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PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL
LUCAS PEREIRA CASSALES
A REPRESENTAÇÃO DO MAL-ESTAR LÍQUIDO NO CINEMA DE MICHAEL HANEKE
Porto Alegre
2015
LUCAS PEREIRA CASSALES
A REPRESENTAÇÃO DO MAL-ESTAR LÍQUIDO NO CINEMA DE MICHAEL HANEKE
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção de grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Orientador: Prof. Dr. Carlos Gerbase
Porto Alegre 2015
Obrigado aos meus pais, por me permitirem dar os primeiros passos até chegar
neste.
À Laura, por ter me suportado, na medida do possível, durante esse ciclone.
Aos sócios e amigos, por entenderem que nem sempre poderíamos estar.
Ao meu orientador, Carlos Gerbase, pelo companheirismo.
Ao Emiliano, ao Vítor, aos companheiros de Cinesofia, com os quais aprendi e
que sempre estiveram dispostos.
Ao cinema, por ter me mostrado um caminho; agora e sempre.
RESUMO Esta dissertação analisa a obra do diretor austríaco Michael Haneke, posicionando-a como uma representação cinematográfica do mal-estar líquido. Para isso, em um primeiro momento, faz um levantamento histórico e social a respeito dos elementos que compõem o mal-estar líquido. Posteriormente, estuda seus conceitos formadores, através do trabalho de Jean Baudrillard e, principalmente, da teoria líquida de Zygmunt Bauman, caracterizando o mal-estar líquido a partir dessas teorias. Em seguida, traz a figura de Haneke como autor, para possibilitar a utilização de sua cinematografia em termos de representação filmográfica do mal-estar líquido. Como um modelo metodológico de análise, se baseia em Aumont e Dubois para criar um método híbrido de análise mais ensaística e fluida: a análise narrativa. Apoiada nesta progressão, parte para a análise dos dois primeiros longas-metragens de Haneke lançados comercialmente em salas de exibição, sendo eles O sétimo continente (1989) e O vídeo de Benny (1992), com o intuito de demonstrar suas hipóteses Palavras-chave: Cinema. Mal-estar. Haneke. Bauman.
ABSTRACT
This dissertation analises the work of the austrian director Michael Haneke, placing it as a cinematographic representation of the liquid discomfort. To do so, first, it makes a historical and social survey about the elements that compose the liquid discomfort. Then, it studies is forming concepts, through the work of Jean Braudillard and, mainly, through the liquid theory of Zygmunt Bauman, characterizing the liquid discomfort from those theories. From that point, it brings Haneke as an author, to allow the use of his cinematography in terms of filmic representation of the liquid discomfort. As a methodological model of analysis, it bases in Aumont and Dubois to create an hybrid method of a more fluid and essay-like way: the narrative analysis. Supported in this progression, it analyses Haneke's first two feature films comercially distributed in screening rooms, The seventh continent (1989), and Benny’s video (1992), with the intent of showing its hipothesis. Keywords: Cinema. Liquid discomfort. Bauman. Haneke.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Página Quadro 01 - Quadro temático da filmografia de Haneke……………………………….…83 Imagem 01 - O sétimo continente - Plano sequência no lava-jato................................ 89 Imagem 02 - O sétimo continente – Eva na escola..........………………………………...91 Imagem 03 - O sétimo continente – Mãos no consultório………………………………...92 Imagem 04 - O sétimo continente – Olhos do paciente………………...………………...92 Imagem 05 - O sétimo continente – Fila no supermercado.……………………………...94 Imagem 06 - O sétimo continente – Anna e Eva...………………………………………...98 Imagem 07 - O sétimo continente – Cartaz da agência de turismo…………………….101 Imagem 08 - O sétimo continente – Família no lava-rápido........……………………….103 Imagem 09 - O sétimo continente – Quebrando armário............…………...……….….106 Imagem 10 - O sétimo continente – Quebrando móveis.........………...…………….….107 Imagem 11 - O sétimo continente – Peixes sem vida........................…...………….….108 Imagem 12 - O sétimo continente – Dinheiro na privada............…………...……….….109 Imagem 13 - O sétimo continente – Televisão pós-caos............……………...…….….110 Imagem 14 - O sétimo continente – Ruído........…………………………………...….….111 Imagem 15 - O vídeo de Benny – A morte do porco........……………………………….113 Imagem 16 - O vídeo de Benny – Benny e o coquetel.....……………………………….114 Imagem 17 - O vídeo de Benny – Comida rápida.........………………………………….115 Imagem 18 - O vídeo de Benny – Transações no coral.......…………………………….116 Imagem 19 - O vídeo de Benny – O vingador tóxico.................................…………….117 Imagem 20 - O vídeo de Benny – Janela...........………………………………………….118 Imagem 21 - O vídeo de Benny – O vídeo.....………...........…………………………….121 Imagem 22 - O vídeo de Benny – Ao telefone..............………………………………….124 Imagem 23 - O vídeo de Benny – Transformação.……………………………………….125 Imagem 24 - O vídeo de Benny – Figura paterna.....…………………………………….126 Imagem 25 - O vídeo de Benny – Insônia no Egito...………...…...............…………….127 Imagem 26 - O vídeo de Benny – A camiseta de Benny..……………………………….128 Imagem 27 - O vídeo de Benny – Conversa paterna…………………………………….129 Imagem 28 - O vídeo de Benny – O vídeo em Benny..………………………………….132 Imagem 29 - Caché………………………………………………………………………….135 Imagem 30 - Violência gratuita……………………………………………………………..136
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO………………………………………………………………………………7 2 BAUMAN E O MAL-ESTAR LÍQUIDO...…………………………………………………12 2.1 BAUMAN: A ESCALADA DA LIQUIDEZ………………………………………....…….14
2.1.1 A ética e a moral pós-moderna: entre Bauman e Lipovetsky…………....……18
2.1.2 Caminhos líquidos: da pós-modernidade à modernidade líquida……....…...23
2.2 A MODERNIDADE LÍQUIDA E SEUS FATORES ANGUSTIANTES………....…….30
2.2.1 A sociedade de consumo: ascensão do modelo capitalista……………….….31
2.2.2 A crença externa………………………………………………………………....…....38
2.2.3 A onipresença da imagem……………………………………………………....…...43
2.2.4 Estética na modernidade líquida………………………………....………………...48
2.3 O MAL-ESTAR LÍQUIDO………………………………………………………………...52
2.3.1 A resignificação do paradigma global: liberdades e seguranças…………....55
2.3.2 A comunidade líquida………………………………………………………………...58
2.3.3 Impulsos e afetos……………………………………………………………………...60 2.3.4 A imortalidade efêmera……………………………………………………………....64
2.3.5 Breve passeio pelo imaginário……………………………………………………...67
3 O MAL-ESTAR LÍQUIDO EM HANEKE……………...……………………………....….70
3.1 HANEKE: A ESCOLHA PELO SOMBRIO……………………………………………...71
3.2 ESCOLHAS METODOLÓGICAS………………………...………………………....…..77
3.3 O SÉTIMO CONTINENTE…………………………………………………………....….87
3.4 O VÍDEO DE BENNY……………………………………………………………………112
3.5 ENLACES FILMOGRÁFICOS………………………………………………………….132
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS……………………………………………………………...138
REFERÊNCIAS………………………………………………………………………………144
FILMOGRAFIA DA PESQUISA…………………………………………………………....149
ANEXO A: DVD COM OS FILMES O SÉTIMO CONTINENTE E O VÍDEO DE BENNY
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1 INTRODUÇÃO A arte ocupa um papel de representação do estado de uma sociedade em
qualquer período histórico. Indo muito além de qualquer intensidade artística que possa
ser julgada subjetivamente, a arte - pintura, música, e mais recentemente, o cinema -
mesmo sem pretensões artísticas, acaba por se tornar um relato do mundo ao qual
pertence. É parte da expressão de uma época.
Quando nos propomos a esmiuçar de maneira mais objetiva os contornos
subjetivos e sensoriais que emanam da arte, podemos transformá-los em uma análise
de seu próprio tempo. Para este trabalho, utilizamos a imensa capacidade sensorial do
cinema para tentar entender um pouco sobre a era na qual vivemos. Badiou (2002), já
disse que “o cinema é uma arte do passado perpétuo, no sentido de que o passado é
instituído com a passagem. O cinema é a visitação: do que eu teria visto ou ouvido, a
ideia permanece enquanto passa” (p. 103), que vem de acordo com nossa ideia original
para a utilização do cinema. É a possibilidade inventada pelas operações próprias de
um artista: organizar o afloramento interno ao visível da passagem da ideia.
Vivemos em uma sociedade cada vez mais conectada, mas principalmente
através das mídias que propriamente por uma constante interação física. A virtualidade
se aproxima do seu apogeu e estamos no meio do furacão causado por avanços cada
vez mais bruscos e mais velozes. Os pilares que no século passado serviam de
sustentação para a sociedade cada vez mais são postos abaixo e não há tempo para
hábil para outros serem construídos. Tudo muda o tempo todo. Como os indivíduos se
comportam frente a essa avalanche? É possível manter a mente tranquila, cercados de
angústias e inseguranças nas esferas sociais, profissionais e pessoais? Baudrillard
(2006) denominou esse momento como a “orgia”, um momento de profundo êxtase
para todos os componentes sociais, que ele caracteriza de tal forma:
[...] é o momento explosivo da modernidade, da liberação em todos os domínios. Liberação política, liberação sexual, liberação das forças produtivas, liberação das forças destrutivas, liberação da mulher, da criança, da pulsação inconsciente, da arte. Percorremos todos os caminhos da produção da superprodução virtual de objetos, de signos, de mensagens, de ideologias, de prazeres (BAUDRILLARD, 2006, p. 9).
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Trataremos de estudar a obra cinematográfica do diretor austríaco Michael
Haneke, com o intuito de analisar a possibilidade de ela servir de representação
filmográfica para o mal-estar líquido, conceito que aprofundaremos ao longo deste
estudo.
O mal-estar líquido provém de dois conceitos: o mal-estar pós-moderno,
estudado de diversas formas por muitos autores: Freud, em um momento anterior a
alguns avanços tecnológicos que exacerbaram esse sentimento; Baudrillard, que tratou
principalmente da relação com a tecnologia e com a explosão simbólica; e também
Bauman, que além de estudar o mal-estar, também foi o responsável por criar o nosso
segundo conceito: a teoria líquida. A teoria líquida é um avanço dos estudos do
sociológo polonês, que usaremos de guia em um primeiro momento para podermos
analisar esse mal-estar contemporâneo. Dennis Smith, em sua introdução à obra de
Bauman, o chama de “profeta da pós-modernidade”; Anthony Giddens, teórico inglês,
considera Bauman um dos principais analistas da “pós-modernidade”; a respeitada
revista inglesa Theory, culture & society (1998), publicou uma edição inteiramente
dedicada a textos tratando das ideias do polonês, contando inclusive com um artigo do
próprio Baudrillard.
Zygmunt Bauman é razoavelmente novo em sua inserção como sociológo,
sendo mais conhecido internacionalmente a partir da década de 1990, após iniciar sua
série líquida, ou da “fluidez social”. Como pesquisador e professor nas universidades
de Varsóvia (Polônia) e Leeds (Inglaterra), foi autor de inúmeros livros sobre temas que
variavam entre o movimento trabalhista britânico até os escritos de Marx e Lênin. Após
se aposentar da atividade docente, se focou no estudo da pós-modernidade, o que
provocou o surgimento de novos diagnósticos da contemporaneidade, como a
modernidade reflexiva de Giddens e Beck ou a hipermodernidade de Gilles Lipovetsky.
Esse aquecimento na questão pós-moderna provocou Bauman a iniciar, a partir daí,
sua sociologia da modernidade líquida, que será a base para este estudo. Ele define a
passagem da fase “sólida” da modernidade para a “líquida” como “um momento em
que as organizações sociais (estruturas que limitam as escolhas individuais,
instituições que asseguram a repetição de rotinas e padrões de comportamento) não
podem mais manter sua forma por muito tempo” (2007, p. 7).
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Nossa intenção aqui é também apontar algumas discordâncias de métodos
utilizados pelo polonês, visto que aprofundaremos no capítulo 2 a relação de Bauman
com sua sociologia líquida. Também realizaremos nesse capítulo um apanhado
histórico e social de elementos que consideramos vitais para um melhor entendimento
a respeito do mal-estar líquido. São fatores que denominamos “angustiantes”,
responsáveis por causar a constante ansiedade e insegurança na sociedade ao serem
reinseridos sob o viés líquido-moderno.
Finalizando o capítulo 2, entraremos no mal-estar líquido em si, tratando de suas
resignificações dos paradigmas globais e de como sua presença se concretiza na
prática. Também achamos pertinente abordar breves questões a respeito do
imaginário, visto que tratar do mal-estar líquido é tratar também de uma zona etérea e
pouco concreta, cujo o âmago se encontra em áreas inerentes ao pensamento e a
consciência. Para isso, tratamos de abordar Durand, Freud e Jung, com a preocupação
de não tocar em temas psicanaliticamente contraditórios, visto que Jung seguiu seu
mestre Freud em muitas questões, mas se opôs a ele em muitas outras.
Abordaremos, sempre que possível, a obra de Haneke, já relacionando-a com
os fatores do mal-estar líquido que forem se desenvolvendo. Porém, é no capítulo 3
que nos debruçaremos demoradamente sobre a obra cinematográfica do diretor
austríaco, elaborando primeiramente um breve histórico sobre sua trajetória e também
trazendo-o como autor, conceito que será importante para tornar sua obra homogênea
e passível de caracterização como um todo; além de nos possibiltar trazê-lo como
pensador de cinema e de aspectos de seus próprios filmes, baseados em nossas
escolhas metodológicas, que explicitaremos também dentro do terceiro capítulo, e que
parte de uma junção de inúmeras técnicas de análise, passando prioritariamente por
Aumont e Dubois. A “análise narrativa” nos proporcionará um metódo de análise mais
fluido e ensaístico, sem perder o foco do objeto, que será estudado com base,
principalmente, nas escolhas de roteiro e direção assumidas por Haneke em seus dois
primeiros longas-metragens: O sétimo continente (1989) e O vídeo de Benny (1992).
Explicitaremos os motivos para a escolha desses dois longas-metragens e também a
potência de ambos poderem apontar os caminhos que o diretor austríaco escolheria
durante o resto de seu percurso cinematográfico. Achamos condizente também, ao
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final do capítulo 3, realizar um fechamento das análises, relacionado-as também com
outros filmes da cinematografia de Haneke que não abordamos tão profundamente,
com o intuito de retomar a veracidade da potência dos filmes escolhidos.
Para o capítulo 4, deixamos nossas considerações finais a respeito deste
estudo, que esperamos que tenha chegado suficientemente claro até lá. A pertinência
de nosso trabalho parte de uma sensação que parece sempre haver em todas as
sociedades historicamente conhecidas: a de que algo não está bem, e isso se prova
ser uma característica própria do ser humano, da eterna insatisfação com o que lhe é
oferecido. Porém, também temos a noção de que em nenhum momento na história
esse sentimento foi tão confuso e tão fugidio. Essa sensação exacerbada,
provavelmente, se deve, em grande parte, às constantes e cada vez mais intensas
revoluções tecnológicas e sociais que acometem a modernidade líquida. Esse
movimento acelerado é o responsável por deixar os indivíduos sem chão e balançar
todas as suas crenças. Por estarmos inseridos neste contexto, tentaremos fazer uma
abordagem distante quando for preciso, mas também próxima quando sentirmos
necessidade, pois é impossível se manter completamente alheio a todos os fatores que
nos cercam.
É importante salientar que, por trazermos um diretor que aborde questões por
um viés estritamente europeu, e por trazer aspectos históricos que possuem sua
origem vinda dos movimentos colonizadores da Europa e, posteriormente, dos Estados
Unidos, aceitamos que haja uma matriz eurocentrista que norteia o trabalho. Porém,
nenhum dos aspectos que estudamos deixa de ter relações intrínsecas com a América
Latina e o Brasil, visto que todos estamos amplamente conectados e a cadeia global,
tanto política, quanto econômico-financeira é diretamente afetada em toda sua
extensão. Culturalmente também estamos muito mais próximos do resto do mundo do
que jamais estivemos. Mesmo assim, sempre que possível, efetuaremos relações
diretas com a realidade brasileira, traçando um paralelo dessa insegurança para nosso
país. O mal-estar líquido não conhece fronteiras.
Bauman (1998), nos ajuda a elucidar inicialmente um pouco dos fatores que
compõem o mal-estar líquido e de suas consequências em mundo globalizado e ditado
por um capitalismo liberal. Como um processo introdutório, ele relata:
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No mundo pós-moderno de estilos e padrões de vida livremente concorrentes, há ainda um severo teste de pureza que se requer seja tranposto por todo aquele que solicite ser ali admitido: tem de mostrar-se capaz de ser seduzido pela infinita possibilidade e constante renovação promovida pelo mercado consumidor, de se regozijar com a sorte de vestir e despir identidades, de passar a vida na caça interminável de cada vez mais intensas sensações e cada vez mais inebriante experiência. Nem todos podem passar nessa prova. Aqueles que não podem são a ‘sujeira’ da pureza pós-moderna (BAUMAN, 1998, p. 23).
Posto isso, nos cabe partir para enfrentar nossas maiores questões no decorrer
desta dissertação: é possível transpôr filmes tão sensoriais de maneira objetiva a ponto
de formarem uma representação de uma teoria também igualmente tão etérea que é o
mal-estar líquido? E é cabível nos apropriarmos de uma cinematografia inteira de um
diretor, mesmo com análises mais aprofundadas de apenas dois longas-metragens,
para nominá-lo como um autor representativo no aspecto filmográfico em relação a
nosso objeto de estudo? Acreditamos, a princípio, que sim, e assim tentaremos evoluir
o estudo aqui iniciado.
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2 BAUMAN E O MAL-ESTAR LÍQUIDO
Zygmunt Bauman tem sua origem em uma família judia, tendo nascido em 19 de
novembro de 1952, em Poznan, pequena cidade localizada no oeste da Polônia. Após
uma infância pobre e marcada por manifestações antissemitas, a família de Bauman é
obrigada a fugir para a União Soviética, após a invasão nazista e o consequente
começo da Segunda Guerra Mundial, em 1939. Após completar 18 anos, ele acaba
entrando para o exército polonês para, ao lado das tropas russas, lutar contra o
exército nazista, ganhando destaque dentro do próprio exército e do partido comunista.
Munido de algumas utopias, Bauman acreditava que sob a égide do Comunismo não
haveria espaço para manifestações antissemitas, influenciado pelas duras provações
recebidas durante sua infância. Foi nessa época que ele começou a se interessar pelo
socialismo e pelo marxismo, para ele, representantes teóricos dessa utopia.
Dentro do Partido Comunista Polonês, Bauman teve algumas frustrações,
ocasionadas pela estrutura política que emperrava algumas medidas, assim como
alavancava outras. Lidando com essas burocracias próprias de qualquer construção
política, ele seguiu no partido, imaginando que no fim seria recompensado. Porém,
quando o partido descobriu que seu pai havia feito consultas para emigrar para Israel,
Bauman foi expulso, aos 28 anos. Foi durante esse período que Bauman iniciou sua
carreira acadêmica, ingressando na Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da
Universidade de Varsóvia, onde seria professor e, uma década mais tarde, assumiria a
cátedra de Sociologia Geral e a direção do então Departamento de Sociologia. Após
uma “campanha antissemita”, como ele mesmo denominou, promovida pelas
autoridades polonesas, foi afastado do cargo e expulso da universidade, sendo
obrigado a se exilar1. Três anos após o ocorrido, transitou por entre universidades de
1 O fato ocorreu devido à recusa de Bauman e de outros dois professores, Leszek Kolakowski e Wlodzimierz Brus, em censurar um manifesto estudantil contrário ao PC polonês. Bauman então foi acusado de corromper a juventude e fomentar ondas de revoltas estudantis contra as autoridades polonesas. Para Jacobsen & Poder (2008), como também para Bauman (2011), as acusações que resultaram em seu afastamento do cargo demonstravam sinais claros de antissemitismo.
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países como Israel e Austrália, se consolidando na Universidade de Leeds, na
Inglaterra, na qual fixou-se como professor e pesquisador até se aposentar, no início da
década de noventa.
A derrocada da União Soviética enterrou alguns alicerces utópicos que Bauman
havia construído, a respeito de uma estrutura política que pudesse apontar caminhos
seguros para que as pessoas pudessem exercer sua cidadania de uma forma
equalitária e serena. Como sociólogo, ele começa a entender que segurança e
liberdade se encontram em uma gangorra que é muito complexa de atingir o equilíbrio.
Ao mesmo tempo em que Bauman atinge uma nova visão do mundo, sem o alicerce de
uma utopia comunista para lhe direcionar, ele também atinge uma outra percepção a
respeito do medo, de como agir seguindo suas próprias emanações de vontades e
desejos. Lidar com o indivíduo como um ser mais complexo e perceber que “as
solicitações de nossa moral interna fizeram surgir profundas questões a respeito de
como nós deveríamos nos comportar, o que deveríamos querer, e quem deveríamos
tentar ser” (Smith, 1999, p. 149).
Com esse fator mais pessoal, somado ao que Bauman identificava que estava
ocorrendo à sua volta, ele identificou uma mudança de rumo por parte da sociedade. O
capitalismo se acoplava aos fundamentos sociais de tal forma que pareciam
indissolúveis. Parecia já não haver um projeto que pudesse resistir por uma vida inteira,
e o consumo era um padrão que ditava o ritmo da vivência social. Era uma substituição
paulatina de papéis, saía o Estado e entrava o consumo, assumindo um papel
norteador da sociedade. Porém, enquanto o Estado se colocava como um protetor de
todos os seus como iguais, ou, ao menos, buscava alcançar esse ideal; o consumo já
não pretendia abraçar a todos da mesma forma: dependia de um fator fundamental
para poder abarcar seus súditos, dependia exclusivamente de poder aquisitivo, que
possibilitasse aos indivíduos acompanhar a cadência ditada pela nova ordem. Aos que
não conseguissem se submeter a essa batida, restaria apenas a exclusão gradual da
sociedade de consumo.
Bauman, então, volta sua atenção para a pesquisa acerca do capitalismo liberal
e a sociedade de consumo, e, principalmente, como a sua solidificação acarreta
consequências não só nas camadas sociais, mas no conceito de identidade que se
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agrega aos novos papéis do indivíduo, desmanchando conceitos sólidos que haviam
sido construídos durante a modernidade. É o início do derretimento sólido, que acaba
por dar luz ao conceito de modernidade líquida, que Bauman retira da célebre máxima
de Karl Marx, em seu Manifesto Comunista (2011).
Tudo o que é sólido desmancha no ar, tudo que é sagrado é profanado, e os homens finalmente são levados a enfrentar […] as verdadeiras condições de suas vidas e suas relações com seus companheiros humanos (MARX, 2011, p. 31).
Essa resignificação estrutural do sólido para o líquido é basicamente uma
passagem de uma visão mais plural de mundo para uma visão cada vez mais singular,
individual. O indivíduo está livre para assumir a identidade que bem entender, vestir a
máscara que mais lhe agradar e enfrentar as consequências disso. Não há mais uma
estrutura que lhe diga como agir ou para onde ir. As possibilidades estão abertas,
aparentemente. Porém, como a gangorra da liberdade e da segurança dificilmente está
em equilíbrio, outros fatores pesam para interferir na liberdade individual. A
possibilidade de ser livre equivale à possibilidade de poder consumir livremente, a
sociedade de consumo dita as regras e cobra um preço. É preciso estar sempre
preparado para arcar financeiramente com este preço, ou corre-se o risco de ser
excluído da comunidade. É primordial ter capacidade de consumo, e Bauman consolida
sua visão a respeito dessa nova época muito em cima das consequências maléficas
geradas por esse capitalismo, que é o fator chave para entender a nova modernidade
líquida.
2.1 BAUMAN: A ESCALADA DA LIQUIDEZ
Como ressaltamos anteriormente, é importante realizarmos um breve
aprofundamento a respeito de aspectos que permeiam a sociologia da modernidade
líquida, visto que Bauman possui uma maneira muito própria de lidar com sua
bibliografia “líquida”. Por mais que possua uma forma análoga à divulgação da ciência,
sua sociologia da modernidade líquida não trata apenas de simples divulgação ou
reprodução de saber científico para leigos. É uma forma de análise sociológica que,
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segundo o próprio Bauman, possui perfil mais ajustado ao que ele denomina de “vida
líquida”, uma vida levada nos limites da decomposição dos laços sociais, sendo a vida
aplicada ao conceito da “modernidade líquida”.
Como é bastante saliente na obra do polonês, seus escritos datados a partir de
sua aposentadoria, no início da década de noventa, são suas obras mais populares.
Isso se deve muito ao estilo de escrita assumido por Bauman, que foi deixando de lado
uma escrita considerada mais acadêmica e assumindo um texto mais fluido e
acessível, incluindo inúmeras metáforas e apropriações de elementos da cultura de
massa. Essa inserção de imagens da vida cotidiana como instrumentos para elaborar
sua estratégia textual acaba inclinando os indivíduos leigos a desfrutar dos bens
produzidos pelo campo sociológico, apesar de estarem distanciados das competências
específicas dessa disciplina.
A obra de Bauman apresenta uma força política bastante contundente, sendo
mais próximos de uma escrita ensaística e priorizando temas de grande repercussão
dentro da esfera pública. Sua sociologia da modernidade líquida pode ser melhor
entendida quando efetuamos uma reaproximação com sua obra anterior. Nos anos
noventa, pós-atividade docente, Bauman se debruçou sobre os temas recorrentes à
“pós-modernidade”, e foi a partir desse trabalho que seu manancial de conteúdos foi
desafogar em seus “líquidos”.
Em seu Modernidade líquida (2001), o autor se utiliza de um anúncio em
classificado de empregos para realizar sua introdução a respeito de uma análise sobre
a função dos valores dentro do novo capitalismo; assim como em Vida líquida (2007a),
o polonês se utiliza de um filme do grupo inglês de comediantes Monty Python para
ensejar um pensamento sobre o significado da individualidade na modernidade. É esta
forma de aproximar a cognição do homem comum aos enunciados teóricos das
ciências sociais que caracteriza a sociologia da modernidade líquida. Todos os especialistas lidam com problemas práticos e todo conhecimento especializado se dedica à sua solução, e a sociologia é um ramo do conhecimento especializado cujo problema prático a resolver é o esclarecimento que tem por objetivo a compreensão humana. A sociologia é talvez o único campo de especialização em que (como observou Pierre Bourdieu em La misère du monde) a famosa distinção de Dilthey entre explicação e compreensão foi superada e cancelada (BAUMAN, 2001, p. 241).
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É esse desejo de Bauman em enfatizar a sociologia como “primeira ocupação
feita sob medida para a modernidade líquida, promovendo a autonomia e a liberdade”
assim como “o enfoque da autoconsciência, da compreensão e da responsabilidade
individual” (p. 243), que guiam a sua maneira de se expressar sociologicamente. Sua
metodologia se calca em uma maneira de mostrar a história da modernidade de forma
que os leitores se percebam inseridos nela, e possa lhe provocar uma reflexão a partir
de pontos mais familiares para todos. Ele estimula os leitores a aproximarem o quadro
teórico apresentado de suas próprias experiências.
É a caracterização da sociedade líquido-moderna pelo que alguns autores
denominam “política-vida” (Giddens, 2002), e outros de “individualização” (Beck, 2010),
que se torna o motivo pelo qual Bauman volta o conhecimento sociológico para o
indivíduo, desviando-se de uma dimensão coletiva. É uma distinção dos elementos
contemporâneos a fim de estabelecer novas formulações sobre o “eu” e seu entorno,
passando a guiar sua conduta, comportamento e estilo de vida futuros.
A escolha do sociológo polonês por uma sociologia voltada para a consciência
individual parte de seu pensamento que qualquer escolha sociológica que busque
afrontar o acelerado e precário processo de individualização, não surtiria efeito ou
impacto em uma conjuntura na qual os laços sociais são cada vez mais fluidos entre os
indivíduos. Bauman entende que há um processo interno-externo muito mais corrente
que em outros momentos da história, sendo que a força transformadora de nossa
modernidade é muito mais potente nascendo de um impulso de “autorrealização
pessoal”.
Traçando um paralelo com dois autores importantes para Bauman: Engels e
Marx, é possível fazer uma análise que parte dos alemães no sentido que a
consciência seria determinada pela realidade concreta, e não o contrário, portanto, a
crítica radical do capitalismo deveria ser uma crítica da própria prática, nos termos de
uma transformação total das relações concretas existentes (a revolução), que seria
levada adiante pelo próprio proletariado. A única forma de eliminar a ideologia
capitalista seria através da “inversão prática das relações sociais existentes”, e não por
meio da “crítica intelectual” (Abbagnano, 2007). Em contraposição a eles, Bauman
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reforça seu pensamento na crítica intelectual, incorporando seu leitor em um panorama
histórico que lhe possibilite fazer relações de maneira fluida. Ele apregoa a
transformação da consciência, e não da prática, como Engels e Marx. Mas sabendo
que dentro de uma sociedade líquida como a vigente, é preciso orientar as
individualidades para um significado crível de sua própria liquidez, de forma a deixar a
consciência individual razoavelmente segura para seguir um caminho, mesmo que
essa segurança seja tão facilmente diluível quanto todas as outras amarras sociais.
A sociologia não contém mais valores partidários do que a realidade que ela descreve tem incorporado e cristalizado. Mas os sociólogos tomam uma decisão fatal: a de permanecerem totalmente no campo dessa realidade, a de não transcendê-la, a de reconhecer como válida e digna de conhecimento unicamente a informação que puder ser confrontada com esta realidade, aqui e agora. As alternativas que esta realidade torna irrealistas, improváveis e fantásticas, a sociologia prontamente as declara utópicas e sem interesse para a ciência. Nisto, e talvez só nisto, reside o papel intrinsecamente conservador da sociologia como ciência da não-liberdade (BAUMAN, 1977, p. 66).
Dessa forma, a transcendência da experiência humana se torna um fator
fundamental para ser atingido em suas obras. Seria, para ele, um dever da sociologia
descobrir “possibilidades humanas ainda ocultas” (2001, p.231). Seria a forma de
atingir, através de seus escritos alguma essência humana que está enraizada nos
indivíduos, em espera para serem despertas.
Para se chegar a uma sociologia crítica, o indivíduo, segundo Bauman (1977),
deve ser esclarecido, e não explicado, através da teoria social. O conhecimento
ideológico deve buscar a emancipação do sujeito, pois é através dessa estimulação do
senso comum em avaliar as estruturas históricas como mutáveis que se atinge a
transcendência. Durante toda sua construção da modernidade líquida, o autor
evidencia os indivíduos como seres líquidos e que habitam em um terreno fluido,
tornando qualquer fixação de identidade extremamente efêmera. Para atingir esses
nômades contemporâneos, somente através de um compartilhamento de condições,
que equipararia o sociólogo ao cidadão comum, tornando possível uma ligação mais
aguda entre a teoria e a prática. Dentro dessa corrente, não há forma mais prática e
acessível de efetivar esse enlace que se utilizando de enxertos de espetáculos de
18
massa típicos da sociedade de consumo, que desepenham um papel de mobilização
tão eficiente quanto possa sê-lo em termos de aglutinação.
É em virtude desse cenário que a sociologia da liquidez de Bauman exerceria sua função dialógica entre as esferas coletiva e individual, nos termos de uma “terapêutica social”, demonstrando o extraordinário no ordinário da vida cotidiana e revelando aquilo que lhe subjaz e engendra: os nexos sociais que, apesar da fluidez, podem ser revelados sociologicamente de modo a estimular uma tematização coletiva das necessidades privadas (ABREU, 2012, p. 74).
Sendo assim, é dessa ausência de uma grande narrativa histórica comum a
todos socialmente que emanam as pequenas narrativas grupais com poder para
gerenciar relações. Bauman chega a essa conclusão na década de 1980, ao se ater às
funções assumidas pelos intelectuais na “pós-modernidade”. É preciso atingir o sujeito,
sua vida privada e seu entorno. A sociologia da modernidade líquida encontra aí sua
razão de ser: trata-se de interpelar discursivamente os indivíduos, por meio da difusão
da visada sociológica sobre a vida imediata, a fim de introduzir eficazmente uma
narrativa histórica num cenário pautado pela distopia e pelo “eterno presente” (2012, p.
80).
2.1.1 A ética e a moral líquida - entre Bauman e Lipovetsky
É importante ressaltar alguns pontos a respeito da visão teórica de Bauman
acerca da ética e da moral nos tempos líquidos antes de adentrar em outros pontos
que culminem no dito mal-estar líquido como um todo. Esse olhar do sociólogo polonês
está sempre submerso em uma roupagem um tanto mais utópica, quase idealista e
com uma base humanista bastante resistente. Resquícios, certamente, da história de
vida de Bauman, que não pode ser desvinculada de sua escrita, se queremos
interpretá-lo com rigidez.
Para Bauman2, a condição humana é moral, acima de qualquer classificação,
acima de qualquer definição do bom ou do mal, por mais que um indivíduo, desde o
primeiro contato com seu semelhante, contraponha-se com a escolha entre o bem e o
2 Vidas em fragmentos: sobre a ética pós-moderna (2011)
19
mal. Para ele, os indivíduos são portadores de responsabilidades contratuais implícitas
de convenções sociais, mas que não seriam substitutos de uma responsabilidade moral
original, por mais que esta pudesse ser ocultada pela ambivalência das escolhas que a
vida submete aos seus portadores. Sem haver a possibilidade de se eximir de uma
escolha, e sem uma estrutura orientadora para lhe auxiliar, o indivíduo se encontra em
uma ambivalência moral que Bauman denomina “ser-para” (2011, p. 15).
Essa incerteza acerca da responsabilidade moral acarreta uma posição de
insatisfação, que a sociedade sempre procurou amenizar no decurso da evolução
social, como, por exemplo, se atrelando à religião. Com seu papel de abrandar o mal,
que nunca será totalmente expurgado, serviu como um importante elemento suavizador
do peso que a existência proporciona.
A partir do surgimento do projeto moderno, a razão assume um papel mais
intenso no âmago social, se propondo a substituir a religião, com a promessa de uma
vida sem pecados e livre de ambivalência moral. A lei seria um cerne essencial nessa
substituição, apontando para um caminho mais sólido no plano racional. A obediência à
regra funcionaria como uma escolha simplificada e expurgadora da culpa.
Segundo Bauman (2011), a passagem moderna da responsabilidade moral para
as decisões éticas fez com que a própria modernidade engendrasse uma liberdade
com formas pré-concebidas de fugir de si mesma. Haveria um deslocamento de suas
próprias decisões morais, transferindo-as para o mecado e para os aparatos jurídicos.
A sociedade de consumo é quem detém o poder de orientar os indivíduos eticamente,
e não mais o Estado. É a privatização das regras éticas.
Como as autoridades que agora outorgam esse poder de regramento ético são
conduzidos pelas ondas do livre mercado, tão cheio de oscilações e sem uma solidez
estabelecida, o peso das consequências é também bastante reduzido, em uma linha de
vida que acaba não tendo uma fluência e um planejamento a longo prazo, sendo vivida
de maneira episódica, e como salienta o polonês "Uma vida vivida com uma sucessão
de episódios é uma vida não preocupada com as consequências. Assim, menos
assustadora fica a perspectiva de viver com os resultados de suas ações" (Bauman,
2011, p. 15).
20
É inseridos nesse cenário que Bauman relata uma impossibilidade de orientação
ética e legislativa acerca da moralidade. Traduzindo-se em uma moral eticamente
infundada, frente a uma sociedade em constante transformação e sem uma amarra
firme entre seus indivíduos, um mundo fluido e com nós aparentemente frouxos, uma
sociedade tipicamente líquida. Em outras palavras, Bauman sustenta que, na pós-
modernidade, vivemos em uma “moralidade sem ética”. Frente a isso, nos colocamos
em um pensamento forçado: como imaginar um mundo com moralidade e sem ética?
Sua próxima fala nos orienta a pensar que a moralidade não desaparece, mas se
aproxima de si própria:
É bem possível que a lei ética administrada pelo poder, longe de ser a estrutura sólida que impede a carne trêmula dos padrões morais de desmoronar, fosse uma rígida gaiola que impediu aqueles padrões de se esticarem até suas dimensões verdadeiras e passarem pelo teste supremo tanto da ética quanto da moralidade - o de orientar e de sustentar a integração humana. (BAUMAN, 2011, p. 57)
Sobre a integração humana, Bauman realizou algumas análises a respeito de
suas formas dentro da sociedade contemporânea, pois elas viriam a ter um papel
fundamental na formação identitária dos indivíduos, e, consequentemente, se tornando
um espelho da moralidade de sua época. A integração móvel caracteriza-se pela
proximidade momentânea e pela separação instantânea. Esse tipo de integração
encontra-se em locais como shoppings e no movimento das ruas onde vários
desconhecidos circulam. "Na rua não se pode fugir de estar um ao lado do outro. Mas
tenta-se fortemente não se estar - com o outro" (Bauman, 2011, p. 68).
Na integração estacionária, também há uma esquiva em relação ao outro, em
locais como salas de espera, vagões de trens e aviões. Há um ajuntamento de
estranhos que sabem que, em breve, estarão desassociados. Diferente da integração
moderada, que presume uma relação contínua, mesmo que breve, entre seus
elementos. Seria a denominação da integração existente entre vizinhos em um prédio
ou colegas de trabalho em uma fábrica. A integração manifesta (que ocorreria em
agrupamentos sociais como manifestações, torcidas esportivas ou boates), segundo
Bauman, é um tipo de integração fantasiosa, que existe apenas como pretexto. "Com a
identidade, pelo menos enquanto ela dure, não como uma propriedade individual, a
21
integração manifesta mata o encontro ainda no berço" (Bauman, 2011, p. 70). Em uma
visão mais macro da sociedade, existiria também uma integração denominada
postulada, impelida por um certa imaginação saudosista em relação ao seu lar. Ela
seria aplicada a relações entre nações, classes, raças e gêneros.
Segundo Bauman, a razão acaba por tentar encontrar uma definição para os
que ele denomina “outros de si”, sem sucesso. Isso acontece, pois, ao tentar obter uma
explicação racional o “único significado confirmado de
sentimento/emoção/sensibilidade/paixão é desafio, desdém e desprezo à razão”
(Bauman, 2011, p. 80). Houve uma tentativa moderna de unificar o público e domar a
emoção em prol da razão, abrindo espaço para a civilidade, em seu sentido mais
demagogo. Sendo assim, o local de integração também se torna o local no qual as
regras proíbem tudo aquilo que não conseguem e não podem governar (2011, p. 82).
Essa alteração de valores ocorrida na passagem para a pós-modernidade acaba
transfigurando conceitos de moral e ética, porém o esgotamento dos ideiais e o declínio
da moral são o que caracterizam esse momento, segundo Lipovetsky (2005, p. 105). O
filósofo francês discorda de Bauman quanto a aspectos teóricos dessa transição da
moral e da ética para a era pós-moderna, trazendo, talvez, uma visão mais realista e
sóbria, mas que ajuda a contrapôr a visão idealista de Bauman.
Lipovetsky denomina de sociedade do “pós-dever” a essa que irrompe sem o
desejo de cumprir obrigações em função dos outros. Os direitos imperativos seriam
ofuscados pelos direitos subjetivos: "Queremos o respeito da ética sem mutilação de
nós mesmos e sem obrigações difíceis; o espírito da responsabilidade, não o dever
incondicional. Por trás das liturgias do dever demiúrgico, chegamos ao minimalismo
ético" (Lipovetsky, 2005, p. 101). Ao passo que Bauman afirma que estamos na era da
moralidade sem ética, Lipovetsky interpõe que estamos à frente da moralidade, em
uma era pós-moralista. Ao mesmo tempo, ele assegura não se tratar de uma era “pós-
moral”, pois é uma era que não está disposta a sacrificar seus desejos ou o bem-estar
próprio por um idealismo abnegado, como o que ocorria na moral moderna do “dever”.
Nesse sentido, ele admite haver uma ética indolor, denominada por ele de última fase
da cultura individualista democrática.
22
Em termos éticos, o próprio Bauman questiona Lipovetsky, ao indagar se a pós-
modernidade ficaria marcada como o declínio do dever ou como o renascimento da
moralidade. Em Ética pós-moderna (1997), Bauman desfere textualmente algumas
críticas em relação à visão do francês:
"Se se precisar de exemplo dessa interpretação da "revolução ética pós-moderna", não se pode fazer pior do que consultar o estudo recentemente publicado por Gilles Lipovetsky, Le Crépuscule Du devoir ("O crepúsculo do dever", Gallimard, 1992). Lipovetsky, proeminente bardo da "libertação pós-moderna", autor de "A era do vazio" e "Império do efêmero", sugere que entramos finalmente na era de l`aprés-devoir, uma época pós-deontológica, em que se libertou nossa conduta dos últimos vestígios de opressivos "deveres infinitos", "mandamentos" e obrigações absolutos. Em nossos tempos, deslegitimou-se a ideia de autossacrifício; as pessoas não são estimuladas ou desejosas de se lançar na busca de ideais morais e cultivar valores morais; os políticos depuseram as utopias; e os idealistas de ontem tornam-se pragmáticos (Bauman, 1997, p. 06).
Bauman acusa Lipovetsky de aplaudir o declínio da moral, mas aqui ele parece
fazer uma confusão, talvez muito calcada no seu ideal humanista, já que o francês não
confunde o ocaso do dever e da moral com o ocaso dos valores, como a tolerância, a
honestidade e os direitos humanos, que nunca teriam sido tão valorizados. O que
parece evocar certa fúria por parte do sociólogo polonês é a falta de idealismo de
Lipovetsky, que se preocupa apenas em analisar friamente a realidade, não fazendo
exatamente um juízo de valor utópico ou do dever-ser. Lipovetsky é frio e líquido,
sendo um mero descritor da realidade, segundo Bauman.
É nessa relação da moral que leve em consideração o outro que Bauman se
sustenta, sendo esse o motivo de sua angústia frente a uma sociedade transitória, que
torna impossível se manter com bases sólidas. Para Lipovetsky, esse individualismo
contemporâneo é:
O retorno de uma autêntica exigência ética que rompe com o discurso libertário dos anos 1960 e 1970, assumindo posições éticas frente às novas ameaças tecnológicas ao meio ambiente e ao estatuto biológico do ser humano, ao novo contexto econômico, ideológico e político, em desenvolvimento a partir da metade dos anos 1980 (Lipovetsky, 2005, p. 76).
Esse novo contexto, segundo Lipovetsky, acaba ocasionando uma normatização
ética, que se difere da que existia anteriormente, caracterizada por uma moral austera
23
e um dever incondicional. A sociedade de consumo, mais especificamente a mídia e as
empresas são fatores externos responsáveis por influenciar essa escolha autônoma de
uma nova moral. É o fim de uma fase heróica e austera do dever e da obrigação que
caracteriza essa fase pós-moralista, segundo o francês, "pensar só em si não é mais
tido como algo imoral" (2005), e isso não é necessariamente ruim, mas apenas uma
maneira quase natural que a sociedade encontrou para se estabilizar frente aos
percalços transitórios da era pós-moderna. Quanto a esse sentido Lipovetsky é bem
mais concreto frente ao que a realidade apresenta que Bauman, que parece sempre
partir de uma pulsão pessoal para fazer sua análise própria dos fatos que se colocam.
E isso também não é necessariamente ruim.
A problemática ética em questão parece ter sua base na fundamentação desses
códigos morais, enquanto Bauman tenta se apoiar na relação mútua entre os
indivíduos, buscando uma conexão mesmo que ela seja melancólica, Lipovetsky aceita
o individualismo pós-moralista como um individualismo responsável, voltado também
para os valores, porém não acatando sacrifícios gerados por pressões sociais
reguladoras externas, e sim, cabendo na medida de cada indivíduo. Para Bauman,
essa forma de individualismo é sim um fator de separação da convivência humana,
sendo doloso de qualquer forma. Por mais realista que possa ser a ética pós-dever de
Lipovetsky, Bauman sempre acaba se ancorando em uma ética idealista, voltada para
um humanismo que parece não ter vez dentro da era pós-modernidade. O líquido
escorre pelas mãos do polonês.
2.1.2 Caminhos líquidos: da pós-modernidade à modernidade líquida
Um fator primordial para entender o mal-estar líquido é entender de onde
provém os elementos que o formam e como se encaixaram dentro da esfera social ao
longo dos períodos históricos. Períodos esses que também sofrem algumas
divergências teóricas, inclusive dentro da bibliografia de um mesmo autor. O próprio
Bauman efetua uma mudança de nomenclatura no decorrer de sua obra, substituindo
termos como modernidade e pós-modernidade, a partir de sua teoria líquida, por
24
modernidade sólida e modernidade líquida. Nos cabe aqui pormenorizar essas
definições e entender como, e se, essas modificações teóricas se desenvolvem para
alguma finalidade.
Lyotard, em A condição pós-moderna (2002), assevera a passagem da
modernidade para a pós-modernidade dentro da reinserção do papel da ciência em
decorrência de fatores econômicos na sociedade. Sua concepção da era moderna é a
de uma época na qual o saber era a guia-mestre da sociedade. O saber seria o
condutor para uma vida plena. À medida em que as sociedades entram na dita idade
pós-industrial e as culturas na idade pós-moderna, ao final dos anos 50, o saber inicia
uma mudança de estatuto. É a deslegitimação do saber, que se concretiza a partir de
“uma proliferação fortuita das ciências que seria ela mesma o efeito do progresso das
técnicas e da expansão do capitalismo” (p. 71). Como ele esmiúça:
A transformação da natureza do saber pode assim ter sobre os poderes públicos estabelecidos um efeito de retorno tal que os obrigue a reconsiderar suas relações de direito e de fato com as grandes empresas e mais genericamente com a sociedade civil. A reabertura do mercado mundial, a retomada de uma competição econômica ativa, o desaparecimento da hegemonia exclusiva do capitalismo americano, o declínio da alternativa socialista, a abertura provável do mercado chinês às trocas, e muitos outros fatores, vêm preparar os Estados, neste final dos anos 70, para uma revisão séria do papel que se habituaram a desempenhar desde os anos 30, que era de proteção e guia, e até de planificação pelos investimentos (LYOTARD, 2002, p. 6).
É, portanto, dentro desse viés de aceleração e retomada do capitalismo,
digamos, mais agressivo, que a estruturação da passagem da modernidade para a
pós-modernidade, por Lyotard, também se coloca. De uma forma simplificada, ele
resume essa passagem ao período da “incredulidade em relação aos metarrelatos”.
Teixeira Coelho (2001) caracteriza o moderno como um termo dêitico,
relacionando-o diretamente com uma contextualização por parte do sujeito, mas ainda
capaz de exprimir uma localização espaço-temporal, ainda que careça de uma
definição concreta. A caracterização faz sentido, devido a grande quantidade de
divergências teóricas sobre exatas limitações e congruências que o vocábulo
“moderno” evoca. E segue:
25
[...] “moderno” é assim, um índice, um tipo de signo que veicula uma significação para alguém a partir de uma realidade concreta em situação e na dependência da experiência prévia que esse alguém possa ter tido em situações análogas (TEIXEIRA COELHO, 2001, p. 13).
Harvey, em Condição pós-moderna (2003), avalia que o “projeto de
modernidade”, famosa denominação dada por Habermas, começa a entrar em foco
durante o século XVIII. Esse projeto equivalia a um extraordinário esforço intelectual
dos pensadores iluministas “para desenvolver a ciência objetiva, a moralidade e a lei
universais e a arte autônoma nos tempos da própria lógica interna destas”. Através do
domínio científico da natureza é que poderia haver uma libertação da escassez, da
necessidade e da arbitrariedade dos desastres naturais. E prossegue:
O desenvolvimento de forças racionais de organização social e de modos racionais de pensamento prometia a libertação das irracionalidades do mito, da religião, da superstição, liberação do uso arbitrário do poder, bem como do lado sombrio da nossa própria natureza humana. Somente por meio de tal projeto poderiam as qualidades universais, eternas e imutáveis de toda a humanidade ser reveladas (HARVEY, 2003, p. 23).
A era moderna parte da dissociação de alguns elementos que se encontravam
praticamente fundidos durante a era feudal: a ciência, a arte e a moral, que viriam a ser
acompanhadas da realocação da política e da lei (1986). A concretização do “projeto
da modernidade” se dá também muito em virtude da desapropriação de nexo entre
ciência e religião, ruptura essa que seria impensável anteriormente, podendo inclusive
levar à fogueira aqueles que tentassem adentrar nessa esfera. O Iluminismo
estabelece essas novas relações, possibilitando campos distintos de pensamento e
abrindo uma vasta possibilidade para o enriquecimento do pensar nos séculos
seguintes.
Bauman, em Tempos líquidos (2007b), também estabelece como definidora
essa desconexão entre política e, para ele, poder. Esse deslocamento do poder de agir
efetivamente, que anteriormente era disponível apenas ao Estado moderno, começa a
se afastar na direção de um espaço global, enquanto a política é incapaz de operar
efetivamente na dimensão planetária, ao passo que permanece local (p. 8). Esse
afastamento entre os dois polos acaba exacerbando a sensação de incerteza, pela
26
transformação dos poderes recém emancipados em uma fonte despovoada de controle
político.
Nesse âmbito, a passagem da modernidade para a pós-modernidade se daria
com a amplificação de alguns processos advindos da solidificação do sistema
capitalista, como as consequências desses processos em âmbito econômico, social e
cultural. A clara definição entre quando uma inicia e a outra acaba é bastante tênue,
mas Teixeira Coelho (p. 29) elabora um esquema a respeito da mobilidade da
sociedade moderna que é bastante elucidativo acerca desse processo de transição
entre o moderno e o pós-moderno. Dentro dele, há algumas divisões por elementos
elencados pelo autor, que podem ser resumidos assim:
a) Mobilidade - Teixeira Coelho fala de uma mobilidade técnica e social. Os
avanços tecnológicos são cada vez mais potencializados, pois são medidos “por
décadas, depois por anos e finalmente são quase diários, o que exacerba o projeto de
especialização a que deu início o projeto iluminista”, influenciando diretamente no
modo de vida da sociedade. A mudança de papel social está exemplificada na relação,
nem sempre em um processo evolutivo no sentido positivo e definitivo, entre a mulher e
o homem, o empregado e o patrão, o negro e o branco, e a criança e o adulto.
b) Descontinuidade - Explicitada em um âmbito de expressão cultural, ligada ao
“comportamento, modo de pensar, na forma de representar [...]”. As artes,
principalmente literatura e cinema, estariam representando esse elemento, capitulando
narrativas e fortificando elipses, descontruindo a ideia de uma circularidade narrativa
obrigatoriamente progressiva.
c) Cientificismo - “A fetichização da ciência é outro traço da modernidade”.
Explicita o mito moderno do simulacro tecnológico.
d) Esteticismo - Aqui, Teixeira Coelho explicita a tentativa do “espírito moderno”
de fundir arte e indústria, transbordando as influências estéticas pelas diversas áreas
da sociedade. Da publicidade à moda, todas se valem dos aspectos formais ditados
pela arte, o que provoca a desconstrução dos mesmos, fazendo com que a própria arte
vá buscar referência em suas próprias deturpações.
e) Predominância da representação sobre o real - Uma consequência direta do
esteticismo. O autor evoca o exemplo concreto das revistas brasileiras especializadas
27
em novelas, que acabam traçando paralelos entre os personagens e os atores que os
representam, contribuindo para uma “cultura de fantasmas, imaginações e delírios”
Esses elementos “tentáculos”, explicitados por Teixeira Coelho e que se
alongam como projeção de uma especificidade cada vez maior, consequência da
passagem de era, também é traçada em paralelo por Bauman como uma característica
da sociedade “em rede”, em oposição à sociedade como “estrutura”. Há uma matriz de
conexões e desconexões aleatórias em volume tão intenso que possibilitam um
número infinito de permutações possíveis. Essa estruturação pesada que a sociedade
moderna possuía é o equivalente ao que Bauman denomina “sólido”, e que designa um
importante conceito dentro da sua teoria líquida.
Por outro lado, o conceito de líquido progride a partir dessa desestruturação do
concreto. A pós-modernidade se externa pelo “derretimento dos sólidos”, ou, como
Bauman afirma “dissolvendo o que quer que persistisse no tempo e fosse infenso à sua
passagem ou imune a seu fluxo [...], ‘profanação do sagrado’: pelo repúdio e
destronamento do passado e, antes e a cima de tudo, da ‘tradição’” (2001, p. 9).
Derreter os sólidos significava, antes e acima de tudo, eliminar as obrigações
irrelevantes que impediam a via do cálculo racional dos efeitos; ou, como dizia Max
Weber “libertar a empresa de negócios dos grilhões dos deveres para com a família e o
lar e da densa trama das obrigações éticas… deixar restar somente o nexo dinheiro”.
O colapso do pensamento, do planejamento e da ação a longo prazo, e o desaparecimento ou enfraquecimento das estruturas sociais nas quais estes poderiam ser traçados com antecedência, não combinam com os tipos de sequências aos quais os conceitos como “desenvolvimento”, “maturação”, “carreira” ou “progresso” (Bauman, 2007b, p. 9).
É devido a essa diferença “entre-modernidades” que fizeram Bauman aderir a
um novo conceito de modernidade, que nesse caso, se casa com o conceito de pós-
modernidade. Ao passo que a modernidade estudada pela teoria crítica era pesada,
sólida, condensada e sistêmica, a modernidade que ele se propõe a estudar em sua
sociologia da liquidez está atrelada a uma modernidade leve, líquida, difusa e em
formato de rede. Mas o que explica a variação bibliográfica do termo “pós-
modernidade” para “modernidade líquida”, que o sociólogo polonês passa a adotar?
28
A partir de sua reavaliação do termo “pós-modernidade”, Bauman concluiu que o
vocábulo era mais utilizado para avaliar negativamente alguns aspectos da
modernidade, não oferecendo condições suficientes para fazer emergir uma identidade
própria dessa crise moderna, em fase avançada de dissociação tempo-espaço. Dessa
análise, através da metáfora da “liquidez”, Bauman passou a chamar aquilo que ele,
ainda na década de 1980, intitulava “modernidade”, de “modernidade sólida”, e
trocando a alcunha de “pós-modernidade” para “modernidade líquida”.
A justificativa de Bauman para essa mudança é uma noção de que a pós-
modernidade não abarcava a nova identidade que emergia, apenas descrevendo o que
desaparecia no fluxo da história. Porém, sua inclusão metafórica da “modernidade
líquida” também está puramente vinculada à dissolução dos sólidos, do
enfraquecimento da estrutura moderna e das instituições que a formam. Não há uma
resolução elucidativa a respeito dessa “outra forma” que se impõe, pois sua teoria
também se calca no declínio do período moderno.
É possível notar um certo descompasso do autor polonês para com esta
questão, visto que em Legisladores e intérpretes (2010), ele afirma que “neste livro,
uma outra noção, a de 'pós-modernidade', é usada por mim para descrever a realidade
social que tento analisar – uma noção que dificilmente apareceu em meus livros
posteriores”. Em suas obras subsequentes, Bauman volta a usar o termo, como em
Modernidade e Ambivalência (1999), Intimations of postmodernity (1991), no qual
inclusive escreve um ensaio sobre a possibilidade de uma “sociologia da pós-
modernidade”, Mortality, immortality and other life strategies (1993), Ética pós-moderna
(1997), Vida em fragmentos: sobre uma ética pós-moderna. (2011), O mal-estar da
pós-modernidade (1998), Globalização: as consequências humanas (2000a) e Em
busca da política (2000b). Nesta última, Abreu pesquisa sobre a utilização da noção
pós-moderna em Bauman:
[...] apenas um ano antes de nosso autor despertar de seu “sono paradigmático”, a noção de “pós-modernidade” ainda se mantinha viva em sua reflexão, presente no título de três subcapítulos. Ao que parece o despertar de Bauman não foi gradativo, como no teste psicológico de que se vale para ilustrar seu atraso de percepção. Ao contrário, seu deslocamento “paradigmático” ocorreu subitamente. Mais uma evidência de que “pós-modernidade” e “modernidade
29
líquida” são termos praticamente intercambiáveis, ainda que o autor se esforce em demonstrar o contrário (ABREU, 2012, p. 86).
O próprio Bauman, em Modernidade líquida, parece dar pistas de que nem a
própria modernidade líquida seria tão dissociada da “sólida”, sendo realmente, e então
utilizar o termo “modernidade” para ambas começa a fazer mais sentido, um estágio de
transição para modificações mais profundas. É provável que essa reavalição de
nomenclatura embarque essa visão também, ao que ele indica que “A sociedade que
entra no século XXI não é menos moderna que a que entrou no século XX; o máximo
que se pode dizer é que ela é moderna de um modo diferente” (p. 36).
Ainda assim, parece que não há uma explicação “sólida” que permita
estabelecer um nexo consistente para a mudança de nomenclatura ocorrida na obra de
Bauman. Tudo leva a crer que se trata mais de um artifício mercadológico,
corroborando uma série de obras que se enquadrariam em sua “sociologia da
modernidade líquida”, criando uma “coleção” que se interligue de maneira mais
facilmente assimilável por leitores latentes. Talvez seja uma forma de estetização da
própria crítica social enquanto elemento da cultura contemporânea em sua forma
massificada, se aproximando inclusive de uma espécie de jornalismo cultural em traje
crítico.
Inclusive nessa hipótese, parece ser coerente que Bauman queira atingir o maior
número de pessoas para “espalhar a palavra”, visto que sempre lhe pareceu importante
atingir o senso comum e provocar alguma espécie de fagulha reflexiva. Foi tema,
inclusive, de seu ensaio intitulado Por uma sociologia crítica: um ensaio sobre senso
comum e emancipação (1976), no qual ele aborda os fundamentos metodológicos e
teóricos de uma categoria de ciência social interessada em dialogar com seus objetos
de investigação. Ele é de suma importância para entender essa vontade do sociólogo
polonês em interagir com o senso comum e, visto sob perspectiva, parece formar um
sentido geral sobre sua obra.
Em meio a essa questão, ainda nos parece mais interessante utilizar a
nomenclatura “líquida” para nos referirmos ao mal-estar que aprofundaremos adiante,
em respeito a uma progressão ordenada pelo próprio autor. Ademais, nossa grande
carga bibliográfica em relação a Bauman também se encontra em meio à sua
30
sociologia da modernidade líquida, sendo condizente com a proposta de nossa
dissertação que a usemos.
2.2 A MODERNIDADE LÍQUIDA E SEUS FATORES ANGUSTIANTES
Como vimos no capítulo anterior, a modernidade líquida não pode ser dissociada
de sua época imediatamente anterior, tida como “sólida”, para termos de compreensão
mais apurada de suas particularidades. Dentro desse contexto, a modernidade líquida
se estrutura a partir de inúmeros fatores formadores da sociedade pós-revolução
industrial, incluindo fatores econômicos, religiosos, estéticos e culturais que passam
por um processo de flexibilização bastante acelerado.
A maneira com que esses elementos se reinserem na sociedade líquida é o que
nos propomos a analisar nos próximos subcapítulos. É essa reinserção desses fatores,
que chamaremos angustiantes, que propiciará ao mal-estar líquido se estruturar dentro
da sociedade e do indivíduo pós-moderno. Os fatores angustiantes nada mais são que
elementos formadores da sociedade moderna que, reinseridos dentro de um contexto
líquido, acabam por exacerbar sentimentos de ansiedade, insegurança e medo que das
relações feudais. Era um momento de profundo fervor religioso, com grande
participação política da Igreja. A substituição do sistema de numeração romana pelo
sistema decimal possibilitou avanços na área da matemática, ao mesmo tempo que os
moinhos de vento apareciam como símbolo do avanço das engrenagens da época.
Épocas conturbadas dentro do período, em razão de grandes ciclos de fome, causados
principalmente pela frágil monoculturização da agricultura, tornando-se excessivamente
vulnerabilizada pelas condições metereológicas, e as sucessivas pestes que assolaram
a população. A promoção dos Estados monárquicos, principalmente Inglaterra e
França, também marcou de forma importante os acontecimentos que viriam a seguir.
Apesar do período medieval ser constantemente marcado como uma época de
superstição e ignorância, muito devido a uma releitura do período pelo Renascentismo
e o Iluminismo, muitas bases foram concretadas para que, os intelectuais iluministas,
formam o mal-estar líquido.
31
Em razão da complexidade de conceituação do mal-estar líquido, que não pode
ser legitimamente objetivado e concretizado de forma certeira, as análises acerca da
reinserção dos fatores angustiantes propiciam um belo painel sensitivo para perceber
como o mal-estar líquido está formado dentro da sociedade. O mal-estar líquido acaba
agindo como um elemento gasoso que permeia a sociedade e seus indivíduos, sendo
impossível de dissolver e ao mesmo tempo intangível.
O sentimento dominante, agora, é a sensação de um novo tipo de incerteza, não limitada à própria sorte e aos dons de uma pessoa, mas igualmente a respeito da futura configuração do mundo, a maneira correta de viver nele e os critérios pelos quais julgar os acertos e erros da maneira de viver. O que também é novo em torno da interpretação pós-moderna da incerteza é que ela já não é vista como um mero inconveniente temporário, que com o esforço devido possa ser ou abrandado ou inteiramente transposto. O mundo pós-moderno está-se preparando para a vida sob uma condição de incerteza que é permanente e irredutível (BAUMAN, 1998, p. 32).
2.2.1 A sociedade de consumo: ascensão do modelo capitalista
A Idade Média, pregressa à Moderna, foi um período marcado pela queda do
Império Romano e com a base de sua estrutura econômica e social sustentada através
viessem a contrapôr o que se passou, dando continuidade ao fluxo histórico. Mas esse
antagonismo iluminista foi importante para categorizar a condução da razão em um
nível acima da fé (mesmo que não fosse tão simplória a relação na época Medieval) e
promover uma marca da Modernidade, que viria a ser a racionalidade aliada a um
esvaziamento do poder da Igreja. Ao mesmo tempo que as constantes expedições
marítimas promoviam os encontros dos povos e iniciavam processos de
descobrimento/exploração, era dada a largada para entendermos um pouco da época
ditada pelo progresso.
As colonizações e grandes navegações possibilitaram que o o sistema
capitalista se desenvolvesse e se ampliasse pelo entorno do globo terrestre, abrindo
espaço para ideias progressistas e para o “projeto da modernidade”, que foi
desabrochando durante o século XVIII. O Iluminismo foi capaz de fermentar boa parte
da vida política dos países ocidentais, e os fisiocratas foram responsáveis por plantar a
semente do liberalismo econômico, pregando a diminuição da intervenção estatal na
32
economia, que deveria ser regida por leis naturais, ao seu próprio deslocamento
orgânico. Laissez faire, laissez aller, laissez passer.
Com o esfacelamento do feudalismo, ocorreu a escalada da burguesia mercante
na europa, que iniciou uma procura cada vez maior de riquezas em terras remotas. É a
fase denominada de capitalismo comercial ou, como alguns autores chamam, de pré-
capitalismo. “Pré” porque o capitalismo realmente ganha força a partir da Revolução
Industrial e a modificação que ela proporciona no sistema de produção. É a
caracterização da fase do capitalismo industrial. Os teóricos não possuem uma duração determinada para a extensão histórica
da Revolução Industrial (que muitos nem caracterizam como Revolução, visto que a
mesma seria um longo e gradual período, incapaz de configurar uma “Revolução”). Por
esta razão se costuma fazer uma divisão em dois momentos distintos.
O primeiro seria marcado pela passagem da manufatura para a maquinofatura,
com os trabalhadores perdendo a posse do sistema de produção, no qual podiam ter o
controle sobre a matéria prima, o processo e o lucro. Com a capitalização gradual das
máquinas, os trabalhadores passaram a operá-las, sendo que elas, via de regra,
pertenciam aos seus patrões. Isto acabou deslocando um dos pontos do sistema de
produção para um terceiro, criando relações de trabalho mais hierárquicas e rígidas. A
aceleração dos meios de produção, através do avanço tecnológico consolidado e a
passagem, segundo Marx (2011), do capitalismo comercial para o capitalismo
industrial, são fatores vitais para entender como a sociedade acompanhou e sentiu
suas nuances na cultura e nas interações pessoais. O liberalismo operava com a
propriedade privada dos meios de produção, a fixação de salários, as relações de
poder que se estabeleciam entre empregados e empregadores. A conversão do
trabalho em trabalho assalariado, para Marx, significou a “separação entre o trabalho e
seu produto, entre a força de trabalho subjetiva e as condições objetivas de trabalho”
(2011, p. 3). A fala de Marx vai ao encontro do que Harvey sustenta:
Os capitalistas, ao comprar forçar de trabalho, tratam-na necessariamente em termos instrumentais. [...] O mundo da classe trabalhadora torna-se o domínio do outro, tornado necessariamente opaco e potencialmente não conhecível em virtude do fetichismo da troca de mercado. Eu ainda acrescentaria que, se já houver na sociedade membros (mulheres, negros, povos colonizados, minorias de todo tipo) que possam ser conceituados prontamente como o outro, a união
33
da exploração de classe com o sexo, a raça, o colonialismo, a etnicidade etc. pode produzir toda espécie de resultados desastrosos. O capitalismo não inventou “o outro”, mas por certo fez uso dele e o promoveu sob formas dotadas de um alto grau de estruturação (HARVEY, 2003, p. 101).
A exploração maquinofaturada possibilitou o alargamento da margem de lucro e
a aceleração da cadeia de produção. O sistema incentivou o crescimento econômico,
diminuindo o valor das mercadorias e aumentando a quantidade de consumidores. Por
outro lado, isso afetou a classe trabalhadora, que passou a sofrer com salários cada
vez mais baixos, desemprego, más condições de trabalho e o aprofundamento nas
diferenças provenientes das rendas e e das riquezas, acelerando a divisão de classes.
Marx e Engels (2011), tiveram uma clarividência a respeito desta ascensão. Eles já
previam que essa subversão contínua da produção acabaria por abalar o sistema
social como um todo, dissolvendo as relações sociais que já se encontravam
cristalizadas no âmago da sociedade e não permitindo que nem que as novas
modalidades de relações se calcifiquem, pois elas acabam se tornando antiquadas
antes mesmo de sua consolidação.
Dentro dessa fase capitalista, Harvey (2003) aponta o Fordismo como um dos
totens da modernidade, assim como sua derrocada também passa a ser um dos
símbolos da mudança de período. Henry Ford estabelecia o Fordismo, um sistema de
produção em massa, baseado em inovações técnicas e organizacionais que
possibilitavam um aperfeiçoamento nas linhas de montagem. Seu sistema revolucionou
a produção automobilística americana e visava também o consumo em massa, sendo
responsável pelo derradeiro boom da indústria automobilística. A expansão
internacional também tomava forma com a exploração do neocolonialismo, que
ampliava o sistema capitalista para outros países. A relação entre empregado e
empregador, que já significava um laço bastante frágil para um dos lados, agora se
amplificava como relação internacional, na qual empresas cada vez mais poderosas de
países ricos entravam em países pobres para estabelecer nova relação de poder, se
utilizando de mãos de obra ainda mais baratas e de benefícios estatais. Foi nesse
momento de internacionalização do capitalismo que os Estados Unidos se
consolidaram como farol da economia mundial, graças ao acordo de Bretton Woods,
em 1944, que transformou o dólar na moeda-reserva mundial, vinculando com firmeza
34
o desenvolvimento econômico mundial à política fiscal e monetária norte-americana. “A
América agia de banqueiro do mundo em troca de uma abertura dos mercados de
capital e de mercadorias ao poder das grandes corporações” (2003, p. 131).
O Fordismo acaba por se tornar símbolo de uma tendência que Bauman clareia
em Comunidade: a busca por segurança no mundo atual (2003), e que acompanha o
capitalismo moderno ao longo de sua história. É o esforço contínuo de substituir o
“entendimento natural da comunidade de outrora” (p. 36), com a cadência ditada pela
natureza, pela lavoura, e pela tradição da vida do artesão, por uma rotina proveniente
da mecanicidade do ritual das fábricas e indústrias, projetada para ser coercitivamente
imposta e monitorada. Ela se insere em uma tentativa de criar um “sentido de
comunidade” em seu entorno, com a criação de cidades modelo em áreas industriais,
equipadas com capelas, escolas, hospitais e confortos básicos em uma sociedade,
apostando na transformação do emprego na fábrica como uma tarefa vitalícia.
Porém, o sistema fordista não escapa à lógica de toda e qualquer consolidação,
atingindo o seu ápice justamente para iniciar o seu declínio. A crescente massa de
descontentes, derivada das críticas e práticas da contracultura dos anos 1960, fundiu-
se a um forte movimento político-cultural e uma insatisfação geral dos explorados do
terceiro mundo, para os quais a promessa de desenvolvimento econômico e
emancipação das necessidades nunca chegou, promovendo apenas a “destruição de
culturas locais, opressão e numerosas formas de domínio capitalista em troca de
ganhos pífios em padrão de vida e serviços públicos” (p. 133). Pode-se dizer que a
recessão3 de 1973 foi um ponto importante para essa virada orgânica do modelo
econômico, pois foi o fator que minou o fordismo - já abalado pela crescente
competição internacional, lucros corporativos em baixa e inflação acelerada - e o
mergulhou em uma crise de superacumulação adiada por algum tempo.
Esta queda obrigou o modelo a se readequar a um sistema que Harvey
denominou “acumulação flexível” (p. 140). A reconfiguração para este sistema tornou o
cenário econômico internacional muito mais próximo aos padrões característicos da
3 Segundo Mario Henrique Simonsen, a recessão é uma fase de contração no ciclo econômico, isto é, de retração geral na atividade econômica por um certo período de tempo, com queda no nível da produção (medida pelo Produto Interno Bruto), aumento do desemprego, queda na renda familiar, redução da taxa de lucro e aumento do número de falências e concordatas, aumento da capacidade ociosa e queda do nível de investimento.
35
pós-modernidade, pois ele era dotado de uma maleabilidade capaz de afetar todos os
polos da cadeia econômica.
A acumulação flexível, [...], é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas mudanças dos padrões de desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego no chamado “setor de serviços” (HARVEY, 2003, p. 135).
A acumulação flexível também influenciou um novo movimento no mundo
capitalista que Harvey denominou “compressão do espaço-tempo” (p. 135). Este
conceito se baseia no estreitamento da tomada de decisões entre a esfera privada e a
pública, que, em conjunto com a massificação da comunicação via satélite e a queda
dos custos de transporte possibilitaram uma difusão cada vez mais veloz dessas
decisões num espaço cada vez mais amplo. Esta reconfiguração aumentou
consideravelmente o número de empregos temporários e subempregos, mas não ao
ponto de potencializar uma insatisfação trabalhista muito forte, pois o poder sindical já
não possuía a mesma força. Uma certa insegurança começa a se desenhar.
Essa crescente tensão entre “monopólio e competição, centralização e
descentralização de poder econômico” (p. 150) começa a se expressar de novas
maneiras. O capitalismo se reorganiza “através de dispersão, mobilidade geográfica e
das respostas flexíveis nos mercados de trabalho, processos de trabalho e mercados
de consumo, acompanhados pela inovação tecnológica de produto e institucional” (p.
150). Grandes empresas começam a se expandir, adquirindo pequenas empresas,
expandindo seus serviços e se convertendo em grandes conglomerados responsáveis
por uma parcela significativa da cadeia de mercado.
É então, na virada para a terceira fase do capitalismo, chamada de capitalismo
monopolista-financeiro, que os sinais mais marcantes da era pós-moderna começam a
se manifestar. Esta fase se desenvolve com base no sistema bancário, nas grandes
corporações financeiras e no mercado globalizado e tem como uma das características
a intangibilidade monetária. É na abstração financeira, juros flutuantes e ganhos
36
futuros que se consolida esta fase “final” do capitalismo, que segue em constante
modificação, se readaptando conforme as dificuldades aparecem e como um espelho e
agente modificador da sociedade como um todo. Uma perigosa cadeia interligada de
transações e filiações pecuniárias acaba adquirindo uma atribuição de poder muito
grande em relações às várias áreas econômicas, sendo responsável por inúmeras
crises do sistema capitalista.
O “empreendimentismo de papéis” em grande escala global, tornando porosas as mais diversas instituições financeiras e de crédito, leva a um outro patamar o sistema financeiro mundial, focando-se não na produção, mas na atividade corporativa imaterial. Nos ganhos futuros que influenciam o presente. Tudo começa a ficar mais intangível (HARVEY, 2003, p. 154).
Essa desregulamentação das operações financeiras (o mercado de dinheiro e
crédito), caracterizando um sistema especulativo e inquieto foi a base desse momento
econômico. Segundo Anderson (1999), essa desregulamentação é marcada por “uma
sensibilidade intimamente ligada à desmaterialização do dinheiro, à característica
efêmera da moda, ao excesso de simulação das novas economias” (p. 94). É também
passível para o autor que a mudança mais radical se dá pela nova posição e pela
autonomia dos mercados financeiros dentro do capitalismo, passando por cima dos
governos nacionais, e significando uma instabilidade sistêmica sem precedentes.
Como essa montanha de fatores econômicos, que se transmutam e interagem
de maneira tão veloz e em tão curto período de tempo, acaba influenciando a
sociedade? Como as demandas de produção se estabelecem nesses novos tempos?
Harvey elenca (p. 166) três características básicas do modelo capitalista de produção,
que seguem intocáveis da passagem do fordismo para a o modelo de acumulação
flexível, sendo eles a orientação contínua para o crescimento, pouco importando as
consequências sociais, políticas, geopolíticas ou ecológicas; em qualquer caso, a crise
é definida pela falta de crescimento. Esse crescimento se apoia no controle da mão de
obra, através de sua exploração, tendo como um dos pilares do capitalismo essa
relação de classe entre capital e trabalho. O último fator é o que se aplica mais à
transição entre os modelos capitalistas, sendo, por necessidade, tecnológica e
organizacionalmente dinâmica. Marx já havia previsto que essa cadeia de fatores não
37
poderia jamais produzir um crescimento equilibrado e sem problemas, sendo que a
superacumulação acabou se mostrando um dos efeitos mais materializáveis dessa
análise.
Harvey adverte que a aceleração do ritmo de consumo e a rápida penetração
capitalista no mercado de serviços, como a indústria da moda e a própria indústria
cultural, acaba acentuando a volatilidade e a efemeridade tanto de moda, quanto de
produtos, ideias, técnicas de produção e, principalmente, ideologias. Mesmo que a vida
útil desses serviços seja bem menor que a de um automóvel ou de um eletrodoméstico,
eles também não exigem acumulação e circulação material de bens tão pesada. A
“sociedade de consumo”, “sociedade do espetáculo”, ou, como Harvey denomina em
dado momento, a “sociedade do descarte” possui um aspecto bastante específico na
sua forma de organização interna: ela não se preocupa apenas em produzir os bens de
consumo, ela passa a produzir inclusive os próprios consumidores. Assim como
Baudrillard aponta em A sociedade de consumo (2001), a genealogia do consumo é
formada por algumas evoluções em sua cadeia. Começando pela ordem de produção,
que acaba por produzir a máquina e a força produtiva. Em seguida, a produção do
capital e da força produtiva racionalizada, do sistema de investimento e da circulação
racional. A próxima fase é da produção da força de trabalho assalariada, da força
produtiva abstrata e sistematizada. Dessa forma, se produzem as necessidades, o
sistema de necessidades, a procura/força produtiva como um grande conjunto
racionalizado.
O capitalismo e o giro contínuo do capital acabam se tornando uma fonte de
insegurança. A obrigação de preservar a lucratividade obriga os capitalistas a
experimentar toda a forma de novas possibilidades. Novas linhas de produtos são
abertas, significando a criação de novos desejos e necessidades e “enfatizando o
cultivo de apetites imaginários e o papel da fantasia, do capricho e do impulso”,
resultando em uma exacerbação da insegurança, ao passo que grandes quantidades
de capital e trabalho vão sendo transferidos entre linhas de produção “deixando setores
inteiros devastados, enquanto o fluxo perpétuo de desejos, gostos e necessidades do
consumidor se torna um foco permanente de incerteza e de luta” (p. 103).
38
Bauman (2001) se apropria de Ferguson para apontar que o consumismo, em
sua atual forma, não está “fundado sobre a regulação (estimulação) do desejo, mas
sobre a liberação de fantasias desejosas” (p. 89). Em paralelo com o próprio modelo
capitalista de acumulação flexível, a noção de desejo liga o consumismo à auto-
expressão, a noções de gosto e discriminação. As posses do indivíduo acabam se
manifestando como uma forma de se expressar para o mundo. O querer substitui o
desejo como força motivadora do consumo. Diz Ferguson:
Enquanto a facilitação do desejo se fundava na comparação, vaidade, inveja e a “necessidade” de auto-aprovação, nada está por baixo do imediatismo do querer. A compra é casual, inesperada e espontânea. Ela tem uma qualidade de sonho tanto ao expressar quanto ao realizar um querer, que, como todos os quereres, é insincero e infantil. (FERGUSON In BAUMAN, 2001, p. 89).
Essa nova característica psíquica fortemente associada à sociedade de
consumo acaba se transformando em um dos fatores angustiantes que formam a
sombra tênue, porém densa, do mal-estar líquido que paira sobre a sociedade
contemporânea. É a compulsividade do consumo como uma manifestação da
revolução pós-moderna de valores, tendendo para uma representação desse “vício” em
comprar como uma “manifestação aberta de instintos materialistas e hedonistas
adormecidos” ou, de outra forma, como um produto de uma “conspiração comercial,
incitação artificial (e cheia de arte) à busca do prazer como propósito máximo da vida”
(p. 95). Essa compulsão pela compra é um caminho contra a incerteza e o sentimento
contínuo de insegurança. É o indivíduo buscando sensações que o anestesiem, sejam
elas táteis, visuais ou olfativas. 2.2.2 A crença externa
[...] o espírito pós-moderno é inteiramente menos excitado do que seu adversário moderno pela perspectiva de cercar o mundo com uma grade de categorias puras e divisões bem delineadas. [...] Estamos também aprendendo a viver com a revelação de que não se pode articular tudo o que se sabe, e de que, compreender - saber como proceder - nem sempre requer a disponibilidade de um preceito verbalizado. [...] a religiosidade não é, afinal, nada mais do que a
39
intuição dos limites até os quais os seres humanos, sendo humanos, podem agir e compreender (BAUMAN, 1998, p.208).
Um dos elementos mais presentes em qualquer forma de civilização ao longo da
história é a crença em alguma força que extrapole a frágil condição humana. A religião
sempre foi um dos fatores a ocupar essa lacuna da humanidade, em graus variados
conforme a fase histórica, mas sempre como uma força presente, inclusive em termos
políticos e econômicos.
Freud, em seu O mal-estar na civilização (1997), já levantava a questão da fé
como um forte instrumento de segurança emocional. A religião funciona como um
sistema de doutrinas e promessas que, ao mesmo tempo que elucidam os mistérios
dessa vida com perfeição, também garantem que “[...] uma Providência cuidadosa
velará por sua vida e o compensará, numa existência futura, de quaisquer frustrações
que tenha experimentado aqui” (p. 30). Apenas a figura de um pai ilimitadamente
engrandecido seria capaz de saciar esse anseio do homem comum. Uma figura que
compreenda de pai para filho as necessidades humanas, enternecendo-se com suas
preces e aplacando-se com os sinais de seus remorsos. Freud elenca três medidas
que são capazes de elevar a solidão humana a um nível mais tolerável: a ciência, que
possibilita extrair iluminação da desgraça; as ditas satisfações substitutivas, que a
diminuem, e as substâncias tóxicas, que nos tornam insensíveis a ela.
Bauman cita Anthony Giddens, ao falar da segurança ontológica, um sentido de
fidedignidade das pessoas e das coisas, auxiliado pela previsibilidade das menores
rotinas da vida diária, sendo esse o estado no qual vivemos a maior parte do tempo.
Em outras palavras, é o sentido de comunidade no qual sempre buscamos nos inserir
em alguma instância, e que possibilite uma comunhão em torno de algum bem comum,
nem que seja a própria manutenção da comunidade. O oposto da segurança ontológica
seria a ansiedade existencial, sentimento esse que, segundo Bauman, também foi
preciso ser disseminado de alguma forma pela Igreja, e aqui nos focamos
principalmente ao Cristianismo, importantíssimo na formação da cultura ocidental
moderna e também coresponsável pela catequização das colônias sul-americanas, em
especial em relação aos povos indígenas no Brasil. A religião se mostrou também uma
40
forma de poder cultural frente aos povos menos desenvolvidos, sendo um elemento de
controle. Sobre isso, Foucault:
[...] todas essas técnicas cristãs de inquirição, orientação de confissão, obediência, tem um fim: levar os indivíduos a trabalhar em sua própria “mortificação” neste mundo. [...] ela não é a morte, mas uma renúncia deste mundo e de si mesmo: uma espécie de morte cotidiana. Uma morte que se supõe proporcionar a vida em outro mundo (FOUCAULT in BAUMAN, 1998, p. 210).
Isso vai ao encontro dos elementos que Bauman apreende de Touraine
como as “utilidades” da religião. Ela pode servir à dependência e subordinação da
rotina a um ritmo interpretado como natural, invariável e invulnerável, ritmo esse que o
“projeto de modernidade” se propôs a quebrar, representando um colapso para a
religião. Outro elemento seria a manutenção do status quo através das hierarquias
sociais de igrejas e seitas, que se prestam a perpetuar uma estrutura social marcada
pela baixa mobilidade e permanência dos fatores de estratificação. Segundo Bauman,
esse elemento também foi erodido em meio aos processos cada vez mais flexíveis e
difusos da estruturação. A terceira utilidade estudada por Bauman é a da religião como
“apreensão do destino, da existência, e da morte humana” que, segundo Touraine, se
torna isolada “como a dança e a pintura; tornando-se uma atividade de lazer, isto é,
comportamento deliberado, não-regulamentado, pessoal e secreto”. Foi a partir de uma
priorização desse elemento específico que as igrejas e seitas conseguiram se manter
firme nessa mudança de paradigmas contemporânea, o que explica inclusive a forte
ascensão das igrejas neopentecostais, principalmente em países em desenvolvimento,
como no Brasil.
A modernidade foi a responsável por esfacelar um longo domínio do
cristianismo, repelindo a obsessão com a vida após a morte e concentrando sua
atenção no tempo presente. Essa mudança de paradigmas provoca uma mudança nos
valores “terrenos”, buscando desfazer o pavor da morte, imputado por séculos. Com
esse abrandamento do impacto da consciência da mortalidade, e também um
desligamento de sua significação religiosa, Bauman elenca três estratégias que foram
as responsáveis por esse novo sentido:
41
a) A submissão da morte a uma divisão especializada de trabalho, criando uma
nova ramificação da cadeia de serviços. A questão da morte é “retirada da sala”, como
um “evento a não ser discutido em público”. Os profissionais do post-mortem cuidam de
todos os pormenores, do momento da morte até o sepultamento privado do corpo, que
também veio a substituir as grandes cerimônias públicas.
b) A fragmentação da ostensiva ameaça da morte em inúmeras outras ameaças
menores. “A modernidade não produziu outro símbolo para tomar o lugar da sinistra
figura da morte; ela não tem nenhuma necessidade de um símbolo ‘unificado’
alternativo, uma vez que a própria morte perdeu sua unidade do passado” (p. 217). As
ameaças estão difundidas em pequenas doses diárias: nas refeições rápidas e
gordurosas, no sexo sem proteção, no cigarro e suas agressões ativas e passivas,
ácaros microscópicos que causam doenças respiratórias, etc.
c) A espetacularização da morte, retirada da intimidade da partida de um ente
querido, mas trazida a todo momento como instrumento de emoção ou estetização na
mídia. É a morte como fenômeno ordinário dentro da rotina cultural da sociedade. O
impacto, dentro desse contexto, praticamente inexiste, devido à sua recorrência
imagética, seja em informes noticiários ou em espetáculos audiovisuais e artísticos.
A morte, disposta outrora pela religião como uma espécie de acontecimento extraordinário que, não obstante, confere significação a todos os acontecimentos ordinários, tornou-se ela própria um acontecimento ordinário [...] Não mais uma ocorrência momentosa, que conduz à existência de outra, de mais longa duração e mais grave significado mas meramente o “fim de uma história” (BAUMAN, 1998, p. 219).
O próprio progresso tecnológico inserido no campo médico, acaba por
“desvendar”, de maneira lógica e racional, todas as possibilidades acerca dos mistérios
acerca da morte. Sua existência não possui mais as mesmas nuances ligadas ao
misticismo e a um “destino cego”. Suas raízes podem ser explicadas e até mesmo
alongadas.
A partir de todos esses fatores elencados, a competência da vida como uma
urgência foi amplificada. Já não basta apenas dedicar a vida para preparar o seu
terreno post mortem, agora as diretrizes para se orientar são mais imediatas. A vida
42
antes da morte passou a ser o centro da sociedade, ao mesmo tempo que as pessoas
começaram a se voltar mais para si mesmas.
Essa introspecção dos indivíduos em conjunto com uma derrocada do “poder
divino”, também levam ao fortalecimento da, para Bauman, “mais importante criação ou
invenção moderna: o nascimento da identidade”. Esse “reforço identitário” do indivíduo
dentro da esfera social chega a partir do momento que suas “habilidades próprias, sua
capacidade de julgamento e sabedoria de escolha que decidirão qual das possíveis
formas infinitamente numerosas que a vida pode ser vivida [...]” (.p 221). Há uma
transferência de prioridades a respeito das preocupações cotidianas. A segurança
ontológica já não é a grande angústia existencial dos seres sociais. Suas ansiedades
se voltam para a formação, manutenção e solidificação de uma identidade individual,
que também se apropria, como um reflexo, das condições cada vez mais pós-
modernas que nas quais a sociedade se encontra. Ou seja, há também uma crescente
ansiedade com a construção da identidade, visto que ela parece nunca estar completa
e parece sempre prestes a se desmantelar, obrigando a uma nova reconstrução,
formando um ciclo de angústias.
Ao contrário da insegurança ontológica, a incerteza concentrada na identidade não precisa nem das benesses do paraíso, nem da vara do inferno para causar insônia. Está tudo ao redor, saliente e tangível, tudo sobressaindo demais nas habilidades rapidamente envelhecedoras e abruptamente desvalorizadas, em laços humanos assumidos até segunda ordem, em empregos que podem ser subtraídos sem qualquer aviso, e nos sempre novos atrativos da festa do consumidor, cada um prometendo tipos de felicidade não experimentados, enquanto apagam o brilho dos já experimentados (BAUMAN, 1998, p. 221).
A passagem da figura do indivíduo de “produtor e soldado” na era moderna para
a sua periódica formação como ser que procura o prazer e acumula sensações parece
ter modificado um pouco o conceito de sua religião, aqui em seu conceito mais sctricto,
que é o de se religar a um “espírito superior”. Bauman enxerga que as pressões
culturais pós-modernas, ao mesmo tempo que acentuam a busca por experiências
“orgásticas”, também as desligam dos interesses e das preocupações conectadas à
religião.
A partir dessa contínua sensação de insegurança, tanto da sociedade como um
todo, quanto do próprio papel do indivíduo dentro dela, o autor polonês destaca o papel
43
do fundamentalismo religioso como um “remédio radical contra esse veneno da
sociedade de consumo conduzida pelo mercado e pós-moderna - a liberdade
contaminada pelo risco” (p. 228). Isto no sentido de ser um remédio que abole a
liberdade para abolir também os seus riscos decorrentes, sendo uma maneira de
entregar novamente os poderes do indivíduo a um grupo maior e mais responsável
pela condução da autoridade. Para o fundamentalismo, a religião não é uma questão
pessoal, e sim um mapa de vida, legislando sobre cada aspecto da vida, retirando o
fardo da escolha sobre as pessoas que não conseguem suportar a carga da vida pós-
moderna.
Freud já alertava para o comportamento humano como paranóico, em alguma
espectro, pois se propõe a corrigir algum aspecto do mundo que seja insustentável pela
elaboração de um desejo, introduzindo-o, de maneira delirante, na realidade. Em
especial nos casos em que essa readequação da realidade é efetuada por um
considerável número de pessoas. Para ele “as religiões da humanidade devem ser
classificadas entre os delírios de massa desse tipo” (p. 38). Seguindo por uma linha
psicoanalítica, Freud apontava que o indivíduo, descrente e infeliz na sua busca pela
felicidade pode, como uma última saída em busca de satisfações substitutivas,
desenvolver uma psicose, que se assemelha a uma rebelião mental interna. Essa
restrição proposta pela religião, que abarca questões de escolhas individuais em prol
do coletivo, também homogeniza os caminhos para a felicidade humana.
Sua técnica consiste em depreciar o valor da vida e deformar o quadro do mundo real de maneira delirante - maneira que pressupõe uma intimidação da inteligência. A esse preço, por fixá-las à força num estado de infantilismo psicológico e por arrastá-las a um delírio de massa, a religião consegue poupar a muitas pessoas uma neurose individual (FREUD, 1997, p. 42).
Bauman alerta que o fundamentalismo religioso acaba contando com uma
clientela cada vez mais crescente, devido à agonia da solidão e o abandono induzidos
pelo mercado. Mas dialogando com Freud, este afirma que a religião não consegue
nem ao menos cumprir sua promessa, pois no momento em que o crente se propõe a
falar dos desígnios incompreensíveis de Deus, ele passa a admitir que tudo que lhe
restou, “como um último consolo e fonte de prazer possíveis em seu sofrimento, foi
uma submissão incondicional”.
44
2.2.3 A onipresença da imagem
O mundo nunca mais será real, original; tudo está fadado à maldição da tela, do simulacro. Estamos num mundo onde a função essencial do signo consiste em fazer desaparecer a realidade e ao mesmo tempo colocar um véu sobre esse desaparecimento (BAUDRILLARD, 2002, p. 81).
O papel da imagem dentro do contexto que evidencia os elementos formadores
do mal-estar líquido é vital. Porém, nos parece pertinente analisar cronologicamente
algumas questões que cercam a utilização tecnológica e (posteriormente) midiática da
imagem. É a utilização dela como uma poderosa e recorrente propagadora de signos
que nos interessará mais adiante.
Talvez a primeira junção da tecnologia com a representação da imagem tenha
sido a criação da fotografia. O marco principal da fotografia como conceito foi a
utilização da câmara escura, que era capaz de reproduzir um enquadramento da
imagem, desde que seus compostos químicos ficassem expostos durante algum
tempo. Não era possível reproduzir a imagem de elementos que se movessem durante
o período de exposição do material. A primeira fotografia da qual se tem notícia é da
imagem de um telhado, realizada pelo francês Joseph Niépce, em 1826. A imagem
exigiu cerca de 8 horas de exposição para ser impressa quimicamente. Ao mesmo
tempo, outro francês, Daguerre, também realizava experimentos parecidos, inclusive
dando um passo a frente utilizando o processo para realizar efeitos visuais em um
espetáculo chamado “Diorama”. Os dois franceses acabaram inclusive firmando uma
sociedade posteriormente, na qual seguiram avançando em seus experimentos
fotográficos. A fotografia evoluiu e alcançou inclusive a capacidade de reproduzir cores.
Mas foi com a Kodak e uma forte campanha de marketing que, a partir de 1888, a
fotografia começou a se fortalecer também como um produto de consumo,
possibilitando que fotógrafos não-profissionais pudessem dispor de um equipamento de
fácil manuseio e captar suas próprias imagens.
Muitas das experimentações causadas pelo avanço da fotografia também foram
importantes para a criação de um aparelho muito fundamental para a cultura moderna.
Trata-se do cinematógrafo, que se originou como um instrumento para fins científicos,
de acordo com seus criadores, os irmãos Lumiére. Existem divergências históricas a
45
respeito dos primeiros registros sobre aparelhos do tipo, mas a maioria ainda considera
os Lumiére como os precursores. A primeira exibição pública de imagens captadas
pelo cinematógrafo data de 28 de dezembro de 1895, em Paris.
Mas, segundo Anderson (1999), foi a televisão a grande responsável por mudar
os rumos da comunicação de massa, proporcionando um salto único na história da
informação midiática. Ele fortalece, inclusive, o caminho construído pela radiodifusão,
anos antes:
O rádio já se revelara, nos anos de guerra e no período entre guerras, um instrumento muito mais poderoso de conquista social do que a imprensa: não apenas por suas exigências menores de qualificação educacional ou recepção mais imediata, mas acima de tudo por seu alcance temporal. A radiodifusão 24 horas criou ouvintes potencialmente permanentes - público cujos horários de vigília e de escuta podiam ser virtualmente o mesmo. Esse efeito só era possível pelo desligamento entre olho e ouvido, o que significava que muitas atividades - comer, trabalhar, viajar, descansar - podiam ser executadas com o rádio ao fundo. (ANDERSON, 1999, p. 104)
As imagens começaram a irromper no imaginário dos indivíduos, mais do que
nunca, se tornando também modernas no sentido de pertencerem a um inconsciente
de uma sociedade voltada ao progresso e às maravilhas do descobrimento tecnológico.
Mas é também, por consequência desse mosaico de fatores, o começo do
esfacelamento dessa sociedade segura e concreta. “Outrora, em júbilo ou alarmado, o
modernismo era tomado por imagens de máquinas; agora, o pós-modernismo é
dominado por máquinas de imagens” (Anderson, p. 104).
No entanto, a relação que a televisão estabelece com o seu público é muito mais
potente, pois parte justamente da relação com a imagem. “O olho é atingido antes do
ouvido” (1999, p. 104). Em 1954, a televisão em cores surge, vindo a se consolidar
como bem de consumo na década de 1970, e conquistando definitivamente os lares
das famílias ocidentais, se tornando, inclusive, um símbolo de status e de consolidação
do modelo capitalista (juntamente com o automóvel).
O que o novo veículo trouxe foi uma combinação de poder sequer sonhada: a contínua disponibilidade do rádio com um equivalente ao monopólio perceptivo da palavra impressa, que exclui outras formas de atenção do leitor. A saturação do imaginário é de outra ordem. (ANDERSON, 1999, p. 104)
46
Nesse sentido, Teixeira Coelho se utiliza da denominação “ século do
audiovisual”, ao posicionar essa junção de som e imagem como um fator decisivo para
a superexposição de signos que a sociedade sofre. O autor brasileiro se utiliza do
exemplo da MTV para explicitar essa relação, ao aproximar ainda mais a função do
rádio à imagem. A televisão acaba se propondo a criar uma “imagem ambiente”,
proporcionando uma sensação visual análoga à sensação auditiva. E a predisposição
dos indivíduos a serem constantemente banhados por signos visuais e auditivos parece
se adequar perfeitamente à nova realidade. “Que a imagem penetre tão
incontrolavelmente no indivíduo quanto nele penetre o som: independente da sua
vontade. Esta é a proposta da pós-modernidade televisual [...]” (p. 163), tratando
bastante da forma como grande parte da sociedade passou a “consumir” audiovisual.
Enquanto temos um exemplo bem brasileiro da audiência de telenovelas, produto já
pensado sob esses termos, com um roteiro e decupagem redundantes e que possa
permitir que uma pessoa que ficou algum tempo sem assistí-la possa recuperar seu
ponto dentro da narrativa, devido aos constantes diálogos auto-explicativos. É um
modelo típico desse padrão de consumo, visto que “quando as pessoas voltam para
suas casas, o primeiro gesto que estatisticamente fazem é ligar a TV, mesmo que nada
pretendam assistir naquele momento”, fazendo com que essa visualidade intermitente
seja também uma dama de companhia. “Essa velha TV sempre ligada que,
ocasionalmente, fornece às pessoas uma imagem entre duas garfadas ou entre uma
página e outra do jornal lido no momento, funciona mais como um rádio. Um ambiente
visual” (p. 163).
A superexposição imagética só teria outro boom igual quando uma rede capaz
de conectar computadores por todo o globo, sem filtros ou distinções, se consolidou. A
internet atuou como um doping para todo o processo de aceleração que envolve as
diversas camadas do sistema capitalista. Ela possibilitou que a globalização atingisse
um outro nível, além de uma forma não puramente mercadológica. Passou a ser, ao
mesmo tempo, responsável pela overdose de informações que recebemos atualmente.
Estar online é uma constante, seja no trabalho, na aula, em casa, com amigos e
conhecidos. Seja no notebook, no computador do trabalho, no celular. Se algo
demanda esforço exacerbado, basta se desconectar. Como somos capazes de
47
absorver essa overdose de informações? De onde provém essa ansiedade cada vez
mais constante? Todos os tempos se aceleram. Santaella (2012) afirma:
Não é à toa que as linguagens já tomaram literalmente conta do mundo. Estejamos ou não atentos a isso, estamos dia e noite, em qualquer rincão do planeta, com maior ou menor intensidade, imersos em signos e linguagens, rodeados de livros, jornais, revistas, de sons vindos do rádio ou dos discos laser e das fitas, somos bombardeados por imagens, palavras, música, sons e ruídos vindos da internet, rede das redes, podemos navegar através da informação e nos conectar com qualquer parte do mundo em fração de segundos (SANTAELLA, 2012, p. 28).
A pós-TV, como Teixeira chama a MTV, vai em direção aos preceitos da
modernidade líquida, ao se encontrar em constante mudança, como mostra, inclusive,
a identidade visual da empresa. Há também um ponto importante dentro dessa
liquefação midiática: a confluência de entretenimento, informação e publicidade.
Atualmente, é cada vez mais complicado dissociar uma expressão midiática de seu
verdadeiro intuito, visto que o mercado publicitário e de marketing se voltaram para
essa constante manifestação de signos, ainda maior com a popularização da internet e
dos smartphones, que aumenta progressivamente o tempo de exposição a essas
manifestações. Para Teixeira, o exemplo da MTV é claro: “o programa é um comercial.
O clip é mostrado apenas para vender a música, as gravadoras sustentam a MTV para
que ela transforme seus produtos em sucessos de venda” (p. 167).
Baudrillard (2004), traça um paralelo com esse “bombardeio de signos, que a
massa supostamente repercute” e o que Teixeira levanta. Para o francês, isso é
informação, e não uma maneira de comunicar nem de expressar sentido, mas um
“modo de emulsão incessante, de input-output, e de reações em cadeias dirigidas [...].
É preciso liberar a ‘energia’ da massa para dela se fazer o ‘social’” (p. 25). Essa
discussão ética passa pela cultura do narcisismo, que está atrelada diretamente à
cultura de consumo. No momento em que desencoraja a iniciativa e a autoconfiança,
também incentiva a dependência, a passividade e o estado de espírito típicos do
espectador. Esse estímulo a ética aparente do hedonismo, cujo resultado perverso,
uma vez que não está ao poder de todos os indivíduos, é um estado de “permanente
desconforto espiritual e ansiedade crônica. Ou de iminente criminalidade (como é fácil
48
constatar num país de fortes desigualdades sociais como o Brasil)” (Teixeira Coelho, p.
177).
É dessa forma que a explosão imagética adquire seu papel como um fator
angustiante do mal-estar líquido. À medida que passa a servir quase como um
“inconsciente” de seus espectadores, e misturar desejos provenientes de tantas fontes
e com tantos objetivos distintos, sem a possibilidade de um “consumidor midiático”
menos atento fazer sua própria diferenciação, esse bombardeio estabelece também
uma confusão existencial difícil de desvincular. Como Baudrillard sustenta: “O conteúdo
das mensagens, o significado dos signos, em grande parte, são indiferentes” (p. 26),
mais valendo a transmissão dos mesmos. Essa integração se torna perigosa, na
medida que não é possível mais estabelecer limites, as zonas de absorção estão cada
vez mais confluidas. Bauman já estabeleceu que “No estágio em que nos encontramos,
grande parte do ‘progresso’ cotidiano consiste em reparar os danos diretos e colaterais
provocados pelos esforços para acelerá-los” (p. 101). E isso vem ao encontro dos
medos que se agigantam quando se percebe que “o poder que os meios de
comunicação de massa exercem sobre a imaginação popular, coletiva e individual.
Imagens poderosas, ‘mais reais que a realidade’, em telas ubíquas, estabelecem os
padrões de realidade e de sua avaliação” (p. 99).
2.2.4 Estética na modernidade líquida
Dentro desse universo no qual tudo está em constante movimento, e sendo que
esses movimentos parecem “aleatórios, dispersos e destituídos de direção bem
delineada” (p.121), Bauman (1998) evoca a impossibilidade de se pensar em
vanguarda dentro do cenário pós-moderno. Ao passo que a ideia de vanguarda exige
um certo ordenamento de espaço e tempo que possa ser seguido dentro de uma certa
organicidade, fica difícil pensar a arte nesses termos nos quais não se tem certeza do
que é “progressivo” e do que é “regressivo”.
[...] pode-se dizer que o limite natural para a aventura da vanguarda foi atingido na tela em branco ou queimada, nos desenhos raspados de Rauschenberg, na galeria vazia de Nova York quando do vernissa de Yves Klein, no buraco desencavado por Walter de Maria em Kassel, na composição silenciosa para
49
piano de Cage, na “exibição telepática” de Robert Barry, com páginas vazias de poemas não escritos (BAUMAN, 1998, p. 127).
O autor polonês conclui que o limite das artes vivido como uma permanente
revolução foi a sua autodestruição. Não havendo caminho a seguir, parece que o mais
natural é que a arte se implodisse para tentar gerar algo novo, tentando resignificar seu
próprio paradigma.
A arte acaba por compartilhar uma situação reflexo dentro da cultura como um
todo no período líquido, que, como Baudrillard já manifestou, é uma cultura do
simulacro, não da representação. Para o filósofo francês, a arte desaparece em sua
expressão como pacto simbólico, ao passo que, anteriormente, se distinguia pela pura
e simples produção de valores estéticos, aos quais ele denomina a própria cultura.
Já não existe uma regra fundamental ou um critério de julgamento nem de
prazer, e isso se deve bastante aos aspectos da sociedade líquida: proliferação dos
signos ao infinito e reciclagem das formas passadas e atuais. Esse fenômeno
transestético não propicia que as obras interajam a ponto de formar um referencial de
cultura que possa ser decodificado. Todo o liberalismo nas diversas frentes da
sociedade acabaram repercutindo também culturalmente, e Teixeira Coelho repercute
de uma maneira mais objetiva, e menos densa, ao dizer que “a ‘obra’ de arte pode ser
uma simples ideia, qualquer ideia pode ser uma ‘obra’ de arte, portanto não há muita
distinção entre arte e vida, e então todo mundo pode ser artista” (p. 141).
Esse processo de estetização de mundo, que a arte acaba por sofrer
conjuntamente, é um processo mais relativo a uma priorização de aspectos estéticos
em detrimento de alma ou de algum aspecto mais relevante em termos de conteúdo. A
forma passa a ser tão vangloriada quanto uma junção de forma e conteúdo, devido à
confusão dos valores e das transmutações frequentes. É uma “semi-urgia de cada
coisa através da publicidade, da mídia, das imagens. Até o mais marginal, o mais
banal, o mais obsceno estetiza-se, culturaliza-se, musealiza-se. Tudo é dito, tudo se
exprime, tudo toma força ou modo de signo” (p. 23), como Baudrillard (2006) exprime.
A importância de uma obra de arte é medida muito mais pela sua potência de
publicidade e notoriedade. Bauman completa que “não é o poder da imagem [...] que
decide a ‘grandeza’ da criação, mas a eficiência das máquinas reprodutoras e
50
copiadoras”, se utilizando do exemplo de Andy Warhol, que subverteu e transformou
essa lógica da forma e da reprodução artística no próprio conteúdo de suas obras.
Essa explosão ligada à publicidade está diretamente relacionada com a
impossibilidade de qualquer avaliação estética. “O valor explode na ausência de
julgamento de valor” (2006, p. 26), e o significado da arte na modernidade líquida é
justamente o da desconstrução do significado. Ao impulsionar o processo de
composição do significado e tentar defendê-lo contra seu esvaziamento, a arte líquida
alerta para a complexidade de toda interpretação. A racionalidade nunca esteve tão
aflorada no devir estético. É preciso racionalizar a forma para se chegar ao conteúdo.
Uma vez que a liberdade toma o lugar da ordem e do consenso como critério de qualidade de vida, a arte pós-moderna de fato ganha muitos pontos. Ela acentua a liberdade por manter a imaginação desperta e, assim, manter as possibilidades vivas e jovens (BAUMAN, 1998, p. 136).
Todos esses fatores contribuem para que a crise de realidade afete a maneira
como se assimilam as obras de arte, e por consequência, os filmes. O próprio Haneke,
reconhecido pela maneira crua com que mostra a violência em seus filmes, se
preocupa com a maneira de abordá-la, justamente pelo fato da vulgarização de alguns
fatores na mídia. “Como posso mostrar ao espectador a sua própria posição vis-à-vis
com a violência e seu retrato?”, para em seguida tentar responder “para isso, é preciso
encontrar formas que os meios de comunicação não degradem de maneira oportunista,
transformando-as em cínica hipocrisia”. Muitas críticas vieram quando do lançamento
de Violência gratuita, em 1997, pela violência explícita da qual o filme se utilizava para
retratar a abdução de uma família de classe média alta por dois jovens em um fim de
semana. O mais interessante é que a construção cênica de Haneke foi pensada
justamente para passar a sensação de uma violência contínua, porém, não há em
nenhum frame do filme um ato violência explícita realmente exibida. Ela jamais é
mostrada em quadro, sendo utilizados elementos de montagem e desenho de som
para causar essa sensação.
Foi através de Violência gratuita que Haneke também tomou uma decisão
cercada de controvérsia: dez anos após lançar o filme, produzido na Alemanha, o
diretor realiza uma refilmagem “hollywoodiana”, utilizando atores de mais renome e
51
fama, como Naomi Watts, Tim Roth e Michael Pitt. Chamado por alguns de oportunista,
o que Haneke fez foi exatamente levar ao foco de sua crítica o filme da maneira mais
visível possível. Sem realizar nenhuma concessão em termos de público - o filme é
decupado exatamente da mesma maneira que o original - ele se adequa em questões
superficiais para tentar atingir a sociedade tida como das mais violentas e midiatizadas
do mundo. Em entrevista para Christopher Sharret, ele fala de sua relação com a
televisão e a violência:
Estou mais preocupado com a televisão como o símbolo da chave, principalmente da representação da mídia sobre a violência e, geralmente, de uma crise maior, que eu vejo como a nossa perda coletiva da realidade e desorientação social. A alienação é um problema muito complexo, mas a televisão é certamente implicada nisso. [...] Nosso horizonte experiencial é muito limitado. O que sabemos do mundo é pouco mais do que o mundo mediado, a imagem. Nós não temos nenhuma realidade, mas um derivado da realidade, o que é extremamente perigoso, mais certamente do ponto de vista político, mas em um sentido mais amplo para a nossa capacidade de ter um senso palpável da verdade da experiência cotidiana. (HANEKE, 2010, p. 585).
Dessa forma, a maneira com que ele encontrou para “forçar” a discussão no
terreno norte-americano foi marcada como um ato de vanguarda artística, por assim
dizer. Reproduzir a própria obra para imergí-la no objeto maior de sua crítica. Seu
incômodo com relação ao conteúdo também encontrou vida na relação com as
inovações tecnológicas oriundas da modernidade líquida: “A inovação técnica do meio
eletrônico mudou o mundo e há muito que derrubou a concepção da realidade do
século XIX - agora é o momento para os chefes de programação reagirem a isso em
relação ao conteúdo” (2010, p. 579).
A mistura frequente e indissolúvel entre arte, mídia, publicidade e todos os
aspectos audiovisuais que parecem estar cada vez mais entrelaçados tornam cada vez
mais propícia a confusão em relação a esses “líquidos”. A exposição que os indivíduos
se propõem com suas próprias vidas, principalmente na época atual, com a
democratização de smartphones e internet banda larga, faz parte de um processo para
atingir sua própria independência e reconhecimento perante os outros. “Todo mundo
tenta fazer de sua vida uma obra de arte”, já alertou Bauman (2001). E completa “Essa
52
obra de arte que queremos moldar a partir do estofo quebradiço da vida chama-se
‘identidade’” (p. 97).
A vanguarda parece ter sumido a partir do momento em que arte e realidade se
reconhecem tanto, principalmente a partir de sua utilização como mídia e da
apropriação das próprias identidades por pessoas das mais diversas faixas etárias e
sociais como fator midiático. Todos contribuem para a explosão de signos e imagens
que tomam conta do círculo midiático. É impossível estar desconectado, mas como a
mente humana pode reagir a um tornado tão intenso de informações?
2.3 O MAL-ESTAR LÍQUIDO
Após termos elaborado um panorama dos fatores, que denominamos
“angustiantes” e que são responsáveis por estabelecer um desalinho nos paradigmas
modernos, conseguimos compreender um pouco da evolução histórica-social que a
sociedade sofreu na modernidade líquida. A partir dessa revisão de influências,
podemos nos ater às consequências, diretas ou indiretas, que esses fatores
resignificados provocam dentro da sociedade líquida.
Mas o que seria exatamente esse “mal-estar”? Como podemos chegar a um
conceito que explique o que o “mal” quer dizer dentro dessa sensação na sociedade
líquida? Bauman conceitua o “mal” pelo “próprio fato de ser ininteligível, inefável e
inexplicável”. Para ele, aquilo que não possui uma definição clara a respeito de como
proceder moralmente pode ser caracterizado como um elemento “mal”.
Podemos dizer o que é “crime” porque temos um código jurídico que o ato criminoso infringe. Sabemos o que é “pecado” porque temos uma lista de mandamentos cuja violação torna os praticantes pecadores. Recorremos a ideia de “mal” quando não podemos apontar que regra foi quebrada ou contornada pela ocorrência do ato para o qual procuramos um nome adequado. (BAUMAN, 2008, p. 74).
Para o polonês, esse conceito sofre uma resignificação, assim como os fatores
angustiantes, à medida em que a revolução tecnológica auxilia a desintegrar os pilares
das poucas certezas que ainda restam. Quanto mais difusas as regras que regem a
sociedade liquida, mais propenso é o “mal” a se espalhar pelas suas entranhas. Ele
53
completa que “a racionalidade moderna progrediu em direção à liberdade, segurança
ou felicidade sem se perturbar com o grau em que suas formas eram adequadas para
se tornarem propriedades humanas universais” (p. 88), ou seja, o fluxo das
necessidades humanas foi sendo acelerado e exacerbado sem um projeto que os
abarcasse, tornando a sociedade cada vez mais líquida em sua essência.
Bauman toca na questão do “mal moral” e de como a sociedade não sabia o
quanto esse mal poderia se naturalizar com espanto antes de Auschwitz, Gulag ou
Hiroshima. Para ele, a consequência mais premente disso é a atual crise de confiança,
sobre a impossibilidade de verificar a origem do mal, ou de desvendá-lo imediatamente:
A confiança está em dificuldades no momento em que tomamos conhecimento de que o mal pode estar oculto em qualquer lugar; que ele não se destaca na multidão, não porta marcas distintivas nem carteira de identidade; e que todos podem estar atualmente a seu serviço, ser seus reservistas em licença temporária ou seus potenciais recrutas (BAUMAN, 2008, p. 91)
O polonês traz um exemplo propositadamente exagerado e malicioso, ao falar
que Eichman, responsável por muitas mortes durante Auschwitz, não era um demônio.
Ele, como todos nós, apenas preferia seguir em sua zona de conforto, dentro de uma
burocrática hierarquia de poderes que lhes eram conferidos. É a mecanização ética,
que consiste na utilização da burocracia apenas como um elemento que exige a
conformidade à norma, não a avaliação moral e substitui a responsabilidade “por” pela
responsabilidade “perante”, chamada de “responsabilidade flutuante”.
Esse instrumento da mecanização ética também se aplica aos meandros da
sociedade de consumo, pois “traduz as escolhas morais em atos de seleção da
mercadoria certa”. Todos os impulsos morais podem ser descarregados de acordo com
o produto que se compra, seguindo as normas da indústria da biotecnologia,
farmacêutica e bioengenharia. “A ‘tranquilização ética’ vem em um pacote que também
traz a consciência limpa e a cegueira moral” (p. 118), sendo que o liberalismo
conseguiu alcançar, inclusive, as absolvições éticas dos indivíduos. Claro, ao preço do
produto.
Mesmo esse aparato não é o bastante para aliviar a ansiedade provocada pelo
mal-estar líquido. Um dos paradoxos líquidos-modernos é justamente a inversamente
proporcional entre o crescimento da distância espacial e da distância temporal. O que
54
pareceria, a princípio, uma fonte de segurança para amenizar nossos medos, a
aceleração tecnológica acaba criando mais escapes para amplificar a ansiedade.
Com o crescimento da distância espacial, crescem também a complexidade e a densidade da malha de influências e interações; com o crescimento da distância temporal, cresce também a impenetrabilidade do futuro, aquele outro “absoluto”, notoriamente incognoscível (BAUMAN, 2008, p. 131).
Essa obsessão com a segurança passa a ser também uma marca da
modernidade líquida. A intolerância a qualquer brecha no fornecimento da segurança
“se torna a fonte mais prolífica, auto-renovável, e provavelmente inexaurível de nossa
ansiedade e de nosso medo” (p. 169). Com a revolução tecnológica, a promessa de
atingir a “segurança total” - uma vida completamente livre do medo - se tornou
palpável, porém sempre esmagada pelas ansiedades crônicas que também se
amplificam, desembocando no fato de que “a frustração das esperanças acrescenta ao
dano da insegurança o insulto da impotência - e canaliza a ansiedade para um desejo
de localizar e punir os culpados, assim como ser indenizado pelas esperanças traídas”
(p. 170).
O único segmento que se beneficia dessa contínua percepção de medo é o
mercado, que naturalmente cria novas demandas para serem atendidas buscando uma
sensação de segurança. A partir do momento em que as defesas mantidas pelo Estado
contra algumas inseguranças vão sendo engolidas pelo mercado competitivo, como os
sindicatos e outros instrumentos de barganha coletiva, somente resta aos indivíduos
buscar respostas solitárias para suas inseguranças. O mercado atua em direção oposta
ao Estado social, e a individualização é uma constante.
Todas essas consequências formam uma camada intangível, porém
onipresente, que transparece o que chamamos de mal-estar líquido. Suas
interligações, responsáveis por provocar uma ansiedade e uma insegurança cada vez
maior, tanto na sociedade quanto no indivíduo, formam a intricada teia de relações que
tornam a vida pós-moderna tão efêmera. Elas constituem aquela sensação de que algo
está errado, porém sem uma visão tão clara e objetiva dos motivos que provocam esse
sentimento.
55
2.3.1 A resignificação do paradigma global: liberdades e seguranças
A globalização, processo internacional de interação econômica, cultural, política
e social, cujo principal “braço” foi o liberalismo econômico, provocou uma absorção em
escala mundial das mudanças cada vez mais bruscas dentro da sociedade capitalista
ocidental. Seus principais centros econômicos agora eram capazes de atingir toda sua
cadeia em questão de poucas horas.
A abertura de mercado e uma falsa noção de comunidade global acabam
acarretando o que muitos autores chamam de “globalização negativa”, inclusive
Bauman, que a caracteriza como uma “globalização altamente seletiva do comércio e
do capital, da vigilância e da informação, da coerção e das armas, do crime do
terrorismo, todos os quais agora desdenham da soberania nacional e desrespeitam
qualquer fronteira entre os Estados” (p. 126). Esse ascensão negativa, liderada pelos
Estados Unidos e seus “satélites”, como o Banco Mundial, o Fundo Monetário
Internacional e a Organização Mundial do Comércio, acabam por estimular
acontecimentos subsidiários que aquecem o nacionalismo, o fanatismo religioso, o
fascismo e o terrorismo.
Para Bauman, essa “abertura” da sociedade líquida se torna um convite para
deixar seus desígnios nas mãos do “destino”, sendo seus golpes provenientes de
“adversidades que os seres humanos poderiam evitar, e para comunicar nem tanto a
natureza peculiar desses golpes em si, mas o reconhecimento da incapacidade
humana de prevê-los, que dirá evitá-los ou controlá-los” (p. 16). A ausência de um
conforto existencial para se agarrar obriga as pessoas a se concentrar na segurança ou
na sensação de segurança para poder sentirem-se salvaguardadas.
Outra consequência vital da globalização foi a compressão do espaço-tempo, e
principalmente, da maneira como ela refletiu dentro da sociedade. Harvey já
questionava a impossibilidade de lidar com a aceleração do ritmo de vida ao mesmo
tempo que o espaço global parece “encolher”. Essa imagem de compressão se aplica
perfeitamente ao imaginário líquido, visto que houve uma transferência do tempo
calcado pela rotina e que o ligava profundamente ao solo e ao concreto, na figura das
fábricas e dos maquinários, para o tempo do software, da internet e da irrelevância do
56
espaço, desatrelando também o capital do “sólido”. Bauman também divaga sobre essa
nova estruturação do paradigma “espaço-tempo” dentro da modernidade líquida, no
qual o tempo “instantâneo e sem substância” do mundo virtual é também “um tempo
sem consequências”. “‘Instantaneidade’ significa realização imediata, “no ato” - mas
também exaustão e desaparecimento do interesse” (2001, p. 137).
A manutenção desse ciclo entre capital e insegurança é peça chave para
entender o mal-estar líquido. Em termos: o capital não está mais amarrado, pois o
“trabalho sem corpo” da era líquida permite que ele seja extraterritorial, volátil e
inconstante. E assim sendo, ele pode “viajar rápido e leve, e sua leveza e mobilidade
se tornam as fontes mais importantes da incerteza para todos o resto” (p. 141). Seu
nível de mobilidade espacial é grande o suficiente para “chantagear” as agências
políticas dependentes do território e fazê-las se resignarem a suas pedidas. Governos
de todo o mundo, mas principalmente, os de países em desenvolvimento, como o
Brasil, ainda se vêem obrigados a adularem grandes empresas para serem
beneficiados (de uma maneira nem sempre tão clara, e nem sempre tão benéfica) por
um incremento no PIB e uma abertura de possibilidades de empregos. Essa adulação
significa “ajustar o jogo político às regras da ‘livre empresa’, usando o poder regulador
à disposição do governo a serviço da desregulação[...]” (p. 172). Ao mesmo tempo,
grande parte do capital comercial é acumulado a partir do medo e da insegurança.
Freud também já acenava com essa relação não tão bem resolvida:
Durante as últimas gerações, a humanidade efetuou um progresso extraordinário nas ciências naturais e em aplicação técnica, estabelecendo seu controle sobre a natureza de uma maneira jamais imaginada [...] o poder recentemente adquirido sobre o espaço e o tempo, a subjugação das forças da natureza, consecução de um anseio que remonta a milhares de anos não aumentou a quantidade de satisfação prazerosa que poderiam esperar da vida e não os tornou mais felizes (FREUD, 1997, p. 44).
A sociedade líquida se encontra diante de uma equação distante de ser
equilibrada. A relação entre a liberdade e a segurança parece cada vez mais complexa
diante de um mundo hiperbolizado em todas as suas searas. Mas ao contrário do que a
“modernidade sólida” buscava, a insegurança contemporânea não é fruto de uma
carência de proteção, em nenhum momento da história da civilização estivemos mais
57
protegidos, mas ao mesmo tempo, nunca antes nos sentimos tão inseguros. Isso se
deve às características próprias da modernidade líquida, que são capazes de
potencializar perdas e danos, ao mesmo tempo que a efemeridade dos valores, que
anteriormente poderiam servir como salvaguarda, torna qualquer piso instável. Não há
garantias de onde se está pisando e o chão pode desabar a qualquer instante.
Bauman atesta que o sofrimento humano, e consequentemente, o medo de
sofrer, provém do poder da natureza em contraposição à fragilidade de nossos corpos.
A regulamentação de leis que ajustem nossas relações familiares, sociais e perante o
Estado são uma forma de tornar mais tolerável essa discrepância e essa impotência
perante o natural, porém, essa inadequação das regras líquidas tornam essa linha
bastante tênue. O polonês segue:
O enervante senso de insegurança não teria brotado não fosse pela ocorrência simultânea de duas transformações: a sobrevalorização dos indivíduos libertados das restrições impostas pela densa rede de vínculos sociais. Mas uma segunda mudança ocorreu logo em seguida: a fragilidade e vulnerabilidade sem precedentes desses indivíduos, privados da proteção que lhes era oferecida trivialmente no passado por aquela densa rede de vínculos sociais (BAUMAN, 2007, p. 64).
Complementando, ele assinala que os medos “especificamente” modernos
nasceram quando do início da desregulamentação e do processo agudo de
individualização, no qual os “vínculos inter-humanos de parentesco e vizinhança,
estreitamente atados por laços comunitários ou empresariais, aparentemente eternos
[...] tinham sido afrouxados ou rompidos” (p. 73). Era através da artificialização dos
vínculos “naturais” que o modo sólido-moderno de administração do medo se calcava,
dando forma a associações, sindicatos e coletividades de tempo parcial, que
unificavam os interesses compartilhados. Em consonância com sua visão, Bauman traz
a fala de Alexander Hamilton, que caracteriza essa tendência social pela escolha da
segurança, mesmo que pague seu preço:
A violenta destruição da vida e da propriedade inerente à guerra, o esforço e o alarme contínuos resultantes de um estado de perigo constante, vão compelir as nações mais vinculadas à liberdade a recorrerem, para seu repouso e segurança, a instituições cuja tendência é destruir seus direitos civis e políticos. Para serem mais seguras, elas acabam se dispondo a correr o risco de serem menos livres (HAMILTON, in BAUMAN, 2007, p. 15).
58
Esse pêndulo entre segurança e liberdade acaba por afetar profundamente a
forma como a vida em comunidade se dispõe. Elas são difíceis de conciliar sem atrito e
o desequilíbrio entre elas pode pender perigosamente para fora de qualquer ética
social, pois “segurança sem liberdade equivale a escravidão; e a liberdade sem
segurança equivale a estar perdido e abandonado” (p. 24).
2.3.2 A comunidade líquida
A readequação dos paradigmas sólido-modernos provocaram uma modificação
no conceito de comunidade que antes permeava a sociedade. A abertura dos
espectros, ao mesmo tempo que possibilitava uma liberdade maior para os indivíduos,
também os deixava mais “soltos” e sem ter no que “se agarrar”. Para Bauman, Jock
Young condensa essa modificação de forma sucinta: “[...] precisamente quando a
comunidade entra em colapso, a identidade é inventada”. Para ele, a necessidade
pungente do indivíduo se auto-afirmar como um ser único e especial, ao mesmo tempo
que precisa se sentir pertencente a uma comunidade, mesmo que em menor grau, é
uma das consequências das aberturas da sociedade líquida.
Os laços sociais e as formas de parcerias passam a ser tratados como passíveis
de serem consumidas, e não elaboradas e desfrutadas. As diretrizes das relações
sociais contam agora com os mesmos critérios de avaliação de todos os outros objetos
de consumo. O que dá valor às coisas não é “o suor necessário à sua produção (como
diria Marx), ou a renúncia necessária para obtê-las (como sugeriu Simmel), mas um
desejo em busca de satisfação” (p. 117), e a partir disso, fica claro que para criar valor
para algo, basta criar uma intensidade suficiente de desejo. A sociedade de consumo,
como já vimos, produz consumidores, inclusive e acima de tudo.
Bauman relaciona o imediatismo da modernidade líquida com a cadeia de
desejos do indivíduo como ser-consumidor. A ampliação de possibilidades de
consumos torna o desejo de satisfação muito maior que a real possibilidade de
concretizá-lo. Sobre isso:
59
Pessoas inseguras tendem a ser irritáveis; são também intolerantes com qualquer coisa que funcione como obstáculo a seus desejos; e como muitos desses desejos serão de qualquer forma frustrados, não há escassez de coisas e pessoas que sirvam de objeto a essa intolerância. Se a satisfação instantânea é a única maneira de sufocar o sentimento de insegurança (sem jamais saciar a sede de segurança e certeza), não há razão evidente para ser tolerante em relação a alguma coisa ou pessoa que não tenha óbvia relevância para a busca da satisfação [...] (BAUMAN, 2001, p. 189).
Porém, ao mesmo tempo que a emancipação de uma camada da sociedade foi
efetivada, a supressão de outra foi ainda mais longe. Não é como se a abertura da
sociedade se desse de uma maneira democrática e livre, principalmente levando-se em
conta a forma como o sistema capitalista exerce sua influência. Se estabelece um
cenário de tantas possibilidades que se cria a imagem de que todos podem postular um
lugar na sociedade de consumo. Todos são passíveis de serem atendidos na sua
condição de consumidor. A meritocracia é implantada como uma forma de
“democratizar” as postulações hierárquicas dentro da sociedade líquida, como se elas
já não fossem necessariamente muito distantes entre si para serem alcançadas. Para
Bauman, a “ideia de que o mérito, e só o mérito, deve ser premiado é prontamente
transformada numa carta autocongratulatória com que os poderosos e bem-sucedidos
atribuem generosos benefícios a si próprios a partir dos recursos da sociedade”. Essa
abertura de “possibilidades” e sua suposta democratização fazem com que a sociedade
na qual a “incapacidade de exibir alguma capacidade especial é tratada como base
suficiente para a condenação a uma vida de submissão” (2008, p. 56).
Bordieu já observava que “o estado de permanente precarité - insegurança
quanto à posição social, incerteza sobre o futuro de sobrevivência e a opressiva
sensação de ‘não segurar o presente - gera uma incapacidade de fazer planos e seguí-
los” (p. 42), ou seja, é cada vez mais difícil, na modernidade líquida, elaborar planos a
médio e longo prazo. A impossibilidade de uma visão mais clara do horizonte obriga as
pessoas a se cercarem de todas as suas possibilidades dentro do agora. O
imediatismo é a regra e o presente parece se adonar do futuro.
Essa urgência afeta também as construções de comunidade e de vida em
sociedade, visto que são noções que foram construídas dentro de um longo período de
tempo. As “comunidades líquidas” estão prontas para serem firmadas dentro de uma
lógica urgente, e que possa ser igualmente desfalecida, se for preciso. Sobre isso:
60
Em suma: foi-se a maioria dos pontos firmes e solidamente marcados de orientação que sugeriam uma situação social que era mais duradoura, mais segura e mais confiável do que o tempo de uma vida individual. Foi-se a certeza de que “nos veremos outra vez”, de que nos encontraremos repetidamente e por um longo porvir - e com ela a de que podemos supor que a sociedade tem uma longa memória e de que o que fazemos aos outros hoje virá a nos confortar ou perturbar no futuro; de que o que fazemos aos outros tem significado mais do que episódico, dado que as consequências de nossos atos permanecerão conosco por muito tempo depois do fim aparente do ato - sobrevivendo nas mentes e feitos de testemunhas que não desaparecerão (BAUMAN, 2008, p. 47).
Essas eram a base do que Bauman chama de “fundamento epistemológico” da
experiência de comunidade, que agora parece cada vez mais distante de ser
compartilhada à maneira que sua caracterização permitia. Não é mais possível exercer
um compartilhamento de experiência duradoura e uma interação longa, frequente e
intensa. Por mais que as metrópoles e grandes cidades se multipliquem pelo globo, a
proximidade não é mais sinal de aproximação. A própria estrutura da cidade é uma
representação da modernidade líquida, com seus “estranhos em extrema proximidade
o tempo todo” (p. 129). As massas em proximidade não mais podem ser reconhecidas,
são aglutinações de estranhos sem um denominador comum que não seja o medo.
Bombardeadas de estímulos, de mensagens e de testes, as massas não são mais do que um jazigo opaco, cego, como os amontoados de gases estelares que só são conhecidos através da análise do seu espectro luminoso. Não se trata mais de expressão ou de representação mas somente de simulação de um social para sempre inexprimível e inexprimido. A massa torna-se um sujeito, e ninguém pode falar em seu nome. Não sendo sujeito, não podem ser alineadas, nem por sua própria linguagem nem em alguma outra que pretendesse falar por elas (BAUDRILLARD, 2004. p. 23).
2.3.3 Impulsos e afetos
Uma das maneiras mais intensas de o ser humano se relacionar sempre foi
através do afeto, em seus diversos níveis de circulação dentro dos relacionamentos. O
“amor”, antes um componente da solidificação da família, composta por um homem,
uma mulher e seus filhos, se libertou. Em 1930, Freud alertava que “A civilização atual
deixa claro que só permite os relacionamentos sexuais na base de um vínculo único e
61
indissolúvel entre um homem e uma só mulher, e que não é de seu agrado a
sexualidade como fonte de prazer por si própria” (p. 63). Porém, poucas décadas
depois, a família sólida tradicional se esfacela, sendo substituída pelas mais variáveis
formas de estruturas familiares. Toda forma de amor, dentro dos limites legais, é
permitida (ainda que muitas vezes ainda discriminada), e seus agentes estão muito
mais perto de uma expressão genuína desses sentimentos. Mesmo assim, ainda há
uma dose considerável de homofobia, machismo e, principalmente, insegurança. A
abertura geral da sociedade tornou o amor muito mais passível de ser tocado, mas
também o tocou com as consequências líquidas da sociedade contemporânea. O amor
se tornou líquido.
O desejo dentro da sociedade de consumo acaba se interligando com o desejo
afetivo e sexual. Para Bauman (2009), desejo e amor são irmãos, porém o desejo é a
“vontade de consumir; absorver, aniquilar, devorar, ingerir”. Como essência, o desejo
seria um impulso de destruição, enquanto o amor seria uma vontade de preservação.
“Se o desejo se autodestrói, o amor se autoperpetua” (p. 24). Mas na sociedade
líquida, as pulsões sexuais, o desejo e o amor acabam se confundindo em meio a
tantas variáveis e possibilidades.
Em meio à efemeridade dos pilares sociais, estar em um relacionamento
também pode ser uma maneira de tentar buscar alguma segurança, mas em termos
líquidos, não há erro maior. “‘Estar num relacionamento’ significa insegurança
permanente” (p. 29), sendo que o suposto alento é um dos principais causadores de
insegurança nos tempos líquidos. Aspectos psicológicos estão intrinsecamente ligados
a esses fatores, e a auto-projeção é um artifício muito comum na rotina dos
relacionamentos e o fato de “eleger” um indivíduo para se conectar conosco é um
“poder” digno de auto-deleite: “Não é verdade que uma parte de meu singular valor foi
repassado para a pessoa que eu(lembrem-se: eu, a minha pessoa, exercendo minha
vontade e o meu arbítrio soberanos) escolhi [...]” (p. 33), ou seja, é um componente a
mais para nos fortalecermos enquanto indivíduo, ainda que absorvendo outro para
construir uma persona mais forte perante a sociedade.
Há um ponto importante a ser destacado, que Freud trabalha bastante, é a
questão do desejo sexual como um desejo primitivo e parte da agressividade natural do
62
ser humano. Ele destaca o fato de que a civilização impôs algumas condições para
“amansar” o homem, em troca de outras benfeitorias. A agressividade humana deveria
ser aplacada, e isso inclui certos lampejos de desejo que o homem dito “civilizado” não
poderia cometer.
Na realidade, o homem primitivo se achava em situação melhor, sem conhecer restrições de instinto. Em contrapartida, suas perspectivas de desfrutar dessa felicidade, por qualquer período de tempo, eram muito tênues. O homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança (FREUD, 1997, p. 73).
Não é nossa intenção entrar em pormenores dos textos psicanalíticos de Freud,
mas nos cabe aqui fazer uma breve explanação sobre o seu conceito de ego e
superego, que nos ajudará a entender a culpa introjetada no individuo pela sua própria
escolha civilizatória. A partir das coerções sociais, a agressividade do homem é
introjetada - ela é enviada de volta para seu lugar de origem - para seu próprio ego.
Assumida por uma parte do ego e rejeitada pelo resto, que se como coloca como
superego, que sob a forma de consciência, põe em ação contra o ego a mesma
agressividade que se quis satisfazer externamente. Essa tensão entre ego e superego
é o que chamamos de sentimento de culpa, e se expressa como uma necessidade de
punição. “A civilização, portanto, consegue dominar o perigoso desejo de agressão do
indivíduo, enfraquecendo-o, desarmando-o e estabelecendo no seu interior um agente
para cuidar dele” (p. 84).
Essa culpa também é percebida como um “medo da perda de amor”, uma
ansiedade social. À medida que as pessoas não exercem certos desejos pelo temor de
serem coagidos pelas autoridades e sofrerem, em outra instância, uma perda do amor
conquistado até aqui pelos seus semelhantes. Resume Freud:
Em primeiro lugar, vem a renúncia ao instinto, devido ao medo de agressão por parte da autoridade externa (é a isso, naturalmente, que o medo da perda do amor equivale, pois o amor constitui proteção contra essa agressão punitiva). Depois, vem a organização de uma autoridade interna e a renúncia ao instinto devido ao medo dela, ou seja, devido ao medo da consciência. Nessa segunda situação, as más intenções são igualadas às más ações e daí surgem sentimento de culpa e necessidade de punição. A agressividade da consciência continua a agressividade da autoridade (FREUD, 1997, p. 89).
63
É dessa forma que Freud explica a ansiedade gerada pela jornada civilizatória.
Ao mesmo tempo que os seres humanos necessitam dessa ligação em comunidade,
seus impulsos são confrontados pela sua própria consciência, gerada por esse
paradoxo. Assim, a civilização “só pode alcançar seu objetivo através de um crescente
fortalecimento do sentimento de culpa” (p. 95).
Os impulsos, em termos sexuais, sofreram uma libertação a partir da sociedade
líquida, as relações estão muito mais predispostas a serem concretizadas em um
âmbito puramente sexual. A partir da década de 70, principalmente, a libertação sexual
sofreu um avanço, ao mesmo tempo que também passou para a esfera de consumo.
Como Bauman salienta:
A separação entre sexo e reprodução, amplamente observada, tem a anuência do poder. É o produto conjunto do líquido ambiente da vida moderna e do consumismo como estratégia escolhida, e a única disponível, de “procurar soluções biográficas para problemas socialmente produzidos” (Ulrich Beck). É a mistura de ambos os fatores que leva ao deslocamento das questões da reprodução e do parto para longe do sexo e na direção de uma esfera totalmente diferente, operada por uma lógica e um conjunto de regras inteiramente diversos dos que regem a atividade sexual (BAUMAN, 2009, p. 62).
Há uma tendência a esperar que o sexo seja autosuficiente, diante da
característica do consumismo em relação aos seus bens, que não é a de acumulá-los,
mas sim, de usá-los e descartá-los, abrindo espaço para novos objetos de desejo.
Bauman fala em uma “ilusão de união” que envolve o momento do orgasmo, que “deixa
os estranhos tão distantes um do outro como estavam antes” e que essa função de
consumo do sexo, intensa e periódica, acaba por assumir um papel não muito diferente
do alcoolismo ou de outros vícios. Para ele, “Não admira que também tenha crescido
enormemente sua capacidade de gerar frustração e de exacerbar a própria sensação
de estrangulamento que se esperava que curasse” (p. 63).
O mal-estar líquido se forma sempre a partir dessa transferência de elementos
externos e internos do indivíduo, fazendo relações com a sociedade na qual vive.
Nesse caso do indivíduo frente ao afeto e ao sexo, ele acaba bastante influenciado
pelas esferas da libertação e da sociedade de consumo. Porém é sempre uma troca
constante entre o que a sociedade forma e o indivíduo devolve, provocando as
constantes modificações nesses elementos angustiantes, e que, no período
64
contemporâneo, correm em direção a uma contínua ansiedade por parte dos seres
sociais. A sociedade líquida provoca essa resignificação dos impulsos e sentimentos
em todas as esferas, cada vez mais mesclando-as e fazendo paralelos com as esferas
dominantes que, em um mundo à mercê do liberalismo econômico, parece ter, senão
um representante desse poder, um tipo de poder bem definido.
2.3.4 A imortalidade efêmera
Uma das consequências que os fatores angustiantes trouxeram ao indivíduo é
uma modificação na sua noção de mortalidade. A morte assumiu um papel diferente
daquele que possuía na modernidade sólida, e não apenas no que tange às religiões,
mas também a um sistema de crenças pessoais e a um empoderamento do efêmero.
Para Bauman (1998), “estar ciente da mortalidade significa imaginar a
imortalidade - esse sonho que enche de significado a vida, enquanto que, se alcançado
traria somente a morte do significado” (p. 191). É um ciclo que se inicia preenchendo-o
para saciar-se com o seu esvaziamento. O polonês também trata dessa questão (2014)
pelo cerne da ânsia humana por transcendência, sendo este o “impulso no sentido do
conforto e da conveniência”(p. 109), seria essa paz do corpo e da mente o âmago da
ideia popular de “ordem”. Assim, o ser humano estaria inquieto pelo insaciável desejo
de “ordem”, sendo que esse nunca será aplacado totalmente até que a morte chegue.
Esse ciclo se retroalimenta, assim como ele explana:
A ironia, contudo, é que essa visão de uma “ordem final” formatada como um túmulo é precisamente o que nos torna compulsivos, obsessivos e viciados “construtores da ordem” e, desse modo nos mantém vivos, sempre ansiosos e instigados a transcender hoje aquilo que conseguimos atingir ontem. É a sede da ordem, insatisfeita e insaciável, que nos fazer vivenciar toda realidade como desordenada e carente de reforma (BAUMAN, 2014, p. 109).
No entendimento de Bauman, há duas estratégias para efetivar a imortalidade;
uma, pela forma coletiva, através da reunião em pequenas comunidades ou “ilusões de
comunidade”, do qual o indivíduo seja apenas uma extensão, como a Igreja, a Nação,
ou o Partido. Os seres humanos individuais continuam mortais, mas sua morte se
65
justifica a partir do momento que sua “totalidade” segue. A segunda, é uma estratégia
individual que depende da capacidade do indivíduo se perpetuar pela memória da
sociedade, realizando feitos fantásticos e inéditos, que o coloquem acima do comum e
lhe garanta uma posição digna de ser perdurável.
A segunda estratégia é, certamente, mais adequada aos preceitos que a
modernidade líquida apregoa, a partir do momento que depende de uma ação
individualizante, indo em direção a um movimento de introspecção geral da sociedade.
Porém, Bauman alerta que a “a fórmula da imortalidade coletiva requeria a supressão
da individualidade, ao passo que a fórmula da imortalidade individual somente tinha
sentido enquanto a individualidade permanecesse privilégio de poucos” (p. 193).
Quanto mais individualizada e mais efêmera a sociedade se coloca, mais difícil que
haja “disponibilidade de memória” para os indivíduos pleitearem seu espaço eterno.
Todos estão mais propensos a ter seus poucos minutos de glória, mas a eternidade
parece mais distante no seio da modernidade líquida.
O que alguns autores chamam de “medo original”, o medo da morte também
atua como combustível para o fluxo da vida. Maurice Blanchot4 chegou a sugerir que
“enquanto o homem sabe da morte apenas por ser homem, ele só é homem porque é a
morte no processo do devir”.
Haneke trata a questão da mortalidade em alguns de seus filmes, mas
certamente nenhum a trata de forma tão direta como O sétimo continente, que iremos
abordar de maneira mais aprofundada no capítulo 4. A família que decide, de forma
racional e meticulosa, colocar fim à sua própria vida, é um aparente paradoxo de
racionalidade, mas uma espantosa chama de lucidez em meio ao turbilhão da
modernidade líquida. Dentro da cena final, há um momento no qual a família destrói,
aos poucos, seus bens materiais que estão pela casa, em um ritual de desapego de
tudo aquilo que não é realmente seu. Christopher Sharret, ao entrevistar Michael
Haneke, o questiona sobre a beleza daquela cena, “de enquadramentos muito bonitos,
que retratam o horror e a angústia”. Haneke complementa:
Você pode olhar para o fenômeno da destruição do ambiente próprio em termos de uma noção alemã, que na tradução é "destruir o lhe destrói" Isso pode ser
4 In BAUMAN, Medo líquido, p. 45. Retirado de The gaze of Orpheu, Station Hill, 1981.
66
visto como uma libertação. Mas a forma como ele é representado é, sim, o contrário. Eles realizam a destruição com a mesma estreiteza restrita com o qual eles viveram suas vidas, com a mesma meticulosidade como a vida era vivida, então eu vejo isso como o oposto da visão de destruição total (HANEKE, 2010, p. 585).
Não são apenas questões religiosas que retiraram o foco do indivíduo frente à
sua mortalidade, mas há uma variável de inconstâncias tão poderosa na vida dentro da
sociedade líquida que quase leva a crer que o ser humano se sente imortal em
determinados momentos. Não por ter uma clara noção desse espectro de poder, mas
por nunca se deparar com a possibilidade racional da morte, a menos que algum
acontecimento quase fatal o coloque necessariamente diante dessa eventualidade. O
efêmero, o curto-prazo, o prazer instantâneo. Nada disso permite que se vislumbre um
objetivo a longo prazo, e, muito menos, que se lide com a onipresença da morte. Como
Bauman falou “Nas novas circunstâncias, o mais provável é que a maior parte da vida
humana e a maioria das vidas humanas consuma-se na agonia quanto à escolha de
objetivos, e não na procura dos meios para os fins, que não exigem tanta reflexão”
(2001, p. 73). Esse paradoxo entre impulsos de vida em relação à morte é o que
permeia o instinto humano e o faz tatear uma maneira de consumir-se nele.
Uma extensão desse impulso de consumir-se também se dá de outras maneiras,
como pelas exigências culturais em termos de estética, que obriga o culto ao corpo e a
padrões pré-determinados a uma nova demanda constantemente. Outra extensão
desse impulso é materializada pela contínua obsessão em relação à vigilância. Na
modernidade líquida, as redes de vigilância foram aumentadas abruptamente, e quase
nunca se tornando um remédio efetivo para a constante sensação de insegurança.
Como Bauman (2014) expõe, “[...] há uma dupla razão para investir numa densa rede
de vigilância - proteger-nos dos perigos e de sermos classificados como um perigo” (p.
98). Segundo ele, “as variedades de vigilância contemporânea têm o propósito de
causar a morte social” (p. 89), ou seja, faz parte do processo anterior ao encadeamento
da individualização quase endêmica que a sociedade sofreu.
Para tratar dessa “primeira morte”, que faz parte da comunhão de um indivíduo
com os outros, e que é um dos pilares da sociedade, Bauman (2001) traz um ponto de
Zukin, para quem o perigo mais iminente para a “cultura pública” está na “política do
67
medo cotidiano”. O polonês completa que “o espectro arrepiante e apavorante das
‘ruas inseguras’ mantém as pessoas longe dos espaços públicos e as afasta da busca
da arte e das habilidades necessárias para compartilhar a vida pública” (p. 110). E
finaliza:
[...] o espaço público está cada vez mais vazio de questões públicas. Ele deixa de desempenhar sua antiga função de lugar de encontro e diálogo sobre problemas privados e questões públicas. Nessas circunstâncias, a perspectiva de que o indivíduo de jure venha a se tornar algum dia indivíduo de facto (aquele que controla os recursos indispensáveis à genuína autodeterminação) parece cada vez mais remota (BAUMAN, 2001, p. 50).
A partir desse ponto, o processo de individualização não consegue se sustentar,
abdicando de uma estrutura de interação vital para as atividades humanas. Sem
conseguir sustentar o exercício da civilidade, de que forma há possibilidade da
sociedade se manter sólida? Segundo Sennet (apud Bauman, 2001), essa comunhão é
a “atividade que protege as pessoas umas das outras, permitindo, contudo, que
possam estar juntas” e a civilidade “tem como objetivo proteger os outros de serem
sobrecarregados com nosso peso” (p. 76). É justamente esse peso, o peso de se auto-
consumir, o “medo original”; que parece estar sendo digerido de outras formas, fazendo
com que a ansiedade latente e a angústia incessante sejam contínuas.
2.3.5 Breve passeio pelo imaginário Nesse ponto de nosso trabalho, já é possível termos uma noção de como a
imagem se multiplicou por tantos meios e de uma forma tão acelerada na modernidade
líquida. Também identificamos algumas consequências que essa overdose imagética
provoca no indivíduo e na sociedade, visto que os símbolos se intensificam tanto que
muitas vezes já é impossível decodificá-los. As mensagens se perdem em meio aos
meios. É um processo que pode ser perigoso, e que sobre o qual Durand já alertava:
A imagem mediática está presente desde o berço até o túmulo, ditando as intenções de produtores anônimos ou ocultos: no despertar pedagógico da criança, nas escolhas econômicas e profissionais do adolescente, nas escolhas tipológicas (a aparência) de cada pessoa, até nos usos e costumes públicos ou privados, às vezes como “informação”, às vezes velando a ideologia de uma
68
“propaganda”, e noutras escondendo-se atrás e uma “publicidade”, sedutora[...] (DURAND, 1997, p. 33).
Aumont e Marie (2009) se utilizavam do conceito de imaginário para tratar do
efeito do real, que é um efeito de realidade suposto suficientemente forte para o
espectador induzir um “julgamento de existência” sobre as figuras da representação,
atribuindo-lhes um referente no real. É o mesmo princípio da “suspensão da descrença”
utilizado por teóricos para explicar como a imersão dentro do ambiente cinematográfico
acontece também por um relaxamento em relação à certeza do real. Uma certa
padronização em termos narrativos também facilita essa suspensão, quando o
espectador já possui um imaginário a respeito da estrutura que irá encontrar.
A noção de imaginário manifesta um encontro entre dois conceitos da imagística
mental, sendo o domínio da “[...] imaginação, compreendida como faculdade criativa,
produtora de imagens interiores eventualmente exteriorizáveis” (p. 120). Os autores
franceses qualificam seu significado como muito próximo de “fictício”, de “inventado”,
como oposto ao real.
Já para Durand, o imaginário é um repositório de todas as “imagens passadas,
possíveis, produzidas e a serem produzidas” (2011, p. 6) pela humanidade, havendo
uma estrutura responsável por movimentar, criar e receber essas imagens pelo
indivíduo. Para ele, há uma lógica diferenciada na natureza do imaginário, que enxerga
um denominador comum na diferença e o inclui na definição de ambas as partes na
relação sujeito/objeto.
Essa lógica diferenciada do imaginário se localiza entre os arquétipos5 presentes
no inconsciente coletivo6 e os fluxos imagéticos provenientes da sociedade. Durand
chama de “trajeto antropológico” o processo alógico proveniente dessa dinâmica, o
qual define como “a incessante troca que existe ao nível do imaginário entre as
5 “O arquétipo representa essencialmente um conteúdo inconsciente, o qual se modifica através de sua conscientização e percepção, assumindo matizes que variam de acordo com a consciência individual na qual se manifesta” (JUNG, 2000, p. 17). 6 “O inconsciente coletivo é uma parte da psique que pode distinguir-se de um inconsciente pessoal pelo fato de que não deve sua existência à experiência pessoal, não sendo portanto uma aquisição pessoal, devem sua existência apenas pela hereditariedade. Consiste de formas preexistentes, arquétipos que só secundariamente podem tornar-se conscientes, conferindo uma forma definida aos conteúdos da consciência” (JUNG, 2000, p. 55).
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pulsões7 subjetivas e assimiladoras e as intimações objetivas que emanam do meio
cósmico e social” (p. 41).
O imaginário está localizado no percurso entre a assimilação da representação
do objeto pelo inconsciente do sujeito. É a partir desse conceito que a ideia do mal-
estar líquido se torna um pouco mais compreensível, visto que todas as resignificações,
na modernidade líquida, dos fatores angustiantes da sociedade acabam sendo
captadas pelo inconsciente, que tenta assimilá-los levando-se em conta o “catálogo
imagético” contido no imaginário. Com a contínua e cada vez mais veloz aceleração
nas modificações da sociedade, essa assimilação se torna cada vez mais difícil de ser
realizada, pois não há tempo para se solidificar um paradigma, causando uma
ansiedade crescente e uma sensação de desorientação nos indivíduos e na sociedade.
Durand cita Chauchard e fecha o pensamento a respeito desse trânsito e sua influência
na mente humana:
“O homem é o único ser com uma maturação tão lenta que permite ao meio, especialmente ao meio social, desempenhar um grande papel no aprendizado cerebral” (P. Chauchard, op. cit). A consequência desta neotenia lenta é dupla: não apenas requer a educação dos “sistemas” da simbolização como faz com que esta educação, dependendo das culturas e até dos momentos culturais de uma mesma cultura, seja muito variável (DURAND, 1997, p. 45).
A noção de imaginário trazida neste subcapítulo nos ajuda a entender a zona
etérea no qual o mal-estar líquido se posiciona, o tornando mais tangível e palpável. A
partir daqui, estamos prontos a imergir na obra de Haneke para reutilizar os conceitos
estudados até o momento, aplicando-os para desvendar se a obra de Haneke se
consolida como uma representação cinematográfica do mal-estar líquido.
7 A pulsão é “a representante psíquica das excitações provenientes do interior do corpo e que chegam ao psiquismo” (FREUD apud BAUMAN, 2009, p. 78). Esta é definida pelo seu objetivo (que é sempre a satisfação da pulsão), pelo seu objeto (que é o meio pelo qual a pulsão pode atingir o objetivo) e pela sua fonte, que é o ponto de fixação da pulsão no corpo.
70
3 O MAL-ESTAR LÍQUIDO EM HANEKE
O primeiro filme que eu lembro - vagamente - de ter ido ver foi o Hamlet, de Laurence Olivier. Eu devia ter, mais ou menos, seis anos de idade. É claro que eu vi o filme de novo várias vezes, então eu não posso separar exatamente o que eu experimentei na primeira vez, e o que eu me lembro de visões posteriores. Mas lembro-me precisamente do cinema, já sombrio, o majestoso levantamento da cortina, e as imagens sombrias do castelo de Elsinore cercado por ondas de afluência, acompanhada por uma música igualmente sombria. Também me lembro que a minha avó, que estava comigo no teatro naquele dia, me contou anos depois que ela foi forçada a sair comigo depois de menos de cinco minutos, porque eu estava gritando de medo daquelas imagens e daqueles sons sombrios (HANEKE, In GRUNDMANN, ANO, p. 565).
Após elucidar o conceito de mal-estar líquido, e realizar um apanhado histórico-
social de como sua formação foi possibilitada dentro dos pilares líquidos de reinserção
social, nos cabe aprofundar sua relação com a obra de Michael Haneke. Em alguns
pontos anteriores, já demos uma breve pincelada, aproveitando os espaços
pertinentes, dessa interação entre a teoria e nosso objeto de estudo. Para este
capítulo, iniciaremos traçando um breve perfil do diretor austríaco, visto que
identificamos em sua biografia vários fatores que também podem tê-lo provocado a
tratar dos temas que nos interessam em sua filmografia.
Nos propomos a trazer para nosso estudo a figura de Haneke como autor,
acreditando que toda obra coesa e proveniente de uma verte autoral possa ser
destrinchada de maneira avulsa, porém nos é interessante enriquecer esse trabalho
trazendo falas do próprio autor, visto que ele também está inserido como indivíduo em
plena modernidade líquida. Se fosse o caso da obra só se permitir ser analisada tendo
como base os relatos extra fílmicos de seu diretor, não nos interessaria fazer essa
relação. Contudo, este não é o caso e as inserções do próprio Haneke ajudam não
apenas a complementar seu universo fílmico, como também a própria sociedade liquida
na qual vivemos.
A maneira como Haneke encara seu próprio trabalho como artista ajuda a nossa
inserção no próprio universo líquido, pois seus anseios e dúvidas se assemelham com
os próprios anseios e dúvidas da sociedade em geral. Compartilhar de sua visão não
só filmicamente, mas também em sua fala como diretor e indivíduo nos possibilita
71
concretizar integralmente a proposta de nosso estudo: representar a obra
cinematográfica de Michael Haneke como representação do mal-estar líquido.
Por anos, eu tenho tentado restaurar aos espectadores um pouco do tipo de liberdade que eles têm nas outras artes. Música, pintura, artes plásticas oferecem aos seus destinatários espaço para respirar em suas considerações sobre o trabalho. As artes ligadas à linguagem já circunscrevem essa liberdade consideravelmente, porque elas são obrigados a nomear as coisas pelo seu nome. Mas o que é chamado pelo seu nome é artisticamente morto, para de respirar, e só pode ser reciclada em discussão. O cinema agrava ainda mais esse problema (HANEKE para GRUNDMAN, 2010, p. 605).
3.1 HANEKE: A ESCOLHA PELO SOMBRIO
Meus filmes servem como declarações polêmicas contra o ”'cano baixo” do cinema americano e sua retirada de poder do espectador. Eles são um apelo para um cinema de perguntas insistentes ao invés de falsas (porque demasiado rápidas) respostas, para esclarecer a distância no lugar de profanar a proximidade, para a provocação e o diálogo em vez do consumo e do consenso (HANEKE, 2010).
Nascido em 1942, em Munique8, e tendo crescido em Viena, Michael Haneke,
também já passou parte de sua vida na Alemanha e na França. Filho da II Guerra,
nasceu sob a égide da reconstrução européia, fato que parece ter “abençoado” sua
obra tematicamente. Seu pai era ator e diretor de teatro, e sua mãe, atriz. Na
Universidade de Viena, cursou estudos de filosofia, psicologia e atuação, tendo
fracassado em suas tentativas de atuar e de ser pianista. Entre 1967 e 1970, trabalhou
como crítico cinematográfico, editor e dramaturgo na estação de televisão alemã
Südwestfunk. Dirigiu uma série de produções teatrais (incluindo Strindberg, Goethe,
Bruckner, e Kleist) em Berlim, Viena, Munique e Paris. Em 1970, começa a escrever e
dirigir seus primeiros filmes, seguindo o caminho da maioria dos diretores austríacos de
sua geração, em projetos concebidos para a televisão. E é em 1973, que realiza After
Liverpool, inaugurando um total de 9 filmes produzidos para a televisão que viria a
fazer.
É somente em 1989, aos 47 anos, que Haneke inicia sua carreira no longa-
8 Apesar disso, seu tempo de vivência na Áustria o fez optar pela nacionalidade austríaca.
72
metragem comercial, com O sétimo continente. E a partir dessa cinematografia (de
filmes de longa-metragem produzidos para exibição em circuito comercial) que está
representado o objeto de estudo dessa dissertação. Abordar a obra cinematográfica de
Michael Haneke (focados especificamente em O sétimo continente e O vídeo de
Benny) como roteirista e diretor (e sobretudo, autor) significa adentrar em um cinema
denso e sombrio, calcado pela marca da violência mais humana e crua possível. Mas é
nos fatores que motivam essa violência que se encontra o foco de nosso estudo.
Observando o perfil do diretor no site IMDB (Internet Movie DataBase) é possível
observar algumas marcas características de seu trabalho: “curtas explosões de
violência, uso de planos extremamente longos, falta de trilha sonora não diegética,
planos de televisão - principalmente focando telejornais, abordagem de psicóticos -
geralmente jovens violentos”.
Grande parte dos filmes de Haneke realmente possuem esses elementos, mas
também sempre abordam um fundo político e econômico bastante representativo,
principalmente no que concerne às questões relativas ao continente Europeu (e que
pode, na maioria dos casos, ser transposta para a civilização ocidental como um todo).
O declínio da classe média do oeste Europeu, e sua crise moral e espiritual, que ele
caracteriza como um processo de “congelamento”, ligado ao colapso da União
Europeia.
Nos filmes de Haneke estes problemas geralmente convergem para o ambiente da família. A ausência de valores éticos e ensinamentos, a falta de comunicação, e a passiva alienação interepessoal, frequentemente dramatizada nos conflitos entre pais e filhos. De fato, vários dos filmes de Haneke poderiam ser descritos como perversões do Bildungsroman, o gênero literário burguês que retrata um caminho doloroso, mas instrutivo, de um jovem protagonista em maturação. Se o gênero nem sempre é imediatamente reconhecível nos filmes de Haneke, é porque eles só podem utilizar certos elementos de que se transformam de dentro para fora: um foco em psicologia é substituído por um retrato exterior das consequências e efeitos das decisões e ações dos personagens ; inferência toma o lugar da descrição explícita; e, mais importante, o desenvolvimento intelectual e moral, em vez de ser celebrada, é identificado por meio de exemplos, até mesmo diabólicas negativos. Além disso, como as narrativas de Haneke, muitas vezes tomam a forma de quebra-cabeças ou jogos mentais, assumindo um modo curiosamente pedagógico de abordar o espectador (GRUNDMAN, 2010, p. 591).
É abordando, tanto na temática quanto na linguagem, esse rol de filmes, que
73
nos propomos a desmembrar a obra de Haneke e alçá-la como representação
cinematográfica do mal-estar líquido, formado por muitos dos elementos angustiantes
caros ao cinema do diretor. Temas como a incomunicabilidade, o impulso da violência,
o medo incessante, a explosão tecnológica, a globalização, a xenofobia, a overdose de
signos. O próprio Haneke dá voz a algumas dessas questões de maneira direta, como
na explosão imagética: “A televisão acelera a experiência, mas é preciso tempo para
entender o que se vê, algo que a mídia atual não permite. Não apenas entender em um
nível intelectual, mas emocional”, a publicidade: “Quanto mais rápido uma coisa é
mostrada, menos você é capaz de percebê-la como um objeto ocupando um espaço na
realidade física, e mais ela se torna algo sedutor. Quanto menos real a imagem parece
ser, mais rápido você compra o que a mercadoria parece retratar” (p. 586), entre outras
questões, que permearão esse estudo. Em muitos artigos e entrevistas, o próprio
Haneke chegou a tocar nestas questões, sempre com o receio de não “carimbar” suas
obras definitivamente ou entregar respostas fáceis: “[...] eu não tenho interesse em
auto-interpretação. É o propósito de meus filmes representar certas questões, e seria
contraproducente se eu fosse responder a todas estas perguntas” (2010, p. 582). Ele
parece também reconhecer a influência da cultura em seu inconsciente quando
relembra aspectos de sua infância, muito mais pacata do que a atual explosão
imagética dentro da qual os jovens crescem:
Eu tinha crescido em um mundo em que a televisão ainda não existia, e, durante a infância, e posteriormente, a adolescência, visitar um dos nossos pequenos três cinemas da cidade sempre foi uma experiência rara, incomum e, portanto, preciosa. Eu não sei até que ponto essa experiência pode ser transmitida a todos aqueles que nasceram mais recentemente e cresceram em um mundo impensável sem a presença constante de imagens jorrando (HANEKE, 2010, p. 566).
A escolha pela obra de Haneke passa, em uma primeira e mais superficial
instância, pela sensação de mal-estar que os seus filmes provocam. Antes de adentrar
nas questões fílmicas, a primeira sensação que é passada é de que há algo de errado
com seus personagens. Mesmo que muitos deles tenham uma vida dentro dos padrões
aceitáveis para se definir por “feliz” na sociedade, sempre há alguma coisa que parece
não estar harmônica. Através de seus roteiros e de sua maneira de conduzir a direção
74
dos filmes, essa sensação se amplifica, e a expressão que melhor poderia definir
objetivamente é mal-estar. Foi partindo dessa sensação enraizada pela nossa própria
experimentação como espectador, que partimos para tentar ir além da subjetividade e
entender como esse amálgama de sensações e experiências que vivenciamos na
contemporaneidade contribui para criar essa aura de mal-estar que nos cerca.
Sobre o tema da violência, há um número crescente de modalidades com que se pode apresentar a violência, tanto que nós precisamos re-conceituar todo o conceito de violência e suas origens. As novas tecnologias, tanto da representação da mídia e do mundo político, permitem uma maior dano com cada vez maior velocidade. Os meios de comunicação contribuem para uma consciência confusa por esta ilusão de que sabemos todas as coisas em todos os momentos, e sempre com este grande senso de imediatismo. Vivemos neste ambiente onde nós pensamos que sabemos mais coisas mais rápido, quando na verdade não sabemos nada em tudo. Isso nos impulsiona em terríveis conflitos internos, que, em seguida, cria angústia, que por sua vez provoca a agressão, e isso cria violência. Este é um ciclo vicioso (HANEKE, 2010, p. 588).
À medida em que tratamos a representação cinematográfica do mal-estar líquido
dentro da obra de Michael Haneke, nos é importante ressaltar alguns pontos. O
primeiro é a escolha de sua filmografia de longas-metragens produzidos para exibição
comercial, no total de 11 filmes que compõem sua obra cinematográfica. Dentro desse
universo fílmico, tratamos de pinçar seus dois primeiros longas: O sétimo continente e
O vídeo de Benny para análise, porém, nos utilizaremos de trechos de seus outros
filmes e falaremos brevemente a respeito de alguns deles durante esta dissertação.
Porém, é preciso que caracterizemos sua obra como passível de ser analisada
basicamente pelo foco em dois longas-metragens, motivo esse pelo qual nos parece
essencial trazer à tona a figura do autor, inserindo Haneke dentro desse conceito que
permita que sua obra tenha uma essência temática capaz de ser destrinchada sem a
análise de toda sua filmografia.
Jean Claude Bernardet (1994) é um dos autores preocupados em estabelecer
um paradigma para se chegar a essa denominação do autor. Ele aproxima os estudos
de Truchaud, que pensava a questão do autor através das significações por trás dos
filmes, com os de Chabrol e Rohmer, que preferem pensar o autor em termos de
matriz, sendo possível desvelá-la através de um olhar cuidadoso do crítico sobre o
apanhado de filmes de um cineasta. Essa matriz não se distancia muito da definição de
75
Truchaud, e seria uma uma repetição em torno de um tema ou de uma situação
dramática. Conclui Bernardet que “A partir do momento em que a matriz é encontrada,
ela passa, para o crítico, a ter um efeito retrospectivo: outro elemento básico do
método” (p. 34). Utilizando-nos desta teoria, parece claro que o cineasta Michael
Haneke pode ser plenamente caracterizado como um autor, tendo em vista a
ressonância temática de suas obras em longa-metragem. Ambas se comunicam de
forma muito íntima com os elementos que trabalhamos nesta dissertação e que formam
o mal-estar líquido.
Para elencar a pulsão de seus filmes que não serão estudados profundamente
aqui, trazemos algumas falas a respeito deles que servem para embasar nossa
conceituação. Mattias Frey (2010), inicia falando de 71 fragmentos de uma cronologia
ao acaso (71 Fragmente einer Chronologie des Zufalls, 1994):
Estes 71 momentos marcantes, apenas na sua normalidade, formam um sistema que implica em uma forma de toda a sociedade subsidiar o crime de um. 71 Fragmentos marca uma partida dos estudos longitudinais de uma única família. A violenta explosão é contextualizada dentro de um corte transversal da sociedade: um pai solitário, um casal em uma relação disfuncional, uma mulher que quer adotar uma criança, um imigrante romeno. O filme é, aliás, uma prévia das próximas atrações, particularmente, na atenção de Haneke para pessoas e culturas de fora do "primeiro mundo" tradicional Ocidental e Central Europeu. Este "temática estrangeira" reaparece em Código Desconhecido, Tempo do Lobo e Caché (FREY, 2010).
Ao tratar de Violência gratuita (Funny games, 1997), o próprio Haneke
contextualiza sua fala com a condição de normativização da violência dentro da arte na
contemporaneidade: “Eu tento voltar à violência ao que ele realmente é: a dor, o
prejuízo para o outro.” (Frey, 2010) Frey faz uma observação a respeito do papel da
burguesia como agenciadora de regras sociais e sua forma de hierarquizar-se um
patamar acima:
Como sempre, uma crítica da arrogância burguesa aparece como uma função da mídia. Apesar da educação de Georges e Anne, e de possuírem um status social privilegiado, carreiras na televisão e publicação, sua relação com a mídia é quase “fantástica”. Georges diz para seu editor cortar cenas onde o convidado se torna muito "teórico"; a fim de escapar de sua má consciência, ele vai ao cinema para limpar sua mente. Essa hipocrisia é percebido com mais força na mise en scène. Com cenas de televisão da guerra do Iraque ao fundo, Georges e Anne culpam um ao outro por uma falta de comunicação em sua relação (FREY, 2010).
76
Frey também aprofunda a relação existente em A fita branca (Das weiße Band -
Eine deutsche Kindergeschichte, 2009) com elementos que assumem as origens do
mal-estar, e que, de forma mais pragmática, poderiam ter sido a gênese de um
sentimento que culminaria na ascensão do nazismo na Alemanha, fazendo também
uma relação com outras obras do austríaco e tratando da construção social da
violência, como ela é transmitida nas famílias, nas escolas e pela religião:
O abuso sexual do médico e de sua filha, a severidade geral e a hipocrisia dos adultos da aldeia e as tensões de classe são jogadas fora em agressões crescentes das crianças e fica implícito que eles também são responsáveis pelos "acontecimentos estranhos". Uma das últimas cenas, quando a parteira inexplicavelmente precisa sair da cidade e um tiro de rastreamento revela que as crianças estão tentando obter acesso à casa da parteira lembra o desfecho sinistro de Violência gratuita, quando percebemos que os assassinos vão atacar de novo e de novo. São jovens que interiorizam as pressões de seus pais (como em O sétimo continente, O vídeo de Benny e A hora do lobo) e as projetam como a violência que infligem entre e sobre si mesmos (FREY, 2010).
É através desta tipificação da obra de Haneke que o qualificamos realmente
como um autor. E como não podemos esmiuçar sua obra por completo, a escolha de
seus dois primeiros filmes, escolha essa que trataremos mais fortemente no próximo
ponto, nos bastará para o que se propõe esta dissertação. Serão suas escolhas como
roteirista e diretor, no que tange à estrutura narrativa e às escolhas de opções de
enquadramentos, que nos servirão para tal análise.
A imagem ainda parte, em seu âmago, do que se vai mostrar e de como se vai
mostrar, dentro da gramática audiovisual. “A imagem é como uma situação de
mediação entre o espectador e a realidade - vinculação da imagem com o domínio do
simbólico” (Aumont, Marie, 2009, p. 78) e não há funções dentro do fazer
cinematográfico que tratem de forma mais próxima esse conceito que, o roteirista, que
desenvolve o objeto a ser captado, e o diretor, que define (logicamente, dialogando
com os diversos núcleos criativos da equipe e, principalmente, nesse caso, com o
diretor de fotografia) de que forma esse conteúdo será exteriorizado para as telas,
principalmente através da decupagem. Casetti e Di Chio (1996) chegam a tratar da
decupagem como “uma prática seletiva e manipuladora, destinada a produzir uma
impressão de realidade[...]” (p. 45), que se constitui também numa desconstrução do
77
texto do roteiro para ser reconstruído pela decupagem e pela montagem. Sendo assim,
ela “fragmenta para organizar uma nova realidade, tão verossímil quanto a original,
porém mais fácil e interessante de narrar, assim como mais eficaz na representação na
tela” (p. 169).
Prosseguem dizendo que aquilo ”que vemos e sentimos retorna ao que
vimos e sentimos antes e prepara para o que veremos e sentiremos a seguir. É o nível
dos nexos que na representação cinematográfica, une uma imagem com outra que a
precede” (p. 124). E cada um desses níveis pode ser remetido aos três níveis básicos
da produção de um filme: preparação (argumento - roteiro), filmagem (captação) e
montagem (ordenação dos trabalhos de nexo).
3.2 ESCOLHAS METODOLÓGICAS
Desde o início, nosso estudo se calcou em uma análise sociológica-histórica
para entender como se forma o conceito de mal-estar líquido, que é formado por
diversas estruturas sociais que, ao se resignificarem na passagem para a modernidade
líquida, causam uma confusão e uma ansiedade na própria sociedade e em seus
indivíduos. A partir do estudo desses “fatores angustiantes”, entendemos como as
transformações geradas pela constante ascensão tecnológica, em consonância com as
diretrizes do liberalismo econômico e uma abertura da sociedade como um todo
acabam provocando fissuras nos pilares da modernidade sólida, deixando seus
partícipes sem um “chão” confiável para pisar. Tudo é difuso e etéreo.
Para partirmos para a análise filmográfica do cinema de Michael Haneke, nos
cabe fazer algumas observações em termos metodológicos. Partimos de uma
observação sociológica e de um cunho ensaístico para a fluidez das análises dos filmes
O sétimo continente e O vídeo de Benny. A escolha por esses dois filmes como
representantes primários da obra cinematográfica de Haneke passa pela
representatividade dos temas que abordaremos dentro dos filmes. Eles são as obras
que possuem maior quantidade de elementos relacionados com o mal-estar líquido
dentro da cinematografia de Haneke, além de possuírem uma representatividade de
tema, sendo os dois primeiros longas-metragens do diretor. Essa “análise narrativa” se
78
baseará na inserção das teorias do mal-estar líquido à medida em que formos
destrinchando aspectos de direção e roteiro seguindo a linha narrativa que o filme nos
oferece.
Casetti e Di Chio relatam que “podemos definir intuitivamente a análise como um
conjunto de operações aplicadas sobre um objeto determinado e consistente em sua
decomposição e em sua sucessiva recomposição [...]” (p. 17). Para eles, essa
recomposição teria o intuito de identificar os princípios da construção e do
funcionamento do objeto analisado, identificando seus componentes, sua arquitetura,
seus movimentos e sua dinâmica.
Nos cabe aqui analisar os dois longas e interpretá-los, ou não, como uma
representação cinematográfica do mal-estar líquido. Nossa escolha de instrumentação
metodológica é híbrida por abordar pontos de diversos autores, personalizando a
proposta de análise e otimizando-a. Sobre o uso do cunho sociológico:
Pode-se utilizar os instrumentos da sociologia, afrontando o filme como uma representação mais ou menos completa do mundo em que operamos, como um espelho e às vezes como um modelo (para alguns se tratará mais como um espelho e para outros mais como um modelo) do social (CASETTI e DI CHIO, 1993, p. 28).
Partimos dessa ideia do filme como uma representação, se não do mundo em
sua totalidade, ao menos de elementos que são parte da composição da sociedade.
Esses elementos ajudam, quando analisados, a dissecar a própria estrutura social que
nos cerca. Buscaremos uma análise mais imersiva e ensaística, trazendo os estudos
de Aumont e Marie (2009), e mesclando-os com Casetti e Di Chio (1996), além de
relacioná-los com a noção de imaginário de Durand (1997), com o intuito de fortalecer
nossa base teórica e proporcionar uma análise mais fluida e reflexiva. A chamaremos
de “análise narrativa”.
É importante ressaltar o aspecto interpretativo que esta, como qualquer outra,
análise possui, visto que a interpretação é a chave inicial para voltar atrás e iniciar um
processo de análise mais minucioso a respeito do seu objeto. A respeito disso, Aumont
e Marie (2009) fazem a relação:
79
[...] parece-nos que seria uma atitude mais franca admitir que a análise tem efetivamente a ver com a interpretação; que esta será, por assim dizer, o “motor” imaginativo e inventivo da análise; e que a análise bem sucedida será a que consegue utilizar essa faculdade interpretativa, mas que a mantém num quadro tão estritamente verificável quanto possível (AUMONT, MARIE, 2009, p. 15).
Visto que nosso primeiro contato com qualquer obra filmográfica parte de um
pressuposto de nossa condição como espectador, nossas primeiras impressões sobre
um filme sempre são imersas por essa relação. A partir do momento que nos
deparamos com a imagem do filme, nossas relações inconscientes começam a ser
feitas através de vários fatores como “a capacidade perceptiva, o saber, os afetos, as
crenças” (p. 77) que são modelados pela nossa vinculação social e cultural. Na
condição de pesquisadores, é nosso dever ir além dessa relação, e para efetivar esse
trânsito devemos nos abastecer de uma metodologia analítica que nos possibilite
trascender em nossa leitura fílmica. Ao mesmo tempo que “não existe um método
universal de análise de filmes”, é preciso ter em mente que “a análise não tem de
definir as condições e os meios da criação artística, mesmo que possa contribuir para
esclarecê-los, nem de professar juízos de valor ou estabelecer normas” (p. 14).
Para entender a obra filmográfica de Haneke como passível de objetificar uma
representação de um conceito mais amplo, precisamos esmiuçar algumas noções
acerca de representação. Aumont já alertava para o perigo de confundir as noções de
ilusão, de representação e de realismo. Por mais que possa haver conexões entre
essas noções, cada uma implica em um termo específico, como ele explana:
A representação é o fenômeno mais geral, o que permite ao espectador ver “por delegação: uma realidade ausente, que lhe é oferecida sob a forma de um substituto. A ilusão é um fenômeno perceptivo e psicológico, o qual, às vezes, em determinadas condições psicológicas e culturais bem definidas, é provocado pela representação. O realismo, enfim, é um conjunto de regras sociais, com vistas a gerir a relação entre a representação e o real de modo satisfatório para a sociedade que formula essas regras. Mais que tudo, é fundamental lembrar-se de que realismo e ilusão não podem ser implicados mutuamente de maneira automática (AUMONT, MARIE, 2009, p. 106).
Fica bem clara a noção de que, para este estudo, a seara que nos interessa é a
da representação, no sentido de que ela será o objeto desvelado para dar luz às
noções de mal-estar líquido presentes na obra de Haneke. É através de sua elucidação
80
que teremos mais clara a ideia de como o mal-estar líquido se manifesta no âmago dos
filmes. Os enunciados ideológicos, culturais e simbólicos que fazem essa relação com
a representação no espectador podem ser totalmente implícitos, e nem por isso deixam
de ser passíveis de expressão verbal, sendo que o problema principal a ser enfrentado
quanto ao sentido da imagem é o da relação entre as imagens e as palavras, visto que
a linguagem nem sempre pode aderir corretamente a uma expressão sensorial
imagética-auditiva.
Cassetti e Di Chiro afirmam haver três níveis para se analisar como
representação, sendo “a posta em cena, com sua representação de conteúdos; a posta
em quadro, com sua ativação de modalidades de suposição e restituição destes
mesmos conteúdos; a posta em série, com sua ativação da associação entre as
imagens” (p. 164), sendo que o mundo que atravessa esses três níveis é um mundo
criado com seus dois parâmetros fundamentais: o espaço e o tempo. Dentro do
espaço, os autores italianos dividem-no em três grandes eixos de organização: a
dimensão in e off, a dimensão estática ou dinâmica e a dimensão orgânica ou
inorgânica. No tocante à dimensão do tempo (aqui entendido como devir), eles a
estruturam em três componentes: a ordem, a duração e a frequência.
De Aumont e Marie, traremos a base da análise destrinchando as cenas
escolhidas através da descrição denotativa e simbólica, nos utilizando de instrumentos
de análise elencados por ambos. Instrumentos descritivos, para reprodução de cenas
das obras estudadas, aproximando ao máximo do que vemos nas imagens e
possibilitando adentrar nos aspectos mostrados e “destinados a atenuar a dificuldade
de apreensão e memorização do filme” (p. 34). Casetti e Di Chio também se utilizam do
elemento descritivo, que para eles “significa recorrer a uma série de elementos, um por
um, com cuidado e até o último deles: passar para um conjunto detalhado e completo.
[...] assume orientação tanto para o observador e observado” (p. 23). Mas eles
ressaltam que esse trabalho deve ser acompanhado da interpretação, que permita
reviver, ouvir e discutir o trecho descrito, com intenção de ir além de sua aparência e
possibilitar uma reconstrução, fiel, mas pessoal.
Também utilizaremos instrumentos citacionais (no caso, stills de sequências dos
filmes) como elementos ilustrativos da análise, com o intuito primeiro de situar o leitor
81
do estudo, mas nunca nos restringindo unicamente ao frame para análise, pois
reconhecemos nele um elemento stricto sensu, pobre, em comparação com toda a
riqueza da linguagem cinematográfica. Também podemos dizer que traremos
elementos que Aumont e Marie classificam como instrumentos documentais, pois são
extra-fílmicos, mas ainda de origem do autor do filme ou de sua produção como
representação de algo maior, o que auxilia na contextualização mais ampla que
procuramos, amplificando sua potência.
[...]no mínimo a imagem sempre veicula elementos informativos e elementos simbólicos (nem sempre é impermeável a fronteira entre esses dois níveis que os semiólogos costumam distinguir). Ao descrever uma imagem, a primeira tarefa do analista é identificar corretamente os elementos representados, reconhecê-los, nomeá-los. Esse nível do sentido literal, da “denotação”, parece evidente, mas na verdade os “semas” visuais têm limites culturais bem precisos. ... Quanto ao nível “simbólico” é ainda mais clara e francamente convencional, e a sua leitura correta, mesmo no estágio da simples descrição, exige uma familiaridade real com o vestuário, o pano de fundo histórico, os simbolismos do universo diegético que o filme descreve (AUMONT, MARIE, 2009, p. 49).
Para o propósito da fluência dessa análise, nos é interessante também trazer à
tona a ideia do Figural, de Dubois (1999), que se articula justamente em uma
flexibilidade de escrita que permite atingir o sensível, possibilitando um pouco de
poética à análise, tornando-a “mais sensível à organicidade das matérias, à fluidez dos
espaços, às modulações da forma e do informe, aos efeitos (poéticos, irônicos, lúdicos,
líricos, etc.), que não é do senso nem da semelhança, mas da força (o Figural como
potência)” (p. 248). Esse conceito nos permite amarrar as ilações analíticas de uma
maneira mais livre, nos aproximando do sensível em determinados momentos e
tratando a imagem também como fonte de afeto, que é o “componente emocional de
uma experiência, ligada ou não a uma representação”, segundo Alain Dhote9.
Em termos mais técnicos, nossa análise recairá, mesmo que de forma fluida,
sobre elementos de roteiro e direção cinematográfica dentro dos filmes estudados, pois
ainda são os elementos mais fortes na caracterização de uma narrativa fílmica. Para
Aumont e Marie, a narrativa é definida “muito estritamente pela narratologia recente
como conjunto organizado de significantes, cujos significados constituem uma história”
(p. 255). Esses significados são formados, prioritariamente, mas não unicamente, pelas 9 In AUMONT, 2011, p.122
82
escolhas de roteiro e direção, que são as principais para guiar um andamento da obra,
pelo menos dentro de uma filmografia mais clássica. Para Badiou, a ideia incontestável
contida em um filme é de difícil absorção de maneira “pura”, e isso vai na direção do
nosso intuito de tentar esmiucá-la, vez por outra, de maneira um tanto mais objetiva,
evitando deixar o trabalho um tanto “etéreo” demais. Para isso que tomaremos para
nós alguns aspectos técnicos. Explana Badiou:
E se é verdade que o cinema trata a Ideia à maneira de uma visitação ou de uma passagem, e que o faz em um irremediável elemento de impureza, falar axiomaticamente de um filme seria examinar as consequências do próprio modo como uma Ideia é assim tratada por esse filme. As considerações formais, de corte, plano, movimento global ou local, de cor, atuantes corporais, som, etc., só devem ser citadas na medida em que contribuem para o “toque” da Ideia e para a captura de sua impureza inata (BADIOU 2002, p. 111).
É importante também trazer a afirmação de David Bordwell de que, nos filmes
“os significados não são encontrados, e sim, elaborados” (1996, p. 19), ressaltando a
importância do papel do observador, pois ele será o responsável pela elaboração do
significado. A partir dessas elocubrações de diversas estratégias metodológicas, nosso
objetivo é partir de uma análise fílmica para fazer aflorar algum significado em relação
ao conceito do mal-estar líquido e da teoria líquida de Bauman, nos possibilitando
traçar um perfil da posição do indivíduo inserido na sociedade líquida. Nos utilizaremos
da obra do diretor cinematográfico Michael Haneke, aqui representada principalmente
pelos seus dois primeiros longas-metragens, para realizar essa relação.
A escolha pela filmografia de Haneke passou por filtros até chegarmos aos dois
longas-metragens analisados. O primeiro filtro foi o de focar o estudo nos longas-
metragens lançados comercialmente em salas de exibição, pois o diretor austríaco
possui inúmeros trabalhos de média-metragem lançados para televisão, que
certamente serviram para aprimorar o olhar do diretor, possibilitando que sua carreira
nos longas-metragens iniciasse de maneira tão sólida. Partindo desse filtro, chegamos
aos 11 longas-metragens do diretor. Para podermos denominar sua obra como uma
representação cinematográfica do mal-estar líquido, elaboramos um quadro temático
(Quadro 01) da filmografia de Haneke, que nos possibilite ter uma visão mais ampla
83
dos aspectos abordados em sua obra, provando que ela transita por entre os ja
estudados fatores angustiantes formadores do mal-estar líquido.
Quadro 01 - Quadro temático da filmografia de Haneke
ANO FILME SINOPSE TEMA
1989 O sétimo continente Uma família européia, capturada
pela rotina e por pequenos
acontecimentos, planeja fugir para a
Austrália. No entanto, por trás de sua
existência aparentemente calma
e repetitiva, eles planejam algo
sinistro.
Fastio da classe média na sociedade
contemporânea. Cadeia de consumo,
rotina de trabalho, mecanização de
sentimentos, esvaziamento
espiritual, fuga da realidade
1992 O vídeo de Benny Um garoto de 14 anos, arrebatado por
uma câmera, não consegue mais se
relacionar com o mundo real, a tal
ponto que comete um assassinato e grava
uma confissão em vídeo para seus pais.
Fastio da classe média.
Incomunicabilidade. Cadeia de consumo,
fuga da realidade.
1994 71 fragmentos de uma cronologia do
acaso
71 cenas que giram em torno de um
imigrante, um casal que acaba de adotar
uma filha, um estudante
universitário e um velho solitário.
Incomunicabilidade. Globalização.
Xenofobia.
1997 Violência gratuita Dois jovens psicóticos tomam uma família como
Violência aparentemente
injustificável. Fastio
84
refém e os obrigam a participar de jogos
sádicos para seu próprio
entretenimento.
da classe média. A mídia como
linguagem e conteúdo.
2000 Código desconhecido O catalisador das histórias começa
numa esquina, onde o cunhado de Anne,
Jean insulta Maria, que implora ajuda.
Amadou, enraivecido, provoca uma briga
com Jean, resultando em repercussões negativas para os
três grupos.
Xenofobia. Violência. Incomunicabilidade.
2001 A professora de piano
Uma professora de piano masoquista é
perseguida romanticamente por um de seus alunos.
Impossibilidade de conexão afetiva.
Incomunicabilidade. Culpa e punição.
2003 O tempo do lobo Quando Anna e sua família chegam à sua
casa de férias, ela está ocupada por
estranhos.
Violência. Regramento social.
Globalização.
2005 Caché Um casal é intimidado ao receber vídeos de vigilâncias gravados em frente à
sua varanda.
Overdose imagética. Xenofobia. Fastio da
classe média.
2007 Violência gratuita Dois jovens psicopatas fazem
uma família de refém em sua cabana.
Violência e sua falta de justificativa. A classe média. A
mídia como linguagem e conceito e a resignificação do
próprio filme pela sua refilmagem.
85
2009 A fita branca Estranhos eventos acontecem em um
pequeno vilarejo no norte da Alemanha
durante os anos imediatamente
anteriores à Primeira Guerra Mundial, o
que parece ser um ritual de punição. As crianças, vítimas de abuso e repressão,
parecem estar no centro deste mistério.
Embrião do mal como inconsciente
coletivo. A punição e seus efeitos.
2012 Amor Georges e Anne são um casal
octogenário. Eles são professores de
música aposentados. Sua filha, também
música, vive na Grã-Bretanha com sua
família. Um dia, Anne tem um derrame, e o
laço de amor do casal é severamente
testado.
Contraponto ao amor líquido. Resignação.
Velhice. Dependência afetiva.
Através desse quadro comparativo a respeito da filmografia de Haneke,
incluindo apenas os 11 filmes produzidos para exibição comercial em salas de exibição,
é possível termos bem claramente alguns dos temas recorrentes na sua
cinematografia. Questões referentes aos fatores angustiantes do mal-estar líquido
como a cadeia de consumo, o tédio da classe média burguesa, a overdose imagética, a
globalização e suas consequências, a violência, a xenofobia e a incomunicabilidade
são alguns dos aspectos que permeiam as obras.
Nesse sentido, o único filme que destoa levemente em meio ao conjunto é Amor,
principalmente em relação ao enfoque, porém ainda nos servindo para justificar a
escolha de Haneke. A questão do amor líquido é ressaltada sob um ponto de vista
86
antagônico ao que ele costuma utilizar em seus filmes, que é o ponto de vista interno
do sintoma, já bastante deturpado e sob uma ótica considerada bastante pessimista.
Em Amor, a perspectiva é a de um casal de idosos que se mantém unidos em meio ao
processo de deterioração física e mental da esposa, e de como seu marido lida com
esse transcurso irreversível, que se projeta também na relação dos dois. A visão aqui é
um pouco mais “otimista”, apesar do filme ter um final, aparentemente, bastante bruto.
Haneke assume uma posição de dentro dessa relação que ainda não foi afetada pelos
laços pós-modernos/líquidos. Ainda pertencente aos padrões convencionais de um
casamento realizado para durar a eternidade. Bauman falava a respeito: “Se você
investe em uma relação, o lucro esperado é, em primeiro lugar e acima de tudo, a
segurança” (2009, p. 29), visto que, nos relacionamentos contemporâneos, isso cada
vez mais se encontra distante - estar em uma relação significa insegurança
permanente. São justamente as consequências mostradas no filme - de uma
dependência afetiva (em termos de amor e companheirismo) e de um medo da solidão
quase absoluta ao término dessa convivência - que formam uma gama de fatores que
não conseguem permanecer “sólidos” em frente a um mundo tão mutante e com um
fluxo de informações tão acelerados. Como ser capaz de nutrir uma relação de
tamanho peso e comprometimento dentro das relações extremamente fugazes que os
novos tempos proporcionam? Dentro dessa visão, acompanhar um processo tão
doloroso e solitário como é o de Georges passa a ser muito mais angustiante para um
público já acostumado a relações tão fugidias.
Todos os outros longas-metragens possuem um vínculo bem mais estreito e
homogêneo, e a questão do enfoque se dá pelo olhar interno dos sintomas que formam
o mal-estar, sendo por isso considerados sempre filmes pessimistas e pesados. Com o
protagonismo desses elementos, é possível percebermos na primeira trinca de filmes
dirigidos por Haneke, e que que é também conhecida como a “Trilogia da Frieza” ou
“Trilogia Glacial” (formada por O sétimo continente, O vídeo de Benny e 71 fragmentos
de uma cronologia do acaso) uma carta de intenções a respeito dos temas que ele
voltaria a trabalhar em suas obras futuras. Identifica-se claramente a pedra
fundamental da obra de Haneke em seus primeiros filmes. A escolha por O sétimo
continente e O vídeo de Benny para a proposta de análise se dá por uma questão de
87
representatividade narrativa. Nos interessa, dentro deste estudo, abordar questões
analíticas referentes a roteiro e direção dentro de uma estrutura narrativa mais linear, a
fim de que a fábula e seus pequenos elementos possam ser representativas do ponto
de vista da representação cinematográfica do mal-estar líquido. Assim sendo, 71
fragmentos de uma cronologia do acaso acaba se distanciando dessa proposta, por
apresentar uma narrativa mais fragmentada, mais decomposta ao estilo “mosaico”, e
sem uma ligação direta entre seus trechos episódicos. É sim, um filme representativo
do mal-estar líquido, mas, para a proposta desta dissertação, se desloca de maneira
suficiente para não incluir-se no corpo analisado.
3.3 O SÉTIMO CONTINENTE
O homem moderno perdeu todas as certezas metafísicas da Idade Média, trocando-as pelo ideal da segurança nacional, do bem-estar geral e do humanitarismo. quem conseguiu conservar esse ideal inalterado é um grande otimista, pois essa segurança foi por água abaixo. o homem moderno começa a perceber que todo passo em direção ao progresso material parece significar uma ameaça cada vez maior de uma catástrofe ainda pior (JUNG, 2000, p. 81).
Em O sétimo continente, uma família austríaca de classe média aparenta ter
uma pacata e bem-sucedida rotina. O pai, Georg, acaba de conseguir uma promoção
no trabalho; a mãe, Anna, é oftalmologista e a filha, Eva, é estudante de uma boa
escola, mas parece estar inventando sintomas físicos para chamar a atenção. Inseridos
dentro de uma comunidade líquida-moderna, descobrimos ao longo da narrativa que
suas vidas vazias de sentido os fazem tomar uma decisão radicalmente impetuosa,
porém absolutamente racional.
Esse primeiro longa-metragem de Haneke é um belo objeto de estudo para
efetuarmos uma análise em companhia da teoria do mal-estar líquido, já que
narrativamente parece estar impregnado por ele, sendo talvez o exemplo
cinematográfico mais irradiado pelo conceito que estudamos anteriormente. Alguns
artifícios que serão muito usados por Haneke já se encontram no filme, como o uso
recorrente de televisões e rádio para trazer uma contextualização externa e um
soterramento midiático ao universo de seus personagens. Em O sétimo continente,
todos os planos que nos mostram os personagens executando ações rotineiras,
88
mundanas ou que não exigem um compromisso afetivo direto são captados através de
planos-detalhes (fugindo dos rostos dos personagens), despersonalizando-os e
realçando, posteriormente, os momentos nos quais há uma relação afetiva entre os
personagens, mostrando-os em close.
Haneke utiliza letterings10 para demonstrar a passagem de tempo mais espessa
do filme, que é a representada pelos anos que se seguem. Ele as divide em três partes,
que representam cada uma um ano, entre 1987 e 1989. Esse aspecto um tanto didático
pode ajudar o espectador a perceber a real extensão de tempo que se passa dentro do
filme, o que pode auxiliar a se ter uma noção de articulação mais racional do intuito
daquela família, ao invés de evocar algum ato mais impulsivo, que faria o filme perder
algo de sua força. A utilização de inúmeras telas pretas entre uma sequência e outra
tem uma função quase de extensão do fluxo de pensamento dos pais, Anna e Georg. A
cada passo rumo ao seu destino trágico-libertador, parece que algum instinto de
preservação social se apaga em suas mentes, dando espaço para que seja preenchido
por uma pulsão mais pura e paradoxal - a de correr ao encontro da morte.
Parte I 1987.
Os créditos iniciais abrem em cima de um longo plano sequência (Imagem 01)
do casal (apenas ao final da cena podemos visualizar que a filha também se encontra
no carro) em um lava-rápido, e o silêncio e a completa falta de interação entre os dois
durante o prolongamento do plano já evoca um sintoma bastante comum à
modernidade líquida: a incomunicabilidade. Algo parece não estar em perfeita sintonia
uma vez que estamos dentro do carro com aquela família. Não há conversas rotineiras
sobre o passar do dia, sobre as tarefas a serem realizadas ou sobre como se sentem.
O ar é denso e pesado enquanto lá fora a água esguicha para tentar limpar o veículo.
10 Inserção de caracteres em texto, que forneçam alguma informação a respeito do que é visto na tela ou que venha a surgir.
89
Imagem 01 – Plano sequência no lava-jato (reprodução)
Planos detalhes demarcam toda a próxima cena, que nos apresenta ao início da
rotina diária da família, partindo do despertar com o rádio relógio, a abertura da cortina,
a colocação das roupas e a higiene dental da manhã. Não enxergamos pelos
enquadramentos os rostos de Georg, Anna ou Eva nestes primeiros minutos de filme.
Toda a ação se desenrola através dos planos detalhes de seus movimentos ou de
planos gerais que cortam do enquadramento a cabeça dos personagens. O que
percebemos aqui é que essa família não necessita de uma prévia personalização, essa
família é uma representação de uma típica família de classe média ocidental. Haneke
tenta despersonalizar e desumanizar a família nesse primeiro momento, atando-a à
rotina tão corriqueira de tantas outras famílias, justamente para utilizá-la como uma
“familia modelo” da sociedade liquida.
Vemos o rosto de Eva pela primeira vez aos 11’50’’, em um travelling rápido em
sua direção, que a enquadra chorando e falando com a professora de sua escola. Uma
aluna diz “Ela não consegue ver mais nada”. A menina está com os olhos fechados
(imagem 02) e confirma a história, balançando a cabeça positivamente. Ela abre os
olhos e confirma “não posso ver nada”. Enxergamos seu rosto justamente quando há
um acontecimento fora daquela rotina. A menina está apenas querendo chamar a
90
atenção dos adultos? Está tentando encontrar uma fuga do colégio? Aqui devemos
encarar o acontecimento narrativo como um ponto simbólico para o discurso do filme.
Por mais que, mesmo que a menina esteja psicossomatizando algum fator mental que
a tenha feito realmente interromper seu sentido de visão por alguns momentos, nos
cabe aqui ir além do objetivo e buscar a interpretação que temos da obra.
Eva está pedindo ajuda, não exatamente para a professora ou para seus
colegas. Eva, aqui, é uma representação da consciência, no caso infantil e descobrindo
o mundo através de sua visão, que não consegue se desvencilhar da enxurrada líquida
de signos, imagens, sons que nunca alcançam os sentidos.
O fato de sua “cegueira” ter ocorrido na escola também é representativo, em
uma época na qual há uma distância colossal entre o ambiente escolar e o ambiente
doméstico. A escola ficou perdida no tempo, enquanto mesmo as crianças já crescem
em um ambiente altamente permeado por conexões, informações replicadas e novas
mídias continuamente sendo resignificadas. McLuhan (1972) amplia essa noção,
comparando a escola com um dos pilares da modernidade sólida:
Há um mundo de diferença entre o moderno ambiente do lar de informação elétrica integrada e a sala de aula. Hoje a criança da televisão está sintonizada para as notícias “adultas” de última hora - inflação, desordens de rua, guerra, impostos, crime, beldades em biquínis - e fica desnorteada quando penetra no ambiente do século dezenove que ainda caracteriza o organismo educacional, onde a informação é escassa mas ordenada e estruturada em padrões, assuntos e programas fragmentados e classificados. Esse é, naturalmente, um ambiente muito semelhante ao de uma fábrica com seus depósitos e linhas de montagem (MCLUHAN, 1972, p. 46).
Ele ainda faz um paralelo interessante com a forma como o universo infantil se
desvinculou do mundo adulto com o passar dos séculos, dizendo que “A ‘criança’ é
uma invenção do século dezessete, ela não existia, digamos, no tempo de
Shakespeare” tendo sido infantilizada ao longo das gerações, em um processo que
guarda relação com a reestruturação do seio familiar, ocasionada pelas evoluções
sociais ao longo do período. Prossegue dizendo que “A criança de hoje cresce em
absurdo porque vive em dois mundos, nenhum dos quais a impele a ‘crescer’. ‘Crescer’
- essa é nossa nova tarefa, e ela é total. A simples instrução já não é suficiente”. Se
para a mente adulta, teoricamente mais madura e preparada para lidar com
91
reinserções de significados na vida, já parece bastante pesado viver sob as constantes
desconstruções da vida líquida, o que resta para as crianças?
Imagem 02 – Eva na escola (reprodução)
No consultório da mãe, que é oftalmologista, as mãos manejam as
máquinas(imagem 03) e o olho da paciente(imagem 04) domina a cena, em planos
detalhes. Há uma contraposição interessante nessa sequência, entre o manejo das
máquinas e o olho humano, trazendo a questão do meio como extensão do homem,
que McLuhan trabalhou bastante, mas Freud também relatou em seus estudos:
Através de cada instrumento, o homem recria seus próprios órgãos, motores ou sensoriais, ou amplia os limites de seu funcionamento. A potência motora coloca forças gigantescas à sua disposição, as quais, como os seus músculos, ele pode empregar em qualquer direção[...] (FREUD, 1997, p. 48).
92
Imagem 03 – Mãos no consultório (reprodução)
Imagem 04 – Olhos do paciente (reprodução)
É o homem amplificando seu poder quase divino, criando tentáculos físicos e
virtuais para expandir seus domínios sobre a natureza. Pois “[...] nem a água e o ar
podem impedir seus movimentos; por meio de óculos corrige os defeitos das lentes de
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93
seus próprios olhos; e pelo microscópio supera os limites da visibilidade de sua retina”
(p. 48). O homem se tornou um “Deus de prótese”, e isso se deve ao seu desejo de
materializar o poder que ele possui de sua memória. Freud desenvolve que a câmara
fotográfica retém impressões visuais fugidias, assim como o disco retém as auditivas; e
a escrita é, em sua origem, a voz de uma pessoa ausente, e a casa um substituto do
útero materno, que busca concretizar a segurança tão buscada pelo indivíduo.
Há muito tempo atrás, o homem formou uma concepção ideal de onipotência e onisciência que corporificou em seus deuses. A estes, atribuía tudo que parecia se inatingível aos seus desejos ou lhe era proibido. Pode-se dizer, portanto, que esses deuses constituíam ideais culturais. Hoje, ele se aproximou bastante da consecução desse ideal, ele próprio quase se tornou um deus. O homem se tornou um “Deus de prótese”. Quando faz uso de todos os seus órgãos auxiliares, ele é verdadeiramente magnífico (FREUD, 1997, p. 49).
Para McLuhan, “o meio é a mensagem”, o que significa dizer que essa eterna
busca pela ascensão divina através de extensões de seu corpo é a própria prova da
ruptura com o divino que o homem líquido enfrenta. Isso acarreta uma nova forma de
lidar com questões morais, inclusive com a remissão da culpa, que não parece mais
ser satisfatoriamente expurgada pela missa de domingo. “Em nosso próprio mundo, à
medida em que ganhamos consciência dos efeitos da tecnologia na formação e nas
manifestações psíquicas, vamos perdendo toda a confiança em nosso direito de atribuir
culpas” (p. 31), afirma McLuhan (2005).
No mercado, os corpos caminham junto ao carrinho de compras os planos
detalhe passam pelas mercadorias, a carne é cortada para o casal, filas de carrinhos
se formam frente ao caixa (imagem 05), as compras passam pela máquina
registradora, que habilmente faz as somas das compras, o dinheiro sai da carteira para
a máquina. No posto, a gasolina é posta no carro e, mais uma vez, paga. O carro parte.
Tudo em planos detalhes. Eles chegam na garagem de casa, o portão se fecha.
Finalmente o enquadramento abre para que possamos ver a família. Estão em sua
fortaleza, seguros.
94
Imagem 05 – Fila no supermercado (reprodução)
A relação mais óbvia a ser feita é realmente com a questão da sociedade de
consumo na modernidade líquida, porém devemos analisar o que a decupagem de
Haneke nos proporciona, ligada intimamente com a questão da individualidade.
Nenhum dos personagens no supermercado interagem entre si ou são personalizados
mostrando seus rostos. Toda a cena é guiada pelos planos detalhes ou planos abertos
que mostram apenas corpos e carrinhos de compras, quase como se fossem também
extensões do indivíduo na sociedade de consumo. Bauman explana sobre como o
consumismo está fundado sobre a liberação de “fantasias desejosas”, e não sobre a
regulação (estimulação) do desejo. Ele cita Ferguson para estabelecer uma ligação do
conceito de desejo com a expressão individual:
[...] a noção de desejo liga o consumismo à auto expressão, e a noções de gosto e discriminação. O indivíduo expressa a si mesmo através de suas posses. Mas para a sociedade capitalista avançada, comprometida com a expansão continuada da produção, esse é um quadro psicológico muito limitado, que, em última análise, dá lugar a uma “economia” psíquica muito diferente. O querer substitui o desejo como força motivadora do consumo (FERGUSON apud BAUMAN, 2001, p. 89).
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95
Bauman completa que o desejo não pode mais ditar o ritmo, como Ferguson
falou, o “querer” é muito mais poderoso, versátil e necessário para seguir mantendo a
demanda do consumidor, pois ele completa a libertação do princípio do prazer, limando
e dispondo dos últimos resíduos dos impedimentos do “princípio de realidade”.
“Enquanto a facilitação do desejo se fundava na comparação, vaidade, inveja e a
‘necessidade’ de auto-aprovação, nada está por baixo do imediatismo do querer. A
compra é casual, inesperada e espontânea” (p. 89). O impulso de consumo parece
finalmente se materializar em um sentimento quase onírico de possuir algo. Chega ao
nível de ser infantil, devido à sua “pureza” de sentimento.
A sociedade de consumo grita pela liberdade individual dentro da sociedade,
pois é ela que dá a sensação de poder de escolha para o indivíduo efetuar suas
posses. Harvey faz essa ponte:
De um lado, tínhamos sido libertados das cadeias da dependência subjetiva, tendo sido agraciados com um grau muito maior de liberdade individual. Isso, no entanto, fora alcançado às custas de tratar os outros em termos objetivos e instrumentais. Não havia escolha senão nos relacionarmos com “outros” sem rostos por meio do frio e insensível cálculo dos necessários intercâmbios monetários capazes de coordenar uma proliferante divisão social do trabalho. Também nos submetemos a uma rigorosa disciplina do nosso sentido de espaço e de tempo, rendendo-nos à hegemonia da racionalidade econômica calculista (HARVEY, 1993, p. 34).
Ele cita Georg Simmel ao relacionar esse processo de individualização
provocado pela cadeia de consumo ao início de um anestesiamento da sociedade, que
Simmel chama de “atitude blasé”, pois “somente afastando os complexos estímulos
advindos da velocidade da vida moderna poderíamos tolerar os seus extremos[...]”,
deixando claro que a única saída para isso se concretizar é por “[...] um falso
individualismo através da busca de sinais de posição, de moda, ou marcas de
excentricidade individual” (p. 34). É o risco que Bauman também trouxe ao citar
Tocqueville, prevendo que esse processo poderia tornar as pessoas indiferentes. “O
indivíduo é o pior inimigo do cidadão” (p. 45), pois enquanto o cidadão se preocupa em
atingir seu bem-estar através do bem-estar coletivo, o indivíduo tende a não se
envolver com o “bem comum”. Essa indiferença ou letargia é uma característica
96
profunda da modernidade líquida, visto que as constantes realocações de sentido
tornam os indivíduos dispersos e confusos.
Essa lógica também se aplica a outros fatores da modernidade líquida. A
liberação econômica e cultural também possibilitou que uma “sugestão” de liberdade
fosse cada vez mais assimilada, devido a uma abertura econômica e moral. Mas essa
obediência aos padrões (uma maleável e bizarramente ajustável obediência a padrões
eminentementes flexíveis) “tende a ser alcançada hoje em dia pela tentação e pela
sedução e não mais pela coerção - e aparece sob o disfarce do livre arbítrio, em vez de
relevar-se como força externa” (p. 101), completa Bauman.
A modernidade liquida também é a época na qual estamos sempre cercados de
estranhos. Qualquer “aventura” longe dos próprios domínios nos obriga a lidar com um
mar de incertezas expresso em outras formas humanóides, andando por entre os
corredores do mercado, consumindo produtos como nós. Bauman também utiliza o
conceito dos “estranhos” para se referir a todos aqueles que são “excluídos” do jogo do
consumo, principalmente por não conseguirem acompanhar financeiramente a
demanda. Essa exclusão os leva até geograficamente para longe dos grandes centros
de convivência “financeira” dentro das grandes cidades. Porém, os estranhos também
são aqueles que, como nós, apenas são indivíduos perfeitamente adaptados aos
padrões da sociedade líquida, mas que não se tocam, não se olham. Sobre essa
presença constante de nossos “pares díspares”, Bauman completa que ela:
[...] acrescenta uma eterna incerteza a todas as buscas existenciais dos moradores das cidades. Essa presença, impossível de ser evitada por mais que um breve momento, é uma fonte inesgotável de ansiedade e de uma agressão geralmente adormecida, mas que explode continuamente (BAUMAN, 2007, p. 90).
É uma consequência da estrutura líquida da cidade, como um centro de
contínuo encontro entre estranhos, sempre próximos, mas nunca íntimos. É que “[...]
quanto mais eficaz a tendência à homogeneidade e o esforço para eliminar a diferença,
tanto mais difícil sentir-se à vontade em presença de estranhos, tanto mais
ameaçadora a diferença e tanto mais intensa a ansiedade que ela gera” (2001, p. 123),
finaliza Bauman. Entretanto, especificamente os lugares de compra/consuma oferecem
o que nenhuma “realidade real” externa pode dar, “o equilíbrio quase perfeito entre
97
liberdade e segurança”, pois “ dentro de seus templos, os compradores/consumidores
podem encontrar o que zelosamente e em vão procuram fora deles: a impressão de
fazer parte de uma comunidade” (p. 116).
Vemos a menina estudando, já aparentemente curada de sua “cegueira
temporária”. Finalmente vemos o pai, tomando banho; e a mãe, guardando as compras
no freezer. A casa parece ser o local onde podemos deixar (algumas) máscaras
guardadas, há uma sensação de segurança que provém dela, como talvez nunca tenha
havido em outra época, por mais que estejamos em constante insegurança.
A mãe atende um telefonema, que parece ser da escola. Anna conversa com
Eva a respeito do que aconteceu na escola. Ela pergunta se a menina fingiu ser cega,
em um primeiro momento, a filha nega, mas depois admite, recebendo um tapa da
mãe. Esse é o primeiro momento de confronto dramático entre os personagens
daquela família; e aqui Haneke faz questão de nos aproximar deles (imagem 06).
Dentro de casa, em segurança e tendo um embate que vai além de sua rotina, é
preciso ir para dentro dos personagens. Ele filma toda a cena com closes das duas, e
um pouco de emoção genuína parece finalmente vir à tona. Porém, Anna não parece
estar irritada com a filha por ela ter inventado uma mentira. A brabeza parece vir de
uma resistência infantil em não conseguir se “inserir” dentro de um jogo que a
sociedade exige. A cegueira pode existir, mas nunca deve ser admitida, principalmente
dessa forma, em público. Os anseios que atormentam a existência líquida devem ser
disciplinados e voltados para dentro do “eu”, “Os medos, ansiedades e angústias
contemporâneos são feitos para serem sofridos em solidão. Não se somam, não se
acumulam numa “causa comum”, não tem endereço específico e muito menos óbvio”
(p. 170). O receio de Anna parece muito mais o de sua filha se “destacar” da lógica do
sistema, correndo o risco de ser excluída pela mesma.
98
Imagem 06 – Anna e Eva (reprodução)
Após o confronto, Anna para, pensativa, olhando através da janela. Da
segurança do seu lar, ela fita o exterior, internalizando suas angústias, exercitando as
regras que a sociedade exige.
A família come à mesa na companhia do irmão de Anna. Os enquadramentos
passeiam em close por cada um dos rostos à mesa. O clima é silencioso durante a
refeição, mas durante uma conversa aparentemente banal, o irmão começa a chorar. A
mãe se aproxima dele, para consolá-lo. Todos estão em silêncio. O irmão já sabe da
decisão tomada pela família, e tenta obedecer às regras, não externando suas
preocupações. Porém, não é simples estar sempre de acordo com a “etiqueta líquida”,
e ele desaba por um instante, recebendo o silêncio por parte de seus pares. Não é
permitido falar a respeito.
Na frente da televisão, os três assistem a algo, silenciosamente. Georg diz “sabe
o que mamãe falou alguns dias antes de morrer?” - “Ás vezes imagino que, ao invés de
uma cabeça oca, tem uma tela onde posso ler seus pensamentos”. A frase é forte e vai
para um espectro mais simbólico de maneira textual, fugindo um pouco do resto do
filme, que trabalha o simbolismo de maneira puramente imagética. Aqui Haneke deixa
<-
1à
/
99
bem marcado a extensão humana da mídia, no caso, de uma segunda tela,
pertencente ao corpo. Parece haver também uma crítica bastante clara ao relacionar a
cabeça oca com a tela, no qual o fluxo de imagens, signos e símbolos passa como em
uma televisão, de forma contínua e sem pausas para buscar sentido no que se vê. É
quase como um atestado de morte da modernidade sólida, representada pela fala da
mãe de Georg, antevendo uma explosão líquida ainda mais potente na era pré-internet.
Baudrillard já previa o papel da mídia onipresente em um mundo globalizado,
com a função de “tornar o presente cada vez mais presente, o tempo cada vez mais
real e, portanto, de eliminar a própria questão do devir”. O angustiava a forma com que
esse ingresso da mídia de uma forma cada vez mais intrusiva poderia afetar a
sociedade e seus indivíduos também:
A mídia anula todas as questões anteriores a ela, sobre a liberdade, sobre a identidade, etc. Ela desembocará num funcionamento imanente, transversalidade total, o que é, sem dúvida, um destino bastante negativo. Com a possibilidade de transcodificação de tudo, do político, do econômico, do cultural, cada elemento perde a sua singularidade. E os indivíduos também (BAUDRILLARD, 1998).
Para ele, tudo que for passível de ser criado através da imaginação é também
passível de ser absorvido pela imagem. É o domínio do visual se impondo de tal forma
na sociedade líquida que afasta qualquer possibilidade de autonomia para a criação
imagética. “Atingimos o grau zero da palavra”, finaliza, em tom quase apocalíptico. Mas
encaixa com o que vemos na sequência de O sétimo continente. A palavra é quase um
desvio de conduta, e, quando usada, nem sempre evoca alguma coisa fora do que se
vê. Georg, Anna e seu irmão continuam assistindo televisão, letargicamente.
Ao botar a filha para dormir, a mãe pergunta se ela está solitária - ela diz que
não. Ela pergunta se ela ama papai e ela responde positivamente. Ela pede para a filha
rezar e apaga a luz. O ritual para Eva dormir segue alguns elementos básicos: se
assegurar que há amor, se assegurar que a filha esteja conectada com uma força
externa que a proteja também. Camadas de segurança proporcionadas pelo amor e
pela religião, mesmo que nesse caso, elas pareçam estar tão distantes do cotidiano
daquela família, sendo trazidas quase que burocraticamente por pequenos atos que os
comprovem. Jung já falava que “ o interesse psicológico da nossa era espera algo da
100
psique que o mundo externo não pode dar, algo que a religião deveria conter, mas não
contém” (p. 168), ao tratar da efemeridade com que buscamos e descartamos crenças,
em uma eterna ciranda à procura de sentido.
Bauman explicita a teoria de Mary Douglas a respeito de códigos restritos e
elaborados utilizados na criação infantil em famílias da classe média e da classe
operária. Ela expõe que, enquanto a criança na família de classe operária é “controlada
pelo desenvolvimento contínuo de um senso de padrão social” cujas respostas são
sempre elaboradas através de uma lembrança da hierarquia de poder “porque assim
digo eu”, de gênero “porque você é um menino”, de antiguidade “porque você é o mais
velho”, etc. Já nas famílias de classe média, “o controle é efetuado por meio da
manipulação verbal de sentimentos ou pelo estabelecimento de razões que ligam a
criança a seus atos”, a liberando de um sistema de posições rígidas, mas aprisionando-
a num sistema de sentimentos e princípios abstratos. É exatamente esse tipo de
controle que vemos sendo executado por Anna ao ligar suas ações, mesmo que
inconscientemente, a um padrão de dependência, como perguntando acerca do amor
dela por seu pai e a ensinando a rezar antes de dormir.
O enquadramento mostra uma praia com o tempo nublado e a onda que quebra
em alto volume. O pai acorda no meio da noite. A imagem da praia é exatamente a que
aparece no início do filme, em um cartaz (imagem 07) de uma agência de turismo,
convidando as pessoas a visitarem a Austrália. A imagem de um lugar absolutamente
calmo, sem presença humana e conectado com a natureza em seu estado primitivo é o
que transborda daquela imagem. Posteriormente, a família decide ir para a Austrália, o
“sétimo continente” material do filme, mas que representa aqui um sétimo continente à
medida que sua representação de paz e serenidade não é possível de existir
objetivamente. A imagem que persegue Georg e o faz acordar é quase uma epifania de
que aquele lugar só existe como bem de consumo de uma empresa de turismo, não há
possibilidade de materializar aquele sentimento. Estão presos.
101
Imagem 07 – Cartaz da agência de turismo (reprodução)
O fato de ser o pai a acordar também se choca com a questão da formação da
família na modernidade líquida. A formação das famílias na pré-história, explicada por
Freud por uma necessidade de satisfação genital, e de conservar seus “objetos
sexuais” junto ao macho ao mesmo tempo que a fêmea não pretendia mais ficar longe
de seus filhos indefesos, passou por um processo civilizatório ao longo dos períodos,
ao mesmo tempo “se vincula à diminuição dos estímulos olfativos, através dos quais o
processo menstrual produzia efeito sobre a psique masculina, substituído pela
excitação visual, que mantinha um efeito permanente”. É a inserção do processo
imagético cada vez mais presente e partindo de uma substituição primitiva para uma
“civilizada”, e vinculando o visual ao civilizado. “Por um lado, o amor se coloca em
oposição aos interesses da civilização; por outro, esta ameaça o amor com restrições
substanciais” (p. 61). A relação do pater familia como membro responsável por ordenar
e hierarquicamente superior dentro da estrutura familiar se manteve por séculos de
maneiras diferentes, aos poucos ganhando um verniz civilizatório, mas mantendo o
forte aspecto masculinizador que a sociedade civilizada sempre levou em conta. Dentro
WiyD©ii to te
102
da modernidade líquida, esse papel nunca esteve tão enfraquecido, devido às
profundas e constantes mudanças culturais e sociais que a sociedade líquida sofreu.
Nesse cenário, a figura da família também se modifica, e a questão da formação de um
elo hereditário contínuo e que evoque a imortalidade dos pais através dos filhos nem
sempre passa a fazer mais sentido. Em uma sociedade tão efêmera e volátil, nem
mesmo essa imortalização pela extensão paterna parece ser tão recompensadora. O
horizonte não é tão facilmente avistado.
O filho passa a ser, acima de tudo, “um objeto de consumo emocional” (p. 59),
segundo Bauman, servindo para satisfazer as necessidades, desejos ou impulsos do
indivíduo consumidor. Ao mesmo tempo, ter um filho significa abrir mão de sua
autonomia, diminuir a entrega profissional e investir uma polpuda quantia monetária.
Ter filhos significa aceitar essa dependência divisora da lealdade por um tempo indefinido, aceitando o compromisso amplo e irrevogável, sem uma cláusula adicional ‘até segunda ordem’ - o tipo de obrigação que se choca com a essência da política de vida do líquido mundo moderno (BAUMAN, 2009, p. 61).
Parte II 1988.
O casal transa e reinicia sua preparação de rotina. Uma carta é lida. É de Anna,
escrevendo para sua mãe. O sexo é mecânico e parece mais estar dentro de um
sistema burocrático do relacionamento do que propriamente ter sido um instrumento da
contemplação de desejos sexuais.
A família anda de carro e passa por um acidente na rua. A mãe observa o corpo
plastificado e inerte no chão. Em meio à rotina aparentemente segura daquela família
de classe média, vez por outra a sociedade virá alarmá-la sobre as probabilidades de
seu casulo ser rompido. Os perigos rondam a barreira da fortaleza, muita vezes na
forma de acasos ou acidente, o que os tornam muito mais temidos. Jung (2000) relata
que na época primitiva, não haviam acasos, somente intencionalidades, à medida que
tudo aquilo que não possuía uma explicação explícita era ornada com uma explicação
divina ou de cunho místico. Na modernidade sólida, a ciência passa a explicar a
maioria dos anseios que atormentam o cotidiano da sociedade, porém, o acaso não
pode ser explicado. Ele se levanta como uma força que coloca qualquer indivíduo em
permanente estado de ansiedade. Algumas coisas simplesmente acontecem.
103
Eles estão novamente no lava-rápido (imagem 08). Os enquadramentos
fechados em Georg, Anna e Eva, com suas figuras silhuetadas e a água caindo ao
redor do carro passam a impressão de um ritual de purificação, necessário para aquela
família. Todos ficam em silêncio novamente, mas os pais se olham. A filha olha para
eles. Anna estende a mão para a filha e começa a chorar. Há algo entalado na
garganta daquela família. Eles tomaram uma decisão da qual não voltarão atrás, pois
não há saída no mundo líquido - não há possibilidade de purificação ou de expurgo dos
próprios pecados. Não há um caminho que leve à paz, e Bauman fala sobre um dos
pilares da modernidade sólida que se esvai, há o “colapso gradual e o rápido declínio
da antiga ilusão moderna: da crença de que há um fim do caminho em que andamos”
(p. 37). Eles saem do lava-rápido.
Imagem 08 – Família no lava-rápido (reprodução)
Parte III 1989
A família se prepara para viajar e se despedem da mãe Georg. Novamente
Haneke utiliza dos planos detalhes para conduzir a cena até o momento de eles irem
embora, no qual enquadra os pais de Georg. Entendemos então que eles estão
voltando para casa, de visita aos pais, quando voltam para sua garagem. A quebra da
r
r 1
104
rotina serve apenas para a despedida, que serve como uma última ruptura daquele
núcleo familiar com seus parentes mais próximos.
Quando o casal se prepara para dormir, Georg avisa: “teremos que cancelar a
assinatura do jornal”, já que não precisarão mais da conexão midiática com o exterior,
as informações a respeito do que acontece na cidade ou no mundo não interessarão
mais. Resta desconectar-se.
Na escola, Eva parece ter mais uma projeção física do mal-estar que assola
aquela família - depois de “fingir-se” cega - ela sente uma ardência inexistente, e coça
para tentar se aliviar. Por mais que Eva e seus pais estejam com data marcada para
serem “absolvidos” de suas culpas, o mal-estar líquido não se dissipa.
Georg compra algumas ferramentas: serrote, martelos, máquinas de corte. No
banco, ele encerra a conta da família. Também vende o carro ao ferro-velho. Anna liga
para a escola dizendo que a filha está doente. O momento do ritual se aproxima e o
expurgo começa por se desvincular das posses mais significativas até mesmo para a
modernidade sólida. O banco e o carro, como dois totens do capitalismo em sua fase
fordista, símbolos do sistema capitalista e da revolução industrial, dois dos principais
responsáveis por empurrar a sociedade para o estado líquido, obrigando outros setores
a se resignificarem.
Mais um trecho da carta é lida, e o pai questiona se seria melhor Eva ir com eles
ou ficar aos cuidados dos avós, ele diz que a decisão deles causou profundo danos à
alma e ao coração deles, pois decidir o futuro de alguém é algo extremamente
complexo, ainda mais de uma pessoa tão importante. É o único momento no filme em
que vemos uma dúvida moral por parte dos pais. Durante todo o resto da obra, no
máximo é possível sentir o peso da decisão, mas agora somos jogados para dentro da
consciência moral do casal, indo além do que as imagens nos comunicam e
textualmente sentindo seus questionamentos. Jung define a consciência como uma
“manifestação do ‘extraordinariamente operante’, qualidade própria das representações
arquetípicas”, pertencendo à categoria do inconsciente coletivo e atingindo um padrão
arquetípico de comportamento que atinge a alma animal. É definido pelo entorno
cultural e social do indivíduo, repercutindo as matizes hereditárias do inconsciente
coletivo. Ele estrutura o arquétipo em relação à moralidade:
105
O arquétipo como fenômeno da natureza não possui valor moral, só adquirindo-
o através do ato do conhecimento. é um padrão de comportamento que sempre existiu e que é moralmente indiferente enquanto fenômeno biológico, mas consegue influenciar profundamente o comportamento humano. é uma forma irrepresentável, inconsciente e pré-existente, que parece ser parte da estrutura hereditária da psique e que pode manifestar espontaneamente em qualquer lugar (JUNG, 2000, p. 175).
Convencionou-se, inconscientemente, ao longo dos séculos um determinado
código moral à consciência, atacada constantemente pelas consequências culturais ao
arquétipo. “O que decidimos por vir do código moral ou da consciência, uma voz
subjetiva na qual não sabemos exatamente no que se baseia, e não é necessariamente
nobre” (p. 171), sendo que para Jung, a reação moral é um comportamento primitivo da
psique, enquanto as leis morais são resultados posteriores. Nesses termos, faz sentido
que Georg esteja sentindo os avisos morais de não colocar fim à sua vida e de sua
família, por mais que seu instinto primitivo esteja respondendo ao sentimento de
ansiedade provocado mal-estar líquido e, inclusive passando por um processo de
racionalização, levando-o ao seu veredito final.
Georg conta uma passagem de uma páscoa passada, na qual ouviam o coro
cantar “eu me regozijo pensando na morte” e Eva disse “eu também” assustando-os.
Para ele Anna ficou claro, conversando a respeito, que Eva não temia a morte, e que
seria importante tê-la junto. Quando eles comunicaram isso para Eva, foi igualmente
belo e triste, e também muito fácil para ela aceitar ficar com seus pais. Aqui a questão
da consciência parece se manifestar independente da maturação ou idade, como uma
resposta racional à única saída frente ao revés líquido-moderno. Seria a única saída?
“Penso que, ao lembrar da vida que vivemos, é mais fácil aceitar a ideia de um
final” (com fundo em tela preta). Peço para que não fiquem triste, não se culpem e não
aceitem nenhuma teoria supra-cristã. Isso não tem nada a ver com vocês”, finaliza
Georg em sua carta. Esta carta já mostra a atitude extremamente racional e pensada
por muito tempo que ambos tiveram. É como se a racionalização só pudesse levar à
destruição, em uma época tão sensorial e regida por fluxos, na qual não é possível
fazer grandes planos, talvez sendo a morte uma oportunidade de tomar a rédea de seu
destino, mesmo que de maneira definitiva.
106
Em uma cena de jantar ,eles parecem leves como nunca, mas o toque do
telefone os deixa preocupados. O pai desliga o telefone e o deixa fora do gancho. Há
um ritual e nada deve interrompê-lo. O pai termina a carta “Com todo meu amor, seu
filho, Georg”.
No dia seguinte, a esposa prepara um verdadeiro banquete, pela quantidade de
comida que retira. Georg deixa ferramentas à mão, organizando-as no sofá. Ao tirar
pães do forno, ela ouve um barulho vindo da sala. São Georg e Eva, jogando livros
pelo chão e quebrando o armário (imagem 09). “Acho que apenas assim
controlaremos”, diz ele, sobre a tensão e a ansiedade para concretizar o que planejam.
Parece haver um ritual bastante racional para a hora de partir, e até o momento
combinado, a ansiedade teima em bater à porta novamente, dessa vez não provocada
pelo mal-estar líquido, mas pela iminência da libertação, a única libertação possível.
Imagem 09 – Quebrando armário (reprodução)
Eles tomam um bem servido café, inclusive com champanhe, e Georg avisa Eva
para colocar sapatos bonitos para mais tarde. Os quadros com fotos são retirados das
paredes cuidadosamente, assim como roupas do cabide. Camisas do armário
começam a ser rasgadas e cortadas com tesouras, dando início a um ritual de auto-
107
destruição que passa, a princípio, por destruir aquilo que nos pertence. Que “nos”
pertence no sentido de manter a posse sobre nós, de nos livrar da materialidade que
nos direciona como um carcereiro. A purificação deve ser completa - cortinas são
destruídas, desenhos de Eva são recortados e rasgados, revistas, livros, sofá,
arquivos, álbuns de fotos. O que produzimos também faz parte de nós e precisa ser
destruído. Não é possível deixar extensões de nossa essência por aqui. Eles iniciam a
destruição dos equipamentos eletrônicos e de móveis (Imagem 10), se utilizando de
marretas, moto-serras e serrotes.
Imagem 10 – Quebrando móveis (reprodução)
Começa a haver uma crescente de destruição com esses objetos maiores e
mais estridentes e sonoros, sempre em planos detalhes. Uma sinfonia de destruição é
contemplada em tela. Uma catarse de um sentimento libertador que só é possível na
auto-destruição, que se inicia ali. O aquário de peixes é acertado, e a água escorre
pela sala. Os peixes começam a ficar sem vida (Imagem 11) e Eva chega na sala para
ver o que aconteceu. Estar de frente com aquela morte parece realocar o sentido da
morte dentro do contexto social e apavora Eva, que tenta fugir dali. Sua mãe a segura
e ambas se abraçam e choram, enquanto os peixes morrem.
108
Imagem 11 – Peixes sem vida (reprodução)
A campainha toca - é da companhia telefônica, pedindo para consertar o
telefone deles, que não dá linha. Georg o recoloca no gancho, mas amortece a
campainha do telefone para não ouví-lo se tocar. Por mais que a sociedade tente
intervir e manter determinado controle sobre o que acontece na vida privada, ele acha
uma maneira de burlar esse monitoramento e conseguir manter sua família “livre” por
um curto período de tempo. Eles jogam todo o dinheiro que tem na privada, puxando a
descarga (imagem 12). Não lhes será mais útil, de qualquer forma. A simbologia do
dinheiro é demasiadamente clara.
109
Imagem 12 – Dinheiro na privada (reprodução)
Eva pergunta se ainda conseguem ver tv no quarto, e, em meio a um montante
de objetos e aparelhos quebrados e destruídos, eles assistem tv, no escuro e em
silêncio (imagem 13). Na porta, a carta escrita por eles está pendurada a um envelope,
colado no vidro. Anna dá para Eva um copo de leite, que ela reclama estar azedo. Aos
poucos, ela vai ficando sonolenta. Ela prepara para si um copo com remédios, os
mistura e engole, aflita. Anna percebe que o corpo de Eva está finalmente inanimado,
sem vida. É o momento da materialização de seu plano, em parte, mas na parte que
mais lhes toca, sua própria filha. Eva está irremediavelmente morta e é impossível para
os dois manter a completa serenidade frente a isso. Anna chora e Georg vomita. Logo
chegará o momento de eles partirem e vislumbrar Eva daquela forma os coloca em
frente à inevitabilidade de voltar atrás.
V \ , A N ■ ♦
110
Imagem 13 – Televisão pós-caos (reprodução)
Nesse momento é impossível não sentir o peso do filme. Georg toma mais
alguns remédios. Ele escreve nas paredes. Deitado com sua mulher e filha mortas na
cama consigo, em frente à tv que está fora do ar e com a cara roxa, prestes a morrer.
Georg tem um flashback de momentos de sua vida, em meio aos chuviscos da
televisão (imagem 14). A tela preta que entra no filme agora é um lapso de consciência
e tempo definitivo. É representativo que a última imagem do filme seja a televisão fora
do ar, e que Georg esteja “assistindo-a”. A televisão é a maior representante da
explosão imagética na era pré-internet em que o filme se passa. A quantidade de
signos ideológicos, publicitários ou desprovidos de um sentido mais explícito
encharcam a mente de qualquer espectador acostumado a ficar horas em companhia
da televisão.
A libertação final do mal-estar líquido pela morte ocorrer em frente à televisão,
que também finalmente cessa sua função de emitir significados, apesar de seguir
emitindo um signo audiovisual com seu chuvisco de fora do ar. Cessa ali a
espetacularização da comunicação racional. “O que lhes é dado é sentido, e elas
querem é espetáculo, o que lhes é dado são mensagens, elas querem apenas
signos[...] O que elas rejeitam é a dialética do sentido” (p. 15), já pensava Baudrillard
111
(2004) a respeito da explosão de signos na comunicação e de como a racionalidade já
abandonara a dinâmica entre a produção de signos e seus receptores.
Encarnamos, ao mesmo tempo, a interrogação automática e a resposta automática da máquina. Eis o êxtase da comunicação. Não mais outro em face, e nada mais de destino final. O sistema gira sem fim e sem finalidade. A virtualidade aproxima-se da felicidade somente por eliminar sub-repticiamente a referência às coisas. Dá tudo, mas sutilmente. Ao mesmo tempo, tudo esconde. O sujeito realiza-se perfeitamente aí, mas quando está perfeitamente realizado, torna-se, de modo automático, objeto; instala-se o pânico (BAUDRILLARD, 2002, p. 148).
Imagem 14 - Ruído (reprodução)
As legendas após a tela preta funcionam como um prólogo ao filme, e apontam
(levando diretamente para o fato real no qual o filme foi inspirado) que a família foi
encontrada e que, apesar da carta escrita pelos pais, seus familiares se recusaram a
acreditar que foi um suicídio e registraram queixa como assassinato. Parece
extremamente inverossímil àqueles entes queridos que tenha havido um surto de
racionalidade tão consciente a respeito do que os cerca que os tenha levado a cometer
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112
um ato tão radical de maneira tão tranquila. O mal-estar líquido é uma névoa paradoxal
que, ao mesmo tempo que não pode ser vista, também não permite ver.
3.4 O VÍDEO DE BENNY
A crônica diária da violência: adolescentes assassinos dos próprios pais, violência de crianças contra crianças, violência adolescente suburbana, mas também atos individuais, como as crianças assassinas em série. Episódios inexplicáveis em termos de psicologia, de sociologia ou de moral. Há algo mais, que vem da própria ruptura da ordem biológica e da ordem simbólica (BAUDRILLARD, 2001, p. 65).
Na primeira cena do filme, a imagem mostra uma gravação em VHS (que
posteriormente descobrimos ter sido filmada por Benny), que se passa em uma
fazenda, na qual um porco é morto por uma arma de ar comprimido (imagem 15).
Benny rebobina a gravação e a assiste novamente em câmera lenta. Esse começo de
filme é bastante representativo no tocante ao trabalho realizado com as imagens, o
filme utiliza-se bastante de uma “segunda tela”, normalmente agenciada pelo próprio
Benny. É nessa relação dele com essa extensão de seu corpo (as imagens que
produz) que reside nossa principal questão. É a impossibilidade de se contentar com o
real reproduzido, ao mesmo tempo que a própria realidade não fornece mais subsídios
sensoriais para se absorver. Benny parece anestesiado. É preciso resgatar o real. “O
mundo nunca mais será real [...] tudo está fadado à maldição da tela, do simulacro.
[...]a função essencial do signo consiste em fazer desaparecer a realidade e ao mesmo
tempo colocar um véu sobre esse desaparecimento” (p. 81), já alertava Baudrillard
(2001).
113
Imagem 15 – A morte do porco (reprodução)
A segunda cena também é realizada através de imagens em VHS, nas quais
Benny grava sua irmã realizando um coquetel para angariar “passageiros” para seu
“avião”. Ela está demonstrando para seus amigos o esquema do avião (parecido com o
popular esquema em pirâmide no Brasil - no qual se presume um ganho monetário
fácil, mas apenas é um modelo comercial não sustentável, que beneficia poucas
pessoas e faz muitas perder dinheiro). É interessante notar como a segunda cena
também é registrada sob esse viés da representação e simbolicamente está muito
ligada à ascensão capitalista. Muitos passageiros se doando e lutando para poderem
possuir seu “aviãozinho”, para angariar mais passageiros que terão o mesmo desejo. É
um ciclo monetário sem fim e com muitos perdedores.
A cena seguinte revela que Benny estava vendo o vídeo do coquetel (imagem
16), em seu quarto, com as cortinas fechadas (que depois se mostraria uma prova de
isolamento constante) até que sua mãe se aproxima e pede para que troque o canal.
Se segue um distante e enfadonho diálogo com seus pais. Seu pai alerta que “Não
seria má ideia arejar o quarto”, mas, visivelmente, não há conexão ou comunicação
funcional naquela família. Ao mesmo tempo em que conversam (ou tentam) a televisão
I -
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f
114
os bombardeia com imagens do noticiário noturno: imagens de xenofobia agressiva são
mostradas, através de um ataque de hooligans à imigrantes. O pai pergunta se há algo
de novo no noticiário. “Não sei. Nada”, responde a mãe, em uma representação da
classe média alemã (e da grande maioria dos países capitalistas ocidentais). É um ato
cotidiano de acomodação e de indiferença ao que os cerca, uma resignação com a
violência que lhes é mostrada diariamente. Enquanto a morosa conversa segue, agora
sobre a irmã de Benny, a televisão segue como pano de fundo, uma companhia que
impede o silêncio constrangedor de dominar o ambiente e os apresentar à sua falta de
conexão. Agora, transmite a notícia a respeito de um ataque dos sérvios a um centro
de reciclagem na Bósnia. Eles se mantém plácidos. Não há o que os retire da apatia.
Logo após, Benny não consegue dormir. Harvey, interpretando Simmel:
Contudo, precisamente por causa das qualidades relativas da mudança, as respostas psicológicas se enquadram mais ou menos no intervalo identificado por Simmel - o bloqueio dos estímulos sensoriais, a negação e o cultivo da atitude blasée, a especialização míope, a reversão a imagens de um passado perdido e a excessiva simplificação (na apresentação de si mesmo ou na interpretação dos eventos) (HARVEY, 2003, p. 259).
Imagem 16 – Benny e o coquetel (reprodução)
115
No dia seguinte, Benny está no vestiário do colégio, tentando convencer os
colegas de aula a entrarem na sua própria versão do esquema do avião. Ele almoça
em uma filial da rede de fast-food McDonalds (imagem 17), o que parece quase uma
ironia às avessas ornamentada por Haneke, devido ao acentuado significado que a
cadeia de fast-food possui, tradicionalmente conhecida como um espaço de opressão
aos empregados, alimentação pouco saudável e símbolo comercial máximo do poder
do liberalismo na globalização. A simbologia é iminente.
Imagem 17 – Comida rápida (reprodução)
A rotina de Benny não possui grandes acontecimentos, do colégio vai para casa,
onde desenha enquanto escuta rock em alto volume, com a tevê ligada e as cortinas
fechadas, canta no coral da escola com seus colegas. E é preciso ressaltar que a cena
na qual o coral é apresentado possui uma alta carga dramática, apesar de
narrativamente não possuir grandes eventos: em alemão, as crianças cantam ““não à
besta de outrora, não ao medo que segue” enquanto passam um bilhete com o
esquema do aviãozinho formado, “aqui fico e canto em segurança” enquanto outro
menino passa mais dinheiro do bolso para entrar no esquema (imagem 18). Enquanto
parece estar acendendo naquelas crianças uma fagulha da cobiça e competitividade
11
116
movidas pelo jogo capitalista, se encena um ritual extremamente litúrgico, no qual elas
cantam sobre a representação dos tempos nos quais vivemos: o medo, a besta; aqui
fico em segurança.
Imagem 18 – Transações no coral (reproducão)
Passeando pelo shopping, Benny está na videolocadora, assistindo um trecho
de O vingador tóxico (The toxic avenger, 1984), uma produção norte-americana
considerada uma obra de cult do cinema trash (imagem 19). O enquadramento de
Haneke aqui nos mostra Benny junto a outros dois jovens que também estão vendo
algum vídeo, e eles estão em fila e eretos, quase como em reverência à tela. A idade
da imagem se mostra aqui completamente potente perante seus súditos sempre
atentos.
117
Imagem 19 – O vingador tóxico (reprodução)
No lado de fora da loja, Benny avista uma garota, que está entediada olhando
um filme na vitrine. Benny se aproxima e parece finalmente pronto para realizar alguma
conexão com o mundo exterior.
Ambos entram no quarto de Benny. A menina, tímida, pergunta o que é aquele
monitor ligado em seu quarto. “É a vista”, ele responde. Benny mantém uma câmera
transmitindo a vista de sua janela ao vivo (imagem 20), ao mesmo tempo em que as
cortinas estão sempre fechadas. É a impossibilidade de tratar com a realidade se não
por uma extensão tecnológica. A distância daquilo que é real já é induzida ao ponto de
não mais o buscarmos. Ou não sabermos os limites.
O blefe que cerca a interrogação a respeito do virtual. O excesso de informação, o forcing publicitário e tecnológico; a mídia, o deslumbramento ou o pânico - tudo concorre para uma espécie de alucinação coletiva do virtual e de seus efeitos (BAUDRILLARD, 2001, p. 75).
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Ml
118
Imagem 20 - Janela (reprodução)
É a captura da imagem, como forma de manter o controle sobre ela. A realidade
está contida ali, sob seu domínio, ele pode retroceder, pausar, revê-la. Mais do que a
representação da realidade, a imagem se torna sua forma de se manter seguro. Sua
salvaguarda. Em um mundo no qual todas as imagens e informações chegam
abruptamente, com tamanho imediatismo, tentando nos transpor à realidade, mas nos
oferecendo apenas uma “vertigem de realidade”, essa é a forma que Benny encontra
para tentar se manter. De certo modo, Haneke parece antever como a revolução
tecnológica iria se enraizar na realidade dos indivíduos, em uma era pré-internet e
smartphones. Benny já materializa o espírito contemporâneo, da forma como a
tecnologia lhe permite à época, capturando imagens e as retrotransmitindo. Baudrillard
possui uma fala que vai na mesma direção, se analisada com o devido posicionamento
temporal:
A mídia acabará por tornar-se imediata, ou seja, de tal modo absorvida pela vida corrente que não haverá mais fronteiraentre eles. Antes, existia um domínio privado, restritivo. Hoje, mesmo quando alguém anda na rua, o celular funciona. As pessoas não se desconectam mais. Passam 24 horas por dia ligadas, mediatizadas apesar delas mesmas. Se isso significa evolução, implica então o desaparecimento da mídia como a conhecemos. O multimídia, a exemplo da
119
multicultura, representa a desaparição da mídia específica, assim como das culturas singulares, não em função de um universal, mas de uma ordem mundial, global, uma rede universal de coisas contra a qual não haverá a alternativa de outro espaço simbólico. (BAUDRILLARD, 1998).
É um estado de quase “paranóia midiática” que se encontra Benny, indo na
direção da sentença de Bauman “para completar a realidade de nossa própria vida,
precisamos passá-la para videotape - essa coisa confortavelmente apagável, sempre
pronta para a substituição das velhas gravações pelas novas”. É essa medição por
imagens eletrônicas que a modernidade líquida impõe, representada de maneira
bastante interessante pelos movimentos de Benny, como se as suas ações
“estivessem sendo gravadas para uma audiência escondida, ou guardadas para serem
assistidas mais tarde” (p. 99).
Na sequência, Benny serve pizza congelada para a menina, que está com fome.
Ela diz que precisa ir embora, e Benny pede que ela fique. A menina questiona a razão
e Benny só consegue responder “Porque sim”. Benny não parece predisposto a
planejar algo, ele parece apenas curioso e ansioso para se conectar com alguém. Sua
proximidade com um contato mais organicamente genuíno é o que parece fazê-lo se
mover. Seu lado humano e social parece tão adormecido que clama por esse contato.
Ele precisa sentir alguma coisa.
Eles não conseguem se comunicar oralmente com muito sucesso, os dois
parecem desajeitados e desajustados com esse tipo de interação e Benny decide
mostrar para ela o vídeo da morte do porco. No momento em que o porco sofre o
disparo, Benny a alerta para que não deixe o momento passar: “Olhe!”. A garota fica
impassível: “Está nevando”. A morte é apenas de um animal, não há motivo para se
deter a isso. É preciso que Benny volte a fita e a passe novamente em câmera lenta
para despertar aquela menina de sua letargia. Ela pergunta como foi filmar o porco, se
ele já havia visto alguém morto. “Não, foi só um porco” e segue falando sobre uma
reportagem que viu de filmes de ação de Hollywood, na qual usam ketchup e plástico.
A normatização da morte e da violência é servida com ketchup. Como não se
acostumar com o que lhe é ofertado diariamente, desde criança. Onde ficam os limites
entre o que está em cada tela? É possível que estejamos perdendo a noção de onde
uma começa e onde outra termina?
120
Vídeo, tela interativa, multimídia, internet, realidade virtual: a interatividade nos ameaça de toda parte. Por tudo mistura-se o qu era separado; por tudo, a distância é abolida: entre os sexos, entre os pólos opostos, entre o palco e a platéia, entre os protagonistas da ação, entre o sujeito e o objeto, entre o real e seu duplo. Essa confusão dos termos e essa colisão dos pólos fazem com que em mais nenhum lugar haja a possibilidade do juízo do valor: nem em arte, nem em moral, nem em política. [...] A excessiva proximidade do acontecimento e de sua difusão em tempo real cria a indemonstrabilidade, a virtualidade do acontecimento que lhe retira a dimensão história e o subtrai à memória (BAUDRILLARD, 2001, p. 145).
Ele conta sobre a morte do avô: quando foi vê-lo no velório, ele estava no
caixão, no alto, e seu pai teve que levantá-lo para que o visse pela última vez, mas
Benny fechou os olhos. A impossibilidade de se defrontar com o que é real, com o
sofrimento que não passa pelo filtro da segunda tela. “Eu ainda era pequeno, não tinha
coragem de olhar”, tenta se desculpar. Mas Benny não enxerga sua própria
impossibilidade permanente. A impossibilidade de uma sociedade inteira. Benny mostra
a arma de ar comprimido para ela. Ele a carrega e a aponta para si próprio, pedindo
para ela apertar. O desafio arrogante dele mais parece um pedido desesperado para
sentir algo, qualquer coisa que o faça despertar. Ela retira a arma e a bota na mesa,
sendo chamada de “Covarde”. Ele pega a arma novamente e aponta para ela, que o
desafia inocentemente “Aperte então… covarde”. Benny aperta o gatilho e ela cai no
chão. Neste momento, passamos a acompanhar Benny pela sua imagem no monitor,
através da câmera ligada em tempo real. A opção de Haneke pela movimentação no
enquadramento é engenhosa e reflete a posição assumida pelo diretor (imagem 21).
Pelo monitor, vemos Benny tentando ajudá-la, enquanto ela grita desesperada. O
desespero da menina parece transtornar Benny, que, ansioso, procura uma forma de
dar fim à isso. Ele vê o sofrimento à sua frente e parece não poder suportar. A
realidade é muito sufocante. Ele dispara mais um tiro, que a deixa mais desesperada.
Ele suplica para que pare de gritar, que fique quieta. Mais uma bala, mais um tiro.
Silêncio. Benny se senta no chão, aliviado.
121
Imagem 21 – O vídeo (reprodução)
O ato de Benny não pode ser logica e objetivamente justificado, mas certamente
carrega em seu âmago a reminiscência do mal-estar líquido. Freud salienta que “o
sentimento de felicidade derivado da satisfação de um selvagem impulso instintivo não
domado pelo ego é incomparavelmente mais intenso do que o derivado da satisfação
de um instinto que já foi domado” (p. 36), o que é uma explicação que parte mais para
o lado psicanalítico, porém não pode ser dissociado da questão cultural da sociedade
líquida moderna. O próprio Freud justifica haver, na época moderna, uma atração geral
pelas coisas proibidas, motivadas pela explicação econômica e o desejo de consumir.
[...] é impossível desprezar o ponto até o qual a civilização é construída sobre uma renúncia ao instinto, o quanto ela pressupõe exatamente a não-satisfação (pela opressão, repressão, ou algum outro meio?) de instintos poderosos. Não é fácil entender como pode ser possível privar de satisfação um instinto. Não se faz isso impunemente. Se a perda não for economicamente compensada, pode-se ficar certo de que sérios distúrbios decorrerão disso. (FREUD, 1997, p. 56).
Freud também relatava que o indivíduo, em circunstâncias que lhe são
favoráveis, quando as amarras sociais e mentais que o inibem se encontram fora de
ação, a manifestação mental pode revelar o homem como uma “besta selvagem”, a
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122
quem a consideração para com sua própria espécie é algo estranho. Para isso que a
civilização utilizar de esforços supremos para estabelecer limites aos instintos
agressivos do homem e manter suas manifestações sob controle por formações
psíquicas reativas. Benny parece estar impregnado por essas permanências psíquicas,
em um nível de anestesia maior que a média, mas ainda assim, carregado de pulsões
humanas, demasiadamente humanas.
Benny toma um copo d’água, pega um iogurte e o consome. Parece tranquilo
com o fim do desespero insuportável. A morte já não é mais tão palpável com o
sofrimento da menina. Tudo está tranquilo e confortável. Ele a cobre com um lençol.
Revira a bolsa da menina, acha cadernos, carteira, um pouco de dinheiro, mas nada
disso o interessa, acha uma foto de um cão. Joga-a fora. Parece procurar uma
conexão, algum elo que os liguem. Acha uma boneca russa. Dentro, uma boneca
dentro de outra que dentro de outra. O ciclo que se retroalimenta.
As cortinas fechadas, a música, a tv ligada, o desenho. A imersão de sentidos,
de signos. O transbordamento dos signos está sempre latente no mundo de Benny.
Como funciona esse fluxo contínuo dentro da mente em processe de anestesia? “O
êxito da comunicação da informação seria resultante da impossibilidade que a relação
social tem de superar-se como relação alienada?”, pergunta Baudrillard. Não parece
coincidência que o esvaziamento das relações em intimidade se dê ao mesmo tempo
que o preenchimento da corrente midiática por todos os sentidos tenha se
concretizado. “Não há tempo para silêncio. As imagens midiáticas nunca se calam;
imagens e mensagens devem suceder-se sem interrupção” (p. 18).
O corpo da menina(coberto, para não remetê-lo diretamente, pois é preciso um
certo distanciamento) está ao chão. A busca por sentido continua. A representação do
real é muito mais consumível e muito mais digerível. Bauman coloca:
Tal como o no caso dos signos repletos de possibilidade enquanto permanecem livres de significados, a essência da livre escolha é o esforço para abolir a escolha. Nisso, pode ser encontrado o segredo da perpétua não-satisfação do desejo de mais ampla escolha dos consumidores (e, de modo mais geral, da eterna não-satisfação do desejo de liberdade). O ímpeto de consumo, exatamente como o impulso de liberdade, torna a própria satisfação impossível (BAUMAN, 1998, p. 175).
123
Benny limpa o sangue que suja o chão em volta da cabeça da menina. Ele a
arrasta um pouco, para, limpa novamente. A ação se repete algumas vezes, e
novamente as escolhas de Haneke aparecem na distensão do tempo do plano. O
sangue é cíclico e as medidas são sempre paliativas. Não é possível estancar o
sangue sem interferir mais além. O problema é muito mais complexo do que parece. As
camadas estão intimamente interligadas. Ele se despe. Para não se sujar com o
sangue ou para tentar se aproximar de alguma sensação, como uma forma de rito?
Ainda nu, atendo o telefone e fala tranquilamente, enquanto observa a parede cercada
de obras de arte (Monalisa, Andy Warhol, fotos de Einsten), atrás dele a prateleira
repleta de livros. A arte como consumo e como produtora de consumidores. A
reprodutibilidade não está apenas na obra de arte, mas, logicamente, em tudo que a
cerca. Nós. Nossos sentimentos. Nem ao menos é preciso citar Walter Benjamin neste
caso, mas citamos Harvey (2003) novamente:
A aquisição de uma imagem (por meio da compra de um sistema de signos como roupas de grife e o carro da moda) se torna um elemento singularmente importante na auto-apresentação nos mercados de trabalho, e passa a ser parte integrante da busca de identidade individual, auto-realização e significado da vida (HARVEY, 2003, p. 260).
No espelho, Benny se observa, nu, falando ao telefone (imagem 22). Há sangue
perto de suas costelas. Ele se filma, espalhando o sangue da menina pelo seu corpo.
Ele está ligado com outro indivíduo de uma maneira que parece nunca ter atingido
antes. Benny filma o corpo no chão. Recatado, puxa a saia da menina, que estava
levantada. Não há fetiche nem carga sexual no seu ato. Pela câmera, ele vira o corpo
dela, revelando o rosto atingido da menina. Ele fecha o enquadramento em close.
Dessa forma, parece ser possível suportar a visão da violência exercida. Através da
câmera, ele possui novamente controle das coisas. Rewind. Benny revive a situação,
ainda nú. Agora tudo é palatável e desfrutável.
124
Imagem 22 – Ao telefone (reprodução)
A partir daí, Benny parece estar um passo além no sentido de conseguir se
comunicar com algum semelhante. Ele parece agora ter um motivo para isso. Ele tenta,
em vão, falar com seu colega Ricci e com sua irmã, que não está em casa (No
interfone do prédio dela, um adesivo ironicamente colado diz “Keine Werbug!” - Sem
publicidade!). Benny decide, perambulando pelo shopping, raspar o cabelo (imagem
23). Alguma comunicação com o mundo externo é preciso, nem que seja uma forma
desesperada de expressar o acontecimento pelo qual ele passou.
1 H JK- - t
125
Imagem 23 - Transformação (reprodução)
Após seus pais voltarem da fazenda (na qual Benny gravou o vídeo, inclusive) o
clima é pesado. Logo após, enquanto escova os dentes, seu pai o coloca contra a
parede: “Não acha que há meios mais inteligentes de se rebelar? Quer agradar sua
mãe? Ou é moda entre seus amigos skinheads bebês? Você apenas precisa respeitar
as regras do jogo, se quer que os outros o respeitem. Sobretudo porque isso não lhe
custa nada.” O jogo pós-moderno não implica em muita coisa, é preciso apenas deixar-
se levar. Não tente ir além do estabelecido, não ouse. E prossegue: “Acha que os
professores vão ter pena de você, com essa cara de campo de concentração? Sabe
quanto tempo vai levar pra você voltar a ter a cara de um ser humano?”. Benny ouve
calado todo o discurso de seu pai. De maneira dura, o pai representa toda a
conformidade com um sistema imposto centenas de anos, e agressivamente turbinado
nas últimas décadas. Inclusive, fatores que podem parecer adormecidos na sociedade
dita civilizada parecem acordar em meio à raiva guardada pelo pai e direcionada pelo
deslize para fora do “jogo” que Benny executou. McLuhan (2005) expôs:
A velocidade elétrica mistura as culturas da pré-história com os detritos dos mercadologistas industriais, os analfabetos com os semiletrados e os pós-letrados. Crises de esgotamento nervoso e mental, nos mais variados graus, constituem o resultado do dessaraigamento e da inundação provocada pelas
-4
126
novas informações e pelas novas e infindáveis estruturas informacionais (MCLUHAN, 2005, p. 31).
Na aula, Benny é expulso da classe por uma reação agressiva com um colega.
Agora parece difícil para Benny controlar algumas emoções guardadas há tanto tempo,
e ele consegue direcionar essa pulsão para um colega frente a frente. Pelo menos há
confrontação direta.
Ele volta para casa, toma leite, lê um exemplar do gibi do Pato Donald. Na
televisão, o exército sérvio é acuado pelos croatas. Benny mostra o vídeo da morte da
menina para seus pais. Todos assistem calados, ele parece se ressentir no momento
em que ela grita. Ao fim do vídeo, ele desliga a televisão. Finalmente. A comunicação
está completa. Seu pai é bem objetivo e pragmático (imagem 24) , o interrogando a
respeito da morte. Pensa nas possibilidades dele ser pego e isso o incomoda de uma
forma mais racional que emocional. Ao ir dormir, Benny pede que deixem a porta do
quarto e da sala abertas.
Imagem 24 – Figura paterna (reprodução)
Ele grava todo o diálogo que se segue entre seus pais na sala. Seu pai
racionaliza, bota os prós e contras na mesa, mas parece não haver jeito de Benny
redimir sua imagem pública. E nem como inocentar a ele a aos próprios pais, que
*
127
também acabariam sendo culpabilizados como responsáveis. Após uma longa
conversa, decidem que a mãe e Benny irão viajar enquanto o pai se responsabiliza por
fazer o corpo da menina desaparecer de alguma forma.
Benny e sua mãe acabam indo para o Egito. No jornal impresso, notícias de
corrupção na Alemanha invadem as páginas, enquanto Gorbatchev tenta salvar a
USSR, mas não há notícia alguma sobre o desaparecimento da menina. Tudo está
seguro para eles enquanto o mundo segue ruindo lá fora.
O pai pressiona Benny para saber se ele falou com mais alguém sobre a morte:
“Você não pode mentir. Não pode confiar em ninguém.” Uma hiperbolização da lógica
individualista e pouco humanista, que nos priva da segurança. O jogo está de volta,
para ter suas regras novamente expostas.
No Egito, com sua mãe. Eles fazem passeios turísticos, jantam. Sua mãe tenta
se comunicar com Benny antes de irem dormir, porém, sem sucesso (Imagem 25).
Benny grava turistas andando de windsurf, mas isso não parece interessá-lo. Ele
passeia pelos canais da televisão egípcia, mas nada parece prender sua atenção. Sai
para gravar as ruas em Cairo: os miseráveis, as crianças que lhe pedem esmola, uma
realidade bem diferente da sua. É uma pequena incisão do primeiro mundo ocidental
no terceiro mundo localizado no norte da África.
Imagem 25 – Insônia no Egito (reprodução)
128
Benny então decide gravar um vídeo de si próprio, como um recado para o
mundo externo, que talvez nunca o veja. Mas a mensagem está lá, perdida entre tantas
outras. Ele só consegue se revelar minimamente através de sua apropriação imagética,
de sua representação. Benny veste uma camiseta com sua própria imagem (imagem
26), na época com cabelo comprido, enquanto grava o vídeo. A retroalimentação de
sua própria imagem ao se filmar é contundente e significa muito em termos de
apropriação de imagem na modernidade líquida. Enquanto assistem à televisão, sua
mãe desaba aos prantos. Benny se sente desconfortável com aquela emoção toda e
sua própria impotência.
Imagem 26 – A camiseta de Benny (reprodução)
Eles voltam para a Alemanha. Tudo parece bem. Conversam amenidades. As
cortinas do quarto de Benny estão abertas. Ao ir escovar os dentes, sua mãe alerta
para que se apresse, pois “amanhã tem que acordar cedo de novo”. Ou seja, deve
voltar às regras da sociedade, pois seu pecado já foi absorvido, ele teve um descanso
do seu cotidiano ensurdecedor e agora deve voltar ao jogo.
Sentado à sua cama, seu pai o diz que está feliz por ele estar de volta (imagem
27), que o ama, que está tudo sob controle agora e que ele não precisa mais ter medo.
Mas a pergunta pelo qual ele estava ali finalmente é feita: “Porque você fez isso?”.
i
129
Benny responde “Não sei, queria saber como era”. “E como foi?” pergunta novamente o
pai, ao que Benny não consegue responder, restando apenas permanecer em silêncio
naquele momento.
Imagem 27 – Conversa paterna (reprodução)
Tudo que Benny poderia sentir está cravado na imagem do VHS, já destruído
pelo pai. Tudo parece voltar ao considerado normal. Ele convive com seus colegas, o
dinheiro circula por entre eles, o McDonalds o alimenta. A música volta a subir, a
televisão está ligada, ele desenha; mas agora as luzes do exterior o iluminam, as
cortinas não estão fechadas. É como se alguma força realmente o iluminasse, mas ele
ainda não conseguisse expressar a própria clarificação que obteve. Com tanto tempo
de cortinas fechadas, mesmo a mais parca luz poderia cegá-lo por um tempo.
Ele capta imagens de mais um coquetel com o esquema do avião que sua irmã
organiza. Seus pais parecem felizes e orgulhosos com o evento. O coquetel segue
sendo visto pela imagem desgastada do VHS, eles comem e contam dinheiro. Ao
fundo, a canção gregoriana “Não á besta de outrora, não às garras da morte, não ao
medo que segue”. Benny canta com seus colegas enquanto seus pais o observam.
130
O vídeo da conversa dos pais sobre como proceder com a menina, que Benny
gravou premeditadamente, está sendo visto pelos policiais, que o interrogam. “Porquê
está soltando tudo isso agora?”, pergunta um deles: “Porque sim”, ele responde. Ao
sair da sala de interrogatório, seus pais estão entrando. Eles se olham uma última vez
(imagem 28). Benny pede licença e sai educadamente, conforme as regras do jogo
civilizado. Pela câmera de segurança da delegacia, vemos seus pais na frente da sala.
Jung (2000) falava do homem moderno como um homem “necessariamente
solitário”, cujo “cada passo em direção a uma consciência mais elevada e mais
abrangente afasta-o da participação mística primitiva e puramente animal com o
rebanho, e da submersão num inconsciente comum” (p. 75), sendo que cada um
desses passos significava uma grande jornada para ser arrancado do seio maternal
universal da inconsciência primitiva, “no qual permanece a grande massa”. Benny
aparenta ter o perfil de um indivíduo “evoluído” dentro dos moldes liquido-modernos,
pois é essencialmente um personagem solitário, que decide cortar os laços com seu
“seio maternal”, abrindo mão de seus rituais primitivos e mecanizados com seus entes
paternos e maternos.
Em off, o som de um telejornal pode ser ouvido, indicando que as tratativas de
paz na Bósnia e Herzegovina falharam. Os líderes sérvios rejeitaram uma proposta de
constituição que propunha um estado federativo forte e a divisão do território em três
regiões, uma para cada grupo étnico. A questão da inserção das comunidades
colonizadas aparece com mais força em outros filmes de Haneke, como Caché e
Código desconhecido, mas é possível perceber, pelas escolhas que o diretor faz para
ilustrar algumas passagens de televisão, que essa é uma questão importante para ele.
Em sua fase francesa é que ele desenvolve com mais fluidez esses temas, tratando
principalmente da relação com as colônias da França. Essa relação vai ao encontro de
um dos elementos que Bauman relata também em sua teoria líquida - a xenofobia e a
dificuldade de inserção, dentro de um contexto dominante ocidental, dos colonizados. A
partir do momento em que há uma cultura dominante economicamente, e que os
pilares sociais começam a ruir, causando uma sensação de insegurança em todos os
seus indivíduos, o senso de comunidade, que deveria estar ampliado pela globalização,
começa a se fechar entre aqueles que se reconhecem como iguais. Em uma ânsia de
131
proteção ao seu território e às suas conquistas, a sociedade estabelece alguns alvos
fáceis.
Bauman (2001) cita a teoria de René Girad, sobre o nascimento da violência e a
persistência da comunidade: “um impulso violento está sempre em ebulição sob a
calma da superfície da cooperação pacífica; esse impulso precisa ser canalizado para
fora dos limites da comunidade, onde a violência é proibida” (p. 221), ou seja, a
violência é reciclada como uma arma de defesa da comunidade e direcionada para os
incapazes de compartilhar ou estabelecer laços sociais que os liguem ao resto dos
habitantes de determinada comunidade. Ao mesmo tempo que o sistema econômico e
a cadeia de consumo tenta universalizar a cultura como cada vez mais única, a
insegurança social acaba criando mecanismos de intolerância para para impedir que
aspectos de culturas colonizadas, ou mesmo seus próprios integrantes, venham a ser
assimilados. Como o que Baudrillard (2002) sustenta:
Toda cultura digna desse nome perde-se no universal. Toda cultura que se universaliza perde sua singularidade e agoniza. Foi assim com as culturas que destruímos, assimilando-as pela força, mas o mesmo vale para a nossa em sua pretensão ao universal. A diferença é que outras morreram de sua singularidade, o que é uma bela morte, enquanto nós morremos da perda de toda singularidade, da exterminação dos nossos valores, o que é uma péssima morte (BAUDRILLARD, 2002, p. 128).
Em meio a essas referências e, por mais estranho que pareça, o final da
narrativa elaborada por Haneke parece guardar um fundo de esperança. Benny parece
ter se libertado de uma cultura que o ensinou a ser oprimido, recluso e extremamente
autocentrado. A forma que ele encontra para essa libertação parece ser a punição
imposta aos seus pais, que são sua referência mais próxima dessa apreensão cultural.
Lá fora, tudo continua igual, as regras seguem as mesmas. Ali dentro, talvez.
132
Imagem 28 – O vídeo em Benny (reprodução)
O sentimento dominante, agora, é a sensação de um novo tipo de incerteza, não limitada à própria sorte e aos dons de uma pessoa, mas igualmente a respeito da futura configuração do mundo, a maneira correta de viver nele e os critérios pelos quais julgar os acertos e erros da maneira de viver. O que também é novo em torno da interpretação pós-moderna da incerteza é que ela já não é vista como um mero inconveniente temporário, que com o esforço devido possa ser ou abrandado ou inteiramente transposto. O mundo pós-moderno está-se preparando para a vida sob uma condição de incerteza que é permanente e irredutível (BAUMAN, 1998, p. 32).
3.5 ENLACES FILMOGRÁFICOS
Após essa “análise narrativa” dos dois primeiros longas-metragens de Haneke, é
possível chegar a vários denominadores comuns, tanto entre as obras, quanto em
relação aos fatores que compõem o mal-estar líquido. Fatores esses que podemos
vislumbrar em maior ou menor potência, mas que estão presentes. A sociedade de
consumo, o poder da imagem e dos signos por meio de sua circulação midiática cada
vez mais entranhada na vida cotidiana e a letargia da classe média são alguns dos
aspectos mais presentes em O sétimo continente e O vídeo de Benny.
133
Haneke faz escolhas de direção que são intrinsecamente ligadas ao mal-estar
líquido e sua representação, como em O sétimo continente, quando decide, em
momentos nos quais a burocrática rotina da sociedade é mostrada, despersonalizar a
família, evitando closes dos rostos e focando seus enquadramentos nas ações. Ele
também decupa o filme, em geral, com uma estética mais publicitária, como ele mesmo
relata:
Neste filme, no entanto, minha estética é principalmente centrada sobre o close-up, a ênfase nos rostos ampliados e nos objetos. Do ponto de vista estético, a maior parte do filme se assemelha a publicidade que vemos na televisão. Tenho muitas reservas sobre a televisão, mas vi um uso para o seu estilo aqui. É claro que se O Sétimo Continente tivesse sido feito para a televisão eu teria falhado totalmente em minha escolha. Mas no cenário cinematográfico, um close-up de sapatos ou uma maçaneta assume um sentido muito diferente do que um enquadramento similar na TV, onde esse estilo é a norma. Esta foi uma escolha muito consciente, desde o momento em que eu quis transmitir não apenas imagens de objetos, mas a objetivação da vida (HANEKE, 2010, p. 585).
Sua apropriação dessa estética passa por essas nuances em determinados
momentos, sendo que seus closes dos rostos dos personagens se dão em momentos
nos quais há algum fluxo de sentimentos ou trocas entre eles. Como se os sentimentos
também estivessem objetificados e petrificados pela rotina claustrofóbica que a
sociedade impõe.
Ele também opta por utilizar blacks entre sequências, que representam
comumente elipses temporais, mas aqui também assumem uma conotação que pode
ser interpretada como lapsos de adequação da família à sociedade líquida, que
culminarão na sua “quebra de contrato”. É a consciência se esvaindo, ou se libertando.
Em O vídeo de Benny, Haneke utiliza as próprias gravações que Benny faz em
vídeo como extensões de sua consciência. Tanto quando repassamos fatos vividos no
passado, como o abate do porco e a festa da irmã, através dos vídeos gravados por
ele; quanto em seu quarto, no qual há uma gravação constante da vista da janela
sendo transmitida em tempo real para um monitor dentro do quarto, que está com as
cortinas fechadas. O vídeo é a única forma de Benny poder ampliar sua visão, que
parece incapaz de encarar a realidade do mundo externo. Na cena em que Benny atira
na menina, o enquadramento de Haneke nos mostra tudo através do monitor de vídeo
que Benny deixa ligado, trazendo um pouco da visão de Benny em relação ao seu
134
universo para o espectador em relação ao universo de Benny, sendo que também
estamos assistindo tudo através de uma tela externa, que nos apresenta o filme.
Haneke cria uma boneca russa de sentidos metalinguísticos. As diversas telas dentro
da “primeira tela”, as diversas visões do universo mediadas pela imagem. Ele próprio já
falava sobre o poder da explosão midiática em relação à reprodução imagética:
A velocidade com que a mídia eletrônica é transmitida e as informações são divulgadas levou a uma mudança nos hábitos de visualização. O impacto da impressão exercida pela imagem transmitida inadvertidamente é maior do que a vida na tela durante uma única ida ao cinema, sendo eclipsados pela grande massa de impressões e sua presença permanente na sala de estar. Baseando-se nas formas dramatúrgicas e estéticas do cinema, a televisão mudou precisamente essas formas de implantá-los permanentemente (HANEKE, 2010, p. 578).
É um tema recorrente na filmografia de Haneke, que também a explora bastante
em Caché, filme no qual uma família de classe média francesa recebe constantes
vídeos de sua casa, em imagem estática (imagem 29), como se fossem observados.
Há uma relação de escolha de decupagem metalinguística também aqui por parte do
diretor austríaco. O filme se inicia com a tela estática do vídeo da casa daquela família,
que não sabemos se está incluída diegeticamente ou se aquilo já “faz parte” do filme. O
fato de o pai da família ser apresentar um programa de televisão sobre literatura e a
forma com que Haneke mostra a relação da família com a literatura e a arte em geral
também pendem para a questão da sociedade de consumo, no qual a arte está
plenamente inserida. Porém, realmente o tema mais vital em Caché é a relação da
França com suas colônias, não no sentido político, mas no sentido da assimilação
inconsciente de uma culpa pela exploração. Ao final do filme, pode-se questionar a
presença daquelas fitas e de outros desenhos que lhes são enviados como uma
manifestação física da culpa que Georges, o pai, possui introjetada.
135
Imagem 29 (reprodução)
Em Violência gratuita, Haneke também se utiliza da relação de poder da mídia
com a imagem, ao, em determinado momento, quebrar a dinâmica do espectador com
o seu objeto. Paul, um dos jovens que abduzem uma família de classe média, ao ver
seu amigo ser alvejado por um tiro, pega o controle remoto da televisão e retrocede a
própria narrativa do filme até o momento do disparo. Em outros momentos, Paul
também quebra a “quarta parede” ao olhar e dar uma piscadela (imagem 30)
diretamente “na direção” do espectador, dando a impressão de ser um personagem
onisciente e que serve para recolocar o espectador em sua condição de consumidor de
imagens, e, no caso, de imagens que remetam à violência. O filme é uma alegoria a
respeito da banalização da violência na mídia, e de como alguns filmes a padronizam
de uma maneira que acaba incutindo a ideia de que não há consequências derivadas
dessa utilização:
O vendedor que define e produz filme como uma mercadoria sabe que a violência é apenas - e particularmente - uma boa venda, quando se está privado do que é a verdadeira medida de sua existência na realidade: medos
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136
profundamente desconcertantes de dor e sofrimento. Exceto para o caso específico do voyeur patologicamente sádico, esses medos permanecem não-consumíveis e são ruins para os negócios (HANEKE, 2010, p. 276).
Imagem 30 (reprodução)
Evidentemente, poderíamos nos deter profundamente sobre a filmografia de
Haneke em sua totalidade para elencar aspectos do mal-estar líquido que permeiam
sua obra, porém, para fins de conclusão deste estudo, achamos que é bastante
significativa a amostra aqui apresentada, tendo seus dois primeiros longas-metragens
apreciados de maneira mais aprofundada e seus filmes posteriores pincelados em
diversos aspectos. Haneke nos presenteia com uma fala a respeito da forma como ele
encara a arte de dirigir cinema, preservando os espaços que possibilitam que análises
como esta possam ser realizadas. É preciso dar espaço ao pensamento.
Eu sempre digo, um filme deve ser como um salto de esqui, mas é o espectador que deve fazer o salto. Mas para permitir que o telespectador o faça, o salto tem de ser construído de uma determinada maneira. Encontrar uma construção que permita mexer com a mosca na cabeça do espectador - aquela responsável por ativar a imaginação. E essa provocação é constituída por todas as lacunas, as coisas que não são mostradas para os telespectadores, que não são colocadas
137
na imagem, mas às quais ela faz alusão; pelas questões que são colocadas, mas não respondidas pela história e que permitem que os espectadores tragam os seus próprios pensamentos e sua imaginação para o filme (HANEKE, 2010, p. 605).
138
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste trabalho, realizamos um apanhado histórico e social de diversos
fatores que compõem a esfera social, e de como suas resignificações durante a
modernidade líquida são responsáveis pelo surgimento de um sentimento de
ansiedade e insegurança que pairam sobre todas as camadas da sociedade. O mal-
estar líquido foi estudado a partir de sua retroalimentação nos (e dos) fatores sociais,
provando ser uma cadeia difícil de ser quebrada. Bauman, principalmente, foi o
pensador que inicialmente nos guiou no início desta dissertação, auxiliado muito de
perto por Baudrillard, que se contrapunha de maneira causticante ao polonês, mais
contido, apesar de ambos estarem alinhados ideologicamente. A base psicanalítica
veio de Freud, seguida por Jung, que complementou o nosso trabalho, visto que nos
utilizamos de conceitos que não fossem contrapostos ao de seu mestre, possibilitando
manter uma linha psicanalítica sem entrar em contradições teóricas.
A partir dessa definição, partimos para a obra de Michael Haneke e sua
caracterização como autor, que nos permitisse enxergar um contexto e uma ligação
entre seus filmes, mesmo que tenhamos nos detido mais profundamente em suas
primeiras duas produções. Estabelecer essa relação que permeasse a obra de Haneke,
utilizando-nos, inclusive, do próprio diretor austríaco como referência bibliográfica,
ampliando sua importância para além dos dois longas-metragens, já que sempre
tratamos de definir o objeto a ser posto como representação cinematográfica do mal-
estar líquido na forma da obra de Michael Haneke.
Muito da realidade apresentada e dos fatores elencados remetem a uma história
eurocêntrica, mas fazem sentido dentro da visão do trabalho, visto que o berço da
civilização ocidental está na Europa, e muitos dos elementos caracterizadores da
sociedade que conhecemos também tiveram sua origem lá, através dos inúmeros
processos colonizatórios que a América sofreu. Até o momento em que os Estados
Unidos se consolidaram como grande potência econômica capitalista, ampliando seus
domínios monetários, inclusive para as “demais” Américas. Sempre que possível,
tentamos trazer exemplos que pudessem posicionar a realidade brasileira em meio ao
trabalho, por acharmos importante que esse paralelo seja visualizado.
139
Nossa estratégia de análise partiu de uma necessidade de englobar Haneke e
sua filmografia em longas-metragens como obra e nos permitir adotar uma método
mais ensaístico para construção analítica. A solução encontrada para isso, visto que
nosso espaço de trabalho para uma dissertação é limitado a ponto de englobar
analiticamente de maneira profunda toda uma filmografia de 11 filmes, foi
caracterizarmos Haneke como um autor, provando que sua filmografia possui íntima
relação com o mal-estar líquido. Se não pode ser plenamente confrontada com a
análise de seus dois primeiros longas, pode ao menos demonstrar como seu ponto de
partida foi consolidado e influenciou seus trabalhos posteriores.
O grande desafio sempre foi costurar um trabalho acadêmico que tivesse fluidez
e envolvesse aspectos analíticos e teóricos de forma natural e equilibrada. Para isso,
optamos por um método de análise narrativa, que acompanha os principais pontos dos
filmes de maneira cronológica, estabelecendo as relações teóricas do mal-estar líquido
com questões de roteiro e direção, com o intuito de verificar sua ligação.
Nos parece que a obra de Haneke fica estabelecida como um importante
documento de uma época, que poderá ser revisitada posteriormente para se tentar
entender o clima que permeia a contemporaneidade. Que não traça objetivamente
sintomas do mal-estar na modernidade líquida, mas que estabelece relações com
todos eles, de maneira subjetiva e exigindo um pouco de atenção do espectador; tal
qual a sociedade exige de seus partícipes. A essência do mal-estar líquido parece estar
impregnada em toda a filmografia do diretor austríaco. Badiou ilustra nosso sentimento
a respeito:
Falar de um filme é sempre falar de uma reminiscência: de qual vinda inesperada, de qual reminiscência, esta ou aquela ideia é capaz, capaz para nós? É desse ponto que todo filme verdadeiro trata, ideia por ideia. Das ligações do impuro, do movimento e do repouso, do esquecimento e da reminiscência. Não tanto do que sabemos, senão do que não podemos saber. Falar de um filme é falar menos dos recursos do pensamento que dos seus possíveis, uma vez garantidos, à maneira das outras artes, os recursos. Indicar o que pode haver nele, além do que há. Ou ainda: como a impurificação do puro abre caminho a outras purezas (BADIOU, 2002, p. 143).
Dessa forma, nos parece que a utilização de um produto cultural, sempre reflexo
da sociedade na qual está inserido, cumpre aqui seu papel em looping quase
140
metalinguístico. Assim como as fábulas infantis são utilizadas para inserir lições sobre
hierarquias e medo desde a tenra idade, os filmes, os programas de televisão, a mídia
impressa, acabam também criando suas próprias formas de externalizar sentimentos
internos da sociedade.
Bauman (2008) exemplifica a forma como a mídia dita os costumes da
sociedade através do que ele denomina “contos morais” de nossa época. São
conteúdos midiáticos que expõem alguma condição da modernidade líquida,
amplificando-a ainda mais e alastrando-a por diversas culturas. Um exemplo que
Bauman utiliza é o Big Brother11, que está espalhado por todos os continentes do
mundo e se baseia na “eliminação” de um de seus participantes, até o momento que
restar o grande campeão.
Big brother, the weakest link e os inúmeros contos morais semelhantes oferecidos aos habitantes de nosso mundo líquido-moderno, e por eles avidamente absorvidos, reiteram outras e diferentes verdades. Primeiro, que a punição é a norma, e a recompensa, uma exceção: os vencedores são aqueles que escaparam à sentença universal da eliminação. Segundo, que os vínculos entre a virtude e o pecado, de um lado, e entre a recompensa e a punição, de outro, são tênues e fortuitos. Pode-se dizer: o Evangelho reduzido ao Livro de Jó [...] (BAUMAN, 2008, p. 43)
É um tipo de programa, os reality shows, que tentam levar ao espectador uma
simulação da realidade, por mais que esteja longe disso. Os contos morais da
modernidade líquida falam da “ameaça maligna e da iminência da eliminação, assim
como da quase impotência dos seres humanos em escapar a esse destino” (idem). É
interessante notar como Baudrillard também trouxe ao pensamento o programa
específico, ao dissertar sobre a falta de necessidade que as massas possuem por
sentido ou informação - “querem apenas signos e imagens, o que a televisão lhes
fornece em profusão só reintegrando o universo real, com soberano desprezo [...]” (p.
159) ao falar da materialização dos reality shows pelo mundo. Não por acaso, os
participantes desses programas acabam entrando no sistema de culto à celebridades,
expressão que se popularizou nas duas últimas décadas, não pela sua conotação do
11 Programa holandês criado em 1999 cujos participantes ficam confinados em uma casa e vigiados 24 horas por dia. Exportado para mais de 50 países, é um programa muito popular em diversos países, como o Brasil. A inspiração do título veio do romance 1984, de George Orwell.
141
original, mas ganhando uma nova roupagem ao tratar pessoas famosas por estarem na
mídia como se esse fosse seu próprio trunfo.
Bauman (2003) cita Kilma ao dizer que “não há nada tão transitório como o
entretenimento e a beleza física, e os ídolos que os simbolizam são igualmente
efêmeros” e explicar o motivo pelo qual o os ídolos da modernidade líquida devem ser
brilhantes pelo período de tempo que ocuparem seu posto, mas ao mesmo tempo
também voláteis e móveis de maneira que possam desaparecer rapidamente, abrindo
espaço para mais um da imensa fila de postergantes ao posto. Bauman (2001) traz
uma afirmação sarcástica, mas consciente, de Daniel Boorstin sobre a estrutura de
idolatria que a sociedade líquida construiu:
Uma celebridade é uma pessoa conhecida por ser muito conhecida, e um best-seller é um livro que vende bem porque está vendendo bem. A autoridade amplia o número de seguidores, mas no mundo de fins incertos e cronicamente subdeterminados, é o número de seguidores que faz - que é - a autoridade (BOORSTIN in BAUMAN, 2001, p. 80).
Há um aspecto imbricado ao que Bauman (2014) chama de “morte do
anonimato”, uma vontade de pertencer ao apelo midiático que ultrapassa o próprio
limite sobre o que é privado ou não. “Submetemos à matança nossos direitos de
privacidade por vontade própria. Ou talvez apenas consintamos em perder a
privacidade como preço razoável pelas maravilhas oferecidas em troca” (p. 28), sendo
que o poder de atração da imagem midiatizada é tão grande que a condição de ser
observado e visto foi reclassificada de ameaça a tentação. A significação da vida e seu
valor parece estar ligada ao reconhecimento de sua existência social. Os produtos que
os consumidores são incitados a colocar no mercado, promover e vender, agora, são
eles próprios.
É possível determinarmos a potência não só em termos de alcance, mas
também na capacidade de formação de cultura e opinião que a mídia possui na
contemporaneidade. “Não é preciso entrar no duplo virtual da realidade, pois já
estamos nele - o universal televisivo não passa de um detalhe holográfico da realidade
global [...]”, afirma Baudrillard. É um sinal de uma promiscuidade geral, e não de uma
liberdade pessoal, a nossa transformação em seres individualizados e indivisíveis entre
nós, afirma o filósofo francês. No seu tradicional tom apocalíptico e beirando o
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moralismo, ele analisa a proliferação desse tipo de conteúdo audiovisual como um grito
desesperado e final contra nossa própria existência, em vias de se extinguir.
Em alguma parte, estamos de luto por essa realidade nua, essa existência residual, essa desilusão total. Há, nessa história do Big Brother, alguma coisa de um luto coletivo, mas que faz parte da solidariedade que une os criminosos que somos todos – os assassinos desse crime perpetrado contra a vida real e de cuja confissão nós esvaziamos na tela, que, de qualquer forma, nos serve de confessionário (assim como no próprio programa). Aí reside a nossa verdadeira corrupção, a corrupção mental, no consumo desse luto e dessa decepção, fonte de gozo contrariado (BAUDRILLARD, 2002, p. 10).
O público anseia por ver uma fatia de realidade à sua frente. Quase palpável,
parece que enfim, o indivíduo pode tentar se reconectar com algo que o aproxime do
real, em meio à tantos simulacros contemporâneos. Logicamente, não passa de mais
uma ilusão. O poder da imagem e de estar em voga midiaticamente é sem dúvida um
dos grandes pilares da sociedade contemporânea, líquida e rarefazendo-se diante de
nossos olhos.
Em uma sociedade que parece correr atrás do próprio rabo, buscando saciar
desejos que nunca cessam, Bauman (2001) concorda que “é a própria corrida que
entusiasma, e por mais cansativa que seja, a pista é um lugar mais agradável que a
linha de chegada” (p. 103). Quando o alicerce da comunidade é um mercado calcado
pela produção de desejos e de consumidores, e no qual o consumo consciente é
basicamente escolher o menos nocivo para o indivíduo, percebe-se que não há
realmente um pensar aguçado a respeito das engrenagens.
A chegada, o fim definitivo de toda escolha, parece muito mais tediosa e consideravelmente mais assustadora do que a perspectiva de que as escolhas de amanhã anulem as de hoje. Só o desejar é desejável - quase nunca sua satisfação (BAUMAN, 2001, p. 103).
Acreditamos que o panorama desenhado possui relevância e é fidedigno com os
fatores sociais externos, deixando um pequeno legado de uma época tão fugidia e tão
difícil de caracterizar. Provavelmente só teremos noção mais clara a respeito dos seus
elementos e consequências com o devido distanciamento temporal, mas é importante
se deter e tentar observar com alguma consciência o nosso entorno, tanto nas
questões macro, quanto nas micro. Apesar de abordar o sombrio e o lado mais bestial
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do ser humano durante este trabalho, ainda trazendo um diretor de filmes densos e
pesados como Haneke, acreditamos que há uma geração que nasceu durante o ápice
do mal-estar líquido que parece disposta a dissipá-lo aos poucos, como provam
inúmeros movimentos ao redor do mundo e aqui mesmo, em Porto Alegre. A sociedade
parece se voltar cada vez mais para o seu jardim, o que pode ser um começo para
dissipar essa ânsia que nos consome.
A questão fatídica para a espécie humana parece-me ser saber se, e até que ponto, seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal causada pelo instinto humano de agressão e autodestruição. Talvez, precisamente com relação a isso, a época atual mereça um interesse especial. Os homens adquiriram sobre as forças da natureza um tal controle, que, com sua ajuda, não teriam dificuldades em se exterminarem uns aos outros, até o último homem. Sabem disso e é daí que provém grande parte de sua atual inquietação, de sua infelicidade e de sua ansiedade (FREUD, 1997, p. 108).
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After Liverpool (1974)
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O vídeo de Benny (Benny’s video, 1992)
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Zufalls, 1994)
O castelo (Das Schloß, 1997)
Violência gratuita (Funny games, 1997)
Código desconhecido (Code inconnu: Récit incomplet de divers voyages, 2000)
A professora de piano (La pianiste, 2001)
O tempo do lobo (Le temps du loup, 2003)
Caché (2005)
Violência gratuita (Funny games, 2007)
A fita branca (Das weiße Band - Eine deutsche Kindergeschichte, 2009)
Amor (Amour, 2012)
- Gero Von Boehm, Felix Von Boehm
Michael Haneke: my life (2009)