Post on 14-Dec-2018
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE MINAS GERAIS Centro de Memria e de Pesquisa Histrica
MINAS GERAIS NO ARQUIVO HISTRICO DO TRIBUNAL DE CONTAS DE PORTUGAL
Caio Csar Boschi Rgis Clemente Quinto
Belo Horizonte 2015
Caio Csar Boschi
Rgis Clemente Quinto
MINAS GERAIS NO ARQUIVO HISTRICO DO TRIBUNAL DE CONTAS DE PORTUGAL
Belo Horizonte 2015
FICHA TCNICA
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE MINAS GERAIS
Gro-Chanceler
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Reitor
Dom Joaquim Giovani Mol Guimares
Vice-reitora
Patrcia Bernardes
CENTRO DE MEMRIA E DE PESQUISA HISTRICA PUC MINAS
Conselho Consultivo e Deliberativo
Caio Csar Boschi
Carla Ferretti Santiago
Cristiano Garotti da Silva
Edison Gomes (Presidente)
Jacyra Antunes Parreira
Jlia Calvo
Diretor
Caio Csar Boschi
Coordenadora de Pesquisa
Virgnia Maria Trindade Valadares
Setor de Documentao
Silvia Maria Amncio Rachi Vartuli
Colaboradores
Juliana Pereira Bittencourt (estagiria); Leandro Pereira de Abreu (acabamento e reproduo digital); Luana Barbosa Vieira (reviso gramatical); Luiza Papini (capa); Rafael Pacheco Mouro (normalizao tcnica); Thais Marcolino dos Santos Gomes (estagiria).
FICHA CATALOGRFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais
Boschi, Caio Csar B742m Minas Gerais no Arquivo Histrico do Tribunal de Contas de
Portugal / Caio Csar Boschi, Rgis Clemente Quinto. Belo Horizonte, PUC Minas, 2015. [E-Book]
688 p. ISBN: 978-85-8239-033-7 Inclui bibliografia.
1. Minas Gerais - Pesquisa. 2. Tribunal de Contas de Portugal - Arquivos. 3. Pesquisa histrica. I. Quinto, Rgis Clemente. II. Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais. Centro de Memria e de Pesquisa Histrica. III. Ttulo.
CDU 981.51
SUMRIO
Prefcio Guilherme dOliveira Martins ............................................................................ 6
Apresentao Caio Csar Boschi Rgis Clemente Quinto ..................................................................................... 9 O Errio Rgio: uma breve introduo Luciano Figueiredo ............................................................................................ 11 A Junta da Real Fazenda em Minas Gerais em seu dilogo com o Errio Rgio Alexandre Mendes Cunha .................................................................................. 18 O Errio Rgio e a Real Extrao dos Diamantes: possibilidades de pesquisa Jnia Ferreira Furtado ......................................................................................... 28 Catlogo/Inventrio ................................................................................................... 36 ndice ideogrfico ...................................................................................................... 554 ndice onomstico ...................................................................................................... 583 ndice toponmico ...................................................................................................... 665
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Prefcio
O Tribunal de Contas portugus rgo de soberania na qualificao da Constituio
da Repblica Portuguesa de 1976 uma das mais antigas instituies do Estado portugus,
remontando as suas razes ao sc. XIII, quando se comea a desenhar o embrio da Casa dos
Contos, primeiro rgo de ordenao e fiscalizao das receitas e despesas do reino.
Todas as instituies que se seguiram, da Casa dos Contos ao atual Tribunal de
Contas, evidenciam uma linha de continuidade que as define como pilares fundamentais da
administrao e controlo das finanas pblicas portuguesas e, por consequncia, da
consolidao do prprio Estado.
Num primeiro momento desta histria institucional, os Contos foram contemporneos,
na sua fase inicial, da afirmao e da consolidao de um reino confinado ao espao europeu-
atlntico e, depois, da construo de um imprio que se estendia frica, Amrica do Sul e
sia.
A necessidade de dotar a Coroa portuguesa de novos mecanismos de controlo
financeiro de um imprio em crescimento obrigou, naturalmente, a uma progressiva
complexidade da contabilidade e das estruturas do Estado. Nesse contexto, no podemos
deixar de assinalar a importncia dos Regimentos e Ordenaes da Fazenda de 17 de outubro
de 1516 como instrumento da centralizao da contabilidade pblica e, simultaneamente, da
separao entre contabilidade central e contabilidade local.
Nos ltimos anos da sua existncia, os Contos foram marcados pelos efeitos do
terramoto de 1 de novembro de 1755, que trouxe a desordem provocada pelo desaparecimento
da documentao dos Contos, tambm ela destruda pelo terramoto e pelo incndio que se lhe
seguiu.
Os Contos foram extintos em 1761 e, em sua substituio, criado o Errio Rgio. A
nova instituio um monumento que por si s bastaria para eternizar a memria de D.
Jos, nas palavras de Jcme Ratton nasce num contexto de desagregao e
enfraquecimento das estruturas do Estado, tendo o terramoto de 1755 constitudo um dos
pretextos e a oportunidade para o desenvolvimento da poltica reformista do futuro marqus
de Pombal.
O Errio Rgio foi um instrumento decisivo na centralizao da administrao e da
fiscalizao financeira, como prprio de um regime absolutista. Essa centralizao torna-se
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evidente em mltiplos aspetos: desde logo, ao estender a sua esfera de controlo a todo o reino
e seus domnios (espelhada na prpria estrutura orgnica do Errio Rgio diviso em
contadorias de mbito geogrfico desde a Corte sia portuguesa) e no secretismo que
rodeava as contas pblicas (que eram do conhecimento de apenas quatro pessoas: Rei,
inspetor-geral, tesoureiro-mor e seu escrivo).
Outro mecanismo de reforo dessa centralizao, a utilizao, pela primeira vez em
Portugal num rgo do Estado, da escriturao por partidas dobradas. adoo do novo
mtodo h que associar a criao da Aula do Comrcio (cujo primeiro curso decorreu entre
1759 e 1763), escola laica pioneira no ensino da contabilidade em Portugal e na Europa: alm
de dotar os negociantes nacionais com competncias contabilsticas, nomeadamente a
utilizao das partidas dobradas at ento desconhecidas da maioria em contraste com os
negociantes estrangeiros estabelecidos em Portugal , deu origem criao de um corpo de
funcionrios que viria a modernizar as estruturas da administrao financeira portuguesa.
Essas alteraes repercutiram-se, naturalmente, na administrao financeira dos
domnios ultramarinos onde viriam a ser estabelecidas Juntas da Fazenda, tendo as Juntas da
Baa e do Rio de Janeiro sido as primeiras a receber os novos mtodos de escriturao.
Estabelecida a Corte no Brasil na sequncia das invases francesas, o modelo do
Errio Rgio foi transposto para o novo continente, agora convertido em sede do Imprio
portugus. No Rio de Janeiro, foi criado, semelhana do original pombalino, um Real Errio
em junho de 1808.
A dcada de 20 do sc. XIX foi frtil em momentos decisivos para a histria de
Portugal e do Brasil: em 1821, D. Joo VI regressa a Portugal, ficando no Brasil, como
regente, o prncipe herdeiro, D. Pedro; em setembro de 1822, a independncia do Brasil e a
aprovao da primeira Constituio portuguesa so praticamente simultneas.
Portugal e Brasil, unidos por razes comuns, seguem agora percursos e histrias
diferentes.
A documentao do Arquivo Histrico do Tribunal de Contas de Portugal materializa
e evidencia a histria da administrao e do controlo financeiro em Portugal e nos pases que
compem o espao lusfono.
Conservar, mas tambm garantir o seu crescimento com a documentao que hoje
produzida pelo Tribunal de Contas e promover o acesso a um patrimnio documental nico
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em Portugal e comum a outros pases, so preocupaes permanentes na histria do Tribunal
de Contas e, em particular, do seu Arquivo Histrico.
Por essas razes, com muita satisfao que encaramos o presente trabalho de
divulgao do Arquivo Histrico do Tribunal de Contas de Portugal junto dos investigadores
brasileiros (utilizadores habituais do nosso Arquivo Histrico), em particular dos que se
debruam sobre a histria de Minas Gerais.
H j vrios anos que o Prof. Doutor Caio Csar Boschi utilizador recorrente do
Arquivo Histrico do Tribunal de Contas de Portugal, sendo um conhecedor profundo do
valor que a documentao deste Arquivo representa para a histria da administrao e
controlo financeiro do Brasil.
Enquadrando-se num labor notvel desenvolvido pelo Prof. Doutor Caio Csar Boschi
de divulgao dos acervos dos arquivos portugueses no que toca histria do Brasil, chegou
agora a oportunidade de destacar a importncia da documentao do Arquivo Histrico do
Tribunal de Contas, focando especialmente a informao relativa a Minas Gerais.
Alm da disponibilizao do catlogo/inventrio e respetivos ndices e da reproduo
da documentao do Arquivo Histrico do Tribunal de Contas de Portugal relativa a Minas
Gerais, esta obra, de que so autores o Prof. Doutor Caio Csar Boschi e o Dr. Rgis
Clemente Quinto, conta ainda com trs textos que enquadram a documentao no seu
contexto histrico e institucional: o primeiro, da autoria do Prof. Doutor Luciano Figueiredo,
sobre o Errio Rgio; o segundo, da autoria do Prof. Doutor Alexandre Mendes Cunha, sobre
a articulao entre a Junta da Real Fazenda em Minas Gerais e o Errio Rgio; e o terceiro, da
autoria da Prof. Doutora Jnia Ferreira Furtado, que destaca a relevncia da documentao
que existe no AHTC relacionada com a Real Extrao dos Diamantes.
Estamos certos de que esta obra dar novo impulso ao conhecimento e utilizao do
Arquivo Histrico do Tribunal de Contas de Portugal por parte dos investigadores brasileiros.
Lisboa, 20 de outubro de 2015.
Guilherme dOliveira Martins
Presidente do Tribunal de Contas de Portugal
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Apresentao
Caio Csar Boschi Rgis Clemente Quinto
Este trabalho d sequncia empreitada que se caracteriza por sistematizar e divulgar
fontes textuais de inequvoca relevncia, quais sejam conjuntos documentais depositados em
arquivos de Portugal respeitantes ao chamado perodo colonial da Histria do Brasil.1
O acervo aqui considerado o fundo documental do Errio Rgio, organismo criado e
presidido pelo marqus de Pombal em fins de 1761, com vistas centralizao do sistema
financeiro do Imprio portugus.
O propsito o de democratizar o acesso dos estudiosos da Histria do Brasil a um
acervo que praticamente por eles desconhecido. Trata-se de documentao relativa
administrao dos contratos por meio dos quais a Coroa arrecadava os tributos e os impostos
da Colnia. Alm disso, ela abrange o acervo da Demarcao Diamantina, sobretudo da
Diretoria Geral da Real Extrao dos Diamantes, tanto no respeitante s administraes
instaladas no Arraial do Tijuco e no Rio de Janeiro como dos rgos de gesto superior
sediados em Lisboa.
O trabalho se iniciou com a reproduo microflmica e digitalizada do referido
conjunto documental para, em seguida, se realizar a leitura paleogrfica dos registros neles
consignados. A etapa posterior foi a elaborao de quadros-resumo dos registros.
Complementa a atividade, como elemento facilitador e, a nosso juzo, indispensvel para a
consulta, o estabelecimento de ndices toponmico, onomstico e ideogrfico dos registros.
A fiscalidade temtica nuclear na consolidao do Antigo Regime e, por decorrncia,
na Histria de Portugal e de sua colnia sul-americana no Setecentos. Se hoje se reclamam
anlises historiogrficas que, dentre outras abordagens, verticalizem o conhecimento sobre as
relaes entre metrpole e colnia, sobre as interaes entre o Imprio Ultramarino portugus
1 Nesse sentido, os resultados obtidos tm se materializado em vrios instrumentos de pesquisa, como, por exemplo: BOSCHI, Caio Csar. Roteiro-sumrio de arquivos portugueses de interesse para o pesquisador da Histria do Brasil. Lisboa: Edies Universitrias Lusfonas, 1995; BOSCHI, Caio Csar. Fontes primrias para a Histria de Minas Gerais em Portugal. Belo Horizonte: Fundao Joo Pinheiro, 1998; BOSCHI, Caio Csar (Coord.). Inventrio dos manuscritos avulsos relativos a Minas Gerais existentes no Arquivo Histrico Ultramarino, de Lisboa . Belo Horizonte: Fundao Joo Pinheiro, 1998. 3 v.; BOSCHI, Caio Csar. O Brasil-Colnia nos arquivos histricos de Portugal. 4 ed. So Paulo: Alameda, 2011. Cabe salientar que, para a histria mineira, tais publicaes tm sido a base para a microfilmagem e/ou a digitalizao dos fundos documentais inventariados, trabalho esse que vem sendo, ampla e gratuitamente, disponibilizado, ao longo do tempo, sob a forma de CD-ROM, DVD e/ou on-line.
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e o Antigo Sistema Colonial, o estudo da fiscalidade, gestada e executada no Dezoito,
apresenta-se como incontornvel objeto de pesquisa. Particularmente se o recorte cronolgico
da investigao se fixar na segunda metade do sculo.
Pese embora a centralidade do tema-objeto, escassa a produo historiogrfica a ele
respeitante. Raros so os estudos sistemticos e verticais a respeito. Os existentes,
majoritariamente, tratam de recortes especficos, isto , de determinados tipos de tributos, de
estancos e/ou de contratos. Essa rarefao, em parte, devida s dificuldades decorrentes da
diversidade e da disperso dos acervos documentais respeitantes temtica.
Esta obra pretende, dessa forma, amenizar alguns dos bices ao apresentar repertrio
pormenorizado e exaustivo para a leitura de documentao relativa Capitania de Minas
Gerais, cuja diversidade informativa extrapola em muito as temticas tributrio-fiscais,
que a natureza da instituio detentora pode, primeira vista, fazer supor.
Assim, o que se busca facultar o fcil acesso no apenas aos originais das fontes, por
meio de reproduo digitalizada, mas tambm, e principalmente, permitir a imediata e total
identificao de cada registro documental de valioso arquivo histrico que, repita-se, deve
merecer melhor ateno dos pesquisadores.
Para contextualizar a realidade histrica a que se refere a documentao em causa, o
trabalho fica enriquecido com trs textos introdutrios, redigidos por reconhecidos
especialistas nas principais vertentes institucionais e no s abrangidas pelos registros
documentais.
Registre-se, finalmente, que, para a realizao desta obra, contamos com o apoio
financeiro do Fundo de Incentivo Pesquisa FIP, mantido pela Pr-reitoria de Pesquisa e
Ps-graduao da PUC Minas e, sobretudo, com a prvia autorizao e a permanente
colaborao do Tribunal de Contas de Portugal. A esta respeitvel instituio, nas pessoas de
seu presidente, o excelentssimo senhor Doutor Guilherme dOliveira Martins, que enriquece
o trabalho distinguindo-nos com o texto de abertura, do senhor diretor-geral, Conselheiro
Doutor Jos F. F. Tavares e da ex-diretora do Departamento de Arquivo, Documentao e
Informao, senhora Dra. Judite Cavaleiro Paixo, os nossos melhores agradecimentos.
Oxal as informaes e a reproduo documental aqui abrangidas tenham a serventia
desejada.
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O Errio Rgio: uma breve introduo
Luciano Figueiredo Departamento de Histria
Universidade Federal Fluminense
A fase em que Portugal contou com o Errio Rgio velando por suas finanas
pblicas, entre 1761 e 1832, foi um momento singular. O perodo est cercado de grandes
tragdias, desde terremotos que devastaram o reino e sua economia, presses internacionais
extraordinrias marcadas por conflitos e invases at, no bastassem, conspiraes e projetos
revolucionrios que brotavam por todos os lados.
Nada disso, porm, era estranho a um reino habituado a encontrar espaos de
superao. A singularidade que pode ser atribuda a esse momento decorreu da ousadia das
medidas de Estado e de governo que o principal ministro de Dom Jos I empreendeu,
confrontando tradies imemoriais, a fim de posicionar Portugal frente aos desafios que
estagnaram o reino, conforme alguns alvitres.
Das reformas estruturais empreendidas pelo secretrio de Estado dos Negcios do
Reino, Sebastio Jos de Carvalho e Melo, poucas demonstraram tanta atitude e mpeto de
mudana como a criao do Errio Rgio, em 22 de dezembro de 1761.
1 Sua implantao foi, para Kenneth Maxwell, o elemento chave no esforo global de
Pombal com vistas racionalizao e centralizao.
*
A nova instituio fazendria cresce sobre as cinzas da Casa dos Contos, consumida
pelo fogo que se seguiu ao grande terremoto de 1755. A expresso quase literal, pois a
repartio se instalou no prdio do Arsenal Real em que havia funcionado os Contos do Reino
e Casa, prximo ao Tejo, onde permaneceria at seu fim.2 Por outro lado, o fim dos registros
fiscais de alfndegas, dvidas, tenas, juros, contratos, rendas, assim como livros de
1 Carta de Lei de 22 de dezembro de 1761. Publicada em: MENDONA, Marcos Carneiro de. O Errio Rgio no Brasil. Rio de Janeiro: Ministrio da Justia/Servio de Documentao, 1968. p. 173. 2 A obra de construo de um novo e adequado edifcio para suas funes se arrastou at ser abandonada em 1797. Cf. MOREIRA, Alzira Teixeira Leite. Inventrio do Fundo Geral do Errio Rgio; Arquivo do Tribunal de Contas. 2 ed. Lisboa: Tip. Minerva do Comrcio, 1977. p. XXI.
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pagamentos e despesas, exigiu um amplo esforo para recuperar o controle da situao
financeira. Acaba ficando claro que a rotina de administrao espelhada nos expedientes da
Casa dos Contos era inadequada.
Foi varrida tambm uma forma tradicional de gesto financeira do reino. Sem muita
demora, a Casa dos Contos foi extinta, extintos o cargo de contador-mor e os Contos do Reino
para abrir frente a uma nova instituio.3 Longe ficaram os tempos de D. Dinis, criador dos
Contos no sculo XIV, ensaio de uma mquina administrativa e a instncia pioneira com que
em Portugal se buscou exercer a contabilidade rgia em todo o reino. Sob sua gide, foi
criado, ento, um tesoureiro e quadros judiciais e fazendrios. A organizao da Fazenda
rgia pertencia a outra poca, pois acompanhava a consolidao do poder real apoiado nos
conselhos, contra os tentculos do regime senhorial. Sobre ela, escreveu Vitorino Godinho,
no ousaramos dizer: pblica.4
Com o Errio, procurou-se atacar a multiplicidade de ofcios, as competncias que se
justapunham e as formas de arrecadao fiscal autnomas que se adotavam, como as cmaras,
conselhos, alfndegas, armazns e tribunais. Os antigos tesoureiros e almoxarifes perdem o
direito de fazer pagamentos e, as diversas agncias e tribunais, de arrecadar. Restringe-se
ainda a autonomia de toda a espcie que oficiais e rgos possuam de arrecadar e gastar.
O Errio retira poder desse universo de agentes e instncias administrativas para trazer
para si a funo de tributar e realizar os pagamentos em nome das despesas pblicas. A nova
instituio concretiza uma efetiva centralizao ao ser o destino nico e final para onde
deveriam ser drenadas todas as rendas, assim como de onde sairiam os pagamentos de todas
as despesas.
cabea do Tesouro Geral, como tambm era designado o Errio Rgio, estava o
inspetor-geral do Tesouro (cargo exercido por Pombal durante sua administrao) devendo
satisfaes diretamente ao soberano. Abaixo, estavam o tesoureiro-mor e seu escrivo. O
tesoureiro-mor era o dono da chave do cofre, cabendo a ele receber e pagar, estando cercado
por quatro contadorias-gerais, com seus respectivos contadores, chefes de repartio que
faziam o trabalho executivo. Havia entre as contadorias uma diviso de tarefas tambm
3 ALDEN, Dauril. Royal government in colonial Brazil, with special reference to the administration of the Marquis of Lavradio, viceroy, 1769-1779. Berkeley: University of Califrnia Press, 1968. p. 280. 4 GODINHO, Vitorino Magalhes. Finanas pblicas e estrutura do Estado. In: Ensaios. Lisboa: S da Costa, 1978. v. 2, p. 42-43.
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marcada por uma tendncia de recortar os espaos do territrio em que o Tesouro arrecadava
e gastava. 5
A primeira contadoria fazia entrar dinheiro dos corregedores, provedores, juzes,
almoxarifes, tesoureiros, recebedores e contratadores dos direitos rgios da Corte e provncia
da Estremadura. A segunda repetia a funo anterior, mas abarcando as provncias do Reino e
ilhas dos Aores e Madeira. A terceira atendia chegada de recursos com as mesmas origens
da frica, do Maranho e das comarcas compreendidas pela Relao da Bahia. A ltima
contadoria ficava com o Rio de Janeiro, frica Oriental e sia. Cada uma delas produzia seus
nmeros em segredo, sem que as outras soubessem seus valores. Poucas dcadas depois, com
a sobrecarga de trabalho, haveria a diviso entre algumas dessas contadorias.6 Seguidas
mudanas se passariam at o final.
Trs tesoureiros-gerais foram introduzidos para movimentar esses volumes de
recursos, cuidando de ordenar corretamente as receitas e as despesas: um para os ordenados, o
segundo para os juros e o terceiro para as tenas. Com base em listas elaboradas por cada uma
dessas tesourarias, enviadas ao tesoureiro-mor, faziam-se os pagamentos.
Apesar da busca de racionalidade expressa nas normas legais, certos gastos no
resistiram fora dos costumes e ainda podiam atender s mediaes da cultura monrquica.
No livro do tesoureiro-mor esto registros de sadas de dinheiro diretamente para uso do
soberano, que no precisava se explicar. Ficava apenas o testemunho anotado: Para um
particular do Real Servio de que se no dar conta.7
Ainda assim, tudo deveria concorrer, segundo postulava o texto da lei, para que a
justia alcanasse a totalidade dos fiis vassalos. Estes poderiam sempre dispor, para sua
segurana e felicidade, dos recursos que asseguravam o estabelecimento, conservao e
aumento da monarquia. 8
Ao assimilar o que era rgio ao que se tornava pblico e comum, segundo
Fernando Thomaz, o Errio Rgio tornou-se pea decisiva para o monoplio fiscal e a
5 TOMAZ, Fernando. As finanas do Estado pombalino: 1762-1776. In: Estudos e ensaios em homenagem a Vitorino Magalhes Godinho. Lisboa: S da Costa, 1988. p. 356-385. 6 TOMAZ, Fernando. As finanas do Estado pombalino: 1762-1776. In: Estudos e ensaios em homenagem a Vitorino Magalhes Godinho. Lisboa: S da Costa, 1988. p. 357. 7 MOREIRA, Alzira Teixeira Leite. Inventrio do Fundo Geral do Errio Rgio; Arquivo do Tribunal de Contas. 2 ed. Lisboa: Lisboa: Tip. Minerva do Comrcio, 1977. p. XV. 8 Carta de Lei de 22 de dezembro de 1761. Publicada em: MENDONA, Marcos Carneiro de. O Errio Rgio no Brasil. Rio de Janeiro: Ministrio da Justia/Servio de Documentao, 1968. p. 172.
14
afirmao do poder, uma medida de extrema importncia para o fortalecimento do
absolutismo rgio. 9
*
A mudana no campo fazendrio foi profunda. E inovadora, no que concerne s
tcnicas contbeis e gesto administrativa.
O regimento de criao do Errio buscou estabelecer uma rotina na confeco dos
balanos setoriais e gerais. Semanalmente fechava-se o balano de cada uma das contadorias,
sumariadas pelo escrivo e entregues ao inspetor-geral do Errio, que apresentava ao
soberano. 10
Se a norma funcionou a contento, Pombal e Dom Jos estiveram permanentemente
informados do estado financeiro do reino. Duas vezes por ano, em janeiro e em julho, os
contadores entregavam o balano geral ao inspetor-geral, que, por sua vez, convocava o
tesoureiro-mor para fazer a conferncia e, ao fim, entregava-se ao soberano o resultado.
Sistematiza-se um novo mtodo de escriturao, mais operacional e eficiente que a de
partidas simples, prestao de contas usada pela Casa dos Contos, para permitir a avaliao de
equilbrio ou desequilbrio entre dbito e crdito; mais transparente tambm. Tratava-se do
mesmo sistema usado pelos comerciantes, as partidas dobradas (toda operao possua dois
registros, um de dbito, outro de crdito). Passa-se a escrever nos livros Dirio (em que eram
registrados os assentos) e Mestre (em que se escreviam as receitas e despesas a cargo dessa
repartio), que pertenciam a cada uma das contadorias. Muitos outros livros auxiliares eram
confeccionados (e todas as contadorias tinham dezenas deles), cada qual servindo para
registro de um tipo de arrecadao, como os contratos, os direitos rgios, as rendas e os
impostos.
Refletindo novas concepes administrativas, os ofcios deixavam de ter o carter de
propriedade de indivduos, como eram na Casa dos Contos, rezando a lei de 22 de dezembro
de 1761, que criou o Errio, e as funes e postos ali teriam o carter de serventia
9 TOMAZ, Fernando. As finanas do Estado pombalino: 1762-1776. In: Estudos e ensaios em homenagem a Vitorino Magalhes Godinho. Lisboa: S da Costa, 1988. p. 356. 10 Sobre a rotina administrativa, ver: TOMAZ, Fernando. As finanas do Estado pombalino: 1762-1776. In: Estudos e ensaios em homenagem a Vitorino Magalhes Godinho. Lisboa: S da Costa, 1988. passim, e MOREIRA, Alzira Teixeira Leite. Inventrio do Fundo Geral do Errio Rgio; Arquivo do Tribunal de Contas. 2 ed. Lisboa: Tip. Minerva do Comrcio, 1977. p. I-XXIII.
15
temporria.11 Alguma formao tcnica passa a ser exigida para os funcionrios, que
deveriam ser habilitados no curso da Aula do Comrcio, em que se ensinava clculo.
Por outro lado, fazer as contas era especialmente desafiador quando as receitas e as
despesas espalhavam-se por vrios territrios dos quais dependia, em grande parte, o governo
central. O Errio reflete, em sua organizao, essa singularidade de um reino europeu e
ultramarino enfrentando os riscos que se apresentavam na segunda metade do sculo XVIII.
Administrar um imprio, equilibrando a necessidade de cobranas fiscais de regies distantes
e habitualmente renitentes, exigiu, portanto, cuidados redobrados.
Para contemplar a demanda estvel por recursos com a estabilidade poltica das
colnias, adota-se um sistema descentralizado de administrao local, sob forma de Juntas de
Fazendas. At a dcada de 1770, criam-se Juntas nas capitanias do Brasil, como em
Pernambuco (1765-1770), Rio de Janeiro (1767), Bahia (1769), Minas Gerais (1771-1772),
So Paulo (1775) e Maranho (1780). 12 Os lugares nas Juntas eram ocupados geralmente por
comerciantes locais bem-sucedidos devidamente remunerados pela funo , dos quais se
esperava contar com a experincia do trato mercantil a favor das finanas do rei. 13
Embora houvesse algumas diferenas entre elas, eram todas comandadas por um
presidente, acompanhado de cerca de cinco deputados, um tesoureiro-geral e um contador-
geral, que fazia s vezes de secretrio da instituio. Nem tudo, porm, ficou nas mos dessas
elites locais luso-brasileiras. Os oficiais rgios das capitanias, como os ouvidores (ou juiz de
fora ou chanceler do Tribunal da Relao, a depender da regio), o provedor da Fazenda e seu
procurador, faziam-se presentes nas reunies deliberativas. 14
Toda a movimentao financeira passava a ser organizada conforme o tipo de gastos, a
saber: militar, civil, eclesistico e extraordinrio. E uma das receitas mais fartas da Amrica
esteve tambm sob custdia das Juntas: os contratos, que cobriam tantas oportunidades com a
arrematao de vrios ramos dos direitos rgios.15
11 TOMAZ, Fernando. As finanas do Estado pombalino: 1762-1776. In: Estudos e ensaios em homenagem a Vitorino Magalhes Godinho. Lisboa: S da Costa, 1988. p. 357. 12 ALDEN, Dauril. Royal government in colonial Brazil, with special reference to the administration of the Marquis of Lavradio, viceroy, 1769-1779. Berkeley: University of Califrnia Press, 1968. p. 281. 13 MAXWELL, Kenneth. Marqus de Pombal, paradoxo do Iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. 14 MAXWELL, Kenneth. Marqus de Pombal, paradoxo do Iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. p. 129. 15 MAXWELL, Kenneth. Marqus de Pombal, paradoxo do Iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. p. 129.
16
As Juntas do Brasil, segundo a previso normativa, eram autnomas e independentes
entre si, devendo prestar contas, com balanos padronizados de gastos e receitas, diretamente
ao Tesouro de Lisboa por meio do inspetor-geral. 16
Surgiria ainda um novo tipo de comunicao administrativa. Uma das muitas formas
de estreitar o dilogo entre as partes distantes e o centro se manifestou nas representaes,
um canal exclusivo em que se escreve das capitanias Contadoria-Geral para muitas vezes se
criticar as autoridades locais, os contratadores e sugerir novas iniciativas relacionadas
administrao fiscal. Sua contraparte so os pareceres da Contadoria Geral, em que as
situaes coloniais eram avaliadas.
*
Na sede da monarquia, o Errio vai se fortalecendo e atraindo para si instncias cuja
autonomia poderia emaranhar planos de uma gesto financeira prudente. Em 1763, criada a
Tesouraria Geral das Tropas (com trs tesoureiros gerais), que supervisiona as verbas
destinadas ao Exrcito pagas pelo Estado. Alguns anos depois, em 1765, extingue-se a
Administrao da Casa de Bragana, que passa a ser exercida por uma das contadorias gerais.
Em 1770, a vez da Casa das Senhoras Rainhas. Algo parecido se passa com os Contos da
Mesa da Conscincia e Ordens, as contadorias das trs ordens militares e a Tesouraria Geral
dos Cativos, abolidos em 1774. O poderoso Conselho de Fazenda seria, em 1790, fundido ao
Errio Rgio.17
A complexidade e a dimenso do Errio padecem com as circunstncias que Portugal
atravessa a partir do incio do sculo XIX com a invaso francesa, a sada da Corte e a
independncia do Brasil, em 1822. Em 1832, a 16 de maio, o Errio foi extinto por um
Decreto, que tambm ergueu o Tribunal do Tesouro Pblico.18
Na ocasio, um dos ministros referiu-se a ele como o velho e monstruoso Errio.19 O
julgamento no est altura do que representou a instituio perante os dilemas que o reino e
16 MAXWELL, Kenneth. Marqus de Pombal, paradoxo do Iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. p. 129. 17 MOREIRA, Alzira Teixeira Leite. Inventrio do Fundo Geral do Errio Rgio; Arquivo do Tribunal de Contas. 2 ed. Lisboa: Tip. Minerva do Comrcio, 1977. p. I-XXIII. 18 MOREIRA, Alzira Teixeira Leite. Inventrio do Fundo Geral do Errio Rgio; Arquivo do Tribunal de Contas. 2 ed. Lisboa: Tip. Minerva do Comrcio, 1977. p. I-XX. 19 As palavras so de Mousinho da Silveira, citado em: MOREIRA, Alzira Teixeira Leite. Inventrio do Fundo Geral do Errio Rgio; Arquivo do Tribunal de Contas. 2 ed. Lisboa: Tip. Minerva do Comrcio, 1977. p. XX.
17
o imprio enfrentavam na segunda metade do sculo XVIII, uma poca de instabilidades e
incertezas. No era gratuito o texto da carta de lei que criou o Errio dizer que da reforma
financeira dependia a conservao da monarquia. A nova medida da gesto fazendria foi
decisiva, de grande alcance poltico e, afirma Fernando Tomaz, uma contribuio vlida para
o processo de construo do Estado, que atingiu, nesta fase do Setecentos, um dos momentos
mais significativos.20
Por isso, foi o Errio ento chamado de Rgio, sendo na realidade pblico e
comum, isto , voltado para motivos de interesse comum e utilidade pblica.21 Se
lembrarmos da expresso de Magalhes Godinho sobre a Casa dos Contos feita
anteriormente, pode-se ousar chamar de pblica a nova instituio criada sob Dom Jos I.
Malgrado toda a sorte de julgamento sobre sua trajetria, ao contrrio do que ocorreu
com a Casa dos Contos, sua extino deixou um patrimnio cujo potencial para pesquisas est
ainda muito longe de se esgotar.
Uma grande esperana que serve de conforto para os historiadores.
20 TOMAZ, Fernando. As finanas do Estado pombalino: 1762-1776. In: Estudos e ensaios em homenagem a Vitorino Magalhes Godinho. Lisboa: S da Costa, 1988. p. 356. 21 TOMAZ, Fernando. As finanas do Estado pombalino: 1762-1776. In: Estudos e ensaios em homenagem a Vitorino Magalhes Godinho. Lisboa: S da Costa, 1988. p. 356.
18
A Junta da Real Fazenda em Minas Gerais em seu dilogo com o Errio Rgio1
Alexandre Mendes Cunha Cedeplar
Universidade Federal de Minas Gerais
A implantao da Junta da Real Fazenda em Minas Gerais representa, antes de mais
nada, um esforo no sentido de uma efetiva tomada de posio sobre o estado das contas e da
administrao das finanas na Capitania. tambm o momento da implantao de mtodo e
sistemtica especfica na administrao das finanas nessa parte do Imprio que era em tudo
crucial para as rendas do Estado portugus.
Esses so aspectos que saltam rapidamente aos olhos na anlise da documentao do
Errio Rgio relativa a Minas Gerais. A atuao, em Minas Gerais, da Junta da Real Fazenda
oferece, no obstante, uma leitura substantiva de muito mais do que o detalhe da prtica fiscal
de ento. A importncia relativa da Junta da Real Fazenda de Minas dentro da estrutura da
administrao das finanas do Estado portugus est em relao direta com o peso relativo
dos tributos provenientes das Minas desde o incio do sculo XVIII, que colocava destaque
absoluto para a administrao dessa regio do Imprio. No s por conta disso, que aproxima
e sintoniza as expectativas por sobre a Junta com as balizas polticas da administrao central,
mas tambm pela forma especfica da sociedade, economia e cultura mineiras na segunda
metade do sculo XVIII, o estudo do organismo deixa ver, seja direta ou indiretamente, um
conjunto muito mais largo de questes.
O estudo da Junta se entrecruza, nessa perspectiva, com dimenses variadas de
anlise, que dizem respeito, por exemplo, aos problemas da economia mineira em fins do
XVIII e os limites da percepo dessa problemtica pela administrao central, importncia
dos crculos de poder localmente constitudos e o lugar de seus pleitos na conduo das aes
fazendrias, s prprias concepes de como se daria ento o correto exerccio tributrio e,
1 O dilogo de pareceres entre a Junta da Real Fazenda de Minas Gerais e o Errio Rgio recebeu anlise mais longa e circunstanciada em um texto anterior que guarda relao, em uma de suas partes, com este pequeno ensaio. Para exemplo efetivo desse dilogo, no caso do debate sobre a abolio da circulao de ouro em p na Capitania, sugere-se a leitura de: CUNHA, Alexandre Mendes. A Junta da Real Fazenda em Minas Gerais e os projetos de abolio da circulao de ouro em p (1770-1808): limites s reformas econmicas na colnia dentro da administrao fazendria portuguesa. Histria Econmica & Histria de Empresas, Niteri, v. 15, p. 9-46, 2012.
19
nisto, leitura das leis, da justia e do direito, ou ainda ao cruzamento dos interesses
econmicos localmente constitudos e a burocracia montada para o exerccio fazendrio. Os
limites de escopo e de espao destinados a este pequeno texto sobre a Junta impedem a
explorao desses caminhos diversos, que servem aqui, no obstante, como sinalizao da
riqueza temtica do objeto, que em larga medida se abre agora a novas possibilidades de
anlise sistemtica com a publicao deste rico instrumento de pesquisa.
O momento da instalao da Junta em Minas e dos primeiros anos de seu
funcionamento demanda tambm a ateno a um conjunto especfico de questes que
constituem de fato desafios anlise do rgo. Esses desafios dizem respeito, por exemplo,
coincidncia entre as reorientaes administrativas na conduo da ao fazendria a partir do
consulado pombalino e o momento em que os rendimentos do quinto do ouro assumem, a
partir de meados do sculo, uma trajetria decrescente cada vez mais evidente e indisfarvel.
Tambm no nos esqueamos de sublinhar a influncia (mesmo que atravancada de diversas
formas) do esprito setecentista das luzes que alcana essa poro da Amrica e, com isso, a
fora de novas ideias polticas no quadro internacional, articulando-se, em alguma medida, a
certo amadurecimento de uma percepo da dimenso local no horizonte de expectativas dos
indivduos que a construam suas vidas, como seria o caso de vrios indivduos ligados
ao fazendria nas Minas de ento. Ou ainda, o prprio aprofundamento da experincia
urbana na organizao social e os desdobramentos de uma dinmica econmica, os quais j
articulam espaos diversos, para alm da minerao, que vo fazer dos pareceres nos quais os
deputados da Junta interpretam a realidade que lhes apresentada e tentam nela intervir
territrio para a leitura de um sem-fim de problemas econmicos e polticos, entre o dito e o
no dito, entre os acertos e os equvocos, e entre os variados interesses ali superpostos.
A criao do Errio Rgio, por carta de lei de dezembro de 1761, muda efetivamente a
paisagem da organizao financeira no Estado portugus. Concebido enquanto instncia
unificada da contabilidade geral de receita e despesa do Reino e seus domnios, funcionaria o
Errio como pea fundamental do processo de centralizao poltica levado a cabo por
Sebastio Jos de Carvalho e Melo, o futuro marqus de Pombal, ento conde de Oeiras. O
reinado de D. Jos I assistiu, desde seu comeo, em 1750, conduo de uma srie de
medidas no sentido de melhorar a arrecadao dos direitos e das rendas reais que se
marcavam em particular pela disperso em muitas reparties, pelos abusos dos oficiais do
fisco e pelos vrios atrasos nos depsitos desses direitos e rendas. Pode-se destacar, por
20
exemplo, o alvar de maio de 1751, que extinguiu os ofcios de depositrios da Corte e
Cidade e criou a Junta de Administrao dos Depsitos Pblicos da Corte e Cidade de Lisboa,
cumprindo dois objetivos fundamentais, quais sejam o de diminuir o atraso nos pagamentos e
o de pr em prtica uma escriturao contbil que viabilizasse o controle das receitas e
despesas por ali passadas. Poucos anos depois, em 1757, assiste-se extino de uma srie de
rgos, anexando-se suas funes Junta referida anteriormente. So suprimidos a os
depositrios do Juzo da ndia e Mina, Ouvidoria da Alfndega, capelas da Coroa, saca da
moeda, direitos reais das sete casas, das capelas particulares, resduos e aposentadoria-mor,
assim como as tesourarias dos juzos dos rfos.2 Tal qual explorado no texto de Luciano
Figueiredo que me antecede nesta introduo, esse conjunto de mudanas j se daria ao tempo
de Carvalho e Melo frente da Secretaria de Estado dos Negcios do Reino,3 mas tambm, e
em particular, aps o terremoto de 1755, que causou (entre muito mais, obviamente) a
destruio do edifcio do Terreiro do Pao, onde funcionava a Casa dos Contos, o que
contribuiu diretamente para a desordem nos servios do rgo e, de alguma forma, precipitou
na reorganizao que se opera com o surgimento do Errio Rgio.
A criao do Errio Rgio insere-se, assim, nesse contexto de reestruturao
administrativa do ps-terremoto, encontra-se em sintonia com um processo de centralizao
das finanas que guarda semelhanas com reformas absolutistas encampadas por outras
monarquias europeias e sugere percursos de apropriao de matrizes de ideias econmicas
diversas, dentre as quais a influncia do cameralismo de matriz germnica parece ser um trao
distintivo que j mereceu nossa anlise em outros trabalhos.4 Grosso modo, pode-se dizer que,
se a Casa dos Contos limitava-se somente a confrontar as receitas recebidas e as despesas
pagas pelos agentes do fisco, responderia o Errio Rgio por substantiva inovao, na medida
em que passa a ser agora o prprio Tesouro quem paga e recebe, buscando aprofundar o
controle das contas e, ao mesmo tempo, evitar os descaminhos.
O rgo se estruturava internamente em um arranjo hierrquico que tinha como figura
mxima o prprio secretrio de Estado dos Negcios do Reino, no cargo de inspetor-geral do 2 SUBTIL, Jos. Os poderes do centro: governo e administrao. In: MATTOSO, Jos (Dir.). Histria de Portugal [Quarto volume: O Antigo Regime (1620-1807) ed. acadmica]. Lisboa: Estampa, 1998. p. 155. 3 Em 1756, Sebastio Jos de Carvalho e Melo transita da Secretaria dos Negcios Estrangeiros e Guerra, que ocupava desde o incio do reinado de D. Jos I, para a Secretaria dos Negcios do Reino. 4 Veja, em particular: CUNHA, Alexandre Mendes. Polizei and the system of public finance: tracing the impact of cameralism in 18th century Portugal In: KURZ, Heinz; TRIBE, Keith; NISHIZAWA, Tamotsu (Org.). The dissemination of economic ideas. Cheltenham: Edward Elgar, 2011, p. 65-83; e CARDOSO, Jos Lus; CUNHA, Alexandre Mendes. Enlightened reforms and economic discourse in the portuguese-brazilian empire (1750-1808). History of Political Economy, Durham, v. 44, p. 619-641, 2012.
21
Tesouro, lugar tenente imediato Real Pessoa de Sua Majestade. A ele seguia na hierarquia
interna um tesoureiro-mor, cargo para o qual foi nomeado o negociante Jos Francisco da
Cruz, e um escrivo, Joo Henriques de Souza, lente da Aula do Comrcio5 e responsvel pela
funo-chave de elaborar um plano de escriturao do Errio em partidas dobradas. Na
sequncia do organograma, seguiam-se quatro contadorias, respondendo por partes distintas
do Imprio, tendo frente um contador-geral, auxiliado por quatro escriturrios. Havia ainda
trs tesoureiros-gerais, auxiliados cada um por um escrivo, sendo um para a receita e despesa
dos ordenados, outro para os juros e o terceiro para as tenas assentadas nos almoxarifados do
Reino. Completavam esse desenho inicial do Errio um porteiro e quatro contnuos. No total,
eram 33 funcionrios, nmero que foi sendo aumentado essencialmente em funo de novos
escriturrios e supranumerrios, o que viria a perfazer um total de 203 funcionrios em 1827.6
A criao da Junta da Real Fazenda em Minas Gerais, no obstante, tem de ser
analisada a partir da transio do rgo que a antecede, a Provedoria da Fazenda. Ou, melhor
dizendo, o fato de haver um hiato entre a instruo que determina a criao da Junta e a
instalao definitiva do rgo faz com que, j no perodo de existncia do Errio, a realidade
da administrao fazendria em Minas tenha de ser lida necessariamente no entremeio desse
processo de transio entre a Provedoria e a Junta da Fazenda, uma vez que a efetivao
prtica do novo rgo levaria vrios anos.
Essa , sem dvida, uma das questes interessantes que podem ser abordadas a partir
da documentao do Arquivo Histrico do Tribunal de Contas de Portugal. Cite-se a esse
respeito, por exemplo, a carta de janeiro de 1768 do conde de Oeiras, em sua condio de
inspetor-geral do Errio, ao conde de Valadares, governador da Capitania de Minas,
demandando que lhe sejam enviadas as informaes pertinentes aos assentos na Contadoria
Geral do Errio, assim como as clarezas individuais expressadas nas instrues que remeto a
V. Exa. assinadas pelo contador geral dessa repartio Lus Jos de Brito, as quais far
observar, e remeter a referida Conta resumida com a maior brevidade possvel.7 O
documento d a conhecer um momento de vigorosa tomada de posio em relao 5 Ligada Junta do Comrcio, a Aula do Comrcio de Lisboa foi criada em 1759 com o objetivo principal de difundir conhecimentos mercantis e econmicos de maneira mais ampla ao grupo dos comerciantes portugueses. Cumpriu funo pedaggica central ao mundo dos negcios, mas no s, uma vez que, com a criao do Errio, logo passou a contribuir diretamente para dotar o prprio Estado de um corpo de indivduos habilitados ao exerccio de funes primordiais organizao da fazenda, como a escriturao contbil por partidas dobradas. 6 MOREIRA, Alzira Teixeira Leite. Inventrio do Fundo Geral do Errio Rgio: Arquivo do Tribunal de Contas. Lisboa: Tip. Minerva do Comrcio, 1977. p. X-XII. 7 ARQUIVO HISTRICO DO TRIBUNAL DE CONTAS DE PORTUGAL. Fundo: Errio Rgio. Livro 4072, p. 31.
22
administrao fazendria da Capitania por parte da administrao central. Com base nas
respostas a um conjunto de provises expedidas em 17668 pelo conde de Oeiras ao provedor
da Real Fazenda de Vila Rica e aos intendentes do ouro das diferentes comarcas das
Capitania, solicitando o envio ao Errio de um conjunto minucioso de certides (todas elas
especificadas nos documentos) com o detalhamento de cada uma das receitas e despesas a
cargo da provedoria e das casas de fundio desde 1762, o contador-geral Lus Jos de Brito
levantaria extenso conjunto de dvidas e imprecises para as quais demandava-se
clarificaes por parte do governador.
Aps a criao do Errio, foram estabelecidas tesourarias ou juntas da fazenda nas
vrias capitanias brasileiras, e com ritmos diferentes em outras partes dos domnios
portugueses. A Junta da Fazenda em Minas foi instituda em 1765; as instrues especficas
para o seu funcionamento s foram recebidas, entretanto, alguns anos depois, em 1769.
Porm, no tendo essa Junta alcanado os resultados especficos objetivados pelo Errio em
termos da organizao das contas em Minas, ela seria novamente instituda e regulada com
base na carta rgia de 7 de setembro de 1771, passando a funcionar nesse novo modelo entre
fins de 1772 e o ano de 1773.9 De forma concreta, no transcurso entre 1765 e 1772, o que
funcionou mesmo foi uma Provedoria da Fazenda com certa reorganizao de funes e
cargos, ainda que autointitulada Junta da Real Fazenda em certos documentos. Data de 7 de
setembro de 1771 a ordem para essa instituio definitiva da Junta, o que se associa
diretamente, enfim, ao provimento dos meios necessrios para uma organizao contbil
moderna das finanas na Capitania, o que, em particular, est relacionado transferncia de
Carlos Jos da Silva para o cargo de escrivo da Junta, sendo os lugares da provedoria logo
depois providos por ordem datada de 14 de setembro do mesmo ano.10 Uma vez que os
oficiais que vo praticar o novo mtodo de arrecadao chegaro pouco mais ou menos no
princpio do ano de 1772 a Vila Rica, para evitar toda a confuso, deve este novo mtodo ter
princpio somente em 1 de janeiro de 1773 em diante, era o que ordenava o Mtodo que se
8 ARQUIVO HISTRICO DO TRIBUNAL DE CONTAS DE PORTUGAL. Fundo: Errio Rgio. Livro 4072, p. 1-9. 9 ARQUIVO HISTRICO ULTRAMARINO. Srie: Brasil. Capitania de Minas Gerais. Documentao Avulsa. Caixa 101, doc. 37; MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: a Inconfidncia Mineira: Brasil-Portugal 1750-1808. 5. ed. So Paulo: Paz e Terra, 2001 [ed. original 1973]. p. 63. 10 VASCONCELLOS, Diogo Pereira Ribeiro de. Breve descrio geogrfica, fsica e poltica da Capitania de Minas Gerais. Belo Horizonte: Fundao Joo Pinheiro / Centro de Estudos Histricos e Culturais. p. 100.
23
deve seguir na escriturao das contas da Real Fazenda da Capitania de Minas Gerais, o qual
detalhava a sistemtica da escriturao de cada um dos livros e dava exemplos.11
Passava a ser funo da Junta a administrao, a arrematao e a arrecadao de todos
os direitos e subsdios reais da Capitania, assim como a proviso das serventias dos ofcios da
fazenda e a expedio das folhas dos ordenados eclesisticos, civis e militares, alm daquelas
de natureza extraordinria. Cumpre destacar a importncia logo reunida pelo novo rgo por
conta dessa responsabilidade de arrematar os contratos da Capitania antes da alada direta do
Conselho Ultramarino, em Lisboa, o que por si s lhe conferia invulgar relevncia.12 O que se
deve anotar aqui que, ao mesmo tempo em que a criao do Errio representa um
movimento de centralizao, que em tudo se associa centralizao poltica processada por
Carvalho e Melo, h tambm um movimento contrrio no seio disso que, antes de constituir
uma contradio, exatamente uma das novas orientaes gerais da poltica pombalina e das
estratgias para assegurar as bases de manuteno de tal poder. Trata-se de uma disperso na
autonomia decisria para uma srie de questes que antes se concentravam em tribunais
metropolitanos e que desde ento passam alada de instncias diversas espalhadas pelo
conjunto do Imprio. A responsabilidade pela arrematao dos contratos nas capitanias do
alm-mar, transferindo para as juntas da fazenda atributos exclusivos do Conselho
Ultramarino, timo exemplo disso.13
A Junta da Fazenda, no que diz respeito sua organizao interna, era presidida pelo
governador e capito-general da capitania e completada por quatro vogais: um juiz e um
procurador dos feitos da fazenda, um tesoureiro-geral e um escrivo. O juiz dos feitos, at
1775, seguiu como o provedor, sendo, a partir da, substitudo nessa posio pelo ouvidor de
Vila Rica. O procurador da Fazenda, por sua vez, na extinta provedoria, era cargo ocupado
por um bacharel natural do pas,14 no entanto, a partir de 1774, o cargo passou a ser atribuio
anexa ao lugar de intendente do ouro da Casa de Fundio de Vila Rica.15 Sujeita Junta,
estava uma contadoria geral, que efetivamente era, tal qual se dava no Errio Rgio, a 11 ARQUIVO HISTRICO DO TRIBUNAL DE CONTAS DE PORTUGAL. Fundo: Errio Rgio. Livro 4072, p. 105-115. 12 MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: a Inconfidncia Mineira: Brasil-Portugal 1750-1808. 5. ed. So Paulo: Paz e Terra, 2001 [ed. original 1973]. p. 63-64. 13 Todavia, no se deve deixar de marcar bem que essa era, como se disse, uma maior autonomia relativa, sendo que existia toda sorte de limitaes s atribuies do rgo, como, por exemplo, na ausncia de liberdade para a alocao das despesas ou de criao de novas receitas, e no reforo de uma estrutura que fazia convergir agora ainda mais pesadamente o centro decisrio para a metrpole, no Errio. 14 O inconfidente Cludio Manuel da Costa, por exemplo, pretendeu o cargo, mas no o conseguiu. 15 VASCONCELLOS, Diogo Pereira Ribeiro de. Breve descrio geogrfica, fsica e poltica da Capitania de Minas Gerais. Belo Horizonte: Fundao Joo Pinheiro / Centro de Estudos Histricos e Culturais. p. 100-101.
24
repartio encarregada do conjunto das operaes cotidianas do rgo em termos de
recebimentos e pagamentos. Na Contadoria Geral da Junta da Real Fazenda em Minas,
tinham lugar como funcionrios, pela altura de 1780, segundo a informao de Jos Joo
Teixeira Coelho, intendente do ouro de Vila Rica entre 1768 e 1779, quatro escriturrios
contadores, quatro escriturrios ordinrios, trs ajudantes, sendo um fiel do tesoureiro-geral,
um porteiro e um contnuo.16 Ao comeo do sculo XIX, seguindo os dados de Diogo Pereira
Ribeiro de Vasconcelos, tesoureiro da Intendncia do ouro de Vila Rica, contavam-se seis
escriturrios contadores, dez ajudantes, porteiro e contnuo.17 Havia ainda, como oficiais da
Junta, um tesoureiro, com seu respectivo escrivo, e um solicitador, com meirinho e
escrivo.18
No que diz respeito diretamente aos homens que ocuparam os lugares de deputados na
Junta, possvel identificar uma proximidade de intenes com o provimento de cargos no
Errio e, em larga medida, com as orientaes prprias do perodo pombalino. Trata-se da
importncia concedida aos homens de negcio na administrao das finanas do Reino e o
incentivo ao recrutamento das elites locais. Kenneth Maxwell j chamava ateno para esse
aspecto, argumentando que, assim como na Real Fazenda [Errio Rgio], as Juntas da
Fazenda das capitanias deviam recrutar funcionrios entre os homens abastados e prudentes
locais, especialmente os mais ricos comerciantes, que deviam ser estimulados mediante a
fixao de soldos atraentes a colocar sua percia comercial a servio dos negcios pblicos.19
Esse , sem dvida, um aspecto fundamental a ser destacado. Tanto nas juntas quanto
na administrao central, no Errio, a figura dos comerciantes presena marcante desde o
primeiro momento. H, entretanto, algumas questes ainda mais instigantes no desenho
montado pela administrao portuguesa que no figuram na anlise de Maxwell e que, em
particular em relao a Minas, assumem grande interesse para a compreenso do processo
como um todo, as quais serviro aqui de concluso para este pequeno ensaio. Um primeiro
ponto a ser destacado a questo da estabilidade dos funcionrios-chave escolhidos para a
efetiva conduo do trabalho contbil-fiscal (tesoureiro e escrivo, fundamentalmente) em
16 COELHO, Jos Joo Teixeira. Instruo para o governo da Capitania de Minas Gerais. Belo Horizonte: Fundao Joo Pinheiro / Centro de Estudos Histricos e Culturais, 1994. p. 63. 17 VASCONCELLOS, Diogo Pereira Ribeiro de. Breve descrio geogrfica, fsica e poltica da Capitania de Minas Gerais. Belo Horizonte: Fundao Joo Pinheiro / Centro de Estudos Histricos e Culturais. p. 101. 18 COELHO, Jos Joo Teixeira. Instruo para o governo da Capitania de Minas Gerais. Belo Horizonte: Fundao Joo Pinheiro / Centro de Estudos Histricos e Culturais, 1994. p. 63. 19 MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: a Inconfidncia Mineira: Brasil-Portugal 1750-1808. 5. ed. So Paulo: Paz e Terra, 2001 [ed. original 1973]. p. 63.
25
seus postos. No caso do escrivo, h ainda a especificidade crucial do privilgio e o interesse
de prover nessas funes indivduos que haviam passado pela Aula do Comrcio em Lisboa e
que, nessa condio, estavam efetivamente habilitados para o exerccio da escriturao com
partidas dobradas. H ainda outro aspecto, em nada evidente, mas que nos parece haver sido
tambm objeto de ateno das autoridades metropolitanas quando da proviso dessas
posies-chave e que diz respeito a um certo entremear de indivduos no qual contava o
conhecimento tcnico, mas tambm o conhecimento da realidade local, e que era base
fundamental para o funcionamento da administrao da fazenda real e o dilogo efetivo entre
as juntas e o errio. Nesse sentido, justifica-se aqui uma ligeira explorao de dois nomes-
chave na administrao fiscal das Minas de um lado e do outro do Atlntico, ambos havendo
permanecido vrias dcadas frente de seus postos: Carlos Jos da Silva, na Junta da
Fazenda, e Lus Jos de Brito, no Errio.
Carlos Jos da Silva era homem de confiana direta do nome central administrao
fiscal das Minas no Errio, o titular da Contadoria Geral da relao do Rio de Janeiro, da
frica Oriental e da sia portuguesa, Lus Jos de Brito, que, por sua vez, tendo sido provido
no cargo j na instalao do Errio, em 1762, permaneceu no exerccio de suas funes por
dcadas, at a virada do sculo seguinte. sob a superviso direta de Lus Jos de Brito que
Carlos Jos da Silva admitido, em 1763, na funo de segundo escriturrio no Errio.
Algum tempo depois, em 1767, j sabedor das mincias de seu ofcio e do funcionamento
especfico do rgo, Carlos Jos da Silva despachado para a funo de escriturrio contador
da Junta da Fazenda do Rio de Janeiro, que quele ano se estabelecia.20 Passados mais alguns
anos e j ento reguladas as confuses iniciais que tambm a Junta do Rio enfrentou, Carlos
Jos seria o escolhido para a funo crucial de escrivo da Junta de Minas, que se queria ver
definitivamente instalada depois de uma primeira experincia malsucedida.21 Ele
permaneceria no posto at sua aposentadoria, em 1803, sendo ento substitudo por Manuel
Jacinto Nogueira da Gama, futuro marqus de Baependi, que anos mais tarde seria o
Secretrio de Estado dos Negcios da Fazenda e Presidente do Tesouro Pblico.22
20 ARQUIVO HISTRICO DO TRIBUNAL DE CONTAS DE PORTUGAL. Fundo: Errio Rgio. Livro 461, p. 15, e Livro 4068, p. 62. 21 ARQUIVO HISTRICO DO TRIBUNAL DE CONTAS DE PORTUGAL. Fundo: Errio Rgio. Livro 4068, p. 62. 22 Em agosto de 1803, a Contadoria Geral em Lisboa realizou um concurso para o lugar de escrivo na Junta de Minas de cuja notcia circunstanciada dos candidatos que se apresentaram ficou bem documentada (Arquivo Histrico do Tribunal de Contas de Portugal. Fundo: Errio Rgio. Livro 4047, p. 93-95). Dentre os cinco candidatos ao concurso, o escolhido, por fim, por despacho da presidncia do Errio em 18 de agosto de 1803,
26
O que interessante destacar aqui, entretanto, justamente o nome, quase nunca
referenciado em nossa historiografia, de Lus Jos de Brito, que em seus despachos e
pareceres no Errio daria provas de conhecimento profundo e concreto da realidade das
Minas. Parece-nos que, se, por um lado, fazia sentido, dentro da engenharia da reestruturao
das finanas pblicas portuguesas, empreendida por Sebastio Jos de Carvalho e Melo,
mandar dissolver e refundar a Junta da Fazenda em Minas por esta no atender s exigncias
modernas da escriturao contbil fundamentais ao Errio e designar, assim, algum vindo do
reino com formao tcnica adequada para assumir o posto, como foi o caso de Carlos Jos da
Silva; por outro lado, fazia tambm sentido que o titular da contadoria geral encarregada do
controle da rea mais rica do Imprio, literalmente a galinha dos ovos dourados de el-Rei,
possusse, para alm do conhecimento tcnico pretendido, tambm o conhecimento efetivo de
Minas Gerais e das peculiaridades daquele contexto. A primeira exigncia s se podia atender
quele momento no contexto portugus a partir da recorrncia a um experimentado homem de
negcio; j a segunda, acompanhando a tendncia de que pouco a pouco ia se apresentando
em relao administrao do ultramar, podia se dar com a recorrncia a um natural do pas,
como foi o caso do santista Alexandre de Gusmo, secretrio privado de D. Joo V e
negociador do Tratado de Madrid, ou ao menos por algum com permanncia efetiva naquele
espao, como se deu em outros tantos casos, por exemplo, na nomeao de Lus Diogo Lobo
da Silva para o Conselho Ultramarino depois de seu tempo como governador em Minas. Sem
dvida, a favor de Lus Jos de Brito pesava tanto a coincidncia de ser, segundo Jcome
Ratton, um dos poucos negociantes do Reino acostumados ao tempo contabilidade por
partidas dobradas, o que o habilitava a uma daquelas posies-chave na fundao do Errio,
quanto ao fato, que passaria despercebido em nossa historiografia, de ser ele prprio natural
de Minas Gerais, o que o conectava perfeita e diretamente Contadoria que deveria se haver
com o controle da fazenda nessa regio do Imprio.23
no seria nenhum deles, mas sim um amigo pessoal e homem de confiana do ento presidente do Errio, D. Rodrigo de Souza Coutinho: Manuel Jacinto Nogueira da Gama. Cf. CUNHA, Alexandre Mendes. Minas Gerais, da capitania provncia: elites polticas e a administrao da fazenda em um espao em transformao. 2007. Tese (Doutorado em Histria) Universidade Federal Fluminense, Programa de Ps-Graduao em Histria, Niteri. p. 273-275. 23 Para uma explorao das trajetrias e o aprofundamento dos dados biogrficos de Lus Jos de Brito, Carlos Jos da Silva e de outros envolvidos na administrao da fazenda em Minas Gerais no perodo, veja: CUNHA, Alexandre Mendes. Minas Gerais, da capitania provncia: elites polticas e a administrao da fazenda em um espao em transformao. 2007. Tese (Doutorado em Histria) Universidade Federal Fluminense, Programa de Ps-Graduao em Histria, Niteri. p. 262-273.
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Muito do dilogo oficial que se pode perceber na documentao do Errio Rgio
travado no s entre instncias institucionais e entre grupos de agentes influenciados por
dinmicas locais e por desgnios da administrao central. Trata-se, por fim, de um dilogo
travado tambm entre dois homens, Carlos Jos da Silva e Lus Jos de Brito, que atravessam
a segunda metade do sculo XVIII em seus cargos. Dois homens que se conheciam bem e que
entendiam a fundo seus ofcios. Diferentemente do dilogo institucional dos anos de transio
da Provedoria para a Junta, como o que se estabeleceu, ao menos formalmente, na
correspondncia do conde de Oeiras para o conde de Valadares e outras autoridades da
Capitania, por exemplo, interessante notar que, a partir de 1772, com a chegada a Minas do
novo escrivo da Junta, o costumeiro passa a ser um dilogo entre agentes da administrao
fazendria, mais afeitos a um discurso tcnico do mundo das finanas e da escriturao
contbil. Isso permite, hoje, que analistas interessados nesse perodo e contexto possam
deslindar uma camada adicional, e em tudo fundamental, para a compreenso das
transformaes econmicas e polticas das Minas e do Imprio portugus na segunda metade
do sculo XVIII.
A documentao relativa a Minas Gerais do fundo Errio Rgio do Arquivo Histrico
do Tribunal de Contas de Portugal tem por certo peas de enorme importncia nesse quebra-
cabea infindo, e este belo instrumento de pesquisa h tanto esperado , sem dvida, um guia
seguro para nos ajudar a encaix-las.
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O Errio Rgio e a Real Extrao dos Diamantes: possibilidades de pesquisa
Jnia Ferreira Furtado
Departamento de Histria Universidade Federal de Minas Gerais
O Distrito Diamantino e a Real Extrao
O reinado de Dom Jos I assistiu, a partir do terremoto de Lisboa, em 1755, ascenso
daquele que se tornou seu mais importante ministro, Sebastio Jos de Carvalho e Melo,
futuro conde de Oeiras e, depois, marqus de Pombal. A poltica econmica pombalina 1
reverberou significativamente na rea diamantina, situada no nordeste da Capitania de Minas
Gerais. De um lado, um dos seus pilares, a ascenso de setores mercantis fortemente
associados aos interesses do Estado,2 consubstanciou-se na regio nas figuras emblemticas
dos dois Joo Fernandes de Oliveira, pai e filho, que arremataram os contratos diamantinos
entre 1740 e 1747 e 1753 e 1771.3 De outro, o estabelecimento de monoplios, que
pretendiam garantir maior controle sobre determinadas riquezas do Imprio (como o vinho, as
drogas do serto, entre outras), resultou na edio, em 12 de julho de 1771, do alvar rgio
que extinguiu o sistema de contratos e instituiu a Real Extrao dos Diamantes, que passou a
ser responsvel pela produo diamantina.4
Para regular o funcionamento da Real Extrao e sua jurisdio sobre o Distrito
Diamantino5, foi editada legislao especfica para a regio, o chamado Regimento
1 MONTEIRO, Nuno Gonalo. O tempo das providncias. In: D. Jos: na sombra de Pombal. Lisboa: Crculo de Leitores, 2006. p.166-184. 2 PEDREIRA, Jorge Miguel Viana. Os homens de negcio da praa de Lisboa, de Pombal ao Vintismo (1755-1822): diferenciao, reproduo e identificao de um grupo social. Lisboa: Universidade de Lisboa, 1995. (Tese, Doutorado em Histria). 3 Pombal utilizou o sistema de contratos para concentrar a riqueza nas mos de uma nova classe mercantil portuguesa. MAXWELL, Kenneth. Colaboradores e conspiradores. In: Marqus de Pombal, paradoxo do Iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. p. 69-94; FURTADO, Jnia F. Nobilitao dos homens de negcio no ultramar portugus: Pombal e os contratadores dos diamantes. In: ANTUNES, lvaro de Arajo; SILVEIRA, Marco Antnio (Org.). Dimenses do poder em Minas. Belo Horizonte: Fino Trao, 2012. p. 109-137. 4 FURTADO, Jnia Ferreira. O Livro da Capa Verde: a vida no Distrito Diamantino no perodo da Real Extrao. Coimbra: Ed. da Universidade de Coimbra/Annablume, 2012. 5 Em 1734, [...], estabeleceu-se ento a Demarcao Diamantina, tambm chamada de Distrito Diamantino. Tratava-se, inicialmente, de um quadriltero em torno do arraial do Tejuco que foi designado sede tanto do distrito quanto da intendncia. Inclua outros arraiais e povoados como Gouveia, Milho Verde, So Gonalo, Chapada, Rio Manso, Picada e P do Morro; esse poderia ter seu contorno alterado para englobar outras regies onde fossem realizadas novas descobertas. FURTADO, Jnia Ferreira. O Distrito dos Diamantes: uma terra de
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Diamantino, de 2 de agosto 1771. Tambm conhecido como o Livro da Capa Verde, por ter
chegado ao Distrito encadernado com uma capa de marroquim verde, foi entronizado com
toda a pompa na antiga casa do contrato que ento sediava, em seu primeiro piso, a
Intendncia dos Diamantes. Essa legislao reordenou e reafirmou uma srie de instrues e
bandos esparsos que, em vrios aspectos, como o da proibio da circulao das negras de
tabuleiro nas reas de extrao, j vigoravam para a regio e, alguns deles, mesmo para o
restante da Capitania.6 Apesar de grande parte da historiografia perpetuar a memria de que o
perodo de vigncia da Real Extrao foi atpico e desptico, as autoridades diamantinas, na
verdade, encontraram enormes dificuldades de submeter a produo e a vida local aos
estreitos limites impostos pela legislao.7
A Real Extrao dos Diamantes era dirigida por uma Junta, composta pelo intendente
dos diamantes,8 um fiscal e trs caixas, responsveis por organizar diretamente e
supervisionar a explorao das pedras com a decretao do monoplio rgio de explorao
pela companhia. O alvar de 23 de maio de 1772 legislou sobre o cargo do fiscal, que era o
auxiliar direto do intendente e seu substituto em caso de vacncia ou ausncia do cargo. O
mesmo deveria ser ocupado por ministro de letras, e o regimento que norteava suas funes
previa que seu postulante devia dar celeridade aos processos, evitando delongas judiciais. As
autoridades locais eram subordinadas Administrao Diamantina ou Junta da Direo Geral
da Real Extrao dos Diamantes, que foi ento criada em Lisboa e era composta, inicialmente,
de trs membros, sendo que o alvar de 5 de julho de 1773 ampliou-a para seis.9
Quando realizei minhas pesquisas sobre o Distrito Diamantino, encontrei muitos
documentos que puderam remontar legislao exarada para a rea; s relaes de poder
entre as instncias locais, a capitania e o reino; vida social; aos descaminhos e ao
contrabando de diamantes, bem como poltica repressiva resultante desses e de outros
estrelas. In: RESENDE, Maria Efignia Lage de; VILLALTA, Luiz Carlos (Org.). Histria de Minas Gerais: as Minas setecentistas. Belo Horizonte: Autntica, 2007. v.1. p. 309. 6 FURTADO, Jnia Ferreira. O Livro da Capa Verde. In: FURTADO, Jnia Ferreira. O Livro da Capa Verde: a vida no Distrito Diamantino no perodo da Real Extrao. So Paulo: Annablume, 1996. p.65-96. 7 CALGERAS, Joo Pandi. A Real Extrao. In: As minas do Brasil e sua legislao. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1904. p. 312-325; FURTADO, Jnia Ferreira. A Real Extrao. In: O Livro da Capa Verde: a vida no Distrito Diamantino no perodo da Real Extrao. So Paulo: Annablume, 1996. p. 97-130. 8 O cargo de intendente dos diamantes havia sido criado em 1734, quando da criao do Distrito Diamantino, tendo sido o seu primeiro ocupante, Rafael Pires Pardinho. O intendente era responsvel por garantir o cumprimento da poltica metropolitana estabelecida para a rea. FURTADO, Jnia Ferreira. O Distrito dos Diamantes: uma terra de estrelas. In: RESENDE, Maria Efignia Lage de; VILLALTA, Luiz Carlos (Org.). Histria de Minas Gerais: as Minas setecentistas. Belo Horizonte: Autntica, 2007. v. 1. p. 309-310. 9 CALGERAS, Joo Pandi. As minas do Brasil e sua legislao. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1904. p. 316.
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delitos; s irmandades religiosas e vivncia espiritual dos moradores no seio delas; entre
outros temas instigantes. Mas quase nada encontrei no que dizia respeito ao dia a dia da Real
Extrao, maneira como esta administrava a produo dos diamantes, o aluguel dos
escravos e recolhia os diversos tributos que incidiam sobre a populao. Na poca, lamentei
que infelizmente, toda a documentao [local] referente Intendncia do Diamante foi
destruda, queimada provavelmente durante os trabalhos de recuperao do prdio que
atualmente abriga a prefeitura e a Cmara da cidade [de Diamantina].10 De l para c, muita
coisa mudou. A organizao, a catalogao e a disponibilizao (s vezes on-line ou por meio
digital) de vrios acervos documentais existentes no Brasil e em Portugal comearam a mudar
esse panorama.
O levantamento, a catalogao e a disponibilizao em CD-ROM dos documentos de
interesse para a histria de Minas Gerais existentes no Arquivo Histrico e Biblioteca do
Tribunal de Contas de Portugal certamente contribuiro para essa mudana. Isso porque esse
arquivo abriga a documentao oriunda do Errio Rgio, criado em 1761, sob inspirao do
marqus de Pombal, tendo sido o rgo responsvel pela centralizao e organizao das
tarefas fazendrias no Imprio portugus, e sob a guarda dessa instituio esto vrios livros
referentes atuao da Junta da Direo Geral da Real Extrao dos Diamantes, em Lisboa,
alm de outros livros mais gerais que tambm guardam informaes de interesse para o
estudo da explorao diamantina.
Nesse caso, a documentao do Tribunal de Contas vem complementar os documentos
que se encontram no Brasil. Dentre eles, cabe destacar os pertencentes ao Fundo Casa dos
Contos, de natureza fazendria, cuja publicao do catlogo dos livros que esto dispersos
entre o Arquivo Pblico Mineiro, a Biblioteca Nacional e o Arquivo Nacional abriu
inesgotvel campo de pesquisas de natureza econmica, fiscal e social, entre outras, no que
diz respeito Capitania de Minas Gerais e, mais especificamente, regio diamantina.11
A documentao do Arquivo Histrico e Biblioteca do Tribunal de Contas de Portugal
concernente aos diamantes
10 FURTADO, Jnia Ferreira. O Livro da Capa Verde: a vida no Distrito Diamantino no perodo da Real Extrao. p. 28. 11 BOSCHI, Caio C.; MORENO, Carmen; FIGUEIREDO, Luciano (Coord.). Inventrio da Coleo Casa dos Contos: livros, 1700-1891. Belo Horizonte: PUC Minas, 2006.
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O Tribunal de Contas guarda 23 cdices que tm documentos que se referem
explorao e administrao da regio de explorao dos diamantes, divididos entre dois
Fundos principais: o Errio Rgio Contadoria Geral do Territrio da Relao do Rio de
Janeiro e o Cartrios Avulsos. A tipologia da documentao variada. So livros de
registro, de cartas, borradores de dirios e mapas de receita e despesa, sendo que doze deles
dizem respeito diretamente regio diamantina, os demais abarcando a administrao mais
geral da Capitania, mas com documentao de interesse para a regio de explorao dos
diamantes. Quanto temporalidade desses documentos, as datas limites so 1762 e 1822,
respectivamente, o que alcana tanto o perodo dos contratos (1740-1771) quanto o da Real
Extrao (1772-1845).
No que diz respeito aos contratos, h somente um cdice especfico desse perodo,
localizado no Fundo Cartrios Avulsos, intitulado Contratos de diamantes; inquirio e
outros (Caixa 76), que agrega documentao entre 1754 e 1809, o que significa que tambm
abrange o perodo da Real Extrao. Trata-se de documentao instigante que certamente
iluminar muitos aspectos da relao entre os contratadores, o intendente e as autoridades
reinis, descortinando o dia a dia da produo, a negociao dos termos estabelecidos nos
contratos, entre outros tantos temas.
No Fundo Errio Rgio Contadoria Geral do Territrio da Relao do Rio de
Janeiro, h mais cinco livros cujas datas de abertura situam-se entre 1765 e 1769 e a data
limite de fechamento 1801, tambm abarcando o perodo dos contratadores. Esses cinco
cdices dizem respeito administrao geral da Capitania, mas tambm apresentam
documentao de interesse para o estudioso dos diamantes. Destaca-se o Mapa cronolgico
das cartas de servio de Sua Majestade que o desembargador Joo Tavares de Abreu,
intendente geral do Ouro e Diamantes da Repartio do Rio de Janeiro, escreveu aos
intendentes das casas de fundio de Minas e a outras pessoas, que abarca o intervalo entre
31/07/1762 e 07/09/1765 (Livro n 4071). Joo Tavares de Abreu era cavaleiro professo na
Ordem de Cristo e foi intendente geral do Ouro e dos Diamantes, alm de Presidente da Mesa
de Inspeo, cargos sediados no Rio de Janeiro.12 preciso salientar que, ao contrrio do que
usualmente se pensa, alm dos diamantes, os moradores do distrito exploravam ouro, em
lavras que no fossem diamantferas, arrematadas individualmente pelos moradores, que
12 Foi tambm acadmico supranumerrio da Academia Braslica dos Renascidos, erigida em Salvador em 1759. Ver: Catlogo dos Acadmicos Supranumerrios da Academia Braslica dos Renascidos. Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, Rio de Janeiro, t. XXXII, parte 2, p. 68, 1869.
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depositavam sua produo junto Casa de Fundio sita na Vila do Prncipe. Os outros quatro
cdices (Livros n 4070, 4072, 4073, 5322) desse mesmo Fundo renem ordens, provises,
instrues e cartas expedidas pelo Errio Rgio para autoridades da Capitania, a includas as
do Distrito Diamantino.
Quanto ao perodo de vigncia da Real Extrao, encontram-se 16 livros no Fundo
Errio Rgio e um no Cartrios Avulsos. As datas limites so 08/01/1771 e 1822, pois a
documentao interrompida com a independncia do Brasil. Onze deles so especficos da
regio diamantina e referem-se a registros exarados pela Administrao Diamantina ou Junta
da Direo Geral da Real Extrao dos Diamantes, de Lisboa, todos eles pertencentes ao
Fundo Errio Rgio. Tal documentao acena interessantes descobertas. H trs Livro(s)
do registro de ordens e cartas expedidas pela Junta de Direco Geral da Real Extraco dos
Diamantes; o primeiro abarcando o perodo de 01/08/1771 a 08/01/1780, o segundo, de
08/01/1780 a 30/07/1789, e o terceiro, de 30/07/1789 a 21/11/1805 (Livros n 4088, 4089 e
4090, respectivamente). Documentao indita, ainda no pesquisada, por ela ser possvel
acompanhar as principais questes que mobilizaram os agentes responsveis por administrar a
produo dos diamantes nos dois lados do Atlntico e a relao entre as autoridades lisboetas
e as estabelecidas no Tijuco. Como j salientei, essa documentao deve ser cotejada e
completada com cdices existentes no Fundo Casa dos Contos, como o Livro de registro
de ordens da Extrao Diamantina (1774-1805),13 ou mesmo documentos que compem a
seo Manuscritos Avulsos relativos a Minas Gerais, pertencentes ao Arquivo Histrico
Ultramarino.14
H ainda dois Borrador(es) do dirio do livro-mestre da Directoria Geral da Real
Extraco dos Diamantes das minas do Brasil por conta da Fazenda Real, o primeiro de
01/01/1772 a 27/05/1783, e o segundo de 21/06/1783 a 14/08/1805 (Livros n 4085, 4086),
alm de um original do Dirio para o perodo de 29/11/1782 a 06/02/1789 (Livro n 4084),
que cobrem quase todo o perodo de vigncia da Real Extrao durante o sculo XVIII,
referindo-se gesto dos intendentes Francisco Jos Pinto de Mendona (1772), Francisco de
13 BOSCHI, Caio C.; MORENO, Carmen; FIGUEIREDO, Luciano (Coord.). Inventrio da Coleo Casa dos Contos: livros, 1700-1891, p. 96. Documento pertencente Biblioteca Nacional do Brasil Diviso de Manuscritos, catalogado sob a cota I-10, 08, 008. 14 BOSCHI, Caio C. (Coord.).; FURTADO, Jnia (ndices). Inventrio dos manuscritos avulsos relativos a Minas Gerais existentes no Arquivo Histrico Ultramarino (Lisboa). Belo Horizonte: Fundao Joo Pinheiro, 1998, 3 v. (Coleo Mineiriana)
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Souza Guerra e Arajo (interino 1772-1773), Joo da Rocha Dantas e Mendona (1773-
1782), Jos Antnio Meireles Freire (1782-1786) e Antnio Barroso Pereira (1786-1789).
H cinco livros de natureza contbil: um diz respeito s mercadorias compradas em
Lisboa, Porto e Rio de Janeiro para consumo da Real Extrao (Livro n 4087). No se pode
esquecer que, com o monoplio rgio, a Real Extrao assumiu a explorao dos diamantes
com todas as despesas dela decorrentes, como plvora, mercrio, bateias, entre tantos outros
insumos e instrumentos utilizados na minerao. Um dos gastos significativos referia-se ao
sustento dos escravos. Anos houve em que esse montante atingiu cerca de 5.000 cabeas.
Outro referia-se ao sustento da guarda diamantina, responsvel por fiscalizar a regio,
inclusive impedindo a livre entrada de pessoas na Demarcao. A Real Extrao tambm era
responsvel por gerir a cadeia e um hospital, no que tambm incorria em vrios gastos.
Um segundo livro refere-se aos saques das letras emitidas pela Real Extrao (Livro
n 4091). Como a Coroa enviava somente uma vez por ano o montante em moedas necessrio
ao financiamento dos altos custos de extrao, principalmente no referente ao aluguel dos
escravos, os quais eram alugados dos moradores locais a juros de 12% ao ano, garantindo
rendosos lucros aos seus proprietrios, foi concedido Real Extrao o privilgio de emitir
bilhetes em papel referente s dvidas contradas anualmente. O resultado foi que as
dificuldades de resgate desses Bilhetes da Real Extrao, principalmente aps 1776, fizeram
com que eles circulassem livremente entre os particulares no Distrito, fazendo s vezes de
papel moeda, uma das primeiras vezes que isso ocorreu na histria. Esses circuitos financeiros
podem ser remontados a partir do estudo desse livro. Como exemplo, a Bula da Santa
Cruzada, indulgncia que proporcionava aos cristos da Pennsula em troca de esmola, as
mesmas graas espirituais concedidas aos cruzados que lutaram na retomada de Jerusalm,15
recebeu autorizao para trocar o ouro que recebia de esmolas na Capitania, depositado nas
Casas de Fundio, por Bilhetes da Real Extrao, sendo eles posteriormente reconvertidos
em moedas, j em Lisboa. Os fluxos dessas remessas podero ser estudados com a abertura
dessa documentao.
Dois outros livros dizem respeito entrada e sada de diamantes, um deles da Junta
lisboeta, e o outro, que se refere tambm a montantes em dinheiro, do cofre da Real Extrao,
ambos para os anos entre 1773 e 1803 (Livros n 4092, 4093). Na Junta da Direo Geral
15 FIGUEIREDO, Ceclia Maria Fontes. Os esmoleiros do rei: a Bula da Santa Cruzada e seus oficiais na Capitania de Minas Gerais (1748-1828). Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2014. (Tese, Doutorado em Histria).
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lisboeta, logo que se recebiam os ditos cofres [que vinham da Real Extrao dos Diamantes]
eram abertos, e sendo pesadas as pedras que neles vinham, se recolhiam no cofre grande da
Direo Geral. Depois era chamado o inspetor dos lapidrios [...] para separar as pedras
grandes a fazer a recolha do 1o. e 2o. lotes. Isso ocorria porque a Coroa reservava para si as
melhores pedras para serem lapidadas e recolhidas ao tesouro rgio. As demais pedras que
ficavam eram vendidas ou por contrato ou por conta da Real Fazenda.16 O sistema de
contratos para o comrcio internacional das pedras, que durou at 1790, havia sido institudo
por Pombal, a partir de 1753, e consistia na escolha de firmas estrangeiras, sediadas em
Londres ou na Holanda, que compravam as pedras diretamente da Coroa, em Lisboa, e as
revendiam aos consumidores europeus, geralmente por meio da bolsa de Amsterd. O preo
do quilate e o volume de pedras a serem adquiridos eram acertados previamente.17 Um ltimo
livro refere-se s faturas de diamantes brutos entregues pela Junta para serem vendidos em
Londres e Amsterd (Livro n 4094), entre 25/02/1802 e 20/04/1820, j que, como dito, desde
1753, a Coroa detinha o monoplio de comercializao dos diamantes no mercado mundial.
Os judeus, muitos deles descendentes de portugueses, estabelecidos nessas duas praas,
dominavam esse comrcio mundial. O primeiro ano desse intervalo de tempo coincide com o
incio da amortizao do emprstimo de 13 milhes de florins que foi contrado, durante a
regncia de Dom Joo (VI), para honrar o pagamento de 24 milhes de francos exigido por
Napoleo em 1801. Esse emprstimo foi contrado junto s firmas Baring e irmos, de
Londres, e Hope & Cia., de Amsterd, que receberam como hipoteca do emprstimo, nos
anos seguintes, os diamantes brasileiros, passando a comercializ-los nesse perodo.
Inicialmente, os diamantes saam do porto do Rio de Janeiro com destino a Lisboa, para
depois serem enviados a Londres e da a Amsterd. A partir de 1808, Lisboa deixou de figurar
como intermediria na transao.18
Restam ento, para o perodo da Real Extrao, seis livros que apresentam
documentos sobre a regio diamantina, mas que abarcam toda a Capitania, estando cinco
deles depositados no Fundo Errio Rgio e um no Cartrios Avulsos, onde se encontra
um Mapa demonstrativo da receita e despesa da capitania de Minas Gerais que se refere ao
16 ARQUIVO NACIONAL DO RIO DE JANEIRO. Mao 1 F1 8. Real Errio e Conselho da Fazenda. Ofcios do conselheiro e escrivo, 1809. 17 RABELLO, David. Os diamantes do Brasil na regncia de Dom Joo (1792-1816): um estudo de dependncia externa. So Paulo: Arte & Cincia/UNIP, 1997. p. 102. 18 RABELLO, David. Os florins correntes de Baring e Hope. In: Os diamantes do Brasil na regncia de Dom Joo (1792-1816). p.145-187.
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intervalo de 1795 a 1800 (Caixa 77, doc. n. 21), em cujo flio 7 h referncias regio
diamantina. No primeiro fundo, h livros para toda a Capitania que contm representaes de
autoridades locais (Livros n 4066, para 06/07/1784 17/10/1795, e n 4067, para 03/11/1795
a 16/05/1807), informaes gerais (Livros n 4068, de 05/10/1784 a 08/02/1806, e n 4069,
entre 13/02/1806 24/09/1811) e provises e cartas expedidas para autoridades locais (Livro
n 4069, de 13/02/1806 a 24/09/1811).
Resta agora aos pesquisadores, de posse de tal instrumento de pesquisa e frente a to
ampla gama de assuntos que podem ser investigados, que se debrucem sobre essa
documentao, a qual certamente iluminar aspectos importantes da explorao dos diamantes
no Serro do Frio.
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CATLOGO/ INVENTRIO
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Livro n 4066
Livro (1) de registro das representaes [de autoridades e rgos administrativos] da Capitania de Minas Gerais 06/07/1784 17/10/1795*
Nmero Livro Pgina Data Contedo do registro
1 4066 001 20/07/1784 Representao Junta da [Real] Fazenda de Minas Gerais a respeito do requerimento de Lus de Amorim Costa e Antnio Jos da Fonseca em que pediam o pagamento de jornais e materiais despendidos nas casas da fazenda dos pastos da Cachoeira.1
2 4066 003 29/07/1784 Representao sobre a conta que a Junta da Real Fazenda de Minas Gerais deu, em 21 de junho de 1783, a respeito do requerimento de D. Maria Brbara (sic) da Silva, herdeira do coronel Matias Barbosa da Silva, relativo remessa de documentos concernentes ao contrato das entradas na Capitania de Minas Gerais.
3 4066 005 4/08/1784 Representao da Contadoria Geral ao excelentssimo marqus presidente do Real Errio sobre a conta dada, em 6 de fevereiro de 1784, pelo governador e capito-general de Minas Gerais, [Lus da Cunha Meneses], a respeito do decadente estado em que se acha aquela Capitania e para que se efetue a cobrana de suas dvidas ativas.
4 4066 012 09/12/1784 Representao da Contadoria Geral ao excelentssimo marqus presidente do Real Errio sobre a conta dada, em 18 de dezembro de 1783, pelo governador e capito-general da Capitania, em que prope a adoo do que se pratica em outras capitanias quanto a se fazerem os pagamentos por meio de portarias assinadas pelos governadores.
5 4066 014 31/05/1785 Representao da Contadoria Geral ao excelentssimo marqus de Angeja sobre uma conta da Junta da Real Fazenda de Minas Gerais a respeito de um quarto novo que o general mandara fazer no palcio da sua residncia e outros reparos precisos.
6 4066 015 20/06/1785 Representao da Contadoria Geral ao excelentssimo marqus presidente sobre uma conta da Junta * Ttulo no original: Representaoens / da Capitania de / Minas Geraes / Desde 6 de julho de 1784 / at ao dia 17 de outubro de 1795. / Livro 1. 1 margem esquerda deste registro consta a seguinte anotao: folha 1 do Livro de Representaes que serve para a Capitania de So Paulo se acha registrada uma representao anterior a esta com data de 28 de outubro de 1783.
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da Real Fazenda de Minas Gerais referente ao requerimento de Jos Verssimo da Fonseca, escrivo da Ouvidoria da Comarca de Vila Rica.
7 4066 017 20/06/1785 Representao da Contadoria Geral ao excelentssimo marqus presidente sobre uma conta que deu a Junta da Real Fazenda de Minas Gerais referente despesa que fez com um capelo para socorro dos que acompanham as bandeiras para catequizar os ndios.
8 4066 018 08/07/1785 Representao da Contadoria Geral ao marqus presidente sobre as contas do desembargador Francisco Gregrio Pires Bandeira e do desembargador Toms Antnio Gonzaga em que comunicam a irregular arrematao que se fez do contrato das entradas da Capitania de Minas Gerais, na pessoa do capito Jos Pereira Marques.
9 4066 018 29/07/1785 Representao