de Mello e Souza (SOUZA, 1986), como conferir identidade ao
anônimo. Possivelmente o problema apontado por estes historiadores ao analisarem a
história em fragmentos passíveis de interpretação se dissolva em si mesmo, uma vez
que ele reside no fato de que o passado não pode ser reconstituído a não ser pelo que
julgamos saber dele. Sem esquecer, entretanto, que até mesmo as fontes documentais,
por serem produções humanas são parciais. O que sabemos do passado são frações, que,
juntas, fornecem-nos uma idéia aproximada e uma compreensão provisória da nossa
própria história.
Este problema nos remete a outro conceito-chave para a reconstituição da história
que é a recorrência às fontes documentais nas quais o pesquisador busca o material do
seu trabalho. Ele resgata um modus vivendi que não conheceu a partir de documentos
58
escritos que podem ser manipulados não só pelo historiador, que impõe questões aos
documentos históricos conforme exige seu objeto de estudo, como também pela própria
origem do documento que, por ter como suporte a escrita, que é uma produção textual,
pode conter também um ângulo de visão restrito à interpretação dos fatos. Ao definir o
seu objeto de estudo, o historiador precisa delimitar suas fontes que poderão, antes de
responder às suas questões, propor novas idéias, conceituações ou hipóteses pertinentes
à investigação.
O historiador Carlo Ginzburg, cujo ramo de investigação adotado em seus
estudos pertence à história das mentalidades, estabeleceu, na obra O queijo e os vermes,
parâmetros de comparação entre a cultura das classes subalternas e a cultura erudita no
universo contextual dominado pela Inquisição. A cultura popular, se pensarmos em
termos de passado histórico, é transmitida pelo código da oralidade, o que confere
restrições à investigação. A reconstituição desse imaginário torna-se, portanto,
dependente de fontes indiretas, tais como a escrita e os achados arqueológicos. O autor
analisa estas transformações culturais a partir da desestruturação social, dos fatores
econômicos e da diferença entre classes daí resultante.
Essas fontes, apesar de serem verossímeis, produzem dados parciais que contêm
um ângulo de visão da história. A ocorrência disso se dá porque os produtores textuais,
os cronistas ou historiadores, e aqui acrescentaríamos os escritores, enquanto sujeitos
sociais elaboram seus textos conforme ideologia própria que contém fragmentos dessa
representação histórica. Este problema, segundo Carlo Ginzburg, tem sido avaliado
somente na contemporaneidade. A oposição entre o que vem a ser a cultura produzida
59
pelas classes populares e a cultura imposta às classes populares (GINZBURG, 1987, p.
18) está na base dos estudos do historiador, que buscou nos inquéritos do Santo Ofício
italiano elementos para recompor o imaginário social popular do século XVI.
Os depoimentos extraídos dos inquéritos eclesiásticos servem de fonte
documental para a historiadora Laura de Mello e Souza (SOUZA, 1986) que, em O diabo
e a terra de Santa Cruz, reconstitui a vida de seis personagens populares ingressos na
história porque foram perseguidas pela Inquisição. A história de cada um destes
indivíduos pode ser lida como uma representação ou um reflexo do universo em que
eles estão inseridos, uma vez que as micro-histórias ou as biografias traçadas só fazem
sentido quando se apresentam como parte integrante da cultura coletiva.
Esse universo cultural recriado nas obras de Carlo Ginzburg e Laura de Mello e
Souza materializa-se como código escrito pela mediação do outro (nesse caso, o
inquisidor) que interage ou direciona os relatos orais das personagens, à medida que
manipula as perguntas. A parcialidade inerente ao documento histórico advém desse
fato, pois o historiador deve considerar a condição inequívoca de a memória ser falha,
forjada ou induzida a partir dos argumentos utilizados pelos inquisidores. Também esse
constitui um elemento a ser considerado porque é indicador da realidade social imposta
à sociedade. Assim, importa tanto o que o texto revela quanto o que subjaz a ele, pois o
que está implícito pode ser revelador dos mecanismos de atuação dos tribunais do Santo
Ofício. Partindo, portanto, da micro-história de personalidades anônimas tem-se a
reconstituição não apenas da singularidade, mas do imaginário social abrangente em
que estas personagens estão inseridas. Segundo Laura de Mello e Souza, conhecer estas
60
histórias “faz-nos lembrar que sob a face uma de Clio se esconde o mosaico de aventuras
individuais possíveis de serem resgatadas” (SOUZA, 1986, p. 335).
É esse mosaico de aventuras individuais que poderiam ter acontecido que
interessa-nos resgatar enquanto elaboração ficcional e enquanto possibilidade de
construção da memória coletiva. No momento em que os escritores se assumem como
sujeitos sociais observadores da realidade circundante, eles reproduzem histórias,
lendas, fatos e crenças, e representam, com isso, a memória da sociedade em que vivem,
bem como a história das mentalidades de uma dada época.
Uma vez que cada ficcionista tem um projeto autoral podemos observar o resgate
de uma história através das micro-histórias, que é a possibilidade de “focalizar rostos na
multidão”; um posicionamento ideológico que contrapõe o processo de construção da
história em história dos vencedores versus a história dos vencidos; e um processo de
elaboração textual que parte da interpretação da realidade vivida, do reconhecimento e
da escolha das personagens, da compreensão do contexto histórico, bem como da
formação da memória pessoal e coletiva a partir de um recorte centrado em
individualidades ficcionais. É deste ponto que partiremos para a análise das obras de
Mia Couto e Luís Cardoso sob o fio condutor da representação de nação e de identidade,
a partir das micro-histórias individuais presentes em suas ficções e do que elas
contribuem para a formação do imaginário das sociedades de onde emergem.
61
3 CONDICIONAMENTO HISTÓRICO: CONSTRUINDO IDENTIDADES
Documento sem resposta nem testemunha:
quem se identifica no pós-colonial?
s literaturas oriundas de sociedades pós-coloniais são escritas na língua
da antiga potência colonizadora. Se, por um lado, o elo cultural
desenvolvido modifica-se pela transformação da condição política das colônias em
novos estados independentes, por outro, mantém-se pelo fio condutor do idioma. No
caso das nações integrantes da Comunidade Lusófona, o português é a matriz sobre a
qual a memória destas nações passará a integrar as histórias das suas literaturas
nacionais.
A realidade que permeia o universo ficcional parte diretamente do cenário
social em processo de reconstrução política, identitária e estrutural. E, assim sendo, as
ficções que daí avulta nesse momento histórico são também um retrato da imprecisão
identitária do sujeito e da nação que, saídos de um processo colonialista, buscam formar
uma sociedade em que a estrutura política esteja centrada na autogestão e que a herança
cultural alcance um equilíbrio entre o saber ancestral e o sistema referencial adquirido.
A forma como as nações entram no mundo é, então, um experimento de
gestão e um resultado híbrido da convivência multicultural. Assim, também a forma de
expressão artística será marcada pelo signo da novidade, a saber: a inovação lexical, o
aproveitamento e a conseqüente ruptura com as formas literárias tradicionais. Se em
Moçambique, uma sociedade com trinta anos de conquista identitária, o volume da
A
62
ficção produzida permite compor um imaginário alargado de nação pela multiplicidade
de vozes e estilos que se manifestam, em Timor Leste, país que completa três anos de
experiência independentista, as vozes em uníssono nesse momento histórico
representam o protesto do povo de Timor contra as sucessivas subjugações de que foi
vítima, concomitante o resgate desta memória compõe o imaginário social timorense.
3.1 MOÇAMBIQUE: LITERATURA A CAMINHO DA ESPECIFICIDADE
CULTURAL
O choque cultural porque passaram a América, a África e a Ásia deriva do não
reconhecimento do outro enquanto elemento de cultura. Desse contato e conseqüente
estranhamento que integrou a história dos países do Novo Mundo surge a hibridização
entre complexos culturais que, posteriormente, serão denominados como primeiro e
terceiro mundos. Através desse processo denominado historicamente como
Imperialismo surgem na história as novas nações, algumas das quais, em face disso,
emergem sob o estigma da exploração econômica. Se invasões, intercâmbio cultural e
dominação de território fazem parte da história que está restrita ao passado, no caso das
novas nações como as integrantes da CPLP essa dominação ainda se faz presente e
cotidiana, sobretudo na expressão ficcional.
A CPLP em termos institucionais está em vias de implementação, pois o debate é
extenso e vem de longa data, mas a interação é ainda reduzida. Trata-se do acordo
assinado em 1996 pelos países de língua oficial portuguesa: Portugal, Brasil, Angola,
63
Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e, posteriormente, Timor
Leste. Em termos lingüísticos, diz Alfredo Margarido (MARGARIDO, 2000), a CPLP é
uma tentativa de resgate do imperialismo, uma forma de Portugal manter a dominação
sobre suas ex-colônias, para minimizar sua pequenez geográfica e o pertencimento a
uma comunidade européia com a qual não se sente identificado cultural e
economicamente, tendo de responder a uma modernidade imposta.
A lusofonia, entendida aqui como a soma dos princípios lingüísticos, sociais,
econômicos e culturais que a integram é mais do que um termo que identifica uma
comunidade de nações que, por terem uma raiz comum, são falantes da mesma língua e
possuem um núcleo historiográfico semelhante, porque comum. A lusofonia é também
uma questão posta ao mundo contemporâneo onde, além da geografia das migrações,
apresenta uma constante interação espácio-cultural entre os países que a integram.
Estudantes angolanos, moçambicanos e timorenses procuram auxílio na matriz
colonizadora, portugueses migram para seus antigos cordões coloniais em busca de
nova vida, brasileiros procuram fontes de pesquisa em solo português, enfim, uma
infinidade de combinações possíveis de diálogo multicultural pauta as relações
contemporâneas entre estes países. Além disso, lembrando Benedict Anderson
(ANDERSON, 1989), há uma fraternidade em larga escala potencializada através da
língua matriz.
As unidades lingüísticas tais como a francófona, a anglófona e a lusófona
formam-se para solidificar atividades de intercooperação cultural, política e econômica.
De toda a sorte constituem-se, primeiramente, como realidade cultural e apresentam
64
ações de mútua cooperação entre os países considerados irmãos. No entanto, como
destaca Mia Couto: enquanto as outras comunidades apresentam ações concretas, os
lusófonos discutem “como apertar os sapatos sem calçar as meias”.
É corrente no mundo acadêmico a idéia de que para estreitar laços entre estas
nações lusófonas há de ser estabelecido um acordo ortográfico para a língua portuguesa.
Como a língua pertence a quem a fala, não parece possível a unificação da norma
lingüística para um universo de realidades tão distintas. Nos países colonizados
coexistem linhagens étnicas cuja convivência com a língua da cultura européia produziu
novas palavras. Ainda no contexto contemporâneo dos países africanos de expressão
portuguesa há a influente presença dos idiomas nativos, muito embora o português
tenha servido como elo unificador entre as diferenças étnicas genuínas e, nos territórios
que passaram por processos de colonização, tenha se tornado a língua das decisões
políticas, da identidade para o exterior e da unificação nacional.
Enquanto em Moçambique a língua portuguesa foi, primeiramente, um entrave
no que respeita à unificação nacional, justamente pela homogeneidade estabelecida a
partir do idioma que identifica o território, sem ser a língua materna desse território; em
Timor Leste, apesar do tétum ser a língua franca nacional, o português é o elemento
desencadeador da unidade que levou à resistência e, por sua vez, à independência.
Portanto, observamos que mesmo aquele que serve de fio condutor da
institucionalização desenvolveu-se de diferentes formas nos países onde interage. O
que, voltando ao princípio, não permite com que seja possível qualquer tentativa de
acordo que unifique o léxico entre países de diferentes continentes, realidades sócio-
65
históricas e influência cultural. Cada sistema lingüístico deve comportar um código
capaz de comunicar todos os elementos de sua cultura. Nos países plurilíngües, no
entanto, há palavras que somente expressam o significado que se quer atribuir a
determinado elemento se for pronunciado na língua materna. Luís Cardoso, em
entrevista à autora desta tese, diz que algumas palavras ele só enuncia em tétum,
porque é da imersão na cultura maubere que se extrai o seu significado maior.
Em Moçambique e em Timor Leste, além da existência das línguas tribais, há a
proximidade com a África do Sul e com a Austrália, cuja unidade lingüística é o inglês,
que acarreta influência no português falado no país vizinho. Não bastasse isso, cada país
possui sua sintaxe própria, sua maneira de interagir e modificar a língua.
Eduardo Lourenço13, ao referir-se a essa questão, parte da afirmativa de Fernando
Pessoa de que sua pátria é a língua portuguesa e discute os sentidos que ela adquire
num contexto mítico como pátria. Segundo o autor, o português nos fala antes mesmo
que o saibamos falar o que nos permite pressupor que tanto a língua quanto a pátria são
circunstanciais, pois são o lugar onde estamos. Portanto, a noção de língua como pátria
trata-se de um conceito mais abrangente que o da delimitação geográfica.
O crítico português defende com veemência a língua como fator determinante da
identidade de um povo porque é ela que comunica, que realiza, que interage, não
deixando o mesmo de reconhecer que também na Antigüidade os povos dominados
eram obrigados a falar a língua e assimilar a cultura do dominador. São necessários, no
entanto, mais argumentos além desses para determinar a identidade social abrangente
13 LOURENÇO, Eduardo. Da língua como pátria. JL Comunidade, Lisboa, 22 jun. 1994.
66
das nações. Os únicos sujeitos da língua portuguesa que é vivenciada por nós, segundo
Lourenço, como pátria, são os seus falantes do passado, do presente e do futuro. Nessa
transposição temporal e geográfica por que passam os idiomas, ainda mais com a
abrangência do português, dá-se a assimilação de novas formas, da mudança da
pronúncia e da aquisição de novos significados, tornando o léxico flexível e plural.
Voltando à pauta da CPLP, se é inegável que Portugal é o país sede da
comunidade por ser a matriz de onde se vincularam todos os demais integrantes por
terem em comum língua e cultura embasadas nos valores do "humanismo universal
português" é inegável, igualmente, que Portugal tem uma parcela importante de
responsabilidade para com estes países, uma vez que todos são luso-descendentes,
provindos de uma situação de colonização indireta e unilateral. Como a história é
recente, nesse caso, a mágoa e o ressentimento histórico também o são. As relações entre
os países africanos de língua portuguesa e Portugal se estabelecem, hoje, pacificamente
sem que isso signifique que a mágoa histórica tenha sido esquecida; somente não vale a
pena ajustar as contas, como diz Mia Couto. Estas são, sobretudo, relações diplomáticas
no que tange a apoio financeiro, cultural, interinstitucional e político-educacional aos
estudantes africanos e timorenses.
Por isso, talvez, discutir essa questão seja tão premente quer no âmbito político,
quer econômico ou cultural. As nações emergentes que nascem com a cicatriz das
guerras civil e colonial, do estigma de terem sido colônias de exploração e, portanto, de
responder primeiro aos interesses internacionais marcam, assim, uma nova ordem.
67
Enquanto os cânones literários sempre seguiram os modelos europeus, novos
cânones como os da literatura pós-colonial estão formando história ao longo desse
universo cultural. Seja na área da teoria literária ou dos estudos culturais, não podemos
categorizar as obras literárias, classificá-las ou elevá-las a status de discussão seguindo
os padrões clássicos vigentes. A diferença que se faz entre local e universal (BHABHA,
1998) parece, antes de tudo, referir-se ao cenário em que se desenvolvem as narrativas,
ou mesmo ao tema que escolhem tratar que são assuntos importantes para a
comunidade do local de onde se fala sem, com isso, deixarem de ser universais.
A estrutura de sustentação do Império desestabilizou o crescimento natural das
colônias fato que, quando representado no cenário social, incorpora tanto o sujeito do
fazer literário que vivencia essa condição, quanto a expressão ficcional que responde ao
imperativo histórico. Em Moçambique, Patrick Chabal (CHABAL, 1994) avalia esta
questão a partir do questionamento do termo literatura africana, tendo em conta que a
veiculação da ficção moçambicana assim como nas demais colônias não é dada pela
matriz cultural de cada território. Este termo pressupõe a existência de uma literatura
cuja língua em que é veiculada deriva da cultura africana, mas ambas são veiculadas por
línguas européias, isto é, a dos colonizadores.
Patrick Chabal questiona o caso específico de Moçambique uma vez que o acesso
à língua portuguesa era, também, restrito aos africanos. E a língua nacional não tinha
alcance público, no sentido de ser fragmentária. É natural, assim, que as novas nações
pós-coloniais comuniquem na língua do colonizador, uma vez que molda para estes
países uma identidade que é híbrida em sua essência, já que a raiz dela devido ao
68
processo de colonização perdeu sua unicidade. O crítico africanista defende a idéia de
que não só a língua, como também a cultura metropolitana tem influência no
nacionalismo africano, pois se a cultura africana é originariamente oral, a literatura que
expressará os mitos e o saber ancestral africano é escrita no idioma colonial.
Se transmitir cultura não significa necessariamente escrever cultura - porque há a
cultura que é transmitida de forma oral -, o fato de rotular a cultura como legado escrito
é um costume metropolitano mais do que nacional moçambicano ou timorense; por
outro lado, para que haja a afirmação do que é genuíno é preciso lançar mão desse
subterfúgio. Assim se molda o nacionalismo africano: na contramão da essência de sua
própria cultura, integrando-se à realidade social da plurimodernidade.
Observamos que a representação da oralidade na literatura africana ocorre de
duas maneiras: primeiro, no rompimento com a norma da língua culta padrão
substituída pela fala popular e pelo uso de neologismo. Segundo, na suspensão do fluxo
contínuo da narrativa para a inserção do modelo clássico de narrador descrito por
Benjamin como aquele que conta uma história advinda da experiência, sendo, por isso,
um transmissor de sabedoria.
É comum vermos a expressão “marcas de oralidade” ou “gêneros orais” na
escrita. Preferimos falar, nesse caso, em representação da oralidade na escrita, pois esta
tanto envolve a exploração da coloquialidade já presenciada em Luís Bernardo
Honwana, como a mímese do narrador da oralidade descrita por Walter Benjamin
transportado para o universo da narrativa como observamos em Paulina Chiziane,
Ungulani Ba Ka Khosa e, muito particularmente, em Mia Couto. As personagens de Mia
69
Couto interrompem a linearidade da narrativa para acrescentar uma história, fruto de
uma vivência do narrador que transmite um conhecimento sobre a sociedade local. No
universo ficcional de Mia Couto, não raro, são inseridos personagens de fora do
contexto local a se confrontarem com os mistérios da tradição africana.
O ponto de discussão mais polêmico parece ser esse: a tradição da cultura
africana não só de língua portuguesa ser oral. Além da expressão da oralidade ser dada
pela representação da coloquialidade da fala no discurso, rompendo, com isso, com a
norma culta padrão há a representação da coloquialidade ocasionada pelo
desconhecimento da língua proveniente, no contexto africano, do embate cultural
oralidade/escrita aliado ao fato de a escola onde se aprende o português ser
considerada local de assimilação.
Ungulani Ba Ka Khosa (KHOSA, 1990), em Orgia dos loucos, apresenta um
personagem que resiste ao contato com a escola por não querer tornar-se um assimilado.
No entanto, as condições para a ascensão social passam pelo domínio da língua
(estrangeira) que se quer oficial. Vencendo esse conflito, a personagem acaba cedendo
ao poder da instrução (que é fonte de poder) e morre decapitada quando tenta recuperar
um livro caído dentro do elevador do prédio onde mora. Em outras palavras morre,
metaforicamente, ao assimilar a nova cultura.
Com relação à realidade lingüística das ex-colônias há dois problemas a serem
abordados: o primeiro diz respeito à expressão da regionalidade possível pela
maleabilidade da língua; e, o segundo, refere-se à expressão da coloquialidade devido
ao desconhecimento da língua resultado possível dos processos de alfabetização
70
acelerada, ou ainda pela baixa escolaridade de alguns segmentos de classes sociais. Cria-
se, assim, um código lingüístico apartado do código considerado padrão e esse é, não
raro, representado na literatura como forma de identificação com as camadas populares
falantes deste desvio, que despedaça a língua e, nesse processo, transforma-a.
Não podemos nos esquecer que a simbologia de “despedaçar a língua” também
pode representar a destruição da condição de colonizado, da condição de subjugação a
uma cultura dominante que se sobrepõe à cultura local. Pode significar, igualmente, a
união de fragmentos próprios criados a partir de uma linguagem que se impõe. Se for
preciso falar a língua e assimilar outra cultura então que seja feito de uma forma mais
identificada com a realidade social sobre a qual ela se apresenta. Em não sendo a língua
materna, mas a da unidade nacional parece coerente que seus usuários (alfabetizandos)
comuniquem-se iterativamente, mesclando conhecimentos e expressões entre os dois
códigos de comunicação verbal com o qual se inscrevem na nova ordem social: a da
nação.
O caso de Timor Leste é ainda mais complexo do que os países africanos
lusófonos, pois o português apesar de ser a língua da unificação nacional que
impulsionou o entendimento que levou à resistência e, por conseguinte, à
descolonização, não deixa de ser a língua recentemente retomada como unificadora e,
igualmente, a língua do primeiro colonizador. A necessidade primeira, nesse momento,
é o protesto: é dar a conhecer uma realidade que, vindo à tona pela via literária, não
deixa de representar um cenário marcado pelas guerras independentistas e pelo
processo de descolonização. Interessante observar, no entanto, na representação da
71
narrativa timorense que essa língua é expressa em conformidade com a norma padrão,
ficando a identificação cultural abrangente por conta dos temas abordados, das
variações lingüísticas e da representação do local de onde se fala.
Por tudo isso, o estudo quer da literatura africana de língua portuguesa, quer da
literatura timorense evoca a discussão sobre a representatividade da oralidade na escrita
ou de como se representam estes dois complexos culturais cuja tradição literária foi
transmitida de forma oral. A escrita surge, não raro, com uma subversão e até mesmo
uma imaterialidade da representação social dessa cultura, ou seja, se uma tradição
cultural se encontra calcada na oralidade, a questão posta é de como a escrita, que é um
sistema semiótico distinto, poderá representar essa tradição.
Ao contrário de Mia Couto que pertence a uma tradição que embora seja mais
recente também é mais consolidada literária e culturalmente em relação à de Timor
Leste, Luís Cardoso, Xanana Gusmão ou Fernando Sylvan falam ao outro que querem
conclamar para a luta. O princípio da literatura timorense está pautado na matriz da
oralidade. Entretanto, são as poesias escritas em português como forma de protesto e,
posteriormente, a narrativa que constroem a imagem dessa nação para o exterior. O
romance de Luís Cardoso não se porta de forma ressentida como se observa na poesia
de Xanana Gusmão, João Aparício ou Borja da Costa, mas é uma literatura que
reconhece o comprometimento político que assume para si. A literatura, nesse caso,
torna-se um protesto e uma forma de dizer ao mundo, na construção da memória
literária de um povo, que sua história é, antes de tudo, sofrimento, dor, dispersão,
72
diáspora ocasionada, a priori, pela oposição da força econômico-política entre uma
grande potência e uma pequena ilha.
Por isso, ao nos debruçarmos sobre a literatura desse jovem país há elementos
importantes a serem considerados que não remetem somente à questão política de
libertação recente, como também à geografia peculiar e distante dos demais países
integrantes da CPLP, ou do mundo lusófono, e um desenvolvimento cultural diverso da
cultura européia, africana ou latino-americana, porque a ilha de Timor Leste embora seja
ex-possessão Portuguesa pertence ao continente asiático, donde temos que a cultura
desenvolvida é influenciada pela ocidentalidade, mas não marcada por ela.
É imprescindível, nesse sentido, quando referimos à literatura africana lusófona e
timorense, o uso do termo pós-colonial. Não necessariamente pela representação
literária que se tem das conseqüências das guerras, mas, sobretudo, pela representação
ideológica que o ser africano e o ser timorense forma de si a partir desse choque cultural
e desse hibridismo lingüístico. Necessário também é o conhecimento da cultura e da
literatura universais - que se dá através do usufruto da língua do colonizador - para que
se possa, a partir do conhecimento do que é nacional (em oposição ao que é universal),
construir a identidade social africana.
A linguagem usada é marcada por essa herança híbrida, que não querendo ser a
expressão da oralidade, porque oralidade e escrita são sistemas distintos, é dela
representativa porque burla o sistema lingüístico vigente, aproximando-o de uma
sintaxe e de uma coloquialidade mais próxima da fala oral do que da norma culta. Dá a
conhecer um imaginário que, embora coletivo àquela sociedade, não é um imaginário
73
coletivo à ocidentalidade ou aquilo que se entende e denomina por imaginário
ocidental. Por subversão à norma lingüística ou ao imaginário existente, entendemos
que é uma iniciativa à busca da própria identidade social abrangente ou à nacionalidade
dessa literatura, pois só é necessário burlar aquilo que já existe como sistema acabado,
fechado e impositivo, a uma realidade que a ele não se adapta.
O que deve ser levado em consideração atualmente não é propriamente a
oposição entre cultura genuína oral e modernidade já que "toda a cultura é uma fusão
transformativa do tradicional e do moderno" (CHABAL, 1994, 23), mas o modo como
essa cultura, que provém da oralidade, integra o imaginário moderno da literatura
escrita na língua da potência colonizadora. A literatura pós-colonial africana tem se
moldado nestes termos. Seus temas representam uma identidade africana, numa mescla
da língua do colonizador com expressões retiradas do cenário social etno-lingüístico.
A pergunta "quem é o escritor africano" acrescida de “quem é o público leitor
moçambicano” certamente encontra muitas respostas. O escritor africano deveria ser,
antes de tudo, de ascendência africana para ser considerado representante dessa
sociedade. Porém, numa realidade híbrida como a que está em pauta, um escritor cuja
ascendência seja européia e que escreva na língua metropolitana pode ser um escritor
africano, e se ele retrata a realidade africana da miscigenação cultural, lingüística, racial
e social, tanto melhor. Mia Couto pode ser um escritor africano lusófono mesmo sendo
branco e de ascendência portuguesa, tanto quanto o africano Helder Macedo, que se
identifica como português por sua ascendência, mesmo tendo nascido na África Inglesa,
74
e Rui Cinatti, escritor nascido em Londres, que povoa seu universo poético com o tema
timorense.
O tema da oralidade é observado na ficção moçambicana desde Luís Bernardo
Honwana (HONWANA, 1988), em Nós matamos o cão tinhoso, obra em que o autor
trabalha a mistura entre o português culto e a forma pronunciada na oralidade. A troca
sintática, a pronúncia das palavras, que nem sempre corresponde à forma escrita, num
nexo quase infantil é acentuada pela excessiva repetição de algumas idéias, como que a
fixar na mente do leitor a história contada ou o que há por trás dela.
Diferente, entretanto, é a escrita do cabo-verdiano Germano Almeida (ALMEIDA,
2001), que parece adequar-se à elaboração escrita, ao uso do português genuíno, sem
interferência da retratação cultural com raízes na tradição. A obra O testamento do Sr.
Napomuceno da Silva Araújo retrata, como pano de fundo, as diferenças sociais entre duas
realidades: da ilha e do continente, entretanto, tal cenário poderia ser igualmente Açores
e Portugal, arquipélago e continente, onde ocorre conflito entre as formas distintas de
estar no mundo independente do contexto geográfico de onde emerge. É uma história
de luta e superação, antes disso, de um ser humano perante o cenário social. É uma
escrita mais cosmopolita em relação ao local de onde se fala, tendo-se em conta o
universo que vem sendo representado pela literatura africana de língua portuguesa.
A escritora moçambicana Paulina Chiziane (CHIZIANE, 2002) - uma mulher num
universo masculino, uma romancista num cenário onde há pouco tempo imperava a
poesia - apresenta, em Niketche, forte ligação cultural com os costumes genuínos
moçambicanos, descrevendo-os de norte a sul do país. A perspectiva dada na obra é a
75
do universo feminino quando a autora discute a prática da poligamia e sua implicação
na vida social, na intimidade de homens, mulheres, filhos e demais familiares, trazendo
à tona o desnudamento de uma sociedade onde impera a vontade do ser masculino.
Ao estudarmos a obra completa de um autor observamos que existe um grande
tema subdividido em pequenos motivos que percorrem todas as narrativas. Estes
podem ser trabalhados, recriados, ampliados tornando-se um tema que impulsiona o
sujeito social à escrita criativa. O motivo de Mia Couto é desdobrado em três momentos
históricos vivenciados pelo autor. O primeiro é Moçambique e sua tradição em eterno
conflito com a tradição européia; o segundo é o desdobramento histórico-social das
guerras colonial e civil, e o terceiro e mais recente é o desmantelamento da utopia
revolucionária.
Os temas presentes na literatura africana de língua portuguesa centram-se nas
lutas armadas, no imaginário da guerra colonial e civil. Justifica-se: a resistência armada,
as frentes de libertação, as ligas de oposição já tinham alguma atuação no combate ao
imperialismo desde 1920, com a Liga Africana. Em 1960, diversos agrupamentos
clandestinos já atuavam em Moçambique lutando pela independência nacional e por
uma sociedade liberta do jugo colonial.
Em 1962, quando ocorre a fundação da FRELIMO – Frente de Libertação de
Moçambique -, levou-se a cabo a luta pela independência política com relação a
Portugal. Em primeiro lugar fica a indagação sobre a constituição ou a formação da
República Popular de Moçambique. É sabido que a FRELIMO, que lutou e consolidou a
independência de Moçambique, só conseguiu efetivar tal ato colhendo o ensejo da
76
Revolução dos Cravos, em Portugal, sendo a elaboração da constituição moçambicana
datada de 20/06/1975. No entanto, cumpre destacar que desde o começo do século já
existiam ligas clandestinas pela libertação. Aliado a esse fato soma-se a literatura, a
música e os movimentos sociais que indicam, apesar dos anos de dependência, que há
um forte sentimento nacionalista, denotando o desejo de formação e consolidação de
uma identidade própria dos povos de Moçambique.
Na maioria das obras de Mia Couto o imaginário das guerras é o mais presente. O
romancista, incansavelmente, conta e reconstrói micro-histórias que poderiam ser (e
quem sabe realmente o foram) vivenciadas por diferentes personagens durante os
conflitos bélicos. Destes fragmentos de histórias, destas micro-histórias ficcionais, vai-se
construindo o imaginário de uma nova nação que foi ofendida pelo contexto colonial
(da usurpação do território nacional e sobreposição à cultura local). Ou seja, quando
tomamos as histórias do universo individual narrado observamos a reformulação da
história coletiva da nação que sofreu com as guerras e suas conseqüências: armamento,
medo, morte, desmantelamento das famílias, destruição emocional e física do indivíduo.
Após um contexto de guerra o que sobrevive numa nação são destroços, quando não da
sociedade, do próprio ser humano.
Esse caráter libertário emerge no contexto social de duas formas: pela via da
poesia e pela via do protesto político materializado pelos planfletos distribuídos na
clandestinidade como forma de esclarecimento à população moçambicana e também
portuguesa. As vozes da lusofonia também se fazem ouvir através destes documentos
que, por um lado, estão perdidos no tempo, por outro, são a expressão de um
77
imaginário social em construção no exato momento dos acontecimentos que culminaram
na sua libertação nacional.
Em mensagem ao 1o. Congresso do MPLA alguns militantes políticos dentre os
quais Sophia de Mello Breyner Andresen e Francisco de Souza Tavares reivindicam aos
dirigentes angolanos a soltura dos presos políticos “democratas e patriotas” que
estavam sob o poder do Movimento. Utilizamos este trecho do discurso para enfatizar o
argumento de que aquém das estruturas governamentais opostas em momento de
conflito, como o que ocorreu entre o governo colonial português e os movimentos de
libertação das colônias, estão os indivíduos que de um lado ou de outro sofrem com o
degredo, o desenraizamento e o cerceamento das liberdades. Diz o texto:
Nos tempos duros do fascismo, estivemos sempre solidários com as aspirações do vosso povo e em conjunto desenvolvemos ações de luta contra todo o gênero de arbitrariedades e actos repressivos do anterior regime colonial-fascista que ia desde a intimidação e assassinatos dos mais intransigentes defensores da Democracia e Independência Nacional14.
Evidencia-se, assim, pelas vozes dos sujeitos históricos que presenciaram a
realidade vivida - aqui privilegiada no âmbito da ficção - que o colonialismo foi um
inimigo comum a todos que quiseram defender a democracia, a liberdade individual e o
direito à autogestão das colônias.
Para Portugal, se os sentidos da Revolução dos Cravos se materializam com a
queda de quase meio século de ditadura Salazarista, em que todas as liberdades
incluindo as individuais passaram por um processo de privações que culminou na crise 14 O documento, em página única, pode ser conferido no Caderno de Anexos, Parte IV, p. 42.
78
de identidade discutida até hoje pela ficção portuguesa quando se romperam os laços
com a ditadura sem que o país estivesse alicerçado em um projeto sólido de
reconstrução política, o 25 de Abril significou para as colônias uma liberdade primeira
que proporcionou, mais tarde, a transformação dos relacionamentos político e cultural.
Com a derrocada do regime fascista nas ex-colônias portuguesas, cada uma das
novas nações - Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Angola e Moçambique -
passou pelo processo de reconstrução nacional assentado em novas bases políticas, bem
como pela reconstrução identitária calcada no novo indivíduo liberto do jugo colonial.
Entretanto, também essa reformulação nacional não esteve alicerçada em um programa
coerente com a realidade vivenciada, desde a estrutura fundiária até a representação
lingüística. A língua considerada oficial em detrimento às nacionais foi a língua da
matriz colonizadora, considerada a língua das decisões políticas e das relações
internacionais. Os complexos culturais centrados na potência colonizadora e nas
colônias, quando comparados, permitem-nos observar dois níveis distintos de formação
identitária: no primeiro, a metrópole teve de se desfazer do mito histórico para
recompor-se diante da realidade de estar sozinha no contexto internacional, com a sua
minimizada pequenez geográfica, enquanto, no segundo, as colônias precisaram
regressar à história para avaliar nas estruturas sociais em que medida as crenças
primitivas e o saber ancestral africano foram hibridizados, receberam influência, ou
modificaram a cultura do colonizador, e em que instância seriam estabelecidas as
relações políticas a partir de então.
79
Se, inicialmente, os manifestos convocavam os soldados e militantes pela
independência a se unirem em nome de uma causa e contra um inimigo comum,
quando alcançam a independência essa realidade transforma-se pela recusa, no ato da
autoridade, em dialogar com as diferentes vozes partidárias que se levantam
reivindicando o poder. No primeiro parágrafo do Programa do MPLA estabelecido em
1964 consta uma ação de protesto contra o inimigo comum que é o estado fascista, bem
como suscita jovens de todas as etnias a lutarem em nome da causa comum. Em
contrapartida, dez anos mais tarde, em manifesto datado de 22 de agosto de 1974, os
dirigentes do MPLA declaram guerra pela impossibilidade de conviver pacificamente
com outras facções opostas que não reconhecem a autoridade deste movimento como
legítima representante dos povos de Angola.
As estruturas do sistema colonial são semelhantes, o que já não ocorre com o
processo de descolonização desses territórios. Se os países africanos passaram pela
descolonização e, logo depois, incorreram em uma guerra civil que foi de
responsabilidade das colônias, em Timor Leste foi malograda a declaração de
independência e essa nação somente resgatou tal processo quase trinta anos mais tarde
que os países africanos de língua portuguesa.
Após vivenciarem os efeitos histórico-sociais ocasionados por 42 anos de Regime
de Exceção Democrática, os escritores portugueses, africanos lusófonos e timorenses não
cessam de exorcizar esse fantasma através da escrita. Em cada um desses locais de
cultura o autoritarismo se configurou de forma distinta. E as imagens mostradas na
80
ficção contemporânea são uma faceta (ou várias facetas) do “jogo a duas mãos que é a
fabricação do medo” (COUTO, 1999, p. 15).
A cessação do poder Salazarista no país-sede da CPLP corporifica a liberdade de
ação, porém, nas colônias, essa passagem histórica – essa linha limítrofe entre duas
independências – é o sinal verde para o início de uma outra batalha delimitadora dos
destinos das novas futuras nações africanas de língua portuguesa. Em Moçambique, o
dia 25 de Abril corresponde ao dia 25 de Junho quando a FRELIMO chega ao poder. Em
Timor Leste, corresponde ao dia 28 de Novembro de 1975 e, após a ocupação Indonésia
no mesmo ano, ao dia 20 de Maio de 2002, data da sua efetiva independência. Estas
datas, no entanto, num primeiro momento foram tão passageiras quanto a utopia dos
sentidos da Revolução. Quando os portugueses se retiraram do território timorense os
indonésios instauraram novo regime ditatorial que, em temos de perdas humanas, é
considerado mais arrasador que o primeiro, tanto que Portugal se torna parceiro de
Timor Leste no movimento pela desocupação Indonésia. Em Moçambique, quando
ocorre a conquista da independência com relação à metrópole insurge-se a guerrilha
interna iniciada por partidos políticos (e etnias) distintas na disputa pelo poder; em
outras palavras, tem início a Guerra Civil.
Se, por um lado, o Governo Salazarista conclama os soldados portugueses a
combaterem na África pela manutenção do regime, por outro, dissemina o racismo
contra os “pretos bárbaros” das colônias. É sabido que um regime autoritarista como o
impingido por António Oliveira Salazar subsiste através da criação e mantenimento de
um imaginário específico que o sustenta. Com relação à guerra colonial nas “províncias
81
ultramarinas” estas narrativas formavam a imagem de que os africanos guerrilheiros
eram agentes subversivos, bandidos armados prontos a exterminar os soldados
portugueses, a raça branca e a proclamada pátria considerada pelo regime “una e
indivisível do Minho ao Timor”.
Duas mensagens de soldados portugueses desertores e/ou capturados pela
FRELIMO comprovam a prerrogativa de que a guerra se mantém através da tessitura de
narrativas sustentadas e sustentáveis do regime. A mensagem de Fernando dos Santos
Rosa capturado “debaixo de fogo” pelos soldados da FRELIMO, em 11/11/1968,
salienta:
Aqui na FRELIMO é tudo igual: não há diferença dos soldados para com os superiores. Não é como os piratas portugueses. Pois os soldados da FRELIMO não comem ninguém [grifo nosso]; eles não estão a lutar contra o povo português, mas sim contra o Regime de Salazar, porque ele é fascista15.
O grifo foi pontuado especificamente sobre a afirmativa eles não comem ninguém,
porque parece ser esta a narrativa que se repete em governos fascistas, cujo objetivo é
despertar o medo e a ojeriza da população para tudo o que é contrário a esse sistema. O
depoimento surge não apenas como desmitificador de uma realidade criada, como
também ratifica o preconceito difundido pelos governos ditatoriais. Os movimentos de
esquerda, invariavelmente, eram considerados além de subversivos, instituições
15 Este excerto foi retirado de um documento pertencente aos arquivos da FRELIMO, que tem por título “Independência ou morte, venceremos”, coletado no Centro de Documentação 25 de Abril, da Universidade de Coimbra. A data que consta no documento é 11 nov. 1968, e este pode ser consultado às páginas 44-50 do Caderno de Anexos.
82
compostas por militantes que desenvolviam costumes bárbaros, componentes
associados na medida exata para a instauração do medo na sociedade civil.
Outro depoimento do soldado Américo Neves de Souza evadido do Quartel de
Mueda, em 13/10/1968, observa:
Porque não fazes como eu que fui pela razão e vi que estes homens que andam a lutar, que não é para matarem a raça branca [grifo nosso], mas sim querem que o governo português lhes dê o que lhes pertence, querem a liberdade, querem a sua independência porque desde que estas províncias têm estado debaixo do domínio português à população de raça negra tem sido tratada como escrava e por isso é que eles querem a liberdade16.
A fonte documental de onde foram extraídos os excertos acima se intitula
“Independência ou Morte, venceremos!” e é composta de duas partes: a primeira é um
chamamento feito pela FRELIMO aos soldados portugueses, esclarecendo as causas da
guerrilha e conclamando-os para a luta; a segunda apresenta declarações que os
soldados desertores e capturados prestaram, e que foram redirecionadas, via
transmissão radiofônica, aos colegas em exercício na tropa colonial.
Gláucia Gonçalves (GONÇALVES, 2000) lembra que se o colonialismo é
quotidiano na nossa sociedade e nos nossos discursos devemos ver nele um assombrar
feliz, necessário, esclarecedor, que faça com que o retorno do colonialismo passe a ser
um trabalho de memória não do que foi esquecido, mas daquilo que não se quer
esquecer17. Nesse sentido, passados mais de trinta anos das guerras coloniais na África
16 Op. Cit. Nota 15. p.46. 17 CAMPELO, Álvaro. Os refúgios da identidade. In: Gonçalves, António Custódio. Actas do Colóquio África Subsariana: multiculturalismo, poder e etnicidade. Porto: Universidade do Porto, 2001. p. 138.
83
avultam no mercado editorial português obras que dão conta da memória da guerra.
Surgem, nesse momento, por dois motivos específicos: primeiro, porque já há o
distanciamento necessário para voltar os olhos a esse passado com a isenção e a
compreensão necessárias, e, segundo, porque pelo desfiar da memória os ex-
combatentes podem exorcizar esse “fantasma” de terem, por obra de um regime,
participado de um assassínio. João de Melo no capítulo de abertura de Autópsia de um
mar de ruínas descreve a impressão de um jovem soldado atemorizado no campo de
batalha, o que ele vê e abate “não é um corpo em sua concreta forma definida, mas a
breve sombra de um vulto, sem corpo e sem cabeça – ou com ela estranhamente
suspensa e degolada, que é como todas as sombras se movem nas noites furtivas da
guerra” (MELO, 1997, p. 9). A cena retrata a mentalidade de um soldado que é instruído
a matar para não morrer. E a convicção da autodefesa imposta de que é preciso
exterminar o inimigo público é produzida, transmitida e difundida através das
elaborações discursivas arquitetadas pelos regimes fascistas.
O autoritarismo manifesta-se de variadas formas, no âmbito histórico-cultural
através da imposição de uma língua sobre as demais, ou mesmo pela difusão de idéias
contraditórias ou inverossímeis; no âmbito humano-social pela violação física do ser
humano desde o cerceamento das liberdades até à tortura e à morte. A ficção
contemporânea lusófona, sobretudo a literatura dos países africanos de língua
portuguesa e de Timor Leste, aponta e denuncia essa prática.
84
Há diferentes escalas com relação ao exercício da dominação. No caso específico
do Brasil, por exemplo, em que o fator colonização se encontra mais distante e melhor
resolvido do que nos países africanos lusófonos e em Timor Leste há um distanciamento
temporal que permite que o Brasil tenha se desenvolvido como nação independente com
valores próprios e uma identidade diferenciada. Esse mesmo distanciamento não é
privilégio das jovens nações africanas que, além de terem sofrido com a colonização,
sofreram com o processo de descolonização. Este, primeiramente, gerou uma guerra
com a metrópole e, posteriormente, uma guerra entre facções internas pela disputa de
poder. Ambas afetam diretamente a integridade humana produzindo perdas
irreparáveis para o cidadão, para as famílias e para a nação. Qualquer delas teve o abuso
da violência do homem contra o homem e o sacrifício das relações interpessoais.
As relações entre os países africanos de língua portuguesa e Portugal no cenário
contemporâneo estabelecem-se pacificamente, mas isso não significa que o
ressentimento histórico tenha sido esquecido. As relações estabelecidas são
diplomáticas, sobretudo no que tange ao apoio financeiro dado aos estudantes africanos
e timorenses, como também ao apoio interinstitucional e político-educacional. No meio
acadêmico, por exemplo, são inúmeros os trabalhos nas áreas das ciências humanas que
tentam dar conta dessa questão: da lusofonia como projeto, como história e como
questão posta.
Entretanto, também podemos destacar que, como projeto, há ainda muito para
ser implementado nessas relações culturais, pois quando se tratam de questões
burocráticas a CPLP ainda não funciona como possibilidade de mútua interação.
85
Pepetela queixa-se, em uma entrevista, que se a CPLP funcionasse na prática um
cidadão angolano não precisaria ter visto para entrar em Portugal, mesmo que se tratem
de nações distintas. Acrescentamos à crítica de Pepetela a seguinte reflexão: será mesmo
necessário num mundo em que se discute a diluição de fronteiras, os locais da cultura e
a geografia das diásporas que um cidadão integrante de qualquer país-membro da
CPLP precise cumprir tantas formalidades?
Seguindo o fio condutor das relações dos países-membro da CPLP com sua
metrópole há o caso de Timor Leste que estabelece uma relação de retorno ao solo
paterno. Uma vez desconectado desse território em 1974, em virtude da Revolução dos
Cravos, o Timor Português passou pela amarga experiência da recolonização pela
Indonésia, cuja ação tentou minar o uso da língua portuguesa recentemente retomada
em território timorense. Assim sendo, a relação que se estabelece entre timorenses e
portugueses é diferente daquela estabelecida entre africanos e portugueses, pois
Portugal ainda colaborou com o processo de descolonização indonésia e serviu como
asilo político aos estudantes e cidadãos timorenses que fugiram do domínio indonésio.
Atualmente há incentivo do governo português para os estudantes timorenses na forma
de departamentos em instituições portuguesas que cuidam somente da questão de
Timor Leste. Assim, trata-se de uma relação de parentesco interrompida que se volta a
estabelecer depois de tantos anos com uma carga elevada de emotividade e, porque não
acrescentar, de culpa.
86
3.2 TIMOR LESTE: INDEPENDÊNCIA E FORMAÇÃO IDENTITÁRIA NO
MUNDO DA DIÁSPORA
Falar em Timor Leste, ainda hoje, exige situá-lo na linha da história e na geografia
do globo uma vez que este é um espaço desconhecido: um país tropical, uma nação com
história recente de colonização e desterritorialização, um país integrante da CPLP, um
território plurilingüístico, uma nação jovem, uma cultura integrante do mundo
lusófono, mas, apesar disso, um local que se encontra à margem dessa formação
cultural.
Situada no sudeste asiático, a parte leste da ilha de Timor conquistou a
independência definitiva no ano de 2002 após 24 anos de investida Indonésia no
território. Seu presidente José Alexandre (Kay Rala) Xanana Gusmão foi o líder
guerrilheiro da resistência timorense e hoje comanda o país que, passada a transição
democrática, recebe auxílio do comitê de desterritorialização das Nações Unidas. A
violência da colonização Indonésia em Timor Leste foi intensa, tanto que ao saírem do
país, os militares indonésios deixaram-no literalmente por reconstruir. Nessa
reconstrução nacional imbuída de uma formação identitária coletiva os países
integrantes da comunidade de língua portuguesa têm sido parceiros constantes.
A reestruturação do país passa por vários estágios evolutivos que variam desde a
arrecadação de verbas públicas para a reconstituição dos prédios destruídos, até a
escolha da língua que é um importante traço identitário da nação. Essa escolha não
recaiu certamente sobre as quinze línguas étnicas ramificadas em múltiplos dialectos
87
locais (HULL, 2002), mas, sim, sobre o português que é a língua da cultura assimilada e
sobre o tétum, a língua da cultura genuína. Ambas coexistem ainda com a bahasa
Indonésia, imposta durante o último período de ocupação e o inglês utilizado pela
proximidade geográfica com a Austrália e que é língua em que se desenvolvem as
relações políticas.
Em um estudo intitulado "Imaginar Timor Leste18”, Benedict Anderson trata da
questão do nacionalismo timorense em oposição – e, ao mesmo tempo, em
conformidade - ao nacionalismo indonésio: nacionalismos que se formam antes de
nações, como o vivenciado pelos países africanos de língua portuguesa. A língua que é
eleita ou imposta em detrimento das línguas nativas também pode ser a língua da
libertação. O holandês por uma geração inteira foi a língua que permitiu aos indonésios
tomarem conhecimento para além das fronteiras do país, possibilitando o acesso ao
mundo moderno. Assim, em Timor Leste, o tétum que foi eleito como língua oficial ao
lado do português também possibilitou à nova nação o acesso à identificação. O tétum
resgatado pela igreja católica foi responsável, em primeira instância, pelo fato de os
timorenses imaginarem a si mesmos através de um elemento oriundo da cultura
ancestral do território.
Benedict Anderson salienta que esse fato pode ter sido responsável pelo fracasso
da República da Indonésia em absorver Timor Leste, já que possuem uma matriz
cultural semelhante. Destaca o autor que a própria divisão da ilha de Timor, datada de 18 ANDERSON, Benedict. “Imaginar Timor Leste”. Tradução de Osvaldo Manuel Silvestre, Lisboa, reproduzido de Ciberkiosk e de Arena Magazine, abr-maio 1993. http://www.udc.es/dep/lx/cac/sopirrait>. Disponivel em: 05 dez. 2003.
88
1859, é arbitrária, não tendo razão expressa seja ela territorial, lingüística, cultural ou
étnica, de existir. Integram o domínio timorense: o território de Timor Oriental que tem
capital em Díli, o enclave de Oecussi e a ilha de Ataúro. O primeiro argumento do autor
no sentido de elucidar, porém não esclarecer essa questão centra-se na relação que a
Indonésia estabelece com Timor: a Indonésia não conseguiu imaginar os timorenses de
leste como indonésios. As suas relações foram de colonizador a colonizado, dando
origem ao nacionalismo timorense, assim como o colonialismo holandês em outros
tempos deu origem ao nacionalismo indonésio.
O autor questiona a possibilidade de imaginar Timor Leste pelo fato desta nação
ter um agrupamento étnico diverso e uma multiplicidade lingüística além de ser um
território contíguo à Indonésia e marcado pela cultura ocidental. Uma das explicações
possíveis, mas que não encerra a questão foi conferida pelo General Costa Gomes em
depoimento oficial no ano de 1992. Diz ele que o que justifica o desenvolvimento do
nacionalismo timorense tem origem na força bruta exercida pelos indonésios na região:
se o exército indonésio não tivesse sido tão opressivo e explorador, não haveria o
desenvolvimento da resistência e da conseqüente independência. O que não fica
respondido com essa afirmativa é o motivo da repressão oriunda da Indonésia, uma vez
que também aquele país foi vítima da repressão holandesa, que deu origem ao
nacionalismo indonésio, que por sua vez resultou na desvinculação do território do
domínio holandês.
A cultura, a língua e os traços étnicos aproximam indonésios e timorenses,
entretanto, o isolamento a que foi submetido Timor quando da ocupação portuguesa
89
afasta-os, pois os distancia enquanto possibilidade narrativa - história comum (memória
e esquecimento), passado e língua comuns. A questão que importa, nesse caso, reside
em como recompor a narrativa nacional popular de modo a incorporar nela os
timorenses do leste. Não se trata apenas de Timor não se enquadrar no nacionalismo
indonésio, trata-se também dos indonésios não imaginarem os timorenses como seus
irmãos.
A repressão e a falta de unidade entre o governo indonésio e Timor foi tamanha
que os indonésios para visitarem Timor - uma parte do seu próprio país - precisavam de
autorização especial. Os visitantes estrangeiros e o exercício do jornalismo eram
reprimidos em Timor Leste, bem como a cobertura jornalística indonésia no que
respeitava ao território sob domínio. Ficava, assim, mais fácil não pensar o território
colonizado como co-irmão.
Enquanto a Indonésia esteve sob dominação holandesa por quase três séculos,
antes de desenvolver seu nacionalismo que deu prosseguimento à independência, Timor
Leste teve uma ascensão nacionalista mais rápida. A forma de compreensão do
nacionalismo timorense talvez tenha sido apreendida da mesma forma como foi
apreendido o nacionalismo indonésio: através da educação-repressão-desenvolvimento.
No primeiro caso, foi a partir da educação em moldes holandeses partindo da língua à
conscientização política que os indonésios tomaram consciência de si e da cultura
inerente ao seu caráter nativo. No caso timorense ocorreu algo semelhante com a
diferença de que a demarcação entre Timor Oriental e Ocidental é uma linha aérea feita
a lápis no mapa de Mercator.
90
Essa foi uma das primeiras manifestações de caráter nacionalista adotada pela
jovem nação: definir-se enquanto estado autônomo e não mais como território
integrante do imaginário português que, durante o período de colonização, referia-se à
colônia como ilha de Timor, Timor Português ou simplesmente Timor.
A história do nacionalismo timorense se constrói de forma ressentida com relação
ao colonialismo português - embora esse ressentimento esteja um tanto distante, devido
ao ressentimento recente, com relação à Indonésia -, assim como a história do
nacionalismo indonésio, às questões holandesas. Em 1975, o exército indonésio admitia
existir um pequeno número de descontentes entre a população do Timor. Um profundo
sentido de identidade comum emergiu do véu do estado colonial, afirma Benedict
Anderson, não apenas neste território, como também nas nações africanas de língua
portuguesa. A repressão e a uniformização que tentam os estados totalitários ao
contrário do que se espera chamam atenção para a alteridade mais do que para a
identificação.
Ao tentar transformar timorenses animistas em indonésios católicos, a República
da Indonésia favoreceu o desenvolvimento de uma relação direta entre Vaticano e
Timor Leste que, analisando assim, trouxe benefícios importantes à história da
libertação timorense. Uma vez tendo decidido dialogar com Timor passando por cima
da hierarquia da Igreja Católica Indonésia, a Igreja de Roma privilegiou uma minoria
étnico-cultural e elegeu o tétum em detrimento do indonésio, que era a língua oficial,
transformando o caráter cultural desse povo ao dar-lhe uma identificação através da
língua e da religião comuns. Esse sistema embora não seja novo, pois já foi observado
91
em estágio anterior ao nacionalismo moderno, segundo Anderson, substituiu o estágio
de evolução do nacionalismo pelo capitalismo editorial. Afinal, em Timor Leste, a
iliteracia era predominante, bem como o desenvolvimento da imprensa era precário. O
próprio surgimento da literatura de protesto escrita em língua portuguesa ocorre na
esteira da formação e determinação de um protesto e de uma identidade a ser
reconhecida pelo exterior. Construir a imagem de nação timorense através da literatura
veiculada em língua portuguesa num território onde ainda havia a divergência quanto
ao uso da língua nacional, cuja utilização foi interrompida durante a invasão Indonésia,
significa assumir um lugar de enunciação do discurso contrário ao discurso oficial
homogeneizante e opressor.
Ao referir-se a Timor Leste, Benedict Anderson afirma que esse é um caso em que
existe nacionalismo antes de nação. A conquista da independência definitiva, que eleva
o território à condição de República Democrática de Timor Leste, ocorre somente em
2002. Entretanto, as lutas internas pela independência, bem como o processo de
descolonização começam pela expansão da identificação étnica local e da diferença
étnica territorial com relação à Indonésia.
No contexto atual, ao pensarmos na literatura dos países com história de conflito
bélico recente, compreendemos a importância da expressão da memória de combate,
pois ela marca a origem do desenvolvimento nacional. Ao contrário do que se poderia
supor – e historicamente já foi parâmetro de avaliação -, a situação belicosa dos países
em descolonização não os exime da expressão literária, pelo contrário, é também a
literatura e, por meio dela, a palavra que materializa o caráter político da nação. A
92
especificidade que compõe tal literatura, mesmo inserida num contexto maior, o da
língua portuguesa, e num cânone já instituído, ela contêm elementos que a distinguem
do conjunto cultural, dentre outros motivos por uma peculiaridade histórica que nesse
âmbito a aproxima e no contexto cultural a distancia. A mesma especificidade histórica
que aproxima essas literaturas como nascentes, marginais ou adjetivadas as distancia do
conjunto a que pertencem no cenário cultural de seus respectivos países.
A construção do imaginário timorense desenvolve-se pela expressão da memória
da resistência estabelecida a partir do que é comum lembrar e do que é comum e
imprescindível esquecer. O suporte material de construção do novo imaginário é a
língua portuguesa, uma vez que as poesias de protesto, a propaganda política pró-
independência, e as novas narrativas da identidade são, primeiramente, escritas em
português, para, num segundo momento, serem traduzidas para o tétum. O lingüista
Geoffrey Hull (HULL, 2002) alerta para a necessidade de convivência entre as duas
línguas da identidade timorense e, desse processo, enquanto construção permanente,
privilegiar a tradução dos documentos, livros, discursos e imprensa, para ambas as
línguas correntes no território, deixando a bahasa indonésia para as relações comerciais e
o inglês para as decisões políticas, já que a posição histórico-geográfica de Timor impõe
a coexistência destes vernáculos no território.
Se a língua portuguesa é retomada como oficial nesse território, ao lado da língua
franca timorense depois de um processo autoritário, cujos mecanismos opressores
destituíram da fala quotidiana o uso do português, é porque um dos traços identitários
da consciência timorense é o da sua integração ao mundo lusófono. Também o uso do
93
tétum direcionado para a comunicação interétnica foi prejudicado durante a referida
ocupação, porque esse vernáculo é marcado por aproximadamente 30% de palavras
extraídas da língua portuguesa compondo uma mestiçagem impossível de conter
durante quatro séculos de experiência colonial.
Ao estudarmos a literatura de Timor Leste encontramos nomes de autores que,
sem serem internacionalmente conhecidos, são os expoentes da expressão nacional de
uma nação em processo de construção identitária. São eles que traçam a cartografia da
identidade timorense, expressando em língua portuguesa a memória de combate, da
resistência civil ou armada, ou recuperando na narrativa o imaginário colonial sob a
ótica do sujeito pós-colonial. Este sujeito embora reconheça e não negue seu passado
colonial, pelo contrário, com ele se identifica pela matriz cultural da língua especifica no
imaginário que constrói, por que é timorense e não português ou indonésio.
Xanana Gusmão19, João Aparício20, Borja da Costa21, Fitun Fuik22, Jorge Lauten e o
diplomata José Ramos Horta23 são poetas alguns dos quais com história na resistência
civil ou armada, cujas obras expressam momentos de angústia pela iminência da morte,
pela dor da perda, e pela violência infringida nos abusos cometidos; entretanto, também
incluem nesse imaginário a noção de esperança, o convite à resistência e a idéia de
19 GUSMÃO, Xanana. Mar Meu. Poemas e pinturas My Sea of Timor. Poems and paintings. Porto: Granito, 1998. É autor também do livro Timor Leste: um Povo, uma Pátria, publicado pela editora Colibri. 20 APARÍCIO, João. À janela de Timor. Lisboa: Caminho, 1999. O livro tem prefácio de Sophia de Mello Breyner Andresen. 21 Borja da Costa é autor da composição “Pátria”, hino nacional de Timor Leste. O autor foi morto no mesmo dia da invasão Indonésia a Timor Leste, em 07 dez. 1975. 22 O autor, assim como Jorge Lautem, participa em algumas antologias poéticas de escritores timorenses, mas não possui obra publicada. 23 José Ramos Horta recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1996, juntamente com o Bispo D. Ximenes Belo, pelos seus esforços na condução pacífica para a libertação de Timor Leste.
94
futuro. Se Xanana Gusmão e João Aparício escrevem do local de onde falam, Fernando
Sylvan24 e Luís Cardoso são escritores na diáspora, e Ruy Cinatti25 e José Leon
Machado26 são escritores que adotaram Timor como tema, escrevendo sobre a terra, do
exterior.
José Leon Machado, em Braços quebrados, narra a história de um padre timorense
em Portugal. Em um dado momento da história percebemos que o que de fato importa é
menos o desenrolar da história do que o contar a história recente de Timor Leste, desde
o massacre de Santa Cruz, em 1991, até as lutas independentistas, passando pela
libertação de Xanana Gusmão, e pelos comícios pela libertação de Timor, ocorridos em
Lisboa.
A primeira narrativa de Luís Cardoso, Crônica de uma travessia, tem apresentação
de José Eduardo Agualusa intitulada “como se fosse um prefácio”. As primeiras
palavras pronunciadas por Agualusa merecem, por si, uma consideração à parte. O
autor se refere no texto introdutório ao resgate da memória do Timor Português num
país desacompanhado pelas letras, pela alfabetização e pela preservação da cultura.
Nessa nota, três questões são importantes para discutir a relação entre os países de
língua portuguesa ou, ao menos, para lançar sobre a questão um novo olhar. A primeira
é o já mencionado resgate da memória, num território que há pouco tempo era um lugar
distante no cenário internacional.
24 SYLVAN, Fernando. A voz fagueira de Oan Timor. Lisboa: Colibri, 1993/ SYLVAN, Fernando. Contolenda maubere. Lisboa: Fundação Austronésia Borja a Costa, 1988. 25 CINATTI, Ruy. Motivos artísticos timorenses e Sua integração. Lisboa: Museu de Etnologia, 1987/ CINATTI, Ruy. Um cancioneiro para Timor. Lisboa: Presença, 1996. 26 MACHADO, José Leon. Braços quebrados. Braga: Edições Vercial, 2003.
95
A obra de Luís Cardoso é assumidamente autobiográfica, como de antemão
anuncia Agualusa. Dividido em 11 capítulos que começam a ser narrados a partir do
mês de junho do ano de 1990. O autor constrói sua narrativa, cronologicamente,
seguindo uma linha evolutiva que chega ao Timor contemporâneo pós 25 de Abril.
Nesse crescente, há simultaneidade do nascimento de novas nações: as africanas de
língua portuguesa. Muito embora se portem de forma diferenciada, Timor e as nações
africanas frente a Portugal, suas histórias de colonização são consentâneas, como
também a história de libertação deveria ser. Todas as histórias apresentadas na obra são
histórias de separação.
A segunda questão é a idéia de cultura que se verifica nas novas literaturas
lusófonas. Agualusa fala sobre a importância de fazer literatura sem se deixar
impregnar por elementos ou tendências que não fazem parte do universo da cultura
africana e asiática. E, por fim, ele se refere à literatura como “um território culturalmente
integrador, construído a partir de inúmeros encontros”, e cita este espaço onde se
encontram cabo-verdianos, portugueses, guineenses e angolanos como sendo o “espaço
refundador da lusofonia” (AGUALUSA apud CARDOSO, 1999, p. 10). Tal idéia nos
remete a uma nova forma de pensar a lusofonia através das literaturas nascentes dos
países lusófonos, ainda distantes de uma tradição literária e cultural como se apresenta
o caso de Timor Leste.
Por isso, ao nos debruçarmos sobre a literatura desse jovem país precisamos
considerar elementos que não remetem somente à questão política de libertação recente,
96
mas à geografia peculiar e distante dos demais países integrantes da CPLP ou do mundo
lusófono.
Boaventura Souza Santos (SANTOS, 1999) ao perseguir o mesmo pensamento
quando se refere aos povos colonizados, aponta que a ausência de documentação ou,
mais propriamente, a ausência de história faz com que facilmente se formem os mitos de
fundação nacional, uma vez que não existe uma história ou documentação que os
descredite.
Segundo Maria Alzira Seixo, em “A transversalidade das marginalizações”,
crítica à obra Crônica de uma travessia, Timor Leste ascendeu à primeira linha da
consideração mundial principalmente pela “modalidade nacional que os Estudos
Literários atribuem a tal fenômeno, em áreas atualmente muito em voga como a Teoria
da Tradução e a História Literária de índole comparatista”27 pela condição de periferia.
O caráter de marginalização nacional a que estão sujeitas as literaturas oriundas dos
países do terceiro mundo ocorre por uma condição que é, sobretudo, político-
econômica, direcionada, no mais das vezes, pelo processo histórico do imperialismo
econômico movido pelas nações primeiro-mundistas. Referindo-se à condição de
periferia diz Maria Alzira Seixo que “curiosamente emparelha num mesmo bloco de
entidades a comunidade timorense e a comunidade lusa28”. O espaço de periferia
associada à nação portuguesa evidencia-se em pelo menos duas instâncias: a geográfica,
com relação aos demais países europeus, e a cultural da língua portuguesa, que, de toda
27 SEIXO, Maria Alzira. A transversalidade das marginalizações. JL Letras, Lisboa, 25 fev. 1998. p. 24. 28 SEIXO, Maria Alzira. Op. Cit. Nota 28. p. 24.
97
a sorte, ainda ocupa um lugar de periferia com relação às línguas de cultura inglesa,
francesa e espanhola.
A condição de periferia geográfica também afeta a inserção de Portugal nas
comunidades (ou blocos econômicos) contemporâneas. Por um lado, há a comunidade
européia, sendo a entrada tardia de Portugal resultado dessa situação periférica. Esta
mesma inserção numa realidade econômico-social da qual está distanciado causa um
estranhamento cultural de uma comunidade conservadora e ainda centrada na
manutenção de mitos (ou fatos) históricos, e outras culturas que não tendo sofrido o
isolamento cultural, político e econômico vivenciado por Portugal, durante o período
Salazarista, deram continuidade à modernização inerente ao mundo da Globalidade. É
sabido que a transformação social deve começar de dentro para fora através da
modificação do comportamento da sociedade e, dentro dela, de cada um dos seus
indivíduos, pois são eles que, por vezes, mostram-se atônitos diante da velocidade da
transformação cultural a que estão expostos. E, enquanto esse preparo não for
consolidado a presença de Portugal na C.E.E. continuará sendo parcial no sentido de
que não se efetiva sócio-culturalmente.
Portugal como âncora da Comunidade Lusófona que se une, sobretudo, pela
herança cultural legada pela empresa colonizadora é a matriz cultural e o centro
irradiador de cultura para os demais países-membro. Se em uma comunidade o país
está na esteira das relações, em outra está na vanguarda cultural justamente pela
condição geográfica de pertencimento ao continente europeu, de onde os cânones se
formam através da participação na Comunidade Européia. Maria Alzira Seixo, nesse
98
sentido, enfatiza que a obra de Luís Cardoso salienta “o reconhecimento da literatura
portuguesa como fenômeno cultural periférico” 29.
Sobre a formação histórica de Timor Leste importa mencionar que o massacre
desse povo pela Indonésia não é um fato novo na linha da história, mas de todos os
casos citados, incluindo os africanos lusófonos, é o que mais recentemente foi
experimentado diante dos olhos (um pouco) perplexos da comunidade internacional. A
diferenciação, entretanto, é que durante os períodos de expansão ultramarina nos
séculos XV e XVI a tomada dos territórios justifica-se pelo período histórico
expansionista motivado pela exploração dos recursos naturais e comerciais de
possessões distantes, evangelização, intercâmbio cultural e dominação territorial. Como
se justifica, igualmente, sua permanência durante os regimes fascistas. Na
contemporaneidade, quando se intercambiam conceitos e culturas (como também o
conceito de cultura) é incompreensível que o mundo assista a essas e a outras invasões
territoriais em que a subjugação cultural assegure a soberania das relações políticas.
Tzvetan Todorov, ao discutir o estranhamento cultural por que passaram as
novas colônias americanas no encontro com a cultura européia salienta que a noção da
existência do outro como elemento de cultura distinta só existe a partir de si, diz ele:
“somente o meu ponto de vista, segundo o qual todos estão lá e eu estou só aqui, pode
realmente separá-los e distingui-los de mim” (TODOROV, 1999, p. 3). Assim, podemos
conceber os outros como uma abstração, como uma instância da configuração psíquica
de todo indivíduo como o outro que é simplesmente alheio a mim, ou como outro em
29 SEIXO, Maria Alzira. Op. Cit. Nota 28. p. 24.
99
relação a mim. Tomando como ponto de partida esse ponto de vista sobre a alteridade
cultural, Tzvetan Todorov define a descoberta da América como sendo o caso de maior
estranheza de um elemento em relação ao outro, em que o choque cultural assegurou a
legitimidade do genocídio praticado, considerado por ele como sendo o maior da
história da humanidade. Apesar disso, ou também por isso, é desse encontro que
descende a nossa identidade cultural.
Do genocídio praticado nas Américas para a realidade vivenciada pelos 845.000
habitantes de Timor Leste há pouca diferença. Em apenas um ano de dominação
Indonésia o censo demográfico realizado registrava um déficit populacional de 97.000
timorenses. Acrescente-se a ocasião de assistirmos a esse fato na contemporaneidade,
que materializa o que Artur Marcos (MARCOS, 1995) diz ser o sentimento da
perplexidade que nos assola quando pensamos (se pensamos) em Timor. O
desdobramento histórico da resistência maubere bem como a guerra colonial e civil nos
países africanos de língua portuguesa tem sido um motivo constante na ficção em língua
portuguesa, em especial nas obras de Luís Cardoso e Mia Couto, cujas narrativas
servirão de suporte às análises literárias desenvolvidas nesta tese.
100
4 A NORMA DA ERRÂNCIA: NARRATIVAS DE MIA COUTO
Muito oralmente:
nnnota sobre literatura no país de madeira e zinco
ossa análise da obra do escritor moçambicano Mia Couto considerou
como relevantes os preceitos abordados pelo autor sobre o processo
criativo e o cenário social. Partindo do que foi privilegiado na auto-apreciação de sua
obra (como o autor se posiciona diante do ato criador), procuramos examiná-la à luz de
algumas teorias embasadas nos Estudos Culturais. Os elementos integrantes do
universo dinâmico textual recorrentes no discurso fundador foram extraídos de
entrevistas concedidas ao longo do percurso literário de Couto. Nessa recolha foi
possível observar como sua escrita responde e representa a memória dos combates
(pessoais e coletivos) vivenciados pela nação moçambicana, a fotografia do local de
onde o sujeito criador fala, e qual seu posicionamento ideológico frente a essa realidade
calcada no saber tradicional, sócio-culturalmente distinto do patrimônio literário
europeu. As obras que direcionaram a análise foram: Vozes anoitecidas, primeiro livro de
contos cuja temática está centrada no cenário que presenciou os desdobramentos da
guerra colonial; Vinte e zinco, romance voltado para os antecedentes e as repercussões da
Revolução dos Cravos em Moçambique; Terra sonâmbula, primeiro romance cujo
potencial dramático evoca a topografia da devastação provocada pela guerra civil, e
Estórias abensonhadas, recolha de contos escritos após a guerra civil em Moçambique.
N
101
O objetivo primeiro desta análise foi pensar a literatura nascente partindo das
reflexões publicamente questionadas sobre o estudo da literatura pós-colonial
(preferimos a referência pós-fundacionista), confrontando-as com a representatividade
social que é outorgada a essas narrativas sem minimizar os elementos considerados pela
crítica profissional. Os fragmentos de jornais e as discussões fundamentadas no discurso
autoral, entretanto, são veiculações públicas do processo de constituição de uma jovem
literatura, cujo alcance é de maior abrangência que o desenvolvido pela crítica
acadêmica. Assim, é possível discutir a literatura africana conforme se solidifica seu
processo editorial - pois também ele conta a história desses romances através da luta
diária pela publicação.
4.1 ESCRITA LITERÁRIA E CRÍTICA PROFISSIONAL OU TEMÁTICA NÃO É
BARCO NAVEGÁVEL A LUGAR ALGUM
O escritor Mia Couto, pseudônimo literário de António Emílio Leite Couto, tem
hoje 50 anos e vive em Moçambique, onde exerce a profissão de biólogo. Foi durante 14
anos jornalista por indicação da FRELIMO, repórter da Tribuna, diretor da Agência de
Informação de Moçambique, da revista Tempo, do jornal Notícias de Maputo e
correspondente da Academia Brasileira de Letras, desde 1988. É filho do poeta e
jornalista português Fernando Couto, também residente em Moçambique.
A ascendência portuguesa, por um lado, liga-o às estruturas sócio-culturais do
velho mundo, porém, por outro, a vivência moçambicana transforma-o numa voz
102
representante do cenário marcado pela colonização e pelo assimilacionismo de uma
nova cultura que, a partir da integração com a alteridade, torna-se mista, híbrida,
heterogênea e multicultural. Se sua escrita se quer universal, o cenário representado
parte do regional, que é Moçambique, um local que precisa ser descrito, porque é
desconhecido do simbólico universal. Cada história contada pelo autor carrega parte da
tradição calcada no saber ancestral transmitido por gerações e aperfeiçoado pelos
séculos. Cada drama narrado aproxima a história restrita do indivíduo que a sofre da
comunidade imaginada de indivíduos que partilham o mesmo drama, quer por
experiência, quer por identificação de cariz ideológico.
A carreira artística de Mia Couto começa em 1983, com o lançamento do livro de
poesias Raiz de orvalho30, em Maputo. Essa obra obteve curta tiragem e as edições
posteriores que saíram a partir de 1999 foram reeditadas pela Editorial Caminho,
responsável pela veiculação da obra de Couto em Portugal. Trata-se de uma coletânea
de poemas que quantitativamente apresenta quadros temáticos calcados na expressão
da subjetividade em detrimento de poesias esparsas dirigidas ao cenário social. Em
1999, quando foi relançado com o novo título Raiz de Orvalho e outros poemas31 sofreu a
interferência do autor que diz, no prefácio a essa edição, ter retirado algumas poesias
com as quais não mais se sentia identificado, ou não reconhecia sua escrita. Observamos,
na coletânea, uma mescla da subjetividade poética que remete do universo individual ao
universo coletivo ou cenário social, sendo o primeiro mote bastante mais representativo
30 Livro lançado por Cadernos Tempo, em Moçambique, no ano de 1983. 31 Lançado pela Caminho em 1999, com poemas datados da década de 80, e alguns títulos preservados da obra original lançada em Moçambique.
103
do que o primeiro do ponto de vista quantitativo. Talvez, por isso mesmo, Mia Couto
diga que não se reconhece nessa obra, pois sua carreira literária enveredou,
primeiramente, para a via da prosa: do conto ao romance, passando por rápida e
singular experiência pela crônica num livro datado de 1986, intitulado Cronicando32 (que
são crônicas publicadas ao longo da passagem de Mia Couto pelo jornal Notícias), e, na
seqüência, para a representação quase massiva do cenário social através da sua obra
ficcional.
A contar de 1986 e da estréia poética do autor (vale lembrar que a tradição
literária fundacional moçambicana Pré-Independência é marcada pelo universo poético,
enquanto que a tradição angolana, pelo universo da prosa) foram já 15 livros lançados,
sem contar a produção teatral – que, como diz Mia Couto, é o seu contato mais próximo
com o público -, e a produção infantil, não privilegiada neste trabalho. Os títulos são:
Vozes anoitecidas33 (1986), Cada homem é uma raça34 (1990), Terra sonâmbula35 (1992),
Estórias abensonhadas36 (1994), A varanda do frangipani37 (1996), Contos do nascer da terra38
32 Cronicando foi publicado em 1986 pelo Jornal Notícias de Maputo, em 1989 pela Caminho, e em 1999 pela N’Djira. Recebeu o Prêmio Anual de Jornalismo Areosa Pena, atribuído pela Organização dos Jornalistas Moçambicanos, em 1989, e tem seus direitos cedidos até o momento para quatro países que são: Chile (LOM – América Latina), Espanha (Txalaparta), França (Albin Michel) e Itália (IBIS). Informações obtidas pelos registros disponibilizados pelos arquivos da Editorial Caminho. 33 Em 7ª edição, tem direitos cedidos para cinco países, a saber: Bélgica (Houtekiet), Espanha (Txalaparta), França (Albin Michel), Itália (Lavoro), Reino Unido (Heinemann). Por esta obra Mia Couto recebeu o Grande Prêmio da Ficção Narrativa de Moçambique, em 1990, e da Associação Paulista de Críticos de Arte, em 1995, como melhor romance estrangeiro. 34 Em 9ª edição tem duas cedências de direitos: França (Albin Michel) e Reino Unido (Heinemann). 35 Já em 8ª edição, tem direitos cedidos para 10 países: Alemanha (Dipa), Bulgária (Panorama), Dinamarca (Hjulet), Espanha (Alfaguara), França (Albin Michel), Grécia (Aiora), Itália (Ugo Guanda), Noruega (Aschehoug), Países Baixos (Ambo), Suécia (Ordfront). Por esta obra Mia Couto recebeu o Prêmio Nacional de Ficção da Associação de Escritores Moçambicanos, em 1995. 36 Atualmente em 6ª edição. Sem cedência de direitos, conforme dados obtidos pelos arquivos da Editora. 37 Em 7ª edição, têm direitos cedidos para sete países: França (Albin Michel), Itália (Guanda), Reino Unido (Serpent’s Tail), Suécia (Ordfront), Alemanha (Alexander Fest), Andorra (Limits), Noruega (Aschehoug).
104
(1997), Mar me quer39 (1997), Vinte e zinco40 (1999), O último vôo do flamingo41 (2000), Na
berma de nenhuma estrada42 (2001),Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra43 (2002), O
país do queixa-andar44 (2003), O fio das missangas45 (2004), Pensatempos46 (2005).
Em Portugal a obra de Mia Couto é publicada pela Editora Caminho, em Maputo,
em 1983, saiu pela Revista Tempo; em 1985, pela Associação dos Escritores
Moçambicanos (AEMO) e, recentemente, pela Editora N’Djira47, empresa da qual o
autor também é sócio. No Brasil, alguns livros de Mia Couto foram editados,
primeiramente, pela Nova Fronteira donde saíram os seguintes títulos: Cada homem é
uma raça, Terra sonâmbula e estórias abensonhadas, já seu último romance Um rio chamado
tempo, uma terra chamada casa foi lançado em 2002, pela Editora Cia das Letras, que
também lançou, em 2005, O último vôo do flamingo.
Não é uma tarefa amena ser um escritor em Moçambique, um espaço geo-físico e
sócio-cultural carente de recursos financeiros - como declara António Loja Neves em
38 Obra em 5ª edição, sem cedência de direitos, conforme dados da editora. 39 Obra em 8ª edição, sem cedência de direitos, conforme dados da editora. 40 Obra em 2ª edição, sem cedência de direitos, conforme dados da editora. 41 Obra em 4ª edição, com direitos cedidos a Reino Unido (Serpent’s Tail), Espanha (Alfaguara) e Suécia (Ordfront). 42 Obra em 3ª edição, sem cedência de direitos autorais. 43 O romance está em 3ª edição, e foi o primeiro a ser lançado, no Brasil, pela Editora Cia das Letras, outros títulos anteriores foram lançados pela Editora Nova Fronteira. 44 Este livro de crônicas foi editado pela N’Djira, em 2003, com a tiragem de 500 exemplares. É, dos livros de Mia Couto, o menos comentado. Os temas abordados nessa obra dizem respeito ao quotidiano político moçambicano, e a crítica do autor, a esse respeito, é cáustica, pessimista, irônica. 45 Lançado em março de 2004, e em dezembro do mesmo ano já se encontrava em 4ª edição. 46 Lançado em abril de 2005, e é o primeiro livro do autor que não privilegia o universo da ficção, mas reflexões críticas sobre a sociedade de onde provém seu ato criador. 47 Editora da qual Mia Couto também é sócio e que é apoiada (em parceria) com a Caminho. O livro de estreia da N’Djira (ou Nidjira) foi A varanda do Frangipani, em 1996.
105
entrevista com Mia Couto48, em 1988, num local em que não havia dinheiro para a
compra de papel para edição de livros escolares em quantidade suficiente à demanda,
menos ainda restava para serem editados livros de ficção. Há obras de Mia Couto que
foram lançadas em Portugal antes de o serem em Moçambique. Aquele país também
ocupa a condição de centro irradiador e difusor crítico da obra de um considerável
número de escritores africanos, quer de língua portuguesa, quer de língua inglesa ou
francesa. Além de Mia Couto, cuja obra já foi traduzida para mais de dez línguas, vale
lembrar Luís Bernardo Honwana, Ahmadhou Kourama, Luandino Vieira, Pepetela,
Paulina Chiziane, Ungulani Ba Ka Khosa, Germano Almeida, João Paulo Borges Coelho,
Ondjaki, Amos Tutuola, Suleiman Cassamo e José Eduardo Agualusa, dentre outros que
também se beneficiam no mercado editorial português.
Se Portugal é o centro convergente com o patrimônio literário europeu, é
duplamente o centro de onde emerge a literatura produzida nos países africanos de
língua portuguesa, que se desenvolve à margem da tradição legitimada, porque
expressa, podemos inferir, o sistema referencial africano. Nesse sentido, o papel social
do escritor que determina o contato que o autor estabelece com o seu público e a
abrangência do público a quem comunica são questões recorrentes e de suma relevância
quando o assunto em pauta é a literatura africana em língua portuguesa. Entendemos
que todo o complexo literário fiel à realidade social é representativo dessa realidade nos
matizes culturais que a integram.
48 Entrevista a Mia Couto In: NEVES, António Loja. “Não chega estar vivo. Viver é mais”. Jornal África. 27.07.88. p. 21-22.
106
Desde Aristóteles e a formulação dos conceitos de mimese e verossimilhança
narrativa, a literatura vem sendo entendida como a expressão artística que não coincide
com a realidade imediata, mas que dela se aproxima, sendo representativa de um
cenário histórico-cultural específico. Assim sendo, a Literatura Africana não foge a essa
conceituação, pois é representativa do contexto social de onde emana consoante
descreve um espaço que é desconhecido do contexto mundial, ou, pelo menos, desse
contexto não integra o seu imaginário senão como realidade exótica (visão vendida pela
empresa colonial). Sendo descritiva dessa macroestrutura, ela é representativa de uma
cultura que não é semelhante à ocidental, mas é por ela marcada (como também
influenciadora) pela presença do imperialismo econômico português. Utiliza uma
linguagem também marcada por essa herança híbrida, também entendida como
hermenêutica da hibridez49, que não querendo ser a expressão da oralidade, porque
oralidade e escrita são sistemas distintos, é dela representativa porque burla o sistema
lingüístico vigente aproximando-o de uma sintaxe e coloquialidade mais próximas da
fala oral do que do exercício mimético da norma culta. Dá a conhecer um imaginário
que, embora coletivo àquela sociedade, não é um imaginário coletivo ao patrimônio
simbólico ocidental. A subversão à norma lingüística, ou ao imaginário existente, é uma
iniciativa à busca da própria identidade ou nacionalidade dessa literatura em constante
movimento e, por conseqüência, dessa sociedade em mutação, pois só é necessário
burlar aquilo que já existe como sistema acabado, fechado e impositivo, a uma realidade
que a ele não se adapta. 49 Termo utilizado por Maria Fernanda Afonso em O conto Moçambicano. AFONSO, Maria Fernanda. O conto moçambicano: escritas pós-coloniais. Lisboa: Caminho, 2003.
107
No cerne dessa questão somente existe descompasso entre teoria e prática porque
a literatura africana de língua portuguesa pode ser lida como um reflexo diacrônico da
mitologia característica à literatura greco-latina, cujo imaginário é explicado pela
existência de elementos que se manifestam como fenômenos que denominamos
sobrenaturais, os quais explicam a realidade (ou o que é inexplicável nessa realidade) e
se inserem como agentes e personagens atuantes no mundo dos homens. Segundo
Claude Lévi-Strauss (LÉVI-STRAUSS, 1978), a separação entre o pensamento científico e
o pensamento mitológico deu-se nos séculos XVII e XVIII com Descartes, Newton e
Bacon. O imaginário simbólico das sociedades africanas, no entanto, não é guiado pelo
pensamento lógico ocidental; ele coexiste com esse pensamento como forma de cognição
do mundo. Os mecanismos opressivos vivenciados através da força de ação da empresa
colonizadora são transpostos para o universo da ficção com a força simbólica do sujeito -
que desde a infância pôde saber-se objeto50 - que vivenciou momentos decisivos para a
independência da jovem nação.
Os artifícios empreendidos são interpretados, constantemente, por uma lógica
que não os compreende, e a incompreensão, ou a tentativa de justificação dessa
realidade, processa-se através do códice da tradição africana. A agonística dessa
interpretação, ou a dicotomia contida na compreensão do mundo que se desvenda
diante do leitor é constitutiva do projeto autoral de Mia Couto e do estranhamento
lindamente poético que estas histórias apresentam. É essa a razão que explica porque
Mabata-bata, o boi que se transforma em borboletas de sangue, não explode por pisar
50 Comentário de José Craveirinha no Prefácio à edição portuguesa de Vozes anoitecidas. COUTO, Mia. Vozes anotecidas. 5.ed. Lisboa: Caminho, 1987. p. 9-12.
108
uma mina terrestre, mas sim as réstias do ndlati, a ave do trovão que, desgraçadamente,
mata os animais, queimando-os.
Por não pertencer a esse imaginário canônico é que as coordenadas espaciais
precisam ser descritas e por não pertencer à cultura canônica é que a expressão do saber
ancestral africano causa estranhamento à cultura ocidental, assim como a expressão
lingüística desse imaginário igualmente difere da expressão lingüística esteticamente
legitimada por uma obra referenciada como clássica. Somente pela existência de uma
referencialidade subordinada ao modelo é que se torna preciso, para ser representativo
do empreendimento desejado, burlar esse cânone. Mia Couto, a esse respeito, enfatiza
em suas entrevistas que Moçambique é formado pela hibridização de culturas que
tonifica a genuína expressão africana e que vai ao encontro (e também, de encontro) à
cultura européia. Logo, representar a nação é também falar dos universos distintos em
suas particularidades de cultura não em oposição um ao outro, mas em tentativa de
consonância e respeito a cada individualidade de cultura.
A literatura africana quando categorizada como literatura do Terceiro Mundo
está submetida a um padrão primeiro (metropolitano) que, instituindo regras estético-
literárias para a produção cultural, não privilegia a totalidade da expressão existente, e,
como todo sistema de obras e autores eleitos e legitimados pela tradição, é excludente
por sua natureza eletiva, não sendo interpretada como sistema cultural distinto. O
contexto social de onde provém a literatura moçambicana vivencia, de longa data, os
efeitos e as conseqüências ocasionadas pela empresa colonizadora. Isso implica
assimilacionismo cultural, exploração do trabalho e dos recursos nativos, divergência
109
lingüística e cultural, enfraquecimento da cultura local em benefício da aculturação e em
detrimento da preservação do saber tradicional. Junto à empresa colonizadora, na
primeira metade do século XX, há também a presença das missões evangelizadoras
(igreja metodista e católica em menor grau de influência), cujo objetivo também foi
desenvolver na população genuína uma consciência crítico-nacionalista que não
permitiu com que nenhuma das colônias africanas de língua portuguesa sucumbisse à
colonização, embora Moçambique, com relação às colônias francófona e anglófona,
tenha conquistado sua liberdade tardiamente.
A independência que veio após a Revolução dos Cravos já era em termos de
realidade social inevitável porque nesse período histórico recente a resistência africana
(em especial a moçambicana, liderada pela FRELIMO) estava em luta armada há 11
anos. Se a guerra é um conflito coletivo, as conseqüências dela aquém da coletividade
são individuais, afetam diretamente o ser humano (e a coletividade de seres humanos)
integrante desse contexto; assim sendo, podemos pensar na África Lusófona e na
expressão da sua realidade social a partir do indivíduo, da unidade (e também da
entidade ficcional). O coletivo ou a união das histórias destes indivíduos irá nos remeter
a um fragmento da história dessa nação: moçambicana, angolana, guineense, cabo-
verdiana, são-tomense.
A primeira premissa que envolve o estudo da literatura africana, no contexto
contemporâneo, ainda evoca a prevalência da cor da pele do escritor. Discutiu-se à
exaustão esse requisito rácico no momento fundacional dessa literatura. Mia Couto
aceita e define o país como mestiço que é: uma mistura de brancos e pretos, entre os
110
colonos e os da terra, acrescida de uma fusão com outras raças e culturas interligadas
pelo Índico. E isso não invalida a tradição que é repassada pela obra. O narrador pós-
moderno pode ser tanto aquele que vivência, quanto aquele que presencia a experiência.
Trata-se evidentemente de uma perspectiva narrativa que não é única, mas não é
invalidável por não ser única.
Se procurarmos outros indícios na literatura africana, tais como a elaboração
lingüística do texto teremos inovações lexicais (que para alguns críticos beiram ao
exagero e já estão virando clichê) aliadas a uma nova sintaxe da mesma língua
portuguesa original. A língua é dinâmica, modifica-se e origina-se no meio em que
circula. O meio, portanto, conduz, reduz ou modifica a língua que dele é representativa.
Em outras palavras, a língua é de quem a fala. Moçambique, nesse sentido, como afirma
Mia Couto, apropria-se da língua portuguesa para nela acrescentar uma nova sintaxe,
levando em consideração não apenas a “engenharia lingüística” trabalhada pelo autor –
pois ela não é, em primeira instância, mimese do discurso popular – mas também a
inovação lexical acrescida por palavras oriundas da miscigenação ou do contanto entre o
português e as línguas nacionais.
A literatura de Moçambique é representativa da evocada moçambicanidade no
que respeita à construção da identidade cultural da jovem nação. Há, no entanto, uma
consideração importante expressa pelos dados a seguir recolhidos em entrevista de Mia
Couto e confirmados em fonte bibliográfica de Peter Fry (FRY, 2001), nos quais esbarra
essa representatividade dos povos de Moçambique: 40% da população fala português,
80% ainda se comunica em alguma língua tribal e utiliza o português como segunda
111
língua, e 58,6 % da população é não apta para o desempenho da língua portuguesa
(traduzido por analfabetismo).
Os processos de alfabetização em massa, que são parte integrante do projeto de
governo da FRELIMO, assim como no Brasil devido à rapidez com que se desenvolvem
também originam um “dialeto” que corre paralelo à língua culta e se manifesta pela não
compreensão do mecanismo de funcionamento da própria língua. Não podemos
esquecer, no entanto, que Mia Couto nega que a nova sintaxe moçambicana apresentada
em suas obras desenvolva-se pela mimese do discurso popular calcado no
desconhecimento do uso da língua portuguesa pela população, sendo antes uma forma
de subversão ou de adaptação a uma nova realidade sócio-histórica. Construções como
“eu vou ficar covar seu cemitério”, “meu marido está diminuir”, “volta em casa, avó” ou
“você estás abusar” são constituídas por elementos que comprovam a equivalência com
o discurso popular, onde há quebra de sintaxe da língua portuguesa pela supressão de
termos e que pode ser viabilizada pelo não domínio da linguagem desenvolvida no
meio social. Segundo Maria Fernanda Afonso “se é verdade que a obra literária não se
afasta das práticas sociais e culturais onde se situa, também é verdade que ela exerce
influência no mundo real, enriquecendo-o” (AFONSO, 2004, p. 315). Assim, a elaboração
dessa sintaxe no universo da ficção torna-se uma via de mão dupla no processo de
identificação moçambicano. Enquanto o autor recolhe expressões que posteriormente
serão integradas no mundo criado através do processo de recriação lingüística, essa
nova linguagem originária do discurso autoral torna-se representativa de uma
sociedade em movimento e em conseqüente transformação.
112
A pintura da identidade moçambicana apresenta-se, no universo ficcional, como
conjunto de unidades individuais de comunidades identitárias, ou como prefere referir
Luís Carlos Patraquim: “pois que raio de coisa será essa da
Moçambicanidade?”(COUTO, 1987, p. 17), a que o mesmo escritor responde no prefácio
à edição moçambicana de Vozes anoitecidas:
E mais não sei. Quiçá acrescentar que a literatura, quando o não é, se prostitui para ser menos do que as ideologias de que se serve ou que quer servir. Que não isenta de um substrato ético, cultural, político também, a tua nos começa a redimir de tantas tentações redutoras dos múltiplos e entrelaçados planos deste nosso real dia-a-dia a descobrir-se mais moçambicano (COUTO, 1987, p. 17-18).
Descobrir-se mais moçambicano é conhecer a realidade ativa do país em
constante transformação, porque ele está em processo de construção identitária. Como
refere Patraquim, essa possibilidade de conhecimento concretiza-se, igualmente, pela
via literária, entretanto, convém lembrarmos que o processo identitário representado na
sociedade contemporânea pós-colonial, não raro, emerge do contexto social interno para
o exterior, mas, sobretudo, ocorre pela necessidade de uma afirmação para o exterior.
Com isso, observamos que a identidade moçambicana é forjada pela ficção para ser uma
via possível de identificação para a comunidade internacional, já que para os
moçambicanos não é preciso afirmá-la senão como descoberta.
Devemos prestar atenção ao fato de a escrita de Couto não ser, entretanto,
representativa da negritude integrante da moçambicanidade, pois para tal argumento,
acrescentam os críticos, faltaria a experiência ou a vivência do autor enquanto elemento
113
pertencente à raça negra, o que por si já constitui um argumento discutível a menos que
estejamos considerando o conceito de literatura como elaboração discursiva proveniente
do testemunho. E isso a faria perder o caráter de literatura stricto sensu para adentrar o
território da autobiografia, tomada como gênero proveniente da expressão da
experiência, ou do testemunho do sujeito histórico. Segundo Linda Hutcheon
(HUTCHEON, 1991), essa literatura representativa das minorias étnicas, ou oriundas
das sociedades emergentes, não integram o horizonte de expectativa do cânone literário
de cariz europeizante.
Cânone literário é aqui entendido como um elenco de autores e obras legitimado
pela tradição acadêmica. Assim, enquanto se repete a importância e os estudos sobre as
obras que já integram o imaginário ocidental como fundadoras do imaginário simbólico
universal, mais se eterniza a tradição e se excluem possibilidades de renovação da
instituição imaginada de eleitos. O lugar que a literatura africana de língua portuguesa
ou timorense ocupa (ocupará?) junto ao cânone literário apresenta-se sob a
denominação de literatura terceiro-mundista.
A partir disso, concluímos que as sociedades contemporâneas terceiro-mundistas
integram essa categorização não pelo labor intelectual dos seus artífices, mas pelo
atributo ocasionado, importante lembrar, pelo processo colonizador empregado pelas
nações imperialistas que ora determinam a categoria a que pertencem as nações
emergentes. Se considerarmos a realidade dos países que passaram por processos
recentes de descolonização e transição para a democracia verificaremos que a realidade
social que daí emerge é deflagradora de uma nova ordem social: a dos países
114
subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. Encontramos em Lévi-Strauss que as
sociedades que estão dominadas pela necessidade de subsistência “são movidas por
uma necessidade ou um desejo de compreender o mundo que os envolve, a sua
natureza e a sociedade em que vivem”(LÉVI-STRAUSS, 1978, p. 30-31). Se a literatura é
representativa do meio no qual ela se origina, isso significa que uma literatura oriunda
de países que passaram pela experiência da guerra será representativa dessa realidade e
se portará como uma via possível de comunicar essa realidade, segundo a forma como é
compreendida nesse meio:
Esse ambiente de coisas que acontecem como se tivessem passado ‘na outra margem do mundo’ é, aliás, inevitável num país de arrepiantes cenas de massacre mesmo à beira-porta de um quotidiano, individual e coletivo, que tem de continuar a ser vivido na máxima normalidade que se possa conquistar51.
Libertadas as amarras do estado colonial, o comportamento social também se
modifica na busca por estruturas de sustentação da nova realidade circundante. Hoje,
não são apenas os comportamentos que mudaram, mas as mentalidades, o imaginário
social, a perspectiva de vida e a própria noção de integridade física e moral que permeia
o sistema referencial destas sociedades. Avultam, assim, no mundo da diáspora
indivíduos desenraizados que reivindicam seu espaço, articulando suas vozes através
das narrativas.
51 Entrevista a Mia Couto In: NEVES, António Loja. Mia Couto, o agitador. Expresso, Lisboa, 15 set. 1990. Caderno Cultura. p. 67.
115
Voltando à questão da representatividade social da literatura de Mia Couto junto
ao público moçambicano, o autor diz que o que permitiu aproximá-lo da população,
leitora ou não, é a sua profissão de biólogo e julga que cumpre o seu papel social, uma
vez que essa atividade lhe permite andar pelo país e, nesses trajetos, estabelecer uma
aproximação mais direta com os povos moçambicanos. Ainda que essa população não
responda pela totalidade e sequer seja representativa do universo de leitores que
acompanham a obra de Mia Couto, o papel social a que o escritor se refere é o contato
íntimo com a realidade pobre dos bairros de madeira e zinco, a vivência das seqüelas
das guerras colonial e civil em Moçambique a partir do sujeito que é a primeira vítima
desse processo e cuja voz vem à tona pelo intermédio da ficção.
Outra forma encontrada pelo autor para satisfazer o requisito de aproximação
com a realidade do cenário social é realizada através das peças de teatro que ele escreve,
nas quais declara que obtém uma resposta imediata à recepção de sua obra. Fora isso, a
literatura moçambicana desenvolvida por Mia Couto desempenha o mesmo papel que a
literatura como um organismo cultural: circula entre o público culto, acadêmico, crítico,
jornalista, professor. Além da parcela da população moçambicana que não é
alfabetizada não se pode esquecer, igualmente, que há uma parcela da população que
mesmo alfabetizada não dispõe de condições econômicas para adquirir livros, ou não
possui a cultura (se chama erroneamente hábito) de leitura, ou ainda, não tem condições
sócio-econômicas de praticar a leitura, ou quaisquer meios de atividade de expressão
cultural que envolva a escrita em língua portuguesa.
116
Por um lado, o contato do escritor com esse público que não integra as classes
leitoras tradicionais pode-se dar através da forma destacada por Couto: por via do teatro
e, nos seus tempos de jornalista, pelas crônicas veiculadas nos jornais, já que, ainda que
não fossem lidas pela totalidade da população eram comentadas e discutidas por um
contingente alargado de pessoas. De outro lado, há o fato indiscutível e inegável de que
se parte de uma cultura cuja tradição literária é oral, não em sentido antitético à escrita,
mas, sim, porque possui outro código de transmissão privilegiado. Para o código
primeiro, a oralidade, a população está apta a interagir, para o segundo código, a escrita,
há que se proporcionar durante a vivência do indivíduo um preparo que, exigindo
condições sócio-econômico-culturais, não está ao alcance da grande população. Não está
dito que a população moçambicana porque é africana não possui cultura, mas, sim, que
a cultura moçambicana foi transmitida por código e por tradição de uma forma
diferenciada da forma desenvolvida no contexto europeu, academicamente e, por isso
mesmo, seletivo e excludente.
Para encerrar, duas últimas questões pontuais a respeito de uma introdução à
leitura de Mia Couto: uma que respeita à influência confessa ou não que o autor
apresenta da tradição literária em língua portuguesa e, outra, ao trabalho de mobilidade
lingüística executada desde João Dias, em Godido e outros contos, Luís Bernardo
Honwana, em Nós matamos o cão tinhoso, José Luandino Vieira, em Luuanda, e João
Guimarães Rosa, em Grande sertão: veredas. A plasticidade característica da inovação
lingüística embora não represente a identidade textual do escritor Mia Couto não é
invenção ou particularidade apenas da literatura moçambicana. Se tomarmos como
117
exemplo apenas o contexto dos países da comunidade de língua portuguesa veremos
que essa arquitetura da linguagem já se observa anteriormente. Conforme José
Craveirinha, no mesmo prefácio à edição de Vozes anoitecidas (COUTO, 1987): a
importância de um autor não está no fato de ele ser o criador de algo jamais visto.
É o próprio escritor Mia Couto que vai fornecer argumentos para uma explicação
a essa postura diante do código de comunicação verbal eleito para transmitir suas
histórias. Primeiramente, a língua portuguesa tal como a assimilamos foi desenvolvida
na Península Ibérica, no contexto geo-físico e cultural europeu e, como código, responde
a uma conduta peculiar. Com o advento do Imperialismo e o contato que esta língua
estabeleceu nos demais continentes por onde se espalhou foi se mesclando à realidade
local que, não raro, era diversa de sua origem.
Num continente como o Africano, cuja cultura genuinamente de transmissão oral
também é marcada pelo ritmo e pela dança, a língua também se torna cambiável e
ritmada por essa cadência e já se apresenta como híbrida, pois assimila e influencia a
cultura do colonizador. Segundo Maria Lúcia Lepecki há um conjunto de sinais que dão
a tônica para orientar o entendimento da narrativa, porém “na oralidade, o sinal pode
ser a entonação, a energia maior ou menor da voz, podendo também concretizar-se em
gestos, expressão facial e, mesmo, corporal” (LEPECKI, 2003, p. 220).
Muito embora a linguagem não se apresente como representação da fala popular
– porque é retrabalhada a partir de expressões coletadas no meio social -, porta-se como
a marca diferenciadora que essa literatura assume para si. Mia Couto chama de
engenharia lingüística o artefato cultural de representação verbal. E não considera a
118
possibilidade do estranhamento advindo desse discurso ser causado pelo desvio da
norma padrão, pela ignorância ou pela inabilidade da população em assimilar a língua.
Se, por um lado, não o é, por outro, como já foi destacado, o processo de alfabetização
em massa ao qual o povo moçambicano foi submetido na tentativa de tornar o
português a primeira língua é um fator de vultosa importância como matriz dessa
variação lingüística. Salvo os neologismos de sua autoria, o autor admite que muitas
expressões, provérbios ou aforismos são coletados nas suas andanças pelo país. É claro
que a mediação ficcional dirime qualquer suspeita que a esse aspecto possa ser
discutida.
Para encerrar, em Fidelino de Figueiredo (FIGUEIREDO, 1960, p. 30) encontra-se
que “a fixidez dos idiomas é totalmente artificial e deve-se à cultura literária”. Desde a
formação da língua portuguesa (porém não somente dela) existem dois aspectos
distintos de veiculação idiomática: a língua vulgar, falada pelo povo, e a linguagem
literária, escrita e praticada por escritores ou “pessoas cultas”, como destaca o autor. No
sistema africano contemporâneo de língua portuguesa esta fala popular está retratada
na ficção, porém ela igualmente descentraliza uma função que é a da escrita padrão
estar associada ao sistema literário. Ocorre uma inversão dos sentidos anteriormente
observados: é a partir desta linguagem desconstruída que se vai formar (ou representar
ou discutir) essa nova sintaxe que representa a nova nação. É como se o escritor Mia
Couto apresentasse uma forma possível de identificação não apenas pelo cariz político-
ideológico que reflete criticamente sobre a realidade circundante, mas, também, pela
119
forma de expressar e interagir com uma língua que se aquerencia nesse território onde
não é matriz.
4.2 O LOCAL E O UNIVERSAL NA NARRATIVA MOÇAMBICANA
4.2.1 Vozes anoitecidas: a semente da esperança
O primeiro livro de Mia Couto dedicado exclusivamente ao conto é Vozes
anoitecidas. Podemos dizer que até chegar a fórmula da narrativa curta, o autor
experimentou-se pela poesia e pela crônica. Uma primeira leitura de Vozes anoitecidas
permite-nos apreciar um conjunto de histórias que variam de dramas pessoais e
amorosos até a representação, a discussão, a crítica e a denúncia do cenário social
desenvolvido pelas guerras colonial e civil. No primeiro e no último conto o autor
apresenta-nos duas histórias de amor – o amor durante a juventude, o desgaste das
relações afetivas e os conflitos de interesses que integram essas relações e conduz-nos a
presenciar, em qualquer dos casos, um cenário árido de recursos financeiros (pobreza,
miséria), bem como árido de afetos (velhice, ciúme).
A aridez do cenário social reflete-se sobremaneira nas relações humanas. A
personagem idosa do conto de abertura sentencia: somos pobres, só temos nadas (COUTO,
1987, p. 24), indicando uma realidade factual calcada no signo da desesperança. O livro
começa e termina pela morte, que pode ser das condições de subsistência, “dos
120
caminhos idosos e dos tempos caminhados” (COUTO, 1987, p. 23), ou morte para a
própria vida, de onde já nada se espera nem se retira. Extraem-se, no decorrer da
narrativa, outros sentidos para a idéia de morte assim como são descritos outros
cenários donde se delineia a forma incerta como prossegue a situação político-social que
o país atravessa. O que entendemos por representação da realidade social está aqui
expresso em sua correlativa carga de intencionalidade literária desde a composição do
universo pessoal das relações afetivas e dos dramas individuais até a exemplificação
(descrição) das convenções sociais, acrescidas estas de uma análise crítico-reflexiva
sobre as causas da condição de recusa frente aos mecanismos opressivos que formam a
memória dos excertos e da resistência à colonização.
Adentrando a leitura dos demais contos da primeira obra de inserção narrativa
de Mia Couto percebemos que outros temas trabalhados pelo autor abordam as mesmas
questões que integrarão o projeto autoral desenvolvido até o presente momento de
forma mais ou menos explícita. Importa que o autor opta (ou talvez não possa fugir a),
na concretização desse projeto, por essa representação das outras vozes que não se
fazem escutar, mas, por isso mesmo não se calam.
No prefácio à edição portuguesa (1987) de Vozes anoitecidas José Craveirinha
alude, pertinentemente, ao fato de que a importância da obra de Mia Couto (década de
80) não reside na inovação ou na criação de algo jamais feito, como pretendem alguns
críticos, e, sim, no restabelecimento do elo entre a tradição literária canonicamente
classificada como terceiro-mundista. Também refere Craveirinha que partindo das
121
tradicionais raízes do mito o narrador concebe uma tessitura humano-social adequada a
determinados lugares e respectivos quotidianos:
Em jeito de aforismo, Mia Couto remete-nos para enredos e tramas cuja lógica se mede não poucas vezes pelo absurdo, por um irrealismo, conflitantes situações, pelo drama, o pesadelo, a angústia e a tragédia. No entanto – e importa salientar – fiel ao clima. O mesmo clima. Um dado clima. Isso que distingue o escritor do escrevente e diferencia prosa de prosaico (COUTO, 1987, p.10).
O primeiro conto de Vozes anoitecidas, intitulado “A fogueira”, fala da solidão
vivenciada por um casal de idosos. O cenário em que as ações se desenvolvem é
apresentado como um deserto de absoluta miséria. O casal não encontra motivação para
a vida senão na espera da morte. Para ambos, a proximidade da morte é tão quotidiana,
presente e certa que eles acabam por viver em função desta espera. A destruição das
machambas, a ausência do verde dos campos, sobrepõe-se à ausência da vida: “neste
deserto solitário, a morte é um simples deslizar, um recolher de asas” (COUTO, 1987, p.
27). A morte como ausência da vida é somente o desdobrar daquele cenário de
destruição. Quando já não há mais alimento nem perspectiva de reconstrução, a morte,
terceira personagem desse conto, torna-se a motivação da existência: “pediu à noite que
ficasse para demorar o sonho, pediu com tanta devoção como pedira à vida que não lhe
roubasse os filhos” (COUTO, 1987, p. 28). Algumas histórias são marcadas pela presença
do que em teoria da literatura chamamos elemento fantástico (TODOROV, 1992). No
entanto, importa lembrar que o próprio autor quando perguntado sobre a utilização
desse recurso na sua escrita afirma que o imbricamento de universos, real e espiritual,
122
integra a tradição cultural moçambicana. Não há como falar sobre essa convenção
herdada sem mencionar o que Fernanda Cavacas (CAVACAS, 2001) denomina de
“acrediteísmos”. Diferentemente do elemento fantástico trabalhado pela literatura
latino-americana, explica o autor, o expediente primeiro era dizer o inenarrável pela
história por uma artificiosa provocação hermenêutica de cariz ideológico (AFONSO,
2003, p. 321).
“O último aviso do corvo falador” é um conto que evoca o universo fantástico
calcado na arqueologia espiritual que traz para a cena quotidiana a presença dos
antepassados mortos. Enquanto o cenário apresenta-se com grande força de realidade, a
fábula desenvolvida percorre o imaginário mítico e também fantástico, onde o
sobrenatural se torna, ao mesmo tempo, um recurso ético e estético. O homem vomita
um corvo e esse passa a desvendar futuros a troco de paga. A tradicional figura da
adivinha é transmutada de gênero e de espécie. É a ave que sussurra no ouvido do dono
os presságios e particularidades da vida das demais personagens. O corvo adivinho
ganha força e credibilidade; é um ser que, por estar integrado à natureza, está em
contato direto com os espíritos dos antepassados. O recurso empregado justifica-se para
explicar uma “acontecência” da África, embasada numa realidade sócio-cultural que a
credita. A realidade de absoluta descrença e necessidade de conservar a esperança é
profícua à proliferação do poder dos adivinhos e de suas profecias e vaticínios. Notamos
que a presença do imaginário constitutivo desta efabulação desenvolve-se num cenário
árido de recursos de variadas ordens.
123
Em Introdução à literatura fantástica, Todorov (TODOROV, 1992) retrata o
imaginário cultural latino-americano durante o período de exceção democrática, quando
se lançava mão do fantástico como recurso estético para burlar um sistema
ideologicamente incognoscível. A exceção no local que ora discutimos, que é o
moçambicano, é retratada através da escassez de recursos financeiros pela destruição
das formas de subsistência, cenário que se torna profícuo para o desenvolvimento do
elemento fantástico como protagonista das narrativas. É também nesse contexto de
descrença e absoluta necessidade de esperança que vai ganhar importância a figura da
adivinha como elemento mediador entre o mundo dos vivos e o mundo espiritual.
A força da matriz cultural africana é retomada em “O dia em que explodiu
Mabata-bata”, um dos contos mais conhecidos (pela crítica) de Mia Couto. A temática
do conto está centrada na explosão de uma mina terrestre - espalhada pelos bandos52 –
que constitui um artefato do mundo ocidental compreendido ou interpretado pelo
imaginário moçambicano. A antítese que se apresenta é: mundo ocidental (armamento
bélico) versus tradição africana (influência do elemento sobrenatural). Um pastor que
cuida do gado presencia a explosão de um boi. Embora o assunto que permeia o texto (a
história aparente) seja o da explosão do boi que se transforma em borboletas de sangue e
é confirmado na narrativa pela presença da polícia, a história cifrada remete aos maus-
tratos sofridos pelo narrador-personagem, à exploração do trabalho infantil a que é
submetido em detrimento da infância e da educação escolar: “os filhos dos outros
52 A utilização do termo em Moçambique serve para designar a ação da RENAMO, durante a Guerra Civil. A esse respeito, Roland Barthes (BARTHES, 1989) afirma que, nas narrativas africanas, é uma forma ideológica que retrata a falta de respeito à alteridade ou a interlocução no estado de guerra.
124
tinham direito da escola. Ele não, não era filho. O serviço arrancava-o cedo da cama e
devolvia-o ao sono quando dentro dele já não havia resto de infância” (COUTO, 1987, p.
49). A explicação encontrada pelo jovem pastor para justificar as explosões baseia-se na
lógica da cultura de onde ele provém e do imaginário que conhece e domina buscando,
assim, o seu argumento nos seres da natureza, como a ave do trovão, ou o ndlati, que é
enterrado no chão e explode quando lhe pisam.
Se, por um lado, no conto anterior o autor estabelece uma analogia com as
estruturas ou formas de hierarquização do poder instituído de forma alegórica, por
outro, no conto que se segue ironiza esta mesma estrutura através da utilização do
recurso cômico. “De como se vazou a vida de Ascolino do Perpétuo Socorro” apresenta
uma personagem de origem goesa culturalmente desenraizada e apegada aos valores do
colonialismo português. Ao ouvir o lamento dos soldados portugueses pela perda da
possessão portuguesa sobre Goa, ele propõe o exercício de uma cruzada para resgatar a
soberania portuguesa, concomitante experimenta a força da estrutura rácico-cultural de
sustentação do império. Dizem os soldados: − “Goa, lá se foi. Sacanas de monhés, raça
maldita” (COUTO, 1987, p. 74). Provocação que é assentida pelo goês: “− Monhés,
sacana sim senhor. Aliás, porém, indo-português qui sou, combatente dos inimigos di
Pátria lusitane” (COUTO, 1987, p. 75). Instaura-se, assim, a comicidade na narrativa,
motivada pela embriaguez da personagem não apenas pela ingestão de bebida alcoólica,
mas pelo equívoco referencial com relação à sua identidade. Sendo natural de Goa,
125
defende a pátria portuguesa “una e indivisível do Minho ao Timor53”. O desajustamento
social é motivado pela condição que ocupa esse sujeito vivendo no entre-lugar, entre a
sua cultura e a cultura assimilada. Mesmo assimilando uma língua que não domina e
uma cultura que desconhece existe a defasagem cultural da experiência ancestral
adquirida. A mimese dos costumes portugueses desempenhada pela personagem
confere ao universo construído a artificialidade que a conduta aculturada acarreta para
o indivíduo que a desempenha. É este um elemento que não está ajustado a lado algum.
Nesse conto, é interessante analisar a presença da personagem (Vasco) João Joãoquinho,
homônimo de outra personagem cuja influência confessa marcou a história de vida do
autor Mia Couto e que o mesmo considera ser uma missão a resgatar nessa vida: o
reencontro com o narrador que foi criado junto de sua família. Levado para a casa da
família Couto ainda na infância do escritor, João Joãoquinho contava histórias
pertencentes ao universo africano que passaram a alimentar a imaginação da criança
que hoje mimetisa, em suas micro-histórias, o artifício de romper com o fluxo narrativo
para fazer a inserção do narrador da oralidade: aquele que transmite uma sabedoria na
história narrada, e que, estando na companhia dos demais personagens restabelece à
narrativa o seu caráter primordial de experiência compartilhada, em oposição à solidão
da leitura, reclamado por Benjamin (BENJAMIN, 1993).
A propósito do (des) enraizamento cultural que é estudado por Stuart Hall
(HALL, 2003) referimos um fato relatado por um amigo pertencente à etnia mandinga,
natural da Guiné-Bissau. Na Guiné existe uma tradição em que famílias de poetas 53 Expressão utilizada durante o governo fascista de António Oliveira Salazar para referir à unicidade existente entre a grande Pátria Portuguesa e suas “Províncias Ultramarinas”.
126
percorrem as casas dos descendentes dos nobres chefes tribais compondo, em
homenagem à ascendência régia, canções épicas acompanhadas pelo som da Korá54. O
rito se cumpre quando os homenageados oferecem algo em paga pela herança familiar
rememorada em forma de canção. Encontrando-se nosso amigo na estação do metrô em
Lisboa é interpelado por outro guineense membro de uma família de poetas e que o
reconhece por pertencer a uma ascendência nobre na hierarquia mandinga. Aquele,
após compor uma rápida homenagem (a rapidez deve-se ao fato de que ambos
aguardam pelo metrô), espera a retribuição do nosso amigo que, desprevenido para o
inusitado da ocasião, é obrigado a confessar sua limitação, no que é isentado do
cumprimento da tarefa desde que contribua com o pagamento de um bilhete para a
utilização do metrô. O comportamento de busca pelo enraizamento cultural
transmutado para um local diverso do seu de origem corporifica a identificação do
indivíduo através da recuperação do saber adquirido. Mesmo estando distante do
cenário social que legitima essa tradição, o indivíduo privilegia o código primitivo do
local de origem adaptando-o à realidade vivenciada no local de destino.
Ao contrário do retorno à origem para compor ou reafirmar uma identificação, no
conto acima referenciado, a personagem incorpora o que em auto-referencialidade os
africanos denominam, pejorativamente, de assimilado, que é uma categoria do sistema
colonial. Esse tema será retomado, posteriormente, por outro personagem de Mia Couto
que os classifica de “pretos desbotados”. Além do assimilacionismo cultural a que se
sujeita a personagem, outra singularidade aparente nesse discurso é o alcoolismo 54 Korá é um instrumento musical da tradição africana, que possui 21 cordas, e é característico da Guiné-Bissau.
127
(causado pela presença devastadora da guerra que fazia os soldados ingerirem álcool
para driblar a fome e a brutalidade quotidiana do ofício da morte ao qual estavam
entregues) e os equívocos decorridos no período de repressão. Interessante observarmos
que o autor já nas primeiras histórias ressalta a convivência (hierárquica) multirracial
entre negro, branco e mulato, e multicultural entre indiano, chinês, europeu e africano,
que será a marca registrada da sua construção literária. O narrador do conto “O último
aviso do corvo falador” celebra o fato de ser consultado por uma mulata quase branca de
sua alma, pois, para o adivinho negro receber uma pessoa de outra raça significava
receber alguém superior a si. Aliado à convivência encontra-se, igualmente, o
preconceito racial, sobretudo nesta obra cuja temática narrativa se centra no período
histórico em que a empresa colonizadora delimitava território em Moçambique. Em “De
como se vazou a vida de Ascolino do Perpétuo Socorro” a personagem afirma que nos
bares os pretos devem entrar pela porta traseira para respeitar a norma do tempo. Em
“Afinal Carlota Gentina não chegou de voar” o narrador principia o conto afirmando ser
mulato não de raça, mas de existências. Em “Patanhoca, o cobreiro apaixonado” a
personagem que dá título ao conto desdenha dos filhos por serem eles mulatos, uma
raça sem futuro, e acrescenta: “a gente faz filhos para ser mais” (COUTO, 1987, p. 163).
O preconceito se observa de uma raça com relação a outra, de uma cultura e sua
alteridade, ou dentro da mesma raça, em função da predominância cultural da terra ser
mantida ou subvertida como mostra a personagem Custódio, de Vinte e zinco, quando
diz: “existe dois tipos de pretos: os calçados e os pretos” (COUTO, 1999, p. 47). Sobre
essa proposta diz Ana Mafalda Leite que:
128
Em qualquer dos livros do autor se problematizam e configuram os enquadramentos e ajustamentos culturais das minorias do país, os indianos, os mestiços, os brancos. E ainda os camponeses, os velhos, os que vivem ‘muito oralmente’, esses que representam outro tempo, os sem tempo e fora dele, e talvez, por isso, sem espaço e sem terra55.
Já anteriormente mencionada a relação antitética é posta, na obra de Mia Couto,
entre a cultura européia e o saber tradicional africano. Em “Afinal, Carlota Gentina não
chegou de voar?” podemos observar uma alegoria ao choque cultural revelado pelo
estranhamento perante a alteridade. A começar pela identidade pessoal do ser africano
que na prisão (artefato do mundo ocidental) é substituída por uma identidade numérica:
”sou um número, em mim uso algarismos não letras” (COUTO, 1987, p.91). Condição
reclamada em outra instância narrativa, em “De como o velho Josias foi salvo das
águas” a personagem que é acometida por uma situação de emergência não aceita ser
socorrida por ter desrespeitado uma tradição: “só o meu número seria riscado na lista
dos contratados” (COUTO, 1987, p. 127). No conto em questão a personagem que
principia a narrativa na prisão esclarece ao advogado as causas do possível assassinato
de sua esposa, advertindo-o que somente serão compreensíveis para quem conhece os
valores da terra, não para os códigos de conduta social herdados do mundo ocidental. O
esclarecimento é feito por intermédio de um código cultural distinto do africano, e o
suporte material da sua simbologia é a escrita:
55 LEITE, Ana Mafalda. As parábolas de Mia Couto. JL Letras, Lisboa, 28 jul. 2000. Outras Escritas. p.21.
129
Sou filho do meu mundo. Quero ser julgado por outras leis, devidas da minha tradição. O meu erro não foi matar Carlota. Foi entregar a minha vida a este seu mundo que não encosta com o meu. Lá, no meu lugar, me conhecem. Lá podem decidir das minhas bondades. Aqui, ninguém. Como posso ser defendido se não arranjo entendimento dos outros? Desculpa, senhor doutor: justiça só pode ser feita onde eu pertenço. Só eles sabem que, afinal, eu não conhecia que Carlota Gentina não tinha asas para voar (COUTO, 1987. p. 94-95).
Como a sociedade é guiada por tais códigos a personagem não encontra
argumento de defesa para conquistar sua liberdade. Seu argumento baseava-se não na
morte da esposa, mas do pássaro que havia nela. Ao contrário do simbólico restritivo
que a imagem do pássaro adquire no conto, em “Os pássaros de Deus”, a personagem
central, um pescador, interpreta a queda de um pássaro em seu barco como um sinal
divino. E passa, a partir de então, a cuidar da ave sagrada em detrimento da fome que
assola sua família. Ninguém na aldeia compreende essa lógica. A relação com a ave
transcende o universo imediato da subsistência e se transforma numa profecia de fé. O
homem sacrifica sua família e é abandonado pelos demais habitantes da aldeia ao dar
prosseguimento a essa certeza ao mesmo tempo mítica e ancestral que é só sua.
Se os homens aceitassem despender a sua bondade para com os mensageiros celestes, então, a seca terminaria e o tempo da chuva ia começar. Coubera-lhe a ele, pobre pescador do rio, ser hospedeiro dos enviados de Deus. Competia-lhe mostrar que os homens podem ainda ser bons. Sim, que a verdadeira bondade não se mede em tempo de fartura mas quando a fome dança no corpo dos homens (COUTO, 1987, p. 61).
Diante do contexto histórico de destruição e miséria a personagem não encontra
discípulos para eternizar essa postura lógica sobrenatural. Quando interpreta, pela
130
conduta lógica natural, que a comunidade imaginada de semelhantes será castigada por
um erro que julga ter cometido o pescador se atira ao rio e oferece sua vida em sacrifício
pela salvação da sua raça. Calcados na mitologia pertencente à Escritura Sagrada os
temas religiosos são revisitados, transferindo-se para o cenário árido do Moçambique
pós-guerra em experimentação que transcende o fenômeno estético-literário para
alcançar uma mundividência universal.
Em “As baleias de Quissico”, elaboração temática que será retomada na peça Mar
me quer, e será igualmente tema em Terra sonâmbula, há menção à guerra e às estruturas
de sustentação do imperialismo econômico, desde a descrição da paisagem, quando a
personagem percorre a estrada e presencia a destruição da mata, das casas e dos
machimbombos tomados pelo fogo. Bento João, personagem motivada pelos boatos acerca
de uma baleia que descarregava mantimentos na praia, parte para a aldeia de Quissico
em delírio causado pela fome e pela espera incessante de um auxílio divino que não se
materializa. A fome aparece como personagem atuante no mundo dos vivos, pois é ela
(e não a ação dos espíritos) que incita às ações de migração em busca de condições
razoáveis de sobrevivência. Para aquém do destino concreto da ação humanitária há o
deslocamento geográfico – que é o desterro dentro do próprio território, ocasionado
pelas condições sociais - motivado pelas narrativas criadas para amenizar a miséria:
“pela estrada a guerra via-se. Os destroços dos machimbombos queimados juntavam-se
ao sofrimento das machambas castigadas pela seca” (COUTO, 1987, p.113). Se durante o
governo Salazarista criaram-se fábulas para a sustentação do regime ditatorial, diante
desse contexto de miséria humana o mesmo artifício narrativo volta à cena para driblar
131
uma realidade que se mostra implacável e indissoluta. Assim como no fio da história as
Américas (o denominado Novo Mundo) significaram um sonho de renovação para
escapar ao caos econômico instaurado na Europa, que foi responsável por um elevado
fluxo migratório, Quissico (uma pequena praia, quiçá uma Passargada) representa a
sublimação da miséria. As baleias imaginariamente reais que desembocam nessa praia
são capazes de acabar com a fome que assola a população.
A história comprova que em situações limítrofes o homem recorre ao recurso do
“não real” ou do “impalpável” para sustentar uma condição imutável: a de estar vivo
frente a uma dificuldade extrema como a miséria que acarreta a fome, as doenças, e os
modos de subsistência insustentáveis: “− Você sabe, tio, agora a fome é de mais lá em
Inhambane. As pessoas estão a morrer todos os dias” (COUTO, 1987, p.110). Ou ainda
como refere outra personagem da mesma obra: “custava admitir, mas a verdade é que a
fome iguala os homens aos animais” (COUTO, 1987. p. 57). A motivação da personagem
justifica-se por esse recurso de melhoria da sua condição de vida, mas os códigos de
interpretação da conduta social remetem às ações revolucionárias adotadas pela força da
resistência que recebia armamento bélico proporcionado pelos países socialistas à Frente
de Libertação para Moçambique, e também da África do Sul com a chancela dos E.U.A.
para abastecer a facção oposta (os denominados bandos, liderados pela RENAMO):
“Sabe, Bento: lá em Maputo estão a espalhar que você é um revolucionário. Está aqui,
como que está, só por causa dessa coisa de armas não-armas. − Armas?” (COUTO, 1987,
p.115). Ignorante, no entanto, desta condição palpável de real justificativa para a
existência das baleias, a personagem insiste no argumento da ajuda humanitária
132
destinada por intermédio dos elementos da natureza. As baleias de Quissico podem,
assim, serem consideradas como um artifício narrativo que remete à encosta dos
submarinos que atracavam nas praias moçambicanas fornecendo armamento bélico e
mantimentos aos soldados. Por isso, da baleia saíam carnes e outros produtos que eram
distribuídos entre a população e despertavam o apetite e a imaginação num cenário de
carência absoluta. Esta também é uma forma, dada a natureza ficcional, de questionar
elementos da realidade factual numa ordem simbólica que não a sustenta.
O último conto que se intitula “Patanhoca, o cobreiro apaixonado” apresenta um
narrador, que se assume como tal, para contar uma história de amor e separação.
Retoma, para isso, os temas das tragédias clássicas Agamêmnon, de Ésquilo, e Medéia, de
Eurípedes apresentando um marido que mata os filhos e uma esposa que se vinga dessa
morte. Se o conto de abertura enfoca a relação homem e mulher na velhice e na
proximidade com a morte, o conto de encerramento também centra sua temática nessa
relação: o casal separa-se por causa do ciúme, que leva à posse, à prisão e à morte. O
cenário natural interfere na atmosfera do conto e na ação das personagens. Nos
intervalos entre os dois extremos os contos narram histórias de miséria, seca, guerra,
devastação, enchente, ritos e feitiços, tradição, natureza, corrupção. A corrupção nas
instituições de domínio social abrangente é tema que também integra o universo da obra
O cão e os caluandas, do angolano Pepetela, assim como é retomada com maior
intensidade dramática em A varanda do frangipani e O último vôo do flamingo, de Mia
Couto. A busca de sentido nas ações que desmantelam a utopia revolucionária assume
outro sentido quando se origina na intimidade dos lares e desenvolve-se como um
133
subgênero criado para amenizar a situação de miséria em que vivem as personagens.
Quando não há meios para a subsistência o roubo, a mentira, a fraude e a trapaça não
adquirem os mesmos contornos éticos factíveis pela sociedade.
4.2.2 Vinte e zinco: o espaço de todas as vozes
A Editora Caminho organizou em 1999 uma coletânea de textos de 11 escritores
lusófonos motivada por essa rememoração dos sentidos da revolução para Portugal e
suas colônias. Dentre estes autores estão Almeida Faria, Urbano Tavares Rodrigues,
Maria Isabel Barreno, Germano de Almeida e Mia Couto, com a obra Vinte e zinco. A
epígrafe desse romance foi extraída do texto Voodoo in Haiti, de Alfred Metraux, e
remete à temática que será desenvolvida: o estranhamento cultural que ambos, africanos
e europeus, representam (ou representaram em um dado momento histórico) um para o
outro. Esta é de todas as obras de Mia Couto aquela que mais se volta para o olhar do
estrangeiro em Moçambique. Talvez por ser uma obra dedicada, especificamente, às
comemorações dos 25 anos do dia 25 de Abril de 1974, ou porque passados 25 anos
desta data o autor possa olhar com análise e distanciamento crítico, isentos de
ressentimento histórico, para o turbilhão em movimento que representa a formação do
cenário moçambicano desde as lutas independentisas.
“Vinte e cinco é para vocês que vivem nos bairros de cimento. Para nós, negros
pobres que vivemos na madeira e zinco, o nosso dia ainda está por vir” (COUTO, 1999,
p. 10) diz a epígrafe do primeiro capítulo que serve como parâmetro para a
134
compreensão do processo independentista das colônias africanas lusófonas. Tal
processo não se enquadra nos moldes da abertura política experimentada pela
metrópole, pois os significados da revolução mostram-se distintos para os dois locais —
um de onde se fala, e outro sobre o qual se fala.
Pela visão de um humanista sobre a totalidade das facções integrantes da
diáspora portuguesa, nessa ação de conquista que orientou o imaginário português até a
década de 70, podemos perceber como o “jogo a duas mãos que é a fabricação do medo”
envolve algozes e vítimas, poder e submissão, Portugal e África. Em cenas de outras
narrativas Mia Couto enfatiza o estranhamento que os portugueses sentem com relação
à cultura africana. Nessa obra específica destaca o sofrimento do degredo, de estar longe
da pátria, para defender um regime que não se ocupa das vidas daqueles que o
sustentam. Esse fato contribuiu para acirrar o descontentamento que impulsionou a
queda da Ditadura em Portugal. Até mesmo os capitães deslocados para as colônias no
intuito de defender a Pátria portuguesa compreenderam o abandono a que estavam
submetidos na frente de batalha ou na administração do sistema público de governo.
Escorando-se sempre na representação do local de onde fala e na exortação da
cultura híbrida que daí resulta, o autor apresenta as micro-histórias do desajustamento
dos portugueses colonos frente a um local de destino a que foram submetidos mais do
que se submeteram. Assim, na nova proposta de olhar Moçambique o autor se redime
de culpabilizar o elemento europeu pela barbárie em solo africano, mas imputa a
responsabilidade a um regime político que fez de marionetes todos os elementos
envolvidos em sua defesa ou ataque.
135
Ao contrário de Maria Fernanda Afonso que afirma ser a escrita de Mia Couto
“um grande espaço de liberdade e de tolerância, arquitetando um discurso narrativo,
livre de estereótipos” (AFONSO, 2003, p. 386), pensamos que é preciso considerar as
primeiras experiências do autor na recente pós-independência quando em Vozes
anoitecidas não apresenta um único conto que seja narrado do ponto de vista lusitano,
como é feito em Vinte e zinco. E se a realidade das diferentes heranças culturais é colocada
em cena, o é mais precisamente para dizer da ofensa cultural (ou do cerceamento
identitário) que essa convivência conferiu ao cenário africano.
Os diferentes pontos de vista que permeiam a narrativa permitem-nos conhecer
as perspectivas e as motivações de personagens que integram uma ou outra facção
histórica, porque, na visão de um, o outro é sempre o seu contrário. Isso faz com que
tenhamos noção da complexidade da questão colonial. A cronologia a que a obra remete
pertence à história, principia em 19/4 e vai até 30/4 do ano de 1974. O recorte temporal
só tem sentido porque antecede e procede a um fato político: a Revolução dos Cravos. O
texto apresenta-se como um diário, forma íntima e pessoal, para falar de um problema
que é coletivo, embora também pessoal, pois começa no âmbito particular e estende-se à
coletividade, à idéia de nação e de cultura. O autor tece um diário para Moçambique e
como a nação é também a soma das suas particularidades esse diário circunda as micro-
histórias dos indivíduos que a compõe, pois a escrita que ali se encontra é a escrita da
coletividade. Assim o significado do 25 de Abril ultrapassa os limites portugueses
enquadrando-se na noção de Benedict Anderson (Anderson, 1989) de comunidade
136
imaginada, que é aquela que coexiste para além das fronteiras delimitadas de um dado
país.
A narrativa aproxima-se dos conceitos de diário estabelecidos por Phillipe
Lejeune (Lejeune, 1975) e Georges Gusdorf (Gusdorf, 1991) à medida que busca uma
verdade, adentra o território da identidade, apresenta seqüência temporal, é a expressão
do eu (aqui o sujeito é a coletividade), e elege um fato a ser contado. O autor/narrador
conhece o desfecho desses episódios que são históricos e deles possui o testemunho e o
distanciamento necessários à elaboração do gênero. Afasta-se, entretanto, dessa mesma
compreensão por não ser a expressão de um eu-sujeito histórico, não tratar de uma
realidade imediata vivenciada pelo autor, não falar sobre o instante presente do
protagonista. A memória que será desfiada através do diário, diz Mia Couto, está
guardada com o cuidado de quem sabe que não vale a pena ajustar as contas. Nessa
obra figuram cenas de autoritarismo que se estendem do viver africano ao braço do
poder colonial, na figura de Lourenço de Castro, funcionário da PIDE – a Polícia Política
Portuguesa –, em exercício em Moçambique. Interessante observar, na composição da
personagem Lourenço, é que, ao desempenhar seu papel de oficial da bandeira
portuguesa, ele a representa por convicção e também pelo ódio que demonstra ter pelo
solo africano, pelos pretos que causaram a morte de seu pai. Tais elementos são tão
fortemente demonstrados no universo ficcional que, mesmo sabendo que Lourenço de
Castro personaliza o fascismo português, não deixamos de experimentar a visão da
guerra colonial, pelo viés daqueles que saíram de sua terra para defender interesses
econômicos em nome de uma causa nacional (colonial imperialista). Em solo
137
estrangeiro, adaptaram-se a uma nova realidade, em que o desenraizamento a que
foram submetidos, leva-os a integrar o espaço imaginário de entre-lugar (BHABHA,
1998), pois estar no local de acolhimento não significa necessariamente estar identificado
com ele. E a figura deste protagonista encerra esta visão de estranhamento do local de
destino.
Lourenço, cuja relação com a PIDE foi herdada do pai Joaquim de Castro,
resumia o ofício em prender e torturar “negros subversivos”, “traidores do regime”:
“Sua ascensão na política se fez rápida, à força de muito serviço mostrado. E de muito
mais serviço que não podia mostrar” (COUTO, 1999, p. 27). As ficções trazem à tona,
pelo (des) compromisso com a história, narrativas de torturas que hoje conhecemos
através de testemunhos e relatos de presos políticos. O primeiro episódio narrado trata
do suicídio coletivo dos negros: Joaquim de Castro obrigava os presos a saltarem do
avião em mar aberto. Num destes saltos os presos se unem e levam consigo o algoz, que
acaba experimentando a própria artimanha. Essa cena se passa na infância da
personagem Lourenço e ele não apenas a presencia como o pavor da experiência o torna
impotente para prestar socorro ao pai. Essa lembrança atormenta o policial na vida
adulta. Na sala de tortura da cadeia de Moebase, chamada Kula, Lourenço exorcizava
seus fantasmas castigando os presos. Na época de seu pai essa sala era constantemente
pintada de branco para disfarçar as marcas de sangue deixadas pelos torturados. Os
métodos utilizados, resgatados pela mediação ficcional, eram para além de
espancamentos e torturas, que incluíam mutilações do corpo, abusos sexuais. O motivo
que leva os presos a julgamento é o embrião da luta revolucionária. Sob o auspício da
138
recusa do poder colonialista, militantes independentistas articulam-se através da
guerrilha no mato, da distribuição da imprensa subversiva e da infiltração em setores
governamentais com o intuito de ajudarem a causa pela libertação nacional. No que
recebem apoio das missões religiosas em exercício em Moçambique e dos colonos
descontentes com o desdobramento da política da Metrópole.
A prisão, que é cenário constante nesse diário, nos antecedentes do dia 25 de
Abril estava lotada de presos políticos, isto é, daqueles contrários ao regime imperialista
de Salazar. Desta prisão fugiam homens para engrossar a guerrilha no mato. Nas
colônias, quando é deflagrada a queda do regime, esse fato histórico adquire um
significado distinto. Mia Couto e Luís Cardoso destacam uma faceta desse episódio: o
regime na metrópole quedou, e seus representantes nas então províncias ultramarinas
ficaram entregues à própria sorte. Ou seja, todos aqueles que representaram uma causa
que dizia respeito à nação e ao sentimento imperialista português tiveram que se
defender por conta própria quando o regime ruiu. Os dois autores trazem para a ficção
esse momento como sendo aquele em que foi comunicado à nação, indistintamente, por
telefone e via rádio, que quedara o regime em Lisboa. Há uma cena em que a
personagem Lourenço de Castro surpreende-se com isso e questiona a existência de um
regime de governo, pois para ele existia a una e indivisível pátria portuguesa e o grande
pai, que era Salazar.
Se Vinte e zinco trata da fabricação do medo visto como uma moeda de dupla face
é porque há a coroa portuguesa conferindo poderes aos seus colonos administradores,
médicos e policiais (Polícia Política), e há a formação da guerrilha, a política considerada
139
subversiva Pró-Independência. De um lado está o Regime Salazarista, de outro, a mão
da FRELIMO a resistir ao colonialismo. Irene, a personagem portuguesa que assimila a
cultura africana, torna-se, portanto, aculturada e estabelece a ponte entre estes dois
mundos cambiando documentos oficiais para a oposição.
A grande metáfora talhada por Mia Couto é a representação de Moçambique
através da figura da personagem Andaré Tchuvisco, a personagem que é cegada por
presenciar cenas de abusos cometidos pelo poder Salazarista. Na obra, surge a suspeita
de que a personagem seja o elo entre os presos que fugiam para reforçar a guerrilha nos
matos, pois, para ultrapassar as fronteiras da prisão precisavam da ajuda de uma pessoa
idônea. O que reforça a imagem de que o cego Andaré pode ser lido como metáfora de
Moçambique é o argumento apresentado por outra personagem, uma adivinha que
vaticina a retomada da visão assim que chegar o outro 25, o que efetiva a libertação
moçambicana. A primeira aparição de Andaré ocorre logo ao passar das primeiras cenas
e ele é descrito como aquele que derruba a bandeira portuguesa, às escondidas.
Segundo Chevalier (CHEVALIER, 1991), o cego pode ser aquele que ignora as
aparências enganadoras do mundo e, graças a isso, tem o privilégio de conhecer sua
realidade secreta, ou é também aquele que vê outra coisa, com outros olhos. Interessa-
nos as duas concepções aqui destacadas, primeiro porque o cego é aquele que não se
ilude pela aparência do mundo, uma vez que não o vê, buscando assim representação
na essência. O cego é aquele a quem é vedado o sentido da visão e é também aquele que
é conduzido por mão alheia. Esta segunda alternativa parece-nos a mais próxima da
140
representação de Moçambique, nação guiada pela mão do governo fascista até a
conquista da autodeterminação.
A personagem Joaquim de Castro, em dado momento, precisa matar um preso
que presenciou atos abusivos, mas não o pode fazer porque o mesmo era conhecido nas
missões católicas: “os padres já não andavam de muita satisfeição com os maus tratos
cometidos pela polícia colonial” (COUTO, 1999, p.113). Em contrapartida, os mesmos
padres expulsavam alunos da missão porque achavam que ali dentro se formavam os
quadros nacionalistas. Historicamente é sabido que os quadros nacionalistas não apenas
se formavam nas missões, como delas recebiam apoio incondicional. Muitos dos
dirigentes da FRELIMO e MPLA receberam bolsas de auxílio das missões metodistas.
Aliás, a instituição metodista mais do que a católica foi responsável pela formação
política das frentes independentistas nas ex-colônias africanas lusófonas.
Na esteira da questão nacionalista africana, Mia Couto compõe a personagem
Marcelino, namorado de Irene – a portuguesa que se rende à causa pró-independência.
Marcelino é torturado e morre na prisão de Moebase. O motivo aparente desse
encarceramento é a ação praticada por seu grupo vinculado à imprensa subversiva.
Irene escreve um diário dentro do diário maior que é o de Moçambique, e registra,
através da poesia, gênero da tradição literária moçambicana, sua angústia diante da
morte de Marcelino. O poema é este:
Que a bala do corpo se retire Num disparo ao avesso se desvire e o sangue aberto se arrependa e retorne ao leito de onde escorreu Que, enfim, a espingarda seja morta
141
e se escreva na campa deste tempo: – Aqui jaz a bala sentenciada por mandato da vida contra o Homem. (COUTO, 1999, p. 74)
Além de referir à insanidade da guerra, a personagem refere a perda de um amor
africano. Ela, uma portuguesa, apaixonou-se por um homem da terra: dois opostos que,
nesse momento histórico, unem-se e separam-se pelo mesmo motivo. Segundo Dona
Margarida, mãe de Lourenço de Castro, o namorado quase-preto da irmã “veio das
tropas coloniais contaminado dessa doença – sonhar com futuros e liberdades”
(COUTO, 1999, p. 74). A doença ocorre num contexto em que os demais estados
europeus estabeleciam com suas ex-colônias novas relações (neocolonialismo), e
Portugal esforçava-se por manter os antigos vínculos imperiais, à custa da repressão dos
movimentos nacionalistas.
No mundo criado, as convicções são tomadas como verdades absolutas pelas
facções opostas. Os defensores do regime repudiam a natureza africana, seus costumes e
topografia, a raça e a cultura; os opositores do regime odeiam o sentido inverso. Há uma
personagem da raça negra, Custódio, que está no limiar entre o comodismo e a
resistência, ele é tio de Marcelino, o mulato que lidera a subversão. Custódio porta-se
com a prudência de quem sabe que é preciso uma organização massiva para vencer uma
estrutura instituída e legitimada pelo poder:
− Ser abusado a vida inteira, tio? − Fazemos como o cavalo, pá. Faz conta que obedece, mas basta ele querer, e o cavaleiro se despenha da montagem (Couto, 1999, p. 46). ......................................................................................................................
142
−Você quer fazer a revolução, Marcelino, está certo. Mas para qual finalidade? − Para dar melhor vida a meus filhos. − Pois eu tenho um plano mais simples para esse mesmo fim. Veja a Martinha, exemplo. Vou casar essa minha neta com um branco. E logo ela, num instante, transita numa melhoria das qualidades. Isso é meu socialismo, está-me entender? Rápido e acertadeiro como flecha (Couto, 1999, p. 52).
Mesmo recusando a idéia de liberdade, Custódio escuta e contra-argumenta o
discurso inflamado do sobrinho. Quando é solicitada a prestar serviço para o exército
colonial, ao decidir-se por apoiar a bandeira portuguesa, a personagem transmuta-se em
um importante e decisivo colaborador da causa independentista.
As guerras na África podem ser consideradas como uma via possível de chamar
atenção para a questão nacional, mesmo que os movimentos de libertação tenham sido
duramente reprimidos pelo governo fascista. Ocorre que os saldos de uma guerra, as
perdas humanas e econômicas são irreparáveis. Em contrapartida, se é possível citar um
fator positivo em meio aos conflitos bélicos podemos dizer que por um objetivo comum
estabeleceu-se um elo unificador de diferentes grupos étnicos. Angola, cujo exército
nacional aceitou jovens militantes de diferentes etnias para abraçarem a causa
nacionalista, pode ser citada como exemplo: “parece um paradoxo, mas a guerra foi um
elemento de unidade nacional, criou nos moçambicanos o mesmo desejo de poder viver
coletivamente na paz e construir o país na tranqüilidade”56. Etnias estas que, finda a
guerra colonial, colocaram-se em facções opostas na disputa pelo poder nacional.
Segundo Joseph Ki-Zerbo (KI-ZERBO, 1990), a violência das guerras, às vezes, é a única
56NEVES, António Loja. Esperantes. Entrevista a Mia Couto. Expresso, Lisboa, 12 dez. 1992. p. 67-69.
143
solução possível. Em entrevista a António Loja Neves, em 1992, Mia Couto corrobora
essa mesma visão: “Não queremos que ao conflito que acabamos de viver se sigam
outros, e a verdade é que a afirmação das nacionalidades só é possível neste momento
peal via do conflito, da continuação da guerra”57. Em depoimento ao 1° Fórum Social
Mundial, sediado em Porto Alegre, em 1998, um líder guerrilheiro das FARC’s (Forças
Armadas Revolucionárias da Colômbia) confirma ainda o mesmo discurso, ao ser
perguntado sobre a necessidade dos conflitos em seu país: diz ele que se no Brasil existe
a possibilidade de diálogo entre os diferentes setores da sociedade, é recomendado que
se proceda ao diálogo, entretanto, na Colômbia já não é possível, por isso a necessidade
e a justificação das guerrilhas.
A forma ficcional escolhida por Mia Couto para trazer à tona as especificidades
componentes da derrocada do império nos últimos momentos de sobrevivência foi o
diário que remete à idéia de que 25 de Abril é algo quotidiano na vida dos africanos.
Algumas simbologias são recorrentes em toda a obra citada e delimitam as fronteiras
entre os dois mundos não mais antagônicos, porque estão unidos pelo mesmo
sentimento de abandono e despertença: o cordão umbilical que sangra, que mantém
Lourenço de Castro unido à grande pátria portuguesa; a cegueira, que mantém Andaré
Tchuvisco em estado de latência; a surdez, que não permite a Custódio assimilar a idéia
de liberdade; a PIDE, que assegura o mantenimento do poder distante na colônia; a
religião africana, inapreensível para Lourenço de Castro; a cultura desconhecida, de
ambas as facções que se misturam no convívio social, já que são contagiadas pela forma
57 Ibidem. p. 69.
144
uma da outra, numa relação de estranhamento em que os africanos desconhecem o
idioma que os identifica, e os portugueses desconhecem os ritos que identificam a
matriz africana.
As facções representadas por cada personagem dão conta de um grande número
de pontos de vista sobre o mesmo fato histórico a partir da identidade narrativa (o
diário pertence a todos) e da identidade histórica (o diário é sobre a revolução). O ponto
de vista do autor (nesta obra ímpar e, também, citadina) sobre os desmandos da
empresa colonizadora não procura inventariar culpados e vítimas, tampouco martiriza a
figura do colono português. Pelo contrário, o projeto autoral se concretiza pelo enfoque
na diversidade de dramas pessoais representados pelas diferentes estruturas sociais
integrantes do sistema.
4.2.3 Terra sonâmbula: a topografia da devastação
Terra Sonâmbula é o primeiro romance de Mia Couto, lançado em 1993 pela
Editorial Caminho em Portugal, e, em 1995, pela Editora Nova Fronteira no Brasil. O
autor em entrevista a António Loja Neves diz que esse livro não foi publicado em seu
país, porque a essa época, na Associação dos Escritores de Moçambique (AEMO), estava
difícil a publicação de livros de qualquer natureza, fato que levava os próprios escritores
a buscarem patrocínio fora das fronteiras moçambicanas.
A personagem-narradora da obra é Muidinga, que percorre Moçambique - a terra
que está sonâmbula pelo desenrolar da guerra civil, após anos de domínio colonial - em
145
busca da identidade perdida. Nessa viagem iniciática, Muidinga, indivíduo saído da
terra, é encontrado por Tuahir quando estava desfalecido e sendo transportado para a
cova dos mortos – tem, portanto, sua história recontada a partir do marco zero. A
doença da qual foi acometido o deixou com seqüelas, entre elas está a perda da
memória. A personagem reaprendeu a falar e, na seqüência dos acontecimentos, a ler e a
escrever, sempre em companhia do ancião que guiava seus passos e se intitulava seu tio.
Se não há memória anterior a esse encontro - do novo com o velho elemento, ambos
perdidos dentro do solo que lhes devia servir de pátria -, ela vai sendo alimentada pela
leitura dos “Cadernos de Kindzu”, personagem que aparece na narrativa pela
intervenção – e pela voz - de Muidinga.
Pela escrita de Kindzu e pela leitura dos cadernos, Muidinga reconstrói um
passado para si através de uma memória que, a princípio, não lhe pertence, inserindo no
universo ficcional posições binárias que se materializam pela expressão do duplo. Assim
observamos o duplo na narrativa, que é dado pela história de Muidinga e Tuahir versus
a história de Kindzu; o duplo da memória, conferido pela (des) construção da memória
de Muidinga e pelo desfiar da história de Kindzu; e o duplo das personagens, pois
Muidinga vai se reconhecendo e, nesse processo, reconstruindo sua identidade através
da história de vida alimentada pela escrita. À medida que lê a personagem assimila essa
memória para si e descobre antigas faculdades esquecidas pela doença, instaurada
também pela perda da memória, cuja conseqüência ocasiona o aniquilamento da
identidade do sujeito. Motivado por esse esquecimento e pela novidade da descoberta
de um novo código (escrita/leitura), o passado e o presente da personagem se
146
confundem e se hibridizam, estabelecendo a dualidade entre o novo e o velho, a
oralidade e a escrita, a memória e o esquecimento, a identidade vivida e a identidade
forjada pelo discurso.
Assim, enquanto o narrador caminha sem rumo (como se estivesse sonâmbulo), a
terra devastada também se movimenta transformando sua geografia. À medida que
gira, a paisagem apresenta outra face da mesma nação, e o narrador percorre esse
território em transe, consoante adentra o território da história que assume para si. Seu
companheiro de travessia é Tuahir, personagem idoso que representa o papel da
ancestralidade. No exercício dessa função, contraria a habilidade de leitura e escrita que
o jovem moçambicano incorpora ao seu saber, tentando persuadi-lo de que é um
indivíduo sem passado. Sem memória, seria como se esta personagem, assim como a
terra em que habita, estivesse a nascer. E assim sendo, é necessário apegar-se aos
ensinamentos advindos da tradição da terra, do saber ancestral, e não aos novos
conhecimentos adquiridos pela assimilação de uma nova idéia de civilidade, cujo
patrimônio cultural não lhe pertence.
Se Tuahir representa a tradição, Muidinga configura o novo ser, já que se vai
revelando um cidadão assimilado pela incorporação de saberes advindos de um sistema
referencial diverso da sua origem. Enquanto Ulisses, o herói primitivo da narrativa
ocidental, realiza a travessia do retorno ao lar, este herói pós-colonial não tem para onde
regressar. O espaço circunscrito como lar é a terra moçambicana que se mostra ao
mesmo tempo mãe e madrasta. Ao contrário de Ulisses, que desfia sua narrativa para
preservar a memória, Muidinga lê sua história escrita pela mão de outro. E no
147
imbricamento entre a história narrada e a história vivida, ambas se tornam uma só e a
mesma experiência que conduz o narrador à sua formação identitária.
Muidinga corporifica o herói problemático de Georg Lukács (LUKÁCS, [s/d]),
que busca valores autênticos num mundo degradado. Esses valores seriam aqueles
enraizados no saber ancestral e que foram rompidos pela inserção de novos valores
culturais. A ruptura entre o herói e a unicidade do mundo é agravada pela presença da
luta armada. Se, citando Lukács, o romance constitui uma biografia e uma crônica social
que reflete, a seu modo, a sociedade da sua época, esta obra é um retrato de um período
conturbado da sociedade moçambicana em que os valores sociais estão em conflito,
tanto quanto o sujeito e o universo em que ele está inserido.
A viagem iniciática da personagem se processa tanto no percorrer a terra, quanto
no percorrer a vida. Se, por um lado, ele ganha vida (memória) através da assimilação
da nova cultura, por outro, ele se reconhece como indivíduo pertencente a um local
calcado em tradições ancestrais pela busca das suas raízes. No espaço discursivo, há um
momento em que esse retorno ao saber original se corporifica quando Muidinga
transcende o estatuto da infância à maturidade pela experiência sexual. O ritual de
iniciação sexual, mimetizado em Niketche, de Paulina Chiziane, que privilegia o universo
feminino das iniciadoras58, aqui é retomado pela singularização do universo masculino:
o jovem é iniciado pelo velho Tuahir. Segundo Laura Padilha: “o velho Tuahir que,
conforme a narrativa mostrará, continua a ser o senhor da sabedoria, cujo grande pilar 58 Na Parte II do Caderno de Anexos constam fotos da exposição “Sogobò – máscaras e marionetas do Mali”, assistida no Museu de Etnologia em Lisboa, em 15 de dezembro de 2004. Nas páginas 19, 20, e 21 do Caderno de Anexos, aprecem representações da figura das iniciadoras sexuais.
148
de sustentação é a oralidade, mesmo estando, como personagem que é, centrado no
universo da escrita” (PADILHA, 2002, p. 128).
Em Terra Sonâmbula a perda da memória e o desenraizamento são agravados pela
presença da guerra civil. A família das personagens, especialmente a de Kindzu,
fragmenta-se quando o pai resolve unir-se aos independentistas. Aliado a isso, o
nascimento e conseqüente desaparecimento do irmão mais novo, Vintecinco de Junho,
desagrega o núcleo familiar. Impotente quanto ao rumo dos acontecimentos, da micro-
história familiar ao contexto social conflituoso, a personagem deambula pelo território
retratando em seus cadernos os efeitos que a crise (ou ausência) de valores autênticos
causa na sociedade e na apreensão de um novo sistema referencial. O livro de Kindzu
constitui assim a topografia da guerra civil em Moçambique, porque descreve, na
realidade do mundo narrado, os problemas vivenciados nesta situação limite: desajuste
social, desagregação familiar, saques, roubos, mortes, fome, doença, carência de recursos
e de esperança.
Mia Couto refere Kindzu como um ser em conflito, que deseja o término da
guerra, mas não sabe como interferir para que essa realidade se concretize. Nem ele,
nem mesmo os anciãos - o antigo coro grego, que sabia dar conselhos - conseguem achar
uma solução para a luta armada, configurando, nessa imagem de absoluto caos social, o
signo da incompreensão que a guerra representa:
Aquele grupo de idosos, de repente, me pareceu estar perdido também. Já não eram sábios, mas crianças desorientadas. Mais que ninguém, eles sofriam a visão da terra em agonia. Cada casa destruída tombava em ruínas
149
dentro de seus corações. As mãos do professor sangravam dentro do peito dos mais velhos. Aquela guerra não se parecia com nenhuma outra que tinham ouvido falar. Aquela desordem não tinha nenhuma comparação, nem com as antigas lutas em que se roubavam escravos para serem vendidos na costa”. (COUTO, 1995, p. 31)
Persuadido a seguir outro rumo, a personagem também ingressa em uma viagem
de descoberta. O conflito apresentado em Terra Sonâmbula é o da busca de uma
identidade pessoal e coletiva. Ao mesmo tempo em que Kindzu e Muidinga tentam
encontrar a sua identidade vão discutindo e representando a intersecção identitária por
que passa Moçambique. Não significa, entretanto, que nesse momento a nação não
tenha uma identidade, mas que essa identidade está em conflito entre as culturas ligadas
à tradição e à modernidade forçada, advinda com a escola, com o uso da língua oficial,
com os novos saberes que convivem, porém não exterminam a tradição. Como lembra
Mia Couto, a tradição ancestral foi aperfeiçoada durante séculos e é a raiz cultural desta
sociedade. A personagem não se encontra, portanto, ajustada ao seu lugar, o que não
corresponde a não ter um lugar para estar, mas, sim, a não se sentir identificada com o
local onde se está.
O abrigo que Muidinga e Tuahir encontram no cenário de devastação é um
machimbombo queimado. Ao entrar no ônibus, o jovem choca-se com a morte, pois
encontra cadáveres que faz questão de enterrar para lhes dar o sossego que ensina a
tradição. Os mortos assim como no imaginário que permeia a literatura clássica greco-
latina necessitam de libações que são prestadas para acalmar os ânimos dos espíritos.
Na literatura africana, esse imaginário se repete na ordem do mundo dos homens. Em
ocasião de guerra, como as que servem de cenário às narrativas de Mia Couto, os mortos
150
“estão em promiscuidade com os vivos e tem influência no destino destes” (COUTO,
1995, p.31). O espírito do pai de Kindzu o persegue pela viagem também iniciática que
este segundo personagem-narrador emprega por terra e pelo mar, em busca de um
ajustamento que não encontra:
Aquele morto é um morto que não está em paz, a sua despedida da vida não obedeceu aos preceitos e rituais. Por isso está em conflito com o filho, para que este se reaproxime por via do regresso a fórmulas do passado59.
Kindzu, assim como Muidinga, busca um ajustamento ou enraizamento não
alcançado nesse cenário, que, pela realidade vivenciada, torna-se desconhecido. A
sensação de despertença percorre toda a obra e se materializa na figura do indiano
Surendra Valá. O indiano, nessa perspectiva de nação como pertencimento, põe em
xeque as noções de pátria para dentro da fronteira delimitada de uma dada região, e de
raça como sucessão genética. Mia Couto amplia a idéia de que nação é, antes de tudo,
identificação por similitude. E a identificação, nesse caso, se dá pela escolha (pela
amizade) ou pela comunhão (o Índico).
O mar é o elemento comum entre os da terra, os que se apropriaram dela, e os
que vêem nela uma possibilidade de trabalho, lar ou abrigo. Portanto, o fator
preponderante para a identificação entre as personagens é o pertencimento a esse mar,
que representa a comunhão entre todos os povos aqui apresentados. Em diálogo entre
Surendra e Kindzu, o indiano expressa essa concepção etnográfica para raça e para a
59 NEVES, António Loja. Esperantes. Entrevista a Mia Couto. Expresso, Lisboa, 12 dez. 1992. p. 67.
151
idéia de nação, quando diz: “nós, os da costa, somos habitantes, não de um continente,
mas de um oceano... pertencemos a mesma raça: o índico”(COUTO, 1995, p. 29). Ao
processar-se a busca pela raiz moçambicana é eleito como identidade representativa da
textura social desta nação o mosaico de culturas que convivem no espaço geográfico. Se
se pode falar em moçambicanidade como expressão de uma identidade social
abrangente, esse elemento se conjuga no plural de outras tantas vozes que com ela se
identificam.
Mencionamos anteriormente o nascimento do irmão de Kindzu, Vintecinco de
Junho, nome que remete à data da independência moçambicana. Esse filho pequeno
sofre uma ameaça e precisa ser separado dos seus irmãos desaparecendo do convívio
social. Interessante observar que a história remete à libertação moçambicana e à
disparada da guerra civil, condicionando a terra a ser guiada ou guiar-se de forma
sonâmbula, porque em realidade não tem um destino certo. Não apenas a terra
encontra-se em estado de inconstância, como é fronteiriço o momento vivenciado pelos
personagens, e fronteiriças também são as relações culturais e raciais estabelecidas nesta
obra:
Em toda a costa oriental africana há elementos característicos das diversas populações que mostram que a sua comunhão é o Indico. Mas há também o recado mais óbvio contra o sentimento anti-indiano por se terem apropriado quase exclusivamente da rede comercial60.
60 NEVES, António Loja. Esperantes. Entrevista a Mia Couto. Expresso, Lisboa, 12 dez. 1992. p. 69.
152
Se as relações de Kindzu com o indiano são de familiaridade por identificação, a
relação do indiano no convívio social não se realiza pelo mesmo critério. A família de
Kindzu protesta contra sua proximidade com o estrangeiro pelo medo de que, nessa
convivência, o jovem se afaste do seu mundo original, afinal, o indiano despertava no
menino o gosto pelas letras. Esta relação multicultural é recusada pela família, porque,
como afirma a personagem: “com o indiano minha alma arriscava se mulatar, em
mestiçagem de baixa qualidade” (COUTO, 1995, p. 29). Também o elemento rácico é
fator imperativo do preconceito nas relações sociais. A imagem de nação expressa em
Terra sonâmbula apresenta um território mestiço, entretanto, esta mestiçagem não
permanece, necessariamente, de forma natural e pacífica.
Os cadernos de Kindzu representam um diário da Guerra Civil em Moçambique,
pois começam a partir da independência e se desenvolvem no contínuo desse conflito
mostrando como, amiúde, o país se deteriora tornando-se pertença de uns e despertença
de outros. A esse respeito, Surendra Valá queixa-se a Kindzu, quando este lhe comunica
que deseja partir daquele espaço em busca de uma convivência pacífica: “fica, tu não
sabes o que é andar, fugista, por terras que são de outros” (COUTO, 1995, p. 33). O
pertencimento, quando o espaço geográfico já não mais abriga, projeta-se no mundo, no
mar, na terra, em qualquer pólo de convivência humana suficientemente grande para
não ser de ninguém e suficientemente próximo para que o indivíduo possa se sentir em
casa. Nesse estado interstício entre a condição de guerra e a espera da pacificação, as
famílias se fragmentam e as esperanças se tornam diminutas, confirmando o estado de
sonambulismo que a terra experimenta. Mia Couto diz que foi propositadamente que,
153
nessa obra, mistura nomes, tradições e costumes de diferentes regiões, ”para introduzir
num mesmo caldo a tal terra sonâmbula”61.
Se em Terra sonâmbula a história que consta nos cadernos de Kindzu pode ser
anterior à história da personagem que lê os cadernos, em Um rio chamado tempo, uma casa
chamada terra as cartas que a personagem-narrador recebe podem ser escritas tanto por
ele mesmo, quanto por seu avô Dito Mariano. No primeiro, à medida que se revela a
ação que começa in medias res, a história da vida da personagem Muidinga é
reconstruída. Sem família, sem casa ou nome próprio, pois o que tem é apelido que lhe
foi dado, a personagem anseia por lembrar-se do passado. Puxa-a na memória, quer ter
uma história para recordar. Em contrapartida, encontra perdidos na mata os “Cadernos
de Kindzu” que lhe revelam um passado que vai se confundindo com o seu próprio
passado pela ausência de história pessoal. A vida das duas personagens corre
paralelamente até o oitavo capítulo, quando elas se confundem, interceptam-se e
conjugam-se em uma só história. Kindzu devolve a Muidinga a história que ele
esqueceu.
A personagem compõe-se pela memória, não a própria memória, mas sim aquela
que a escrita lhe conferiu. Ou seja, Muidinga renasce através da escrita (leitura) dos
cadernos. Esta condição pode ser interpretada como alegoria de Moçambique. Se
Portugal tem um passado (que é narrativa) de histórias de grandes conquistas, que
constantemente são contadas e recriadas pela escrita, Moçambique tem um passado
incerto, uma vez que foi alicerçado sob a estrutura opressiva do sistema colonial. É
61 NEVES, António Loja. Op. Cit. 61. p. 69.
154
preciso que essa memória seja resgatada, e as micro-histórias aqui apresentadas
constituem uma parcela desse resgate. Ao refletir sobre a formação identitária de
Moçambique e sobre como essa imagem chega ao exterior, Mia Couto aponta a
ambivalência existente entre a vida dos que nela vivem, o ponto de vista de quem
escreve essa nação, e a imagem que chega ao exterior sobre a construção da nova
identidade:
O que acho é que os seus indicadores não chegam a Portugal. Os telejornais dão notícias da guerra como se o nosso conflito fosse um conflito clássico, com duas entidades militares confrontando-se num terreno. Há outras coisas importantes que os correspondentes não falam, como o regresso dos deslocados em muitas regiões do país, numa luta épica: o recomeço de vida para pessoas que trazem os parcos bens e apostam tudo de novo, reconstruindo casas, fazendo a destronca para recuperar as machambas perdidas. Não vejo isso nos jornais, não falam deste processo espontâneo envolvendo gente farta de esperas para retornar a normalidade das suas vidas62.
Esse livro apresenta dois caminhantes e uma mesma travessia: “os dois
caminhantes do livro são um retrato vivo de uma sociedade que espera nova chance
para construir em paz”63. Ao mesmo tempo em que o narrador dos cadernos questiona a
estrutura política na qual está assentada esta sociedade – uma estrutura calcada na
exploração econômica, no desrespeito às estruturas fundiárias em que o país se sustenta,
e na tentativa de uniformização de uma cultura essencialmente híbrida-, apresenta à
classe dirigente da política nacional uma via possível para repensar a identidade social,
a partir do equilíbrio entre a identidade assimilada e a identidade genuína, que molda o
caráter e direciona os saberes do indivíduo integrante do cenário social. A travessia
62 NEVES, António Loja. Op. Cit. Nota 61. p. 67. 63 Ibidem. p. 67.
155
realizada nessa obra é, portanto, a da busca identitária da terra em transe e do sujeito
nela inserido.
4.2.4 estórias abensonhadas: identidades em processo
Segundo Ricardo Piglia (PIGLIA, 1994), a leitura dos contos deve privilegiar
aquilo que o conto oferece como possibilidade narrativa e que pode ser observado em
duas instâncias: a história aparente e a história cifrada. A partir das possibilidades
temáticas abordadas é que se pode perceber como se forma a identidade moçambicana e
a partir de qual abordagem. Alguns temas são apresentados na tessitura dos contos
passando de Vozes anoitecidas para estórias abensonhadas, tais como: a transmissão de
ensinamentos dos mais velhos que são os representantes do saber ancestral aos mais
jovens que fazem a síntese entre a matriz autóctone e a cultura assimilada. O conto de
abertura intitulado “Nas águas do tempo” personifica esse encontro entre os mundos na
figura do avô que ensina o neto a ampliar os horizontes e enxergar para além das
aparências através do cultivo da esperança, da valorização dos costumes e tradições
nativas. A velhice, a subjugação da figura feminina, as relações interpessoais, o
machismo social, a violência da guerra, a solidão, a brutalidade do homem contra o
homem, a ignorância social, o egoísmo, a cegueira visual e social, o universo das
relações conjugais são os motivos temáticos que percorrem estas histórias escritas depois
da guerra civil em Moçambique.
156
O livro Estórias abensonhadas de Mia Couto foi lançado no Brasil pela Editora
Nova Fronteira em 1996 e, antes disso, em 1994, em Portugal pela Editorial Caminho.
Mia Couto em novembro de 1999 durante a 45ª Feira do Livro de Porto Alegre, que
homenageou Portugal, disse em palestra à PUCRS ao lado de Helder Macedo que as
histórias contadas nesse livro são de bênçãos e sonhos, não porque os moçambicanos
acreditassem na independência iminente de Moçambique, mas, sim, porque depois de
um longo período de estio, choveu em Moçambique, em 25 de Abril de 1974, e essa
chuva era a confirmação ditada pelos espíritos de que haveria mudança no rumo incerto
como prosseguia (e ainda prossegue) a sociedade moçambicana. As pessoas saíram às
ruas para comemorar a chuva que era real e que traria benefícios imediatos a elas; a
independência, que era para ser comemorada ainda parecia, nessa ocasião, uma utopia.
Segundo o autor, estórias abensonhadas:
é um livro de estórias, de pequenos contos bastante condensados para caberem em revista e jornal. A maior parte deles foram publicados, dispersamente, em Portugal e Moçambique e têm uma única característica comum: são produzidos de há dois anos para cá, após o acordo de paz64.
A abertura do livro feita por um mini-conto, ou uma micro-estrutura narrativa,
espécie de introdução à obra, dá a tônica ao grande tema que será abordado deixando
transparecer uma paixão pela terra, uma esperança no homem e uma tristeza com o
64 SILVA, Rodrigues da. Mia Couto: um escritor abensonhado. JL Entrevista, Lisboa, 17 ago. 1994. p. 14-16.
157
destino reservado para a nação. O autor fala sobre os anos de silêncio em Moçambique,
sobre os efeitos da guerra e suas armas, “que por muitos anos tinham vertido luto no
chão de Moçambique” (COUTO, 1996, p. 5). A escrita das estórias de bênçãos e sonhos é
marcada pelo peso, sobretudo, da guerra civil, mas é marcado igualmente pela
esperança depositada na força da resistência humana. Luiz Raul Machado na
apresentação do livro e do autor chama atenção a um fato bastante conhecido para
quem é leitor de Mia Couto: a influência confessa que o autor diz ter de Guimarães
Rosa. Nessas estórias, o leitor reencontrará o grande renovador da língua portuguesa,
com raízes fincadas no imaginário fecundo do povo e da generosa terra moçambicana65.
Tal influência é sentida no primeiro conto apresentado na obra, não só pela
proclamada inovação na linguagem, mas, sobretudo, pela temática que permeia o texto.
"Nas águas do tempo" dialoga diretamente, no jogo intertextual, com o conto "A terceira
margem do rio", de Guimarães Rosa (ROSA, 2001). No conto roseano há uma
personagem que enxerga a vida sob ótica distinta das demais personagens integrantes
do mundo criado. Esse ponto de vista é apresentado pela mediação ficcional como a
terceira margem de um rio que se mostra como uma via possível de análise da realidade
circundante calcada no signo da esperança. A personagem pai circunscreve seu mundo
a uma canoa parada junto à margem esquerda do rio, e, assim, deixa o tempo passar e a
natureza agir sem que sua mundividência seja abalada. Enquanto em Guimarães Rosa o
ideário da resistência ao mundo apresentado transmite-se de pai para filho, em Mia
Couto, a sabedoria transmuta-se do avô ao neto.
65 Apresentação de Luiz Raul Machado a Mia Couto. COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.
158
As temáticas abordadas nos contos assemelham-se, porque ambas falam de
expectativas e visões do mundo. O autor incita à reflexão sobre outra perspectiva de
análise social. Se as mudanças necessárias ao desenvolvimento e ao progresso da nação
não estão concretizadas, há a possibilidade de esse processo construir-se. Ainda que a
sociedade ou as propostas de reestruturação social sejam falhas ou omissas, se for
conservada uma visão estanque do mundo não há enredo, assim como não haveria luta
independentista. No momento em que uma nova postura se ergue e, com ela, a
esperança de transformação, observa-se a narração de um enredo que pode ser
provisório, mas que ainda assim é uma possibilidade de tecer essa nova história.
Isto posto, escolhemos um fragmento do conto que denota o esforço do avô em
fazer com que o neto aprenda a enxergar os vultos que acenam da outra margem do rio:
Aquele era o lugar das interditas criaturas. Tudo o que ali se exibia, afinal, se inventava de existir. Pois, naquele lugar se perdia a fronteira entre água e terra. Naquelas inquietas calmarias, sobre as águas nenufarfalhudas, nós éramos os únicos que preponderávamos. Nosso barquito ficava ali, quieto, sonecando no suave embalo. O avô, calado, espiava as longínquas margens. Tudo em volta mergulhava em cacimbações, sombras feitas da própria luz, fosse ali a manhã eternamente ensonada. Ficávamos assim, como em reza, tão quietos que parecíamos perfeitos. De repente, meu avô se erguia no concho. Com o balanço quase o barco nos deitava fora. O velho, excitado, acenava. Tirava seu pano vermelho e agitava-o com decisão. A quem acenava ele? Talvez a ninguém. Nunca, nem por instante, vislumbrei por ali alma deste ou de outro mundo. Mas o avô acenava seu pano. - Você não vê lá, na margem? Por trás do cacimbo? Eu não via. Mas ele insistia, desabotoando os nervos. - Não é lá. É láááá. Não vê o pano branco, a dançar-se? (COUTO, 1996, p.10).
159
Se em "A terceira margem do rio" o pai consegue dividir sua experiência com o
filho - que, convencido pela convicção do pai, resolve tomar seu lugar até ser acometido
pelo medo de embarcar na canoa da resistência - e aponta para a esperança de que se
perpetue essa imagem e essa visão do mundo, em "Nas águas do tempo" ao continuar o
diálogo metaficcional Mia Couto sugere que essa luta não é vã. Na continuidade da
história própria da cultura moçambicana, em que os conhecimentos são transmitidos via
oral de geração a geração, o autor apresenta o bisneto sendo instruído a ver o mundo
com “os olhos que se abrem para dentro, esses que usamos para ver os sonhos”
(COUTO, 1996, p. 12):
Enquanto remava um demorado regresso, me vinham à lembrança as velhas palavras de meu velho avô: a água e o tempo são irmãos gêmeos, nascidos do mesmo ventre. E eu acabava de descobrir em mim um rio que não haveria nunca de morrer. A esse rio volto agora a conduzir meu filho, lhe ensinando a vislumbrar os brancos panos da outra margem (COUTO, 1996, p. 13).
O signo da esperança na obra de Mia Couto é alimentado na luta pela
sobrevivência nos tempos da guerra. O autor destaca que uma característica
surpreendente do indivíduo moçambicano é a capacidade de recomeçar e de reconstruir
seu próprio universo a partir dos destroços deixados pela guerra. “O cego Estrelinho”,
título de outro conto de estórias abensonhadas, é uma destas personagens que, embora
privada do sentido da visão, como já antecipa o título, acredita na realidade circundante.
Seu guia, entretanto, criava narrativas para mascarar a brutalidade do meio social que
vivenciava. O que podemos observar nesse conto é a troca de função entre as
160
personagens a partir da troca de sentidos: o guia, que é aquele que enxerga, descreve
um mundo que não existe. Neste conto o cego não testemunha a realidade visual e não
quer compreender a realidade social. O guia, que pode enxergar o mundo pela ótica do
real, prefere recriá-lo em narrativas. Mesmo nesse mundo de criação a realidade acaba
tomando seu lugar e importância, quando a guerra começa sua influência no
desenvolvimento do cenário social não pode ser ignorada. A história da guerra civil é
legitimada por micro-histórias pessoais. Assim como no âmbito da história ela pode ser
contada pelo prisma de uma personagem, que nesse caso é a guerra, pela ficção esta
mesma história pode ser recriada através dos múltiplos quadros narrativos presentes na
tessitura textual.
O autor materializa esse fazer histórico de forma singular representando uma
nova forma de dizer a realidade social do pós-colonialismo. Há, nestas micro-histórias,
sempre algo mais a dizer que cativa pelo despertar da catarse, pela emoção que provoca,
pela realidade que a ficção trás à tona e que, de certa forma, é a realidade que motiva
estas histórias. Nesta obra de Couto também observamos a flexibilidade da linguagem
aliada à inovação do dizer. Verbos, substantivos e adjetivos que não se correspondem
ou não se traduzem mutuamente encontram-se para formar novos sentidos.
Podemos observar o potencial dramático dos contos pela exposição das fraquezas
humanas que avultam no cenário já fragilizado pelo conflito social. Assim o alcoolismo,
a caridade, a pobreza, o sofrimento e o egoísmo destacam o estado de miséria em que
vivem as personagens. No espaço discursivo, o conto “O calcanhar de Virigílio”
potencializa as condições limítrofes da natureza humana: para cumprir a tradição
161
ancestral que sustenta o ritual fúnebre de despedida dos mortos e transcendência do
espírito, as personagens constroem um caixão unindo os poucos móveis que possuem.
Expressa a condição de miséria absoluta e de superação empreendida pelo esforço
comunitário configura-se, assim, uma realidade social que, sem esforço algum do
narrador comove o leitor quando vem à tona.
Porém em "Chuva: a abensonhada", conto que confere título ao livro, o signo da
esperança que vai ganhando espaço na obra é retomado. A ação centra-se no diálogo
entre o narrador, que é jovem, e sua tia, que se esforça por fazê-lo respeitar os valores da
terra. Enquanto o narrador vislumbra na chuva um fenômeno meteorológico, para a
anciã “a chuva não é assunto de clima mas recado dos espíritos”(COUTO, 1996, p. 43).
No mundo narrado a guerra alcançou o fim e essa realidade circunstancial é aprovada
pelos espíritos que homenageiam Moçambique com a abundância de chuva depois de
um longo período de estio. Também esse acontecimento conforme a sabedoria
tradicional precisou de um tempo de maturação. A conturbação presente no meio social
não permitia o desenvolvimento sadio das forças da natureza. Quando essa realidade
transmuta-se em possibilidade de paz, os fenômenos naturais passam a rearticular sua
inserção no mundo dos homens:
As chuvadas foram no justo tempo encomendadas: os deslocados que regressam a seus lugares já encontrarão o chão molhado, conforme o gosto das sementes. A Paz tem outros governos que não passam pela vontade dos políticos (COUTO, 1996, p. 44).
Essa divergência de pontos de vista entre tia e sobrinho aponta também para os
antagonismos presentes na realidade factual entre convenção herdada e saber
162
assimilado, velho e novo, escrita e oralidade. O estranhamento advindo dessa
convivência na diversidade repercute como categoria estética e como ordem do vivido.
Sobre esta ordem, Mia Couto dá o seguinte depoimento:
A notícia de acordo de paz não provocou entusiasmo nenhum no cotidiano de Moçambique. Fiquei surpreso e acreditei que as pessoas não acreditavam. Desconfiavam. Mas, por uma dessas coincidências a que a gente chama coincidência por que temos medo de usar outra palavra, após um grande período de seca, a seguir à assinatura do acordo, começou a chover. E então, sim, as pessoas saíram à rua e festejaram. A chuva era a forma como a notícia do acordo se apresentava de uma forma credível. E nessa altura me surgiu esta palavra, abensonhada, atribuída à chuva. Ela era abensonhada porque era esperada e surgia como uma bênção. Utilizei a palavra no título pensando que, tal como a chuva, estas estórias ou os temas que lhe serviam de base eram qualquer cosia de abensonhado66.
Se em “Chuva: a abensonhada” Mia Couto retrata o devir da esperança, em
"Jorojão vai embalando lembranças" apresenta o primeiro dentre estes contos em que há
referências explícitas ao contexto histórico da guerra colonial expresso nos seguintes
termos "regime fascista", "Abril de 1974", "delegação de chefes da PIDE". A história
aparente está centrada na personagem Jorge Pontivírgula. E o cenário histórico
configurado na proximidade do dia 25 de Abril de 1974 não dirime o caráter irônico que
o conto apresenta através de uma série de mal sucedidos ocasionados pelas diferentes
interpretações da ordem do vivido. Nessa brincadeira com a vida de Jorojão, Mia Couto
66 SILVA, Rodrigues da. Mia Couto: um escritor abensonhado. JL Entrevista, Lisboa, 17 ago. 1994. p.14-16.
163
deixa transparecer que a história é feita não apenas de relatos, como, sobretudo, de
pontos-de-vista. Dependendo do momento histórico vivenciado, a personagem é herói
ou vilão pelos mesmos atos realizados. A forma de relacionamento estabelecida com a
cultura tradicional reproduz os mesmos mecanismos opressivos do período colonial. As
cerimônias rituais são chamadas de feitiçaria e este desrespeito é sempre criticado por
Mia Couto. Nessa história há um limite estabelecido pela intersecção na narrativa do
tempo histórico que transita do colonialismo à liberdade. Em O último vôo do flamingo
uma personagem descreve o fato histórico marcado pelo tempo colonial, donde também
se percebe a complexidade da formação identitária moçambicana:
Falam muito em colonialismo. Mas isso foi coisa que eu duvido que houvesse. O que fizeram esses brancos foi ocuparem-nos. Não foi só a terra: ocuparam-nos a nós, acamparam no meio das nossas cabeças. Somos madeira que apanhou chuva. Agora não acendemos nem damos sombra. Temos que secar à luz de um sol que ainda não há. Esse sol só pode nascer dentro de nós. (Couto, 2000, p. 146).
Se toda a identidade moçambicana se molda pelo cultivo da tradição, o
desrespeito se apresenta como uma tentativa constante de obstruir esse laço que se tenta
estabelecer com a história nativa. É tênue o limite que separa a narrativa realista de Mia
Couto da expressão que embasa a tradição cultural moçambicana. A história ficcionável
segundo a crença (a história latente), a que como se pedisse desculpas por existir precisa
ser contada é a história africana. A história que é oriunda da cultura da oralidade e da
mitologia é transposta para essa nova realidade que é representada pela cultura escrita.
Por isso toda a narrativa é antes pautada por uma ação concreta, para que, em cima dela,
164
ou com base nela, seja contada a outra história interdita à lógica realista ocidental.
Assim, a expressão cultural dessa sociedade é centrada no código da oralidade e, dentro
disso, no embasamento religioso calcado no espiritualismo e na harmonia da
convivência entre vivos e mortos que, por razões diversas, é sempre apresentado ao
mundo ocidental pela compreensão da lógica realista com a qual, evidentemente,
distancia-se.
A guerra aparece nessa obra como cenário para o desenrolar das histórias, ou,
melhor ainda, como justificativa para a existência da história, uma vez que a guerra é o
motivo da mudança de comportamento das personagens. As histórias, entretanto,
desenvolvem-se para além desse cenário devastador e revestem-se de uma beleza
humana indescritível, como em três contos de estórias abensonhadas que são “Sapatos de
tacão alto”, “Os infelizes cálculos da felicidade” e “Joãotónio, no enquanto”. “Sapatos de
tacão alto” narra a história de Zé Paulão, homem de ascendência portuguesa, que, após
a fuga da esposa, vive sozinho em uma casa. A solidão em que vive a personagem torna-
se motivo de especulações pela vizinhança até que uma criança consegue descobrir o
mistério que o envolve. Este conto consegue ser, dentre muitos, aquele que desnuda
minuciosamente a alma humana e seus anseios, independente do contexto social em que
está inserido. O narrador fala de um desejo socialmente reprimido de um homem que,
no ostracismo do seu lar, dá vazão às suas fantasias. Ele, num primeiro plano, cumpre
seu papel com a sociedade e as convenções sociais, casando-se, após o rompimento
deste laço, o que vem à tona são as sutilezas da alma humana que independem de sexo,
cor, idade, classe social ou contexto histórico para se concretizarem.
165
“Os infelizes cálculos da felicidade” narra a história de um professor de
matemática sexagenário que se apaixona por uma aluna e é assaltado pelo temor de ser
abandonado. Outra vez o que se observa é a ausência total de um cenário histórico como
pano de fundo, e o foco centrado no detalhe das relações humanas. Mia Couto fala dos
medos mais secretos da alma humana, da falta de lógica que permeia as relações
afetivas, das reações adversas diante do desconhecido. É um conto de incertezas apesar
do título e do próprio personagem central remeter a indícios de logicidade matemática.
A vida, no entanto, mostra-se em seu justo antagonismo, naquilo que não se pode
medir.
Em “Joãotónio, no enquanto” o narrador escreve uma carta ao irmão relatando os
problemas conjugais que enfrenta e pedindo a esse interlocutor invisível alguma forma
de explicação. As reflexões do narrador-personagem se voltam para questões inerentes
ao ajustamento social através da inversão dos papéis de homem e mulher, pois, estando
Joãtónio no papel não de dominador, mas de dominado, também ele se ajusta a uma
nova condição. A mulher que antes era submissa e sem vontades transmuta-se em um
ser atuante, decidido e incisivo. Importa notar que isso se torna possível a partir do
domínio da relação corporal e, mais ainda, sexual. É a metáfora da libertação feminina
através do corpo e do seu comprazimento como já foi anteriormente abordado via
história e literatura em língua portuguesa, desde Mariana Alcoforado, no século XVII.
Para concluir a mundividência apresentada em estórias abensonhadas, no conto
“Lenda de Namarói” Mia Couto traz a focalização para a personagem feminina em
forma de denúncia de uma condição de inferioridade social. Talvez dentre todos os
166
demais, este seja o conto que melhor projeta a cosmogonia africana como antagonista da
visão bíblica do mito adâmico que pauta a cultura ocidental através de uma história que
narra o surgimento do homem a partir da mulher. A diferença entre os sexos é
desenvolvida igualmente pela diferença da disposição física no espaço: mulheres
habitam uma margem do rio e homens habitam a margem oposta. Ambos unem-se em
torno do fogo (desconstruindo o mito de Prometeu Acorrentado), cujo poder e posse é
concedido apenas às mulheres. O rio que separa ambos vai estreitando à medida que os
dois começam a partilhar o mesmo espaço e, igualmente, a conviverem em harmonia.
Esta harmonia é dada pela sabedoria feminina: é a mulher que, em sendo organicamente
superior ao homem, é também condescendente com as inerentes fraquezas dele. A
figura feminina, que dá a luz, rompe a vida através do corte do cordão umbilical, poder
esse que por mais que o homem inveje, jamais poderá ter. O projeto autoral de estórias
abensonhadas principia pela visão de um ancião e de uma criança, e conclui-se pelo ponto
de vista centrado na figura feminina, que é aquela que pode gerar a transformação a
partir da gestão da vida que pode nascer de dentro de si. Esta disposição de elementos
humanos na narrativa, sendo intencional ou não, mostra os ícones da esperança
anteriormente antecipada pelo autor como constitutiva da tônica desta obra.
As grandes metáforas da obra de Mia Couto centram-se, a exemplo de Luandino
Vieira, no vôo das aves que simbolizam a liberdade, ou nas raízes da terra que são a
tradição. Os romances de Mia, mais especificamente, podem ser analisados em duos
temáticos. No primeiro temos A Varanda do Frangipani e O último vôo do flamingo, em que
inspetores estrangeiros desvendam crimes ocorridos em solo africano e os fatos
167
concretos que permeiam esses acontecimentos esbarram na tradição moçambicana,
pautada pela presença do imaginário sobrenatural. Os espíritos dos mortos convivem
com os vivos e interferem no quotidiano, tal como na tradição dos mitos helenistas a
presença dos deuses é fundamental para o desenrolar do quotidiano. Os crimes evocam
momentos de corrupção, abuso de poder, lucro sobre o sofrimento humano. Pelo
imaginário da guerra os mortos que não tiveram cova ainda permanecem no mundo,
interagindo com os vivos. No segundo caso temos Terra sonâmbula (seu primeiro
romance) e Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, em que duas histórias correm
paralelas na narrativa, misturam-se e confundem-se com uma história só – a história dos
narradores.
Se todos os temas tratados pelo autor colocam Mia Couto na esteira dos grandes
clássicos, também configuram os moldes em que é construída a identidade
moçambicana. Através de micro-histórias pessoais Couto tece um diário para
Moçambique e, com ele, mostra todos os lados da guerra: desde o negro que sofre com a
colonização até o colonizador que cumpre ordens e integra-se à ideologia do sistema
imperialista. Centrando-se nestas histórias de inúmeros temas o autor (re) conta, (re) cria
e (re) constrói uma identidade e uma história para o seu país.
Mia Couto define sua escrita como sendo desarrumada e justifica isso como algo
não intencional, mas produto do meio de onde ela se origina. O desvio com relação à
norma padrão da língua portuguesa faz parte da cultura local, da comunidade de onde
o autor busca inspiração para a construção das suas personagens. Ele tem um pé nos
dois mundos, o da escrita e o da oralidade, e a fusão entre eles, argumenta, cria uma
168
beleza estética, algo que funciona sob o ponto de vista lingüístico e literário,
interrogando aquilo que lhe é familiar. E a intenção, pode-se dizer, é mesmo essa: a de
mostrar a existência de dois mundos. Não faz sentido narrar histórias de pessoas
comuns utilizando-se de uma linguagem que não integra o seu horizonte. A sua
linguagem, o mundo que conhecem, é o desvio da norma culta, portanto, é assim que
estes universos podem e devem ser descritos. As pessoas cujas histórias passam ao
plano da ficção precisam despedaçar a língua culta para que ela se torne sua, para que
elas a compreendam como sua. É assim que elas traduzem o seu mundo.
É possível conhecer a história e a identidade da nova nação moçambicana através
destas narrativas. Isso de forma alguma soa panfletário, pois Mia Couto consegue
denunciar injustiças sociais sem que nos apercebamos que a palavra, em suas mãos,
constitui uma ferramenta de denúncia. Não se perde em momento algum o gosto pela
fruição do fenômeno estético. Pelo contrário, o ritmo das construções sintáticas de Mia
Couto embala nossa leitura.
444...333 MMMOOOÇÇÇAAAMMMBBBIIICCCAAANNNIIIDDDAAADDDEEE EEEMMM PPPRRROOOCCCEEESSSSSSOOO OOOUUU EEESSSTTTAAARRR DDDEEESSSIIILLLUUUDDDIIIDDDOOO NNNÃÃÃOOO ÉÉÉ
DDDEEESSSIIISSSTTTIIIRRR
Acompanhar a trajetória literária de um autor é também presenciar um processo
de auto-reconhecimento, maturidade e superação de dogmas e conceitos que pautam
sua carreira e sua compreensão sobre a sociedade em que vive. Acompanhar a trajetória
de um escritor africano, e mais, de um escritor moçambicano – oriundo do país que
169
vivenciou mais rapidamente as experiências de mudanças radicais: colonialismo e
guerra colonial, independência e guerra civil, FRELIMO e governo marxista-leninista,
FRELIMO e governo neoliberalista -, é também acompanhar as modificações dos
conceitos e das necessidades através de uma faceta da composição de sua identidade,
que é a expressão literária.
Citando o escritor nigeriano, Prêmio Nobel de Literatura em 198667, Wole
Soyinka, numa entrevista concedida à Lívia Apa68 em 1998, Mia Couto sugere que não é
necessário discutir os elementos que formam a moçambicanidade porque “a tigre,
ninguém precisa dizer de sua tigritude”. No entanto, nem sempre foi essa a postura do
escritor diante das especificidades que pontuam a identidade de Moçambique,
tampouco a postura da sociedade cultural moçambicana no que tange à sua
representação cultural.
Assim, em 1988, Mia Couto declara a António Loja Neves69 que a
moçambicanidade está a nascer. Na entrevista, logo nos primeiros momentos de sua
carreira depois de ter lançado Raiz de Orvalho e Cronicando o escritor destaca a
importância em referir a essa nova realidade que experimenta o país. Dez anos mais
tarde, entretanto, diz não ser necessário discutir as nuanças de ser ou não ser
moçambicano. Certamente, no momento em que não se torna mais necessário discutir
67 Até o presente momento, 4 prêmios Nobéis de Literatura foram distribuídos para escritores africanos: 1986 – Wole Soyinka ou Wole Sohynka (Nigéria), 1988 – Nagib Mahfus (Egipto), 1991 – Nadine Gordimer (África do Sul) e John Maxwell Coetzee (África do Sul), em 2003, sendo o nigeriano, dos autores citados, o único escritor africano negro. 68 APA, Lívia. “Mulato não de raça, mas de existência”. Caravela. Instituto Universitário Oriental. Napoli. 1998. (p. 55-56). (Studi e ricerche di lingua e letteratura di espressione portoghese). 69 NEVES, António Loja. Não chega estar vivo. Viver é mais. Jornal África, Angola, 27 jul. 1988. p. 21-22.
170
essa questão é porque ela já foi exaustivamente discutida, bem como sua representação
na história e na literatura:
há esta concepção no meu país de que a moçambicanidade está a nascer, vai formar-se, vai ter origem e raiz nesses dois fatores basilares, especialmente, no substrato cultural bantu das cidades, depois nos valores que a luta de libertação e a revolução mexeu e foi inculcando70.
Em 1990 Mia Couto diz que se a moçambicanidade está em construção, a língua
portuguesa que a sustenta não está acabada, pois “está sujeita a pressões de
coincidência, ou antes, que fazem com que cada uma daquelas comunidades imprima
nesse mesmo pilar de moçambicanidade a sua própria impressão digital”71. A língua
portuguesa, portanto, apresenta-se como um fator basilar para a expressão do que é
nacional porque, mesmo sendo uma língua européia herdada do processo de
colonização a que esteve sujeita esta sociedade, é a língua que vai comunicar e definir o
nacional para além das fronteiras geográficas do país e do continente africano através de
um código assimilado e eleito como digno representante.
Na mesma entrevista, o autor refere à distinção entre o que é lutar pela
moçambicanidade no país e o que é lutar pela Negritude. O Movimento da Negritude
teve fundamental importância histórica na afirmação da identidade africana através da
representação ficcional da realidade do elemento maioritariamente genuíno deste
continente. Nesse sentido, afirmar a produção literária oriunda de escritores de raça
negra em detrimento e quase repúdio à literatura colonial, que apresentava o negro 70 Ibidem. 71 Mia Couto em entrevista ao Jornal África. COUTO, Mia. É preciso aceitar uma certa morte e renascer um bocado. África, Angola, 18 jul. 1990. p. 21-22.
171
como elemento débil ou sem importância nesse fazer histórico, adquire vulto no sentido
de construir, via literatura, um movimento de resistência a essa condição de
inferiorização social. Entretanto, uma vez passada a independência desta nação outras
vozes se juntaram a estas primeiras, como as poesias de protesto da FRELIMO ou
mesmo a produção de escritores de ascendência européia com ideologia anti-fascista ou
anti-colonialita, como é o caso de Fernando Couto, o pai, e Mia Couto, o filho.
Afirmar a moçambicanidade hoje é afirmar, por identificação ou mapeamento,
uma cultura que represente a nação não apenas no seu elemento rácico genuíno, como
também nas dimensões multiculturais iniciadas pela empresa colonizadora e que hoje
formam o mosaico de culturas, raças e línguas que é Moçambique. Logo, quando Mia
Couto afirma que “em Moçambique está-se a lutar pela moçambicanidade e não pela
Negritude”72 está respondendo a esse posicionamento ortodoxo que imprime ao ser
africano a afirmação de sua negritude. Afirmar ou construir a moçambicanidade é, além
de comunicar em uma língua involuntariamente híbrida que adquiriu nessa experiência
uma nova sintaxe, também representar este local de cultura na sua particularidade de
local. Falar do contexto contemporâneo de Moçambique, que é quando a adjetivação
deste estado se constrói, é remeter ao contexto da guerra de independência, da
libertação e da guerra civil.
Diz Mia Couto na entrevista ao Jornal África aqui citada que “a guerra hoje é um
fenômeno de banditismo armado”, argumento que, segundo Christian Geffray, é
utilizado pela sociedade civil para caracterizar a ação da RENAMO, movimento armado 72 Mia Couto em entrevista ao Jornal África. In: NEVES, António Lojas. É preciso aceitar uma certa morte e renascer um bocado. África, Angola, 18 jul. 1990. p. 21.
172
que surge em oposição ao governo da FRELIMO. Em Terra sonâmbula Muidinga refere
aos bandos armados que destroem as aldeias e são responsáveis pelo caos que assola o
país.
Dois pontos de discordância entre o plano de governo da FRELIMO e a ideologia
da RENAMO podem ser considerados como fulcrais para o desenvolvimento do país. O
primeiro deles é o processo massivo de alfabetização. Diz Mia Couto:
O fato de, durante esta guerra, sistematicamente se terem assassinado professores e destruído escolas, liquidou o espaço onde o português era ensinado e divulgado, originando um decréscimo da sua importância nas zonas rurais e facilitando o desenvolvimento das línguas nacionais. Já nas cidades, em que o ensino do português se manteve, ele é a língua de maior domínio. (...) Devemos lutar para preservar as línguas nacionais, mas deve-se simultaneamente entender que o português que se vai popularizando também é uma língua moçambicana e deve ser tratada como coisa que é nossa e não como um fardo. É um elemento fulcral para que possa nascer a tal moçambicanidade, a unidade nacional que ainda hoje se acredita ser um valor73.
O projeto que ao mesmo tempo vota pelo desenvolvimento de uma língua única
representativa da unidade nacional, depõe contra a evolução das línguas étnicas,
genuínas representantes da cultura africana pré-assimilacionista. Sob a bandeira da
democracia lingüística a RENAMO investe contra a estrutura de alfabetização maciça
desenvolvida pela FRELIMO, atacando principalmente a comunidade rural, já que as
cidades tinham estruturas próprias de autodefesa. A esse respeito o autor declara que
acha correta a posição da FRELIMO de ensinar o português o máximo possível pela
norma e permitir “o aparecimento de uma variante que fosse resultado não da
ignorância nem do lapso, mas da incursão de culturas, da capacidade de apropriação. A 73 NEVES, António Loja. Esperantes. Entrevista a Mia Couto. Expresso, Lisboa, 12 dez. 1992. p. 67.
173
criação pelo domínio da norma e não pela falta dele”74. O que remete à reflexão sobre a
possibilidade de execução de tal projeto, uma vez que o processo de alfabetização em
massa (de uma língua praticamente estrangeira) nem de longe permite o domínio da
técnica.
Moçambique segundo Mia Couto é um país essencialmente rural. Nas sociedades
rurais há o princípio da redistribuição que prevê que o indivíduo dono da machamba
possa acumular riquezas desde que essas sejam redistribuídas aos demais familiares.
Este é um paradoxo encontrado na aplicação da proposta marxista no campo, segundo o
autor: “Estes valores morais estão presentes até hoje, inclusive na cidade, pois nos
nossos países a fronteira entre a cidade e o campo é de contrabando fácil. A violação do
princípio de redistribuição é aquilo que não se perdoa nos novos burgueses”75.
Seguindo tal lógica, percebemos que num primeiro momento o que permeia o sistema
econômico nas sociedades rurais está na base do capitalismo, já que é necessário e bom
enriquecer, posteriormente, há a base do sistema socialista, pois esta riqueza só tem
sentido se for compartilhada com os demais familiares.
Essas propostas foram experimentadas nas sociedades rurais enquanto a via da
cultura ou o respeito à cultura local jamais deveria ter ficado em segundo plano.
Destacamos também que esse projeto é aplicado no governo da FRELIMO, portanto, no
período pós-independência, quando já não é mais possível culpabilizar o colonialismo
pelo desrespeito à cultura e ao imaginário social africano.
74 Ibidem. p. 67. 75 Id. Mia lança novo romance em Lisboa: temos de nos autorizar a pensar em poesia. Público, Lisboa, 15 jun. 1996. p. 2-3.
174
Esse é apenas um dos fatores do desencanto com os rumos do governo no seu
país. Outros há que merecem destaque. O primeiro deles, indubitavelmente, é o saldo
deixado pela guerra civil em Moçambique: 1 milhão de mortos num país de 14 milhões
de habitantes. Segundo Mia Couto, à euforia que se seguiu ao acordo de paz – que na
ficção é descrito como se fosse um acordo realizado entre vivos e mortos – seguiu-se
também “a percepção de que as coisas seriam mais complicadas. Apesar deste
sentimento épico de que iríamos poder recomeçar tudo, apercebemo-nos logo a seguir
que as feridas que a guerra provocara são muito mais profundas do que pareciam”76.
Isso não é o mesmo que desistir de apostar em um melhor desempenho de
governo nos projetos públicos, é apenas estar lúcido o suficiente para enxergar que não
é tão simples modificar uma estrutura contaminada por outro regime de interesses
distintos apenas com o decretar da independência. Antes de tudo é preciso aprender a
governar, ou nas palavras de Mia Couto “estar desiludido não é desistir”.
O segundo fator diz respeito à educação. Para o autor moçambicano “é
importante reparar que a vontade de aprendizagem e de êxito se chocam
freqüentemente com insuficiências de modelos políticos, com as opções de gestão e de
administração da sociedade”77. Apesar das grandes transformações culturais por que
passou a sociedade moçambicana nos últimos 30 anos, não muito antigamente, na
década de oitenta, havia escassez de material para a produção escolar. Antes do
aparecimento da N’Djira, por exemplo, havia a experiência singela da nacionalização do
76 NEVES, António Loja. Mia Couto: estar desiludido não é desistir. Expresso, Lisboa, 17 ago. 1996. p. 69. 77 NEVES, António Loja. Mia Couto: estar desiludido não é desistir. Expresso, Lisboa, 17 ago. 1996. p. 69. p. 64.
175
parque gráfico, onde os moçambicanos passaram a publicar seus livros e a AEMO, cujo
entrave além da escassez de recursos era um certo racismo contra escritores brancos.
O racismo pode ser considerado o terceiro elemento. Embora hoje a sociedade
moçambicana seja melhor compreendida como complexo hibridamente cultural, o
racismo que no período colonial era direcionado à raça negra, no posteriormente à
independência voltou-se à raça branca. Não que uma forma eliminasse a outra em
qualquer das épocas, apenas foi mais nitidamente observado conforme a vigência dos
regimes políticos e suas ideologias. Sobre este assunto, Couto diz em entrevista ao JL –
Jornal de Letras78 que nunca foi preciso que lhe explicassem o racismo, pois presenciava
no quotidiano esse apartheid velado: na sua turma de escola, de trinta alunos apenas dois
eram negros, e um era oriundo de Cabo Verde. Quando o autor se mudou da Beira para
a ex-capital colonial Lourenço Marques vivenciou outra experiência, pois na capital
havia menos racismo e um forte movimento estudantil.
Há um quarto elemento que ainda é preciso discutir que é o uso (abuso ou
omissão) da informação sobre África. Mia Couto anteriormente à independência não era
“militante de cartão”, mas a um pedido da FRELIMO dias antes do dia 25 de Abril
abandonou a faculdade de Medicina e iniciou-se no jornalismo. Foi trabalhar na
Tribuna, cujo diretor era Rui Knopfli e, em seguida, com 20 anos, passou a diretor da
Agência de Informação de Moçambique (AIM), e depois a diretor da Revista Tempo e
do jornal diário denominado Notícias. Ou seja, sua incursão pelo jornalismo ocupou dez
anos de sua carreira, momento este que o autor relata ter viajado ao interior e por todo o
78 SILVA, Rodrigues da. Um escritor à varanda da história. JL Letras, Lisboa, 19 jun. 1996. p. 12-13.
176
país atrás de informação. Por isso, também, segundo diz, suas narrativas dão conta de
trazer à tona uma realidade social que muitas vezes é negligenciada pela imprensa,
quando não pelo próprio governo. O autor reclama da onisciência com que os meios de
comunicação e, com eles, a sociedade se posiciona diante disso: “a informação
portuguesa sobre África é muito pouco séria, nunca investiga, nunca interroga, nunca
vai lá, quando se fala com um português sobre África o português já sabe”79.
Então, suas narrativas respondem de certa forma a essas questões que fazem
parte da formação do imaginário de uma nação e da imagem que se tem dela no
exterior. “Moçambique é uma nação que está a criar-se”:
Sendo um país que não tem identidade fixa, ele está a inventar o seu próprio retrato. Esta invenção do retrato exige a invenção de uma linguagem. E não só. De estilos, de narrativa. Que narrativa nos serve para contar aquele país que não é contável? Não é contável porque não existe, é feito destes projetos pequenos que nós vamos somando. E nesse aspecto acho que sou eu que apanho boleia80.
Como a nação, segundo Mia Couto, está se formando todos os retratos – e isso
inclui todos os substratos sociais, que dela fazem parte - precisam vir à tona para
preencher e complementar essa identificação.
Com todos esses pontos críticos levantados em relação ao contexto
contemporâneo de Moçambique, a mensagem que Mia Couto deixa através da narrativa
e mesmo de suas entrevistas resume-se a que o país passou por sucessivas crises de
governo por inexperiência administrativa. Talvez por isso mesmo ou apesar disso ainda
79 GUERREIRO, António. Uma linguagem ilimitada. Expresso, Lisboa, 17 ago. 1998. p. 22. 80 SEABRA, Clara. Ainda não escrevi o meu livro. Expresso, Lisboa, 26 jun. 1997. p. 32-35.
177
é preciso entender tal inexperiência como uma experiência recente e uma tentativa de
acertar. Nas palavras do autor:
Em Moçambique, mesmo que se sinta que o projeto ideal não está a ser aplicado ou que lhe fazem algumas traições, é importante assumires essa posição desiludida. Por que, se fores verdadeiro contigo próprio e meditares sobre esse percurso não te resta outra resposta senão anuíres que aprendeste muito, que viveste momentos muito belos, que te moldaram. Com todas as contradições sadias com que certamente te confrontas, essa análise mostra o espetáculo deslumbrante da oportunidade histórica, única, de assistires à construção de uma vida diferente e de presenciares todas as faces da vida, da cobardia ao heroísmo e às pequenas e grandes coisas do quotidiano que moldam a humanidade. Eu não troco esta experiência por coisa nenhuma81.
A imagem de nação em constante movimento apresentada na obra de Mia Couto
permite-nos observar essa transformação concomitante vai se formando. Em Vozes
anoitecidas, cujo período histórico que marca o desenrolar da narrativa é o período do
colonialismo português em Moçambique, os temas abordados apontam para a presença
devastadora da guerra, para a miséria ocasionada pela destruição das lavouras, para
códigos de conduta ocidentais aplicados em detrimento do desenvolver da cultura local.
Apesar da convivência multiracial e multicultural estarem presentes nesta obra de
Couto também se podem encontrar nela os temas da incompreensão à alteridade pela
diferença dos códigos de conduta dispostos e pelo elemento rácico. É por isso que “a
norma do tempo” é entrarem os pretos pelas traseiras. É a não convivência entre duas
raças ou culturas nesse momento histórico antagônicas. Mas o enfoque principal para
essa obra recai na ausência do dialogismo posteriormente observado entre a cultura
81 GUERREIRO, António. Uma linguagem ilimitada. Expresso, Lisboa, 17 ago. 1998. p. 68.
178
local e a cultura ocidental. Esta é posta na obra como antagonista da primeira, que é o
elemento inerente ao território, para dominar (no sentido de domesticar) a alteridade
representada pelo saber tradicional. Assim nas micro-histórias apresentadas as
personagens se ressentem do preconceito racial, sentem-se excluídas do universo
desconhecido da cultura ocidental, precisam aprender a burlar o sistema para
enriquecer, passam por cima da sua própria cultura para defender a pátria portuguesa.
Sentem-se objetos não mais sujeitos. Não há uma única história narrada sob o ponto de
vista da cultura ocidental. Esta postura vai se modificar ao longo da história narrativa de
Mia Couto.
Assim como a história de Moçambique se transforma do colonialismo à
autogestão, estes preceitos primeiramente analisados como elementos destrutivos
perdem a forte carga de corrompimento e negatividade que carregam e serão melhor
digeridos como processo histórico. Assim sendo, o ressentimento histórico (ou ‘o ódio
como motor da história’) é exorcizado através da escrita. E por causa desta mesma
escrita, que o exorciza, passa a ser compreendido em sua essência dialética. Vem a ser
confrontado não pela dualidade histórica de uma potência contra um país dominado,
mas pela formação humana que povoa estes territórios. Assim, em Vinte e zinco somos
confrontados pelo universo da ficção com o abandono a que os mesmos portugueses
defensores “di Pátria lusitane” foram acometidos com a queda do poder ditatorial em
Lisboa.
O estranhamento do elemento europeu frente ao africano aparece com vigor
realístico. Se, num primeiro momento, é o africano que se sente desajustado no próprio
179
local de origem, num momento seguinte é o europeu que também transferiu sua vida de
lugar em nome de um condicionamento histórico que é, antes de tudo, no dizer de Homi
Bhabha, uma forte idéia histórica do ocidente (Bhabha, 2000), que estranha uma cultura,
uma topografia diversa da sua de origem. É o europeu que vive no entre-lugar e está
desenraizado da sua matriz. O indivíduo moçambicano que anteriormente era passivo
àquela subordinação imposta, agora é o sujeito da sua história que vai desencadear e
incentivar o processo independentista através da articulação da resistência, que contou
com a ajuda dos mais diversos setores e poderes: Igreja, imprensa clandestina,
intercâmbio de informações (contrabando de informações), isolamento do contexto do
regime em Lisboa.
Se analisarmos a prática profissional experimentada por Mia Couto – jornalista
politicamente engajado, vemos que sua escrita não é inocente e o fato de ser mesclada
com a oralidade marca o discurso de subversão ao colonialismo e constitui uma tomada
de posição em defesa dos direitos humanos, da sociedade civil e da liberdade de
expressão. Ser escritor pode não ser uma missão, como descarta Mia Couto, mas existe
uma simbologia significativa na obra dos autores da diáspora lusófona que nos permite
dizer que a literatura constitui uma arma branca em favor da liberdade humana. Eles se
tornam vozes que não se calam, não permitindo que a história caia no esquecimento.
180
5 À LUZ DO PETROMAX: NARRATIVAS DE LUÍS CARDOSO
Despojado de heróis e mártires:
nota sobre literatura no Timor do Sol Nascente
análise literária da obra de Luís Cardoso, considerado o primeiro
romancista de Timor independente, foi realizada por nós
privilegiando as noções de entre-lugar, hibridismo, desenraizamento, saber ancestral e
elitismo cultural tomadas na medida que sua composição remete ao imaginário de
nação e de identidade timorense. Assim, Crônica de uma travessia constitui a mola-mestra
desta análise. Esta obra, isolada ou no conjunto, com Olhos de coruja, olhos de gato bravo e
A última morte do Cel. Santiago representa um retrato de nação timorense na sua
complexidade lingüística, cultural e histórica. Revela, com isso, a dimensão do drama
humano vivenciado por aqueles indivíduos que formam a nação e que, por longo tempo
histórico, serviram também de sustentáculo a ela.
Logo, os elementos aqui encontrados dão conta de compor a imagem buscada da
nação que emerge no terceiro milênio como Estado autogestor. Não serão analisadas as
demais obras citadas que são: Olhos de coruja, olhos de gato bravo e A última morte do Cel.
Santiago, senão no que elas confirmam, distorcem e complementam o imaginário
retirado da obra fundacional da moderna literatura timorense Crônica de uma travessia.
Se, num primeiro momento, o material a respeito de literatura timorense parece escasso
ocasionado, sobretudo, pelo fato de ser uma literatura nascente, por outro, os elementos
A
181
encontrados prestam-se a inúmeras discussões que aqui não são encerradas, pelo
contrário, constituem o embrião para uma discussão sobre a literatura de Timor Leste.
5.1 HOSPEDEIRO POR IMPOSIÇÃO HISTÓRICA
Falar sobre a literatura de Timor Leste num contexto crítico em que ela é ainda
desconhecida pressupõe, primeiramente, discutir elementos que são imprescindíveis à
sua compreensão: da localização geográfica82 do território ao histórico de resistência às
sucessivas invasões colonialistas, da diversidade étno-lingüística à passagem do
animismo à religião católica e à matriz cultural pautada no código da oralidade. Nesse
meio em que a sobrevivência é uma personagem que motiva a luta, as palavras
(sobretudo em língua portuguesa) servem como instrumento de combate e constituem
mais uma força na resistência à colonização e à conseqüente perda identitária advinda
com os processos imperialistas.
Ao nos debruçarmos sobre a história da primeira nação do novo milênio
percebemos que sua evolução sempre esteve atrelada às lutas de fronteira e contra as
dominações imperialistas. A imposição de uma cultura estrangeira foi um imperativo
histórico em Timor, que, por sua vez, resistiu à assimilação cultural e, com ela, a
lingüística e religiosa da matriz desenvolvida no território. Esta realidade, no entanto,
torna-se distinta no cenário contemporâneo, uma vez que as políticas de governo pós-
idependentistas adotam a uniformização da língua nacional, bem como uma identidade 82 Alguns mapas, incluindo um mapa lingüístico de Timor Leste, foram selecionados e podem ser conferidos, a título de ilustração, na Parte III do Caderno de Anexos desta tese.
182
pautada nos preceitos universalizantes da cultura européia. Ou seja, até mesmo os
grupos étnicos que sempre se preservaram da assimilação da cultura européia
atualmente são influenciados por ela, no que também se tornam híbridos no contexto
multicultural que marca a forma como as novas nações oriundas de processos coloniais
entram no mundo. Se, inicialmente, houve resistência à assimilação da religião católica
em detrimento do culto animista de base cultural timorense, durante a invasão
Indonésia a religião católica constituiu mais uma forma de repúdio a tal domínio, sendo
assumida por grande parte da população. Nesse fato, importante destacar que a Igreja
Católica ignorando o clero indonésio passa, no referido período, a professar missas em
tétum, numa tentativa de reanimar a identidade timorense através do uso da língua
franca do território, que teve de ser substituída pela bahasa indonésia durante o período
da ocupação.
O início da presença portuguesa no território timorense remonta ao século XVI,
quando navegadores portugueses chegaram à ilha motivados pelo comércio de sândalo.
Ainda que esta empreitada tenha resistido a quatrocentos anos de domínio sobre o
território timorense, a continuidade da atividade colonial encontrou dificuldades de
variadas ordens, sobretudo no que tange a resistência do povo maubere83. No final do
83 O uso do termo maubere é considerado, por vezes, pejorativo. Luís Cardoso, em entrevista à autora desta tese, diz que isso decorre do fato de associar-se a figura do maubere ao momento da luta de resistência nativa. Uma vez sendo representado pelo elemento que lutava nas montanhas, pois foi um símbolo adotado pela FRETILIN, o é também à figura bárbara do soldado, sem instrução. João Paulo Esperança faz esta distinção, em “A palavra da discórdia ou Porque não chamo mauberes aos timorenses” (ESPERANÇA, 2001, p. 149-156), aludindo à conotação pejorativa do termo, que varia do preguiçoso ao bárbaro, utilizado, também, como xingamento. O Bispo D. Ximenes Belo, Prêmio Nobel da Paz em 1996, repudia o uso do termo maubere preferindo a designação “Povo de Timor”, uma vez que timorenses todos se imaginam, porém mauberes, não. Por último, há a circunscrição geográfica do termo, já que no
183
século XVI os frades dominicanos estabeleceram uma missão neste território, marcando
a inserção de Timor Leste na geografia do globo sob a condição de colônia de exploração
da potência lusófona, tal como também o Brasil, as demais ex-colônias da Ásia e os
países africanos de língua portuguesa. Os séculos seguintes, comportando os primeiros
três séculos de dominação portuguesa em Timor, foram marcados pelas disputas de
poder entre os portugueses e os holandeses que dominavam a Indonésia. Aliado ao
conflito entre as potências colonizadoras apresenta-se o conflito de ambos com a
população nativa da ilha.
A divisão que conhecemos hoje entre Timor Ocidental (holandês, indonésio) e
Timor Oriental (português, indonésio) foi estabelecida no início do século XX. Nesta
época o governo português, tentando transformar as colônias em fontes lucrativas de
renda, volta sua atenção para Timor materializando-a sob a forma de cobrança de
impostos e exploração do trabalho pela imposição de táticas opressoras. Exploração
econômica que constitui a força motriz do sistema imperialista. Motivada por essa
mudança de paradigma no horizonte político-social de Timor Leste começou a se
desenvolver uma elite nativa, lembrada em Crônica de uma travessia como sendo aquela
que efetivamente dedicou cuidados à população timorense. Como aconteceu nas demais
colônias portuguesas, esta elite foi categorizada como assimilada e, assim, passou a
ocupar cargos de chefia e administração do serviço público. O narrador de Crônica de
uma travessia, a esse respeito, diz que os filhos dos liurais ou mesmo outros estudantes
que iam para as missões “subtraídos ao seu meio nativo e insubmisso e depois de princípio esse termo era proveniente da região centro-oeste de Timor, o que faz com que os demais habitantes, de outras localidades, não se sintam incluídos nesta denominação.
184
catalogados como instruídos passaram a ser o instrumento de divulgação da língua,
cultura e religião portuguesas” (CARDOSO, 1999, p. 13). Assim, as missões católicas
através dos liceus onde eram ensinadas a língua e a cultura do colonizador
encarregavam-se da tarefa de educar não apenas os colonos e seus familiares, mas
também os timorenses.
À exploração do trabalho nativo é aliada a cobrança de impostos direcionada às
terras e aos servidores dos chefes linhagísticos, gerando, com isso, um dos conflitos mais
famosos da história de Timor. O episódio ocorrido em 1912 e liderado por D.
Boaventura de Manufahi foi chamado de A última revolta em Timor84 e é constantemente
referido em Crônica de uma travessia, porque a família do narrador é oriunda de
Manufahi e esta terra carrega o estigma da revolta por causa da figura emblemática do
chefe insubmisso. Interessante observar que na identificação do território através das
travessias realizadas pela família do narrador as terras e seus habitantes vão sendo
definidos por elementos que variam entre a geografia, os costumes e até mesmo um fato
histórico como este. Assim, Manufai ou Manufahi é reconhecidamente terra de
revoltosos, como Lautem é a terra de homens orgulhosos e Lacló é o reino leal às
autoridades portuguesas.
Ainda que Timor tenha sempre estado sob o jugo português (ameaçado em
alguns momentos como, por exemplo, na 2a Grande Guerra com a invasão japonesa em
1941, ou, mesmo anterior a esta invasão, pela presença holandesa em Timor Ocidental),
Portugal sempre foi negligente com sua colônia mais distante. E essa negligência é
84 INSO, Jaime do. A última revolta em Timor. Lisboa: Edições Dinossauro, 2004.
185
rememorada também pelas narrativas de Luís Cardoso. Aliás, a distância geográfica
com relação à potência colonizadora foi um argumento utilizado pelo governo
indonésio na tentativa de anexar Timor como sua 27ª Província. A esse respeito, diz Luís
Cardoso em entrevista à autora desta tese que essa tentativa foi uma empreitada recente
do governo indonésio para anexar ao seu território um local sob o qual não tem
qualquer direito. Ainda assim, mesmo dentro do Estado timorense, havia uma facção
política, a APODETI85, que defendia a anexação do território de Timor à Indonésia
utilizando o mesmo argumento da contigüidade geográfica.
Durante a colonização portuguesa houve pouco estímulo à divulgação ou ao
desenvolvimento da cultura timorense. Nos liceus, onde o narrador de Crônica de uma
travessia obteve sua formação, a cultura estudada era a ocidental, bem como a história
contida nos manuais escolares era a história da potência colonizadora e a língua
dominante era o português. Porém, após o processo de descolonização, em 1975, e a
proclamação unilateral da independência da República Democrática de Timor Leste, a
Indonésia invadiu o território, e a língua portuguesa que já havia sido eleita em
detrimento do tétum é substituída pela bahasa indonésia, língua falada em Timor
Ocidental. A resistência ao uso dessa língua, no entanto, é grande, e na clandestinidade
continuava sendo ensinado o português, bem como fora das fronteiras do território
eram escritas e publicadas poesias de protesto em português86 e em tétum87. Este fato é
85 Associação Democrática Popular de Timor. 86 Exemplo desta atividade é a exercida pela UEA (União dos Escritores Angolanos) que em 1982 publicou em apoio à causa timorense a coletânea de poesias Enterrem meu coração no Ramelau, com textos de Xanana Gusmão, Francisco Borja da Costa (escritor que foi morto em 1975, por ocasião da ocupação Indonésia), Fernando Sylvan, Jorge Lautem, entre outras expressões da poesia timorense.
186
uma clara demonstração de que, em tendo que optar por uma identificação que leva em
conta a proximidade territorial, ou outra que leva em conta a identificação de um
imaginário coletivo, a escolha recai na segunda, ou seja, no reconhecimento de Portugal
como matriz cultural por afinidade identitária. As relações entre Timor e Portugal
estabelecem-se de forma agonística: se, por um lado, a metrópole impediu o crescimento
da colônia, por outro, houve a invasão pela Indonésia para redimir os portugueses dessa
empreitada colonial, uma vez que a Portugal é outorgada a paternidade sobre Timor.
Se Portugal foi o colonizador que durante séculos impediu os avanços e o
desenvolvimento da cultura timorense também foi um aliado importante no segundo
processo de descolonização mostrando que, diante do novo fato – a colonização pelo
governo de um território contíguo –, a identificação alcançada está mesmo alinhada com
a cultura ocidental e com a presença portuguesa em Timor. Benedict Anderson chama a
atenção para o fato de os indonésios, e mesmo os timorenses ocidentais, não imaginarem
os timorenses de leste com seus irmãos, não sendo possível, portanto, inseri-los em seus
discursos.
Num manifesto sobre a situação política em São Tomé e Príncipe encontramos a
seguinte interrogação: “Por que é que nestes mesmos órgãos de imprensa não se ouvem
87 Algumas obras como Crônica de uma travessia, de Luís Cardoso, ou Mar Meu, de Xanana Gusmão, têm edição bilíngüe português – tétum. Há obras publicadas apenas em tétum, como a obra Textos da tradição oral em teto, recolha de lendas da cultura oral do território timorense. Porém, grande parte do que se produz hoje de literatura timorense é veiculada em língua portuguesa, sendo, posteriormente, traduzida para o tétum. Também os poetas portugueses, como Sophia Andresen estão sendo traduzidos para esta língua, a fim de que sejam compreendidos e efetivamente lidos pela população que não têm, ainda, domínio sobre a língua portuguesa.
187
outras vozes?”88, alegando que os movimentos (manifestos ocorridos em Portugal) não
eram isolados, pois nas colônias também se observavam levantes anti-colonialistas sem
que isso fosse declarado na imprensa portuguesa (sob forte controle do governo
fascista). Assim, estes manifestos serviam também como outras vozes levantadas da
lusofonia que, reunidas em congressos e, às vezes, clandestinamente, levaram
esclarecimento à sociedade simpatizante da causa independentista.
Com relação a Timor Leste fica explícita a parcialidade das imagens veiculadas
pelo governo português. Nesse sentido, observamos as informações acerca de Timor
Leste na imprensa portuguesa com o intuito de verificar a forma como a imagem da
nação timorense se formava no exterior. No início da década de 70 quando a possessão
ainda estava sob domínio português destacamos que as matérias veiculadas nos jornais
informavam dados estatísticos, econômicos ou mesmo culturais, no sentido de mostrar a
diversidade étnica do território, não sem algum exotismo. Entretanto, a partir do
momento em que a Indonésia invade a ex-possessão portuguesa que já havia se
declarado independente em 28 de Novembro de 1975, para nove dias depois sofrer nova
invasão, ela passa a figurar na imprensa lusitana reforçando o disparate da invasão e
dos sucessivos massacres que passaram a integrar o horizonte dos timorenses. A prisão
de seus líderes independentistas, a greve de fome de Xanana Gusmão, a morte de
Nicolau Lobato – o primeiro líder da resistência timorense - e o massacre de Santa Cruz
são incessantemente relembrados pela mídia televisiva, impressa e iconográfica.
88 Este documento pode ser conferido no Caderno de Anexos, Parte IV, p. 58 - 59.
188
Do início da década de 70 até o ano de 1975, quando se dá a declaração unilateral
de independência e a posterior invasão Indonésia, as notícias veiculadas na imprensa
portuguesa voltavam-se aos traços e características culturais da ilha - o artesanato, a
dança, a economia89, as riquezas, os recursos e as disputas político-territoriais
enfatizando, sobretudo, o domínio indonésio e australiano sobre aquela parcela do
planeta — alimentando o imaginário português com informações sobre a existência da
colônia distante. O isolamento geográfico de Timor reflete-se no (des) conhecimento que
a opinião pública representa ter desta colônia. As notícias que chegavam à imprensa
portuguesa eram pontos de vista isolados sobre o território. Sabia-se de sua existência
quando se analisava a soberania da nação imperial portuguesa e suas ramificações
territoriais pela geografia do globo, donde se observava a imagem da grandeza da nação
portuguesa e não do território timorense em particular. No suplemento “Um esboço
sobre Timor”90, datado de 1974, podemos encontrar além de fotos sobre danças e ritos
tradicionais timorenses, um mapa do território e das cenas exóticas do quotidiano de
Díli. A independência de Timor assim como a das demais colônias africanas é noticiada
à imprensa como um objetivo concretizado do Movimento das Forças Armadas para,
mais tarde, ser anunciado que a descolonização é um problema de cada território
retratado nas narrativas aqui trabalhadas, tanto em Mia Couto como em Luís Cardoso.
Até a metade da década de setenta Timor foi, todavia, um território anexado a
uma nação maior; a partir de 1975, data que marca a invasão Indonésia nesse território,
89 Uma destas notícias, intitulada “Portugal dá mais a Ttimor do que Timor produz” (A Capital, sábado, 31 de Mario de 1975), pode ser conferida no Caderno de Anexos, parte IV. 90 BASTOS, Jorge Pestana. PAVÃO, Luís Felipe. Um esboço sobre Timor. O século, Lisboa, 29 jun. 1974.
189
a ilha que sempre esteve “longe dos olhos e longe do coração” passa a integrar o
noticiário nacional com agudizado senso crítico sobre a apropriação indevida do país
pela nova potência colonial. Assim, todos os massacres bem como todos os números do
genocídio cometido em Timor avultam na imprensa portuguesa, contornando os traços
que integraram a realidade nacional deste país até 2002, data que marca a sua efetiva
libertação do jugo imperial. Timor passou a ser um Estado presente no imaginário
português, curiosamente, não quando ainda era colônia, mas quando a população
portuguesa sentiu-se usurpada pela ocupação do seu ex-domínio territorial e projetou
naqueles que sofriam o massacre do outro lado do mundo uma fraternidade em larga
escala (ANDERSON, 1989). Então, Timor passou a contar com a solidariedade de
inúmeros grupos de apoio à sua causa, principalmente na década de oitenta e, com
acentuado afinco, na década de noventa após o referido massacre, quando o mundo
voltou os olhos para aquele território e indignou-se com as atrocidades cometidas num
contexto que já conhece a noção particularizante de cultura e que já presenciara a
Declaração Universal dos Direitos Humanos e do Direito Universal dos Povos.
5.2 LITERATURA ÀS MARGENS DA LUSOFONIA
5.2.1 Identidades desmascaradas e literatura como protesto
Falar em regimes autoritaristas em Timor Leste é falar, praticamente, sobre toda a
história de formação timorense, ou seja, na história dos 400 anos de dominação
portuguesa, nos 42 anos de ditadura Salazarista e, por último, nos 24 anos de dominação
190
Indonésia. Dentro deste contexto de conflito permanente uma questão se torna
imperativa: saber como se desenvolve a cultura timorense em meio a diversas
influências. Uma das primeiras formas de autoritarismo imposta à cultura do Povo
Maubere é, sem dúvida, a lingüística. Isso não porque seja difícil decidir-se sobre qual
língua empregar, mas pelos motivos supracitados que envolvem as suscetibilidades do
poder dominante em exercício.
O sincretismo histórico-cultural timorense é marcado também pela aproximação
geográfica com países de língua inglesa, donde a marca da identidade lingüística com as
quais se representa essa literatura pode ser influenciada por esse condicionamento
externo. O português no contexto lingüístico timorense ressurgiu como elemento
desencadeador da unidade nacional. Ele ultrapassa as relações (conflituosas) de poder
que poderiam ser aí geradas, por um motivo: eleger qualquer etnia lingüística para
desempenhar o papel de representante majoritário que significa também eleger uma
etnia em sublevação às demais, o que poderia acarretar, como no exemplo, a deflagração
de mais uma guerra civil. O objetivo comum da cultura genuína é ter autonomia para
autodeterminação de um território onde coabitam diferentes etnias lingüísticas,
entendendo que todas elas têm maior legitimidade sobre o poder do que a presença
estrangeira que domina esse território.
Assim, o intermediário entre a bahasa Indonésia e o português foi o tétum e o
tétum-praça (variante falada em Díli). Os panfletos distribuídos para alertar a população
sobre a dominação Indonésia e conclamar os soldados para se unirem à causa defendida
191
pela FALINTIL91 eram veiculados em português e tétum. Em Moçambique e nas demais
ex-possessões portuguesas na África, o resgate dos valores nacionais, bem como o
chamamento dos soldados para a luta era feito através de panfletos semelhantes, muitas
vezes confeccionados de forma artesanal, escritos à mão e distribuídos à população
pelos líderes e militantes da resistência.
A fundação da literatura timorense escrita dá-se através da poesia, assim como o
foi também o princípio da literatura portuguesa e da moçambicana. A narrativa surge
recentemente e marca o universo ficcional de Luís Cardoso, considerado o primeiro
romancista de Timor Independente. No exercício da narrativa a memória autoral é
recriada e o narrador retoma sua própria história que se mescla com a história de
colonização e descolonização de seu país. A história do narrador desdobra–se
concomitantemente aos acontecimentos históricos pela libertação de Timor, construindo
o imaginário que serve de suporte ficcional ao imaginário cultural vivenciado.
A literatura desenvolvida por escritores timorenses e de temática timorense como
Luís Cardoso, Xanana Gusmão, João Aparício, Ponte Pedrinha, Ruy Cinatti, Fernando
Sylvan e Borja da Costa para além de ser, em casos específicos, veiculada em tétum,
materializa a memória dessa cultura em língua portuguesa. Essa realidade é sempre
retomada na literatura timorense para lembrar que existe, anteriormente à tradição
escrita, a literatura oral em tétum. Esta, por ser a língua da comunicação inter-étnica
(ESPERANÇA, 2001) é também o código verbal pelo qual se materializam poesias,
91 Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor Leste, movimento que comandava a resistência à dominação Indonésia, liderado por Xanana Gusmão.
192
mitos, lendas e crenças do imaginário de Timor. Dois deles integram o mundo narrado
de Luís Cardoso: a lenda da Pontiana e do rain-naim92.
O narrador de Crônica de uma travessia relembra um fato de sua infância quando,
numa casa que lhes foi destinada na transferência para Lecidere, alguns ratos, à noite,
escondiam-se sob sua cama e, por vezes, machucavam-no. Sua mãe ao ver as marcas
deixadas na criança rezava o terço pedindo proteção a Deus para afastar o que
acreditava ser o espírito da Pontiana, passagem esta em que podemos observar a
convivência dos imaginários católico e animista.
João Paulo Esperança (ESPERANÇA, 2001) em “Rituais e figuras do fantástico em
Timor” afirma que mesmo entre os setores intelectualizados, poucos há que não
acreditem nos espíritos da terra e nas crenças da tradição timorense. A realidade é
autorizada pelo testemunho do narrador e passa, com isso, pelo filtro da racionalidade
sobre o mito. Deste modo, percebemos o quanto o universo cultural de Timor é marcado
pelo imbricamento entre o mundo dos homens e o mundo extrasensorial. A esse
respeito destacamos, também, a festa de desluto ou korem-metam. Na cultura timorense a
alma da pessoa que morre anda sem destino durante um ano, podendo retornar ao lar e
interferir na vida dos familiares por sentirem inveja da vida destes. O desluto ocorre
para libertar a alma do mundo material.
Concomitantes ao universo mítico timorense estão inseridos na representação da
memória cultural e pessoal de Luís Cardoso o protesto pelos sucessivos massacres e a
luta pela libertação nacional. Também o socorro internacional dividiu-se entre as duas 92 Pontiana é o “espírito da sedução”, entidade que pode adquirir a forma humana de um ente conhecido. Rain-naim é o “senhor ou dono da terra”, espírito que se apodera do lugar (casa) onde viveu.
193
línguas quase-pátrias: português e inglês. O massacre de Santa Cruz, por exemplo, veio
à tona à comunidade internacional por meio das lentes de um repórter de língua inglesa,
Max Stahl, que em 12 de Novembro de 1991 conseguiu filmar o massacre escondendo o
filme em um túmulo para resgatá-lo depois do interrogatório a que foi submetido pela
polícia Indonésia. À época, os esforços de Portugal pareciam tímidos na solução para a
causa timorense: por outro lado, a partir dessa data tornou-se impossível não voltar sua
atenção para Timor. Se, por um lado, a mãe pátria dos manuais escolares — com os
quais o narrador de Crônica sonhava — foi negligente, por outro, essa responsabilidade
foi resgatada, pois hoje se tornou um local de acolhimento (e refúgio) dos leste-
timorenses. Num momento anterior, quando houve a ocupação Indonésia, a conduta do
governo português pode ser avaliada como um processo de omissão política. Quando
Timor se tornou independente, tal como ocorreu com as demais colônias africanas,
Portugal retira-se do território (que já não mais poderia ser explorado) e não assume
nenhuma responsabilidade sobre esta possessão tão logo ela se vê exposta e sem
condições de defesa porque ainda não havia começado a autogovernação. A mãe pátria
recua servindo de abrigo através dos seminários e missões católicas, mas não auxilia
categoricamente a retomada da terra para a autogestão timorense. A contar de 07 de
dezembro de 1975 até a independência em 20 de maio de 2002, decorreram-se 27 anos,
sendo que 24 deles foram de ocupação e de dominação política Indonésia, e mais 02
anos de processo de desterritorialização, passando-se pelo referendo (já que Timor foi a
única possessão a quem se perguntou se queria ser livre) e chegando até a
Independência.
194
O elo que une essas comunidades que no infortúnio se solidarizam é a matriz
cultural da língua portuguesa, responsável pela segunda consideração acerca da
literatura timorense que gostaríamos de destacar aqui. A transmissão da cultura
timorense de matriz oral é mesclada ou fundida com as línguas étnicas de matriz
austronésia e não-austronésia, tais como: macassai, laclei, mambae, tétum, fataluco,
helong e búnaque, sendo o português, no entanto, a língua da unidade nacional e o
tétum93 a língua nacional. Em Timor Leste são faladas aproximadamente trinta línguas
étnicas94, fato que faz do português o idioma unificador, já que se trata do código dessa
unificação pretendida pelos governos pós-fundacionais exatamente como nos casos dos
países africanos de língua portuguesa. Na literatura das ex-colônias africanas de língua
portuguesa essa subversão à língua materializa-se pelo uso de neologismos oriundos
das línguas étnicas africanas.
Desde a independência política, em 2002, já foram lançados sobre Timor Leste
livros que privilegiam o português e o tétum. A obra Mar meu de Xanana Gusmão tem
edição bilíngüe; assim também como Crônica de uma travessia, de Luís Cardoso, já foi
traduzida para o tétum. Pelo Instituto Camões foram lançados também Guia de
conversação Português-Tétum (de Luís Costa) e Babel Lorosae (de Luís Felipe Thomas). Pela
93 O tétum já existia como língua franca antes do estabelecimento do domínio português no território. Estima-se que 30% das palavras componentes desta língua sejam de origem portuguesa que, no convívio entre culturas, foi sendo assimilado. Os grupos etno-lingüísticos são assim distribuídos: línguas austronésias ou malaio-polinésicas, e línguas papuas, indo-pacíficas ou ainda não-austronésicas. Consideram os historiadores que, com as dizimações investidas pela República da Indonésia, que atingia por vezes 90% da população autóctone de alguns povoados timorenses, grupos lingüísticos inteiros podem ter desaparecido. 94 Há controvérsias entre o número de dialetos que integram o território timorense. Adotamos o posicionamento de Geoffrey Hull que considera 15 grupos étnicos que, em suas ramificações, geram cerca de 30 dialetos.
195
editora Dom Quixote é publicada a obra de Luís Cardoso; pela editora Colibri, a de
Ponte Pedrinha (Andanças de um timorense), de Fernando Sylvan (A voz fagueira de Oan
Timor) e, também, de Xanana Gusmão (Timor Leste - um povo, uma pátria); a Editorial
Caminho apresenta João Aparício (À Janela de Timor), e Kay Shaly Rakmabean (Versos do
oprimido) foi editado pela Real Associação de Braga.
Lembrando o texto “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”,
de Walter Benjamin, no fragmento em que o autor fala sobre a incapacidade de narrar
observada na sociedade contemporânea, lemos: “é como se nos tivessem tirado o poder
que parecia inato, a mais segura de todas as coisas seguras, a capacidade de trocarmos
pela palavra, experiências vividas” (BENJAMIM, 1993, p. 62). Partindo da observação de
Benjamim (e do recorrido relato sobre os soldados que voltavam da guerra emudecidos)
é que analisamos, então, a produção literária contemporânea de Timor Leste, assim: há
um elenco de poesias que retratam a realidade brutal do cerceamento das liberdades
através do protesto expresso por via temática. O valor estético da obra de arte literária
ali veiculado não parece ser o projeto inicial dos autores. Ao contrário, autores que
construíram sua história no movimento da resistência, como José Alexandre Xanana
Gusmão, utilizaram a palavra como meio de combate, tornando a literatura um
instrumento a favor da resistência.
Sobre esse processo da escrita em meio à luta independentista, o poeta João
Aparício autor de À janela de Timor, em “Esta Noite”, texto escrito em Baucau, Ano Novo
de 1987, diz:
196
Escrevo à luz do candeeiro Os meus poemas E toda a verdade. O meu ser É uma caverna de memórias, É o sal, o sol, a flauta melodiosa, A água, a terra, a roseira mansa e brava, E o pulsar doloroso Das vidas do meu Povo (APARÍCIO, 1999, p. 47).
As poesias de João Aparício são datadas e localizadas no espaço geográfico em
parte exterior a Timor Leste, porque algumas são escritas do exílio e evocam o poder das
palavras na luta da resistência maubere. Essa poesia faz associação direta do ser
integrado à natureza, do indivíduo com a história. Aqui, o homem que se vê como parte
indissolúvel desse todo: o eu, a natureza e a memória coletiva e, por meio da palavra,
reconstrói uma identidade para o seu povo.
Se as poesias de Fitum Fuik, Fernando Sylvan, João Aparício e Borja da Costa não
cobram o passado de submissão pelo domínio colonial e transmitem a mensagem da
resistência de um povo que não se quer dominar, usando como arma de combate o
silêncio (sinônimo de ausência de interlocução), e a palavra como instrumento de união
e resistência, as poesias de Xanana Gusmão são carregadas de conteúdo político em que
a cobrança desta conta se observa em muitos versos datados de cada período histórico
em que a liberdade do território foi subtraída aos timorenses:
... Somos POVO SEM VOZ
197
alma sem fronteira com a dor corpo na escravidão aberto ao tempo Pátria – um cemitério de interesses! A nossa luta... É a história Do poder do silêncio (GUSMÃO apud MARCOS, 1995, p. 208).
É imprescindível observar que as poesias veiculadas em português (e/ou em
tétum) dirigem-se a um público no exterior, uma vez que a circulação dentro do
território, ainda que clandestina, não atingiria um público significativo pela sua não
competência no exercício da língua portuguesa e pela natureza cultural do tétum.
Levando em consideração este dado hipotético precisamos refletir sobre a formação
identitária das jovens nações pós-coloniais. As imagens de nação e identidade aí
discutidas, ou elaboradas através de suas narrativas, são na qualidade de formar um
retrato de nação para o exterior. Desta forma, recuperamos e melhor compreendemos a
sentença “a tigre ninguém precisa dizer de sua tigritude”, de Wole Soyinka, ainda que
autor nigeriano não tenha se despido desta intencionalidade ao mencionar a questão. A
sentença pode ser lida como se a imagem da nação representada, ou dos indivíduos que
dela fazem parte, não fosse expressa no que se refere a sua identidade, pois eles a
vivenciam no quotidiano. Ainda que a língua portuguesa seja oficial e essa condição seja
imposta em detrimento das demais línguas étnicas (o que ocasiona o isolamento ainda
maior deste território perante a comunidade internacional), a cultura desenvolvida e a
língua de comunicação interna continuam sendo aquelas com as quais os indivíduos se
sentem identificados. Nesse contexto é que as identidades são formadas para o exterior.
198
Narrativas fundacionais como a de Luís Cardoso (que surgem no intervalo entre a
eficácia da ação revolucionária e o devir da história) marcam um ponto de partida do
reconhecimento para a nação que emerge na história (e nunca é demais lembrar: que
emerge na geografia do globo). Trata-se, pois, de um batismo desta nação diante do
conjunto de nações com as quais ela passará a se identificar por semelhança ou
diferença.
As narrativas recentes timidamente abordam a invasão Indonésia, fazendo-nos
lembrar Benjamim, outra vez:
Não se percebeu ao final da guerra, que os indivíduos voltavam emudecidos aos seus lares? Não mais ricos e sim mais pobres em experiências que pudessem comunicar? E o que dez anos mais tarde entrou na enxurrada dos livros sobre a guerra, nada tinha em comum com aquela experiência real, transmitida oralmente (BENJAMIM, 1993, P. 63).
A rememoração sobre a ocupação Indonésia, nesse sentido, ainda não
amadureceu motivo pelo qual as narrativas apenas tangenciam esse fato histórico, ou o
abordam através da exaltação aos líderes da resistência e do apelo à liberdade. Muitos
jornalistas tentaram resgatar este material histórico por intermédio dos relatos de
testemunho. Citamos Jill Jolliffe95, Lucélia Santos96 e Rosely Forganes97, profissionais
95 Jornalista australiana que foi correspondente, em Portugal, de vários jornais de língua inglesa. Esteve em Timor Leste durante a abortada descolonização do território, em 1975. O resultado deste trabalho está no livro Timor terra sangrenta. Lisboa: O Jornal, 1989. Seu mais recente livro intitula-se: Depois das lágrimas: reconstruir Timor Leste. 96 Lucélia Santos é produtora e diretora do longa-metragem Timor LoroSae: o massacre que o mundo não viu. Timor Leste, 2002. 97 Rosely Forganes é jornalista e ex-funcionária da Embaixada do Brasil em Dili. Esteve em Timor no momento da desocupação Indonésia, em 1999, entrevistando refugiados e documentando a destruição
199
cujo material iconográfico, fílmico e jornalístico rememora fatos marcantes da vida
timorense pelo viés jornalístico-documental. Quando a história é recente podemos
perceber que ela ainda é o momento vivido e que os narradores não têm o
distanciamento necessário e a análise crítica para contar e rememorar os fatos. A
expressão ficcional dá-se, então, diretamente representada pela emoção, pelo sentimento
de impotência diante do cenário de repressão e pelo desejo de liberdade. A literatura
timorense nasce, aliás, sob o signo do protesto (ou, melhor seria dizer, ressentimento
histórico) com relação à colonização portuguesa, da qual já tem o distanciamento
necessário para rememorar criticamente, e à invasão Indonésia, nos termos
mencionados, já que foi um período em que o aniquilamento dos referenciais de cultura
ocorreu desde o tecido humano até o cultural.
Em meio à ocupação Indonésia, a forma de manter acesa a cultura timorense deu-
se através da expressão da sua cultura popular. Luís Cardoso em entrevista à autora
desta tese diz que a expressão popular (literatura oral) deve ser o ponto de partida para
o estudo da literatura timorense.
5.2.2 Retrato do artista quando jovem: Luís Cardoso e a vivência da diáspora
que o país sofreu. O resultado deste trabalho está reunido em livro, acompanhado de Cd com as entrevistas - incluindo entrevistas feitas com Sérgio Vieira de Melo, Alto Comissário dos Direitos Humanos das Nações Unidas, morto em missão no Iraque no ano de 2003, com o Ministro das Relações Exteriores, José Ramos-Horta e com o Presidente, Alexandre ‘Kay Rala’ Xanana Gusmão -, intitulado Queimado queimado, mas agora nosso! Timor: das cinzas à liberdade. São Paulo: Labortexto Editorial, 2002.
200
O escritor timorense Luís Cardoso de Noronha nasceu em Cailaco, uma região
próxima à fronteira com o Timor Ocidental (Loro Mono), em 1959. Seu pai era
pertencente ao ramo étnico calade e língua materna mambai, e sua mãe, também da etnia
calade, era falante de lacló. Em casa a língua adotada, que é também a língua da
alfabetização do narrador de Crônica de uma travessia, foi o tétum. A diversidade
lingüística do território timorense, portanto, foi uma vivência quotidiana do autor.
Atualmente, Cardoso (que teve sua primeira formação nos liceus missionários de
Soibada e Fuiloro, no Seminário de Dare em Timor Leste e, posteriormente, em Lisboa,
no Instituto Superior de Agronomia, onde se formou em Silvicultura) dedica-se à escrita.
Já exerceu as funções de Diplomata da Resistência Timorense no Conselho Nacional de
Resistência Maubere, de contador de histórias, de cronista do Jornal Fórum Estudante e
de Professor de Tétum.
O pioneirismo de Luís Cardoso (que é prosador, porém não o único num
universo marcado pela poesia), autor de Crônica de uma travessia98, Olhos de coruja, olhos
de gato bravo99 e A última morte do Coronel Santiago100 e de contos publicados em
antologias, tais como Antes da Meia-Noite101 e Vésperas de Natal merece ser
constantemente enfatizado por representar um espaço sócio-cultural complexo como o
de Timor Leste. A narrativa desse autor antes de ser um legado literário é a expressão de
um protesto contra a história de subjugação a que foi submetido o seu território. Nesse
98 Foi lançado em 1997 pela editora Dom Quixote e encontra-se em primeira edição. Já foi traduzido para o inglês, para o francês, para o alemão e para o tétum. 99 Obra lançada em 2001. Encontra-se em primeira edição. 100 Obra lançada em 2003. Encontra-se em primeira edição. 101 Esta, bem como a outra antologia citada, Vésperas de Natal, reúne textos de autores lusófonos editados pela Dom Quixote.
201
caso, a construção da memória literária torna-se uma forma de dizer ao mundo o
sofrimento, a dor, a dispersão, a diáspora ocasionada por uma conjuntura que é, a priori,
econômico-política. No caso de Timor Leste a primeira necessidade é expressar esse
descontentamento que, vindo à tona pela via literária, não deixa de representar que o
cenário marcado pelas guerras independentistas e pelo processo de descolonização teve
seu desenvolvimento cultural abortado pelo condicionamento histórico.
O esquema romanesco da obra Crônica de uma travessia é fundado na memória dos
episódios que marcaram a vida do narrador, na história de Timor Leste desde a
recuperação do tempo colonial, do malogro da independência até a invasão pela
República da Indonésia. O narrador que desfia a memória a partir do exílio revive seus
primeiros momentos de vida itinerante e participa como expectador e sujeito de
histórias que compõem a diáspora do povo maubere e da língua portuguesa. Enquanto
está nesse local seu imaginário volta-se para a metrópole distante, porém, quando busca
auxílio em solo metropolitano e adquire distanciamento geográfico e afetivo, o narrador
dirige seu olhar para Timor iniciando o resgate dessa memória pela escrita literária.
Voltando ao princípio norteador escolhido para direcionar a análise destas obras,
observamos que as histórias de desterro que compõem a imagem pátria começam pela
história de vida do indivíduo que integra a diáspora. Assim, Luís Cardoso, pela sua
obra assumidamente autobiográfica recompõe o próprio si disperso no deslocamento.
Crônica de uma travessia é um romance que recupera a memória do indivíduo
trazendo para a diegese o universo da alteridade. As histórias de vida dos
desenraizados preenchem a fábula romanesca alertando para a dimensão humanista e
202
para a complexidade sócio-estrutural que integra o horizonte da construção de uma
possível identidade timorense. Os temas anteriormente mencionados como o
plurilingüismo que coexiste no território, os conflitos de fronteira interna e externa que
integram o imaginário da resistência maubere, bem como o indivíduo que busca
identificar-se em relação a si mesmo e à sua ascendência para depois assimilar a noção
de comunidade imaginada na qual está inserido, estão presentes nas narrativas de Luís
Cardoso, em especial nesta primeira obra da qual extrairemos alguns elementos para
análise.
O início de Crônica de uma travessia localiza a focalização na figura paterna, a qual
receberá uma espécie de homenagem no texto. A presença do pai marca o tempo da
infância do narrador decorrida durante o período colonial português e que confere o
subtítulo da obra: a época do ai-dik-funan. Esse período desperta no narrador o
encantamento proporcionado pelo contato com a cultura metropolitana, e não deixa de
ser mágico por ser aquele tempo em que, embora sob administração colonial, Timor está
pacificado.
Um elemento de cultura presente no quotidiano desta família (não nominada e
enunciada em primeira pessoa) é o desenvolvimento da instrução calcada na cultura
ocidental em detrimento do saber ancestral timorense, fato que aparece como fonte de
sobrevivência, de assimilação cultural e de ascensão social. O narrador sabe desde a
infância que sua educação será entregue aos professores catequistas. Em entrevista à
autora desta pesquisa Luís Cardoso diz que os homens marcaram o universo da sua
infância, primeiro na figura paterna, depois na figura dos professores catequistas. E o
203
saber ocidental está diretamente ligado a eles, tanto quanto o saber ancestral timorense
está atrelado à figura feminina. A mãe do narrador, uma única vez identificada na
narrativa como “a velha Clara”, ressente-se da usurpação cultural que lhe é imposta. O
pai enfermeiro, funcionário leal à bandeira portuguesa (mate-bandera-hum), assimilava os
costumes ocidentais conforme o exercício da sua profissão o exigia. Em contrapartida, a
figura feminina é guardiã da cultura timorense, da tradição de resistência da nação, e
demonstra estranhamento com essa condição artificial de estar no mundo. O que
confirma a proposição de que o indivíduo, nesse local, encontra-se também em conflito
permanente entre o que é imposto pela cultura exterior e o que é saber adquirido pelos
costumes e pelas vivências ancestrais:
Já havia diretrizes oficiais no sentido de os funcionários públicos tomarem como vestuário roupa ocidental, de acordo com as funções que exerciam e chegando a haver prerrogativas extensivas aos respectivos familiares. Minha mãe já se revoltara com o facto, quando, um dia, o meu pai, de regresso a casa com a prestação mensal do ordenado na mão, a informou que os chefes lhe haviam comunicado que as mulheres dos funcionários deveriam substituir o seu traje tradicional pelos vestidos ocidentais. Ela respondeu que há um tempo na vida em que a mudança só pode significar catástrofe. Que não se sentia trajada para o ridículo, vestida de vestido e mascando a masca (CARDOSO, 1999, p. 52).
O exercício da profissão dos funcionários públicos prolongava a estrutura do
império colonial em Timor pela preservação dos mecanismos transculturais dirigidos à
colônia. O pai do narrador quando perde a memória num acidente de avião busca
encontrá-la em tratamento médico na capital do antigo império. A memória será
resgatada a partir do contato com a mãe-pátria a quem sempre serviu. O encontro é
204
também uma forma de saldar uma dívida antiga que a metrópole tem para com seus
funcionários. Afinal, na ausência do governo metropolitano é que os indivíduos
timorenses se tornaram guardiões das vidas na colônia:
Trazia a esperança de encontrar uma merecida recompensa, melhores dias, não tanto pelos préstimos doados enquanto convertido e zeloso funcionário do império, mas, sobretudo, pelo facto de terem sido eles, os Timorenses, a assumir a suprema tarefa de substituir a mãe-pátria distante durante as suas ausências nos momentos difíceis (CARDOSO, 1999, p. 12)
A tessitura que Luís Cardoso confere à narrativa permite ler a história do
percurso do pai do narrador em busca de sua memória perdida, concomitante
desenvolve-se o percurso da história de Timor Leste dos tempos do império ao
experimento da independência. As vidas que são ali relatadas têm em comum o
sofrimento do degredo, do abandono do lar, da segregação familiar, experiências
vivenciadas pelo sujeito diaspórico que habita sociedades em transformação como a
sociedade timorense.
Quando a perspectiva narrativa volta-se para o pai do narrador, a visão
sobre o relacionamento da colônia com a pátria portuguesa vem à tona, por um lado,
porque ele “continuava mate-bandera-hum. Por isso dizia que se sentia no direito legítimo
e inalterável de reivindicar o regresso de Portugal para recuperar a memória da
maternidade, e os Timorenses, do nascimento” (CARDOSO, 1999, p. 13); por outro lado,
expressa uma amargura também assumida pelo narrador, não apenas pelo
distanciamento geográfico de Timor em relação à metrópole (pois todas as colônias o
205
são), mas com o abandono a que Timor foi submetido. Ou, nas palavras de Luís
Cardoso, com o desleixo que a metrópole sempre relegou a Timor, afinal: “a mãe-pátria
sempre fora distraída com Timor e desta vez tinha o comportamento duma madrasta“
(CARDOSO, 1999, p. 84).
Na primeira cena em que a narrativa abandona o tempo presente, pois o início se
dá in media res e desdobra-se no tempo passado que será o tempo do discurso, é descrito
o motivo aparente da perda de memória do pai e, a partir daí, começa a epopéia da
família do narrador por terras de Timor e pelo Ilhéu de Atauro. Ao final da obra será
retomado o tempo inicial, quando da presença de todos em Lisboa:
Dias antes perdera-se da casa onde vivia e fora encontrado pela polícia vagueando pelas ruas da vila do Seixal. As autoridades disseram que falava uma língua estranha e procurava por alguém. De regresso a casa, contou que tinha ido à vila de Betano. Procurava por um parente distante que conhecera durante a guerra, mas o local estava diferente, os seus habitantes desaparecidos e as casas todas pintadas de branco e ocupadas por malaes que não sabiam falar mambae (CARDOSO, 1999, p. 12).
O enfermeiro que nesse período vive em Lisboa pensa regressar a uma vila em
Timor para resgatar laços de um passado distante. Essa confusão mental é manifestada
pela perda da memória recente, que está corroída e fora do seu eixo. A memória que é
guardada é a afetiva do mantenimento da cultura portuguesa em Timor Leste, com a
qual ele se sente identificado. Se, por um lado, parte dessa memória permanece viva é
porque ela representa um passado que só existe enquanto narrativa; por outro, a
memória do pai não assimila o novo, que é o lugar da história em que ele está inserido.
O passado torna-se assim o presente (re) vivido porque é lembrado, enquanto o presente
206
torna-se esquecimento. Podemos dizer que este jogo entre a memória que representa o
passado e a memória que não pode ser assimilada, porque é o presente, Luís Cardoso
incita-nos a refletir sobre a história portuguesa contemporânea. Uma história que está se
libertando do passado mítico através do posicionamento crítico-reflexivo dos seus
autores (sejam historiadores ou ficcionistas). Entretanto, essa libertação ocorre pelo
apego exaustivo a estes mesmos mitos na tentativa de exorcizá-los. O presente passa a
ser assimilado de forma homeopática, e a formação da Comunidade Lusófona pode ser
uma última tentativa de não se libertar completamente deste passado em nome de uma
aventura que ainda contabiliza os mortos e os feridos em seus desdobramentos. Nessa
visão alegórica, a memória portuguesa (recente) está doente: reivindica os mitos
históricos para se recompor e encontra dificuldade em assimilar o presente despido das
epopéias do passado.
Na literatura de Timor Leste, mais do que na literatura africana, observa-se que o
imbricamento existente entre as culturas pátrias (a portuguesa e a timorense) marca a
politização narrativa, a identidade e a imagem de nação deste jovem Estado. Observa-se
também como sintoma predominante nas colônias que há uma espécie de mimese
intencional da vida na metrópole, sobretudo representada através dos nomes de vilas,
ruas, colégios ou monumentos e pela própria estrutura funcional:
O vale da ribeira de Lacló estendia-se numa longa distância e planície, ladeada por várzeas de arroz; mais tarde um governador aqui tentaria fazer perdurar o seu estatuto, mandando construir uma ponte com seu nome, imitando o outro da mãe-pátria, mas que as águas rebeldes e insubmissas das monções se encarregaram de transformar sucessivamente num monte de destroços – o prenúncio do futuro (CARDOSO, 1999, P. 19).
207
Quando a associação não é direta apresenta-se pela ironia (ainda que sutil) do
narrador. Assim, ele informa, por exemplo, que o colégio de Soibada se chama Dom
Nuno Álvares Pereira e é “um bastião lusitano encravado no coração de Timor para
comemorar uma Aljubarrota distante” (CARDOSO, 1999, p. 49).
Nesse sentido, a escrita de Luís Cardoso mostra-se hermética, pois
representa, num primeiro momento, a indeterminação histórica, geográfica e lingüística
que é Timor. A história é composta pelo fluxo de consciência do narrador que traz para
o universo ficcional os mitos e as lendas, bem como os topônimos do passado timorense.
Desse, não apenas a geografia do lugar é necessária para a compreensão do narrado,
como também as datas históricas ou os fatos são eleitos pelos nomes dos seus ícones
representantes. Não passa despercebido o fato de que muitos dos lugares mencionados
existem apenas memória que o testemunho de Cardoso e de outros escritores irá
restituir ao passado de Timor, porque muitos já desapareceram queimados ou
destruídos pelo governo indonésio.
No resgate do período colonial, o exercício da profissão do enfermeiro
desenvolvido de forma rudimentar remete à figura de Florence Nightingale102, a “dama
da lamparina”, que no século XIX fundou a primeira escola de enfermagem. A
enfermeira percorria os campos, durante a guerra da Criméia, cuidando dos feridos
iluminada por uma lamparina. Ou seja, também esse ofício adquire o sentido
102 Florence Nightingale (Florença, 1820 – Londres, 1910) em suas teorias se baseiam os preceitos da moderna escola de enfermagem, sobretudo no que diz respeito à higienização do local de acolhida (o hospital), do profissional da saúde (o enfermeiro) e do paciente.
208
desenvolvido durante muito tempo sobre o exercício da enfermagem, que é o auxílio de
matriz quase empírica prestado aos doentes. Assim, o narrador rememora que a luz do
petromax conduzia o enfermeiro por “seus caminhos nocturnos, atrás dos suspiros dos
moribundos e dos sopros dos nascimentos no exercício da tarefa de recuperador de
vidas” (CARDOSO, 1999, p. 150).
O funcionário colonial, como aponta Cardoso, desempenha função
assistencialista usufruindo conhecimentos rudimentares transmitidos no curso de
formação de enfermeiros, mas conta com o conhecimento adquirido na itinerância e nos
problemas encontrados na travessia da doença para a saúde. Interessante observar que,
não raro, o ambiente descrito pelo narrador é funesto, escuro, pobre, ausente de recursos
de variadas ordens. Se essa ambientação é percebida sutilmente ou com forte carga de
intencionalidade em Crônica de uma travessia, em olhos de coruja, olhos de gato bravo
percorre toda a narrativa sendo transmitida através da obscuridade e da atmosfera
sombria das relações pessoais aí apresentadas.
Na visão do enfermeiro observamos, também, que a causa pela qual lutam
os timorenses é a liberdade para autogestão e, igualmente, como todos os combatentes
são fiéis a esse objetivo comum independentemente da ideologia que defendem. Todos
no exílio percebem que anterior a qualquer desavença política está a irmandade pelo
qual estão unidos, que é a liberdade da nação, como podemos observar no fragmento
que segue:
209
Era membro da UDT e defensor convicto do mate-bandera-hum. Como tal foi preso pela FRETILIN durante a guerra civil depois da debandada dos dirigentes da sua formação partidária. Dizia que, embora tivesse sofrido maus tratos, conseqüência lógica de outros tantos infligidos aos militantes da FRETILIN pelos seus correligionários, que se haviam refugiado no outro lado da fronteira protegidos por outra bandeira, esquecera todas as desavenças no cativeiro e no contacto diário com aqueles jovens, alguns mais comunistas do que outros, sacerdotes de ideais supremos e paramentados de guerrilheiros, uns sacrificadores outros sacrificados, mas todos eles jurando as suas vidas pela causa e prometendo a terra prometida pelos mortos (CARDOSO, 1999, p. 13).
Pelo excerto acima destacado é possível notar já no início da narrativa o
que será visível em todo o seu decorrer representado desde a segunda guerra mundial
quando ocorreu a invasão japonesa: é que todos os militantes sofreram as mesmas
conseqüências, pois, ao se encontrarem na condição de desterrados o seu destino era o
mato, a montanha ou a prisão. O argumento comum dos combatentes era expresso pela
imposição das armas e pela resistência, que é uma característica que se mostra intrínseca
ao povo maubere e foi utilizada em sua defesa contra as sucessivas investidas
estrangeiras no território.
Se permanecer em Lisboa permitiu que o resgate da memória do
enfermeiro estivesse submetido a um tratamento médico, a condição geográfica de estar
em solo estrangeiro acarretou, também, o distanciamento temporal necessário para o
narrador desfiar a história pessoal e coletiva. A apresentação do pai inicia pela
proveniência geográfica situando Manufai ou Manufahi como “uma terra cujo nome
soava a terror e a traição” (CARDOSO, 1999, p. 13). O princípio identitário será
igualmente um fator pelo qual o narrador será reconhecido no colégio e na metrópole:
210
Quando me perguntavam pela minha proveniência enquanto eu me dividia pelos locais onde tinha passado, respondiam por mim, dizendo que eu era de Mahufahi para depois me apelidarem de revoltoso, embora eu me esforçasse por dizer que vinha de Ataúro e procurasse convencer, durante os banhos de piscina, que era capaz de fazer melhor que os tubarões da ilha. Eu não era nada revoltoso. Além de magrinho, era medroso (CARDOSO, 1999, p. 49).
Faz-se necessário observar nesse fragmento que aliado à identificação do
indivíduo ser direcionada pelo seu local de origem encontra-se o fato de o narrador
sentir-se dividido pelos diferentes lugares por onde passou. Se, por um lado, não se
mostra identificado com o lugar de nascença, porque dele já não tem o conhecimento e o
tempo de maturação necessário à identificação, por outro, considera-se um somatório de
identificações oriundas dos vários locais percorridos. Também a identidade pessoal
apresenta-se fragmentada pela diversidade tal qual a identidade do território que não é
una nem o pode ser, porque contém na sua matriz nacional a mesma diversidade.
Essa diversidade é sentida no conflito entre tradição e assimilação. A
ascensão social do pai é proporcionada pelo aprendizado da cultura portuguesa, uma
vez que a personagem é retirada da vida nativa para ingressar no liceu. Tal conduta
confirma que a entrada no mundo cristão – e, portanto, no mundo ocidental - era feita
em detrimento da cultura nativa. Os alunos eram retirados do seu meio cultural e saíam
para professar uma fé e uma doutrina com a qual não tinham identificação. Ou seja, até
mesmo na crença professada, que é também um forte traço identitário, a colônia
mimetizava os costumes da metrópole. Destacamos, entretanto, que essa imitação não é
mimese pura e simples, mas, um fator social condicionante da elevação da categoria de
nativo a assimilado, que é aquele indivíduo que, nesta sociedade, é considerado apto ao
211
convívio social (com os colonos portugueses), porque já foi introduzido nos preceitos
basilares da cultura ocidental.
A escrita era fascinante para o narrador por permitir o domínio da cultura
do colonizador e da arte de narrar histórias como as lidas na Bíblia, o primeiro livro a
que ele teve acesso. A atividade da leitura exercida é iluminada pelo petromax, um
candeeiro que foi dado como presente ao pai do narrador por um padre açoriano. A
presença desta quase personagem, o petromax, é retomada em outras narrativas de
Cardoso. Em Olhos de coruja, olhos de gato bravo ele se torna indispensável para clarear os
caminhos na noite, na floresta e na casa escura que serve de cenário para um número
significativo de ações representadas na narrativa.
O desenvolvimento da escrita, posteriormente, é incentivado pela influência do
desterrado Mário Lopes. O instrumento que aproxima o narrador da escrita e aquele que
o incita a desenvolvê-la é trazido por estrangeiros - são elementos vindos do exterior
para transformar a realidade nativa. O petromax torna-se, assim, um membro da família
do narrador, pois os acompanha nas travessias pelo território timorense:
Mas para mim, aquele candeeiro chapelado, que imitava o prelado vestido de branco com um chapéu colonial, foi a melhor prenda que indiretamente recebi, pois aquela fonte de luz iluminou parte da minha infância enquanto de noite eu tentava rabiscar o alfabeto, formar palavras e sobretudo fazer as primeiras escritas na companhia dos morcegos, corujas e outros bichos estranhos e extravagantes, que atraídos pela luz vinham de muito longe da ilha, do fundo da terra e dos mares, do horizonte dos meus sonhos e pesadelos, se sentavam no parapeito da janela e abriam os olhos, estupefactos pela minha presença intrusa. Passaram a enfeitar o enredo das minhas redacções, assustando o professor catequista e primário, o qual fazia recomendações a meu pai, até que este me encomendou um curso avulso de
212
catequese e uma rápida e compulsiva primeira comunhão (CARDOSO, 1999, p. 15-16).
Junto ao desenrolar da vida do narrador, outros destinos ocupam a tessitura
narrativa como, por exemplo, o de Landa, um contrabandista de gado que era
considerado homem sem bandeira, pois estava onde havia condições para exercer o seu
ofício. O ponto relevante da composição desta personagem é ausência absoluta de uma
história ou raiz familiar. A esposa havia sido raptada, e, desde então, ele não tinha
assento e não defendia outra causa além da sua sobrevivência. Deduzimos, assim, que
quando esta é uma realidade criada num cenário onde tudo falta, desde as condições
basilares de sustentação moral do indivíduo, avultam os subgêneros criados pela
miséria ou através dela. A micro-história dessa personagem que julgava estar segura
“junto da terra de ninguém que os outros chamavam fronteira” (CARDOSO, 1999, p. 18)
permite-nos dimensionar a solidão, o abandono e o desamparo do indivíduo diaspórico
de quem, nas disputas de fronteira ou nas lutas independentistas, é tirada a família, a
casa e as condições de trabalho. A personagem que sobrevive do contrabando de gado
aventura-se pelo curandeirismo quando realiza sua travessia pelas terras de Timor em
companhia do pai do narrador. A travessia dele é a do abandono ao encontro de uma
família tão transitória quanto sua própria experiência de vida.
Segundo Stuart Hall, aquele que sai do seu local de origem torna-se outro no local
de destino pelo acúmulo de experiências, pela assimilação de outra cultura e pela
adaptação a uma nova realidade histórica. O pai do narrador deslocava-se pelo interior
do território e levava consigo a família, cuja história é composta nessa travessia e na
213
observação das histórias de vida de muitos timorenses, africanos refugiados,
personagens estas que são as componentes da diáspora.
A solidão também aparece no ambiente expresso na obra. O narrador, não raro,
está sozinho ou observa a história à distância, desenvolvendo-se nas letras, através da
leitura do texto sagrado. A educação do narrador consolidou-se nas missões católicas
portuguesas, como já foi anteriormente mencionado, onde o ensino era voltado ao
conhecimento da história cultural da metrópole. Dalila Cabrita Mateus (MATEUS, 1999)
destaca que os manuais escolares que eram enviados às colônias traziam, no máximo,
duas a três páginas sobre a história de cada uma das possessões ultramarinas, deixando
o restante do conteúdo ao encargo da admiração à história e à cultura portuguesas.
Observamos nessa obra como o enfermeiro possuía a convicção de que a ascensão social
dos filhos dependia da educação. Por esse motivo condicionava o narrador ao sacrifício
de estar longe da família e em locais com os quais se sentia pouco identificado para
cumprir um objetivo: complementar sua instrução. Assim, o filho transitava entre os
seminários descrevendo situações de absoluta carência de afeto, solidão e ausência
familiar, pois enquanto ele estava recluso o pai continuava sua enfermagem itinerante.
Quando há a separação entre pai e filho cessa o desfiar da memória das travessias
familiares para iniciar o desfiar da memória das outras travessias a que o narrador
percorre sozinho na busca incessante por esta educação que o leva a conhecer a
metrópole e a concluir lá sua peregrinação. Em uma passagem do texto o narrador chega
a afirmar que também seu pai, embora esteja na terra onde nasceu (diferentemente do
desterro de Landa, o contrabandista, de Adroaldo, o cipaio descendente de desterrados
214
moçambicanos (os landins), e de Mário Lopes, personagem expatriado de São Tomé e
Príncipe), é um desterrado pela profissão (CARDOSO, 1999, p. 20), fato que o aproxima
ainda mais das personagens que vão engrossar a solidão familiar.
A primeira travessia geográfica feita na presença do narrador acontece logo após
o seu nascimento em viagem de Cailaco, uma aldeia próxima à região fronteiriça com o
Timor Ocidental, para Cribas, na região central do território, passando por Laclubar,
pelo vale da Ribeira de Lacló, pelos montes de Subão, Manatuto e Lecidere. Essas
travessias pelo interior do território marcam a topografia acidentada e as condições
precárias como era desenvolvido o quotidiano na colônia, desnudando as estruturas da
sociedade timorense. Durante a infância do narrador Dili ainda era uma cidade sem luz
elétrica. Nesses caminhos, a geografia de Timor vai delineando seus contornos que
também constituem uma linha identitária do continente e da ilha de Ataúro. Em cada
região ou em cada local de travessia há um costume a ser representado que põe em
convivência as forças da natureza, os mistérios do mar e a conduta humana, axiomas
inerentes à cultura timorense.
Na travessia de barco, também, em companhia do sokão a cultura timorense vai
sendo contada: primeiramente, pelo medo de viajar à noite; em segundo lugar, pelo
medo de que o barco mudasse sua rota por influência do rain-fila, como explica o
narrador:
os viandantes se perdiam nos caminhos por causa do rain-fila, isto é, das partidas que a terra prega aos intrusos, virando-se ao contrário, obrigando então aqueles a socorrer-se dum malabarismo, no qual o guia se sujeita a despir toda a roupa e a vesti-la do avesso como forma de encontrar o caminho do retorno (CARDOSO, 1999, p. 22).
215
Fundem-se, assim, a cultura metropolitana e a colonial, as crenças timorenses e a
fé católica, a geografia ocidental e oriental, as histórias de vidas de desterrados de todas
as ordens. Entretanto, os costumes da terra que aparecem na narrativa são ainda
cultivados e respeitados mais do que aqueles que vão sendo ensinados. Em um
momento da travessia os pescadores devolvem ao mar a sua pesca por ser tratar de um
tubarão adolescente, pois estariam, caso contrário, ofendendo os costumes e seriam
punidos pela desobediência. Também observamos em olhos de coruja, olhos de gato bravo
que as paisagens são forças da natureza, e, portanto há a necessidade de conviver com
elas em harmonia. Uma vez que servem, nessa convivência, de moradia, alimento e
proteção. Em olhos de coruja, olhos de gato bravo percebemos que a natureza é a própria
ambientação do romance. A ausência de luz, a aridez dos caminhos trilhados, a
densidade da floresta onde as personagens se perdem durante a travessia são
representativas das relações pessoais e sociais ali estabelecidas.
O universo representado em Olhos de coruja, olhos de gato bravo está dividido em
duas partes, a saber: na primeira, a narradora Beatriz, assim como o narrador da crônica
de Timor, conta sua própria história desde o nascimento. Pela visão feminina, o
universo patriarcal é desconstruído e as tradições, bem como a magia do imaginário
timorense, transparecem mais do que na primeira obra. A personagem é cegada pelo
pai, que logo desaparece, exatamente no dia em que é batizada. Já sem família, a
personagem em companhia da sua tia busca tratamento médico na capital do Império.
Lá, convive com outros timorenses e recebe auxílio de um padre que se encarrega de sua
216
educação. Impossibilitada de cura, Beatriz retorna a Timor numa viagem de navio e,
nela, conhece Luís de Albuquerque que será seu futuro marido.
A segunda parte é marcada pela luz, enquanto a primeira o é pela escuridão, pelo
calor e pelas condições rudimentares de sobrevivência no tempo colonial. Olhos de coruja
é também um encontro com os mitos e a natureza timorense. Se em Crônica de uma
travessia a figura do pai exerce a função de enfermeiro, aqui exerce a função de
catequista, constituindo, com o primeiro, dois pilares de sustentação social: o
assistencialismo médico e o moral.
Outra personagem guardiã da sabedoria é o sokão que é o guia que conduz a
travessia pelo mar, presente na primeira obra citada. Ele, ao lado dos desterrados que
orienta, realiza o percurso da sua memória, acrescentando às micro-histórias narrativas
a vivência de um migrante pela profissão. Diz o narrador:
Sozinho, no meio do mar, fez então outra travessia. A da sua memória, árida e seca como a planície de Beloi com os seus ai-loks e os espinhos que se lhe espetavam no peito. Lembrou-se do seu filho que influenciado pelo padre, decidira deixar a ilha para ir estudar em Maliana. E de como sua mulher, quase enlouquecida, se mudara com uma esteira e uma panela de barro para o alto de Manukoko e aí acendera uma fogueira dia e noite, enquanto o filho não regressasse. E de como ele, sentindo-se culpado por ter tirado o filho da própria mãe e o ter enviado para uma terra distante, assim como quem arranca pedaços de carne de um corpo, arranjara um beiro, e para se punir a ele próprio começara a cincum-navegar em torno da ilha, até que a razão ou os espíritos acenderam uma fogueira no alto mar para lhe indicar a hora de voltar para junto da esposa. Em como ao chegar ao ponto alto de Manukoko encontrara as chamas apagadas e o corpo dela meio devorado pelas aves (CARDOSO, 1999, p. 26).
Essa personagem é o antagonista do saber adquirido. Se, por um lado, a ascensão
social é realizada pelo aprendizado da cultura ocidental, por outro, a sobrevivência
217
nesse local depende do conhecimento da natureza e do respeito às crenças nativas. O
mágico e o real convivem paralelamente na obra no que diz respeito à representação da
cultura timorense híbrida com as demais culturas com as quais interage. Essa condição
de localidade geográfica faz com que convivam não apenas os portugueses expatriados,
mas igualmente os expatriados de outras nacionalidades. Nesse sentido, a hibridização
cultural torna-se ainda mais acentuada, porque no infortúnio do degredo as micro-
histórias aqui apresentadas, que se entrecruzam no espaço geográfico, convivem e
influenciam-se mutuamente. Em Olhos de coruja, olhos de gato bravo a personagem
pantaleão, não raro, busca um saber ancestral que desconhece por vivência mas
reconhece como identidade, que é o saber africano, local de onde vieram seus
antepassados. Não que a personagem recuse a identidade timorense, mas nele convive a
timorense e a moçambicana como o lugar (os lugares) da sua identidade. Condição esta
que se, por um lado, irrita seu padrinho apegado aos valores da sua terra que é Timor,
por outro, igualmente o influencia na medida em que dele toma conhecimento mesmo
que seja para refutá-lo.
5.2.3 Babel contemporânea ou Ingredientes para o ressentimento histórico
Timor é uma Babel contemporânea, segundo Luís Cardoso, pois a língua falada
no território variou conforme os regimes políticos do qual ele foi vítima. Na ocupação
portuguesa foi imposto o uso do português tanto para a comunicação quotidiana,
218
quanto para o aprendizado na escola, configurando, assim, a discriminação social do
indivíduo pela língua que o identificava. Sobre essa condição, observa o narrador:
Foi-me ensinado primeiro a catequese em tétum, depois o hino nacional em português e finalmente algumas canções sacras em latim. Mais tarde a escrever o alfabeto, os números e a tabuada. As palavras na cartilha, r-o-ro-l-a-la e dizia lakateu em tétum porque era o lakateu que estava lá configurado. Era o lakateu que eu guardava na minha cabeça e no meu bolso, apanhando em perseguições dolorosas na altura das chuvadas, e que de asas molhadas e cansadas desistia facilmente. G-a-ga-l-o-lo e dizia manu-aman em tétum porque era o manu-amam que estava pintado sem as cores festivas das lutas de galo aos domingos no bazar (CARDOSO, 1999, p. 37-38).
O idioma da potência colonizadora viria a formar a identidade dessa nação. As
dificuldades da alfabetização dão uma dimensão do que é cultural por assimilação e do
que é cultural por identificação. O narrador sente-se identificado com a língua em que
aprendeu as primeiras palavras – língua afetiva – por ser a forma como estabeleceu as
relações pessoais nas localidades por onde passou.
Durante a ocupação Indonésia os professores de português foram mortos e as
escolas queimadas, minando, com isso, o uso dessa língua que continuava a ser
ensinada na clandestinidade. Também nessa condição foram lançadas obras de
escritores timorenses em apoio à causa nacionalista. Um exemplo é dado pela coletânea
de poesias Enterrem meu coração no Ramelau publicada pela União dos Escritores
Angolanos. O período da invasão Indonésia correspondeu a um regime de exceção
democrática, de exploração econômica, mas, sobretudo, de exclusão cultural, porque foi
dirimida qualquer possibilidade de manifestação artística e religiosa que não fosse dada
219
pela oficialidade imposta. Traços peculiares da expressão artística do território foram
perdidos durante essas invasões, fazendo com que o imaginário timorense esteja ainda
na atualidade em processo de reconstrução.
No resgate desse imaginário importa observar que mesmo sendo o aprendizado
da cultura portuguesa o suporte para a ascensão social, os costumes locais são cultuados
pela família principalmente pelas figuras do ancião e da mulher. Eles representam,
respectivamente, o que guarda os segredos dos saberes ancestrais e o que se mantém
apegado à tradição. O narrador rememora um fato ocorrido em sua infância, em que ele
é levado a conhecer a tradição timorense antes de ingressar no caminho sem volta da
aculturação. Ou seja, antes de se tornar outro que representa a alteridade colonial é
preciso buscar a identificação de si. Diz ele:
Manufahi era o ponto de apoio gentio que eu deveria buscar para fazer a minha incursão na missão católica de Soibada. O velho assuwain Manucoli levou-me a conhecer parentes e lugares sagrados, mistérios e feitiços. Queria que eu conhecesse as minhas próprias entranhas antes de as abandonar definitivamente para submergir no reino cristão (CARDOSO, 1999, p. 47-48).
Esclarece, em seguida, que nem todos os alunos ingressos nas missões
conseguiam adaptar-se à nova realidade. O retorno às raízes era proibido para os que
pretendiam ascender à categoria de assimilado. Havia, porém, os desertores que não
podendo identificar-se nesse meio tentavam retornar às suas famílias, de onde também
eram expulsos por não integrarem mais a unicidade vivida no meio nativo. Esses
indivíduos tornam-se habitantes do entre-lugar de dois mundos antagônicos com os
220
quais precisam conviver, trazendo para o universo narrativo a condição de desajuste
social do indivíduo que não encontra o local da sua identificação. Segundo Homi
Bhabha (BHABHA, 1998), a condição colonial impõe a distância entre esses mundos e
faz com que o sujeito assuma uma identidade que não é sua, mas que necessita
incorporar como imagem que é antes produzida pelo outro e para o outro.
A divergência lingüística como marca identitária da nação timorense
aparece na narrativa de Cardoso pelo ensejo das línguas étnicas, pela inserção da
influência da língua inglesa, da bahasa indonésia e do latim. Durante a 2ª Grande Guerra,
o Japão invadiu o território e deixou marcas tanto pela ofensiva política, quanto pela
cultural. O autor em entrevista à Rádio France Internacional103 diz que seu próximo
livro retomará o período histórico da presença japonesa em Timor. Sobre esse motivo
temático o narrador rememora em Crônica de uma travessia:
Depois, quando ouvia a minha mãe cantalorar as monocórdicas e melancólicas canções que aprendera com os soldados do Império do Sol Nascente na altura em que se encontrava refém dos Japoneses na aldeia de Ulfu, também ele cantava outras em língua inglesa e era como se a guerra tivesse continuado em minha casa e perdurado em nossas cabeças. Feito o balanço, mais de cinqüenta mil timorenses sucumbiram, garantindo a Portugal, até hoje, a continuidade da sua trágica aventura e aos Australianos a soberania de Sua Majestade a Rainha de Inglaterra (CARDOSO, 1999, p. 16).
Essa existência fronteiriça traça a identificação do indivíduo com o universo que
assimila para si como sendo o que marca a sua origem. Se, de um lado, a mãe rememora
103 CARDOSO, Luís. Entrevista concedida à RFI, durante o Encontro de Escritores Ibéricos, ocorrido em Paris. Pode ser conferida através do site: http://www.rfi.fr/actubr/articles/071/emission_186.asp: disponível em 28.11.2005.
221
canções cuja matriz cultural está centrada na noção de mundo oriental (representando,
com isso, a parcela de indivíduos que se imaginam ligados à herança cultural dada pelo
orientalismo) antagonista, portanto, da matriz cultural dada pelo mundo ocidental, de
outro está o pai, que assimila para si e se imagina como indivíduo integrante da
circunstância referencial marcada pelo ocidente. Com isso, a disputa identitária
principia na estrutura familiar e estende-se à coletividade de nação em constante
processo, ou, nas palavras de Homi Bhabha: “unindo a casa e o mundo” (BHABHA,
1998, p. 35).
Além de ser representado como um espaço de conflito, Timor é também um
território de exploração econômica que encontra no petróleo o elemento que impulsiona
esse processo. As relações comerciais dentro do espaço da nação eram estabelecidas, no
tempo colonial, por caixeiros que faziam o intercâmbio de mercadorias por terra ou por
mar. É o caso da personagem Mário Lopes que terá, inclusive, influência sobre o
letramento do narrador. As mercadorias transportadas por individuais através de
pequenos barcos realizavam a travessia dos elementos (e dos alimentos) advindos do
progresso.
Luís Cardoso desenvolve em Crônica de uma travessia uma forma narrativa em que
a ironia é um recurso constante. Tênue sem ser inocente, percorre tanto assuntos
políticos, quanto históricos ou pessoais. O narrador transmite-nos a sensação de que
conhece a maneira como a história será interpretada pelo imaginário ocidental. Ou, por
outro lado, talvez sua visão já esteja impregnada por esse imaginário - já que ele é
também um misto dessa identidade - que imprime o tom e a intensidade da ironia com
222
que essa história pode ser interpretada. Assim, citamos a travessia de volta a Dili,
quando diz o narrador:
Foi assim que deixei os meus parentes na ilha de Ataúro e voltei a atravessar o mar em direcção a Díli. Era um dia de temporal e pude constatar quão previdente era o meu pai. Escolheu como complemento do meu vestuário sumaúma. Se tivesse sido chumbo de Macadede, eu ia ao fundo (CARDOSO, 1999, p. 44).
O autor descreve situações vividas permitindo ao leitor a descoberta, por isso
refere-se indiretamente aos objetos, locais, situações ou personalidades históricas.
Tampouco as aproximações culturais ou literárias são citadas, elas são descritas em sua
natureza tal como, provavelmente, o narrador a vê e com o conhecimento que tem no
momento em que presencia os fatos. Porém, quando a narrativa se aproxima da sua
maturidade, os elementos são analisados conforme ótica político-ideológica que se
impõe a ela sem que a mesma assuma o caráter de protesto observado, por exemplo, nas
poesias do período pré-independência. Para usar uma expressão do próprio autor, em
alguns momentos da narrativa ele se torna “pedagógico sem ser moralizante”, ou
mesmo politizado sem ser assumidamente militante. Alexandre Gusmão, deste modo,
aparece como o guarda-redes da Acadêmica ou como o líder que inflamava os corações
dos jovens nas montanhas. Nunca, entretanto, como o ícone inconteste de uma geração
cuja influência é seguida ou admirada diretamente pelo narrador.
Luís Cardoso tem um estilo narrativo que, por vezes, está situado entre o
representado vivido e o alegórico. Esse é o caso de Olhos de coruja, olhos de gato bravo em
que o uso da simbologia pertencente ao imaginário timorense exige uma observação
223
aguçada do leitor. Se compararmos Crônica de uma travessia com Olhos de coruja, a
primeira se torna uma obra assimbólica. Isso ocorre porque a intenção parecer ser o
resgate das histórias de vida e dos fatos históricos que conferem identidade ao narrador
e a sua pátria, tornando esse universo mais próximo da realidade vivida. Enquanto na
segunda o projeto autoral resgata os mitos e as crenças timorenses, trazendo para o
centro da narrativa as vozes das minorias marginalizadas, conforme denominam Linda
Hutcheon e Homi Bhabha. Deslocada a voz narrativa para o universo feminino, a
mulher pode ser aqui entendida como metáfora da terra, pois é guardiã da cultura
genuína.
Em Olhos de coruja a cegueira é imposta à protagonista, pois no dia do seu
batizado tem os olhos vendados. Em face dessa condição, Beatriz passa a ser guiada por
sua tia, observando o mundo sob ótica distinta. É ela que desvendará a história do seu
nascimento, a desestruturação familiar, e a perda das raízes quando, em busca de
tratamento médico, precisa se deslocar à metrópole. A estrutura da narrativa, dessa
forma, aproxima-se da desenvolvida na primeira obra, pois ambos partem do ponto de
vista de uma personagem jovem que percorre o período colonial (que é o tempo do
nascimento e da infância) e desloca-se para a colônia (que é o lugar de acolhida). À
época do retorno de Beatriz a Timor Leste dá-se em 1990, portanto, durante o período de
ocupação Indonésia e, nessa realidade, a personagem declara não se sentir integrante do
cenário que observa:
224
Quinze anos separavam-me desse regresso. Por momentos fiquei na dúvida sobre o lugar da minha pertença, não falava a língua com que as pessoas se entendiam, não tinha na minha memória um lugar que fosse meu, não me lembrava do rosto exacto dos meus pais, padre Santa fizera mais de uma vez viagens a Timor e no seu regresso nunca me deu notícias do paradeiro deles, sabia vagamente que ainda tinha uma avó e dois irmãos gêmeos bem distintos um do outro (CARDOSO, 2001, p. 39).
Esta protagonista também experimenta a sensação de ser estrangeira na pátria
afetiva porque sua história de vida bem como o desenvolvimento da história na colônia
já não é a mesma. O antagonismo dessa condição de despertença é representado por
Pantaleão, filho de desterrados africanos. Stuart Hall utiliza, para essa realidade, as
expressões “identificação associativa” ou “força do elo umbilical”, destacando a relação
identitária que as minorias étnicas adotam com relação à sua cultura de origem (HALL,
2003, p. 26). Observamos que Pantaleão busca constantemente a identificação com esse
elo umbilical tal como a personagem Lourenço de Castro da obra Vinte e zinco do
escritor moçambicano Mia Couto. O padrinho de Pantaleão, que é o pai de Beatriz,
lembra ao africano o seu compromisso com a terra de acolhida, donde sua condição de
pertencimento deve ser buscada. Entretanto, o africano recorre à sua identificação
associativa, lembrando suas tradições (ou seja, as africanas) pelo resgate da memória.
Importa salientar que o desenraizamento não é uma condição vivenciada
somente por estrangeiros ou pelos retornados a Timor, é uma realidade presenciada
pelos nativos no próprio território. Em Crônica de uma travessia vários são os instantes na
narrativa que apresentam essa experiência:
225
Quando desci à cidade de Díli – à cidade desce-se sempre, ainda que se tenha feito travessia por mar -, foi-me recomendado bastas vezes para não me esquecer nunca do local do meu nascimento. Tinha-me repartido por várias terras. Quando me perguntavam donde eu era, dizia sempre que era de Ataúro. Só me foi dito mais tarde que a terra de cada um é o local onde nasceu. Assim, eu deveria dizer Cailaco. Quando me apresentei no arquivo de identificação, mesmo antes de me perguntarem, já eu abrira a boca para dizer que era de Cailaco, não sem que, depois, acrescentasse concelho de Bobonaro e como que para pedir alguma atenuante para aquela terra recôndita, esconderijo e altar de rebeldes, acrescentei: - Província de Timor! (CARDOSO, 1999, p. 59).
Pelo exposto acima, observamos uma circunstância em que a despertença ocorre
dentro do próprio território de onde o narrador é oriundo. Esse narrador pertence a uma
geração que usufruiu a estrutura educacional oferecida pela metrópole para ascender
socialmente, porém, sem sucumbir à política desenvolvida na metrópole. Luís Cardoso
caracteriza essa geração como sendo a dos “bons malandros”, que eram aqueles que
desfrutavam dos benefícios dos seminários, sem, com isso, tornarem-se defensores da
coroa portuguesa. Ao contrário, muitos deles são hoje os dirigentes nacionais timorenses
que se voltaram contra a situação de dominação imposta ao território, como, por
exemplo, o escritor Luís Cardoso que foi, também, diplomata do Conselho Nacional de
Resistência Maubere.
Passado o tempo do liceu, os alunos contemplados com bolsas de estudos
deixavam as missões e continuavam sua formação na metrópole do império. Segundo o
narrador: “foi aí que eu vi que quem subia aos céus era quem ficava. O dono do galo
erguia o vencedor” (CARDOSO, 1999, p. 83). A metáfora do símbolo cultural de Timor é
resgatada para explicar a situação de quem fica e quem parte da terra. Ter um filho
embarcado era uma glória suprema aos pais que ficavam.
226
Roland Barthes afirma que o uso do termo “missão” equivale a uma ausência de
sentido cuja indeterminação de significado é “suscetível de receber um significado
qualquer, cuja única função é a da preencher uma distância entre o significante e o
significado” (BARTHES, 1989, p. 86). Sendo missão um signo acolhedor de diversas
significações que variam entre levar conhecimento através da escola até o aniquilamento
no campo de concentração, é diversas vezes utilizada para referir às missões escolares
nos territórios do ultramar. Luís Cardoso diz que a missão: “era um conjunto de
edifícios de pedra, barro vermelho e telhados de zinco. Era uma autêntica Torre de Babel
para onde afluíam jovens de muitas partes de Timor, falantes de muitas línguas“
(CARDOSO, 1999, p. 49).
A imagem de nação claramente expressa pelo narrador remete à diversidade
lingüística experimentada em Timor Leste. O território assemelha-se a uma Torre de
Babel não somente pela existência de diferentes línguas étnicas, mas também pela
relação que estas têm entre si, com o tétum e com a língua portuguesa. E essa
multiplicidade agregada no conjunto da missão será uniformizada através da cultura e
da língua que transmite a cultura ocidental. Não podemos esquecer que o uso do termo
língua de cultura, por vezes referido, precisa de uma ressalva: a de que não se considera
cultura apenas a cultura ocidental, pois as línguas étnicas desenvolvidas em Timor Leste
também são representativas de uma cultura diferenciada. Logo, quando utilizamos este
termo por falta de uma denominação ainda mais adequada e abrangente da questão,
estamos nos referindo à língua da cultura ocidental oficializada (escolhida) como a
língua da representatividade nacional. Entretanto, em várias passagens da obra Crônica
227
de uma travessia, o narrador expressa uma visão eurocentrista e unilateral da transmissão
da cultura metropolitana:
Na sala ao lado, mestre Jaime fazia da turma uma autêntica câmara de tortura. Fechávamos os ouvidos por causa dos gritos, lamentos e insultos que atravessavam a parede. Dizia que eram estúpidos como o kuda-burro e nunca ninguém tinha visto um. Sendo kuda, certamente teria quatro patas. Mas o burro ficava ao critério do aluno revoltado. Só mais tarde pude ver um exemplar digno desse nome numa feira em Lisboa. Não era parecido com os alunos de Soibada e nem tinha o rosto de mestre Jaime. Limpava o quadro preto com o rosto escuro dos alunos que, cobertos com o pó do giz branco, dizia ficarem mais esclarecidos. Aos mais renitentes mandava-os rastejar por baixo das carteiras, obrigando os restantes a cometerem pisadelas como forma de forçar a aprendizagem (CARDOSO, 1999, p. 50-51).
Em oposição à forma de ensinar característica dos mestres portugueses, o
narrador apresenta um mestre gentio, generosamente descrito em sua identidade nativa.
Assim, presentifica a oscilação entre o encantamento por uma cultura da qual não pode
fugir e a associação a outra, impossibilitada de assumir:
tinha um ar de nativo, pleno de sabedoria ancestral e gentia, que não coadunava com o ensino da gramática portuguesa, da leitura e da tabuada. Poderia ser quando muito um mestre catequista do catecismo oral em tétum (CARDOSO, 1999, p. 51-52).
Quando o ponto de vista é centrado nas vivências do narrador, Timor deixa de
ser o local do vivido e existe somente como o cenário em que se desenvolvem as
atividades nas missões. O colégio que já não é Timor, mas um pedacinho de metrópole
ameniza a aridez da vida que é rememorada quando se torna travessia para algum
lugar. Depois de deixar os muros do seminário e ir ao encontro da família, Timor torna-
228
se a terra por onde se faz a travessia geográfica. Do contrário, o imaginário do narrador
está voltado à vida na metrópole e o encantamento em descobrir ou conhecer as terras
distantes. Quando a vida desenvolve-se na metrópole, esta deixa de ser o lugar do
encantamento para se tornar o local do vivido, os olhos do narrador se voltam, então,
para Timor. Em outras palavras, é expressa uma incompletude sempre buscada onde
não se está.
O olhar da colônia quando se volta à representação da metrópole, descreve-a
como sendo o paraíso terrestre, à semelhança da imagem vendida pela empresa
colonizadora no século XIX, que considerava as colônias um éden tropical. Pelos
mesmos manuais escolares em que essa visão ia sendo assimilada pelos alunos era
expandida a idéia de lusofonia presente na obra de Cardoso:
Foi no ano da minha quarta classe que descobri o caminho do retorno dos descobrimentos. Macau e a Cidade do Santo Nome de Deus. Goa, Damião e Diu, a Índia chorada. Moçambique comprido como a girafa do Gorongosa. Angola grande dos diamantes das Lundas e do petróleo de Cabinda. São Tomé e Príncipe do Mário Lopes e do cacau. Guiné e o arquipélago dos Bijagós. Cabo Verde e a morna do Mindelo. A Madeira e o arquipélago dos Açores. Brasil e o grito do Ipiranga. A metrópole e o Entroncamento onde se cruzavam todos os comboios do mundo. Às vezes tinha dúvidas sobre a existência destas terras, lembrando as suspeitas da minha mãe. Mas o encanto fazia-me acreditar em tantas coisas distantes como no paraíso perdido pelo Adão e ganho pela morte. Eu deveria acreditar também em paraísos terrenos mais próximos e mais vivos (CARDOSO, 1999, p. 58).
Esse conceito difundido nas missões era incorporado na identidade do sujeito.
Luís Cardoso mais do que Mia Couto sente-se parte integrante dessa “fraternidade em
larga escala” que compõe a Comunidade de Língua Portuguesa. Observamos,
229
entretanto, que ela se realiza em três instâncias, a saber: na proveniência dos desterrados
enviados para Timor, na geografia alargada da nação portuguesa e no exílio vivenciado
na metrópole pela convivência multicultural estabelecida nas repúblicas estudantis.
Os estudantes em contato com os militantes políticos da Casa dos Estudantes do
Império, em Lisboa, e com líderes políticos pró-independência regressavam a Timor
“despidos de fato e gravata” e munidos de idéias revolucionárias. O período histórico
que é marcado pela Revolução dos Cravos coincide com a ida do narrador para
complementar seus estudos em Lisboa. De lá, acompanha o deflagar da guerra civil
tornando-se esta uma experiência transmitida indiretamente. Assim, a memória de
empréstimo narra as informações fragmentadas vindas de Timor, a angústia da ausência
de notícias da família e as indisposições partidárias delineando, com isso, uma nova
imagem de nação desgastada pelos anos de colonização e impotente diante da
brutalidade dos acontecimentos impostos pela história.
Esse desajuste é sentido, igualmente, quando o narrador cita as brigas partidárias,
as diferentes formações e conflitos de interesses políticos. Luís Cardoso refere-se aos
políticos que hoje governam Timor como sendo profissionais da política. Se, por um
lado, diz o autor que eles merecem a confiança e a esperança do povo timorense, por
outro, não deixa de evocar uma faceta obscura do ato da autogestão. Ante os
desdobramentos funestos para Timor, o narrador esforça-se por contar a história do pai,
de como ele sendo representante do governo português em Timor era quem
verdadeiramente socorria os timorenses dos seus infortúnios. Quando as facções
nacionais assumiram o poder, ele se tornou um contraventor por defender a causa do
230
governo português, que, a partir do período da Invasão Indonésia é declarado o
legítimo protetor do território.
Através das narrativas pós-fundacionais, as micro-histórias contadas dão-nos a
dimensão da complexidade das discussões políticas acirradas, da formação de uma
sociedade itinerante em sua identidade. O conjunto delas permite-nos ter uma visão
alargada e humanista destes conflitos que tomaram parte no cenário contemporâneo aos
olhos atentos de uns e, talvez, perplexos de outros. Assim, percebe-se o quanto o
enfermeiro que defende o mate-bandera-hum o faz em nome da família instituída, do
provento desta necessidade, e da convicção de que se está fazendo o melhor e
defendendo uma nação que, posteriormente, foi aclamada por todos como mãe máter; o
quanto aqueles que lutam no mato, que resistem nas montanhas, também o fazem pela
convicção de que o país quer e merece ser livre da dominação; o quanto, aos olhos da
história, parece que a desunião interna facilitou a invasão externa. Enquanto não se
tinha formação partidária consolidada, os invasores decidiram pela força operada e
concedia pela história a determinação política do território. Fica claro, sobretudo, nas
imagens de nação aqui expressas o fato de que Timor, por mais reivindicado que tenha
sido por várias facções presentes na narrativa (Japão, Austrália, Portugal, Indonésia),
sempre foi território de ninguém. Quando era, pois, potência de Portugal foi relegada ao
abandono; quando os indonésios tomaram o poder acabaram por destruir o patrimônio
humano e cultural timorense, e agora que o poder finalmente chegou às mãos dos
gestores nacionais carece, ainda, de recursos estrangeiros para costurar a história
destroçada pelas colonizações.
231
Fica-nos a imagem de que agora Timor é terra de timorenses, e resta ainda a
esperança de que os desterros, os desenraizamentos, as mortes, as torturas, o abuso de
poder e a desterritorialização tornem-se motivos temáticos pertencentes ao imaginário
destas nações em tempos verbais de um passado, literalmente, imperfeito.
Pela via ficcional, tal posicionamento pôde ser observado em A última morte do
Coronel Santiago, onde é dado o fim da travessia e, metaforicamente, constitui o espaço
reconciliador das narrativas de Cardoso. Se em Olhos de coruja o autor tece elos
narrativos que remetem à Crônica de uma travessia, como a figura do catequista que na
primeira obra ocupa um lugar secundário e, na segunda, será condicionante do destino
da personagem Beatriz (pois é ele quem, diante da compleição física da personagem,
que tem olhos descomunais, coloca uma venda cegando-a durante toda a sua infância),
ou como o desterrado africano cujas raízes encontram-se na primeira obra, no último
livro acontecerá o reencontro do narrador com seus personagens. Beatriz, por exemplo,
que termina a obra encontrando a luz pela primeira vez, esclarece o leitor sobre o seu
destino e discute com o narrador a história de vida que lhe foi dada.
A última morte do Coronel Santiago registra não somente o encontro do narrador
com seu passado, já que é o momento em que retorna a Timor e presencia a destruição
que acompanhou nos noticiários, e a liberdade que ajudou a construir enquanto sujeito
histórico, mas também é o momento em que todos os personagens terão novamente voz
e lugar na narrativa, incluindo as mulheres que, em Crônica de uma travessia,
permanecem em silêncio.
232
6 OS ESCRITORES E SUAS TRAVESSIAS: DILUINDO FRONTEIRAS
o processo de identificação das nações pós-coloniais cujas produções
literárias foram analisadas, observamos que a forma como elas se
inserem no mundo parte da hibridização dos gêneros literários. Afinal, emergem de
uma realidade em que a palavra constitui também arma de protesto contra a subjugação
colonial, sendo a poesia a forma da expressão primeira deste protesto para, em seguida,
passar à prosa quando os processos de autogestão destas nações já estão consolidados.
A produção ficcional destes Estados pós-coloniais parte também da hibridização
lingüística. Se, num primeiro momento, o código de comunicação social é dado pela
imposição histórica do colonialismo português, num segundo momento a escolha
consciente recai sobre a língua portuguesa, escolhida como símbolo da materialidade
com que vão emergir no contexto internacional, bem como da construção da memória
cultural que se dá pela rearticulação histórica.
A hibridização do cenário social propicia a convivência de indivíduos de
diferentes etnias e nacionalidades. Sejam indivíduos naturais do continente, ou ainda
aqueles que foram trazidos à força do degredo, ambos ajudam a delinear, nessa
convivência, um mosaico de culturas formando um território de transição e de
inconstância tanto quanto de diversidade, hibridismo e solidariedade. O que ambos os
complexos culturais trazidos aqui para análise têm em comum, além da história de
N
233
subjugação colonial à mesma matriz colonizadora, é a língua que faz com que estes
indivíduos se tornem uma comunidade imaginada, que se reconhece por laços de
parentesco histórico.
6.1. DIGNIDADE REPOSTA: IDENTIDADES NA DIFERENÇA
Os estudos culturais, segundo Liv Sovik104, solidificam-se na própria tensão entre
a discursividade e outras questões que importam, e que nunca poderão ser inteiramente
abarcadas pela textualidade crítica (SOVIK apud HALL, 2002, p. 15). Um dos temas que
capta essa tensão claramente é o da mistura cultural, da mestiçagem e do hibridismo, os
quais são componentes do cenário social das jovens nações emergentes.
Seguindo o fio dado por Liv Sovik podemos dizer que as identidades das novas
nações são marcadas pela hibridização. Não que outras identidades também não sejam
alicerçadas sob o mesmo signo, porém, o que torna especial o contexto de onde se
originam estas comunidades imaginadas é o fato de propiciarem que suas narrativas
sejam, para aquém do processo literário, fundacionais da imagem de nação em
experimento. Os jovens autores que avultam daí presenciam a formação de um contexto
social – e, portanto, narrativo - atípico: no momento em que vivenciam a nação pela
primeira vez como experiência de autogestão, esta experiência é retratada em suas
narrativas e estas evoluem e transformam-se na formulação discursiva tanto quanto os
indivíduos evoluem como sujeitos críticos no devir social.
104 SOVIK, Liv. “Apresentação: para ler Stuart Hall”. In: HALL, Stuart. Da diáspora. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
234
Em Stuart Hall encontramos que “a identidade é um lugar que se assume”
(HALL, 2002, p. 15), e o que é assumido pelos escritores contemporâneos provenientes
das jovens nações de língua portuguesa é um lugar de travessia: híbrido, porque se
torna o lugar de acolhida dos retornados, dos exilados, dos desterrados e dos
desenraizados; multicultural por vivenciar a empresa colonizadora e, depois dela, seus
desdobramentos, os quais incluem a ausência de fronteiras delimitadas pela língua, pela
cultura ou pela ascendência. A hibridação destas sociedades observadas pelo seu
contingente populacional é transmutada para o discurso na forma de miscigenação de
gêneros, temas, personagens, narrativas e micro-histórias que poderiam ter acontecido,
ou de fato aconteceram aos indivíduos que vivenciaram a diáspora imposta pela língua
e cultura portuguesas, pela religião católica e pela dominação cultural velada através do
discurso fascista.
O conceito de identidade pressupõe uma composição híbrida centrada no fato de
que a identidade do indivíduo é composta de pelo menos duas raízes basilares (pai e
mãe) e seu complemento pode ser observado segundo a convivência social no local de
onde provém ou onde se assenta este indivíduo como sujeito social. Podemos afirmar,
portanto, que o conceito e a significação de identidade materializam-se em contínuo
processo de amadurecimento. As identidades diaspóricas possuem, em especial, sua
natureza duplamente hibridizada na medida em que os indivíduos carregam consigo
uma forte carga de identidade nacional de seu país de origem e adaptam-se ao país de
destino, sendo, inclusive, necessário assumir para si hábitos e costumes do local de
acolhida. O sujeito que daí se origina é, pois, um misto de culturas destes dois locais. O
235
lugar assumido na diáspora seria, no dizer de Homi Bhabha, o entre-lugar entre dois
mundos: um do qual não se pode fugir, pois é de onde se origina, e outro que não se
pode negar, pois é o que garante a sobrevivência.
Nesse contexto, o indivíduo não se adapta, enquadra-se ou identifica-se
totalmente a uma só realidade, pois ele nunca abdicará de sua origem, embora não
possa negligenciar a realidade quotidiana do país que o abriga. Tampouco se sentirá
ideologicamente identificado com o país de origem quando a ele retornar, já que não é
mais o mesmo indivíduo que saiu daquele lugar em busca de alguma coisa. Ele carrega
uma nova bagagem cultural adquirida na aventura do deslocamento, confirmando o
que Liv Sovik afirma quando diz ser a identidade “a costura de posição e contexto, e não
uma essência ou substância a ser examinada” (Hall, 2000, p.15). Assim, aquele que parte
para a aventura (ou necessidade) do deslocamento forma o contingente que Stuart Hall
denomina de indivíduo desenraizado. É o indivíduo componente da sociedade
contemporânea, que narra sua experiência identificada com a experiência de um sem
número de indivíduos que passaram por vivências semelhantes. Esse é o caso de Luís
Cardoso e, em suma, a experiência de um número expressivo de narradores da
contemporaneidade. E não deixa de ser, igualmente, a vivência de um contingente de
personagens que por estarem inseridos no contexto social de mobilidade cultural
passam a integrar o universo da ficção.
“Na situação da diáspora, as identidades se tornam múltiplas” (HALL, 2003, p.
27) pela história que o indivíduo carrega consigo, pela identificação com novas situações
e grupos sociais com os quais passa a conviver e pela adaptação a uma nova realidade
236
social que não recupera a unicidade perdida pela situação vivenciada no local de
origem. A condição do indivíduo que vivencia o deslocamento como forma de estar no
mundo (e tendo em vista o universo ficcional aqui analisado) pode ser definida
conforme as seguintes realidades simuladas, tomando como ponto de partida o estado
de migrante assumido pelo indivíduo diaspórico: ele pode sentir-se identificado no país
de acolhida, ou sentir-se deslocado nessa mesma realidade; pode sentir-se identificado
com o país de origem mesmo estando no país de acolhida; e pode sentir-se estrangeiro
no país de origem se retorna do exílio, porque já não há possibilidade de reconstituir a
unidade deixada. Na segunda e terceira situações mencionadas o país de nascimento e a
cultura original passam a ser preponderantes para o sentimento de pertença a um local e
para a afirmação da identidade do sujeito. Estes se tornam os lugares de afeto que são
retomados em narrativas pelo desfiar da memória dos tempos felizes. É o caso de Luís
Cardoso em Crônica de uma travessia, obra que retoma o universo timorense da sua
infância. Como indivíduo que migra ele já não pertence ao local de origem,
estranhamento que se observa ao fim da travessia, em A última morte do coronel Santiago,
pela natureza da bagagem cultural acumulada, pelo hiato temporal que o separa desse
passado e pelo desdobramento histórico não vivenciado como experiência.
O passado que é resgatado para o universo discursivo através do exercício da
memória é a história que se dá a conhecer e é também aquela que materializa a
identidade das nações em formação. Cumpre mencionar, ainda, que o sujeito que narra
o faz porque ocupa uma posição, para além de interstícia, de centro irradiador da
cultura, personificando, assim, o que Homi Bhabha chama de ambivalência do discurso:
237
que é o distanciamento existente entre aquele que narra e o que é narrado, ou o que é
narrado e o contingente que ocasiona (motiva) essa narração.
A condição posta é observada na literatura pós-colonial, ou, como preferimos
denominar neste trabalho, pós-fundacional ou pós-independentista, à medida que novas
nações que passaram por um processo recente de descolonização manifestam, na
expressão literária, um protesto contra a subjugação colonial. Em meio a essa condição
enquadra-se o ressentimento histórico que não é traduzido de maneira rancorosa, como
foi anteriormente explicitado, mas potencializa-se em narrativas e poesias de louvor à
liberdade e de expressão da vivência do entre-lugar, antes de se manifestar como uma
glorificação à pátria ou à cultura nacional. Em Moçambique, o ajuste de contas com o
passado reclama dos mecanismos opressivos impostos pelo regime Salazarista. Mia
Couto costuma dizer (na sua postura diplomática adotada em relação à causa
portuguesa) que as guerras independentistas eram contra o regime fascista mais do que
contra Portugal ou os portugueses, como podemos confirmar nos discursos extraídos
dos movimentos de libertação.
O protesto é expresso contra a condição de subjugação, exploração social e falta
de possibilidade de auto-gestão quando ele ocorre em detrimento da reconstrução
nacional. Nas narrativas de Mia Couto aqui citadas, esse foi o momento inicial da
retomada da identidade social abrangente, realidade que foi vivida pelo escritor no
momento da criação literária. As narrativas que não foram embrionárias nesse período
têm como pano de fundo o cenário histórico recente. Assim como o ritmo que embala a
música africana, também estas narrativas são carregadas de nostalgia portando-se como
238
um lamento da condição social vivenciada no período citado. À medida que o autor vai
se distanciando desse cenário histórico e que os desdobramentos políticos da auto-
gestão assumem seu lugar de status nesse discurso, outras queixas são trazidas para a
narrativa, porque a realidade experimentada vai imprimindo novas necessidades ao
contexto social. Esta é a razão pela qual as últimas obras do escritor moçambicano
retratam a sobrevivência do indivíduo após as guerras colonial e civil, o cenário político-
social contemporâneo ou o desencanto com essa realidade incompleta e incoerente de
auto-gestão que substitui, nas obras recentes, o lugar daquele lamento primordial contra
a colonização. Agora é a falta de experiência democrática que faz com que essa
sociedade, embora em reconstrução nacional, esteja enfrentando outros problemas
causados pelos nacionais. Este, talvez, seja o motivo que leva Mia Couto a afirmar, não
raro, que também os moçambicanos são culpados por sua condição, já que há exatos
trinta anos a autodeterminação não serviu para minorar os problemas sociais
experimentados pela jovem nação.
Enquanto em Moçambique a ordem social está em desenvolvimento, em Timor
Leste está em processo de construção, donde o curso de formação identitária principia
pelo resgate e reconhecimento do que é elemento nacional e cultural. Enquanto na
literatura moçambicana os motivos literários já passam ao descontentamento com o
cenário social contemporâneo, em Timor Leste ainda permanecem na fase de
reajustamento social duma realidade que obrigou muitos indivíduos, por uma questão
de sobrevivência, a viverem na diáspora. Interessante observar, entretanto, que na obra
de Luís Cardoso (autor cuja produção bibliográfica dá-se no auto-exílio) o ressentimento
239
indonésio (não vivenciado diretamente por ele) insere-se no discurso de forma
tangencial, em qualquer uma das obras analisadas. O que não acontece, por exemplo,
com outro escritor português de temática timorense como José Leon Machado, que
interrompe a narrativa para inserir a história da dominação.
Stuart Hall destaca que a condição pós-colonial insere estas literaturas de nações
emergentes na denominação terceiro-mundista, categoria imposta pela posição de
hegemonia cultural legitimada pela existência (ou exclusão contida) dos cânones
culturais. Reclama, em outras palavras, que embora o elitismo cultural seja um aspecto
do passado, a resistência na aceitação pelo gosto popular ainda está presente no senso
comum e no discurso da mídia. O que ocorre no caso das literaturas fundacionais é que
pela condição que ocupam de narrativas primevas da formação nacional usufruem
elementos culturalmente disponíveis para a sua composição. Queremos dizer com isso
que a denominação atribuída por Homi Bhabha ao contingente literário formado pelas
literaturas dos países do terceiro-mundo (e que por essa condição encontram-se à
margem dos cânones eurocêntricos) não se aplica às literaturas fundacionais por dois
motivos: o primeiro deles é justamente o de serem narrativas que irão representar a
formação da identidade das jovens nações, porém, o segundo, mas não menos
importante, é o de serem formadas por nações integrantes de uma nova ordem mundial
que nasce sob o signo dos desdobramentos do imperialismo econômico, o que, por si só,
já confere a estas literaturas um estatuto diferenciado.
Por um lado, isso não significa que estejamos reivindicando um espaço
privilegiado a essas nações por serem jovens, por outro, significa exatamente isso: que
240
sua juventude cultural e indefinição identitária não lhes conferem um estatuto de
equivalência cultural com as nações politicamente autogestoras, que não passaram por
processos beligerantes como os enfrentados por Moçambique e Timor Leste, assim como
pelos demais países pertencentes à Comunidade Lusófona. Não rotular estas
identidades em formação seria mais profícuo do que delegá-las de antemão, tendo como
alicerce um fundamento baseado num preconceito que é, antes de tudo, político. Para
Stuart Hall (HALL, 2003), a impureza (hibridização) observada na moldura destas novas
identidades conduz a sua inserção no mundo contemporâneo. Argumento que vem
confirmar a ineficácia dos rótulos acerca das novas realidades, uma vez que elas se
formam a partir dos elementos que têm a seu dispor.
A formação das identidades distanciadas dos seus locais de origem sobrevive na
diáspora através de seus mitos genuínos, do saber ancestral e da cultura arraigada na
formação identitária do indivíduo. Por isso, Stuart Hall fala de uma dupla diáspora
quando se refere à diáspora negra: há a diáspora africana no Caribe e a caribenha na
Grã-Bretanha. Seguindo a mesma linha de raciocínio para as narrativas aqui discutidas
observamos que existem múltiplas diásporas quando tomamos como ponto de partida a
língua portuguesa e o imperialismo econômico, cujos alicerces foram arraigados nas
possessões portuguesas d’além mar. Assim existe a diáspora portuguesa em Timor e a
timorense em Portugal; a africana em Portugal e a portuguesa em África; a africana, a
indiana (Goa) e a chinesa (Macau) em Timor, e a chinesa e a indiana em África.
Percebemos, igualmente, que Timor não faz parte do universo africano representado nas
narrativas do moçambicano Mia Couto que em entrevista à autora desta tese confirma
241
essa prerrogativa dizendo que pouco conhece sobre a literatura timorense e a obra do
escritor Luís Cardoso. Embora seja um fato compreensível pela juventude da literatura
timorense, não deixa de ser curioso perceber que a parcela oriental da Comunidade
Lusófona no mundo globalizado esteja, ainda, fragmentada.
Se a impureza é a forma como o novo entra no mundo (Hall, 2003), este novo
elemento não integra o horizonte do contexto mundial somente pelo prisma identitário.
Também as narrativas por serem representantes dessa nova ordem simbólica
apresentam a impureza na sua forma e expressão lingüística. O escritor Mia Couto
hibridiza a língua portuguesa ao acrescentar neologismos à moda roseana, como ele
define, ao romper com as regras da norma culta pelo desalinho da sintaxe e ao misturar
termos em língua portuguesa com termos das línguas nacionais moçambicanas.
Procedimento adotado também por Luís Cardoso que, embora prime pela correção do
uso da norma culta utilizada em Portugal (que é a língua em que o autor foi educado
desde o ensino fundamental), mescla essa mesma língua com palavras em tétum. O uso
do tétum no texto de Cardoso permite-nos fazer duas associações: a primeira observa
que esse recurso parece ser utilizado somente em palavras que não teriam o mesmo
significado se ditas em português, como, por exemplo, o substantivo sokão, que se refere
ao homem do leme, uma espécie de barqueiro que fazia a travessia para o ilhéu de
Ataúro; a segunda (e as duas apresentadas não são excludentes) dá-se pela identificação
ou tentativa de nacionalização (demarcação cultural) desta literatura. Afinal, sendo ela
representativa de um contexto multicultural como Timor Leste, cuja expressão em
língua portuguesa é uma realidade adaptável nesse momento histórico, a língua da
242
expressão nacional como o tétum torna-se a língua da identificação nacional, enquanto o
português, língua oficial, adquire a forma de língua da unificação nacional. Tomemos
como exemplo o seguinte trecho:
Já dentro do beiro, vi-o de perto pela primeira vez. Parecia minúsculo em terra, mas no mar era ele a entidade. Era o sokão, o comandante da embarcação. Vestia apenas um langotim ou hakfolik, uma reduzida peça de vestuário própria de quem navega entre o mar e o céu. Sentou-se na ré, levantou um cipu, uma concha branca, ao mesmo tempo que as luzes da cidade se acendiam. Colocou a concha na boca e levantou-a como se quisesse engolir o tua-akar depositado para adocicar travessias amargas. Fez um sopro e saiu um som lânguido e contínuo clamando pela ajuda de algum ente sobrenatural que descarregasse sobre as velas da esteira um vento razoável com a direcção da ilha. Os marinheiros entoavam cânticos ao mesmo tempo que remavam: - Héan ró, ró berabera Bá ne’ e bé, ba Manukoko. (CARDOSO, 1999, p. 21).
Assim como na obra de Mia Couto em que palavras são traduzidas, o significado
das expressões em tétum é disposto em nota de rodapé. Sokão é, pois, o homem do leme,
e tua-akar é o vinho de palma, termos cuja carga semântica apresenta maior
representatividade na língua franca por referir costumes, hábitos, profissões,
vestimenta, bebidas ou alimentos típicos da cultura timorense, fazendo sentido,
portanto, serem expressos em tétum. O homem do leme não é apenas o barqueiro, como
explica o narrador, no mar ele é a entidade que conhece os mistérios da natureza, que
vai conduzir aqueles navegantes à noite, em uma das tantas travessias realizadas pelo
narrador e sua família na obra Crônica de uma travessia. Ele é responsável pelas vidas que
conduz e esta responsabilidade é reiterada pelo narrador em sucessivos índices
expressos por argumentos de autoridade.
243
Além da marcação topográfica que serve de traço identitário à nação timorense,
Luís Cardoso marca a diferença no discurso pela inserção dessas palavras que tonificam
a cultura, enquanto Mia Couto cria neologismos, hibridizando a língua para enfatizar
uma nova ordem social. No decorrer de 150 páginas da obra Crônica de uma travessia o
autor utiliza 59 expressões em tétum que são traduzidas para o português, uma letra de
canção não traduzida e repetições de substantivos. Em entrevista à autora desta tese,
Luís Cardoso admite empregar tais expressões porque acredita que a carga de
intencionalidade semântica delas é intensificada pela língua da cultura em que está
inserida.
Algumas delas são utilizadas para referir costumes, tradições ou natureza locais,
outras são substitutivas dos seus respectivos sinônimos em língua portuguesa, pois,
conforme afirmativa anterior, a carga semântica que se quer representar é conferida pela
imersão do sentido extraído da cultura matriz, uma vez que elas correspondem à forma
como a identidade timorense é marcada no discurso. Citaremos aqui algumas destas
expressões e sua respectiva tradução, conforme registro em nota de rodapé na obra
Crônica de uma travessia (CARDOSO, 1999):
244
Expressão Tradução Páginas Significado (Ocorrência)
Mate-bandera-hum
Morrer à sombra da bandeira (portuguesa)
p.12, 13,
Expressão utilizada para
definir um posicionamento
de fidelidade à bandeira
portuguesa.
Belak
Adorno de ouro ou prata em forma de lua, usado sobre o peito.
p. 28
Adorno característico dos liurais timorenses. O narrador compara o sol a um belak de ouro brilhante.
Malae-metam
Estrangeiro africano
p. 33
O termo malae significa estrangeiro branco (português).
Knuas
Povoação p. 14
As knuas são espécies de vilas, povoações com poucos habitantes.
Manlekas Celeiros aéreos construídos nos ramos das árvores
p. 25
Integrante da arquitetura local.
Pontiana
Espírito da sedução
p. 35 Ser mitológico que apresenta garras. A mãe do narrador, embora católica, tinha medo do espírito da Pontiana.
Rain-nain
Espírito da terra
p. 39 O narrador compara o espírito da terra com o homem branco que, segundo sua mãe, vinham da terra em erupção de fogo.
Assuwain Guerreiro
p. 47 Homem apegado aos costumes nativos: leva o narrador a conhecer sua própria cultura, antes de ingressar no colégio católico.
Surik Espada p. 48 Símbolo cultural do maubere.
Loro Sae Nascer do sol p. 91 Forma como os timorenses se referem ao seu território.
245
Palapas Casas feitas de folhas de palmeira
p. 61 Componente da arquitetura local
Korem-metam
Festa de desluto, um ano depois da morte da pessoa chorada
p. 62
Baseada em uma crença timorense que considera que as almas ficam presas ao corpo durante o período de um ano. O Korem-metam é, portanto, o período da libertação da alma.
Ai-dik-funam
Flores da árvore do ai-dik (eritrina sp)
p. 154 Confere o subtítulo da obra e representa a época da infância e do encantamento.
Outro aspecto que molda essa identidade nacional é dado pela utilização do
espaço geográfico. Tanto na obra de Luís Cardoso, quanto na de Mia Couto a natureza
integra e interage no universo ficcional. Assim, o mato, as montanhas, os rios e as
estradas são caminhos árduos para distintas travessias. A presença do elemento
fantástico no cenário mítico da obra do escritor timorense é fruto do testemunho e passa
pelo filtro do raciocínio lógico conferindo veracidade ao que é narrado.
O espaço que alicerça a obra Olhos de coruja, olhos de gato bravo confere a dimensão
de profundidade, distanciamento, longitude e diferenciação entre mundo rural e mundo
urbano, luz e sombra, pela expressão de índices narrativos de escuridão e noite
tornando o espaço uma personagem. A rudeza observada na ambientação geográfica é
também representativa da forma como se desenvolvem as relações pessoais.
Observamos que o espaço geográfico é trabalhado de duas maneiras: como
cenário de integração entre o homem e o mundo (incluindo o universo extrasensorial), e
também como lugar de acolhida, de refúgio e de abrigo ao homem que já não tem lar
devido às contingências da imposição histórica. Nesse lugar são narradas as lendas, os
mitos e as crenças que constituem a marca cultural das nações moçambicana e
246
timorense. Em qualquer dos casos, no entanto, desperta a atenção do leitor o respeito do
indivíduo pelo espaço natural também apresentado como espaço sagrado.
Para citar um exemplo lembramos uma cena de Crônica de uma travessia quando
em meio a uma travessia alguns pescadores capturam um tubarão e, ao perceberem que
ele é ainda jovem, devolvem-no ao mar, estabelecendo, com isso, não apenas o
conhecimento da natureza com quem compartilham a vida, mas também o respeito às
tradições de sobrevivência das espécies. Pelos motivos acima citados, a figura que
conduz o barco em meio à escuridão não é denominada pelos vários sinônimos
correspondentes em língua portuguesa, mas pelo único correspondente em tétum: sokão
Em Luís Cardoso os temas evocam o universo timorense. As histórias contadas
dão representam uma realidade que se desenvolveu à margem da história e aquém da
preocupação dos governos. Timor Leste aparece na narrativa (é o personagem de fundo
que atravessa todo o universo ficcional, além de servir de cenário onde as histórias se
desenrolam) como uma nação abandonada pelo poder colonial. O narrador de Crônica de
uma travessia, não raro, tece comentário sobre o descaso com que Portugal sempre tratou
Timor, talvez por ser a mais distante das possessões portuguesas, ou por ser uma terra
de desterrados, para onde eram enviados todos os indivíduos em dívida com o governo
de Portugal. As histórias das colônias se assemelham, nesse ponto, pois para o Brasil
vinham exilados, tanto quanto para Moçambique, expatriados. Pode-se dizer que o
regime fascista de Salazar é o grande agenciador do exílio, pois aqueles que não foram
enviados para as colônias fugiram da ditadura buscando auxílio em outros países
europeus ou americanos.
247
Ao analisarmos o mapa “Portugal não é um país pequeno” que foi veiculado
durante o governo Salazarista, percebemos como e porque era tão difícil para Portugal
desfazer-se do Império Ultramarino. Aquém da condição histórica que enfatiza os
grandes feitos cantados pela literatura está o posicionamento geográfico do país que
serve de porta de entrada à Europa. A pequenez geográfica de Portugal precisava ser
superada por sua grandiosidade imperialista. Os mitos alimentados sobre um passado
distante constituem uma característica importante da história lusitana, visível nas
muralhas, nas ruínas, nos templos e nos castelos com os quais os portugueses convivem
na paisagem quotidiana. O estudante português que entra na Universidade de Coimbra,
na Biblioteca Joanina, na Sala dos Capelos, ou até mesmo no prédio da Faculdade de
Letras, conhece a história daquela edificação secular por onde passaram de reis a poetas.
Sabe que num recôndito cofre na Biblioteca Central está um dos maiores tesouros das
letras nacionais: Os Lusíadas, de Camões. Da mesma forma, um estudante brasileiro que
adentra as suntuosas igrejas, museus ou bibliotecas portuguesas sabe que o ouro
esculpido nas imagens barrocas que ali se encontram, em grande parte, foi trazido das
colônias, mas ainda que ele não saiba, será avisado, tão logo seja identificada a sua
nacionalidade: ouro do Brasil, madeira brasileira.
Cada local de cultura difunde sua própria história e elege seus argumentos
edificantes. Raramente um cidadão português admitirá, com isenção ideológica, que a
colonização portuguesa trouxe malefícios para as colônias, pois, na eleição dos
argumentos com que cada local de cultura se identifica não está o genocídio cometido
nas Américas, tampouco as baixas da guerra colonial e da civil.
248
Na obra Crônica de uma travessia Luís Cardoso menciona o encantamento com do
aluno do liceu diante da história portuguesa – o autor chama, inclusive, de o tempo do
encantamento – e das maravilhas dos monumentos históricos ensinados nos manuais
nas colônias. Os timorenses tanto quanto os moçambicanos decoravam o itinerário dos
caminhos de ferro sem saberem, ao certo, se um dia poderiam usufruir uma viagem de
comboio na metrópole. Também faziam parte do quadrante do encantamento os aviões
que levavam timorenses a estudar em Portugal, para, depois, retornarem à terra e
servirem ao governo. Essa prática descrita em Crônica de uma travessia, no entanto, ainda
permanece na contemporaneidade. Em Porto Alegre, no Instituto Porto Alegrense de
Educação (IPA) encontram-se oito estudantes timorenses, com alguns dos quais
estivemos conversando. Eles vieram usufruir o intercâmbio cultural oferecido pela
Igreja Metodista (que foi parceira das colônias portuguesas no processo de luta
independentista) para, posteriormente, retornarem ao seu país servindo em alguma
atividade social. A observância dessa condição é obrigatória para a permanência dos
jovens na universidade. Importa destacar a respeito desta geração (a que vivenciou a
ocupação Indonésia) é que tal como aquela que foi educada nos liceus através dos
manuais portugueses, esta, em que a língua e a cultura ensinada na escola foi a
Indonésia, não acha que os indonésios tenham sido maus colonizadores. Acredita, sim,
que os portugueses impediram o desenvolvimento de Timor Leste. Este é um dado
importante na medida em que novamente se comprova que o encantamento vivenciado
por Luís Cardoso nos manuais portugueses foi desfrutado por estes jovens na difusão
da cultura indonésia. O que significa, igualmente, que quando esta geração de escritores
249
for representar a nação timorense através de suas narrativas poderá fazê-lo segundo
essa ótica distanciada da imagem de nação apreendida até então pelos poetas e
prosadores da resistência.
Também nessa recusa da idéia de colonização notamos a complexidade da
questão identitária em Timor Leste, bem como a complexidade em vivenciar a
experiência da poliglossia. Como a língua é um forte traço da identificação de um povo,
uma nação que teve num curto período histórico a experiência do uso das línguas
nacionais, do tétum, do português, da bahasa indonésia e do retorno ao português como
língua oficial em detrimento das línguas maternas percorre, nesse trajeto lingüístico, sua
própria história de dominação para (em poder de sua autogestão) decidir pela língua da
identificação e da assimilação cultural: o tétum e o português.
Retomando as questões do indivíduo na diáspora e do retorno ao lar em A última
morte do coronel Santiago de Luís Cardoso observamos um narrador que realiza o fim da
travessia e regressa à terra com a qual não se sente mais identificado, porque já não é o
mesmo indivíduo de quando saiu, nem a terra é a mesma da qual ele partiu. Essa dupla
condição está associada à tipologia dos narradores estabelecida por Walter Benjamim.
Aquele que emigra pode ser associado ao narrador comerciante, enquanto aquele que
permanece na terra, ao camponês sedentário. O primeiro é o caso de Luís Cardoso que,
forçado pela contingência social abandona a terra passando a viver na solidão do exílio
quando ocorre a ocupação do território pela Indonésia.
A solidão enquanto sensação de isolamento também é associada por Walter
Benjamim à condição do leitor de romances. O narrador do romance não é mais aquele
250
que conta uma história (repleta de sabedoria) a um público e, sim, aquele que se esconde
através de seus personagens. As melhores narrativas segundo o autor são as que menos
se distinguem dos relatos orais contados por inúmeros anônimos. Podemos concordar
com essa prerrogativa sobre a evolução da narrativa destacada por Benjamim, mas não
podemos deixar de refletir que o desenvolvimento do conto, enquanto gênero é,
também, uma forma de aplacar essa solidão. Por ser um gênero marcado pela concisão
característica da contemporaneidade sua leitura é facilmente compartilhada no meio
social. Executado pela mediação do contador de histórias esta função vem sendo
resgatada junto ao público juvenil. O escritor Luís Cardoso desempenhou o papel de
contador de histórias timorenses. Diz ele, em entrevista à autora desta tese, que era um
mau contador, pois ao invés de deter-se nos contos selecionados para a atividade
resgatava sempre outras histórias a dividir com seu público.
Nesse aspecto, também é importante destacar a contribuição de Mia Couto. O
autor insere no mundo narrado a materialidade lingüística do narrador de Benjamim.
Suas personagens estão sempre em companhia de alguém para quem contam uma
história imbuída da sabedoria ancestral (cultural) africana. O fluxo narrativo é
interrompido em sua linearidade para a inserção de outra história contada por este
narrador. O que nos permite pressupor que a solidão da leitura é um sintoma típico do
que Stuart Hall denomina de elitismo cultural, de forma mais acentuada que nas
sociedades cuja matriz cultural está embasada no código da oralidade. Se a
materialidade desse fenômeno não pode se estender à realidade social de forma
abrangente, sua representação (a representação da disposição cultural desta sociedade) é
251
transposta para o universo da escrita, configurando mais uma característica “impura”
ou híbrida, que corresponde à forma como o novo entra na história.
6.2 O RETORNO DAS CARAVELAS OU UM AJUSTE DE CONTAS COM
FIANÇA DA HISTÓRIA
Os gêneros literários representativos das sociedades pós-coloniais também
correspondem à forma impura que caracteriza o novo. Algumas poesias de autoria de
Mia Couto são extensas, ficando à disposição da subjetividade poética apresentada
conforme seqüência narrativa. Os contos são narrados com a brevidade da descrição da
crônica, enquanto que os romances são entrecortados pela mescla de pequenos contos
inseridos no discurso, aproximando-se, assim, a voz narrativa da tipologia dos
narradores estabelecida por Walter Benjamim. O clássico narrador da oralidade assume
lugar na cena literária contemporânea resgatando uma unicidade perdida com a
inserção dos novos signos da modernidade. Em torno desta figura reúnem-se as demais
personagens para partilhar histórias vividas de onde emana a sabedoria ancestral
africana. Para isso, a linearidade da escrita é fragmentada intercalando os narradores de
1a e 3a pessoas com o narrador clássico.
As técnicas narrativas resgatadas para a composição do universo criado portam-
se como recursos híbridos que simbolizam a renovação estética representativa da forma
de expressão destas sociedades. Observamos que a travessia entre o gênero poético e o
narrativo é efetuada também pelo histórico social de onde emergem os escritores Luís
252
Cardoso e Mia Couto. Ambos pertencem a uma tradição cujo histórico de combate é
expresso em forma de poesia, e a transmutação de um gênero a outro ocorre no
momento em que a sociedade está em processo de transformação de diferentes estados
de gestão política.
Ao contrário de Mia Couto, Luís Cardoso utiliza como recurso narrativo o fluxo
de consciência, seus narradores oscilam entre as 1a e 3a pessoas do discurso e a narrativa
é entrecortada por analepses que obedecem ao desfiar da memória do narrador. Logo, a
hibridização característica das narrativas pós-coloniais na circunstância referencial dada
por esse enunciado faz-se presente pela inserção de termos em tétum no discurso, pelas
abordagens temáticas trabalhadas e pela composição de personagens que vivem não
apenas no entre-lugar do espaço físico, mas que possuem histórias de vida semelhante à
história da nação de onde provém: uma história à espera de um assentamento
definitivo.
Os motivos temáticos na obra de Mia Couto provêm de histórias embasadas na
herança cultural africana. Sendo híbrida, ela pertence a uma matriz assentada no código
da oralidade e materializa-se, enquanto memória coletiva, pelo código da escrita em
língua portuguesa. Língua esta que comunica as experiências de vida daí decorrentes e
define a identidade desta nação junto ao conjunto de comunidades imaginadas que
compõem o cenário internacional. A identidade cultural construída nas obras de Couto é
mista na medida em que apresenta a convivência entre personagens de diferentes
culturas, e a mescla destas culturas forma a identidade do ser africano, ou a identidade
associativa do ser europeu, indiano ou chinês no exterior. Mesmo o indivíduo africano
253
genuíno é confrontado por esse intercâmbio, cuja marca fica impressa na cultura e no
modo de ser social do local de acolhida. A imagem que se configura, pelos motivos
supracitados, é a de nação miscigenada a partir do contato com o outro, com a
sobreposição de culturas nativas e estrangeiras que convivem nesse território, e também
pela convivência da diversidade étnica própria da estrutura social moçambicana.
Retomando a teoria de Ernest Renan que considera o homem o princípio
espiritual que rege a nação, observamos na obra de Mia Couto que o autor africano
representa o homem moçambicano perdido no território, confuso em busca de valores
que não encontra no cenário social em que está inserido. De um lado está que o
indivíduo precisa sobreviver apesar dos conflitos deflagrados (ou em meio a eles), do
outro lado, o rumo a seguir é incerto pela destruição de todas as suas bases de
sustentação: família, casa, terrenos agrícolas. A imagem de nação vai se construindo
consoante se modificam as necessidades sociais. Inicialmente a voz autoral expressa a
topografia da devastação causada pelas guerras colonial e civil, adiante discute os
projetos de governo (autoritários e totalizantes) que não agregam num enquadramento
lógico a cultura oriunda do saber moçambicano, da estrutura fundiária à expressão
lingüística assimilada. Em qualquer dos casos o homem não está ajustado ao meio, pois
a busca de valores autênticos continua em processo mesmo no cenário marcado pela
independência nacional. Se, por um lado, não há a imposição da estrutura colonial, por
outro, a nova experiência não garantiu a solidificação de uma identidade genuinamente
moçambicana, tampouco a mudança de poder garantiu o desenvolvimento social.
254
Luís Cardoso representa um homem que está fora de eixo e que já não pode estar
em seu território uma vez que escreve do exterior. Quando o espaço social retratado
invoca a permanência do autor na pátria afetiva, o recorte dado é o do tempo da infância
e da convivência com outros desterrados. O isolamento geográfico a que Timor Leste
está submetido direciona a imagem alargada de lusofonia apresentada pelo autor numa
tentativa de diminuir esse distanciamento através do diálogo constante entre a história
dos países lusófonos sempre retomados como motivo narrativo. O autor refere-se ao
Brasil como seu irmão mais velho, aquele que já teve tempo para esquecer o seu
ressentimento histórico. Interessante observar que o Brasil e até mesmo os demais países
lusófonos não aparecem na obra de Couto, donde podemos concluir que talvez pelo
distanciamento geográfico Timor seja mais afetivo quanto aos seus irmãos lusófonos.
Mia Couto dedica a obra Vinte e zinco para expressar o ponto de vista voltado ao
sentimento de despertença vivenciado pelos portugueses em Moçambique. Uma
personagem singular (o goês do conto “De como se vazou a vida de Ascolino do
Perpétuo Socorro”) de Vozes anoitecidas defende a pátria lusitana conferindo a Portugal
os poderes ora exercidos nas colônias. No elenco de narrativas examinadas o braço do
poder colonial é sempre estendido a situações, lembranças ou comentários que
dimensionam a inequívoca realidade vivida no período colonial. Inclui-se, aí, além da já
citada transculturação experimentada pelos sujeitos, uma assimilação de costumes das
mulheres portuguesas. Em Vinte e zinco podemos observar como se representa esse
processo: elas vivem “à moda das pretas” quando sentam mantendo as pernas
255
entrecruzadas, quando recorrem ao vocabulário local, quando incorporam algumas
crenças ao seu quotidiano e até mesmo quando se vestem de forma distinta.
O imaginário construído em ambos os complexos culturais analisados representa
as tradições e os costumes típicos dos locais de onde provêm as narrativas. Na literatura
moçambicana há saberes transmitidos a partir de provérbios populares, as histórias são
assentadas na herança tradicional, nos mitos arcaicos, nas crenças autóctones. Em Timor
Leste há, igualmente, a representação da cultura local. Na narrativa de Luís Cardoso é
percebida a influência mais presente da cultura portuguesa. Não que em Mia Couto não
haja essa aproximação, mas em Luís Cardoso ela é materializada, sobretudo, pela
rememoração da cultura aprendida nos manuais escolares e o fascínio que daí advém. O
próprio narrador ensinado por tais cartilhas vindas da metrópole sonha com os lugares
históricos. A cultura confunde-se entre a que é transmitida pelos colégios por onde
passou e a dada pelos saberes tradicionais. O narrador é levado à imersão na sua
própria cultura numa espécie de rito de iniciação antes de ser integrado aos mistérios da
cultura do colonizador. É preciso conhecer a identidade do si para poder conhecer o
outro. Essa dicotomia está presente em todas as obras de Luís Cardoso, enquanto em
Mia Couto grande parte das histórias elencadas aqui para análise se centra em temática
africana, e as personagens estrangeiras são ali colocadas como coadjuvantes.
Na esteira da despertença experimentada na diáspora está o desajuste vivenciado
no país de acolhimento. Mia Couto e Luís Cardoso falam do abandono a que ficam
submetidas suas pátrias após a Revolução dos Cravos, do abandono a que são entregues
os portugueses em território colonial, bem como do rumo incerto destinado aos
256
habitantes das colônias durante o processo de descolonização. Em Vinte e zinco,
Lourenço de Castro (funcionário da PIDE) dá prosseguimento ao desempenho do seu
trabalho até constatar a inaplicabilidade da administração colonial em Lourenço
Marques. A queda do regime autoritarista português é retratada de forma semelhante
na ficção de Timor Leste e de Moçambique. Em qualquer das narrativas pode-se
observar que o mantenimento do poder estende-se por alguns dias pela falta de
comunicação com a metrópole que devia decretar fim ao império.
Nesse sentido, os timorenses não recebem nenhuma espécie de auxílio ou de
instrução, e os colonos passam a abandonar seus postos na administração pública. Para
consolidar o clima de indecisão quanto ao destino político do território, Luís Cardoso
narra em Crônica de uma travessia a chegada de um contingente de soldados portugueses
logo após o dia 25 de Abril de 1974. Em outras palavras, eles chegavam para prestar
serviço ao império num momento em que ele já estava desmantelado. Sem força de
representação política, os recém chegados retomam o caminho de origem. Em ambos os
contextos nacionais a disputa política no período pós-independência prejudicou o
desenvolvimento social. O resultado disso em Moçambique foi a deflagração da guerra
civil, cujo término em 1992 conferiu 16 anos de conflito armado no território e, em Timor
Leste, essa mesma instabilidade facilitou a invasão Indonésia.
Caso seja possível chamarmos de ressentimento histórico a mágoa explícita na
obra de Luís Cardoso, a localização do desagrado está menos no desenvolvimento
ministrado pelo sistema colonial do que no abandono a que o território foi submetido no
processo de descolonização. A República da Indonésia aliando esse fato ao apoio da
257
APODETI105 (facção que defendia a anexação ao Estado contíguo) instaura um golpe
que nas palavras do autor timorense em entrevista à autora deste trabalho é contra o
comunismo e inclui a invasão do recém independente Timor Lorosae. A temática
política nas narrativas pós-coloniais, tomando como exemplo as que foram aqui
analisadas, trata das conseqüências da colonização naqueles territórios. Porta-se como
um olhar que as colônias lançam sobre a metrópole, o que equivale dizer que o choque
cultural processado na contemporaneidade é de outra ordem: no regresso das caravelas,
a história da metrópole passa a ser contada pelo olhar e pelo crivo das colônias.
Na tradição da literatura moçambicana discutiu-se à exaustão se a cor da pele do
escritor é ou não representativa do contexto social de Moçambique. Em Timor Leste esse
pressuposto não é fator preponderante para a caracterização da produção artística.
Importa, nesse contexto, o local de onde se fala e sobre o qual se fala. Posta esta
condição fica evidente que quando a aridez do cenário social é o imperativo
condicionante para a vida da comunidade, falar sobre ela é estendê-la à comunidade
imaginada de leitores para além das fronteiras. Torna-se imprescindível nesse cenário
que se fale sobre ele e que o mesmo seja elevado a status de discussão. Se em
Moçambique foi possível passar por esse imperativo de ordem social (quem pode ser
melhor representante do contexto sobre o qual se fala), em Timor Leste ele se torna uma
questão sem importância.
Não podemos esquecer que a destruição ocasionada pela Indonésia estendeu-se
aos arquivos históricos de Timor, bem como às edificações, às igrejas e, sobretudo, ao
105 A sigla se traduz por Associação Popular Democrática de Timor.
258
contingente populacional que constitui na cultura de base oral uma fonte documental
viva para perpetuar a tradição da sociedade. Em ambos os contextos culturais aqui
trabalhados a matriz da oralidade condiciona a cultura nacional. No momento em que
uma parcela da população é dizimada, como no caso de Timor, também a cultura é
ameaçada de extinção. A história anterior bem como a geografia do território já foi
modificada, assim, o suporte documental é dado pela escrita ficcional, pelo testemunho
e pela aguçada observação do cenário social. Estas ficções preenchem, portanto, as
lacunas deixadas pelas guerras e pela história.
Em Timor Leste o processo de escolha do sistema de governo, do presidente em
exercício, do projeto de reconstrução social e da escolha da língua oficial acontece no
momento presente. As decisões aqui distinguidas ocorreram a partir do ano de 1999,
quando o país passava pelo processo de transição democrática. O hoje presidente da
República Democrática é o guerrilheiro de ontem que “inflamava os corações dos jovens
nas montanhas” (CARDOSO, 1999, p. 146) e que escrevia poesias à luz do pretromax,
assim como outros poetas que integravam o imaginário cultural timorense. Numa
realidade que emerge da obscuridade (da nação para o cenário internacional, da
escuridão para a luz, do rural para a cidade, da oralidade para a escrita), importa menos
os pormenores dos parâmetros estéticos que permeiam o universo literário do que a
necessidade de utilizar a palavra e, assim, a tradição (dos gêneros literários em que ela
está inserida) ultrapassando as fronteiras sufocantes do território e ganhando o cenário
internacional para que se chame atenção concomitante ao pedido de socorro.
259
O abandono a que esteve submetido Timor Leste durante o governo colonial
português e indonésio se não o credencia a se libertar das amarras da tradição literária
ocidental (porque também a estrutura que sustenta o universo intelectual esteve ausente
nesse território) habilita-o a ingressar no mundo contemporâneo, político, geográfico e
cultural vestido de novos signos de compreensão estética que compõem a cena
contemporânea e as literaturas denominadas de pós-coloniais. No universo ficcional de
Luís Cardoso a memória individual recriada e transposta para o universo da linguagem
é o suporte material de análise das micro-histórias vividas e representadas porque
partem da ordem do vivido.
A formação da consciência nacional timorense é dada pela mão da Igreja Católica
na empreitada da recuperação do tétum como língua de comunicação nacional. Em
Moçambique, entretanto, é dada pela evocação daquilo que é nacional, cultural ou
representativo do território moçambicano: a inserção de uma nova imagem do negro no
discurso autoral. Posteriormente nesse discurso ainda se inscreve a tradição africana
onde se inclui a convivência multicultural do território. Da necessidade da elevação da
raça negra a status de discussão soltam-se as amarras na ficção de Couto transmutando-
se na idéia de nação miscigenada que aflora apresentando Moçambique como o contexto
híbrido que é.
Nas obras mais recentes o contexto político integra a cena contemporânea
questionando a incompatibilidade de tentar fazer de uma nação uma homogeneidade
social. A ficção de Mia Couto porta-se, nesse sentido, como outra possibilidade de
desenvolvimento social. No momento em que o autor aponta as dificuldades dos
260
indivíduos (que são a base componente do cenário social) em conviverem com as novas
estruturas, de interagirem com a língua, de reconstruírem a partir do cenário carente de
recursos, Mia Couto apresenta à burguesia nacional partidária uma solução possível
para minimizar os desajustes vivenciados na experiência da autogestão.
Assim, enquanto temos na literatura nascente de Timor Leste um momento em
que o protesto, a fotografia do cenário social, a cultura nacional, a situação de abandono
e de desenraizamento e, sobretudo, a construção da memória vem à tona pelo discurso
ficcional, em Moçambique três imagens já integravam esse discurso que no devir social
vai assumindo novas necessidades: a eleição do negro como personagem narrativa, a
convivência multiracial e os problemas políticos presentes na cena quotidiana.
Se Luís Cardoso é um escritor que produz sua obra do exterior é, igualmente, um
timorense nato que conhece não apenas os problemas do seu país, como os de sua etnia.
Por outro lado, alguns problemas foram acompanhados do exterior, do exílio em que
estava, sendo, portanto, uma realidade tomada de empréstimo: é realidade enquanto
fato social inegável, mas integra a via do discurso não pelo testemunho, como ocorre em
Crônica de uma travessia, mas pela observação. Mia Couto, por sua vez, é um
moçambicano de ascendência portuguesa; sendo branco não vivencia o racismo imposto
à raça negra (o racismo que experimenta é o destinado à raça branca no território negro
por excelência), convive, porém, com o quotidiano de Moçambique e o fez durante os
momentos da sua composição histórica nacional: vivenciou o colonialismo, a militância
pró-independência, a independência e a experiência da autogestão, tudo isso em solo
moçambicano. Sem pertencer a nenhuma etnia característica da antropologia
261
moçambicana narra experiências observadas no cenário social sem que, com isso, essas
experiências venham do testemunho. O imaginário criado de Mia Couto difere da
realidade vivida por Luís Cardoso, mas ambos os projetos autorais têm o mérito de
levar o seu país ao contexto literário internacional, de compor uma identidade
genuinamente moçambicana e timorense, no que essa realidade significa de híbrida,
multicultural, miscigenada e que convive na diversidade.
Essa diversidade do contexto social é observada também na hibridização da
linguagem trabalhada por Mia Couto. No verbete oral/escrito da Enciclopédia Einaudi
está expresso que:
Através da palavra como facto de enunciação, o discurso põe em discussão a língua, na medida em que o sujeito age na língua, «age a língua»; mas este primeiro acto duplica-se e reforça-se por outro, quando surge a escrita em que o sujeito dá a sua própria marca, impõe a pulsão do seu corpo, do seu pensamento. O homem, sempre mais presente no mundo, apropria-se dele, e não é por acaso que este fenómeno de apropriação se joga ao mesmo tempo no plano econômico e no plano lingüístico (EINAUDI, 1987, p. 54).
Se a escrita já não é a transcrição da língua, mas antes é a sua produção106, Mia
Couto está propondo uma linguagem para identificar a nova realidade de Moçambique.
Está dizendo que alheio aos processos de alfabetização e uniformização da língua
nacional está o meio social que interage com essa língua, que não é a mesma língua
portuguesa, porque também não é o mesmo contexto social de onde ela emana. Couto,
106 Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987. Vol. 11. Verbete Oral/Escrito.(p. 32-57).
262
então, identifica pelo hibridismo quando mescla substantivos equivalentes por palavras
nas línguas autóctones marcando a identidade característica da sociedade moçambicana,
como podemos observar no quadro que segue.
Expressão
Tradução
Obra - Página
Nóói Feiticeira Vozes, p. 87 Xicuembo Feitiço Vozes, p. 125 Machamba Terreno de cultivo Vozes, p. 126 Tchova-xitaduma
Expressão com que, no sul de Moçambique, se designam as carroças de tracção humana. Traduzindo à letra: ‘empurra, que há-de pegar’.
Estórias, p. 38
Petromax Candeeiro a petróleo Estórias, p. 48 Mamanas Termo com que se designam as
mulheres casadas no sul de Moçambique.
Estórias, p. 65
Nenecar No sentido original significa trazer uma criança às costas; utilizado como adormecer, embalar.
Estórias, p. 67
Muene Autoridade tradicional Estórias, p. 100 Muti Tradicional aglomerado de casas de
um mesmo grupo familiar, nas zonas rurais de Moçambique.
Estórias, p. 128
Assimilado Categoria social do regime colonial que privilegiava negros que assimilavam a cultura portuguesa, em oposição à categoria dos chamados indígenas.
Vinte e zinco
Mezungar-se Tornar um mezungo (branco). Vinte e zinco Nzuze Espírito que reside nas lagoas. Vinte e zinco Machimbombo
Ônibus
Terra sonâmbula, p. 10
Bandos
Designação popular de bandidos
armados.
Terra
sonâmbula, p. 11
263
Cipaio Policial negro no tempo colonial. Terra sonâmbula, p. 17 Monhé Indiano Terra sonâmbula, p. 28 Nganga Adivinhador, aquele que atira
ossículos divinatórios. Terra sonâmbula, p. 36
Rand Forma popular de nomear a África do Sul.
Terra sonâmbula. P. 66
Xiculunguelar Ulular feito pelas mulheres em momentos de alegria.
Terra sonâmbula, p. 88
Retirados das quatro obras de Mia Couto aqui analisadas, esses vocábulos
selecionados são recorrentes no discurso autoral. Muito embora pudessem ser escritos
em língua portuguesa, pois muitos deles não adquirem o significado mítico observado
na obra de Luís Cardoso, eles imprimem uma marca à moçambicanidade. Se a
FRELIMO estabelece a uniformidade pela língua portuguesa, Mia Couto propõe a
padronização do hibridismo.
Partindo do contexto moçambicano já consolidado culturalmente discutimos
questões até hoje repetidas pela crítica como fundamentais ao conhecimento da
literatura moçambicana. Posicionamento distinto, entretanto, é adotado com relação à
literatura timorense, uma vez que esta noção está em construção social e uma
consolidação cultural e identitária. Logo, o tratamento destinado à literatura timorense
centrou-se no levantamento de alguns pontos históricos indispensáveis para a
compreensão do imaginário cultural desta sociedade, bem como foram apontadas
questões possíveis de discussão acerca da sua literatura nascente. Sem esquecer que
Timor Leste é a primeira nação que emerge no terceiro milênio, mas que anterior a esta
data possui marcos culturais e literários que embasam sua luta pela libertação.
264
As literaturas das novas nações que emergem no cenário contemporâneo rompem
com os paradigmas estéticos instituídos, não porque ignorem essa realidade, mas
porque ela não é representativa do contexto híbrido com a qual estas narrativas se
identificam. Simbolizam assim a imagem de nação que convive com o novo, sem
esquecer que está arraigada ao saber ancestral aperfeiçoado no meio social.
Mia Couto apresenta uma imagem de nação mestiça e de homens que não têm
pátria porque já não se sentem identificados com ela. Suas personagens Kindzu e
Surendra Vala, de Terra sonâmbula, representam o velho e novo, sendo que o primeiro
está desenraizado, tentando apegar-se à tradição herdada, e o segundo não se sente
identificado com essa raiz, porque já nasce no momento de ruptura entre as realidades:
uma calcada no saber ancestral e a outra já adentrando o território da modernidade
conferida pelo saber adquirido. A leitura dos cadernos de Kindzu é feita à luz da
fogueira e em voz alta, o que faz com que esta narrativa recupere a cena original dos
narradores reunidos em torno de um eixo comum. Assim também como Muidinga é o
narrador que permanece na terra, Kindzu é aquele que sai em busca de aventuras.
O contato com o mundo extrasensorial é dado pela permanência do imaginário
do mundo clássico greco-latino, como se a visão de mundo vigente na sociedade antiga
permanecesse imutável no que respeita ao desenvolvimento e a representação da
cultura moçambicana. O universo mágico representado na obra de Mia Couto é
integrante da cosmovisão africana, e uma vez inserido no universo ficcional porta-se
como a busca da raiz da cultura nativa no que ela difere da cultura ocidental. Sendo
expressão do que é genuinamente moçambicano também deve ser compreendida
265
segundo a lógica desta sociedade. Por esse motivo acreditamos que um conceito dado ao
contexto da literatura ocidental como “realismo mágico” ou “maravilhoso” é efetuado
segundo a lógica eurocêntrica, porém não é condizente com a visão afrocêntrica de
mundo. A adaptação dos conceitos depende, portanto, do local que assumimos
enquanto enunciadores. Mia Couto, assim, obriga os cânones literários a redefinirem
seus conceitos se a literatura for entendida como expressão de uma realidade social.
Nos casos analisados o romance não se porta como o gênero que atende aos
interesses da burguesia (Lukács, [s.d]), mas é representativo de uma camada social
popular que passa à narrativa pela via da burguesia. Esta narrativa não apresenta uma
base de sustentação, mas uma alternativa a um sistema em formação com um projeto de
identidade calcado nos elementos oriundos daquele local de cultura.
As imagens de nação apresentadas na ficção moçambicana e timorense podem ser
assim definidas, são nações cuja identidade está em processo tanto quanto o discurso
que as representa e a realidade dos que a vivenciam; assimilam uma língua e a
modificam; convivem com a multiplicidade mesmo quando a norma expressa é a
unicidade da massificação comportamental, lingüística e político-social. Por isso, talvez,
estas narrativas também sejam uma forma de mostrar aos que dirigem a nação que ela
tem uma identidade própria, independente das diretrizes hierárquicas que também já
eram sentidas no tempo colonial. São nações que entram para a história das relações
internacionais representadas por uma língua que não dominam, porque precisa antes
ser aprendida.
266
A imagem de nação expressa na ficção moçambicana apresenta a formação de um
território híbrido que junta saberes ancestrais à língua da matriz colonial. Estabelece
uma topologia da devastação ocasionada pelas guerras, juntamente com um
posicionamento ideológico sobre as facções opostas; apresenta da união das duas
matrizes colonial e local uma proposta viável para a reestruturação identitária do país,
não esquecendo as bases formadoras da composição nacional. Discute, critica ou ao
menos reflete e traz a lume a questão do estranhamento ocasionado pela convivência
com um código de comunicação verbal que não é o materno – e a forma criativa com
que os falantes interagem com esta língua. Apresenta uma proposta de solução para
consolidar a identidade em permanente processo. Não deixa de apresentar no conjunto
de micro-histórias vividas e no elenco de mote temático representado uma proposta
política de reconstrução nacional calcada no aproveitamento, ou no respeito e
reconhecimento de uma matriz ancestral que domina o imaginário cultural dessa nação,
aliado ao saber adquirido pela convivência com a potência colonizadora que,
indiscutivelmente, marcou a cultura tanto quanto foi influenciada por ela.
Por fim, as imagens de nação expressas nas narrativas de Mia Couto e Luís
Cardoso revelam uma identidade em movimento, porque a própria nação (matriz da
identificação cultural) está em processo de reconstrução e esse processo, longe de estar
próximo à sua consolidação, está antes se experimentando por diversos caminhos que
podem ou não conduzir à democracia e à liberdade de expressão cultural. Por isso,
talvez, o discurso autoral no caso de Mia Couto também seja oscilante e algumas
convicções demonstradas pelo autor em entrevistas feitas no início de sua carreira sejam
267
hoje questionadas, desconstruídas e até mesmo descartadas pelo próprio autor por ser
também ele sujeito em processo.
Consideramos que essa identidade é formada para o exterior na medida em que
o projeto de reconstrução nacional adotado pela FRELIMO prevê a homogeneização
lingüística através do português e a padronização da estrutura fundiária através das
aldeias comunais. Esse fato (o hiato entre as relações de forças políticas urbanas com a
comunidade rural), aliás, em conjunto com a homogeneização cultural estipulada pela
FRELIMO acolhe a emergência social da RENAMO, que considerava a valorização da
cultura e estruturas sociais nativas imprescindíveis para o desenvolvimento da nova
nação.
Assim como no período colonial o ideal nacionalista moçambicano pressupunha
reagir verbalmente contra o regime de dominação imperial, o discurso, hoje, tende a
questionar caminhos e propor soluções à consolidação de uma identidade
moçambicana. Essa condição política e também discursiva é inserida na esteira dos
discursos pós-coloniais. Para a maioria esmagadora dos estudiosos sobre o pós-
colonialismo a independência política das colônias é o marco que dá início ao período
pós-colonial. O que, por um lado, leva-nos a considerar o Brasil uma nação pós-colonial
ainda que sua independência tenha acontecido no século XIX e em moldes bastante
distintos da conquista da independência das demais colônias integrantes da CPLP.
Para encerrar, salientamos que a teoria de Stuart Hall por enfatizar a vivência
diaspórica do indivíduo serviu-nos como apoio incondicional ao estudo e compreensão
das literaturas das jovens nações de língua portuguesa. Esse fato foi possível, sobretudo,
268
porque a arquitetura ficcional destes sujeitos está centrada em indivíduos híbridos na
composição da identidade, em situações incomuns vivenciadas apenas nos países que
estiveram sob dominação política e cultural ou, ainda, em países como Timor Leste, que
sofreram sucessivas invasões. Estas são situações atípicas no mundo ocidental
contemporâneo e, talvez por isso seja tão imprescindível aos escritores transmitirem essa
realidade para o universo da ficção que, nesse exercício, torna-se instrumento de
denúncia dos direitos humanos violados pela condição política, e das histórias de vida
interrompidas pela ação das guerras.
269
REFERÊNCIAS DE OBRAS FICCIONAIS ALMEIDA, Germano. O testamento do Sr. Nepomuceno da Silva Araújo. Lisboa: Caminho, 2001. APARÍCIO, João. À janela de Timor. Lisboa: Caminho, 1999. CARDOSO, Luís. et al. Antes da meia-noite: contos. Lisboa: Dom Quixote, 2003. _________. A última morte do Coronel Santiago. Lisboa: Dom Quixote, 2003. _________. Crônica de uma travessia. A época do Ai-Dik-Funam. Lisboa: Dom Quixote, 1997. _________. Olhos de coruja, olhos de gato bravo. Lisboa: Dom Quixote, 2001. _________. et al. Vésperas de natal: contos. Lisboa: Dom Quixote, 2002. CHIZIANE, Paulina. Niketche. Lisboa: Caminho, 2002. CINATTI, Ruy. Motivos artísticos timorenses e Sua integração. Lisboa: Museu de Etnologia, 1987 _________. Um cancioneiro para Timor. Lisboa: Presença, 1996. COUTO, Mia. A varanda do frangipani. Lisboa: Caminho, 1996. _________. Cada homem é uma raça. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. _________. Contos do nascer da terra. 4.ed. Lisboa: Caminho, 1997. _________. Cronicando. 3.ed. Lisboa: Caminho, 1991. _________. Estórias abensonhadas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. _________. Mar me quer. Lisboa: Caminho, 2000. _________. Na berma de nenhuma estrada e outros contos. Lisboa: Caminho, 2001. _________. O fio das missangas. Lisboa: Caminho, 2004. _________. O último vôo do flamingo. Lisboa: Círculo de Leitores, 2000.
270
_________. Pensatempos: textos de opinião. Lisboa: Caminho, 2005. _________. Raiz de orvalho e outros poemas. 3.ed. Lisboa: Caminho, 1999. _________. Terra sonâmbula. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. _________. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São Paulo: Cia das Letras, 2002. _________. Vinte e zinco. Lisboa: Caminho, 1999. _________. Vozes anotecidas. 5.ed. Lisboa: Caminho, 1987. DIAS, João. Godido e outros contos. Lisboa: CEI, 1952. GUSMÃO, Xanana. Mar Meu. Poemas e pinturas / My sea of Timor. Poems and paitings. Porto: Granito, 1998. _________. Povo sem voz. In: MARCOS, Artur. Timor Timorense com suas línguas, literaturas, lusofonia. Lisboa: Colibri, 1995. HONWANA, Luís Bernardo. Nós matamos o cão tinhoso. Porto: Afrontamento, 1988. KHOSA, Ungulani Ba Ka. Orgia dos loucos. Maputo: AEMO, 1990. JORGE, Lídia. O vale da paixão. Lisboa: Dom Quixote, 1998. _________. O vento assobiando nas gruas. Lisboa: Dom Quixote, 2002. MACHADO, José Leon. Braços quebrados. Braga: Edições Vercial, 2003. MELO, João de. Autópsia de um mar de ruínas. Lisboa: Dom Quixote, 1997. OLIVEIRA, Álamo. Já não gosto de chocolates. Lisboa: Edições Salamandra, 1999. PEPETELA. O cão e os caluandas. 5. ed. Lisboa: Dom Quixote, 1995. ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias: contos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. SAÚTE, Nelson. As mãos dos pretos. Antologia do conto moçambicano. Lisboa: Dom Quixote, 2001.
271
SAÚTE, Nelson. Nunca mais é sábado. Antologia da poesia moçambicana. Lisboa: Dom Quixote, 2004. SYLVAN, Fernando. A voz fagueira de Oan Timor. Lisboa: Colibri, 1993 ________. Cantolenda maubere. Lisboa: Fundação Austronésia Borja a Costa, 1988. ________. et al. Enterrem meu coração no Ramelau. Luanda: UEA, 1982. VIEIRA, Luandino. Luuanda. Lisboa: Edições 70, 1989. XITU, Uanhenga. Mestre tamoda e Kahito. São Paulo: Ática, 1984.
REFERÊNCIAS DE OBRAS TEÓRICAS
ABDALA JÚNIOR, Benjamin. Timor, nos horizontes da língua portuguesa. In: GARMES, Helder. Oriente, engenho e arte. São Paulo: Alameda, 2004. AFONSO, Maria Fernanda. O conto moçambicano: escritas pós-coloniais. Lisboa: Caminho, 2003. AHMAD, Aijaz. Linhagens do presente. São Paulo: Boitempo, 2002. ALMEIDA, António de. O Oriente de expressão portuguesa. Lisboa: Fundação Oriente, 1984. ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989. ARAÚJO, Abílio. Timor Leste: Os loricos voltaram a cantar. Das guerras independentistas à revolução do Povo Maubere. Lisboa: Edição do autor, 1977. ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Ars Poética, 1992. AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1998. BALAKRISHNAM, Gopal. (org.) Um mapa da questão nacional. Introd. Benedict Anderson. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000. BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Bertrand, 1989.
272
BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1993. BHABHA, Homi. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 1998. BRAUDEL, Fernand. História e ciências sociais. Lisboa: Presença, s/d.
BRUNEL, Pierre. Dicionário de mitos literários. Trad. Carlos Sussekind [et al]. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.
BURKE, Peter (org.). A escrita da história. São Paulo: UNESP, 1991. CAMPELO, Álvaro. Os refúgios da identidade. In: Gonçalves, António Custódio. Actas do Colóquio África Subsariana: multiculturalismo, poder e etnicidade. Porto: Universidade do Porto, 2001. CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Trad. Heloísa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa. 2.ed. São Paulo: Editora USP. 1998.
CAVACAS, Fernanda. Mia Couto: Acrediteísmos. Lisboa: Instituto Camões/Mar Além, 2001.
CHABAL, Patrick. Vozes moçambicanas: literatura e nacionalidade. Coleção Palavra Africana. Lisboa: Veja, 1994. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). Carlos Sussekind. (Coord.) Trand. Vera da Costa e Silva et al. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. DUARTE, Jorge Barros. Timor: ritos e mitos Ataúros. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1984. EAGLETON, Terry. Ideologia: uma introdução. Trad. Silvana Vieira/Luís Carlos Borges. São Paulo: UNESP/Boitempo, 1997. FERREIRA, Manuel. Literaturas africanas de expressão portuguesa. São Paulo: Ática, 1987.
273
FIGUEIREDO, Fidelino de. História literária de Portugal. Séculos XII-XX. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1960. FORGANES, Rosely. Queimado, queimado, mas agora nosso! Timor: das cinzas à liberdade. São Paulo: Labortexto Editorial, 2002. FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Veja/Passagem, 1992. FRYE, Peter. (Org). Moçambique: ensaios. Rio de Janeiro: UFRJ, 2001. GEFFRAY, Christian. Nem pai nem mãe. Crítica do parentesco: o caso macua. Lisboa: Editorial Caminho, 2000. GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1989. _________. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. Trad. Maria Betânia Amoroso, José Paulo Paes e Antônio da Silveira Mendonça. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. GUSDORF, Georges. Les écritures du moi. Paris: Odile Jacob, 1991. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro. 7 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. _________. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Trad. Adelaine La Guardia Resende et al. Liv Sovik (org.). Belo Horizonte: UFMG, 2003. HOBSBAWN, Eric. Nações e nacionalismos desde 1780: programa, mito e realidade. Trad. Maria Celia Paoli, Anna Maria Quirino. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. HULL, Geoffrey. Timor Leste: identidade, língua e política educacional. Lisboa: Instituto Camões, 2002. HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991. INSO, Jaime do. A última revolta em Timor. Lisboa: Edições Dinossauro, 2004. JOBIM, José Luís. (org). Literatura e Identidades. Rio de Janeiro: UERJ, 1999. JOLLIFFE, Jill. Timor terra sangrenta. Lisboa: O jornal, 1989.
274
KI-ZERBO, Joseph. História da África negra. 2. ed. V. II. Lisboa: Publicações Europa-América, 1990. LARANJEIRA, José Luís Pires. Literaturas africanas de língua portuguesa. Lisboa: Universidade Aberta de Lisboa, 1995. __________. Literatura calibanesca. Porto: Afrontamento, 1985. LEJEUNE, Phillipe. Le pacte autobiographique. Paris: Seuil, 1975. LEPECKI, Maria Lúcia. O menino mais seu cão. In: LEPECKI, Maria Lúcia. Uma questão de ouvido: ensaios de retórica e de interpretação literária. Lisboa: Dom Quixote, 2003. LÉVI-STRAUSS, Claude. Mito e significado. Lisboa: Edições 70, 1978. LIMA, Fernando. Timor: da guerra do Pacífico à desanexação. Macau: Instituto Internacional de Macau, 2002. LOURENÇO, Eduardo. O labirinto da saudade. Lisboa: Gradiva, 2001. LUKÁCS, Georg. Teoria do romance. Trad. Alfredo Margarido. Lisboa: Editorial Presença, s/d.
MARCOS, Artur. Timor Timorense com suas línguas, literaturas, lusofonia. Lisboa: Colibri, 1995.
MARGARIDO, Alfredo. A lusofonia e os lusófonos: novos mitos portugueses. Lisboa: Edições Universitárias Lusófonas, 2000.
MATEUS, Dalila Cabrita. A luta pela independência: a formação das elites fundadoras da FRELIMO, MPLA e PAIGC. Inquérito Editorial. 1999. MEDINA, Cremilda de Araújo. Sonha mamana África. São Paulo: Epopéia/Secretaria de Estado da Cultura, 1987. MENTON, Seymour. La nueva novela histórica de la América Latina, 1979-1992. México: Fondo de Cultura Económica, 1993. MOREIRA, Maria Eunice. (org). Histórias da literatura: teorias, temas e autores. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2003.
275
PADILHA, Laura. Novos pactos, outras ficções: ensaios sobre literaturas afro-luso-brasileiras. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. PAZ, Octavio. Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 1990. PEREIRA, Edgar Nasi. Mitos, feitiços e gente de Moçambique. 2. ed. Lisboa: Editorial Caminho, 1998. _________. Tabus e vivências em Moçambique: narrativas e contos. Lisboa: Editorial Caminho, 2000. PIGLIA, Ricardo. O laboratório do escritor. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Iluminuras, 1994. REIS, Carlos. Dicionário de narratologia. Coimbra: Almedina, 1998. _________. O conhecimento da literatura. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. REMÉDIOS, Maria Luiza Ritzel. O romance português contemporâneo. Santa Maria: UFSM, 1986. RODRIGUES, Antonio Edmilson M. Tempos modernos: ensaios de história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. ROLAND, Ana Maria Lopes. Fronteiras da palavra, fronteiras da história: contribuição à crítica da cultura de ensaísmo latino-americano através da leitura de Euclides da Cunha e Otávio Paz. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1997. ROUANET, Maria Helena. (org.) Nacionalidade em questão. Trad. Maria Helena Rouanet, Glória Maria e Mello Carvalho, Beatriz de Moraes Vieira. Rio de Janeiro: UERJ, 1997. SANTOS, Boaventura Souza. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 5. ed. São Paulo: Cortez, 1999. SELLIER, Jean. Atlas dos povos de África. Lisboa: Campo da Comunicação, 2004. SERRA, Carlos. Novos combates pela mentalidade sociológica. Maputo: Livraria Universitária da Universidade Eduardo Mondlane, 1997. SILVA, Tomaz Tadeu. (org.) Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.
276
SMITH, Anthony D. A identidade nacional. Trad. Cláudia Brito. Lisboa: Gradiva, 1997 (1991). SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. SOUZA, Octávio. Fantasia de Brasil. As identificações na busca da identidade nacional. São Paulo: Escuta, 1994. TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1983. TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 1979. __________. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 1992. VEYNE, Paul Marie. Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história. Trad. Alda Baltar e Maria Auxiliadora Kneipp. 4. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. WHITE, Hayden. Meta-história. A imaginação histórica do século XIX. São Paulo: EDUSP, 1992.
REFERÊNCIAS EXTRAÍDAS DE PERIÓDICOS AGUALUSA, José Eduardo. A autenticidade está a nascer agora. Público, Lisboa, 17 jul. 1990. Entrevista a Mia Couto, p. 8-9. __________. Mia Couto lança novo romance em Lisboa, Público, Lisboa, 15 jun. 1996. p. 2-3. ANDERSON, Benedict. Imaginar Timor Leste. Tradução de Osvaldo Manuel Silvestre, Lisboa, Reproduzido de Ciberkiosk e de Arena Magazine, abr.-maio. 1993. http://www.udc.es/dep/lx/cac/sopirrait>. Disponivel em: 05 dez. 2003.
APA, Lívia. Mulato não de raça, mas de existência. Caravela, Napoli: Instituto Universitário Oriental: 1998. Studi e ricerche di lingua e letteratura di espressione portoghese, p. 55-56.
277
BASTOS, Jorge Pestana. PAVÃO, Luís Felipe. Um esboço sobre Timor. O século, Lisboa, 29 jun. 1974. DUNN, Christopher. Desvendando identidades nacionais: os discursos de raça e gênero em Pocahontas e Iracema. Letras de Hoje, Porto Alegre, jun. 1997. EDIPUCRS, v.32, n. 2, p. 71-85. Center for Portuguese Studies and Culture. Reevaluating Mozambique, Massachusetts, University of Massachusetts Dartmouth. 10 Spring, 2003.
GONÇALVES, Gláucia Renate. Pós-Colonialismo, Império e Globalização: dois pratos da balança. Aletria: Revista de Estudos Literários, No 9, Lisboa, 2000. p. 135-148. LARANJEIRA, José Luís Pires. Mia Couto: sonhador de lembranças, inventor de verdades. Letras & Letras, Porto Alegre, 26 nov. 1992. p. 43-45. LEITE, Ana Mafalda. As parábolas de Mia Couto. JL Letras, Lisboa, 28 jul. 2000. Outras Escritas. p. 21. LOURENÇO, Eduardo. Da língua como pátria. JL Comunidade, Lisboa, 22 jun. 1994. NEVES, António Loja. É preciso aceitar uma certa morte e renascer um bocado. África, Angola, 18 jul. 1990. p. 21-22. __________. Esperantes. Entrevista a Mia Couto. Expresso, Lisboa, 12 dez. 1992. p. 67-69. __________. Mia lança novo romance em Lisboa: temos de nos autorizar a pensar em poesia. Público, Lisboa, 15 jun. 1996. p. 2-3. __________. Mia Couto, o agitador. Expresso, Lisboa, 15 set. 1990. Caderno Cultura. p. 67. __________. Mia Couto: estar desiludido não é desistir. Expresso, Lisboa, 17 ago. 1996. p. 64-69. __________. Não basta estar vivo. Viver é mais. Jornal África, Angola, 27 jul. 1988. p. 21-22. GUERREIRO, António. Uma linguagem ilimitada. Expresso, Lisboa, 17 ago. 1998. p. 68. RIBEIRO, Anabela Mata. DN Entrevista Mia Couto. DNA, Lisboa, 10 out. 1993. p. 10-15.
278
ROSÁRIO, Lourenço do. Moçambique: uma literatura em busca dos seus autores. Público, Lisboa, 17 jul. 1990. p. 7-8. SEABRA, Clara. Ainda não escrevi o meu livro. Expresso, Lisboa, 26 jun. 1997. p. 32-35. SEIXO, Maria Alzira. A transversalidade das marginalizações. JL Letras. Lisboa, 25 jan. 1998. p. 24. ________. Luís Cardoso: a ficção pós-colonial. JL Letras. Lisboa, 02 fev. 2004. p. 22. ________. Um récit de Timor: Luís Cardoso et la traversée des cultures. Association Internationale de Littérature Comparée. Paris: L’Harmattan, 2002. p. 295-302. SILVA, Rodrigues da. Mia Couto: um escritor abensonhado. JL Letras, Lisboa, 17 ago. 1994. p. 14-16. ___________. Um escritor à varanda da história. JL Letras, Lisboa, 19 jun. 1996. p. 12-13. SILVA, Lurdes Marques. Descolonização, nacionalismo e separatismo no Sudeste Asiático: os casos da Indonésia e Timor Leste. Lusotopie, Lisboa, 2000. p. 359-374.
REFERÊNCIAS DE TESES E DISSERTAÇÕES
ANTUNES, Ricardo Jorge da Silva Ferreira. A língua portuguesa em Timor Lorosa’e: contribuctos para sua didática. Aveiro: Universidade de Aveiro, 2003. PEREIRA, Claudiany da Costa. A formação da consciência nacional: Iracema e Breviário das terras do Brasil. [Dissertação de Mestrado]. Porto Alegre: PUCRS, 2000. VILELA, Letícia. Rui Cinatti: o engenheiro das flores. [Dissertação de Mestrado]. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004.
Livros Grátis( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download: Baixar livros de AdministraçãoBaixar livros de AgronomiaBaixar livros de ArquiteturaBaixar livros de ArtesBaixar livros de AstronomiaBaixar livros de Biologia GeralBaixar livros de Ciência da ComputaçãoBaixar livros de Ciência da InformaçãoBaixar livros de Ciência PolíticaBaixar livros de Ciências da SaúdeBaixar livros de ComunicaçãoBaixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNEBaixar livros de Defesa civilBaixar livros de DireitoBaixar livros de Direitos humanosBaixar livros de EconomiaBaixar livros de Economia DomésticaBaixar livros de EducaçãoBaixar livros de Educação - TrânsitoBaixar livros de Educação FísicaBaixar livros de Engenharia AeroespacialBaixar livros de FarmáciaBaixar livros de FilosofiaBaixar livros de FísicaBaixar livros de GeociênciasBaixar livros de GeografiaBaixar livros de HistóriaBaixar livros de Línguas
Baixar livros de LiteraturaBaixar livros de Literatura de CordelBaixar livros de Literatura InfantilBaixar livros de MatemáticaBaixar livros de MedicinaBaixar livros de Medicina VeterináriaBaixar livros de Meio AmbienteBaixar livros de MeteorologiaBaixar Monografias e TCCBaixar livros MultidisciplinarBaixar livros de MúsicaBaixar livros de PsicologiaBaixar livros de QuímicaBaixar livros de Saúde ColetivaBaixar livros de Serviço SocialBaixar livros de SociologiaBaixar livros de TeologiaBaixar livros de TrabalhoBaixar livros de Turismo