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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
LENINE PÓVOAS DE ABREU
VÍCIO NO MÓVEL DO AGENTE
MESTRADO EM DIREITO
SÃO PAULO
2019
LENINE PÓVOAS DE ABREU
VÍCIO NO MÓVEL DO AGENTE
MESTRADO EM DIREITO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito: efetividade do Direito, área de concentração Direito Administrativo, sob a orientação do Prof. Dr. Silvio Luís Ferreira da Rocha.
SÃO PAULO
2019
LENINE PÓVOAS DE ABREU
VÍCIO NO MÓVEL DO AGENTE
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo – PUC-SP, como
exigência parcial para a obtenção do título
de Mestre em Direito: efetividade do
Direito.
Aprovado em: _____/_____/______
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________
_________________________________________
_________________________________________
Dedico este trabalho à minha filha Antonella Fiorenza Póvoas
de Abreu, nascida durante o seu desenvolvimento, e à minha
amada esposa Jéssica Fiorenza Póvoas de Abreu, que me
abre cada vez mais os horizontes da felicidade, seja pelo
companheirismo ou pela sua doce alma.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos aqueles que contribuíram de alguma forma para o
desenvolvimento deste trabalho.
Ao Valério Mazzuoli, profundo estudioso do Direito, pela troca de ideias e
tempo dedicado a mim durante essa jornada.
Ao Luiz Sílvio Moreira Salata, que foi quem despertou em mim a curiosidade e
o apreço pelo Direito Público quando eu ainda era seu estagiário nos idos de 2011.
Ao seu lado houve muito aprendizado e momentos de grata satisfação por desfrutar
da sua companhia e de sua família (Lúcia Madeira Salata, Luiz Ricardo Salata e
Maria Silvia Salata).
Ao meu pai, Hermes Gomes de Abreu, que foi quem sempre me motivou a
nunca desistir dos estudos, mostrando a importância desse magnífico instrumento
de dignidade.
In memoriam, ao meu saudoso avô Lenine de Campos Póvoas, exemplo de
homem público, de quem orgulhosamente herdei o nome. A sua biografia o
imortalizou, deixando saudade para seus familiares e se tornando referência de
probidade, compromisso e respeito pelo o que é público. Olhando para o passado,
veremos que se pessoas com o seu perfil tomarem as rédeas do país ainda há
esperança. Certo de que isso ainda pode acontecer, um grande sorriso esteve
estampado em minha face quando li a dedicatória do seu livro “O caos brasileiro”,
assim descrito: “Aos meus netos, para que tenham uma ideia do Brasil em que viveu
o seu avô e para que ajudem os jovens da sua geração a transformá-lo no país dos
meus sonhos”. Cedo ou tarde a gente vai se encontrar para bater aquele bom e
velho papo que tínhamos no escritório da sua casa, foram “aulas” que jamais me
esquecerei, até lá é com grande honra que irei carregar o seu nome.
In memoriam, à Zenaide Maria da Silva, minha mãe de criação, que sempre
me acolheu da forma mais fraternal possível até seus últimos dias de vida. Mesmo
sendo semianalfabeta, dominava com grande maestria a sabedoria do amor,
inclusive tendo feito disso a orquestra de sua vida.
Ao meu orientador, Silvio Luís Ferreira da Rocha, exímio Professor, de
postura serena, cuja capacidade me incentivou dia a dia a dar o melhor de mim
neste trabalho.
Aos amigos de Escritório de Advocacia, que me auxiliaram nas buscas
bibliográficas, a exemplo do estagiário Eduardo Roriz Guimarães do Amaral e da
advogada Patrícia Naves Mafra, bem como ao meu sócio, Darlã Ebert Vargas, pela
paciência e compreensão comigo nos momentos de estudo e desenvolvimento deste
trabalho.
“A hipocrisia republicana é o pior dos despotismos”. Rui Barbosa.
RESUMO
O presente estudo tem por objetivo analisar se o recebimento de vantagem
indevida por parlamentares para a propositura e aprovação de determinada
legislação tem o condão de gerar a sua inconstitucionalidade por vício no móvel do
agente.
Palavras-chave: Legislação. Inconstitucional. Vicio. Parlamentar
ABSTRACT
The present study aims to analyze whether the receipt of improper advantage
by parliamentarian for proposition and approval of certain legislation has the power to
generate its unconstitutionality for vice in the agent's mobile.
Keywords: Legislation. Unconstitutional. Vice. Parliamentary
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 01 - Princípio da finalidade ............................................................................ 42
Figura 02 - Desvio de poder e desvio de finalidade ................................................. 49
LISTA DE SIGLAS
ADIN Ação Direta de Inconstitucionalidade
ADPF Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental
AGR Agravo Regimental
AGU Advocacia-Geral da União
AP Ação Penal
ARENA Aliança Renovadora Nacional
ART Artigo
CC Código Civil
C/C Cumulado com
CCJ Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania
CP Código Penal
DJ Diário de Justiça
DJe Diário de Justiça Eletrônico
EC Emenda Constitucional
JEM Julgado em
LC Lei Complementar
MC Medida Cautelar
MDB Movimento Democrático Brasileiro
MIN Ministro
MS Mandado de Segurança
MV Maioria de Votos
PEC Proposta de Emenda Constitucional
PEX Por Exemplo
PGR Procuradoria-Geral da República
PRES
PMDB
Presidente
Partido do Movimento Democrático Brasileiro
PR Paraná
RED Revista de Direito do Estado
RE Recurso Extraordinário
REL Relator
RESPE Recurso Especial Eleitoral
RI Regimento Interno
RJ Rio de Janeiro
RMS Recurso em Mandado de Segurança
SS Seguintes
STF Supremo Tribunal Federal
STJ Superior Tribunal de Justiça
TP Tribunal Pleno
TSE
VU
Tribunal Superior Eleitoral
Votação Unânime
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 14
CAPÍTULO 1 – O ESTADO DA ARTE...................................................................... 18
1.1 – Os vícios de constitucionalidade ................................................... 18
1.2 – Outro vício a ser discutido ............................................................. 21
1.3 - Estudos sobre o tema ................................................................... 23
CAPÍTULO 2 – OS LIMITES DA ATIVIDADE LEGISLATIVA ................................. 25
2.1 – Considerações iniciais ................................................................. 25
2.2 – Discricionariedade administrativa: um paradigma para delimitar o
vício do agente ...................................................................................... 34
2.2.1 - Princípio da finalidade ........................................................... 41
2.2.2 – Desvio de poder e desvio de finalidade ................................ 46
2.2.3 – A vontade do agente ............................................................. 51
2.3 – Discricionariedade legislativa ....................................................... 57
2.3.1 – Noção geral dos limites da atividade legislativa .................... 60
2.3.2 – Finalidade legislativa e excesso na função legiferante ......... 62
2.3.3 – A autonomia política do parlamentar para legislar ................ 67
2.4 – Da colocação do problema por vício do agente na atividade
legiferante .............................................................................................. 70
CAPÍTULO 3 – VÍCIO NO PROCESSO .................................................................. 72
3.1 – Questões jurídicas referentes à crise de legitimidade que abrem
espaço para interesses espúrios no âmbito das Casas Legislativas .... 72
3.2 – Definição de vício no móvel do agente ........................................ 78
3.3 – Moralidade: um indiferente jurídico para o vício do agente .......... 80
3.4 – Imunidade parlamentar não é blindagem para crimes ................. 86
CAPÍTULO 4 – CONSEQUÊNCIAS DAS NORMAS EDITADAS COM VÍCIO NO
MÓVEL DO AGENTE ................................................................. 91
4.1 – O vício no móvel do agente gera inconstitucionalidade? ............. 92
4.1.1 – A insignificância do móvel no vício de propositura ................ 93
4.1.2 – A controvérsia se o número de votos viciados é relevante ... 99
4.1.3 – A natureza da vantagem ..................................................... 101
4.2 – A distinção da legislação com vício no móvel do agente ........... 102
4.2.1 – Vício em legislação infraconstitucional ............................... 102
4.2.2 – Vício em emenda constitucional ......................................... 104
4.3 – Consequências para o agente ................................................... 110
CONCLUSÕES ...................................................................................................... 113
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 115
14
INTRODUÇÃO
Tem sido frequente a veiculação de notícias jornalísticas, investigações e
denúncias de casos envolvendo a compra de apoio político para a propositura e
aprovação de determinadas matérias no âmbito do Poder Legislativo1.
A história elenca inúmeros acontecimentos dessa natureza, dentro e fora do
Brasil2. Há relatos de que um caso conhecido teria sido protagonizado nos Estados
Unidos em 1864. O então Presidente Abraham Lincoln teria “comprado” boa parte do
Congresso Norte Americano para que fosse aprovada a abolição da escravatura, o
que acabou se consumando durante um período de enorme instabilidade social
daquele país3.
No Brasil um caso de compra de apoio político ficou nacionalmente explícito e
resultou na condenação de inúmeros congressistas após o Supremo Tribunal
Federal (STF) julgar a Ação Penal 470 (AP 470), popularmente conhecida como
“Mensalão”4, de Relatoria do Ministro Joaquim Barbosa5.
A acusação se resumia basicamente no fato de que parlamentares teriam
recebido vantagens indevidas mensais para proporem e aprovarem matérias de
interesse do Poder Executivo e de empresários, configurando o chamado vício no
1 Disponível em: (1) <https://brasil.elpais.com/brasil/2016/12/12/politica/1481572367_344629.html> (2) <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2018/11/08/mensalinho-da-alerj-movimentou-ao-menos-r-54-milhoes-diz-pf.ghtml> (3) <https://www.conjur.com.br/2016-dez-11/compra-leis-citada-delacao-odebrecht-gera-inseguranca?imprimir=1> (4) <https://www.hojeemdia.com.br/horizontes/ex-prefeito-e-mais-cinco-s%C3%A3o-condenados-no-mensalinho-de-caratinga-1.653172> (5) <http://www.hipernoticias.com.br/justica/ex-deputado-revela-compra-de-vaga-no-tce-e-mensalinho-de-dante-e-blairo-aos-deputados/71747> (6) <https://www.dci.com.br/politica/operac-o-da-pf-prende-prefeito-e-mira-mensalinho-no-acre-1.766118> (7) <https://www.topmidianews.com.br/politica/com-excesso-de-provas-vereador-que-denunciou-prefeito-por/103415/> (8) <https://www.vozdobico.com.br/principal/mensalinho-vereadores-recebiam-de-1-mil-a-8-mil-mensal-para-aprovar-projetos-da-prefeitura-de-augustinopolis/> (9) <https://diarionline.com.br/?s=noticia&id=106576>. (10) <https://www.oantagonista.com/brasil/os-anexos-da-delacao-de-henrique-constantino-da-gol/>. Acessos em: 14 maio 2019. 2 ZOCKUN, Maurício. Responsabilidade patrimonial do Estado. São Paulo: Editora Malheiros, 2010. p. 175: “A história recente do Brasil é bastante rica na veiculação de notícias quanto à ocorrência da prática de suposta ‘compra de voto’ de parlamentares, de modo a influenciar na aprovação ou reprovação de determinado projeto de lei”. 3 Décima Terceira Emenda à Constituição dos Estados Unidos, aprovada pelo Senado em 08 de abril de 1864, pela Câmara dos Representantes em 31 de janeiro de 1865 e adotada formalmente em 06 de dezembro de 1865. 4 Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,mensalao-foi-compra-de-votos-e-nao-caixa-2-confirma-stf-imp-,938707> . Acesso em: 04 abr. 2019. 5 BRASIL. STF. AP 470. Processo nº 0007214-12.2007.1.00.0000, Relator: Ministro Joaquim Barbosa, Revisor: Ministro Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno. Brasília, DF, 17 de dezembro de 2012, M.v. Diário da Justiça Eletrônico: 19 abr. 2013. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/>. Acesso em: 05 jun. 2019.
15
móvel do agente. Ao fim, algumas pessoas foram condenadas à prisão em regime
fechado.
Recentemente a “Operação Lava Jato”, desencadeada pelo Ministério Público
Federal e pela Polícia Federal em vários Estados, principalmente em São Paulo
(SP), no Rio de Janeiro (RJ) e no Paraná (PR), acusou vários parlamentares de,
após receberem propina, utilizarem suas prerrogativas de membros do Poder
Legislativo para auxiliar interesses espúrios e ilícitos de empresários e do Chefe do
Executivo na votação de leis que os beneficiariam.
Quando o parlamentar pauta a sua conduta pelo recebimento de propina, as
suas manifestações estão viciadas. Inúmeras leis são propostas e aprovadas por
intermédio deste expediente.
Nestes casos o ilícito penal e o ato ímprobo são facilmente detectados6. A
questão tormensosa consiste em saber se é possível eventual declaração de
inconstitucionalidade da lei ao ser constatado a compra do apoio político para a sua
propositura e aprovação.
O aprimoramento dos órgãos de controle e de fiscalização é fundamental para
que este tipo de conduta seja detectado de forma mais célere, o que certamente
contribuirá para a inibição dessa prática no futuro.
Não se pode confundir o lobby7 com a compra de parlamentares e tráfico de
influência. O lobby tem a ver com a contratação de pessoas para persuadirem
6 ZOCKUN, Maurício. Responsabilidade patrimonial do Estado. São Paulo: Editora Malheiros, 2010. p. 180. 7 GALAN, Gilberto. Relações governamentais e lobby. São Paulo: Aberje Editorial, 2012. 25-26 p. e 72: “[...] o conceito lobby está ligado a um forte senso de persuasão, pedidos, demandas, argumentação e cobranças com o objetivo de convencer os detentores do poder (pessoas ou instituições) a fazer o que queremos. Simples assim. Então, uma possível definição, entre tantas, seria: o processo pelo qual empresas, indivíduos, grupos ou associações tentam influenciar as políticas públicas, as decisões governamentais, a legislação e a regulação. Há várias versões sobre qual seria origem do lobby mais profissional e organizado, mas quase todas convergem, segundos os norte-americanos, para o Hotel Willard, na Avenida Pensilvânia, em Washington, Estados Unidos, durante a administração do presidente Ulysses Grant. Após cansativas jornadas de trabalho na Casa Branca, o presidente costumava dirigir-se ao lobby do hotel, diariamente, no final da tarde, para fumar seu charuto e sorver um drinque relaxante. O hotel é o Willard – ainda existente -, onde ele acaba sendo abordado por pessoas procurando influenciá-lo sobre alguma questão ou demanda. Grant os teria chamado de lobistas. O conceito teria se expandido para o lobby dos edifícios parlamentares onde são definidas as leis. Os britânicos, é claro, têm história semelhante, aplicada, no caso, à Câmara dos Comuns, em cuja antessala ou lobby, ocorriam as abordagens aos parlamentares antes do início ou no fim das sessões. Mas, com certeza, mesmo em bases não tão organizadas ou profissionais, o conceito é bem anterior a esse período, remontando, no mínimo, ao Império Romano. As formas podem ter mudado, mas não a essência. Enfim, é perfeitamente lícito qualquer pessoa, grupo, empresa, setor ou o próprio governo tentar influenciar decisões. Sim, o governo também faz lobby junto ao governo”.
16
agentes políticos mediante convincente argumentação8, sem qualquer oferecimento
de vantagem indevida9. Os demais são casos de corrupção.10
No primeiro Capítulo do trabalho pretende-se demonstrar o estágio de
discussões acadêmicas sobre o tema. Inicialmente será apontado que a doutrina
tem abordado maciçamente que as questões que geram mácula de
constitucionalidade ocorrem por aspectos materiais e formais como conteúdo e
competência. Contudo, é possível que exista outro vício a ser estudado: o do móvel
no agente. Em seguida serão relatados os poucos estudos encontrados sobre o
tema.
8 FARIAS NETO, Pedro Sabino de. Ciência Política. São Paulo: Editora Atlas, 2011. p. 153-154: “Como substantivo usual, lobby significa vestíbulo ou antessala, enquanto como verbo lobby significa pressionar. Como conceito usual, lobby identifica a atividade profissional exercida, por grupo de pessoas ou organização, no sentido de influenciar, de forma aberta ou velada, decisões do poder público, mormente no contexto legislativo, em favor de determinados interesses particulares. Os lobbies podem ser dotados, requintadamente, com instalações e recursos tecnológicos, abrangendo equipes técnicas de pesquisadores e especialistas, em áreas específicas. [...]. Por conseguinte, desde que pleiteiem interesse lícitos e usem meios lícitos de persuasão, os grupos de pressão fundamentam decisões e ações do poder público, além de contribuírem para o aperfeiçoamento da representação política“. 9 FARHAT, Said. Lobby. O que é. Como se Faz. São Paulo: Editora Aberje, 2007. p. 49-51: “A estória está na Bíblia. Cansado de ver a devassidão que campeava em Sodoma e Gomorra, o Senhor chamou Abraão e ordenou-lhe que juntasse os seus, suas coisas, pertences, e abandonasse sua casa, pois Ele iria destruir as duas cidades. Com um pouco de licença poética, a resposta de Abraão foi mais ou menos assim: ‘Tudo bem. Se essa for a Sua decisão, obedeço. Mas poderíamos conversar um pouquinho? ’ Procurou então Abraão negociar com o Senhor para que poupasse os habitantes daquelas cidades. Lá, segundo o patriarca, haveria mais de cinquentas justos, e não seria fair castigá-los todos, por culpa de alguns poucos cidadãos transviados, corruptos ou infiéis (Gênesis, 18, 22-23). Porém, como bem sabia o bom Abraão, a dura e triste realidade era outra. Pôs-se então a barganhar: foi baixando o número de possíveis justos, até admitir que entre eles só se contavam ele próprio e seus familiares. Nada feito. O Senhor não foi na conversa. O resto é conhecido. Abraão não teve alternativa: antes de começar a chuva de fogo, partiu com os seus. Mas a tentativa de mudar a decisão de quem tem o poder é exemplo clássico de lobby, com registro histórico. Mesmo sem ter tido sucesso, o pleito de Abraão deixou o caminho reconhecido e balizado sobre o que é e como se faz lobby. [...]. Entre as mil e uma definições dessa atividade, costuma adotar a seguinte: ‘Lobby é toda atividade organizada, exercida dentro da lei e da ética, por um grupo de interesses definidos e legítimos, com o objetivo de ser ouvido pelo poder público para informá-lo e dele obter determinadas medidas, decisões, atitude”. 10 GALAN, Gilberto. Relações governamentais e lobby. São Paulo: Editora Aberje, 2012. p. 27: “Nesse ponto é bom ressaltar que lobby não deve ser confundido com tráfico de influência. Walter Maierovitch, jurista, professor e presidente do Instituto Brasileiro Giovanni Falcone, em entrevista ao O Estado de S. Paulo, assim se expressou sobre o assunto: ‘No tráfico de influência existe a promessa de que a pessoa vai interferir com sucesso numa negociação e tem vínculo tamanho com o poder que será capaz de gerar esse benefício. O lobby faz aproximações, tanto que a atividade de lobby nos EUA é permitida e o tráfico, não. Vou ler um artigo do Código Penal, o 332 para ficar claro. O crime é: solicitar, exigir, cobrar ou obter para si ou outrem, vantagem ou promessa de vantagem a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público no exercício da função. ’O noticiário diário tem mostrado que o volume de decisões (e negócios) tomadas pelo chamado tráfico de influência sobrepuja em muito o alcançado pelo lobby legítimo e transparente, fazendo com que o termo lobby tenha assumido, infelizmente, conotação negativa. Não conhecemos nenhum profissional que mostre, no seu cartão de visitas, a palavra ‘lobista’. Complementamos e reforçamos o que tem sido dito por outros autores: não há lobby bom e lobby mau; não há lobby do bem e do mal; o que existe é lobby e, do outro lado, corrupção e tráfico de influência. São matérias bastante distintas”.
17
Para dar sequência ao texto é necessário pontuar que a República é o
princípio que estrutura o ordenamento constitucional (Capítulo Dois). Isso vai
permitir delinear os fundamentos jurídicos que subsidiam a essência da atuação
parlamentar. Sem essa análise se tornaria nebuloso compreender o sistema jurídico
e a finalidade que aqui nos dispomos. Posteriormente serão apresentados os
eventuais casos em que o legislador pode cometer desvio de poder e de finalidade
na atividade legiferante, o que será construído a partir da premissa da
discricionariedade administrativa.
No Capítulo Três será delineado o âmago da discussão com as suas
respectivas peculiaridades e delimitações, inclusive fazendo abordagem das
prerrogativas que protegem o exercício da função legislativa. Essa compreensão é
primordial. Será demonstrado que as imunidades parlamentares devem ser
interpretadas de forma alinhada ao preceito republicano e com as finalidades a que
se destinam e, portanto, não se prestam a agasalhar condutas desviantes, além de
que o argumento “moralidade” é indiferente para anular uma aprovação legislativa
em decorrência do recebimento de vantagem indevida por parte dos parlamentares.
Questões periféricas que não guardam ligação direta com o arcabouço do
enfrentamento central da pesquisa serão dispensadas. Se assim não for, o trabalho
seria praticamente interminável.
No quarto capítulo serão enfrentados quais os reflexos de normas editadas
com vício no móvel do agente com o apontamento das responsabilidades jurídicas e
políticas daquele que incidir nesse tipo de ilegalidade.
Com o presente trabalho propomos-nos demonstrar os reflexos de normas
editadas mediante vício no móvel do agente.
A terminologia escolhida para nominar o trabalho --- vício no móvel do agente
--- guarda pertinência com o fato de investigar se a vontade ilícita que norteia a
conduta parlamentar no ato de propor ou aprovar uma lei é fundamento apto a
macular o resultado final da legislação11.
11 A palavra “vício” está definida no dicionário, entre outras, como: “1. Defeito grave que torna uma pessoa ou coisa inadequadas para certos fins ou funções. 2. Inclinação para o mal. 3. Costume de proceder mal; desregramento habitual. 4. Conduta ou costume censurável ou condenável; libertinagem, licenciosidade, devassidão. [...] 7. Defeito que pode invalidar um ato jurídico”. (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 4. ed. Curitiba: Editora Positivo, 2009. p. 2.058).
18
1 O ESTADO DA ARTE
Antes de ingressar nos pontos fundamentais da discussão, é de suma
importância demonstrar até aonde os debates sobre o tema já avançaram, cujo
assunto gravita em torno do Direito Constitucional e do Direito Administrativo.
1.1 Os vícios de constitucionalidade
O povo brasileiro escolheu soberanamente a Assembleia Constituinte para
formular uma ordem constitucional que estabeleceria as normas que iriam nortear a
sociedade12-13. A Constituição é o ponto de partida de qualquer atividade no País14,
inclusive para demarcar as limitações do Poder Político, conservar as conquistas já
obtidas e avançar em aspectos sociais e jurídicos ainda não alcançados.15
Toda e qualquer legislação deve obedecê-la16. O fundamento de validade das
demais normas deve ser extraído da Constituição17. Isso permite a higidez da
proposta constituinte, obstaculizando a validade de leis que venham a ser editadas
de forma destoante18-19.
12 Luís Roberto Barroso faz uma análise de que as novas Constituições surgem por quatro motivos, quais sejam: (a) mediante revolução; (b) criação de um novo Estado, provavelmente por reflexo de emancipação de colônia ou libertação de alguma dominação; (c) derrota em guerra, ou (d) transição política pacífica. Para ele, ao se erguer uma ordem constitucional, novos valores e uma nova ideia de Direito é fundada, contexto esse que acaba conferindo identidade à Constituição. (BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 5. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2015. p. 133 e 196). 13 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Editora Almedina, 2003. p. 94: “As razões do governo devem ser razões públicas que tornem patente o consentimento do povo em ser governado em determinadas condições. Desde logo, o governo é sempre um governo subordinado às leis [...]”. 14 ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2018. p. 59: “[...] a Constituição deve ser o ponto de partida para qualquer discussão ou proposta para resoluções de crises e de instabilidade [...]”. 15 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 5. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2015. p. 70. 16 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2011. p. 76: “As normas constitucionais, situadas no topo da pirâmide jurídica, constituem o fundamento de validade de todas as outras normas inferiores e, até certo ponto, determinam ou orientam o conteúdo material destas últimas”. 17 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito Brasileiro. 6. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. p. 33: “Uma das grandes descobertas do pensamento moderno foi a Constituição, entendida como lei superior, vinculante até mesmo para o legislador”. 18 SILVA, José Afonso da. Processo Constitucional de formação das leis. 3. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2017. p. 35-36: “[...] a lei não pode prevalecer se contraria a Constituição. [...]. É preciso, assim, estruturar meios adequados e eficazes de se precaver contra a ameaça do legislador
19
A análise da possível falta de conciliação da legislação infraconstitucional com
a Constituição é dirimida pelas vertentes dos vícios materiais e formais20-21.
O controle formal não se refere ao conteúdo da norma em si, mas a aspectos
procedimentais, a exemplo do respeito ao quórum de votação, competência do ente
para legislar sobre o assunto, obediência aos inúmeros critérios e fases de
tramitação do processo legislativo, dentre outros22.
Já o controle de vícios materiais é feito pela ótica da conformidade do
conteúdo da legislação com a Constituição23. Há, ainda, questões intrínsecas que
precisam ser salvaguardadas, mas que nem sempre estão positivas.
Às vezes a legislação editada respeita todo o conteúdo e os procedimentos
explícitos da Carta Magna. Contudo, ainda assim é possível que a lei ofenda
princípios constitucionais implícitos que, muito embora não estejam grafados, são
ínsitos ao Estado Democrático de Direito, tais como segurança jurídica,
proporcionalidade e razoabilidade. Esses institutos também se referem a critérios
materiais e podem gerar a inconstitucionalidade da norma no caso de
inobservância.24
que, servindo-se desse instrumento, pode instaurar um regime de força, transformando a força da lei numa lei da força”. 19 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito Brasileiro. 6. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. p. 33: “A Constituição, como norma fundamental do sistema jurídico, regula o modo de produção das leis e demais atos normativos e impõe balizamentos a seu conteúdo”. 20 TRINDADE, João. Processo legislativo constitucional. 2. ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2016. p. 244: “[...] controle de constitucionalidade é o mecanismo de controle (verificação) e garantia da compatibilidade vertical entre as fontes normativas infraconstitucionais (normas-objeto) e a Constituição (norma-parâmetro). Serve para evitar que surjam atos incompatíveis com a Constituição (controle prévio ou preventivo) ou para retirar do ordenamento os que tenham nascido com vício da inconstitucionalidade (controle repressivo)”. 21 SERRANO, Pedro Estevam A. P. O desvio de poder na função legislativa. São Paulo: Editora FTD, 1997. p. 58: “A distinção fundante (e presente em quase toda a doutrina) entre inconstitucionalidade formal e material é que a primeira resulta na inadequação procedimental – da incompatibilidade do processo de produção da lei com as normas que o regulam -, enquanto a segunda traduz a desconformidade de conteúdos prescritivos entre lei e Constituição”. 22 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito Brasileiro. 6. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. p. 48: “Ocorrerá inconstitucionalidade formal quando um ato legislativo tenha sido produzido em desconformidade com as normas de competência ou com o procedimento estabelecido para seu ingresso no mundo jurídico”. 23 FIGUEIREDO, Marcelo. O controle de constitucionalidade e de convencionalidade no Brasil. São Paulo: Editora Malheiros, 2016. p. 18: “Haverá inconstitucionalidade material quando houver incompatibilidade entre o conteúdo da lei ou do ato normativo e os preceitos constitucionais”. 24 ABBOUD, Georges. Discricionariedade Administrativa e Judicial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 65: “A lei (texto normativo) em si não contém as normas jurídicas, que são frutos de um complexo processo de concretização”.
20
A previsibilidade é uma característica marcante do constitucionalismo
moderno25. Isso gera segurança jurídica. A população precisa ter ciência, com certo
grau de clareza, o que pode e o que não pode ser feito e, na hipótese de
descumprimento, quais consequências estão previstas.26
A segurança jurídica tem como atributo marcante a estabilidade e a
previsibilidade27. Estabilidade porque regulamenta a convivência pacífica,
delimitando o respectivo ônus em caso de inobservância das normas. Previsibilidade
porque estabelece que possíveis alterações legais não surpreendam abruptamente
a sociedade, colocando um marco considerável para sua eficácia.28
Portanto, é necessário que o procedimento legislativo respeite as
formalidades, bem como que a norma seja editada de forma racional, alinhavada
aos nortes constitucionais29, o que deve ocorrer em sintonia com a segurança
jurídica.30
O controle da constitucionalidade pode ser feito de forma preventiva, seja
pelas Casas Legislativas (Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania) ou pelo
Chefe do Poder Executivo (poder de veto), e de forma repressiva pelo Poder
Judiciário31-32.
25 GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes. 8. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2017. p. 17. “O direito moderno é racional porque permite a instalação de um horizonte de previsibilidade e calculabilidade em relação aos comportamentos humanos, sobretudo aqueles que se dão nos mercados”. 26 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Princípio da Legalidade e Poder Regulamentar no Estado Contemporâneo. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. jul/set. 2001. 27 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Editora Almedina, 2003. p. 257: “O homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autónoma e responsavelmente sua vida. Por isso, desde cedo se consideram os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança como elementos constitutivos do Estado de Direito”. 28 Um exemplo é o princípio da anualidade eleitoral. Há previsão de que a lei que altera o processo eleitoral não se aplica à eleição que ocorra um ano antes da sua vigência (CF, Art. 16). 29 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 32. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2017. p. 434-435: “A lei às vezes degrada e avilta, corrompe e escraviza em ocasiões sociais e políticas de profunda crise e comoção. [...]. Sem o princípio da proporcionalidade, aquela constitucionalidade ficaria privada do instrumento mais poderoso de garantia dos direitos fundamentais contra possíveis e eventuais excessos perpetrados com o preenchimento do espaço aberto pela Constituição ao legislador para atuar formulativamente no domínio das reservas de lei”. 30 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Editora Malheiros, 2008. p. 306: “A segurança é uma necessidade humana básica, considerada uma das principais causas da própria existência do Direito”. 31 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito Brasileiro. 6. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. p. 90: “O modelo brasileiro de fiscalização da inconstitucionalidade adota, como regra geral, o controle judicial, cabendo aos órgãos do Poder Judiciário a palavra final e definitiva acerca da interpretação da Constituição. Existem, no entanto, no próprio texto constitucional ou no sistema como um todo, algumas hipóteses em que o Executivo e o Legislativo desempenham papel relevante no controle de constitucionalidade, tanto em caráter preventivo como repressivo, e assim no plano concreto como no abstrato.”.
21
Cabe registro que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal admite que
parlamentares impetrem mandado de segurança com a finalidade de coibir vícios
formais no curso do processo legislativo33. Nestes casos estar-se-ia diante de um
excepcional caso de controle preventivo pelo Poder Judiciário.
1.2 Outro vício a ser discutido
O fortalecimento dos órgãos de controle e de investigação tem contribuído
significativamente para demonstrar que algumas proposituras e aprovações de
legislações ocorrem mediante o pagamento de vantagens indevidas, aqui
denominado de vício no móvel do agente.
Esse tipo de conduta de membros do Poder Legislativo já originou a
propositura de três Ações Diretas de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal
Federal, todas pendentes de julgamento e ainda sem apreciação das medidas
cautelares34.
Entre outros, o fundamento que norteou essas ações foi o fato de que restou
comprovado nos autos da AP 470 (“Mensalão”) que determinados congressistas
votaram pela aprovação a Reforma da Previdência35 por ocasião do recebimento de
propina, o que, na avaliação dos demandantes, configuraria vício insanável de
violação ao decoro parlamentar (CF, Art. 55, §1º)36 com consequente afronta ao
32 O controle pode ser pela via difusa ou concentrada. No primeiro, qualquer juiz ou tribunal pode afastar a incidência de uma norma por entendê-la como inconstitucional (modelo americano). Já no segundo, é possível ação direta no STF para averiguar a constitucionalidade da norma (modelo europeu), cujo rol de legitimados é amplo (CF, Art. 103). Nesse sentido é o texto “Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática”, de Luís Roberto Barroso. Disponível em: <https://www.direitofranca.br/direitonovo/FKCEimagens/file/ArtigoBarroso_para_Selecao.pdf>. Acesso em: 07 mar. 2019. 33 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MS nº 24.667. TP. Relator: Ministro Carlos Velloso. Brasília, DF. Diário da Justiça: 23 abr. 2004. 34 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI’s nº 4.887, 4.888 e 4.889, todas de Relatoria da Ministra Carmem Lúcia. 35 BRASIL. Constituição (1988). Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003. Modifica os arts. 37, 40, 42, 48, 96, 149 e 201 da Constituição Federal, revoga o inciso IX do § 3 do art. 142 da Constituição Federal e dispositivos da Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, e
dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF. 31 dez.
2003. Constituição (1988). Emenda Constitucional nº 47, de 05 de julho de 2005. Altera os arts. 37, 40, 195 e 201 da Constituição Federal, para dispor sobre a previdência social, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF. 06 jul. 2005. 36 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: de 5 de outubro de 1988. “Art. 55 [...] §1º - É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas”.
22
princípio da moralidade (CF, Art. 37)37 e mácula à essência do voto e da
representatividade popular (CF, Art. 1º, Parágrafo Único)38.
Em outras palavras, a votação que resultou na aprovação da Emenda
Constitucional da Previdência teria sido “comprada”, gerando vício de decoro
parlamentar, o que, nas palavras dos autores das ações, foi “uma negociação
criminosa para a aprovação de diversas matérias no Congresso Nacional”.
Nos autos da ADI 4.887 a Procuradoria-Geral da República (PGR) emitiu
parecer no sentido de que a compra de apoio político para aprovação de legislação
gera “vício na formação da vontade no procedimento legislativo”, o que violaria
preceitos democráticos e geraria a nulidade da norma.39
Todavia, o Ministério Público entendeu que, no caso, pelo fato de ter sido
comprovado na AP 470 a participação de apenas sete parlamentares no esquema
de venda de apoio político, era temerário decretar a inconstitucionalidade da norma,
sobretudo porque, ainda que desprezado esses sete votos, a votação atingiria o
quórum necessário de maioria qualificada exigido pela Constituição.40
A conclusão que se extrai do posicionamento ministerial é que o Parquet
entende ser possível a declaração de inconstitucionalidade da norma na hipótese de
37 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: de 5 de outubro de 1988. “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [...]”. 38 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: de 5 de outubro de 1988. ”Art. 1º [...] Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. 39 BRASIL. “25. É importante perceber, entretanto, que o devido processo legislativo não se esgota no respeito às diretrizes técnicas que disciplinam o rito mecânico do procedimento de formação das leis. Abrange, entre outros pontos, a garantia de um processo legislativo democrático de reforma constitucional, voltada a ‘impedir que os dispositivos constitucionais sejam objeto de alteração através do exercício de um poder constituinte derivado distanciado das fontes de legitimidade situadas nos fóruns de uma esfera pública que não se reduz ao Estado. ’ 26. Nesse contexto, é ímpar o papel reservado ao controle judicial de constitucionalidade, sendo imprescindível a atuação de uma jurisdicional constitucional ofensiva ‘nos casos em que se deve impor o processo democrático e a forma deliberativa da formação política da opinião e da vontade. ” (Parecer nº 10.323/PGR, protocolado no STF em 13 de maio de 2013). 40 “29. Na ação penal 470, foram condenados 7 parlamentares em razão da sua participação no esquema de compra e venda de votos e apoio político que ficou conhecido como ‘mensalão’. 30. Não se pode presumir, sem que tenha havido a respectiva condenação judicial, que outros parlamentares foram beneficiados pelo esquema e, em troca, venderam seus votos para a aprovação das ECs 41/2003 e 47/2005. 31. Assim, mesmo com a desconsideração dos votos dos 7 deputados condenados, os dois turnos de votação nas emendas constitucionais na Câmara dos Deputados superam o quórum qualificado exigido pela Constituição para a sua provação. ” (fls. 19 do Parecer da PGR, o qual foi subscrito pelo Procurador-Geral da República, Roberto Monteiro Gurgel Santos, e pela Vice-Procuradora-Geral da República, Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira, em 30 de abril de 2013).
23
restar comprovado que o número de votos necessários para aprovação da
legislação só foi obtido porque houve vício no móvel desses parlamentares.
1.3 Estudos sobre o tema
Esse tipo de prática no cenário político certamente não é nova, mas, em
razão da contemporaneidade acadêmica do assunto, a doutrina ainda é tímida nesta
seara, havendo perfunctórias análises sobre o tema, o que torna o trabalho mais
atraente e dificultoso41.
Maurício Zockun aborda em sua tese de doutorado pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) essa questão pela ótica da
responsabilidade patrimonial do Estado. Questiona ele:
Desta situação decorre uma pergunta que se pretende equacionar neste texto: sendo comprovado que um ou alguns parlamentares optaram por votar em um ou outro sentido por força do pagamento de determinada quantia de dinheiro, poder-se-ia imputar a eles a responsabilidade a que alude o art. 37, § 6º, da Constituição da República? 42.
Já Pedro Lenza dedicou rápidas páginas para análise do assunto no seu livro
“Direito Constitucional Esquematizado”43. Na ocasião, escreveu o autor:
O grande questionamento que se faz, contudo, é se, uma vez comprovada a
existência de compra de votos, haveria mácula no processo legislativo de formação das
emendas constitucionais a ensejar o reconhecimento da sua inconstitucionalidade.
Entendemos que sim, e, no caso, trata-se de vício de decoro parlamentar, já que, nos
termos do art. 55, § 1º, ‘é incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos
no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membros do Congresso
Nacional ou a percepção de vantagens indevidas’. [...]. Em nosso entender, sem dúvida, o
comprovado esquema de compra e venda de votos para se conseguir apoio político enseja
o por nós denominado vício de decoro parlamentar a caracterizar a inconstitucionalidade de
41 ECO, Humberto. Como se faz uma tese. 26. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2008. p. 17: “Digamos desde já que o autor contemporâneo é sempre mais difícil. É certo que geralmente existe uma bibliografia mais reduzida. ” 42 ZOCKUN, Maurício. Responsabilidade patrimonial do Estado. São Paulo: Editora Malheiros, 2010. p. 175. 43 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 22. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2018. p. 272-273.
24
lei ou de ato normativo, pois que maculados a essência do voto e o conceito de
representatividade popular. As transcrições desse posicionamento de Pedro Lenza
subsidiaram as petições iniciais das ADI’s 4.887, 4.888 e 4.889.
Por sua vez, Ricardo Marcondes Martins, em “Efeitos dos vícios do ato
administrativo”44, deixou claro que em sua opinião é indiferente o vício no móvel do
agente parlamentar.
Esse entendimento foi posteriormente ratificado por ele em artigo jurídico nos
seguintes termos: “No exercício da função legislativa, o sistema normativo despreza
os vícios de vontade do agente competente, o dolo e o erro são, mesmo no exercício
de competência discricionária, irrelevantes para a validade do ato. [...] os vícios de
vontade do agente normativo não interferem na validade da norma editada.” 45
Há ainda a obra de Serrano, a qual será um grande paradigma para os
estudos que aqui nos propomos46. Na linha do que defendeu Ricardo Marcondes
Martins, para Pedro Serrano o vício no móvel do agente também não gera a
inconstitucionalidade da norma.
44 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Editora Malheiros, 2008. 45 MARTINS, Ricardo Marcondes. Teoria dos princípios e função jurisdicional. Revista de Investigações Constitucionais. Curitiba. v. 5, nº 2, p. 135-163, maio.-ago. 2018. 46 SERRANO, Pedro Estevam A. P. O desvio de poder na função legislativa. São Paulo: Editora FTD, 1997.
25
2 OS LIMITES DA ATIVIDADE LEGISLATIVA
Para compreender o vício no móvel do agente é fundamental analisar os
limites da atividade legislativa e da função parlamentar. Antes, porém, se faz
necessário tecer considerações acerca da ideia de República, uma vez que esse
instituto acomoda toda a atuação do Poder Público e é o princípio que estrutura o
ordenamento jurídico.
Isso permitirá delimitar como se configuram os desvios e abusos na edição
das normas. Contudo, como alguns conceitos e compreensões relacionados aos
desvios são emprestados da ideia de discricionariedade administrativa47, é
indispensável discorrer sobre o tema e traçar um comparativo entre esses
institutos48, mormente porque “a teoria do abuso do poder foi difundida no
pensamento jurídico brasileiro no campo do Direito Administrativo”.49
2.1 Considerações iniciais
A Constituição é una e deve ser compreendida de forma panorâmica50,
sistêmica51 e harmônica52. Não há hierarquia entre as suas normas, daí a
necessidade de conciliação na interpretação do seu texto.53
47 TÁCITO, Caio. O desvio de poder no controle dos atos administrativos, legislativos e jurisdicionais. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. 188:1-13. abr.-jun. 1992. “A teoria do desvio de poder como vício de legalidade por inobservância do fim expresso ou implícito na norma foi elaborada e desenvolvida no plano da competência administrativa”. 48 HERINGER JÚNIOR, Bruno. Desvio de Poder Legislativo: fundamentos jurídico-constitucionais para sua sindicância judicial. Revista do Curso de Direito da FSG. Caxias do Sul. Ano 2. nº 4. jul.-dez.2008. p.28: “Para tratar especificamente das situações de desvirtuamento da finalidade do ato normativo, a doutrina tomou emprestado do Direito Administrativo o conceito de desvio de poder”. 49 NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. Abuso do poder de legislar. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004. p. 148. 50 GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes. 8. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2017. p. 86. “Não se interpretam textos de direito, isoladamente, mas sim o direito, no seu todo – marcado, na dicção de Ascarelli [1952a:10], pelas suas premissas implícitas. Não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços. A interpretação de qualquer texto de direito impõe sempre ao intérprete, em qualquer circunstância, o caminhar pelo percurso que se projeta a partir dele – do texto – até a Constituição. Por isso, insisto em que um texto de direito isolado, destacado, desprendido do sistema jurídico, não expressa significado normativo algum”. 51 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 32. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2017. p. 109, 133 e 134: “[...] por sistema veio a entender-se, a seguir, o conjunto organizado de partes, relacionadas entre si e postas em mútua dependência. [...] a ciência do direito ou é sistemática ou não é nada (H. J. Wollf in typen im Recht und in der Rechtswissnschaft)”. 52 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2011. p. 106-107: “Esse princípio concita o intérprete a encontrar
26
Para Bobbio o Direito não é apenas norma, mas um conjunto coordenado de
normas54, o qual, nos dizeres de Carlos Maximiliano (1999), deve “ser interpretado
inteligentemente, não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva
inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis.”55.
Os princípios estruturantes edificam a Constituição. Também são chamados
de “normas-chaves”. Eles compõem a centralidade do ordenamento e iluminam o
restante do sistema jurídico. Essa visão foi tradicionalmente difundida no Brasil por
Celso Antônio Bandeira de Mello56 e posteriormente acatada por outros
doutrinadores, a exemplo de Geraldo Ataliba57.
Esclarecendo o que significa essa visão, Ricardo Marcondes Martins clarificou
que para essa corrente a palavra princípio “passou a ser empregada em sentido
técnico para identificar as ideias chaves, as vigas mestras, os alicerces do sistema
normativo. Princípios jurídicos são, nesse sentido, os elementos estruturantes do
sistema normativo”58.
soluções que harmonizem tensões existentes entre as várias normas constitucionais, considerando a Constituição como um todo unitário”. 53 SERRANO, Pedro Estevam A. P. O desvio de poder na função legislativa. São Paulo: Editora FTD, 1997. p. 103: “As normas jurídicas não se interpretam isoladamente. Mais do que um axioma hermenêutico, temos nesta proposição a própria conformação da unidade sistemática do ordenamento jurídico. [...] o ordenamento só se presta à interpretação quando considerado como um todo, haja vista que em seu interior poderão encontrar-se normas só dotadas de sanção quando emparelhadas com outras normas”. 54 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite. 10. ed. Brasília: Editora UNB, 1997. p. 21-22. 55 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 18. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense. 1999. p. 166. 56 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2013. p. 974-975: “Princípio – já averbamos alhures – é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se erradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. [...]. Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda a estrutura nelas esforçadas”. 57 ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros. 2004. p. 34. “Os princípios são as linhas mestras, os grandes nortes, as diretrizes magnas do sistema jurídico. Apontam os rumos a serem seguidos por toda a sociedade e obrigatoriamente perseguidos pelos órgãos do governo (poderes constituídos). [...]. Princípio é, pois, por definição, mandamento nuclear de um sistema [...]”. 58 MARTINS, Ricardo Marcondes. Teoria dos princípios e função jurisdicional. Revista de investigações constitucionais. Curitiba. v. 5, nº 2, p. 135-163, maio.-ago. 2018.
27
O grande princípio estruturante é o republicano59. O ordenamento jurídico
brasileiro deve ser interpretado em consonância com essa ideia. É inegável que
esse princípio acomoda o restante da legislação, além de nortear todas as
instituições, o que, por óbvio, acaba condicionando a atuação do Poder Público.
Qualquer postura ou entendimento que se distancie desse enunciado colide
frontalmente com a Constituição.
A raiz de atuação do Poder Público está vinculada à essência de República e
isso estrutura a organização política do país. República consiste na forma de
governo em que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos”, consoante ao que resta estampado no parágrafo único, do
artigo 1º, da Constituição Federal.60
Nas lições de Tocqueville, o povo é a fonte dos poderes61 porquanto “o
exercício do poder político não é prerrogativa de determinada família ou classe
social, mas de todos os cidadãos”.62
Como o poder pertence ao povo, nada mais lógico do que o povo governar.
Mas isso ocorre de forma indireta. A população deve escolher os seus
representantes por intermédio de eleições. República e democracia são
indissociáveis63. Ao falar de República já se pressupõe a democracia. Caso as leis
fossem criadas sem participação da população, estar-se-ia diante de um sistema
aristocrático, e não democrático, como bem apontado por Bodin em citação de
Bobbio.64
As características que marcam esse regime político, consoante as posições
de Geraldo Ataliba, são: (i) eletividade, que é o instrumento de representação; (ii)
59 ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2004. p. 15. “A compreensão de toda e qualquer instituição de direito público, positivamente adotada por um povo, depende da prévia percepção dos princípios fundamentais postos na sua base por esse mesmo povo, na sua manifestação política plena: a Constituição”. 60 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. Ed. Coimbra: Editora Almedina, 2003. p. 100: “Só o princípio da soberania popular segundo o qual ‘todo poder vem do povo’ assegura e garante o direito à igual participação na formação democrática da vontade popular”. 61 TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1998. p. 54. 62 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 4601. Relator: Ministro Luiz Fux. Brasília, DF. Diário da Justiça: 07 nov. 2018. 63 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Editora Malheiros, 2008. p. 237: “ República e Democracia são conceitos correlatos: se, pelo conceito de ‘República’, tudo que se refere ao Estado diz respeito ao povo, destina-se ao povo, existe para e pelo povo, pelo conceito de ‘Democracia’, o povo tem o direito de participar de tudo que diz respeito ao Estado”. 64 BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. São Paulo: Editora Edipro, 2017. p. 92.
28
periodicidade, o que acaba permitindo a alternância de poder e a sintonia entre
eleito e eleitor, e (iii) responsabilidade, que nada mais é do que o penhor da
idoneidade da representação popular65. O posicionamento de Farias Neto (2011) é
idêntico.66
Para Canotilho, pelo fato da República versar a respeito de uma ordem de
domínio de pessoas sobre pessoas sujeito à deliberação política, um atributo desse
regime é a autodeterminação mediante escolhas de cidadãos livres e iguais.67
Toda a compreensão do sistema jurídico advém dessa noção, o que acaba
gerando dupla responsabilidade, seja dos eleitores no sentido de terem consciência
da importância e do poder do voto, ou dos eleitos no que tange ao comprometimento
da condução do país, mormente em defesa do interesse público68.
De grande relevância destacar que há exigências legais a serem observadas
por aqueles que pretendam ocupar cargos eletivos, de modo que os candidatos
devem atender à todas as condições de elegibilidade (CF, Art. 14, §3º)69 e não
incidirem em nenhuma causa de inelegibilidade (CF, 14, §§4º, 5º, 6º, 7º e 8º70 e LC
nº 64/9071).
65 ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2004. p. 13. 66 FARIAS NETO, Pedro Sabino de. Ciência Política: enfoque integral avançado. São Paulo: Editora Atlas, 2011. p. 87: “A república apresenta três características principais e distintas da monarquia, que pode ser identificada em termos de: (a) temporariedade; (b) eletividade; e (c) responsabilidade”. 67 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Editora Almedina, 2003. p. 224. 68 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 37. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2011. p. 87: “Os fins da administração pública resumem-se num único objetivo: o bem comum da coletividade administrada”. 69 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: de 5 de outubro de 1988. Nacionalidade brasileira, pleno exercício dos direitos políticos, alistamento eleitoral, domicílio eleitoral na circunscrição, filiação partidária e idade mínima. 70 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: de 5 de outubro de 1988. “Art. 14 [...] §4º - São inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos. §5º - O Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal, os Prefeitos e quem os houver sucedido, ou substituído no curso dos mandatos poderão ser reeleitos para um único período subsequente. §6º - Para concorrerem a outros cargos, o Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal e os Prefeitos devem renunciar aos respectivos mandatos até seis meses antes do pleito. §7º - São inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consangüíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição. §8º - O militar alistável é elegível, atendidas as seguintes condições: I - se contar menos de dez anos de serviço, deverá afastar-se da atividade; II - se contar mais de dez anos de serviço, será agregado pela autoridade superior e, se eleito, passará automaticamente, no ato da diplomação, para a inatividade”. 71 BRASIL. Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 21 maio 1990. Lei das Inelegibilidades (“Lei da Ficha Limpa”), a qual traz várias hipóteses aptas a restringir a capacidade eleitoral passiva.
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Os impedimentos jurídicos de se disputar uma eleição guardam relação com
o eixo republicano. A legislação pátria assegura que quem vai representar o povo e
conduzir a coisa pública deve ter condutas compatíveis com esse mister (CF, Art.
14, §9º)72, além de ser fundamental que os postulantes concorreram em igualdade
de oportunidades, evitando que a captação do sufrágio possa, direta ou
indiretamente, ser viciada.
Consciente disto, o legislador editou inúmeros regulamentos visando
privilegiar a isonomia nas eleições, inclusive com mecanismos para frear o abuso de
poder político, o uso indevido dos veículos de comunicação e o abuso de poder
econômico nas disputas eleitorais (LC nº 64/90, Art. 22)73.
Além disso, há um rol extenso de condutas tidas como vedadas aos agentes
públicos para evitar desiquilíbrio no certame por ocasião do uso da máquina pública,
as quais, se perpetradas, podem ensejar de multa à cassação dos eleitos74.
Conflitos dessa natureza são dirimidos perante a Justiça Eleitoral, a qual é destinada
a resguardar a legitimidade do pleito75.
É do ápice da Constituição Federal que a ideia de República joga luzes,
ilumina e coordena a nação. Todo o restante das regras e princípios da Carta Magna
são meros desdobramentos da República, tal qual como a federação (União,
Estados, Distrito Federal, Municípios), soberania (CF, Art. 1º, I), tripartição de
72 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: de 5 de outubro de 1988. “Art. 14 [...] §9º - Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”. 73 Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990. Estabelece, de acordo com o art. 14, § 9º da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação, e determina outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 21 maio 1990. “Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político [...].”. 74 BRASIL. Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997. Estabelece normas para as eleições. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 1.º out. 1997. Artigos 73 a 77. 75 LIMA, Ruy Cirne. Princípios de Direito Administrativo. 7. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2007. p. 299: “É a Justiça Eleitoral, criada entre nós pela Constituição Federal, de 16.7.1934 (arts. 82 e 83) – atualmente estruturada de acordo com os arts. 118, 119, 120 e 121 da Constituição Federal de 1988, a grande conquista obtida com a Revolução de 1930, que assegura a lisura dos pleitos e a continuidade democrática, livrando as eleições das fraudes e das coações que anteriormente existiam”.
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poderes (CF, Art. 2º) 76, periodicidade dos mandatos (CF, Art. 14, §5º), sistema de
controle77, fiscalização (CF, Art. 70 e ss.)78, responsabilização e representatividade,
mecanismos de equilíbrio e harmonia, dentre outros.79
Não foi por acaso ou coincidência que a sua positivação constou no primeiro
artigo da Carta Maior, deixando clarividente o seu grau de importância estrutural,
cuja violação, direta ou indiretamente, deslegitima toda e qualquer atuação estatal.
Com efeito, a Constituição veda qualquer proposta tendente a abolir (Art. 60,
§4º) a forma federativa de Estado (inciso I), o voto direto, secreto, universal e
periódico (inciso II), a separação dos poderes (inciso III) e os direitos e garantias
individuais (inciso IV). São as chamadas cláusulas pétreas.
Evidentemente que suprimir quaisquer dessas medidas resultaria no
rompimento da ideia de República com a consequente quebra do pacto federativo e
a inobservância ao Estado Democrático de Direito80. É essa a razão pela qual não é
76 PIÇARRA, Nuno. A Separação dos Poderes Como Doutrina e Princípio Constitucional. Coimbra: Editora Coimbra. 1989. p. 49, 51, 52 e 60. “Se as mesmas pessoas que fazem as leis podem aplicar, não está garantido este princípio, pois no exercício do poder legislativo elas podem sempre modificar as leis existentes ou fazer novas leis para justificar os actos praticados ao abrigo da sua competência executiva. [...]. Se, pois, os que executam as leis tiverem simultaneamente competência legislativa para modificar os limites legais a que estão vinculados ao exercerem a competência executiva, tornar-se-ão inevitavelmente legisladores arbitrários e tirânicos. [...]. A doutrina de separação dos poderes, propugnada durante a guerra civil e o interregno, limitava-se a exigir o exercício separado, orgânica e pessoalmente, de duas funções materialmente distintas, ou seja, a função legislativa e a função executiva, com o objetivo essencial da garantia da rule of law e, nessa medida, da liberdade e da segurança individuais [...] Foi reivindicada em nome da eficiência do Estado: a função legislativa e a função executiva, por serem materialmente distintas, devem ser postas a cargo de distintos órgãos, estrutural e processualmente adequados ao seu eficiente desempenho”. 77 OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Improbidade administrativa e sua autonomia constitucional. São Paulo: Editora Fórum, 2009. p. 160: “[...] todos os sistemas de controle e responsabilização que incidem sobre a atuação do Estado e de seus agentes asseguram, reiteram, reforçam e densificam o princípio republicano, demonstrando sua alocação nos alicerces do sistema constitucional”. 78 A fiscalização pode ocorrer pelas instituições e órgãos constitucionalmente designados (Ministério Público, Tribunal de Contas, Câmara de Vereadores, Assembleias Legislativas e Congresso Nacional) ou, ainda, pela própria população, cabendo inclusive medida judicial (ação popular – CF, Art. 5º, LXXII) e administrativa (representações, denúncias, etc.) para tanto. 79 ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2004. p. 27-28. “Deveras, o princípio republicano não é meramente afirmado, como simples projeção retórica ou programática. É desdobrado em todas as suas consequências, ao longo do texto constitucional: inúmeras regras dando o conteúdo exato e a precisa extensão da tripartição do poder; mandatos políticos e sua periodicidade, implicando alternância no poder; responsabilidades dos agentes públicos, proteção às liberdades públicas; prestação de contas; mecanismos de fiscalização e controle do povo sobre o governo, tanto na esfera federal como estadual ou municipal etc. Tudo isso aparece, formando a contextura constitucional, como desdobramento, refração, consequência ou projeção do princípio, expressões concretas de suas exigências”. 80 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 5. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2015. p. 196-197 e 199: “O segundo fundamento de legitimação das cláusulas pétreas é a defesa da democracia. [...]. Relembre-se que o constitucionalismo se funda na limitação do poder e na preservação de valores e direitos fundamentais. [...]. As cláusulas pétreas ou de intangibilidade são a expressão mais radical de autovinculação ou pré-compromisso, por via da qual a
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possível a abolição desses institutos, mas apenas realizar meras ponderações, o
que não redundaria necessariamente em desrespeito à proposta constituinte
originária.
Prova disso é que o regime presidencialista não é cláusula pétrea, o qual
pode ser alterado para parlamentarista, cuja discussão já ocorreu em sede de
plebiscito em 21 de abril de 1993 (CF, Art. 14, I), sendo que ambos são
perfeitamente aceitáveis pela Carta Magna na medida em que são espécies do
gênero republicano.
Outro exemplo é que, embora seja cláusula pétrea, o voto pode ser
obrigatório ou facultativo, sendo que esta ou aquela opção não desrespeitaria a
Constituição, exatamente porque quaisquer deles são formas de se captar o sufrágio
de forma republicana.
Essas situações demonstram que as cláusulas pétreas são passíveis de
mudanças81-82, desde que não haja esvaziamento do núcleo do conteúdo
republicano83, o que sequer pode ser objeto de discussão por vedação constitucional
(CF, Art. 60, §4º). Conforme entende Gilmar Mendes, “alguns ordenamentos
constitucionais consagram a expressa proteção do núcleo essencial”84.
soberania popular limita o seu poder no futuro para proteger a democracia contra o efeito destrutivo das paixões, dos interesses e das tentações. Funcionam, assim, como a reserva moral mínima de um sistema constitucional”. 81 Nos autos do MS nº 23.047/DF, que tramitou perante o STF, o então Relator, Min. Sepúlveda Pertence, afirmou em seu voto, o qual foi acompanhado pela maioria (Ministros Celso de Mello - Pres.- , Moreira Alves, Néri da Silveira, Sydney Sanches, Octavio Gallotti, Carlos Velloso, Maurício Corrêa e Nelson Jobim), tendo divergido apenas o Min. Marco Aurélio, o seguinte: “[...] reitero de logo que a meu ver as limitações materiais ao poder constituinte de reforma, que o art. 60, §4º, da Lei Fundamental enumera, não significam a intangibilidade literal da respectiva disciplina na Constituição originária, mas apenas a proteção do núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação nelas se protege. [...]”. 82 Nos autos da MC na ADIn nº 2.024/DF, que tramitou perante o STF, o então Relator, Min. Sepúlveda Pertence, afirmou em seu voto, o qual foi acompanhado à unanimidade pelos Ministros Marco Aurélio (Pres. em exercício), Moreira Alves, Néri da Silveira, Sydney Sanches, Octavio Gallotti, Ilmar Galvão, Maurício Corrêa e Nelson Jobim, o seguinte: “Não são tipos ideais de princípios e instituições que é lícito supor tenha a Constituição tido a pretensão de tornar imutáveis, mas sim as decisões políticas fundamentais, frequentemente compromissórias, que se materializam no seu texto positivo. [...]. A afirmação então reiterada de que os limites materiais à reforma constitucional – as já populares ‘cláusulas pétreas’ – não são garantias de intangibilidade de literalidade de preceitos constitucionais específicos da Constituição originária – que, assim, se tornariam imutáveis – mas sim do seu conteúdo nuclear é da opinião comum dos doutores [...]”. 83 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 5. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2015. p. 203: “A locução ‘tendente a abolir’ deve ser interpretada com equilíbrio. Por um lado, ela deve servir para que se impeça a erosão do conteúdo substantivo das cláusulas protegidas. De outra parte, não deve prestar-se a ser uma inútil muralha contra o vento da história, petrificando determinado status quo”. 84 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 4. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. p. 56.
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Na avaliação de Canotilho há outros princípios estruturantes, como o Estado
de Direito e o preceito democrático85. Contudo, entendemos que esses princípios
são próprios e indissociáveis da República.
A ideia de República é o centro da Constituição86. Os institutos que lhe
servem de base de sustentáculo não podem ser excluídos (CF, Art. 60, §4º).
Eventual anulação resultaria na violação do sistema87, contrariando toda a essência
da estrutura jurídica em que se construiu e se constrói a nação88. A supressão
dessas garantias estrangularia o conceito de republicano e levaria a proposta
constituinte à ruína.89
Umbilicalmente ligado ao regime republicano está a “Federação”. É uma
decorrência lógica, o que acaba outorgando autonomia para cada ente atuar
deliberadamente dentro de sua área de competência90, fortalecendo os laços
85 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Editora Almedina, 2003. p. 1.173: “Na ordem constitucional portuguesa considerar-se-ão (a título indicativo sem pretensões de exaustividade) como princípios estruturantes: - o princípio do Estado de direito (arts. 2º, 9º); o princípio democrático (arts. 1º, 2º, 3º/1 e 10º); - o princípio republicano (arts. 1º, 2º, 11º, e 288º/b)”. 86 OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Improbidade administrativa e sua autonomia constitucional. São Paulo: Editora Fórum, 2009. p. 161: “Esta diversidade de regras mostra incontestavelmente a força do ideal contido no princípio republicano ao ser colocado como viga-mestre do sistema constitucional brasileiro”. 87 LIMA, Ruy Cirne. Princípios de Direito Administrativo. Editora Malheiros. 7. ed. São Paulo, 2007. p. 297-298: “Todo o poder do Estado está subordinado à realização desses objetivos de proteção à dignidade da pessoa humana, do respeito aos direitos fundamentais e do reconhecimento do valor Justiça. Na realidade, os direitos fundamentos preexistem ao Estado, cabendo aos poderes estatais assegurá-los e respeitá-los. É por isso que não se concebe, na nossa Constituição Federal, sequer a possibilidade de objeto de deliberação da proposta de Emenda Constitucional tendente a abolir os direitos e garantias individuais (CF, art. 60, §4º, IV). [...] os direitos individuais vinculam o Poder Público. [...]. Os direitos individuais vinculam, destarte, o Poder Público em todas as suas manifestações e no caso de sua violação, como já ficou dito, constituem-se em fundamento de direitos subjetivos públicos, cuja características essenciais é a de criarem obrigações para as pessoas administrativas, segundo o direito público, para com o particular [...]”. 88 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2011. p. 140: “A cláusula pétrea não existe tão só para remediar situação de destruição da Carta, mas tem a missão de inibir a mera tentativa de abolir o seu projeto básico. Pretende-se evitar que a sedução de apelos próprios de certo momento política destrua um projeto duradouro”. 89 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 5. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2015. p. 196: “É legítimo que o constituinte originário – isto é, o povo – estabeleça limites ao constituinte derivado – isto é, aos representantes do povo -, de modo que alterações profundas e radicais exijam nova manifestação do titular da soberania: o povo, constituinte originário”. 90 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22. ed. São Paulo: Editora Malheiros. 2010. p. 223: “A federação é a forma de Estado pela qual se objetiva distribuir o poder, preservando a autonomia dos entes políticos que a compõe. [...]. O acerto da Constituição, quando dispõe sobre Federação, estará diretamente vinculado a uma racional divisão de competência entre, no caso brasileiro, União, Estado e Municípios, tal divisão para alcançar logro poderia ter como regra principal a seguinte: nada será exercido por um poder mais amplo quando puder ser exercido pelo poder local, afinal os cidadãos moram nos Municípios e não na União”.
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políticos e sociais no âmbito dos Estados (CF, Art. 2591 e ADCT, Art. 1192) e
principalmente nos municípios93 (CF, Art. 2994 e ADCT, Art. 11, Parágrafo Único95).
Nos dizeres de Ataliba, “tudo o que puder ser feito pelos escalões
intermediários haverá de ser de sua competência; tudo o que o povo puder fazer por
si mesmo, a ele próprio incumbe. Aí está a demonstração da íntima relação entre
República e federação.”96
Além disso, pelo fato se tratar de um Estado Democrático de Direito97, a
República é regida pela legalidade e, portanto, a atuação do agente público deve se
submeter aos mandamentos constitucionais98. Com efeito, toda a sociedade se
curva à lei.
Ataliba ensina que “quando o povo ou o governo obedecem à lei, estão: o
primeiro obedecendo a si mesmo, e o segundo ao primeiro”99. Para ele, o princípio
91 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: de 5 de outubro de 1988 “Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição”. 92 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: de 5 de outubro de 1988. ADCT. “Art. 11. Cada Assembleia Legislativa, com poderes constituintes, elaborará a Constituição do Estado, no prazo de um ano, contado da promulgação da Constituição Federal, obedecidos os princípios desta”. 93 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 5. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2015. p. 207. 94 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: de 5 de outubro de 1988. “Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos: [...]”. 95 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: de 5 de outubro de 1988. ADCT. “Art. 11. [...] Parágrafo Único. Promulgada a Constituição do Estado, caberá à Câmara Municipal, no prazo de seis meses, votar a Lei Orgânica respectiva, em dois turnos de discussão e votação, respeitado o disposto na Constituição Federal e na Constituição Estadual”. 96 ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2004. p. 43. 97 Há uma distinção entre Estado de Direito e o Estado Democrático de Direito. No primeiro, por mais que haja lei, as normas não foram editadas por representantes eleitos democraticamente pelo povo, que é o que ocorre no segundo caso. 98 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Editora Malheiros, 2008. p. 237-238: “[...] se o agente age em nome do povo e no interesse deste, sua atuação não é guiada por sua vontade, mas pelo Direito. No Estado de Direito não existe, rigorosamente, liberdade de atuação estatal: o agente está sempre subordinado ao Direito, globalmente considerado; ou seja, aos princípios constitucionais e às regras abstratas. Não há atuação estatal à margem do Direito: toda atuação estatal restringe-se a cumprir a Constituição. A atuação do agente restringe-se, sempre, ao cumprimento do Direito, a fazer atuar não a sua vontade, mas a vontade do ordenamento jurídico, a vontade objetiva extraída do complexo conjunto de normas. Por isso, ao exercer sua função deve justifica-la perante o Direito, indicar a norma jurídica que a fundamenta”. 99 ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2004. p. 122: “O governo é servo do povo e exercita sua servidão fielmente ao curvar-se à sua vontade, expressa na lei. O Judiciário, aplicando a lei aos dissídios e controvérsias processualmente deduzidas perante seus órgãos, não faz outra coisa senão dar eficácia à vontade do povo, traduzida na legislação emanada por seus representantes”.
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da legalidade “tem em mira não uma organização racional do aparelho estatal, mas
sim evitar o arbítrio, assegurar o governo das leis e dar garantia à liberdade
individual”.100
Tudo isso é reflexo da República. Mas há mais. Como o povo elege os seus
representantes para editarem normas em nome da população e para a população,
as quais se destinam a toda coletividade, sem exceção, isso acaba gerando
tratamento paritário101.
A isonomia se exalta por obrigar todos à submissão das leis, cujas normas,
seja na elaboração, interpretação ou execução, devem buscar tratamentos
uniformes (CF, Art. 5º)102.
Seria incoerente dizer que uma República, a qual se alicerça em premissas
de igualdade e responsabilidade mútua entre representantes e representados,
pudesse permitir tratamento privilegiado de uns em detrimento de outros.103
Como o ordenamento constitucional moderno não compactua com práticas
arbitrárias, uma das formas de assegurar tratamento isonômico é por intermédio da
legalidade. Todos esses institutos se entrelaçam e são decorrentes da República.104
2.2 Discricionariedade administrativa: um paradigma para delimitar o
vício do agente
Para o agente executar determinados fins de sua função é primordial que haja
flexibilidade e margem de atuação, máxime porque o interesse público pode ser
satisfeito por diversos caminhos, sendo inviável atestar que essa ou aquela forma
100 ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2004. p. 123. 101 SERRANO, Pedro Estevam A. P. O desvio de poder na função legislativa. São Paulo: Editora FTD, 1997. p. 62: “A noção de lei e do papel do Poder Legislativo em nosso sistema constitucional vem amalgada ao sentido de República, do Estado como coisa pública, da origem popular do poder”. 102 ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2004. p.160: “De nada valeria a legalidade se não fosse marcada pela igualdade”. 103 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 32. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2017. p. 384: “O centro medular do Estado social e de todos os direitos de sua ordem jurídica é indubitavelmente o princípio da igualdade. Com efeito, materializa ele a liberdade da herança clássica. Com esta compõe um eixo ao redor do qual gira toda a concepção estrutural do Estado democrático contemporâneo. De todos os direitos fundamentais a igualdade é aquele que mais tem subido de importância no Direito Constitucional de nossos dias, sendo, como não poderia deixar de ser, o direito-chave, o direito-guardião do Estado social”. 104 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Editora Almedina, 2003. p. 96: “[...] como produto da vontade geral, as leis eram necessariamente gerais (generalidade da lei) garantindo, deste modo, a observância do princípio da igualdade perante a lei e consequente repúdio das velhas leges privatae (privilégios) características do Ancien Régime”.
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seja a única ou a correta105. Deve existir uma zona de liberdade na atuação sem que
isso enseje qualquer ônus106, o que acaba remetendo à ideia de
discricionariedade.107-108
A discricionariedade pode ser conceituada como o ato que possibilita várias
alternativas, todas legítimas e válidas, cabendo ao agente, dentro de sua
competência e autonomia, optar por esta ou aquela decisão de acordo com a
conveniência e oportunidade, o que se concretiza mediante a liberdade que lhe é
conferida nessas situações.
A sua característica marcante consiste no espaço para valorar e escolher109, o
que não é ilimitado. O ato deve estar em sintonia com a essência do objetivo que a
norma busca atingir110, sempre se guiando pelo interesse público, o que é próprio da
República.
O que qualifica a discricionariedade não é a escolha em si, mas a liberdade
105 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Editora Malheiros, 2008. p. 200: “O sistema jurídico atribui ao agente a competência para decidir qual a melhor forma de atingir ao interesse público, reputa razoável a opção ao agente. Nesses casos, a solução juridicamente correta é a que, segundo o juízo do agente, melhor atende ao interesse público, fim último do Estado”. 106 ALVIM, Teresa Arruda; DANTAS, Bruno. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos Tribunais Superiores - Precedentes no Direito Brasileiro. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 237. “[...] a relação do problema da discricionariedade com o da interpretação só surgiu quando a Administração assumiu o caráter de Administração legal e a interpretação passou a ser vista como algo que não se esgotava numa operação lógica”. 107 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2013. p. 437: “Ao agir discricionariamente, o agente estará, quando a lei lhe outorgar tal faculdade (que é simultaneamente um dever), cumprindo a determinação normativa de ajuizar sobre o melhor meio de dar satisfação ao interesse público por força da indeterminação legal quanto ao comportamento adequado à satisfação do interesse público no caso concreto”. 108 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 17. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 128: “[...] o Estado contemporâneo, muito complexo, com amplas funções, não pode atuar sem flexibilidade; torna-se fundamental deixar margem de maleabilidade à Administração em época de rápidas mudanças; grandes metrópoles, convivência de massa, problemas sociais, grandes tragédias exigem, por vezes, rapidez de atuação e certa margem de escolha; a discricionariedade atende, portanto, a necessidade institucional”. 109 PIRES, Luis Manuel Fonseca. Controle Judicial da Discricionariedade Administrativa. 2. ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2013. p. 139: “Na discricionariedade administrativa existe, nos termos da norma de competência, uma pluralidade de decisões legítimas. [...]. Não é a escolha que caracteriza a discricionariedade administrativa [...] é a liberdade de escolher uma diante da pluralidade de opções legítimas. [...]. É esta liberdade em face de uma pluralidade de opções legítimas, de acordo com as balizas da norma de competência, que caracteriza o que se costuma denominar de juízo de discricionariedade administrativa”. 110 FARIA, Edimur Ferreira de. Controle do mérito do ato administrativo pelo Judiciário. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2011. p. 146-147: “O poder discricionário é a arte de escolher o melhor, a arte de apreciar e avaliar todas as coisas, tendo em vista a sua finalidade. A escolha verifica-se quanto à conveniência ou à oportunidade, pois os interesses socais não escapam à previsão legislativa. Desta forma, o agente administrativo, mesmo sob o poder discricionário, deve agir segundo o fim querido pela lei”.
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concedida pela lei111, o que outorga duas ou mais opções legítimas112. Para Maria
Sylvia Zanella di Pietro “a autoridade poderá optar por uma dentre várias soluções
possíveis, todas válidas perante o Direito”113. O agente deve, nestes casos,
interpretar, valorar e optar dentro de parâmetros legais114. Se ultrapassado o limite
ou destoar da finalidade almejada, o ato será arbitrário.
Enterría e Fernández classificam que “não há discricionariedade à margem da
lei, mas justamente apenas em virtude da lei e na medida em que a lei assim o tenha
disposto”115.
Essa faculdade delegada por lei ocorre porque seria impossível que o
legislador previsse todas as hipóteses que o administrador enfrentaria116. Além
disso, a gestão dos interesses sociais ocorre de forma variada e muda
corriqueiramente, tornando premente a necessidade de a norma autorizar condutas
discricionárias para atingir determinados fins117, o que contribui até mesmo para a
eficiência do Poder Público porquanto não engessa a sua atuação118.
Para Enterría e Fernández “a existência de poderes discricionário é inevitável
111 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 37. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2011. p. 173: “Atos discricionário são os que a Administração pode praticar com a liberdade de escolha de seu conteúdo, de seu destinatário, de sua conveniência, de sua oportunidade e do modo de sua realização. A rigor, a discricionariedade não se manifesta no ato em si, mas sim no poder de a Administração praticá-lo ela maneira e nas condições que repute mais convenientes ao interesse público”. 112 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2012. p. 148: “[...] discricionariedade um poder delimitado previamente pelo legislador”. 113 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2012. p. 61. 114 SERRANO, Pedro Estevam A. P. O desvio de poder na função legislativa. São Paulo: Editora FTD, 1997. p. 35: “ [...] discricionariedade como consubstancial do Estado de Direito, como seu elemento absolutamente necessário“. 115 ENTERRÌA, Eduardo García de; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 463. 116 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 37. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2011. p. 173: “A discricionariedade administrativa encontra fundamento e justificativa na complexidade e variedade dos problemas que o Poder Público tem que solucionar a cada passo e para os quais a lei, por mais casuística que fosse, não poderia prever todas as soluções, ou, pelo menos, a mais vantajosa para cada caso ocorrente”. 117 QUEIRÓ, Afonso Rodrigues. Estudos de Direito Público. Coimbra: Universidade de Coimbra. 1989. p. 280. v. 1: “[...] nenhum legislador é capaz de prever a multiplicidade e a variedade de aspectos que oferecem as necessidades no presente e no futuro, nem de estabelecer normas fixas par cada caso concreto. Muitas vezes, o legislador tem que limitar-se a formular normas jurídicas de carácter geral, deixando à Administração o cuidado de decidir, dentro dos limites que aquele lhe assinalou, o que requer e exige o caso concreto, o que é necessário fazer para se atingir o particular fim administrativo. É apenas dentro dos limites da ordem jurídica que o administrador pode entender que um certo caminho é o melhor, mas impõe-se sempre o respeito pelas exigências da igualdade perante a ordem jurídica, pelo fim ou intenção da lei e as exigências do caso concreto”. 118 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2012. p. 63.
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para o funcionamento da Administração e sua presença marca de forma resoluta o
aspecto mais importante da ação administrativa; e daí que tais poderes seriam
caracterizados justamente por sua liberdade, por sua isenção em relação à Lei”119.
Ensina Maria Sylvia Zanella di Pietro que “o regramento não atinge todos os
aspectos da atuação administrativa; a lei deixa certa margem de liberdade de
decisão diante do caso concreto, de tal modo que a autoridade poderá optar por uma
dentre várias soluções possíveis, todas válidas perante o Direito”.120
Assevera Celso Antônio Bandeira de Mello que:
Discricionariedade é a margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger, segundo critério consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos, cabíveis perante cada caso, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal.121
Os atos de competência discricionária não se confundem com os conceitos
jurídicos indeterminados, mesmo porque, os atos discricionários se tratam de
indiferentes jurídicos vinculados ao interesse público, “há um poder de escolha entre
soluções diversas, todas igualmente válidas para o ordenamento”122. Já nos
conceitos jurídicos indeterminados há um ônus argumentativo para que, diante do
caso concreto, se diga o significado da norma123. Enterría e Fernández se
posicionam na mesma linha124.
A título de exemplo, não pode o Senado Federal, ao escolher um membro
para o Tribunal de Contas da União (CF, Art. 73, §1º), atestar que os requisitos
119 ENTERRÌA, Eduardo García de; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 446. 120 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2012. p. 61. 121 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 988-989. 122 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2012. p. 127. 123 FARIA, Edimur Ferreira de. Controle do mérito do ato administrativo pelo Judiciário. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2011. p. 145: “O entendimento dominante entre os poucos autores que se dedicam ao estudo dos conceitos indefinidos ou fluídos, a maioria entende que não há discricionariedade ante estes conceitos indeterminados”. 124 ENTERRÌA, Eduardo García de; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 180-181: “Se a essência própria de todo conceito jurídico indeterminado, em qualquer área do ordenamento, é que sua aplicação permite uma única solução justa, o exercício de uma potestade discricionária permite, ao contrário, uma pluralidade de soluções justas [...]. A discricionariedade é essencialmente uma liberdade de escolha entre alternativas igualmente justas, ou, se preferir, entre indiferentes jurídicos, porque a decisão geralmente se fundamenta em critérios extrajurídicos (de oportunidade, econômicos etc.) não incluídos na Lei e remetidos ao crivo subjetivo da Administração”.
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“idoneidade moral e reputação ilibada” sejam o que os parlamentares bem
entenderem (CF, Art. 73, §1º, II)125. São necessários argumentos aptos a justificarem
a escolha, o que deve ser feito em sintonia com a finalidade da função a ser
exercida126.
Nos casos de conceitos jurídicos indeterminados há: (a) uma zona de certeza
positiva, ocasião em que é fácil constatar o Direito; (b) uma zona de certeza
negativa, oportunidade em que claramente o Direito não está presente, e (c) uma
zona intermediária, de penumbra, aonde não é fácil evidenciar a presença do Direito
ou não, situação que demanda densa motivação para justificar porque naquele caso
a escolha se encaixa no conceito jurídico indeterminado e se concilia com o
interesse público127.
Luis Manuel Fonseca Pires lavra posicionamento no sentido de que:
A discricionariedade é a competência prevista em lei para o exercício da função administrativa que outorga ao agente público uma pluralidade de decisões legítimas, e que por isso não se confunde com a interpretação jurídica de conceitos jurídicos indeterminados, e igualmente não pode ser outorgada para o âmbito da Administração Sancionadora, e a escolha deve ser exercida, diante do caso concreto, pela melhor opção à realização do interesse público.128
No ato de competência discricionária o agente deve, em homenagem a teoria
dos motivos determinantes129, corolário do princípio da legalidade130, explicitar os
125 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: de 5 de outubro de 1988. “Art. 73. O Tribunal de Contas da União, integrado por nove Ministros, tem sede no Distrito Federal, quadro próprio de pessoal e jurisdição em todo o território nacional, exercendo, no que couber, as atribuições previstas no art. 96. § 1º Os Ministros do Tribunal de Contas da União serão nomeados dentre brasileiros que satisfaçam os seguintes requisitos: [...] II - idoneidade moral e reputação ilibada”. 126 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2002. p. 93: “Ora, se a lei mencionou dadas expressões é, obviamente, porque considera que elas são signos, vale dizer, sinais que expressam uma dada realidade”. 127 Para ilustrar, Hart traz o segundo exemplo: “Um homem com uma cabeça brilhantemente polida é claramente careca; um outro com uma cabeleira luxuriante claramente que o não é; mas a questão respeitante a um terceiro homem, com um tufo de cabelo aqui e ali, sobre se é careca ou não, poderia ser discutida [...].”. (HART, Herbert L. A. O conceito de Direito. 6. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011. p. 8). 128 PIRES, Luis Manuel Fonseca. Controle Judicial da Discricionariedade Administrativa. 2. ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2013. p. 201. 129 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2012. p. 41. 130 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 37. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2011. p. 101: “O princípio da motivação dos atos administrativos, após a Constituição Federal de 1988, está inserido no nosso regime político. É, assim, uma exigência do Direito Público e da legalidade governamental”.
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pressupostos de direito e de fato que o levaram a adotar àquela opção dentre outras
possíveis131 (Lei nº 9.784/99, Art. 50), sob pena de nulidade132-133.
Entende Luis Manuel Fonseca Pires (2013, p. 185) que “a motivação é a
fundamentação, a exposição das razões, o apontamento dos fatos considerados
relevantes e das normas que, diante de certo caso, devem incidir”134. Nessa esteira,
Mello (2013, p. 402) conclui que “o motivo ato é a própria situação material,
empírica, que efetivamente serviu de suporte real e objetivo para a prática do ato”135.
Motivação se trata da fundamentação para a concretização do ato136, cabendo
ao agente “explanar por que o ‘interesse público’ encontra-se preenchido diante do
caso presente; o que, no contexto fático, qualifica o ‘interesse público’” 137. É a
justificativa do ato138, nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello, “aquilo que o
agente apresenta como ‘causa’”.139
Isso possibilita o controle de sua legalidade140, na medida em que será
131 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2012. p. 77: “Pressuposto de direito é o fato descrito na norma (hipótese da norma) como fundamento de determinado ato. Pressuposto de fato, como o próprio nome indica, corresponde ao conjunto de circunstâncias, de acontecimentos, de situações que levam a Administração a praticar o ato. Para que este seja legal, é necessário que haja uma coincidência entre o motivo de fato e o motivo de direito descrito na lei”. 132 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2002. p. 94: “Jamais seria de admitir que a autoridade pudesse expedir um ato sem motivo algum – pois isto seria a consagração da irracionalidade – ou que pudesse escolher qualquer motivo, fosse qual fosse, pois redundaria no mesmo absurdo da irracionalidade”. 133 MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Tratado de Direito Administrativo Disciplinar. Rio de Janeiro: Editora América Jurídica, 2008. p. 181 e 333: “A falta ou a omissão da fundamentação (motivação) expressa, carreia o ato à nulidade, devendo a mesma ser revelada de maneira clara e congruente, não sendo possível a motivação a posteriori. [...]. Essa garantia do princípio da motivação impõe aos agentes públicos o dever de fundamentar/motivar seus atos, através da indicação dos pressupostos legais e de fato que justifiquem o exercício da competência”. 134 PIRES, Luis Manuel Fonseca. Controle Judicial da Discricionariedade Administrativa. 2. ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2013. p. 185. 135 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2013. p. 402. 136 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 37. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2011. p. 103: “Pela motivação o administrador público justifica sua ação administrativa, indicando os fatos (pressupostos de fato) que ensejaram o ato e os preceitos jurídicos (pressupostos de direito) que autorizaram sua prática”. 137 PIRES, Luis Manuel Fonseca. Controle Judicial da Discricionariedade Administrativa. 2. ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2013. p. 189. 138 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2002. p. 99. 139 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2013. p. 404. 140 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2012. p. 136: “É necessário que na motivação se contenham os elementos indispensáveis para controle da legalidade do ato, inclusive no que diz respeito aos limites da discricionariedade. É pela motivação que se verifica se o ato está ou não em consonância com a lei e com os princípios a que se submete a Administração Pública. [...]. A exigência de motivação,
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possível ao Judiciário aferir se há compatibilidade da conduta com a finalidade
almejada por lei141, bem como se o ato foi praticado por agente compete e de forma
proporcional e razoável142, parâmetros esses abrangidos pela ideia de legalidade143.
Como muito bem apontado por Juarez Freitas, “a motivação é um escudo da
cidadania ativa contra as arbitrariedades e os desvios invertebrados e absurdos”144.
Na mesma linha, Hely Lopes Meirelles pontua que “a motivação, portanto, deve
apontar a causa e os elementos determinantes da prática do ato administrativo, bem
como o dispositivo legal em que se funda”145.
A jurisprudência do STJ elenca que “segundo a teoria dos motivos
determinantes, a Administração, ao adotar determinados motivos para a prática de
ato administrativo, ainda que de natureza discricionária, fica a eles vinculada”146. Na
mesma linha é o que conclui Ricardo Marcondes Martins147 e Hely Lopes
Meirelles148.
Um aspecto que demonstra a coerência da decisão discricionária é
racionalidade do posicionamento, o que, ao não ser evidenciado, passa a ser
plenamente passível de controle jurisdicional e consequente anulação do ato149.
hoje considerada imprescindível em qualquer tipo de ato, foi provavelmente uma das maiores conquistas em termos de garantia de legalidade dos atos administrativos”. 141 FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 5. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2013. p. 90. 142 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. São Paulo Editora Malheiros, 2013. p. 413. 143 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo. Editora Atlas, 2012. p. 61: “No Estado de Direito, que tem como um dos alicerces o princípio da legalidade, todos os poderes que a Administração Pública exerce são limitados pela lei, de forma que impeça os abusos e as arbitrariedades a que as autoridades poderiam ser levadas”. 144 FREITAS, Juarez. Direito fundamental à boa Administração Pública. 3. ed. São Paulo: Editora Malheiros. 2014. p. 70. 145 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 37. ed. São Paulo: Editora Malheiros 2011. p. 103. 146 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RMS nº 20.565/DF. Relator: Ministro Armando Esteves Lima. J em: 15 de março de 2007. Diário da Justiça: 21 maio 2007. 147 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Editora Malheiros, 2008. p. 203: “[...] os motivos mencionados pelo agente em sua motivação são vinculantes, ou seja, o ato administrativo só será válido se os motivos mencionados realmente existirem”. 148 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 37. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2011. p. 202/203: “A teoria dos motivos determinantes funda-se na consideração de que os atos administrativos, quando tiverem sua prática motivada, ficam vinculados aos motivos expostos, para todos os efeitos jurídicos. Tais motivos é que determinam e justificam a realização do ato, e, por isso mesmo, deve haver perfeita correspondência entre eles e a realidade. Mesmo os atos discricionários, se forem motivados, ficam vinculados a esses motivos como causa determinante de seu cometimento e se sujeitam ao confronte da existência e legitimidade dos motivos indicados. Havendo desconformidade entre os motivos determinantes e a realidade, o ato é inválido”. 149 ALVIM, Teresa Arruda; DANTAS, Bruno. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos Tribunais Superiores - Precedentes no Direito Brasileiro. 4. ed. São Paulo: Editora
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Por óbvio que isso não autoriza o magistrado a substituir a decisão da
Administração150, mas apenas a decretar a ilegalidade do posicionamento151, sob
pena de violação da separação de poderes152 (CF, Art. 2º).
Em situações excepcionais o STJ entende que isso é possível, como é o caso
de redução de multas aplicadas em patamar excessivo e desproporcional pela
Administração Pública153, mormente em homenagem ao princípio da inafastabilidade
do Poder Judiciário (CF, Art. 5º, XXXV).
Nas ideias de Georges Abboud, para o ato não ser cassado pelo Judiciário,
este deve ser: (a) autorizado ou embasado na Constituição ou na lei; (b)
proporcional; (c) assentado no interesse social, e (d) rigorosamente
fundamentado154. Além disso, é necessário que este tenha cumprido a finalidade
posta na lei.
2.2.1 Princípio da finalidade
O princípio da finalidade define como as funções e os atos devem ser
desempenhados155. Ao fim, incontestavelmente todos buscam satisfazer ao
Revista dos Tribunais, 2017. p. 244: “[...] no Estado Social de Direito a Administração age por via da lei e de acordo com a lei, cabendo ao Judiciário julgar a adequabilidade do comportamento da administração com o complexo normativo referencial”. 150 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2012. p. 134: “[...] o Judiciário pode examinar o mérito do ano administrativo. No entanto, o que não é possível é o Judiciário substituir a decisão discricionária adotada validamente. [...] o Judiciário pode apreciar os aspectos da legalidade do ato discricionário e verificar se a Administração não ultrapassou os limites da discricionariedade; neste caso, pode o Judiciário invalidar o ato, porque a autoridade ultrapassou o espaço livre deixado pela lei e invadiu o campo da legalidade”. 151 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2012. p. 148: “[...] o Judiciário pode apreciar os aspectos da legalidade e penetrar no exame do mérito, não para substituir o ato administrativo pela sua própria decisão, mas para verificar se a Administração não ultrapassou os limites da discricionariedade, para entrar no campo do arbítrio e, portanto, da ilegalidade”. 152 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2012. p. 136. 153 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 330677/RS.Relator. Ministro José Delgado. J.em: 02 out. 2011. V.U. Diário da Justiça: 04 fev. 2002. 154 ABBOUD, Georges. Discricionariedade Administrativa e Judicial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 234-250. 155 ROCHA, Silvio Luís Ferreira da. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Editora Malheiros, 2013. p. 86: “A administração deve observar o fim previsto em lei”.
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interesse público, cada um de uma forma156. Nas palavras de Hely Lopes Meirelles,
“o princípio do interesse público está intimamente ligado ao da finalidade”157.
Figura 01 – Princípio da finalidade
Para compreender como um ato deve ser executado é necessário assimilar a
sua regulamentação158. Como bem pontuado por Celso Antônio Bandeira de Mello,
“é na finalidade da lei que reside o critério norteador de sua correta aplicação, pois é
em nome de um dado objetivo que se confere competência aos agentes”159. As
mesmas premissas corroboram as ideias de Enterría e Fernández.160
A lei determina um objetivo específico para as funções161 e atos162-163. Na
República, quem ocupa cargo público administra negócio alheio, de modo que as
competências exercidas devem buscar finalidades específicas164.
156 FARIA, Edimur Ferreira de. Controle do mérito do ato administrativo pelo Judiciário. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2011. p. 162: “A finalidade do ato será sempre o interesse público, o bem-estar social ou o interesse geral”. 157 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 37. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2011. p. 105. 158 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros. p. 85: “O plexo de poderes depositados em mãos da Administração, ante seu caráter serviente, instrumental, não é para ser manejado em quaisquer circunstâncias, para quaisquer fins ou por quaisquer formas. Pelo contrário, é previsto como utilizável perante certas circunstâncias, para alcançar determinados fins e através de especificadas formas”. 159 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 30. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2013. p. 109. 160 ENTERRÌA, Eduardo García de; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 476: “[...] toda atividade administrativa deve ser direcionada à consecução de um fim, sempre determinado, expressa ou tacitamente (e portanto, elemento necessariamente vinculado), pela norma que atribui a potestade para atuar”. 161 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2012. p. 71: “Quanto à competência, a autoridade administrativa não tem a possibilidade de atuar discricionariamente, uma vez que só pode realizar aquelas atividades que lhe foram atribuídas pela lei, tendo em conta os fins nela determinados”. 162 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2012. p. 80: “[...] a finalidade do ato administrativo é sempre a que decorre explícita ou implicitamente da lei. Sob esse aspecto, a finalidade do ato é sempre vinculada pela lei; não há, aí, qualquer margem de discricionariedade para a Administração, pois é o legislador que define a finalidade que o ato deve alcançar“.
43
Foi nesse contexto que Seabra Fagundes afirmou que “administrar é aplicar a
lei de ofício”165. No mesmo sentido, Vidal Serrano Nunes Junior pontuou que “ao
Executivo cabe a aplicação da lei de ofício”166. Finalidade nada mais é do que o bem
jurídico objetivado pelo ato167. Portanto, “o princípio da finalidade é uma
consequência do princípio da legalidade, pois a lei estabelece quais serão os
objetivos do Poder Público quando o mesmo concretiza os seus atos”168.
Em se tratando de ato discricionário, há no sistema jurídico a finalidade a que
ele se destina169, cabendo ao administrador eleger o meio adequado para executa-
lo170-171, e sempre se vinculando ao interesse público172-173. Não existe competência
livre e sem objetivo definido174. A relação é de dependência e subordinação175.
163 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 37. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2011.p. 174-175: “A lei administrativa é sempre finalística: almeja um objetivo a ser atingido pela Administração, através de ato ou atos jurídicos que constituem meios para a consecução de tais fins”. 164 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. O desvio de poder. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. 172:1-19. abr.-jun.1998. 165 FAGUNDES, Miguel Seabra. Controle Jurisdicional dos Atos Administrativos. 3. ed. 1957. p. 17, citado por Celso Antônio Bandeira de Mello. O conteúdo do Regime Jurídico-Administrativo e seu Valor Metodológico. 1967. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/30088>. Acesso em: 01 mar. 2019. 166 NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. A Cidadania Social na Constituição de 1988. São Paulo: Editora Verbatim. 2009. p. 170. 167 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2013. p. 409. 168 MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Tratado de Direito Administrativo Disciplinar. Rio de Janeiro: Editora América Jurídica, 2008. p. 331. 169 FARIA, Edimur Ferreira de. Controle do mérito do ato administrativo pelo Judiciário. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2011. p. 166. 170 TÁCITO, Caio. Teoria e prática do desvio de poder. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. 117:1-18. jul.-set. 1974. p. 17: “[...] por mais lato que seja o campo da discricionariedade, tem sempre como limite interno a sua vinculação a uma finalidade pública específica“. 171 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 37. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2011. p. 175: “Discricionários, portanto, só podem ser os meios e modos de administrar; nunca os fins a atingir”. 172 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2012. p. 74: “O sujeito só pode exercer as atribuições que a lei lhe confere e não pode renunciar a elas, porque lhe foram conferidas em benefícios do interesse público“. 173 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Editora Malheiros, 2008. p. 192: “[...] toda realização do Estado tem por finalidade a realização do interesse público. [...]. Se o ato administrativo não concretizar o interesse público, será viciado, por falta do pressuposto teleológico”. 174 TÁCITO, Caio. O desvio de poder no controle dos atos administrativos, legislativos e jurisdicionais. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. 188:1-13. abr.-jun. 1992. “Qualquer ato administrativo está vinculado a um fim público, ainda que a norma de competência a ela não se refira”. 175 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. O desvio de poder. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. 172:1-19. abr.-jun.1998.
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Afonso Rodrigues Queiró esclarece que “o poder discricionário, por conseguinte, é
sempre conferido aos agentes pelo legislador para a consecução de certo fim”176.
Se assim não fosse, a República estaria sujeita a ser conduzida pelas paixões
e conveniências dos administradores177, os quais utilizariam suas prerrogativas para
quaisquer fins, dizendo que as suas condutas atenderiam, genericamente, ao
interesse público, se traduzindo em verdadeira tirania, afastando,
consequentemente, qualquer previsibilidade e segurança jurídica na condução do
país.178
O interesse público não pode ser utilizado como uma “carta na manga” ou
verdadeiro “coringa” para que, em determinada situação, ante a ausência de “saída
jurídica”, o Poder Público se utilize deste importante princípio constitucional para
satisfazer posicionamentos não albergados pelo ordenamento constitucional.
É inegável que o interesse público se trata de uma definição subjetiva e que
pode ser construída de inúmeras formas179. Trata-se de conceito jurídico
indeterminado, mas determinável, cuja extração deve ser obtida dentro do
ordenamento jurídico e mediante farta argumentação180.
O interesse público se constitui a partir da noção coletiva de sociedade, e não
necessariamente de um grupo de pessoas com pautas específicas181. Trata-se do
interesse do indivíduo enquanto membro da sociedade.
176 QUEIRÓ, Afonso Rodrigues. Estudos de Direito Público. Coimbra: Universidade de Coimbra. 1989. p. 230. v. 1. 177 ENTERRÌA, Eduardo García de; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 445: “[...] a lei, no sentido formal do conceito, como produto do poder legislativo, segue emoldurando a atuação administrativa em geral, de forma que a Lei, ou bem opera diretamente na Administração, ou bem condiciona, ou limita, ou determina, ou exclui, nos termos que já estudamos mais acima, essa atuação especial administrativa [...]”. 178 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 37. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2011. p. 112: “Até mesmo nas chamadas atividades discricionária o administrador público fica sujeito às prescrições legais quanto a competência, finalidade e forma, só se movendo com liberdade na estreita faixa da conveniência e oportunidade administrativas. O poder administrativo concedido à autoridade pública tem limites certos e forma legal de utilização. Não é carta branca para arbítrios, violências, perseguições ou favoritismos governamentais. 179 FARIAS NETO, Pedro Sabino de. Ciência Política. São Paulo: Editora Atlas, 2011. p. 51: “A definição possível do bem público redunda sempre suscetível a divergências no seu devido modo de interpretação. [...]. Os próprios elementos do bem comum assomam, frequentemente, em conflito. Desse modo, os interesses de uns conflitam com os interesses de outros, em termos econômicos, políticos e éticos”. 180 SERRANO, Pedro Estevam A. P. O desvio de poder na função legislativa. São Paulo: Editora FTD, 1997. p. 49: “O interesse público não deve ser tido como interesse do Estado enquanto aparelho, nem como interesse coletivo do ponto de vista sociológico ou político, mas sim em seu significado jurídico, de interesse tido como público pela lei”. 181 FARIAS NETO, Pedro Sabino de. Ciência Política. São Paulo: Editora Atlas, 2011. p. 50: “O objetivo do Estado consiste no bem comum, ou bem público, de certo povo, situado em determinado território. Dallari (2007) afirma que o bem comum pode ser considerado o conjunto de todas as
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Inexiste análise do interesse público em dissonância da vontade legislativa182.
É exatamente por isso que Carlos Ari Sundfeld atestou que interesse público é “tudo
o que o ordenamento entende valioso para a coletividade e que, por isso, protege e
prestigia”183. Como princípio político, o interesse público coloca-se como o próprio
fim do Estado184.
A resposta para dar vazão ao interesse público encontra guarida no princípio
da finalidade, o qual prescreve o fim a ser alcançado em uma determinada
função185.
A lição de Caio Tácito é a de que:
A regra de competência não é um cheque em branco concedido ao administrador. A administração serve, necessariamente, a interesses públicos caracterizados. Não é lícito à autoridade valer-se de suas atribuições para satisfazer a interesses pessoais, sectários ou político-partidários, ou mesmo a outro interesse público estranho à sua competência. A norma de direito atende a fins específicos que estão expressos ou implícitos em seu enunciado.186
Nos atos discricionários há um fim almejado, cabendo ao agente apenas
dispor acerca do meio com que isso irá se concretizar187. Caso contrário, este pode
condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana. Nesse sentido, o objetivo do Estado resulta no desenvolvimento integral da personalidade dos integrantes da coletividade delimitada pelo Estado. Esse enfoque particulariza a concepção de bem comum para cada Estado, em função das peculiaridades de cada correspondente coletividade”. 182 PIÇARRA, Nuno. A Separação dos Poderes como Doutrina e Princípio Constitucional. Coimbra: Editora Limitada, 1989. p. 253-254. “Sabido que a Constituição do Estado de Direito contemporâneo vincula juridicamente toda o poder estadual, que ela própria funda originariamente, fica excluída a possibilidade de a função política ser considerada juridicamente livre e constitucionalmente desvinculada, pois todo e qualquer acto estadual carece de habilitação constitucional. [...]. A lei deixa, no Estado de Direito contemporâneo, de ser apenas regra de Direito para passar a instrumento político por excelência”. 183 SUNDFELD, Carlos Ari. Princípio da Publicidade Administrativa (Direito de Certidão, Vista e Intimação). Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. jan.-mar.1995. 184 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2012. p. 233. 185 FARIA, Edimur Ferreira de. Controle do mérito do ato administrativo pelo Judiciário. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2011. p. 162: “Toda lei, ainda que de maneira indireta, tem por finalidade regular interesses sociais, o bem-estar da comunidade a que se destina. Assim, todo e qualquer ato jurídico que emanar da vontade da lei ou que nela tenha suporte será, forçosamente, dirigido à finalidade específica, quando houver, ou à geral, de interesse social”. 186 TÁCITO, Caio. Teoria e prática do desvio de poder. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. 117:1-18. jul.-set. 1974. p. 1. 187 ROCHA, Silvio Luís Ferreira da. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Editora Malheiros, 2013. p. 86: “O administrador, ao manejar as competências postas a seu cargo, deve atuar com rigorosa obediência à finalidade de cada ato. Ao administrador cumpre buscar a finalidade específica abrigada na lei”.
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ser invalidado188, uma vez que “a inobservância, pelo agente administrativo, do fim
específico a que a lei endereça o exercício de sua competência, é causa de nulidade
do ato administrativo”.189
2.2.2 Desvio de poder e desvio de finalidade
A teoria do desvio de poder teve início no Conselho de Estado Francês sob a
perspectiva da moralidade. O caso que deu origem à discussão foi o fato de ter sido
evidenciado que uma negativa de autorização para permitir que veículos pudessem
estacionar próximos a uma praça de uma estrada de ferro para atender ao
transporte de passageiros ocorreu apenas para atender aos interesses de outra
empresa. Posteriormente a situação foi transmutada para questões interligadas à
legalidade, e não mais à “moral”190. Para Dinorá Grotti:
[...] A noção de desvio de poder como vício de legalidade teve origem na jurisprudência do Conselho de Estado Francês na segunda metade do século XIX. Com o objetivo de impor limitação ao âmbito de atuação discricionária. Tal construção deu-se a partir da ampliação da abrangência do recurso de excesso de poder, que visa à anulação dos atos administrativos contrários à lei. Inicialmente previsto para anular os atos administrativos eivados de vícios de competência, para, em um segundo momento, passar a admitir este recurso também para os casos de vício de forma. Tratava-se de um recurso contra vícios externos de ilegalidade dos atos administrativos. Mais tarde, o Conselho de Estado passou a admitir também a impugnação dos vícios concernentes ao motivo, conteúdo e finalidade do ato administrativo. Ao permitir a utilização do recurso de excesso de poder como mecanismo para invalidar os atos administrativos viciados em sua finalidade, o Conselho de Estado francês deu origem à teoria do desvio de poder191
188 SANTOS, Gustavo Ferreira. Excesso de poder no exercício da função legislativa. Revista de Informação Legislativa. Brasília. A.35. 140. out-dez. 1998. p. 289: “ [...] não devem ser reputados válidos os atos administrativos editados com finalidade distinta daquela estabelecida pela regra de competência que atribui o poder à autoridade. Fulmina os atos editados com finalidade outra que não aquela que aparenta buscar”. 189 TÁCITO, Caio. Teoria e prática do desvio de poder. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. 117:1-18. jul.-set. 1974. p. 4. 190 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. O desvio de poder é vício de legalidade que invalida o ato. Disponível em: <http://genjuridico.com.br/2016/03/29/o-desvio-de-poder-e-vicio-de-legalidade-que-invalida-o-ato/> . Acesso em: 24 maio 2019. 191 GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. O desvio de poder em atos administrativos. In: MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de; NOHARA, Irene Patrícia; MARRARA, Thiago. (Org.). Direito e Administração Pública: estudos em homenagem a Maria Sylvia Zanella Di Pietro. São Paulo: Atlas, 2013, v. 01, p. 795-821.
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O ordenamento jurídico evoluiu e hodiernamente as análise e perspectivas
são outras, o que será analisado sob a perspectiva da Constituição de 1988.
O objetivo da República é a satisfação do interesse da sociedade (dever)192.
Os cargos e funções públicas nada mais são do que competências para este fim
(poder).
O interesse público é um dever-poder193, na medida em que a ordem
constitucional determina deveres e, para sua consecução, cria funções para
cumprirem tais finalidades (dever-poder)194. O agir do agente é um dever, eis que o
interesse público é indisponível e todas as funções existem apenas para atender à
coletividade, não sendo justificável que as autoridades se omitam por qualquer
conveniência que seja.195
Na atividade administrativa, se o agente utiliza o cargo e suas prerrogativas
para objetivos diversos daqueles estipulados legalmente haverá desvio de poder e
de finalidade196. Nestes casos ocorrerá abuso da função, o que demonstra a
ilegalidade da conduta e a plena possibilidade de correção pelo Poder Judiciário197,
cuja nulidade ocorrerá a depender do caso.
192 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Editora Malheiros, 2008. p. 43: “[...] toda função estatal importa a busca da realização do interesse público (bem comum)”. 193 FARIAS NETO, Pedro Sabino de. Ciência Política. São Paulo: Editora Atlas, 2011. p. 51: “A competência do Estado caracteriza as suas atribuições instituídas para a realização do bem público de modo a assegurar a ordem, assim como promover o progresso e a prosperidade da coletividade”. 194 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2004. p. 54: “A valia do poder, a utilidade e o sentido dele, resumem-se em consistir em instrumento insuprimível, sem o qual o agente administrativo não teria como desincumbir-se desse dever posto a seu cargo: dever de concretizar a finalidade legal, isto é, dever de dar satisfação a um interesse de terceiro, a um interesse alheio; no caso, o interesse da coletividade. Logo, o administrador não dispõe de poderes-deveres, como às vezes se diz, mas de deveres-poderes, locução que expressa com maior fidelidade que a anterior a verdadeira índole das competências“. 195 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 37. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2011. p. 107-108: “O poder tem para o agente público o significado de dever para com a comunidade e para com os indivíduos, no sentido de que quem o detém está sempre na obrigação de exercitá-lo. Nem se compreenderia que uma autoridade pública – um Governador, p. ex. – abrisse mão de seus poderes administrativos, deixando de praticar ato de seu dever funcional. O poder do administrador público, revestindo ao mesmo tempo o caráter de dever para a comunidade, é insuscetível de renúncia pelo seu titular. Tal atitude importaria em fazer liberalidades com o direito alheio, e o Poder Público não é, nem pode ser, instrumento de cortesias administrativas. Se para o particular o poder de agir é uma faculdade, para o administrador público é uma obrigação de atuar”. 196 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Editora Malheiros, 2008. p. 197: “Os vícios de finalidade são chamados de desvio de poder. Este consiste na utilização de uma competência em desacordo com a finalidade que preside sua instituição”. 197 SERRANO, Pedro Estevam A. P. O desvio de poder na função legislativa. São Paulo: Editora FTD, 1997. p. 44: “ [...] o desvio de poder é considerado o vício que macula a atividade administrativa através do uso da competência criada por lei para atingir fim diverso daquele que conforma a prerrogativa”.
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Não basta atender ao interesse público, é necessário que isso seja realizado
na forma prescrita em lei e dentro das competências do agente198, o que se vincula à
prossecução de um determinado fim, consoante ao que entende Afonso Rodrigues
Queiró199. Essa é uma garantia da sociedade no Estado Democrático de Direito200.
Hely Lopes Meirelles afirma que “usar normalmente o poder é empregá-lo
segundo as normas legais, a moral da instituição, a finalidade do ato e as exigências
do interesse público. Abusar do poder é empregá-lo fora da lei, sem utilidade
pública”201.
A ideia do desvio de poder se relaciona com os atos de competência
discricionária, isto porque, havendo liberdade de escolha, o agente pode ter
condutas com finalidades diversas das previsões legais, seja para favorecer ou
prejudicar alguém,202 ou simplesmente porque acredita que deva atender ao
interesse público do jeito que lhe convir, ainda que sem competência para tanto203.
Ensina Caio Tácito que:
O desvio de poder é, por definição, um limite à ação discricionária, um freio ao transbordamento da competência legal além de suas fronteiras, de modo a impedir que a prática do ato administrativo, calcado no poder de agir do agente, possa dirigir-se à consecução de um fim de interesse privado, o mesmo de outro fim público estranho à previsão legal.204
198 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2004. p. 85: “[...] a competência só é validamente exercida quando houver sido manejada para satisfazer a finalidade que a lei visou, obedecido os requisitos procedimentais normativamente estabelecidos, presentes os motivos aptos para justificar o ato, adotada a forma instrumental prevista e através de conteúdo juridicamente idôneo“. 199 QUEIRÓ, Afonso Rodrigues. Estudos de Direito Público. Coimbra: Universidade de Coimbra. 1989. p. 398. v. 1. 200 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2004. p. 60: “Deveras, no Estado de Direito, é uma garantia para os cidadãos, não apenas a segurança de que o Poder Público só pode buscar as finalidades estipuladas nas leis, mas também a de que, ao busca-las, terá de cingir-se à utilização de meios que o Direito antecipadamente e adrede concebeu como sendo os adequados para o atingimento de cada uma delas“. 201 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 37. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2011. p. 112. 202 SERRANO, Pedro Estevam A. P. O desvio de poder na função legislativa. São Paulo: Editora FTD, 1997. p. 15: “O desvio de poder implica que o aplicador da norma faz um uso da competência voltado à obtenção de fim diverso daquele previsto na própria norma”. 203 ROCHA, Silvio Luís Ferreira da. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Editora Malheiros, 2013. p. 86: “O administrador, ao manejar as competências postas a seu cargo, deve atuar com rigorosa obediência à finalidade de cada ato. Ao administrador cumpre buscar a finalidade específica abrigada na lei”. 204 TÁCITO, Caio. O desvio de poder no controle dos atos administrativos, legislativos e jurisdicionais. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. 188:1-13. abr.-jun. 1992.
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Para Celso Antônio Bandeira de Mello, “entende-se por desvio de poder a
utilização de uma competência em desacordo com a finalidade que lhe preside a
instituição”205.
O desvio de poder e de finalidade se dividem em condutas que: (a) não
atendem ao interesse público, de modo que nestes casos o agente atua almejando
um fim estritamente privado; ou (b) atendem ao interesse público, embora o agente
não tenha competência para executar o ato.
Em outras palavras, o desvio ocorre se o agente utilizar o seu cargo para
atingir fim diverso do interesse público ou, ainda que atinja o interesse público, o faz
por meio de ato que não é de sua competência206. Em ambos os casos há
ilegalidade207.
Figura 02 – Desvio de poder e desvio de finalidade
Geralmente questões desse jaez ocorrem quando a autoridade pública,
valendo-se de sua função, busca atingir objetivos estranhos ao da Administração,
205 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2004. p. 56. 206 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 37. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2011. p. 113: “O abuso do poder ocorre quando a autoridade, embora competente para praticar o ato, ultrapassa os limites de suas atribuições ou se desvia das finalidades administrativas”. 207 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2004. p. 59-60: “O vício de desvio de poder, como assentam os doutos, pode apresentar-se sob dupla modalidade. Em uma delas, o agente administrativo, servindo-se de uma competência em abstrato possui, busca uma finalidade alheia a qualquer interesse público. Nestes casos atua para alcançar um fim pessoal, que tanto pode ser de perseguição a alguém como de favoritismo ou mesmo para atender um interesse individual do próprio agente. Em outra modalidade, manejando também uma competência que em abstrato possui, busca atender uma finalidade pública que, entretanto, não é aquela própria, específica, da competência utilizada. Aí ter-se-á valido de uma competência inadequada, de direito, para atingimento da finalidade almejada. [...]. Em ambos os casos considera-se maculado o ato. Entende-se que assim seja. Posto que as competências têm – na feliz expressão da Caio Tácito – ‘endereço’ certo, não podem ser manejadas para um fim distinto daquele a que estão legalmente preordenadas, sem que, com isto, em última instância, seja violada a própria regra de competência. Haveria então desvirtuamento do poder”.
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ou, ainda que atenda ao interesse público, o que faz de forma diversa da prescrita
em lei208.
Não basta que o agente atenda ao interesse público, é necessário que isso
seja feito dentro dos limites de sua competência209. Se a finalidade buscada for
diversa daquela legalmente prevista, estar-se-á diante de um vício210. As atribuições
devem ser executadas com fins específicos211.
Foi dentro dessa perspectiva que Pedro Serrano considerou que “não é
verdadeiro afirmar que o agente administrativo, no território das finalidades
implícitas, pode escolher livremente fins de interesse público – só lhe sendo vedado
buscar interesses pessoais –, uma vez que ele está obrigado a satisfazer o fim de
interesse público adequado legalmente à competência que titulariza, e que lhe
norteou a criação”212.
O desvio de poder também pode ocorrer nos casos em que o agente se omite
dolosamente para favorecer ou prejudicar alguém, se imiscuindo do seu dever legal
de agir, ainda que para negar uma pretensão, em nítido desvio de finalidade213.
Buscar interesses privados na atividade pública é vedado, além de que, ao se
buscar o interesse público, o agente deve percorrer os caminhos e finalidades
impostas pela lei. Isso coloca freios e limites nos agentes, o que é vinculado ao
preceito republicano. Todo poder outorgado pelo povo deve ser utilizado em prol da
208 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo: Edição. Editora Atlas, 2012. p. 135: “A teoria do desvio de poder permitiu o exame da finalidade do ato, inclusive sob o aspecto do atendimento ao interesse público; a teoria dos motivos determinantes permitiu o exame dos fatos ou motivos que levaram à prática do ato”. 209 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2004. p. 61: “[...] se alguém é investido de uns tanto poderes, não o é para atuá-los em quaisquer circunstâncias ou perante quaisquer fins ou segundo quaisquer formas, mas só o é para mobilizar ditos poderes ante determinadas circunstâncias, em vista de específicos fins e através de certas formas. Onde, quem mobilizasse tais poderes fora das circunstâncias estabelecidas explícita ou implicitamente na lei, ou em desacordo com a finalidade legal ou mediante formas distintas das estabelecidas na regra de direito, estaria, em rigor de verdade, agindo fora da própria competência, isto é, sem competência”. 210 QUEIRÓ, Afonso Rodrigues. Estudos de Direito Público. Coimbra: Universidade de Coimbra. 1989. p. 398. v. 1. 211 GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. O desvio de poder em atos administrativos. In: MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de; NOHARA, Irene Patrícia; MARRARA, Thiago. (Org.). Direito e Administração Pública: estudos em homenagem a Maria Sylvia Zanella Di Pietro. São Paulo: Atlas, 2013, v. 01, p. 795-821. 212 SERRANO, Pedro Estevam A. P. O desvio de poder na função legislativa. São Paulo: Editora FTD, 1997. p. 50. 213 GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. O desvio de poder em atos administrativos. In: MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de; NOHARA, Irene Patrícia; MARRARA, Thiago. (Org.). Direito e Administração Pública: estudos em homenagem a Maria Sylvia Zanella Di Pietro. São Paulo: Atlas, 2013, v. 01, p. 795-821.
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coletividade e por meios ponderados e específicos, nos quais há a obrigação do
agente agir214.
Na atividade administrativa, caso o ato tenha sido praticado sem motivo ou
com desvio de poder ou de finalidade, este poderá vir a ser anulado215, inclusive por
meio de Ação Popular (Lei nº 4.717/65, Art. 2º)216.
2.2.3 A vontade do agente
Pouco importa o que o agente psicologicamente pretende. Se a conduta
atendeu ao interesse público, foi praticada porque as situações fáticas assim
demandavam e ocorreu dentro dos limites de sua competência, cujo ato se filiou à
finalidade prevista em lei, a vontade do agente é totalmente indiferente.
Móvel, na função administrativa, é a intenção psicológica do agente217. Se o
motivo e a motivação são idôneos, é desprezível o móvel do agente218-219. O que
214 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2013. p. 414: “Os poderes públicos, como é notório, não são deferidos às autoridades para que deles façam um uso qualquer ou em quaisquer circunstâncias, mas tão somente para que os utilizem quando irrompam os fatos que os justificam, e na medida indispensável ao atendimento do bem jurídico que estão, de direito, obrigadas a curar”. 215 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2004. p. 73: “O que o Direito sanciona no desvio de poder, consoante entendemos, é sempre o objetivo descompasso entre a finalidade a que o ato serviu e a finalidade legal que por meio dele poderia ser servida. É, pois, um desacordo entre norma abstrata (lei) e a norma individual (ato)”. 216 BRASIL. Lei nº 4.717, de 29 de junho de 1965. Regula a Ação Popular. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF. 05 jul. 1965. Republicado em 8 abr. 1974. “Art. 2º. São nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no artigo anterior, nos casos de: a) incompetência; [...] e) desvio de finalidade. Parágrafo único. Para a conceituação dos casos de nulidade observar-se-ão as seguintes normas: a) a incompetência fica caracterizada quando o ato não se incluir nas atribuições legais do agente que o praticou; [...] e) o desvio de finalidade se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência”. 217 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2013. p. 403: “Móvel é a representação subjetiva, psicológica, interna do agente e correspondente àquilo que suscita a vontade do agente (intenção)”. 218 ROCHA, Silvio Luís Ferreira da Rocha. A irrelevância na vontade do agente na teoria do ato administrativo. Revista Trimestral de Direito Público. São Paulo: Malheiros, v. 25, 1999, p. 46 et seq. 219 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Editora Malheiros, 2008. p. 55: “Se as normas editadas concretizarem os princípios e obedecerem às primazias previstas no ordenamento [...], é irrelevante o elemento volitivo, ou seja, a vontade do agente editor da norma. Esta é a penúltima característica da função estatal: a irrelevância da vontade do agente”.
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determina a atuação pública é a lei (princípio da finalidade), corroborando a
insignificância da vontade pessoal do agente220.
A hipótese trazida por Maria Sylvia Zanella di Pietro sobre desapropriação é
um tanto quanto ilustrativa para demonstrar nossa discordância quanto à tese de
que o móvel do agente é relevante. Narra a autora que:
[...] se, ao usar de tais poderes, a autoridade administrativa objetiva prejudicar um inimigo político, beneficiar um amigo, conseguir vantagens pessoais para si ou para terceiros, estará fazendo prevalecer o interesse individual sobre o interesse público e, em consequência, estará se desviando da finalidade pública prevista em lei. Daí o vício do desvio de poder ou desvio de finalidade, que torna o ato ilegal.221
Contudo, o vício em questão pode não ser apto a invalidar o ato222. Se a
conduta foi praticada por autoridade competente, cumpriu a finalidade que os fatos
sociais demandavam e foi realizada dentro dos limites da lei, inclusive atendendo ao
interesse público, é totalmente irrelevante se o agente tinha o desejo de prejudicar
ou favorecer alguém. Seria muito diferente se não houvesse sequer necessidade de
realizar a desapropriação e tal ato fosse concretizado apenas para intentos privados.
Vejamos o exemplo de quando a Administração Pública precisa optar pela
instalação de Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) ou de Bus Rapid Transit (BRT) como
modal de transporte público. Se o Governador escolhe licitar o VLT porque isso
atende aos reclamos da sociedade, sobretudo porque a geografia da cidade é
propícia e os custos para a população se locomover serão mais acessíveis, qual a
relevância se o Chefe do Executivo estava inclinado a isso porque ele tem
predileção pessoal por este meio de locomoção? Qual a diferença se ao fazer tal
220 PIRES, Luis Manuel Fonseca. Controle Judicial da Discricionariedade Administrativa. 2. ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2013. p. 235-236: “Entendemos que nunca se deve dirigir o intérprete [...] em relação à intenção, ao móvel, ao elemento psicológico que animou o agente público, pois todas as funções públicas, ao partirem da noção de função, implicam o cumprimento de misteres em nome de terceiros, em nome da coletividade. Por tal razão, fracassa a perspectiva da investigação da vontade individual do agente público porque a ‘vontade’ que anima os atos dos agentes públicos é a que Marcello Caetano denomina de vontade funcional, isto é, a manifestação que se limita a exteriorizar ‘[...] o dever de curar de interesses alheios [...]’, e por isto caracteriza ‘[...] uma vontade, não psicológica, mas normativa’. É a lei, em síntese, que prescreve qual deve ser a vontade da entidade que é externada pelas declarações dos seus agentes. Em atos vinculados e mesmo na discricionariedade administrativa é a lei a medida da competência da legitimidade de qualquer declaração”. 221 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Direito Administrativo. 25. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2012. p. 67. 222 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Editora Malheiros, 2008. p. 492.
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opção, sabidamente seu inimigo político, proprietário de postos de combustível, vai
deixar de fornecer produtos e serviços aos ônibus caso fosse escolhido o BRT?
Nenhuma223.
De igual forma, não haveria nenhuma ilegalidade caso o Governador
determinasse a reestruturação das rodovias estaduais nos trechos em que o mesmo
detenha propriedades rurais, desde que o procedimento tenha sido precedido de
estudo técnico, licitação hígida e farta fundamentação apta a justificar por quais
razões o interesse público demandava tal medida.
O que não pode é o agente utilizar sua função em dissonância de sua
competência, exarando atos com finalidade diversa da prevista em lei, cuja conduta
não atende ao interesse público, e assim o faz apenas para satisfazer reclamos
privados. Em outras palavras, criam-se motivos e motivações para atender um
desejo pessoal224. Isso não é tolerado225-226, uma vez que “a inexistência dos fatos
alegados pela Administração exige a invalidação do ato.”227.
Um caso clássico foi a nomeação de Luiz Inácio Lula da Silva (“Lula”) pela Ex-
Presidente da República, Dilma Rousseff, para o cargo de Ministro de Estado com o
escopo de lhe outorgar foro por prerrogativa de função almejando que eventual
decretação de prisão por magistrado de primeira instância em processo criminal em
andamento fosse posteriormente nulificada por ausência de autorização do
Congresso para instauração de tal processo (CF, Art. 51, I)228.
223 PIRES, Luis Manuel Fonseca. Controle Judicial da Discricionariedade Administrativa. 2. ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2013. p. 237: “Uma vez mais encarecemos que a vontade que se apura como viciada no desvio de finalidade não é a vontade íntima, introspectiva do sujeito, mas a vontade normativa, o que permite a simples confrontação – objetiva – do que aconteceu com o que deveria ocorrer”. 224 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Editora Malheiros, 2008. p. 215: “Provado que a escolha se deu por força de móvel espúrio, haverá presunção absoluta de vício de contentorização. No campo da discricionariedade a escolha do princípio a ser concretizado fundada na má-fé do agente gera presunção absoluta de vício de finalidade; da mesma forma, a escolha do meio a ser aplicado fundada na má-fé gera presunção absoluta de vício de contentorização”. 225 TÁCITO, Caio. O desvio de poder no controle dos atos administrativos, legislativos e jurisdicionais. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. 188:1-13. abr.-jun. 1992. “A manifestação de vontade do agente público terá, necessariamente, que se dirigir à observância da finalidade específica relacionada com a natureza da atividade exercida. Se a autoridade se desvia da finalidade legal específica, o ato administrativo se torna viciado em elemento essencial à sua legalidade“. 226 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2013. p. 408: “[...] a invocação de ‘motivos de fato’ falsos, inexistentes ou incorretamente qualificados vicia o ato [...]”. 227 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Editora Malheiros, 2008. p. 227. 228 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: de 5 de outubro de 1988. “Art. 51. Compete privativamente à Câmara dos Deputados: I - autorizar, por dois terços de seus
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Neste caso o ato foi realizado por agente competente (Presidente da
República), mas, na visão do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, sem atender a
qualquer interesse público. Para o Ministro isso ficou evidente porque interceptações
telefônicas constataram que os atos de nomeação e posse foram expedidos com o
objetivo cristalino de serem apresentados à autoridade policial em caso de eventual
ordem de prisão contra Lula229. Há posicionamentos em sentido contrário, a exemplo
da linha adotada por Silvio Luis Ferreira da Rocha230 .
A vontade do agente é indiferente. Como os atos públicos são pautados no
princípio da legalidade, cumpridos os pressupostos exigíveis, são desprezíveis as
questões íntimas que motivaram a conduta231.
Celso Antônio Bandeira de Mello doutrina que:
Onde há função, pelo contrário, não há autonomia da vontade, nem a liberdade em que se expressa, nem a autodeterminação da finalidade a ser buscada, nem a procura de interesses próprios, pessoais. Há adscrição a uma finalidade previamente estabelecida, e, no caso da função pública, há submissão da vontade ao escopo pré-traçado na Constituição ou na lei e há o dever de bem curar um interesse alheio, que, no caso, é o interesse público.232
membros, a instauração de processo contra o Presidente e o Vice-Presidente da República e os Ministros de Estado”. 229 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MC em MS nº 34.070/DF. Relator: Ministro Gilmar Ferreira Mendes. 18 mar. 2016 230 ROCHA, Silvio Luís Ferreira da. Considerações acerca do desvio de finalidade. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/silvio-luis-ferreira-da-rocha/consideracoes-acerca-do-desvio-de-finalidade>. Acesso em: 19 mar. 2019. “No caso da nomeação do ex-presidente como Ministro Chefe da Casa Civil não se pode deixar de antever um interesse legítimo da Presidenta em reorganizar a base política de sustentação do seu governo, o que seria possível pela experiência política do nomeado. [...]. Digo isto, porque a restrição a que o nomeado ocupe o cargo de ministro com base na teoria subjetiva do desvio de poder significa, em última análise, uma restrição aos respectivos direitos fundamentais políticos que o permitem participar dos assuntos políticos do Estado. Assim, impedir o nomeado de ser empossado como Ministro de Estado com fundamento na antiga lição do desvio de finalidade consiste em criar uma proibição estranha ao ordenamento jurídico, pois, como regra, a vedação de assumir função pública depende de circunstâncias jurídicas específicas, como o trânsito em julgado de sentença condenatória criminal ou o trânsito em julgado de sentença condenatória em ação de improbidade administrativa (Art. 15, incisos III e V da Constituição Federal)”. 231 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 37. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2011. p. 102. “No Direito Público o que há de menos relevante é a vontade do administrador. Seus desejos, suas ambições, seus programas, seus atos, não têm eficácia administrativa, nem validade jurídica, se não estiverem alicerçados no Direito e na lei. Não é a chancela da autoridade que valida o ato e o torna respeitável e obrigatório. É a legalidade a pedra de toque de todo ato administrativo”. 232 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. São Paulo Editora Malheiros, 2013. p. 101.
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A vontade viciada pode ser um indício de desvio de poder e de finalidade233,
mas não necessariamente macula o ato234. São as circunstâncias fáticas, atrelada à
teoria dos motivos determinantes, que permitirá aferir a legalidade da conduta
adotada235, uma vez que a exigência de provas cabais é algo diabólico em virtude
“de que o vício está na intenção oculta de quem o pratica. Por isso mesmo, o desvio
de poder, como regra, comprova-se por meio de indício”236, na linha do que também
defendeu Dinorá Grotti237.
Luis Manuel Fonseca Pires pontifica que:
A vontade viciada, mesmo na competência discricionária, não é, em si, vício do ato administrativo. Pois o que norteia a atuação do agente público não é o cometimento de um interesse próprio, mas o interesse de uma coletividade, um fim público. Portanto, a vontade
233 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Editora Malheiros, 2008. p. 200: “No campo da discricionariedade é de extremada relevância o exame do móvel do agente. Suponha-se que, diante das circunstâncias, tanto a concretização de P1 quanto a de P2 sejam razoavelmente admitidas; o agente, visando à perseguição, ao favoritismo ou à corruptela – quer dizer, por força de móvel espúrio -, opte por concretizar o princípio P1. Juridicamente correta é a decisão que no juízo do agente concretize da melhor forma possível o interesse público. Perceba-se: do fato de o agente ter baseado sua escolha num móvel maculado não decorre necessariamente que, se pretendesse cumprir o Direito – ou seja, realizar da melhor forma possível o interesse público -, sua escolha não seria a mesma. Pode ser que o agente tenha escolhido a solução ‘A’ por corruptela, mas, se buscasse a decisão que melhor atendesse ao Direito, também a tivesse escolhido. Assim, em face da intangibilidade da psique do agente, é impossível comprovar se a decisão é, ou não, correta”. 234 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2004. p. 80: “Em síntese: para detectar o desvio de poder estranho a qualquer interesse público, cumpre analisar todo o conjunto de circunstâncias que envolve o ato, verificando-se, assim, se a discricionariedade alegável foi bem usada ou se correspondeu apenas a um pretexto para violar o fim legal e saciar objetivos pessoais. Para tanto, examinam-se seus antecedentes, fatos que o circundam, momento em que foi editado, fragilidade ou densidade dos motivos que o embasam, ocorrência ou inocorrência de fatores que poderiam interferir com a serenidade do agente, usualidade ou excepcionalidade da providência adotada, congruência do ato com anterior conduta administrativa e até mesmo características da personalidade do agente exibidas em sua atuação administrativa”. 235 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 37. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2011. p. 115: “O ato praticado com desvio de finalidade – como todo ato ilícito ou imoral – ou é consumado às escondidas ou se apresenta disfarçado sob o capuz da legalidade e do interesse público. Diante disto, há que ser surpreendido e identificado por indícios e circunstâncias que revelem a distorção do fim legal, substituído habilidosamente por um fim ilegal ou imoral não desejado pelo legislador. [...]. Dentre os elementos indiciários do desvio de finalidade está a falta de motivo ou a discordância dos motivos com o ato praticado”. 236 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. O desvio de poder é vício de legalidade que invalida o ato. Disponível em: <http://genjuridico.com.br/2016/03/29/o-desvio-de-poder-e-vicio-de-legalidade-que-invalida-o-ato/> . Acesso em: 24 maio 2019. 237 , GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. O Desvio de poder em atos administrativos. In: MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de; NOHARA, Irene Patrícia; MARRARA, Thiago. (Org.). Direito e Administração Pública: estudos em homenagem a Maria Sylvia Zanella Di Pietro. São Paulo: Atlas, 2013, v. 01,, p. 795-821: “Daí assentar a doutrina que o desvio de poder se identificar por meio de um feixe de indícios convergentes, dado que é um ilícito caracterizado pelo disfarce, pelo embuste, pela aparência de legalidade, para encobrir o propósito de atingir um fim contrário ao direito”
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viciada pode servir apenas como meio de prova para a constatação de um vício objetivo inerente à capacidade do agente, é dizer, trata-se de um vício porque objetivamente apura-se um descompasso entre a atuação concreta do agente – eventualmente viciada pela vontade do sujeito – e o que deveria ser feito no exercício de uma competência pública.238
O desvio de poder e de finalidade são vícios de natureza legal e objetiva239.
Endossando esse posicionamento, Enterría e Fernández pontuam que:
O que se controla por meio desta técnica é o cumprimento do fim específico indicado pela norma habilitante e esse controle é feito mediante critérios jurídicos estritos, e não por meio de regras morais (tal aspecto foi lembrado de forma oportuna pelo Preâmbulo da LJ de 1956). O que está em jogo, portanto, é a legalidade administrativa e não a moralidade do servidor ou da própria Administração.240
O escopo da função administrativa é atender ao interesse público mediante
atos emitidos por autoridade competente e com finalidade específica241, pouco
importando a vontade do agente, a qual é subjetiva242. Dinorá Grotti ensina que:
[...] via de consequência, se o vício possui natureza objetiva, não há que se buscar a intenção do agente para se verificar a constatação e posterior reprimenda do desvio de poder, basta apenas verificar objetivamente o descompasso existente entre a finalidade atingida pelo ato concreto e a finalidade da norma em abstrato.243
238 PIRES, Luis Manuel Fonseca. Controle Judicial da Discricionariedade Administrativa. 2. ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2013. p. 193. 239 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. O desvio de poder. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. 172:1-19. abr.-jun.1998. “Temos insistido em que, no desvio de poder, o vício existente é de natureza objetiva, pois se aloja sempre na finalidade; nunca na incorreta intenção do agente (mesmo quando ela ocorra), razão por que não se deve qualifica-lo como um vício subjetivo em nenhuma hipótese. [...]. Assim, o que invalida o ato é o descompasso objetivo entre o fim juridicamente previsto na regra de direito e o fim por ele realizado”. 240 ENTERRÌA, Eduardo García de; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. São Paulo. p. 447. 241 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2004. p. 67: “A teoria do desvio de poder teve o mérito de focalizar a noção do interesse público como centro da legalidade do ato administrativo. A administração está obrigada, no exercício de suas atividades, a cumprir determinados objetivos sociais e, para alcança-los, obedece a um princípio de especialização funcional: a cada atribuição corresponde um fim próprio que não pode ser desnaturado”. 242 PIRES, Luis Manuel Fonseca. Controle Judicial da Discricionariedade Administrativa. 2. ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2013. p. 236. 243 GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. O desvio de poder em atos administrativos. In: MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de; NOHARA, Irene Patrícia; MARRARA, Thiago. (Org.). Direito e Administração Pública: estudos em homenagem a Maria Sylvia Zanella Di Pietro. São Paulo: Atlas, 2013, v. 01, p. 795-821.
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Em sentido antagônico ao nosso posicionamento, Celso Antônio Bandeira de
Mello defende que o móvel do agente só é irrelevante nos atos vinculados, de modo
que se isso ocorrer na função discricionária, o ato será inválido244.
Tudo o que foi dito até aqui acerca de discricionariedade administrativa,
princípio da finalidade, desvio de poder e de finalidade são ensaios que contornam o
tema central do trabalho, sendo necessária uma avalição desses assuntos sob o
viés da atividade legislativa, inclusive para saber se estes conceitos são transferíveis
e adaptáveis à função legiferante.245
2.3 Discricionariedade legislativa
A discricionariedade, embora seja vedada às decisões judiciais246, existe tanto
nas funções administrativas como nas funções legislativas. Mas há várias
distinções.247
O ato administrativo de competência discricionária somente se destina ao
cumprimento de finalidade já delineada em lei248. Diferentemente disso, a função
legislativa tem a capacidade de inovar no ordenamento jurídico, agregando valores e
gerando pressupostos e finalidades.
Os valores a serem agregados pela norma durante a atividade legiferante
devem ser extraídos do ordenamento jurídico como um todo, cabendo ao legislador,
dentro de sua discricionariedade, aduzir qual o melhor caminho para cumprir o
244 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2013. p. 403-404: “A vontade – e, portanto, o móvel do agente – só é relevante nos atos administrativos praticados no exercício de competência discricionária [...]. Nestes casos, se o móvel do agente for viciado por sentimentos de favoritismo ou perseguição, o ato será inválido. Reversamente, o exame da vontade – e, portanto, o móvel do agente – é absolutamente irrelevante quando o ato for completamente vinculado”. 245 SERRANO, Pedro Estevam A. P. O desvio de poder na função legislativa. São Paulo: Editora FTD, 1997. p. 28. 246 ABBOUD, Georges. Discricionariedade Administrativa e Judicial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 321: “Admitir a inserção da discricionariedade para solução de questões jurídicas constitui, ainda, enorme retrocesso em termos democráticos, pelo simples fato de que a discricionariedade confere um salvo conduto ao julgador e uma imunização da decisão que a contém, tornando impossível contrastar seu acerto ou desacerto, o que, em última instância, impede a aferição da sua própria constitucionalidade”. 247 SERRANO, Pedro Estevam A. P. O desvio de poder na função legislativa. São Paulo: Editora FTD, 1997. p. 82. 248 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2013. p. 992: “A função administrativa é subordinada à função legislativa [...] a atividade administrativa encontra um limite formalmente insuperável na lei, a qual pode colocar proibições a determinadas atividades, tanto no que concerne à finalidade a atingir, quanto no que respeita aos meios e às formas a serem seguidas para tal escopo”.
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interesse público.249
Existem princípios que, muito embora não sejam colunas cervicais do sistema
jurídico, possuem outra finalidade: indicar os rumos da pátria250. Esses standards
indicam a diretriz nacional. A concretização desses valores ocorre de formas
variadas, em especial pela edição de normas, o que se materializa dentro da
discricionariedade do legislador.251
Nas palavras de Pedro Serrano, discricionariedade legislativa é a “designação
das margens de liberdade de valoração própria do legislador, quando ocorrentes
diretrizes materiais heterônomas (meio), em vista da obtenção de fins positivamente
vinculados”252.
Tácito verbera que “no exercício de suas atribuições e nas matérias a eles
afetas, os órgãos legislativos, em princípio, gozam de discricionariedade peculiar à
função política que desempenham”253.
Em outras palavras, a discricionariedade administrativa cumpre a finalidade
posta na lei. Já a discricionariedade legislativa cumpre os fins postos na Constituição
e nos Tratados Internacionais, e também cria outras finalidades e valores a serem
buscados. A liberdade da atividade legiferante é infinitamente maior do que a
atividade administrativa.
A barreira da discricionariedade legislativa é apenas não atuar contra a
Constituição e os Tratados Internacionais. Já a discricionariedade administrativa
encontra inúmeros óbices, a começar pelo fato de estar vinculada à lei que
249 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Editora Malheiros, 2008. p. 69-70: O exercício da atividade legislativa consiste no início do processo de concretização dos princípios constitucionais. [...]. Se o princípio constitucional é a exigência de busca de um fim, sem indicação de um meio, a norma legislativa é a indicação desse meio”. 250 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 5. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2015. p. 244: “No plano jurídico, eles funcionam como referencial geral para o intérprete, como um farol que ilumina os caminhos a serem percorridos. De fato, são os princípios que dão identidade ideológica e ética ao sistema jurídico, apontando objetivos e caminhos”. 251 CAMMAROSANO, Márcio. O princípio constitucional da moralidade e o exercício da função administrativa. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2006. p. 27-28: “Que todos querem que seja feita justiça, dúvida não há; que todos querem boas administrações, não se discute; que cumpre erradicar a miséria, parece consenso. Mas como fazer justiça, como avaliar uma administração para que se a tenha como péssima, razoável, boa ou excelente, ou como erradicar a miséria, a diversidade de juízos é muito maior do que se possa imaginar. Pode haver consenso quanto a alguns fins a serem atingidos, mas quanto aos meios certamente não”. 252 SERRANO, Pedro Estevam A. P. O desvio de poder na função legislativa. São Paulo: Editora FTD, 1997. p. 43. 253 TÁCITO, Caio. O desvio de poder no controle dos atos administrativos, legislativos e jurisdicionais. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. 188:1-13. abr.-jun. 1992.
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regulamenta o ato254.
Como se não bastasse, a função legiferante, desde que atuando dentro de
sua competência e sem ofensa à legislação hierarquicamente superior, pode
escolher soberanamente os assuntos a se tornarem norma, optando livremente
como será regulamentada as relações sociais, econômicas, políticas, etc. Em
contrapartida, a função administrativa apenas deve valorar o meio mais apto a
executar o fim já previsto em lei255.
Discricionariedade legislativa é início (cria), meio (determina como) e fim
(elenca a finalidade). Apenas será meio quando visar dar cumprimento a um desejo
constitucional específico, a exemplo da regulamentação de um direito fundamental.
Já a discricionariedade administrativa é apenas o meio criado pela lei para executar
um determinado fim posto na norma, o que ocorre em deferência ao princípio da
finalidade.256
Insta salientar que o interesse público deve ser observado tanto no momento
de elaboração da norma (função legislativa) como na sua execução (ato
administrativo). Na esteira do que ensina Maria Sylvia Zanella di Pietro, o interesse
público “inspira o legislador e vincula a autoridade administrativa em toda a sua
254 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2013. p. 997: “Assim como o ato administrativo está assujeitado à lei, às finalidades nela prestigiadas, a lei está assujeitada à Constituição, aos desideratos ali consagrados e aos valores encarecidos neste plano superior. Demais disto, assim como um ato administrativo não pode buscar escopo distinto do que seja específico à específica norma legal que lhe sirva de arrimo, também não pode a lei buscar objetivo diverso do que seja inerente ao específico dispositivo constitucional a que esteja atrelada a disposição legiferante expedida. Ou seja, se a Constituição habilita legislar em vista de dado escopo, a lei não pode ser produzida com traição a ele. É certamente verdadeiro que o desvio de poder poderá muito mais frequentemente encontrar espaço para irromper em atos administrativos do que em leis. A razão disto demora em que a margem de discrição dos primeiros em relação à lei será (de regra, ao menos) muito menor do que a margem de discrição da lei em relação à Constituição”. 255 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2012. p. 67: “A liberdade do legislador é mais ampla, porque seu único limite é a Constituição; como diz Stassinopoulos, a liberdade do legislador ‘abrange o domínio inteiro das relações jurídicas para as quais nada foi previsto na Constituição. [...]. Ao contrário, o Poder Executivo ou se encontra vinculado pela lei, em todos os casos em que a lei regulou a matéria, ou se encontra na impossibilidade de agir, não tendo a faculdade de limitar a vontade de quem quer que seja, no caso, aliás, bastante raro, em que a lei nada previu a esse respeito’. Além disso, ‘a liberdade do legislador ainda é diferente do poder discricionário por uma outra razão: o legislador escolhe as regras de direito, apreciando livremente as tendências e as relações sociais, enquanto o órgão administrativo está sempre a serviço da lei e a sua tarefa consiste em encontrar a melhor maneira de realizar a vontade do legislador”. 256 HERINGER JÚNIOR, Bruno. Desvio de poder legislativo: fundamentos jurídico-constitucionais para sua sindicância judicial. Revista do Curso de Direito da FSG. Caxias do Sul. Ano 2. nº 4. jul-dez. 2008. p. 28: “Não há dúvida de que a discricionariedade do legislador é profundamente maior que a do administrador; contudo, isso não significa que também a lei não possa desbordar de seus limites”.
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atuação”257.
As leis atendem ao interesse público até mesmo quando regulamentam
situações concretas, uma vez que isso, reflexamente, atende ao bem-estar
coletivo258. O objetivo sempre é o interesse público, pressuposto da República259.
2.3.1 Noção geral dos limites da atividade legislativa
O constituinte delimitou os perímetros de atuação do legislador, o qual tem a
prerrogativa de: (a) materializar um desejo constitucional para que o cidadão possa
exercer direitos e liberdades constitucionais e as prerrogativas inerentes à
nacionalidade, à soberania e à cidadania, cuja inércia desafia a interposição de
mandado de injunção (CF, Art. 5º, LXXI) e ação direta de inconstitucionalidade por
omissão (CF, Art. 103, §2º); e (b) inovar no ordenamento jurídico em sentido amplo,
desde que não haja contrariedade à Carta Magna e aos Tratados Internacionais (CF,
Art. 5º, §2), o que deve ocorrer dentro da área de competência e autonomia da Casa
Legislativa260.
Outrossim, também é possível a alteração da Constituição por meio de
emenda: (a) de no mínimo um terço dos membros da Câmara dos Deputados ou do
Senado Federal, (CF, Art. 60, I); (b) do Presidente da República (CF, Art. 60, II), ou
(c) de mais da metade das Assembleias Legislativas, cada qual anuindo pela maioria
relativa de seus membros (CF, Art. 60, III).
257 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2012. p. 65. 258 ZOCKUN, Maurício. Responsabilidade patrimonial do Estado. São Paulo: Editora Malheiros, 2010. p. 73: “[...] o ato legislativo poderá ser geral e abstrato ou geral e concreto. Se for geral e abstrato, o ato legislativo será aplicável a todos que preencham as condições descritas no seu ‘suporte fático’, que podendo ter seus efeitos reproduzidos tantas vezes quantas se verifique a efetiva ocorrência do ‘suporte fático’. Se for geral e concreto, o ato legislativo admite que uma classe determinável de sujeitos possa preencher o ‘suporte fático’, mas seu efeito não é passível de produção”. 259 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2012. p. 66 e 79: “[...] as normas de direito público, embora protejam reflexamente o interesse individual, têm o objetivo primordial de atender ao interesse público, ao bem-estar coletivo. [...]. O legislador, ainda quando estabelece normas para proteger o direito individual, tem o objetivo primordial de atender ao interesse público, ao bem-estar coletivo; a Administração Pública não pode desviar-se de fins de interesse público, sob pena de ilegalidade, por desvio de poder”. 260 SERRANO, Pedro Estevam A. P. O desvio de poder na função legislativa. São Paulo: Editora FTD, 1997. p. 23-26.
61
Para a criação de quaisquer dessas normas é necessário cumprir um
procedimento formal (devido processo legislativo)261 com inúmeros atos a serem
observados262 (CF, Art. 59 a 69)263.
Está abrangida por essas exigências a exteriorização dos motivos que
ensejaram a propositura da norma264, além de ser facultado aos parlamentares
justificarem porque estão votando dessa ou daquela maneira.
Para além de ser uma determinação legal, isso torna mais transparente a
atuação da Casa Legislativa na medida em que evidenciam quais fundamentos
fáticos, econômicos, sociais, políticos e jurídicos levaram à edição da legislação,
viabilizando o controle de compatibilidade com a Constituição, não obstante permitir
que os eleitores conheçam a atuação do seu representante265, o que é fundamental
em uma República.
A finalidade do ato legislativo é cumprir os princípios norteadores e os desejos
constitucionais, além de regulamentar situações sociais, políticas e econômicas
261 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Editora Almedina, 2003. p. 871: “[...] o procedimento legislativo é um complexo de actos, qualitativa e funcionalmente heterogéneos e autónomos, praticados por sujeitos diversos e dirigidos à produção de uma lei do Parlamento. Noutros termos: procedimento legislativo é a forma da função legislativa, isto é, o modo ou iter segundo o qual se opera a exteriorização do poder legislativo”. 262 ZOCKUN, Maurício. Responsabilidade patrimonial do Estado. São Paulo: Editora Malheiros, 2010. p. 174. 263 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 37. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2011. p. 766: “O processo legislativo, tendo, atualmente, contorno constitucional de observância obrigatória em todas as Câmaras (arts. 59 a 69) e normas regimentais próprias de cada corporação, tornou-se passível de controle judicial para resguardo da legalidade de sua tramitação e legitimidade da elaboração da lei”. 264 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Editora Malheiros, 2008. p. 231: “O legislador, para editar uma lei, deve atentar para as circunstâncias fáticas. [...] pode levar em consideração, na sua ponderação, fatos do passado – o que ocorreu nos últimos anos, por exemplo -, fatos do presente – o que vem ocorrendo – e fatos do futuro – o que deve ocorrer”. 265 SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 8. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2012. p. 29: “O Estado, como estrutura social, carece de vontade real e própria. Manifesta-se por seus órgãos, que não exprimem senão vontade exclusivamente humana. Os órgãos do Estado são supremos (constitucionais) ou dependentes (administrativos). [...]. O Governo é, então, o conjunto de órgãos mediante os quais a vontade do Estado é formulada, expressada e realizada, ou o conjunto de órgãos supremos a quem incumbe o exercício das funções do poder político. Este se manifesta mediante suas funções, que são exercidas e cumpridas pelos órgãos de governo. Vale dizer, portanto, que o poder político, uno, indivisível e indelegável, se desdobra e se compõe de várias funções – fato que permite falar em distinção das funções, que fundamentalmente são três: a legislativa, a executiva e a jurisdicional”.
62
diversas266, inclusive para “traçar as finalidades que a Administração deve perseguir,
estabelecendo meios e modos pelos quais serão perseguidas”267.
Há um grande espaço para a atividade legislativa, o que não se faz presente
no ato administrativo, mormente porque este apenas executa a lei, sem inovar no
mundo jurídico.
Isso faz toda a diferença268. O ato administrativo é engessado à lei e possui
finalidades específicas269. Já a atividade legiferante pode criar qualquer norma
desde que não contrarie a Constituição em questões formais ou materiais270.
Embora seja ampla, a atividade legiferante não é absoluta271, mesmo porque,
“nas democracias não se tolera exercício do poder sem controle”272. Além disso, em
que pese o seu conteúdo possa não contrariar a Constituição, é possível que a
norma seja inconstitucional por esbarrar em valores implícitos273.
2.3.2 Finalidade legislativa e excesso na função legiferante
266 SERRANO, Pedro Estevam A. P. O desvio de poder na função legislativa. São Paulo: Editora FTD, 1997. p. 53: “A rigor, a finalidade pode ser reduzida à competência”. 267 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. O desvio de poder. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. 172:1-19. abr.-jun.1998. 268 SERRANO, Pedro Estevam A. P. O desvio de poder na função legislativa. São Paulo: Editora FTD, 1997. p. 92: “O vício do desvio de finalidade por inidoneidade do meio tem ampla possibilidade de incidência na atividade administrativa, porque o caráter de infralegalidade da atividade dá, à natureza do vínculo criado, um substrato conotativo muito maior que na relação de vínculo Lei-Constituição”. 269 SERRANO, Pedro Estevam A. P. O desvio de poder na função legislativa. São Paulo: Editora FTD, 1997. p. 92: “A lei sempre traz uma determinação de ‘lago’ material a realizar. [...] o que permite ao intérprete precisar [...] qual a providência material a ser adotada pela Administração”. 270 SERRANO, Pedro Estevam A. P. O desvio de poder na função legislativa. São Paulo: Editora FTD, 1997. p. 92: “A relação Lei-Constituição é diferente diante da natureza jurídica criadora da lei. À lei incumbe criar relações jurídicas abstratas, estipular originariamente no sistema relações de direito-obrigação à luz dos valores, princípios e comandos constitucionais. [...]. Diversas outras normas e princípios estipulam valores e fins a ser alcançados por qualquer dos ‘meios’ legislativos”. 271 ZOCKUN, Maurício. Responsabilidade patrimonial do Estado. São Paulo: Editora Malheiros, 2010. p. 120: “Ora, do fato do poder estatal ser soberano não se segue a outorga de um ‘cheque em branco’ para que seus exercentes possam produzir atos normativos com conteúdo irrestrito e ilimitado. A soberania não é sinônimo de arbítrio ou de incondicional liberdade; é sinônimo de republicana responsabilidade. Logo, se nenhum ato estatal pode ser produzido em desconformidade com os limites prescritos pela ordem jurídica, caso isso venha a ocorrer, o ato soberano produzido pelo Estado será ilícito”. 272 NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. Abuso do poder de legislar. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004. p. 112. 273 SUNDFELD, Carlos Ari. Inconstitucionalidade por desvio de Poder Legislativo. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. São Paulo. Revista dos Tribunais. 1994. nº 8. p. 138: “A atividade legislativa está sujeita a limites jurídicos; não é, destarte, uma operação livre. O Legislativo não é um Poder soberano, mas, como os demais, um poder subordinado à ordem jurídica. [...]. O legislador nunca é totalmente livre”.
63
A lei inova na ordem jurídica (fonte primária), já o ato administrativo não,
apenas a executa (fonte secundária)274. Embora tenham similitudes, as formas de
desvio de poder e de finalidade desses institutos se distinguem.275
Na atividade administrativa o desvio se constata objetivamente. Trata-se de
uma questão de legalidade. O agente deve lavrar ato de sua competência buscando
um interesse público específico. Já na atuação legiferante os limites são
diferentes276 e se dividem em dois aspectos277.
Primeiro. É necessário que o conteúdo da norma se filie à finalidade a que ela
se destina, sob pena de se configurar o desvio278. Para constatar o fim almejado é
necessário adentrar às justificativas que ensejaram a sua propositura. Só é plausível
falar em “desvio” se houver uma finalidade delimitada279, o que se extrai dos
argumentos utilizados para a edição da legislação.
Um exemplo citado por Pedro Serrano é a competência de regulamentação
da atividade da advocacia (CF, Art. 5º, XIII)280. A finalidade é proteger a sociedade
da má prestação de serviços jurídicos, não podendo, nestes casos, o legislador ao
274 SANTOS, Gustavo Ferreira. Excesso de poder no exercício da função legislativa. Revista de Informação Legislativa. Brasília. A.35. 140. out.-dez. 1998. p. 287. 275 Com relação ao desvio de poder e o desvio de finalidade, Pedro Serrano traz três distinções que justificam reflexos distintos para casos envolvendo o ato administrativo e aqueles casos envolvendo a atividade legislativa. Primeiro, distinção funcional (a lei inova no ordenamento jurídico, já o ato administrativo não goza dessa prerrogativa). Segunda, distinção hierárquica: o ato administrativo encontra fundamento de validade na lei. Terceira, distinção teleológica, eis que a função legislativa muitas vezes é exercida para criação de fins, os quais são atingidos pela administração (meio). (SERRANO, Pedro Estevam A. P. O desvio de poder na função legislativa. São Paulo: Editora FTD, 1997. p. 15). 276 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2013. p. 411: “O desvio de poder não é mácula jurídica privativa dos atos administrativos. Pode se apresentar, igualmente, por ocasião do exercício de atividade legislativa ou jurisdicional”. 277 SANTOS, Gustavo Ferreira. Excesso de poder no exercício da função legislativa. Revista de Informação Legislativa. Brasília. A.35. 140. out.-dez. 1998. p. 287: “Não podemos aceitar uma posição que vê a tarefa do legislador como totalmente livre de condicionantes. Mas, por outro lado, não podemos tomar como verdadeira a visão segundo a qual o legislador é apenas um mero executor das tarefas já definidas pelo constituinte”. 278 HERINGER JÚNIOR, Bruno. Desvio de poder legislativo: fundamentos jurídico-constitucionais para sua sindicância judicial. Revista do Curso de Direito da FSG. Caxias do Sul. Ano 2. nº 4. jul.-dez.2008. p. 29: “Assim, um ato do Poder Legislativo, ainda que fundado em competência constitucional e formalmente válido, pode apresentar vícios intrínsecos, decorrente do divórcio em relação ao fim a que persegue ou deveria perseguir”. 279 SERRANO, Pedro Estevam A. P. O desvio de poder na função legislativa. São Paulo: Editora FTD, 1997. p. 78: “[...] só há sentido em falarmos em desvio de poder se a competência legislativa observada for positivamente vinculada nos fins, ou seja, se estiver destinada a persegui-los, a realizar sua prossecução. [...] A ideia de desvio de poder traz a noção de desviar-se de um caminho que leva a um destino. Assim há que se ter o destino, mas há que se ter um caminho também”. 280 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: de 5 de outubro de 1988. “Art. 5º [..] XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.
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fazer tal regulamentação, asseverar que o exercício da profissão ficará adstrito
àqueles que estiverem em dia com os seus impostos federais. Tal condicionante é
inconstitucional, uma vez que isto não tem nexo com o fim proposto281. Daí a
necessidade de se conhecer os motivos da norma.
Segundo. É necessário que o fim almejado pela legislação seja alcançado por
meios proporcionais e razoáveis. Isto porque, dada a amplitude da
discricionariedade legislativa, abusos podem ser perpetrados.
A arbitrariedade no âmbito da função legiferante se constata pelo viés da
proporcionalidade e da razoabilidade, uma vez que, a legislação, embora não
contrarie o ordenamento da maneira objetiva, pode ser extravagante, atraindo o que
é conhecido como “excesso de poder”282.
É preponderante que a lei seja proporcional e razoável com a finalidade
almejada283, evitando, assim, excessos e arbitrariedades que poderiam ser
legitimados com o singelo preenchimento dos aspectos constitucionais explícitos284.
281 SERRANO, Pedro Estevam A. P. O desvio de poder na função legislativa. São Paulo: Editora FTD, 1997. p. 95. 282 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O devido processo legal e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. São Paulo: Editora Forense, 2010. p. 159: “Para que as normas criadoras de distinção jurídica não sejam arbitrárias é fundamental, além de objeto constitucional válido, que subsista satisfatória compatibilidade entre a classificação normativa em si e o fim a que ela se destina. Ausente essa relação de identidade teleológica o ato-regra se apresentará ‘irrazoável’ e ‘irracional’, destarte, arbitrário e incondizente com o sistema constitucional por definição voltado à eliminação do arbítrio”. 283 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Editora Almedina, 1993. p. 384: “Quando se chegar à conclusão da necessidade e adequação do meio para alcançar determinado fim, mesmo neste caso deve perguntar-se se o resultado obtido com a intervenção é proporcional à carga coactiva da mesma”. 284 MENDES, Conrado Hübner. Direitos Fundamentais, Separação de Poderes e Deliberação. 2008. p. 121. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8131/tde-05122008-162952/pt-br.php>. Acesso em: 01 mar. 2019. “A proporcionalidade corresponde a uma moldura analítica para racionalizar a adjudicação sobre a validade de restrições a direitos fundamentais. Consiste em três passos, ou melhor, submete a legislação a três testes. Em primeiro lugar, ao teste da legitimidade e adequação: verifica se os fins buscados pelo legislador são legítimos e se os meios utilizados têm conexão racional com a persecução daqueles fins. Em seguida, ao teste da necessidade: examina se esses meios são realmente necessários, ou se haveria outro menos gravoso, com capacidade de atingir o mesmo fim. Por último, submete a lei ao teste da ‘proporcionalidade em sentido estrito’, o que mais se aproxima de uma avaliação de custo-benefício: confere se, no caso, a prevalência de um direito sobre outro é proporcional. O legislador tem o dever de otimizar a promoção de um valor e minimizar a eventual restrição a direito. Basicamente, este último consiste num sopesamento de valores. Se a lei falha, segundo a opinião judicial, em qualquer desses testes, ela é inconstitucional. [...]. Constata que o exame de proporcionalidade se expandiu para os julgamentos de todas as cortes constitucionais das democracias minimamente estáveis no mundo. É o ‘parâmetro de melhor prática’ (best-practice standard) da jurisprudência constitucional, a técnica dominante sobre adjudicação de direitos. Uma característica já dada como inerente ao constitucionalismo, um ‘critério de perfeição’ do estado de direito. ”
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Se assim não fosse, a legislação poderia se transformar em mecanismo de
privilégio e perseguição285, cujos atos seriam repugnáveis286 e caminhariam na
contramão da essência republicana287.
A proporcionalidade e a razoabilidade são parâmetros do devido processo
legal em geral288-289, o que também abrange a formação das normas290. Na visão de
Hely Lopes Meirelles, “sem dúvida, pode ser chamado de princípio da proibição de
excesso, que, em última análise, objetiva aferir a compatibilidade entre os meios e
os fins, de modo a evitar restrições desnecessárias ou abusivas”291.
Para Gilmar Mendes,
O vício de inconstitucionalidade substancial decorrente do excesso de poder legislativo constitua um dos mais tormentosos temas do
285 HERINGER JÚNIOR, Bruno. Desvio de poder legislativo: fundamentos jurídico-constitucionais para sua sindicância judicial. Revista do Curso de Direito da FSG. Caxias do Sul. Ano 2. nº 4. jul.-dez. 2008. p. 25-34. 286 “O Estado não pode legislar abusivamente. A atividade legislativa está necessariamente sujeita a rígida observância de diretriz fundamental, que, encontrado suporte teórico no princípio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público. O princípio da proporcionalidade – que extrai a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquele que veicula a garantia do substantive due process of law – acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais.” BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MC na ADIN nº 1407. Relator: Ministro Celso de Mello. Brasília, DF. Diário da Justiça: 24 nov. 2000. 287 PIÇARRA, Nuno. A Separação dos Poderes como Doutrina e Princípio Constitucional. Coimbra Editora Limitada, 1989. p. 261. “A validade da lei já não está em si própria mas na sua conformidade ou compatibilidade com os objetivos e os princípios constitucionais”. 288 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 1.063/DF. Relator: Ministro Celso de Mello. Brasília, DF. Diário da Justiça: 27 abr..2007. 289 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MC na ADI nº 2.290-3. Brasília, DF. Diário da Justiça: 23 fev. 2011. 290 “[...]. Todos os atos emanados do poder público estão necessariamente sujeitos, para efeito de sua validade material, à indeclinável observância de padrões mínimos de razoabilidade. - As normas legais devem observar, no processo de sua formulação, critérios de razoabilidade que guardem estrita consonância com os padrões fundados no princípio da proporcionalidade, pois todos os atos emanados do poder público devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do ‘substantive due process of law’. Lei distrital que, no caso, não observa padrões mínimos de razoabilidade. A exigência de razoabilidade qualifica-se como parâmetro de aferição da constitucionalidade material dos atos estatais. - a exigência de razoabilidade - que visa a inibir e a neutralizar eventuais abusos do poder público, notadamente no desempenho de suas funções normativas - atua, enquanto categoria fundamental de limitação dos excessos emanados do Estado, como verdadeiro parâmetro de aferição da constitucionalidade material dos atos estatais. Aplicabilidade da teoria do desvio de poder ao plano das atividades normativas do estado. - A teoria do desvio de poder, quando aplicada ao plano das atividades legislativas, permite que se contenham eventuais excessos decorrentes do exercício imoderado e arbitrário da competência institucional outorgada ao poder público, pois o Estado não pode, no desempenho de suas atribuições, dar causa à instauração de situações normativas que comprometam e afetem os fins que regem a prática da função de legislar”. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MC na ADI nº 2667/DF. Relator: Ministro Celso de Mello. Brasília, DF. Diário da Justiça: 12 mar. 2004. 291 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 37. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2011. p. 94.
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controle de constitucionalidade hodierno. Cuida-se de aferir a compatibilidade da lei com os fins constitucionalmente previstos ou de constatar a observância do princípio da proporcionalidade 292
O legislador não pode atuar de forma ilimitada293. Para saber se houve desvio
ou excesso é necessário levar em consideração inúmeros fatores jurídicos, políticos,
sociais, econômicos, dentre outros, o que reforça a necessidade de se declinar os
motivos que deram azo à edição da norma, tal qual como no ato administrativo.
Esses aspectos servem como parâmetros para o Judiciário aferir se o
legislador elegeu uma via arbitrária ou não294. A legislação será inconstitucional se
houver inadequação entre meios e fins utilizados295, seja por desvio ou falta de
proporcionalidade e razoabilidade296.
Há reiteradas decisões no sentido de que “o desvio de poder é surpreendido
no fato de a lei buscar finalidade visivelmente distinta daquela inerente ao objetivo
próprio da competência legislativa exercitada”297 ou utilizar expediente
desproporcional e desarrazoado, inclusive, a título de exemplificação, já há
entendimento sumulado pelo STF para se tornar “inadmissível a interdição de
292 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 4. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. p. 64. 293 NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. Abuso do poder de legislar. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004. p. 154: “A função de produzir o Direito, que materializa o exercício de uma competência constitucional, só se justifica e só é legítima quando regular. Portanto, toda forma de abuso de poder de legislar, seja porque a norma produzida visa a satisfazer um interesse particular ou interesse público diverso daquele que motivou a atribuição de competência pela Constituição, seja ainda porque os motivos determinantes do exercício do poder não se configuram, ou mesmo pela inconstitucionalidade do objeto, pode ser reconhecida e deve ser coibida”. 294 SERRANO, Pedro Estevam A. P. O desvio de poder na função legislativa. São Paulo: Editora FTD, 1997. p. 86-87: “É óbvio que há ‘excesso’ quando ocorrente o desvio de poder, no sentido do transbordamento dos limites constitucionais pelo legislador. [...]. Vemos aqui a conceituação mais habitual do vício de desvio de Poder Legislativo, qual seja, a que enfoca como inobservância do princípio constitucional da proporcionalidade, razoabilidade e da proibição do arbítrio”. 295 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 4. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. p. 72-73: “ A doutrina identifica como típica manifestação do excesso de Poder Legislativo a violação do princípio da proporcionalidade ou da proibição de excesso, que se revela mediante contraditoriedade, incongruência e irrazoabilidade, ou inadequação entre meios e fins”. 296 SERRANO, Pedro Estevam A. P. O desvio de poder na função legislativa. São Paulo: Editora FTD, 1997. p. 117: “Trata-se aí de averiguar se o meio escolhido pelo legislador se encontra no interior, ou fora, do plexo de possibilidades significativas do conceito normativo. Ocorrente, portanto, avaliação jurídica, interpretativa do Direito, e não avaliação sociológica. Não se socioligiza o jurídico mas sim se juridiciza o sociológico”. 297 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2013. p. 998.
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estabelecimento ou a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para
cobrança de tributos” (Súmulas 70 e 323/STF).298
De outro lado, se o conteúdo da norma contrariar a Constituição não há que
se falar em desvio de poder ou de finalidade. Na verdade, haverá
inconstitucionalidade material299. Uma ilustração que demonstra isso seria no caso
de um congressista do Rio Grande do Norte propor lei federal delegando a
competência tributária da União ao Município de Mossoró/RN, sua cidade de origem,
para tentar obter proveito político. Não se está diante de desvio de poder ou de
finalidade, mas de inconstitucionalidade material (CF, Art. 153).
2.3.3 A autonomia política do parlamentar para legislar
A autonomia para legislar é vasta300, cuja discricionariedade é muito mais
ampla do que na atividade administrativa301. A vontade do agente é absolutamente
irrelevante, tal qual como no ato administrativo.
Pouco importa a vertente do interesse ou da ideologia que norteia a norma,
mas apenas se ela desrespeita ou não a Constituição302, inclusive no que diz
respeito aos aspectos de finalidade, razoabilidade, proporcionalidade e, sobretudo,
em atender ao interesse público, seja de forma direta ou indireta303.
298 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula 70 e 323/STF. “É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo”. “É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos”. 299 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 4. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. p. 65: “O conceito de discricionariedade no âmbito da legislação traduz, a um só tempo, ideia de liberdade e de limitação. Reconhece-se ao legislador o poder de conformação dentro de limites estabelecidos pela Constituição. E, dentro desses limites, diferentes condutas podem ser consideradas legítimas”. 300 SERRANO, Pedro Estevam A. P. O desvio de poder na função legislativa. São Paulo: Editora FTD, 1997. p. 88. 301 FARIA, Edimur Ferreira de. Controle do mérito do ato administrativo pelo Judiciário. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2011. p. 143. 302 MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos. São Paulo: Saraiva. 1990. p. 42: “Não se trata de perquirir sobre a conveniência e oportunidade da lei, mas de precisar a congruência entre os fins constitucionalmente estabelecidos e o ato legislativo destinado à prossecução dessa finalidade”. 303 FARIA, Edimur Ferreira de. Controle do mérito do ato administrativo pelo Judiciário. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2011. p. 147: “O poder discricionário não pode ser utilizado em benefício de interesse particular e nem com a finalidade de prejudicar o inimigo ou adversário político. Deve ser exercido de acordo com o interesse geral, como quer a lei, consequência do Estado de Direito”.
68
Cabe exclusivamente ao legislador escolher os meios para concretizar os
princípios constitucionais, o que se materializa por intermédio das legislações.304
Trata-se de um ato de natureza eminentemente política305, o qual é exclusivo
do Parlamento, na linha do ensinamento de Enterría e Fernández.306
Caso o juiz atravesse a barreira para investigar o impacto da norma no âmbito
social, o magistrado estaria substituindo o legislador, o que é incompatível com o
Estado Democrático de Direito307. Elucida Hely Lopes Meirelles “que o Judiciário não
pode adentrar o mérito das deliberações da Mesa, das Comissões ou do Plenário,
nem deve perquirir as opções políticas que conduziram à aprovação ou rejeição dos
projetos, proposições ou vetos”.308
A própria teoria da Separação de Poderes delega à atividade política o
subjetivismo legislativo, que é quem está em sintonia com a população e se submete
ao crivo das urnas309. Não cabe ao juiz investigar o mérito do ato legislativo310 e nem
os fundamentos do parlamentar311. Essa função compete ao agente político312, real
304 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 37. ed. São Paulo Editora Malheiros, 2011. p. 764: “Daí o seu discricionarismo e, consequentemente, as maiores restrições para o controle judicial”. 305 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 37. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2011. p. 764: “Atos políticos são os que, praticados por agentes do Governo, no uso de competência constitucional, se fundam na ampla liberdade de apreciação da conveniência ou oportunidade de sua realização, sem se aterem a critério jurídicos estabelecidos”. 306 ENTERRÌA, Eduardo García de; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 180-181: “É óbvio que essa apreciação de fatos [...] nunca poderá significar uma substituição, pelo Tribunal Constitucional, do juízo de oportunidade política materializado na Lei, juízo que é da competência exclusiva dos órgãos legislativos, em virtude de sua ‘liberdade de configuração normativa’ que, em termos muito mais amplos que os de uma simples discricionariedade administrativa, já vimos que lhes cabe. Trata-se, simplesmente, mediante essa apreciação de circunstâncias, não de entrar em ponderações políticas, alheias que são estas à jurisdição do Tribunal, mas de verificar o cumprimento dos preceitos constitucionais, verificação que demanda, pela estrutura técnica própria de tais preceitos e dos conceitos de que se valem, uma análise de fatos concretos”. 307 SERRANO, Pedro Estevam A. P. O desvio de poder na função legislativa. São Paulo: Editora FTD, 1997. p. 97. 308 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 37. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2011. p. 766. 309 A separação de poderes é fundamental na limitação do poder político. Para Políbio, consoante ao que consta da obra de Nuno Piçarra, “a força de um poder, neutralizando a dos outros faz com que os diversos poderes se equilibrem, nenhum se exceda e o sistema político permaneça longamente em perfeito equilíbrio”. (PIÇARRA, Nuno. A Separação dos Poderes Como Doutrina e Princípio Constitucional. Coimbra: Editora Coimbra, 1989. Capítulo I). 310 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 37. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2011. p. 764-765. 311 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 4. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. p. 64. 312 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 37. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2011. p. 79: “[...] os agentes políticos precisam de ampla liberdade funcional e maior resguardo para o desempenho de suas funções”.
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intérprete dos anseios populares. São essas pessoas as responsáveis pela
condução dos destinos da sociedade.313
Pedro Serrano clarifica que “em nosso sistema jurídico-constitucional não
cabe a investigação de motivos do legislador. O vício casual ocasionador do desvio
de poder legislativo deve ser observado na relação objetiva meio-fim legal. [...] Isto
não implica verificar os ‘fins do legislador’, nem se a lei é boa ou má, se a prognose
legislativa foi bem ou malfeita. Implica apenas verificar a compatibilidade teleológica
da lei com a Constituição”314.
As normas que cuidam de situações concretas, em que pese sejam normais
em todos os ordenamentos315, merecem cuidados. Embora a vontade do legislador
seja desprezível, a legislação pode ser excessiva, seja para prejudicar ou favorecer
alguém, inclusive podendo ofender ao princípio da impessoalidade316.
Com efeito, a legislação que não é geral e abstrata pode fazer com que o
Parlamento “ao cuidar topicamente de cada caso, cada indivíduo, cada coisa ou
relação, construiria solução diversa, privilegiando uns e penalizando outros. Sempre
que o legislador abandona a generalidade e abstração e passa a cuidar de situações
concretas [...] tem-se forte indício de desvio de poder, erigido sobre os destroços do
princípio da igualdade”317.
Porém, não se pode olvidar que devido às complexidades do mundo
moderno, há situações que demandam a edição de normas de efeito concreto para
313 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2013. p. 252: “Exercem um múnus público. Vale dizer, o que os qualifica para o exercício das correspondentes funções não é a habilitação profissional, a aptidão técnica, mas a qualidade de cidadãos, membros da civitas e, por isto, candidatos possíveis à condução dos destinos da Sociedade”. 314 SERRANO, Pedro Estevam A. P. O desvio de poder na função legislativa. São Paulo: Editora FTD, 1997. p. 86-87: “É óbvio que há ‘excesso’ quando ocorrente o desvio de poder, no sentido do transbordamento dos limites constitucionais pelo legislador. [...]. Vemos aqui a conceituação mais habitual do vício de desvio de Poder Legislativo, qual seja, a que enfoca como inobservância do princípio constitucional da proporcionalidade, razoabilidade e da proibição do arbítrio”. 315 ENTERRÌA, Eduardo García de; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 443: “[...] não há nenhum inconveniente, em princípio, em se admitir leis singulares, que hoje são, além disso, absolutamente normais em todos os ordenamentos”. 316 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2013. p. 117: “Nem favoritismo nem perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosidades pessoais, políticas ou ideológicas não podem interferir na atuação administrativa e muito menos interesses sectários, de facções ou grupos de qualquer espécie”. 317 SUNDFELD, Carlos Ari. Princípio da impessoalidade e abuso do poder de legislar. Revista Trimestral de Direito Público, nº 5, p. 152-178.
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sanear questões específicas do interesse geral, o que demonstra a plena viabilidade
disso na sociedade contemporânea318.
Nestes casos deve-se aferir se o motivo, a motivação e o conteúdo se
harmonizam com a Constituição319, bem como se os meios são proporcionais e
razoáveis aos fins almejados320. Para Ronald Dworkin, “os conceitos de intenção
legislativa e os princípios do direito costumeiro são artifícios para a aplicação dessa
teoria política geral às questões controversas sobre os direitos jurídicos”.321
Calcado nessa vertente, Gustavo Santos ensina que “a limitação do poder do
legislador tem que ser operada por institutos jurídicos que se apresentem como
critérios objetivos, evitando remeter-nos a noções vagas, presas fáceis da
subjetividade do intérprete e aplicador, tais como a ideia de ‘justiça’ ou a exigência
de ‘bom senso’322”.
2.4 Da colocação do problema por vício do agente parlamentar na
atividade legiferante
O ordenamento jurídico optou pelo Presidencialismo Centralizado (CF, Art.
76)323, sistema em que o Poder Público concentra e atua abruptamente no meio
social e, com mais moderação, na economia324.
318 LUVIZOTTO, Juliana Cristina. Responsabilidade civil do Estado legislador. São Paulo: Editora Almedina, 2015. p. 101-108. 319 SERRANO, Pedro Estevam A. P. O desvio de poder na função legislativa. São Paulo: Editora FTD, 1997. p. 109-110: “Assim as leis individuais e concretas ou são inconstitucionais, quando restritoras de direitos e garantias fundamentais, ou são suscetíveis de ampla perquirição judicial quanto aos ‘motivos’ e ‘fins subjetivos’ do legislador, em cumprimento aos princípios constitucionais do Estado de Direito, da legalidade e da submissão à jurisdição de qualquer lesão a direitos. [...]. Nestes tipos de leis cabe ao Judiciário certificar-se da existência dos motivos declarados na motivação do legislador, bem como da relação casual entre motivo e conteúdo prescritivo em vista da finalidade da lei, competindo-lhe também o controle da compatibilidade dos fins da lei com o interesse público, de maneira a impugnar leis individuais que busquem perseguir ou beneficiar indevidamente alguém”. 320 NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. Abuso do poder de legislar. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004. p. 143: “O abuso, por sua vez, é o exercício irregular de um poder. O poder manipulado por um sujeito autorizado, porém exercido contrariamente aos fins (causas), modos (forma e objeto) ou motivos (âmbito ou situação regulada) para os quais foi concedido. Os atos abusivos praticados são ilícitos, contrários ao Direito. São um desvio quando fogem à finalidade e um excesso quando se desvirtuam o modo, afastando-se dos motivos que autorizam o exercício do poder (motivos determinantes) ou gerando um resultado ilegal (ilegalidade de objeto)”. 321 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. 3. ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2017. p. 165. 322 SANTOS, Gustavo Ferreira. Excesso de poder no exercício da função legislativa. Revista de Informação Legislativa. Brasília. A.35. 140. out.-dez. 1998. p. 288. 323 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: de 5 de outubro de 1988. “Art. 76. O Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado”.
71
Nesse contexto é natural que setores da iniciativa privada e grupos político-
partidários fiquem inclinados a influenciarem na elaboração da legislação para que
possam se beneficiar, o que faz parte da festa democrática. Há muitos interesses
ideológicos, sociais e econômicos em jogo.
Entrementes, isso pode ser conduzido pelo oferecimento de vantagem
indevida aos parlamentares, deixando dúvidas se o vício no móvel do agente tem
relevância nos limites da atividade legislativa.
A situação se mostra mais complexa quando se trata de Proposta de Emenda
Constitucional (PEC), sobretudo porque a única vedação nestes casos, desde que
não haja invasão de competência325, é a impossibilidade de abolir às cláusulas
pétreas (CF, Art. 60, §4º) e confabular com retrocessos. No mais, em respeito ao
princípio da unicidade da Constituição, tudo é permitido. Basta convencer os
congressistas de proporem e aprovarem a PEC, ocasião em que poderia haver
violação a preceitos republicanos.
Nestes casos o poder econômico não estaria simplesmente editando normas
constitucionais para favorecer determinados grupos, mas mudando a vertente
jurídica do país, o que é tormentoso.
Lado outro, também existem as hipóteses em que a legislação vai ao encontro
do interesse público, de modo que o parlamentar, por astúcia e corrupção,
condiciona o seu voto ao recebimento de vantagem indevida. Em outras palavras,
por mais que a legislação seja benéfica à coletividade, o agente condiciona o seu
voto ao proveito pessoal. Os capítulos subsequentes adentraram se essas questões
são aptas a gerar a inconstitucionalidade da norma ou não.
324 MORAES, Alexandre de. Presidencialismo. 2. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2013. p. 57: “[...] o Chefe de Estado acumula a chefia de governo, nomeando livremente seus ministros, secretários e funcionários de confiança e imprimindo o direcionamento para a condução dos negócios do país. Portanto, para a caracterização do presidencialismo, o principal tópico é a centralização e a personificação do Poder Executivo Central na figura do Presidente da República, exercente da mais alta magistratura do país – como a ele se referiram Jay, Hamilton e Madison – e de maior liderança política nacional. No regime presidencialista, portanto, as Chefias de Estado e de Governo estão reunidas em uma única autoridade, o presidente da República”. 325 Por mais que se trata de EC, há determinados temas sensíveis que competem exclusivamente ao Poder Judiciário na ótica do Min. Joaquim Barbosa, do STF, a exemplo da criação de Tribunais Regionais Federais (CF, Art. 96, II, “a” e “d”), ex vi da decisão lavrada MC na ADI 5017/DF, manejada em face da EC 73/2013, a qual encontra-se vazada nos seguintes termos: “A Constituição de 1988 (art. 96, II, a, b, c e d) manifestamente quis romper com o passado de dependência do Poder Judiciário em relação aos poderes políticos, ao conferir aos Tribunais Superiores e aos Tribunais de Justiça o poder de iniciativa quanto à ‘criação ou a extinção de tribunais’ (art. 96, II, c da Constituição). Este é um aspecto crucial da independência do Judiciário em nosso país”.
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3 VÍCIO NO PROCESSO
A função mais importante dentre a tripartição dos poderes é a legislativa. Os
parlamentares, escolhidos livremente pela soberania popular, editam normas
destinadas a toda coletividade. Posteriormente o Executivo e o Judiciário deverão
apenas acatá-las. O primeiro para administrar a sociedade e o segundo para dirimir
os conflitos, tudo ao pé da lei. Há uma supremacia legislativa.326
A legislação tem por objetivo regulamentar a vida em sociedade. Ela inova no
ordenamento jurídico. Para a sua formação há uma série de atos327, começando
com a propositura e finalizando com a promulgação.328
Esse procedimento se concretizada pela atuação dos agentes políticos, os
quais representam interesses e pautas pulverizadas de inúmeros braços sociais no
exercício do mandato eletivo, o que é absolutamente natural em uma democracia.
3.1 Questões jurídicas referentes à crise de legitimidade que abre espaço para
interesses espúrios no âmbito das Casas Legislativas
Os detentores do monopólio das candidaturas são os partidos políticos329 (CF,
Art. 14, §3º, V). Qualquer pessoa que deseja postular um cargo eletivo deve estar
326 ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2004. p. 50-51: “A teoria da divisão do poder conclui por afirmar que a atividade administrativa há de ser precedida pela legislativa. [...]. Editando normas abstratas e gerais, torna-se muito difícil ao legislador favorecer ou prejudicar deliberadamente os interesses particulares de determinado indivíduo. Além disto, a lei, uma vez publicada, escapa dos seus autores, pois a aplicação e a interpretação da lei são confiadas a outros órgãos distintos [...]. Elimina-se, destarte, todo o arbítrio estatal. Quem faz a lei não a aplica. Os que aplicam não a fazem (G. Balladore Pallieri, Diritto Constituzionale, 3. ed., p. 83)”. 327 SILVA, José Afonso da. Processo constitucional de formação das leis. 3. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2017. p. 43: “O processo legislativo pode ser definido em termos gerais como o complexo de atos necessários à concretização da função legislativa do Estado”. 328 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2011. p. 901: “O processo legislativo tem início quando alguém ou algum ente toma a iniciativa de apresentar uma proposta de criação de novo direito”. 329 BARRETO, Álvaro. Filiação partidária e elegibilidade: é possível avançarmos às candidaturas independentes? In: FUX, Luiz; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande; AGRA, Walber de Moura (Cood.); PECCININ, Luiz Eduardo (Org.). Elegibilidade e inelegibilidades. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 209 (Tratado de Direito Eleitoral, v.3.): “Após a atribuição do monopólio da apresentação de candidatura aos partidos – o que, como visto, ocorreu em 1945 -, as candidaturas independentes nunca mais foram permitidas na legislação do país. Reiteradas vezes, as instâncias da Justiça Eleitoral se manifestam sobre o tema, dando invariavelmente a mesma resposta: esse tipo de candidatura não encontra respaldo na lei”.
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devidamente filiada a uma agremiação pelo prazo mínimo de seis meses (Lei nº
9.504/97, Art. 9º).
Nada impede que o partido defina no seu estatuto a necessidade daquele que
pretenda disputar uma eleição estar filiado a mais tempo do que exigido pela
legislação. O propósito seria formar e amadurecer o candidato dentro das balizas
políticas e ideológicas da agremiação. Há autonomia constitucional para tanto (CF,
Art. 17, §1º).
A representatividade é excessivamente diversificada no Brasil. Um dos pontos
que contribui sobremaneira para isso é que existem trinta e cinco partidos políticos
registrados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).330
Como o pluralismo político é fundamento da República (CF, Art. 1º, V), até o
ano de 2018 vigorou o entendimento de que só o fato de se obter registro perante o
TSE já seria o suficiente para que as agremiações tivessem acesso aos recursos do
fundo partidário e ao tempo “gratuito” de rádio e de televisão (CF, Art. 17, §3º).
Essa previsão constitucional tem como objetivo a criação de instrumentos
para dar espaço político às novas agremiações e consequentemente possibilitar
representatividade às minorias que não se identificam com os partidos já
existentes331. Mas, na prática, isso tem causado inúmeros desdobramentos políticos,
jurídicos e deturpações democráticas.
Abusando da faculdade de livre criação de partidos (CF, Art. 17 c/c Lei nº
9.096/95), algumas pessoas fundavam agremiações com o objetivo de ter acesso a
recursos do fundo partidário e ao tempo de rádio e televisão para utilizá-los de
formas distantes das finalidades constitucionais332, inclusive como moeda de troca
para barganhar nos prélios eleitorais333 (secretarias, ministérios e inúmeros cargos
comissionados)334. Seriam os popularmente conhecidos “partidos de aluguéis”.
330 Disponível em: <http://www.tse.jus.br/partidos/partidos-politicos/registrados-no-tse>. Acesso em 25 jan. 2019. 331 FARIAS NETO, Pedro Sabino de. Ciência Política. São Paulo: Editora Atlas. 2011. p. 188: “O sistema proporcional proporciona a representação das minorias, pois assegura aos grupos minoritários a possibilidade de participar no poder e de não ficar sujeitos a ser governados pela maioria”. 332 O tempo de rádio e de televisão da Coligação é somando dentre as agremiações que a compõe. 333 Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/fachin-junta-investigacoes-que-tratam-de-compra-de-apoio-politico-em-campanha-21328084>. Acesso em: 02 abr. 2019. 334 FARIAS NETO, Pedro Sabino de. Ciência Política. São Paulo: Editora Atlas, 2011. p. 176: “Os grandes partidos só podem assumir o governo em função do acordo e do apoio de outros partidos. Desse modo, normalmente, não governam senão de forma compartilhada no contexto de coalizões e alianças partidárias. [...]. Os pequenos partidos ficam restritos a cargos secundários ou a críticas inócuas”.
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Visando inibir esse tipo de prática que vigorou por quase trinta anos (1988-
2018), foi editada a EC nº 97/2017, que alterou o artigo 17, §3º, da CF335, criando
cláusulas de desempenho aos partidos políticos e determinando que haja critérios
de performance para o recebimento dos valores do fundo partidário e tempo de rádio
e televisão, cuja regra passou a valer a partir das eleições de 2018.336
Em outras palavras, a partir do certame de 2018 se tornou necessário que os
partidos atinjam metas para serem agraciados com as benesses do fundo partidário
e do tempo de rádio e de televisão.
Outro ponto que merece atenção em razão do impacto na criação das leis,
mormente por causar distorções na representatividade parlamentar, é a formação de
coligações (Lei nº 9.504/97, Art. 6º).337
335 BRASIL. Emenda Constitucional nº 97, de 04 de outubro de 2017. Altera a Constituição Federal para vedar as coligações partidárias nas eleições proporcionais, estabelecer normas sobre acesso dos partidos políticos aos recursos do fundo partidário e ao tempo de propaganda gratuito no rádio e na televisão e dispor sobre regras de transição. “Art. 1º. A Constituição Federal passa a vigorar com as seguintes alterações: ‘Art. 17 [...] § 3º - Somente terão direito a recursos do fundo partidário e acesso gratuito ao rádio e à televisão, na forma da lei, os partidos políticos que alternativamente: I - obtiverem, nas eleições para a Câmara dos Deputados, no mínimo, 3% (três por cento) dos votos válidos, distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação, com um mínimo de 2% (dois por cento) dos votos válidos em cada uma delas; ou II - tiverem elegido pelo menos quinze Deputados Federais distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação. [...] § 5º Ao eleito por partido que não preencher os requisitos previstos no § 3º deste artigo é assegurado o mandato e facultada a filiação, sem perda do mandato, a outro partido que os tenha atingido, não sendo essa filiação considerada para fins de distribuição dos recursos do fundo partidário e de acesso gratuito ao tempo de rádio e de televisão.’ [...] Art. 3º. O disposto no § 3º do art. 17 da Constituição Federal quanto ao acesso dos partidos políticos aos recursos do fundo partidário e à propaganda gratuita no rádio e na televisão aplicar-se-á a partir das eleições de 2030. Parágrafo único. Terão acesso aos recursos do fundo partidário e à propaganda gratuita no rádio e na televisão os partidos políticos que: I - na legislatura seguinte às eleições de 2018: a) obtiverem, nas eleições para a Câmara dos Deputados, no mínimo, 1,5% (um e meio por cento) dos votos válidos, distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação, com um mínimo de 1% (um por cento) dos votos válidos em cada uma delas; ou b) tiverem elegido pelo menos nove Deputados Federais distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação; II - na legislatura seguinte às eleições de 2022: a) obtiverem, nas eleições para a Câmara dos Deputados, no mínimo, 2% (dois por cento) dos votos válidos, distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação, com um mínimo de 1% (um por cento) dos votos válidos em cada uma delas; ou b) tiverem elegido pelo menos onze Deputados Federais distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação; III - na legislatura seguinte às eleições de 2026: a) obtiverem, nas eleições para a Câmara dos Deputados, no mínimo, 2,5% (dois e meio por cento) dos votos válidos, distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação, com um mínimo de 1,5% (um e meio por cento) dos votos válidos em cada uma delas; ou b) tiverem elegido pelo menos treze Deputados Federais distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação”. 336 BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Petição nº 0601892-56.2018.6.00.0000. Relator: Ministro Tarcísio Vieira de Carvalho Neto. J.em: 19 dez. 2018. V.U.Brasília, DF.Diário da Justiça Eletrônico: 04 fev. 2019. Disponível em: <www.tse.jus.br>. 337 BRASIL. Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997. Estabelece normas para as eleições. “Art. 6º. É facultado aos partidos políticos, dentro da mesma circunscrição, celebrar coligações para eleição majoritária, proporcional, ou para ambas, podendo, neste último caso, formar-se mais de uma coligação para a eleição proporcional dentre os partidos que integram a coligação para o pleito majoritário”.
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Com a junção de vários partidos num único consórcio, os candidatos de baixa
densidade eleitoral podem ser eleitos com votação pífia em razão de que outro
candidato, de partido diverso, mas compondo a mesma coligação, obtenha votação
expressiva e acabe elevando o quociente partidário (CE, Art. 107), o que fará alargar
o número de eleitos daquele grupo, gerando aquilo que ficou conhecido como
“fenômeno Tiririca”, o que ocorreu em alusão ao Deputado Federal Tiririca que, em
2010, se elegeu com mais 1,3 milhão de votos, levando, reflexamente, outros três
candidatos para a Câmara Federal338.
Os dados mostram que menos de 10% (dez por cento) dos Deputados
Federais são eleitos por votação própria339. Além disso, “as coligações partidárias
apresentam prejudicial instabilidade, uma vez que podem ser feitas e desfeitas pelos
partidos a qualquer momento”340.
Para agravar a situação, a norma eleitoral não exige que nas disputas
proporcionais os candidatos divulguem em seus materiais de campanha os partidos
que compõem a eventual coligação (Lei nº 9.504/97, Art. 6º, §2º)341, cerceando o
eleitorado de ter clareza acerca do efeito do seu voto, uma vez que ao votar no
candidato do partido “a”, o cidadão pode acabar elegendo candidato do partido “b”,
ambos da mesma coligação, mas com pautas diversas, impulsionando o já tão
calamitoso déficit de representatividade.
A consequência disso é que ao fim do pleito proporcional o eleitor não sabe
ao certo quem elegeu e o eleito não sabe claramente quem são seus eleitores.
Resultado: depois o eleitor não sabe de quem cobrar uma atuação republicana
condizente e o eleito não sabe a quem prestar contas, tornando a atuação
parlamentar individualizada, inclusive no que tange às proposituras e votações das
legislações. O mandato ficaria aberto, prejudicando que o eleitor enxergue com
fidedignidade qual partido representa qual ideologia342.
338 Disponível em: <http://g1.globo.com/especiais/eleicoes-2010/noticia/2010/10/confira-puxadores-de-voto-que-ajudaram-eleger-outros-candidatos.html>. Acesso em: 01. mar..2019. 339 Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2016/04/19/politica/1461023531_819960.html> e <https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/noticia/2018/10/09/de-513-deputados-eleitos-na-camara-so-27-dependeram-dos-proprios-votos-para-se-eleger.ghtml>. Acesso em: 20 fev.2019. 340 FARIAS NETO, Pedro Sabino de. Ciência Política. São Paulo: Editora Atlas, 2011. p. 173. 341 341 BRASIL. Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997. Estabelece normas para as eleições. “Art. 6º [...] § 2º Na propaganda para eleição majoritária, a coligação usará, obrigatoriamente, sob sua denominação, as legendas de todos os partidos que a integram; na propaganda para eleição proporcional, cada partido usará apenas sua legenda sob o nome da coligação”. 342 Luís Roberto Barroso no artigo jurídico “A reforma política: uma proposta de sistema de governo, eleitoral e partidário para o Brasil”, publicado pela Revista de Direito do Estado (EDE), afirmou que:
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Reformas eleitorais são realizadas constantemente para aprimorar o sistema.
Mas há outro problema. Em matéria eleitoral o legislador é o direto destinatário da
norma, o que pode criar mais embaraços, não se olvidando do conturbado contexto
político que impulsiona essa atividade343.
Uma dessas reformas foi extremamente positiva (Lei nº 13.165/2015). Ficou
estabelecido que o candidato, independentemente do quociente partidário, deve
obter individualmente o mínimo 10% (dez por cento) do quociente eleitoral para ser
eleito (CE, Art. 108)344, o que não se aplica aos suplentes.
A EC nº 97, além de determinar cláusulas de barreiras, vedou a celebração
para eleições proporcionais a partir de 2020345. Essa contribuição será
significativamente benéfica para evitar a crise de legitimidade e fortalecer as
propostas legislativas. São necessárias várias outras alterações, as quais são
impróprias para maiores aprofundamentos neste trabalho.
Todo esse contexto gera enorme dificuldade para o Chefe do Executivo
governar, se transformando no fenômeno conhecido como “Presidencialismo de
Coalização”346.
Como passam a ter múltiplos partidos no Poder Legislativo, há grandes
chances de ocorrer o esvaziamento das ideologias, fazendo com que a atuação
“A baixa representatividade parlamentar é um problema grave devido ao fato de não existir democracia sem Parlamento nem legitimidade sem identificação entre eleitores e representantes. Consequência dessa distorção é o fato de ser comum que o eleitor, logo depois da eleição, não saiba mais em quem votou e que não acompanhe a atuação do Deputado que ajudou a eleger. O Deputado passa a possuir então uma procuração em branco”. 343 Há vasto material nesse sentido. Como o tema sai um pouco do ponto nevrálgico do trabalho, faremos apenas a citação da obra: FAORO, Raymundo. Os donos do poder. São Paulo: Editora Globo. 2008. 344 BRASIL. Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965. Institui o Código Eleitoral. “Art. 108. Estarão eleitos, entre os candidatos registrados por um partido ou coligação que tenham obtido votos em número igual ou superior a 10% (dez por cento) do quociente eleitoral, tantos quantos o respectivo quociente partidário indicar, na ordem da votação nominal que cada um tenha recebido”. 345 BRASIL. Emenda Constitucional nº 97, de 04 de outubro de 2017. Altera a Constituição Federal para vedar as coligações partidárias nas eleições proporcionais, estabelecer normas sobre acesso dos partidos políticos aos recursos do fundo partidário e ao tempo de propaganda gratuito no rádio e na televisão e dispor sobre regras de transição. “Art. 2º. A vedação à celebração de coligações nas eleições proporcionais, prevista no § 1º do art. 17 da Constituição Federal, aplicar-se-á a partir das eleições de 2020”. 346 FARIAS NETO, Pedro Sabino de. Ciência Política. São Paulo: Editora Atlas, 2011. p. 173: “A fragmentação partidária redunda na necessidade de acordos e outros artifícios destinados a compor maiorias partidárias, quase sempre, em detrimento do interesse público do Estado. [...]. No regime de governo presidencial, o esfacelamento partidário ocasiona a fragilidade do Parlamento, que redunda mais vulnerável no âmbito das pertinentes imunidades, privilégios e competências como Poder Legislativo”.
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parlamentar possa ser cada vez mais individualizada347 e distante de compromissos
republicanos348, abrindo espaço para corrupção349.
O próprio diálogo do Executivo com as lideranças partidárias se torna
dificultoso350. Afinal, há inúmeros partidos representando vários seguimentos sociais
e interesses diversificados, além de parlamentares que representam seus próprios
interesses.
Campanhas realizadas exclusivamente na internet também são propícias para
dificultar que o parlamentar possa identificar com clareza qual é a sua real base
eleitoral.
347 FARIAS NETO, Pedro Sabino de. Ciência Política. São Paulo: Editora Atlas, 2011. p. 198: “A eleição focada em pessoas (candidatos) e não em partidos desqualifica a organização partidária em sua própria essência ideológica”. 348 Conclusão similar foi a que chegou Luís Roberto Barroso no artigo jurídico “A reforma política: uma proposta de sistema de governo, eleitoral e partidário para o Brasil”, texto este publicado em uma das edições da Revista de Direito do Estado (RDE), ocasião em que o autor afirmou o seguinte: “Entre nós, o modelo presidencialista, aliado ao sistema eleitoral proporcional de lista aberta, tem produzido uma relação conturbada entre Executivo e Legislativo, assinalada por conflitos e cooptações, com frequente sucumbimento das virtudes republicanas. De fato, o Presidente é eleito, passando a acumular a chefia de Estado e a de Governo, sem qualquer participação direta do Congresso. Porém, não é possível governar sem o apoio deste. Nesse ambiente, e tendo em conta a fragmentação do quadro partidário, Executivo e Legislativo se envolvem em negociações personalizadas, nas quais muitas vezes o interesse público cede aos interesses eleitorais, quando não a objetivos privados ou patrimoniais. [...] essa característica do voto proporcional, de incrementar pluralismo e de possibilitar a representação das minorias, pode ser vista também como desvantagem, na medida em que provoca uma pulverização partidária. O sistema proporcional, sem a adoção de cláusulas de barreira, propicia a criação de um grande número de partidos, os quais podem servir a um mercado de favores políticos. Ao invés de permitir a manifestação do pluralismo de valores e de ideias, o sistema proporcional acabaria, antes sim, por levar ao surgimento de legendas de aluguel, sem compromissos ideológicos e pautas programáticas. Tal pulverização confunde o eleitor, que fica sem uma referência segura acerca de quais partidos representam quais propostas políticas. [...]. Nesse universo de multiplicidade e fragilidade dos partidos políticos engendram-se as negociações políticas não inteiramente republicanas. Todo governo necessita de apoio no Legislativo para aprovação das deliberações de seu interesse e, para tal fim, desenvolve articulações políticas para a formação de bases parlamentares de sustentação. É assim em toda a parte. No entanto, à falta de partidos sólidos e ideologicamente consistentes, essas negociações, frequentemente, deixam de ser institucionais e programáticas e passam a ser personalizadas e fisiológicas. Desfrutando de grande poder individual, o parlamentar irá atuar em função dos interesses imediatos de sua base eleitoral, nas melhores hipóteses, ou no interesse próprio, nas demais. Seu apoio ou não ao governo será decidido caso a caso, em função de interesses políticos ou particulares imediatos. [...] O clientelismo é fruto da relação excessivamente personalizada”. 349 FIGUEIRA, Fernando. Corrupção, democracia e legitimidade. Belo Horizonte: Editora UFGM, 2008, p. 145. “A corrupção contemporânea está associada a uma crescente crise de legitimidade do Estado, o que em sentido prático, acarreta uma crise da legitimidade da democracia representativa”. 350 Luís Roberto Barroso no artigo jurídico “A reforma política: uma proposta de sistema de governo, eleitoral e partidário para o Brasil”, publicado pela Revista de Direito do Estado (RED), defende acertadamente que “em lugar de negociar com um ou dois partidos a formação de uma coalizão de governo, assentada em princípios políticos e em estratégias de ação, o Executivo vê-se na contingência de se relacionar com partidos consistentes e com fragmentos de poder político, articulados com o propósito de ocupar o espaço público. A gestão da coalização se torna complexa e onerosa, exigindo a composição de múltiplos interesses, frequentemente contraditórios”.
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Tudo isso corroí a atividade pública e distancia o processo de formação das
leis da população, inclusive abrindo margem para que a função legislativa tome
direções desconhecidas, conduzindo o parlamentar para fora do eixo republicano.351
É nesse ambiente que os legisladores delimitam os assuntos tutelados pelo
Estado352, fazendo com que determinados setores, categorias e pessoas sejam
compelidas a fazer ou deixar de fazer algo (CF, Art. 5º, II, da CF)353, inclusive
estabelecendo obrigações e benefícios múltiplos.
A política é fundamental, mas é necessário que se tenha uma estrutura
jurídica que permita uma atuação condizente com a República, senão o sistema se
desvirtua.
O ato de legislar deve ocorrer em sintonia com a soberania popular, uma vez
que os integrantes do Poder Legislativo são escolhidos pela coletividade para
representar determinadas ideias e interesses, os quais não podem se divorciar das
finalidades constitucionais e do interesse público.
Todavia, como a crise de legitimidade é enorme, abre-se espaço para que os
atos do processo legislativo sejam desencadeados por interesses espúrios.
3.2 Definição de vício no móvel do agente
O serviço contratado para convencer o Parlamentar por intermédio de
argumentos jurídicos, econômicos, sociais e políticos para ter uma determinada
conduta no âmbito do Poder Legislativo se denomina de Lobby. Isso não pode ser
confundido com a oferta de vantagem indevida para o parlamentar agir dessa ou
daquela maneira durante as votações legislativas. Técnica de convencimento não é
sinônimo de oferta ilícita.
351 SILVA, José Afonso da. Processo Constitucional de formação das leis. 3. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2017. p. 152-153: “[...] o parlamentar tende a satisfazer primordialmente sua clientela eleitoral, os interesses de seu Colégio Eleitoral. [...] há sempre a tendência de o parlamentar introduzir projetos de leis que sirvam predominantemente aos interesses de certas áreas regionais onde recebeu maior votação ou que constituam sua base eleitoral”. 352 SILVA, José Afonso da. Processo Constitucional de formação das leis. 3. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2017. p. 151: “A iniciativa das leis é ato de escolha por excelência; é o ato pelo qual se escolhe uma via, entre os vários caminhos possíveis, para determinação das normas jurídicas escritas, que hão de reger as condutas sociais futuras”. 353 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: de 5 de outubro de 1988. “Art. 5º [...] II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
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Muitas vezes são os próprios lobistas que fornecem os fundamentos para que
o parlamentar possa ter a clareza acerca da necessidade de propor ou aprovar uma
norma.354
A propositura de um projeto de lei prescinde de uma motivação que
fundamente o seu nascedouro355. O propositor precisa declinar os motivos que
justificam a edição daquela norma, o que pode ser feito de forma escrita ou oral.
Trata-se de um pressuposto para a sua existência356. Todos os atos do Poder
Público precisam de fundamentação, inclusive as decisões judiciais357 (Art. 93, IX,
da CF358 e Art. 489, II do CPC359).
Nas Casas Legislativas existe o período de discussão antes da votação da
norma. Essa tarefa é essencial porquanto permite que todos possam justificar
perante a sociedade as razões de seus votos.
Os motivos da norma e as justificativas de voto apenas esclarecem as
questões político-jurídicas, mas podem camuflar o que realmente desencadeou
aquela postura, a qual pode ter ocorrido exclusivamente por ocasião do recebimento
de vantagem indevida para favorecer ou prejudicar alguém dolosamente.
Assim, vício no móvel do agente consiste no recebimento de vantagem ilícita
para propor ou aprovar uma legislação. Trata-se de uma forma de desvio de poder e
de finalidade na atividade legiferante.
É necessário fazer o apontamento de que o móvel na atividade administrativa
consiste na intenção, isto é, a vontade psicológica do agente (fim). Já na atividade
354 SILVA, José Afonso da. Processo Constitucional de formação das leis. 3. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2017. p. 189: “Por incrível que possa parecer, o lobby é tido como órgão útil a um Governo democrático, um meio normal de levar ao Congresso as diversas correntes políticas e econômicas que agitam a Nação”. 355 FARIA, Edimur Ferreira de. Controle do mérito do ato administrativo pelo Judiciário. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2011. p. 163. 356 SILVA, José Afonso da. Processo Constitucional de formação das leis. 3. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2017. p. 51: “[...] pressuposto do processo legislativo é a proposição legislativa, devidamente fundamentada por justificação escrita ou oral; não haverá processo legislativo sem proponentes”. 357 QUEIRÓ, Afonso Rodrigues. Estudos de Direito Público. Coimbra: Universidade de Coimbra. 1989. p. 222. v. 1: “Mesmo na hipótese da sua própria apreciação, o juiz necessita de esclarecer-se sobre o fundamento do seu juízo de valor”. 358 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: de 5 de outubro de 1988. “Art. 93 [...] IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;”. 359 BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. “Art. 489. São elementos essenciais da sentença: [...] II - os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;”.
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legislativa o móvel diz respeito ao que motivou a sua conduta (início). As questões
fáticas e políticas são indiferentes em nome da discricionariedade exercida nesse
mister, a qual é absolutamente ampla. Essas distinções são reflexos da natureza
jurídica dessas atividades.
3.3 Moralidade: um indiferente jurídico para o vício do agente
Ao se falar de vício do agente é possível que alguns invoquem o princípio da
moralidade para justificar eventual inconstitucionalidade da norma. Contudo, esse
instituto é indiferente quando se trata de vício do agente, senão vejamos.
Uma das primeiras medidas adotadas pelos militares ao ascenderem ao
poder (1964) foi a criação de mecanismos legais para assegurar a estabilidade da
governança, dentre eles limitar a liberdade de expressão e inviabilizar a atividade
política, inclusive com a extinção de agremiações por meio do Ato Institucional nº
02360, permitindo o funcionamento de apenas dois partidos (MDB e ARENA)361. O
objetivo era claro: evitar que a sociedade fosse encorajada a enfrentar a Ditadura,
tornando primordial restringir a veiculação de informações e candidaturas.
Após uma longa luta da sociedade o regime militar se esfacelou (1985). No
ano de 1983 o então Deputado Federal Dante de Oliveira (PMDB/MT) propôs a
Emenda Constitucional nº 05 com o objetivo de reestabelecer a eleição direta para
Presidente e Vice-Presidente da República, o que ganhou força nas ruas e tempo
depois resultou na queda da ditadura com a consequente convocação da
Assembleia Constituinte, eleita em 1986, culminando na promulgação da
Constituição Federal de 1988.
Nascia um novo regime jurídico. O ordenamento foi elaborado num contexto
pós-ditadura. As normas constitucionais demonstravam claramente a vontade do
360 BRASIL. Ato Institucional nº 02, de 27 de outubro de 1965. Mantem a Constituição Federal de 1946, as Constituições Estaduais e respectivas Emendas, com as alterações introduzidas pelo Poder Constituinte originário da Revolução de 31.03.1964, e dá outras providências. “Art. 18. Ficam extintos os atuais Partidos Políticos e cancelados os respectivos registros. Parágrafo único - Para a organização dos novos Partidos são mantidas as exigências da Lei nº 4.740, de 15 de julho de 1965, e suas modificações”. 361 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política & Teoria do Estado. 7. ed. Porto Alegre Editora Livraria do Advogado, 2010. p. 187: “Com o golpe militar de 1964, a frágil estrutura partidária brasileira é novamente colapsada, sendo, em 1965, extintos os partidos existentes através do Ato Institucional nº 2 – e criados, pelo Ato Complementar nº 4, a ARENA e o MDB, que vão patrocinar o jogo político nacional até 1979. A cada avanço (ou possibilidade de) do MDB, o regime autoritário mudava as regras do jogo, para manter a maioria parlamentar no Congresso e no Senado”.
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legislador originário em afastar qualquer tentativa de retorno de governos arbitrários.
Basta passar os olhos nas cláusulas pétreas para se chegar a tal conclusão.362
Com o novel modelo estatal passou a ser possível responsabilizar os agentes
públicos por seus atos, o que é próprio da República, sendo que para tanto é
indispensável o respeito ao devido processo legal (CF, Art. 5º, LV), assegurando a
todos o direito de se contraporem e se defenderem de quaisquer acusações.
Afrontar tais garantias nos remeteria às práticas ditatoriais, mesmo porque
ceifaria a possibilidade dos réus se oporem às acusações que lhes são dirigidas,
inviabilizando o exercício da cláusula do contraditório e da ampla defesa, não se
olvidando que as decisões carentes de fundamentação passaram a ser
consideradas nulas por inviabilizar e até mesmo segregarem o direito de combatê-
las, haja vista serem desconhecidas as suas razões (Art. 93, IX, da CF).
As denúncias genéricas passaram a ser vistas como inadmissíveis, mesmo
porque delas é impossível de se defender, exatamente por seus fundamentos serem
obscuros. Tanto é assim que em Atenas, quando Sócrates foi a julgamento, as
acusações eram de crimes vagos, mesmo porque os juízes e os jurados sabiam que
era impossível argumentar com aquele homem e dessa forma seria mais fácil
condená-lo.
É baseado nisto que as acusações e condenações em virtude de ofensa à
“moralidade” devem ser vistas com muita preocupação. Esse valor constitucional
merece maiores cuidados no momento de sua aplicabilidade.363
Muitos têm a equivocada impressão de que este princípio diz respeito a moral
comum, o que não deve ser aceito. A “moral comum” é algo extremamente subjetivo.
O que é moral para uns, pode não ser para outros. O que é imoral em uma
determinada região, pode não ser em outra.
No Estado Democrático de Direito o princípio da moralidade não se refere à
“moral comum”, salvo se fosse possível afirmar que existe um entendimento moral
362 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 5. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2015. p. 155: “O povo, ao elaborar a Constituição, impõe a si mesmo e ao seu poder soberano limitações que resguardem o processo político democrático dos perigos e tentações que possam abalá-lo no futuro. Por esse motivo se protegem os direitos fundamentais e se impõem procedimentos destinados a impedir a opressão das minorias pelas maiorias”. 363 CAMMAROSANO, Márcio. O princípio constitucional da moralidade e o exercício da função administrativa. Belo horizonte: Editora Fórum, 2006. p. 22: “Se partimos do pressuposto de que a moralidade exigida pela Lei Maior diz respeito a regras de comportamento que consubstanciam preceitos do que se denomina moral comum [...] compreenderia, assim, não apenas normas e princípios jurídicos, mas também normas e princípios morais, individuais e sociais”.
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unânime364, sem quaisquer divergências, o que é absolutamente impossível devido
às diferenças culturais.
Seria uma tarefa árdua afirmar o que é moralmente correto365, além de que
isso poderia levar à conclusão de que os valores culturalmente predominantes são
superiores.
A ideia de que a opinião da maioria se trata da mais correta é sedutora, mas
equivocada. Essa percepção aniquilaria por completo o direito das minorias. Em
qualquer país democrático é necessário conciliar a vontade da maioria com o
respeito aos direitos fundamentais das minorais, sobretudo pelo fato da sociedade
contemporânea ser multicultural e, portanto, com crenças variadas.366
O que molda a moral de cada cidadão são os seus valores culturais, os quais,
por sua vez, são edificados com base em sua religião, ideologia política e filosófica,
compreensão histórica, situação geográfica, visão familiar, dentre outros.
Prova disso é que, por exemplo, se casar com mais de uma pessoa no Brasil
é visto como algo imoral, socialmente condenável e criminoso (CP, Art. 235).367
Diferentemente disto, na Arábia Saudita a poligamia é moral, aceitável e louvável.
Perceba que a “moral comum” remete ao limbo, até porque cada um tem a sua
conforme as suas crenças.368
A religião exerce forte influência nesse aspecto. Imagine que o promotor seja
ateu, o magistrado hinduísta e o parlamentar cristão. É bem provável que eles não
teriam a mesma moral pessoal e, por isso, o pensar e o agir seriam diversos.
364 CAMMAROSANO, Márcio. O princípio constitucional da moralidade e o exercício da função administrativa. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2006. p. 43. 365 ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2018. p. 172. 366 NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. Abuso do poder de legislar. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004. p. 95: “Nas democracias, a proteção das minorias é também essencial. Cabe ao Judiciário, mormente quando investido em jurisdição constitucional, opor-se ao despotismo majoritário e, nestes casos, desempenhando uma função que é política e é legítima porque indispensável para a sobrevivência do Estado Democrático de Direito”. 367 BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. “Art. 235. Contrair alguém, sendo casado, novo casamento: Pena - reclusão, de dois a seis anos. §1º - Aquele que, não sendo casado, contrai casamento com pessoa casada, conhecendo essa circunstância, é punido com reclusão ou detenção, de um a três anos. §2º - Anulado por qualquer motivo o primeiro casamento, ou o outro por motivo que não a bigamia, considera-se inexistente o crime”. 368 GREENE, Joshua. Tribos morais: a tragédia da moralidade do senso comum. Rio de Janeiro: Editora Record, 2018. p. 219.
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As condutas morais aptas a gerarem reflexos jurídicos são aquelas ditas pelo
ordenamento jurídico, e não a pessoal, orquestrada pela conveniência daquele que
pensa dessa ou daquela forma369.
O que determina se um fato fere ou não a moralidade administrativa é a lei, e
não a moral pessoal. Caso assim não fosse, criar-se-ia uma verdadeira cortina de
fumaça com enorme insegurança jurídica370, situação essa que não se coaduna com
a Constituição, tendo em vista que o que pode ser moral para o agente político, pode
não ser para o membro do Ministério Público, para o magistrado ou para qualquer
outro cidadão, e vice-versa371.
Para se afirmar que uma conduta ofende a “moralidade administrativa” é
necessário realizar a hermenêutica vinculada aos verdadeiros propósitos da
legislação (princípio da finalidade)372, sobretudo por se tratar de conceito aberto,
com grande probabilidade de haver interpretação errônea ou sem a dosagem
necessária para configurar o objetivo que a lei estima alcançar373.
O artigo 37 da Constituição elenca as regras e princípios a serem observados
no âmbito do desempenho das atividades da Administração Pública. Ao citar a
369 Um exemplo citado por Márcio Cammarosano para demonstrar que às vezes um ato é socialmente condenável, mas não desencadeia nenhum ilícito é a prostituição (CAMMAROSANO, Márcio. O princípio constitucional da moralidade e o exercício da função administrativa. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2006. p. 77). 370 CAMMAROSANO, Márcio. O princípio constitucional da moralidade e o exercício da função administrativa. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2006. p. 36-37: “[...] o princípio da segurança jurídica é fundamental, constituindo-se na própria razão de ser do Direito, de sorte que não raras vezes sobrepõe-se ao próprio princípio da legalidade, e ainda, como diz Almiro do Couto e Silva, a segurança jurídica, em si mesmo considerada, constitui ela mesma, em certos casos, a própria justiça. Estão aí, segundo entendemos, mais algumas razões pelas quais o conceito de moralidade administrativa, como condição de validade dos atos da Administração Pública, não pode ser pura e simplesmente associado a concepções morais supostamente prevalentes na sociedade, terreno minado, areia movediça, que em nada se assemelha aos preceitos de direito positivo que devem presidir um Estado democrático”. (sic.) 371 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. 3. ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2017. p. 88-89: “[...] mesmo no caso da moralidade convencional [...] a regra é ‘incerta’, na medida em que a comunidade diverge quanto à aplicação apropriada de um ou mais termos da formulação padrão [...]”. 372 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 37. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2011. p. 91: “O certo é que a moralidade do ato administrativo juntamente com a sua legalidade e finalidade, além da sua adequação aos demais princípios, constituem pressupostos de validade sem os quais toda atividade pública será ilegítima”. 373 CAMMAROSANO, Márcio. O princípio constitucional da moralidade e o exercício da função administrativa. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2006. p. 58: “Com efeito, a segurança jurídica postulada por um Estado Democrático consiste, acima de tudo, em saber o cidadão, o agente público e as pessoas em geral, previamente, quais os comportamentos que lhe são proibidos, obrigatórios ou permitidos seus deveres e os direitos que lhe assistem”.
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moralidade, por óbvio que o dispositivo não está se referindo à moral comum374.
Trata-se de um princípio norteador que realça as regras e prescrições do Poder
Público.375
Assim, haveria imoralidade caso a Administração Pública, por exemplo,
fizesse aquisições sem regular procedimento licitatório376. Isso inviabiliza a
igualdade de oportunidade entre os fornecedores, privando o Estado de fazer a
melhor opção, seja de qualidade ou de preço.
De igual forma, haveria imoralidade se o Chefe do Executivo, em detrimento
dos mais capacitados tecnicamente e ao arrepio do concurso público, fizesse
contratações temporárias para praticamente todos os cargos técnicos.
Nestes dois casos citados acima haveria violação da moralidade porquanto as
condutas ocasionariam desrespeito à legalidade, à isonomia e à impessoalidade377,
inclusive caminhando na contramão do princípio republicano e ofendendo o sistema
jurídico em inúmeras vertentes.
A moralidade administrativa é um princípio implícito do regime republicano
que sequer precisaria estar positivado, tal qual a proporcionalidade, a razoabilidade
e a segurança jurídica378. Para Mello (2013, p. 123), a moralidade “significa,
portanto, um reforço ao princípio da legalidade, dando-lhe um âmbito mais
compreensivo do que normalmente teria”379.
Essa prescrição aponta a forma de agir da Administração Pública (legalidade,
impessoalidade, publicidade, eficiência, etc.), e isto não pode servir de subterfúgio
para que alguém faça prevalecer as suas convicções íntimas380.
374 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22. ed. São Paulo: Editora Malheiros. 2010. p. 468: “[...] princípio da moralidade [...] não se trata da moral comum ou geral, mas, sim, daquela que se extrai da própria disciplina interna da Administração Pública”. 375 CAMMAROSANO, Márcio. O princípio constitucional da moralidade e o exercício da função administrativa. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2006. p. 82: “[...] princípio jurídico da moralidade [...] está reportado, sim, a valores albergados no sistema jurídico [...]”. 376 Há casos excepcionais. (Lei nº 8.666/93, Art. 24 e 25). 377 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 5. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2015. p. 240-241: “De outras vezes, no entanto, o termo é utilizado, um tanto atecnicamente, para realçar a importância de determinadas prescrições que não são em rigor princípios, como ocorre nas referências a princípio do concurso público e da licitação (ambas decorrências específicas de princípios como os da moralidade, da impessoalidade, da isonomia) [...]”. 378 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 37. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2011. p. 94. 379 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2013. p. 123. 380 CAMMAROSANO, Márcio. O princípio constitucional da moralidade e o exercício da função administrativa. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2006. p. 85: “O princípio da moralidade está referido, isto sim, ao próprio Direito, remetendo-nos a valores que informam normas jurídicas”.
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Se fosse diferente, qualquer cidadão poderia pleitear a nulidade de atos do
Poder Público em ação popular ante a pseuda inobservância à moralidade por
ofensa as suas convicções pessoais (CF, Art. 5º, LXXIII)381.
A própria norma que regulamenta a ação popular (Lei nº 4.717/65) traz um rol
taxativo e objetivo de quais seriam os atos passíveis de invalidade por ofensa à
moralidade (Art. 2º, Parágrafo Único).
Outrossim, se a Constituição fala em “moralidade” e a lei que regulamenta a
ação apta a invalidar atos imorais traz um rol taxativo dos possíveis casos, por óbvio
que a moralidade não pode ser o que bem entenderem, mas apenas as condutas
descritas naquele dispositivo. Para Márcio Cammarosano “a moralidade
administrativa não pode ser dissociada da legalidade”.382.
Acusações, condenações e inconstitucionalidades efetivadas com
fundamento na “ofensa da moralidade administrativa” devem discriminar a
transgressão da legislação, sob pena da interpretação jurídica ficar à mercê das
vontades e crenças pessoais de alguns poucos, o que é inimaginável em uma
República.
É fundamental realçar que, como a ideia de discricionariedade judicial não é
aceita por nós, a moralidade não pode ser o que o Judiciário bem entender. Não
seria coerente aduzir que o magistrado tenha essa prerrogativa, porquanto isso
retiraria do controle das partes a faculdade de se insurgir contra a decisão, mesmo
porque, nos casos discricionários, o agente tem duas ou mais opções válidas, o que
não se aplica à decisão judicial, uma vez que essa deve se vincular ao sistema
jurídico, e não à autonomia do Juiz383.
381 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: de 5 de outubro de 1988. “Art. 5º [...] LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência”. 382 CAMMAROSANO, Márcio. O princípio constitucional da moralidade e o exercício da função administrativa. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2006. p. 102. 383 ENTERRÌA, Eduardo García de; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. SUNDFELD, Carlos Ari (Rev.). Curso de Direito Administrativo. Tomo I.. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2014. p. 487-488: “[...] o princípio constitucional de vedação à arbitrariedade vincula todos os poderes públicos e, por isso, também os Juízes e Tribunais, obrigando-os, consequentemente, a fundamentar com as razões do Direito as suas próprias decisões a respeito da racionalidade ou sua falta nas decisões governamentais submetidas ao seu controle. Por outro lado, essa acareação de razões (as da Administração) com razões (as dos Tribunais) na qual todo processo adentra, não é simétrica, já que a Administração é livre para escolher, dentro do amplo espaço que em cada caso lhe é autorizado pela Lei e pelo Direito, o tipo de razões (jurídicas, econômicas, sociais, técnicas, ambientais, a curto, médio ou longo prazo, etc.), ao passo que os Tribunais não podem utilizar para justificar as suas, razões outras senão as do Direito e somente estas [...].”
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Por fim, no que tange à função legiferante, esta deve ser exercida dentro da
competência da Casa Legislativa e com a finalidade de atender ao interesse
público384. Se esse fim foi cumprido e não havendo incompatibilidade material ou
formal com a Constituição, a norma não pode ser declarada inconstitucional por
ofensa à moralidade simplesmente porque os parlamentares receberam valores
indevidos para aprová-la. Afinal, a legislação atendeu ao seu objetivo.
Ainda que se chegue à conclusão de inconstitucionalidade, certamente o
argumento apto para tanto não será o de “ofensa à moralidade” constante no artigo
37 da Constituição, uma vez que esse princípio é norteador para outras questões da
Administração Pública (procedimentos licitatórios, contratações, etc.).
3.4 Imunidade parlamentar não é blindagem para crimes
Muitos podem defender que as prerrogativas dos membros do Poder
Legislativo já seriam o suficiente para afastar eventual alegação de
inconstitucionalidade por vício no móvel do agente, sobretudo porque a Constituição
garante a imunidade nos votos proferidos pelos parlamentares385.
Contudo, todas as imunidades devem ser interpretadas em sintonia com o
preceito republicano e com a finalidade a que elas se destinam. Essas prerrogativas
se tratam de mecanismos para que o mandato possa ser exercido com
independência e da forma mais eficiente e ampla possível386.
As imunidades se distinguem entre: (a) formal, para proteger os
parlamentares de decisões judiciais arbitrárias e processos tendenciosos (CF, Art.
53, §2º e ss.)387, e (b) material, destinada a conceder autonomia para votar, fazer
384 CAMMAROSANO, Márcio. O princípio constitucional da moralidade e o exercício da função administrativa. Belo Horizonte: Editora Fórum. 2006. p. 106: “O princípio da finalidade de interesse público significa que o agente público só pode orientar-se por ele. Se só se orienta pelo seu interesse pessoal, ou também por interesse pessoal, a competência estará sendo utilizada para um fim, ou também para um fim a ela estranho, para o qual não foi outorgada. ” 385 AGRA, Walber de Moura. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2011. p. 478: “Imunidade parlamentar é a prerrogativa de que gozam os deputados federais e senadores em virtude do cargo que ocupam, para poderem exercer suas funções com a independência e o empenho desejados. “ 386 FARIAS NETO, Pedro Sabino de. Ciência Política. São Paulo: Editora Atlas, 2011. p. 57: “[...] imunidade parlamentar [...] instituída para assegurar aos parlamentares o livre exercício de suas funções, assim como a devida proteção contra processos judiciários tendenciosos ou contra prisão arbitrária“. 387 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: de 5 de outubro de 1988. “Art. 53 [...] §2º - Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de
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uso da palavra e emitir opiniões sem receio de retaliações388 (CF, Art. 53, Art. 27,
§1º, Art. 32, §3º). Os Vereadores só gozam de imunidade material (CF, Art. 29,
VIII)389.
Essas proteções só se efetivam para atos que tenham liame com o exercício
do mandato390, mormente por não se tratarem de privilégios vinculados à pessoa
física do parlamentar391.
Não pode o parlamentar, por exemplo, cometer crimes de naturezas diversas,
sem nenhuma conexão com a função de membro do Poder Legislativo, e quando
requererem a sua prisão ou ingressarem com ação penal o mesmo alegar que goza
de imunidade formal392.
Ora, se o ilícito não tem nenhuma relação com o mandato, por óbvio que não
podem ser invocadas imunidades parlamentares para blindagem do agente. Isso
vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão”. 388 ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2004. p. 107-111: “Explica-se a inviolabilidade pela necessidade institucional (universalmente reconhecida) de que os parlamentares desempenhem suas funções com independência e desassombro, sem termo de qualquer consequência, como requer o mecanismo constitucional. [...]. O parlamentar expressa pensamentos, ideias, angústias, anseios, sentimentos e frustrações dos mandantes, daqueles a quem representa, agindo dentro ou fora do Parlamento, nas ruas, na imprensa etc. Parece evidente que a inviolabilidade não se restringe à tribuna ou a pronunciamentos que sejam típicos e específicos da função. A inviolabilidade é estabelecida não só na função, mas em razão do exercício funcional, em razão da titularidade do mandato. [...]. Que desenvoltura terá o parlamentar que titubeia no exercício da função de denunciar, questionar, discutir, provocar dúvidas – muitas vezes para o simples efeito de suscitar discussão e fazer surgirem as provas -, levantar as questões que direta ou indiretamente envolvam o comportamento de pessoas cujo poder de reação (e, portanto, retaliação) possa vir a atingi-lo?” 389 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: de 5 de outubro de 1988. “Art. 29 [...] VIII - inviolabilidade dos Vereadores por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato e na circunscrição do Município”. 390 STRECK, Lenio Luiz; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de; NUNES, Dierle. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz (Coord.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Editora Saraiva; 2014. p. 1.073: “Sendo assim, as imunidades materiais e formais apenas alcançam os parlamentares quando estes estejam exercendo o mandato legislativo (prática in officio) ou quando atuarem em razão do mandato (prática propter officium). Se o congressista não estiver no exercício do mandato ou não estiver agindo em razão do mandato, não se aplicam as imunidades”. 391 HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 5. ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2010. p. 560: “As imunidades não constituem direito público subjetivos, mas uma situação objetiva. Se fossem verdadeiros privilégios, na área do ius singulare, as imunidades poderiam formar direitos subjetivos. Não o sendo, e sim prerrogativas, melhor se ajustam à situação objetiva, no domínio do ius commune. Os privilégios satisfazem o interesse pessoal de seus beneficiários. As prerrogativas se distanciam da satisfação de interesses particularistas, visando ao regular exercício das funções do Estado. [...]. A República e o próprio governo monárquico contemporâneo aboliram os privilégios, para conservar as prerrogativas”. 392 ZOCKUN, Maurício. Responsabilidade patrimonial do Estado. São Paulo: Editora Malheiros, 2010. p. 178: “A imunidade parlamentar é, portanto, um meio que se destina a garantir um fim. Ela não é um fim em si, desgarrado, deste modo, de um propósito”.
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implicaria em desrespeito ao princípio da finalidade e desvirtuaria por completo o
Estado Democrático de Direito.
As prerrogativas se vinculam apenas para a defesa de atuação parlamentar
republicana e, portanto, não se prestam para agasalharem condutas ilícitas ainda
que perpetradas enquanto membro do legislativo, como é o caso do recebimento de
valores mensais (“mensalinho”) para favorecer determinados grupos e pessoas, sob
pena de configurar abuso de direito.
Noutro giro, a Constituição pontua que os parlamentares são invioláveis, civil
e penalmente, por quaisquer de seus votos (CF, Art. 53)393. A palavra “quaisquer”
refere-se a impossibilitar eventual responsabilização pelo teor do voto, o que deve
ser interpretado extensivamente às searas administrativas e políticas394.
O conteúdo do voto é indiferente e protegido constitucionalmente, mas há
relevância jurídica no que levou o parlamentar a proferir tal posicionamento. Muitas
vezes é possível que exista vício no móvel do agente mediante atos ilícitos, a
exemplo do recebimento de vantagem indevida, e as imunidades não se prestam a
tutelar isso.
Não seria crível afirmar que o parlamentar possa receber vantagem indevida
para votar determinada matéria na Casa Legislativa e depois atestar que sua
conduta é intocável por ocasião da imunidade material para fins de
responsabilização em qualquer seara que seja395.
A proteção é do conteúdo. Se fosse realizada interpretação de blindagem
absoluta, estar-se-ia colocando os parlamentares acima de lei, os quais poderiam
fazer uso do mandato para quaisquer fins, entendimento esse que colide
393 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: de 5 de outubro de 1988. “Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. 394 SILVA, José Afonso da. Processo Constitucional de formação das leis. 3. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2017. p. 67: “[...]. De fato, para cumprir seu dever de corpo representativo da vontade popular, de que emana todo o poder político, têm os órgãos legislativos necessidade de gozar de grande independência, que lhes é garantida por alguns princípios, tais como: imunidade parlamentar; inviolabilidade por suas opiniões e voto; direito a subsídio; estrutura interna independente, através da eleição da Mesa pelos próprios parlamentares; funcionamento na base de agrupamento partidário e das Comissões Permanentes; reuniões e sessões em lugares e épocas preestabelecidos ou dependentes de seu arbítrio exclusivo, etc.” 395 HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 5. ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2010. p. 563: “A inviolabilidade não pode cobrir comportamento delituoso: corrupção por meio de voto, agressão que acompanha a manifestação do pensamento. A inviolabilidade preserva apenas os atos de exercício das funções parlamentares ou conexas com elas, e não os outros. É garantia da função e não é privilégio da pessoa”.
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frontalmente com a ideia de República e com o princípio da finalidade e, destarte,
não pode ser admitido396.
A imunidade é algo fundamental para o bom desempenho da função e,
portanto, é irrenunciável e indisponível397. Porém, essa prerrogativa não pode ser
compreendida como um escudo para cometer atos ilícitos.
Assim, é possível afirmar que a imunidade material abrange o impedimento
de responsabilização pessoal do parlamentar pelo conteúdo do voto. Porém, caso o
parlamentar tenha recebido vantagem indevida para proferir o voto, a imunidade não
afasta sanções a serem aplicadas nas mais variadas esferas e nem tampouco torna
a norma imune de inconstitucionalidade.
396 NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. Abuso do poder de legislar. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004. p. 140-141: “[...] na forma republicana de governo, a autoridade não é um privilégio, será uma prerrogativa, inerente ao cargo ou função, devendo ser exercida no interesse público. Na República, nenhum agente político exerce função por direito próprio”. 397 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2010. p. 498: “As imunidades parlamentares representam elemento preponderante para a independência do Poder Legislativo. São privilégios, em face do direito comum, outorgados pela Constituição aos membros do Congresso para que estes possam ter um bom desempenho das suas funções. Para um bom desempenho é preciso que os parlamentares tenham ampla liberdade de expressão (pensamento, palavras, discussão e voto) e estejam resguardados de certos procedimentos legais”.
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4 CONSEQUÊNCIAS DAS NORMAS EDITADAS COM VÍCIO NO MÓVEL DO
AGENTE
O texto não pretende discutir se determinada norma é compatível
materialmente com a Constituição e nem tampouco se ela foi editada dentro da área
de competência da Casa Legislativa. Pelo contrário, o desenvolvimento da ideia irá
transcorrer a partir da premissa de que esses pressupostos já estão satisfeitos.
A vertente é a de que a norma possui conteúdo constitucionalmente válido e o
procedimento de sua edição respeitou todas as formalidades legalmente previstas,
além de atender ao interesse público. Entretanto, há vício no móvel do agente na
propositura e/ou aprovação, ou seja, o parlamentar recebeu vantagem indevida para
apresentação e/ou votação da legislação. A suposta inconstitucionalidade seria
apenas pelo vício no móvel do agente. Não há nenhum outro fundamento.
Após discorrer acerca dos pontos que gravitam em torno do tema central do
trabalho, é necessário delimitar o enfrentamento do problema, cujas respostas
perpassam pelos seguintes questionamentos:
1) O vício no móvel do agente gera inconstitucionalidade?
2) A propositura viciada é relevante?
3) O número de votos viciados tem pertinência?
4) A natureza da vantagem recebida tem algum reflexo?
5) Há distinção de legislação infraconstitucional e emenda constitucional
editadas com vício no móvel do agente?
6) Quais as consequências pessoais para o agente que atua com vício no
seu móvel?
Para buscar respostas dentro de cada uma dessas perguntas, o
desenvolvimento será realizado de forma individualizada, nos termos dos subtópicos
seguintes, cada qual com as suas peculiaridades.
Introdutoriamente, é de se frisar que, como já dito em subtópicos anteriores,
no caso de vício do móvel do agente o argumento “imoralidade” não é apto a gerar a
inconstitucionalidade da norma (3.3), da mesma forma que o fundamento “imunidade
parlamentar” não garante a constitucionalidade (3.4). Esses institutos são
indiferentes para a análise do tema.
91
4.1 O vício no móvel do agente gera inconstitucionalidade?
Gera dúvidas relevantes de constitucionalidade quando o parlamentar,
utilizando de suas prerrogativas, as quais são extremamente amplas no exercício da
função legiferante, recebe vantagem indevida para propor ou aprovar determinada
norma.398
Ainda que o parlamentar tenha proposto e aprovado uma norma em razão do
recebimento de vantagem indevida, é plenamente possível que o conteúdo da
legislação atenda com muito afinco ao interesse público.
Nestes casos, nada impede que após o embate na votação entre parlamentes
de grupos políticos diversos e faltando poucos votos para aprovação de uma norma
de flagrante interesse público, os mandatários remanescentes condicionem os seus
votos a um benefício financeiro pessoal. Seria crível a decretação de
inconstitucionalidade dessa norma, mesmo a matéria estando dentro da área de
competência da Casa Legislativa, atendendo ao interesse público e o conteúdo
sendo compatível com o ordenamento jurídico?
A Advocacia-Geral da União (AGU) emitiu posicionamento técnico nos autos
da ADI nº 4887 no sentido de que a percepção de vantagem indevida é incompatível
com o decoro parlamentar e causa apenas a perda do mandato eletivo399.
Assim, a constatação acerca da ocorrência ou não da quebra de decoro
parlamentar competiria exclusivamente à respectiva Casa do Congresso Nacional
que o parlamentar pertença por se tratar de matéria interna corporis (CF, Art. 55,
§2º)400. Inclusive essa foi a linha de posicionamento das informações prestadas pelo
Senado Federal na referida ADI401, a qual se alinha às ideias de Oliveira402.
398 SERRANO, Pedro Estevam A. P. O desvio de poder na função legislativa. São Paulo: Editora FTD, 1997. p. 9: “Já na circunscrição da atividade legislativa, a aplicação do conceito, quando feita de forma acrítica e demasiadamente ampla, ocasiona dúvidas relevantes”. 399 ADI citada no primeiro capítulo do trabalho, no subitem 1.2, “Um outro vício a ser discutido”. 400 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: de 5 de outubro de 1988. “Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador: [...] II - cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar; [...] § 1º - É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas. § 2º Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa”. 401 “Logo, o Judiciário não tem competência para declarar a quebra de decoro parlamentar. Ainda que se dessa guarida à tese da requerente, a nulidade dos atos parlamentares praticados em quebra de decoro deveriam ser precedida necessariamente pela declaração de quebra de decoro pela Casa respectiva, o que não ocorreu”.
92
De fato, o decoro guarda vinculação apenas com a Casa Legislativa por força
da honorabilidade do Parlamento, e por isso não pode ser utilizado como
fundamento de inconstitucionalidade.
Todavia, temos posicionamento no sentido de que, em homenagem à
independência das instâncias, o ato ilícito não se restringe apenas à questão interna
do Poder Legislativo (decoro), mas se estende à responsabilização pessoal do
agente, bem como a declaração de eventual inconstitucionalidade da norma por
questão formal, embora haja fundamentos em sentido contrário, a exemplo da
opinião de Ricardo Marcondes Martins403.
O vício no móvel do agente parlamentar durante as votações trata-se de
desvio de poder ou de finalidade subjetivo. Ressalte-se: a possível
inconstitucionalidade não advém do fundamento “quebra de decoro”, porquanto isso
é um aspecto interno do Parlamento.
4.1.1 A insignificância do móvel no vício de propositura
Existem questões do Poder Legislativo que se vinculam à pessoa física do
Parlamentar e, portanto, são pessoais, tais como as proposituras (que também
podem ser coletivas), os votos e as incompatibilidades (CF, Art. 54404, Art. 55405 e
402 OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Improbidade administrativa e sua autonomia constitucional. São Paulo: Editora Fórum, 2009. p. 471: “Na esfera político-legislativa, as condutas puníveis dos parlamentares o são em razão do caráter prejudicial ou desvalioso do fato à normalidade institucional do Parlamento”. 403 MARTINS, Ricardo Marcondes. Teoria dos princípios e função jurisdicional. Revista de Investigações Constitucionais. v. 5. Curitiba, nº 2, p. 135-164, maio-ago.2018. “No exercício da função legislativa, o sistema normativo despreza os vícios de vontade do agente competente, o dolo e o erro são, mesmo no exercício de competência discricionária, irrelevantes para a validade do ato. [...] os vícios de vontade do agente normativo não interferem na validade da norma editada”. 404 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: de 5 de outubro de 1988. “Art. 54. Os Deputados e Senadores não poderão: I - desde a expedição do diploma: a) firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público, salvo quando o contrato obedecer a cláusulas uniformes; b) aceitar ou exercer cargo, função ou emprego remunerado, inclusive os de que sejam demissíveis "ad nutum", nas entidades constantes da alínea anterior; II - desde a posse: a) ser proprietários, controladores ou diretores de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público, ou nela exercer função remunerada; b) ocupar cargo ou função de que sejam demissíveis "ad nutum", nas entidades referidas no inciso I, "a"; c) patrocinar causa em que seja interessada qualquer das entidades a que se refere o inciso I, "a"; d) ser titulares de mais de um cargo ou mandato público eletivo”. 405 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: de 5 de outubro de 1988. “Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador: I - que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior; II - cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar; III - que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada; IV - que perder ou
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Art. 29, IX406). Todavia, o resultado de uma votação indiscutivelmente pertence ao
Parlamento.
As deliberações plenárias são norteadas pelo princípio da colegialidade407. Os
atos são personificados à Casa, até mesmo pelo princípio da impessoalidade408, e,
ao fim, vinculam-se à instituição, e não a um agente político específico.
Isso porque, muito embora as proposições e votos sejam particularidades de
cada agente, quem aprova ou não a norma é o Poder Legislativo, e não um
parlamentar ou um grupo de parlamentares.
Ademais, a eventual troca de membros da Casa não fará cessar os efeitos
das aprovações ou rejeições pretéritas. A consolidação do ato é na figura da
instituição em razão do seu caráter permanente409 e do seu status constitucional de
órgão representativo da sociedade.
Este enfoque reconhece a coesão da decisão do Parlamento, a qual, antes de
ser aprovada ou rejeitada para ter força de lei, necessita passar por ampla discussão
na Casa Legislativa, local em que se encontram mandatários de todos os
seguimentos e, portanto, se trata de um ambiente marcado pela heterogeneidade.410
tiver suspensos os direitos políticos; V - quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos nesta Constituição; VI - que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado. § 1º - É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas”. 406 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: de 5 de outubro de 1988. “Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos: [...] IX - proibições e incompatibilidades, no exercício da vereança, similares, no que couber, ao disposto nesta Constituição para os membros do Congresso Nacional e na Constituição do respectivo Estado para os membros da Assembleia Legislativa”. 407 BORDALO, Rodrigo. Os órgãos colegiados no Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 2016. p. 106: “[...] a representação popular encontrava no colegiado legislativo a sua principal forma de evidência, embora não se possa deixar de reconhecer que no próprio Poder Judiciário a participação popular se impõe há tempos por meio do instituto do júri”. 408 BORDALO, Rodrigo Os órgãos colegiados no Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 2016. p. 106: “Nesse sentido, os atos dos agentes são imputados à pessoa estatal, por força da impessoalidade que norteia a atuação da Administração”. 409 BORDALO, Rodrigo. Os órgãos colegiados no Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 2016. p. 135-136: “Além disso, essa construção reforça a concepção material de órgão público, alheia aos agentes que o titularizam. A identificação dos órgãos com as atribuições exercidas evidencia o seu caráter de permanência. Assim, conforme vislumbrado por Zanobini, o ‘caráter institucional do órgão explica sua continuidade e indefectibilidade, não obstante a troca dos elementos que o compõem e mesmo a falta temporária de algumas delas. Sob tal perspectiva é que se justifica a permanência do órgão público na situação de vacância dos agentes públicos que o ocupam”. 410 BORDALO, Rodrigo. Os órgãos colegiados no Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 2016. p. 149: “É neste contexto que ganha destaque o fenômeno colegial, cujo pressuposto lógico é a deliberação em estado associativo”.
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Isso gera maior presunção isenção, imparcialidade e segurança na produção
da legislação. Existem múltiplos posicionamentos que privilegiam o amadurecimento
do assunto e de seus reflexos perante a sociedade.
O debate é próprio do Parlamento411, ainda que pensamentos antagônicos
sejam apresentados, o que independe das ideias serem majoritárias ou minoritárias,
radicais ou não, conservadoras ou liberais, benéficas ou maléficas.412 Não existem
verdades absolutas e a liberdade de ideias deve imperar, até porque sem isso não
há desenvolvimento413.
Aceitar informações preconcebidas e sem discussões amplas pode ser um
convite ao equívoco414. Qualquer sociedade que pretenda ter progresso deve
assegurar amplamente todas as liberdades415-416, que é o que confere autonomia e
racionalidade às pessoas417 e às decisões plenárias.
Inexiste hierarquia de concepções. Os posicionamentos são paritários e
horizontais. Um não é superior ao outro e nem tampouco é mais ou menos
411 BORDALO, Rodrigo. Os órgãos colegiados no Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 2016. p. 195: “[...] a noção de deliberação eficiente representa um elemento que contribuiu para a institucionalidade da organização colegial. Esse aspecto ganha uma notável expressão nos colégios com participação popular”. 412 MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. Lisboa: Edições 70. 2013. p. 51: “[...] nunca poderemos ter a certeza de que a opinião que procuramos amordaçar seja falsa; e, mesmo que tivéssemos, amordaça-la seria, ainda assim, um mal”. 413 MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. Lisboa: Edições 70. 2013. p. 126. 414 FARIAS NETO, Pedro Sabino de. Ciência Política. São Paulo: Editora Atlas, 2011. p. 144. “No contexto atual de alienação avassaladora, os indivíduos não querem pensar e refletir, negligenciando quaisquer atos de leitura com atenção. Desse modo, os indivíduos não querem ter o trabalho de elaborar os sentidos das coisas e buscam apenas consumir tudo pronto, inclusive os sentidos das coisas. Os indivíduos recebem e aceitam ideias e opiniões feitas, oriundas do seu meio social, que evolve condicionado pelos veículos de comunicação e pelos entes do seu círculo de convivência. Eles aderem a essas ideias e opiniões feitas como se as tivesse elaborado”. 415 BAUMAN, Zygmunt. Em busca da Política. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2003. p. 112. “Os indivíduos só são livres quando podem instituir uma sociedade que protege e promove sua liberdade”. 416 MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. Lisboa: Edições 70. 2013. p. 51. “Os poderes intelectuais e morais, tal como os musculares, só se desenvolvem quando são usados”. 417 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70. 2005.
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importante418. As minorias também têm o direito a dar vazão as suas ideias, o que é
preponderante para tornar a deliberação mais abrangente possível419.
Também é facultada a convocação da sociedade civil420 para debater os
assuntos no afã de permitir uma maior investigação do assunto antes da matéria ser
encaminhada ao plenário421.
Embora o papel seja de colher informações422, a decisão final é de autonomia
do Parlamento, sem qualquer vínculo ao que ficou estabelecido nas audiências
públicas423.
O mandatário pode participar ativamente dos debates e ainda assim se abster
de votar. Trata-se de uma faculdade e isso não pode levar à conclusão de que este
não concorreu para o resultado final. Nessas situações ele opina, mas não vota, tal
qual como os membros do Ministério Público em ações em que não sejam os
autores da demanda. Também é possível que a renúncia do voto seja precedida de
omissão nas discussões. Mas ainda assim haverá contribuição no resultado: a
418 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política & Teoria do Estado. 7. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2010. p. 109: “[...] a democracia é a única sociedade e o único regime político que considera o conflito legítimo, uma vez que não só trabalha politicamente os conflitos de necessidade e de interesses, como procura instituí-los como direitos e, como tais, exige que sejam reconhecidos e respeitados. Mais do que isto, nas sociedades democráticas, indivíduos e grupos organizam-se em associações, movimentos sociais e populares, classes se organizam em sindicatos, criando um contra poder social que, direta ou indiretamente, limita o poder do Estado; em segundo lugar, a democracia é a sociedade verdadeiramente histórica, isto é, aberta ao tempo, ao possível, às transformações e ao novo”. 419 BORDALO, Rodrigo. Os órgãos colegiados no Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 2016. p. 163: “A noção de órgão colegiado decorre da constatação de que a tomada de decisões em ambientes pluripessoais de natureza deliberativa resulta em atos presumidamente adequados, revestidos de maior legitimidade, porquanto fruto de debate e da contraposição de ideias, condições propícias para conclusões apropriadas. [...]. O direito das minorias, por exemplo, encontra no ambiente de discussão um canal adequado de manifestação e reverberação, passando a integrar, de algum modo, a decisão a ser tomada”. 420 BORDALO, Rodrigo. Os órgãos colegiados no Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 2016. p. 208: “[...] a participação popular em órgãos colegiados é um instrumento da democracia participativa destacada pela Constituição Federal”. 421 VALIM, Rafael; MALHEIROS, Antônio Carlos; BACARIÇA, Josephina. (Coords.) Acesso à Informação Pública. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2015. p.184. “Para que se cumpra a potência democrática e libertária da opinião pública na esfera da soberania popular, é necessário observar as condições para existência de um espaço de comunicação pública que estabeleça, incorpore e estimule formas comunicativas de vozes plurais e autônomas na sociedade. Ou seja, um espaço que respeite e permita a manifestação das particularidades dos cidadãos e cidadãs que participam do processo político. Assim configurada, a opinião pública democrática se constitui como a expressão pública da liberdade individual de cada pessoa participar da voz coletiva, apresentando uma base pública da liberdade de expressão ao mesmo tempo em que é conformada por ela”. 422 BORDALO, Rodrigo. Os órgãos colegiados no Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 2016. p. 213: “O princípio da democracia participativa detém um vetor hermenêutico, de modo a funcionar como um critério interpretativo do ordenamento”. 423 Rodrigo Bordalo faz citação de Carlos Ayres Brito a respeito do tema, o qual pontificou que “a participação popular não quebra o monopólio estatal da produção do Direito, mas obriga o Estado a elaborar o seu Direito de forma emparceirada com os particulares.” (BORDALO. Os órgãos colegiados no Direito Administrativo Brasileiro. Editora Saraiva. 2016. p. 212).
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abstenção gera efeito negativo para fins de quórum e, portanto, faz parte da
conclusão do posicionamento da Casa.
O Presidente da Casa Legislativa conduz as sessões e deve manter uma
postura isonômica para com os demais parlamentares. Entretanto, isso não faz dele
um agente hierarquicamente superior. Em que pese tenha a função de coordenar os
trabalhos, inexiste superioridade do Presidente nas discussões e votações. Pelo
contrário, boa parte dos regimentos internos dos Parlamentos dispõe que o
Presidente só vota em caso de empate424-425, inclusive lhe sendo vedado participar
ativamente dos debates426-427.
Embora exista a tramitação prévia, tudo se concretiza no plenário: local do
debate de ideias428. É crucial que os representantes tenham conhecimento da
realidade da nação ou que tenham instrumentos para obter informações em sentido
amplo. Quanto mais informações, melhor. Somente assim é possível atender às
demandas da sociedade de maneira eficiente.
A participação dos parlamentares nas sessões é obrigatória, até mesmo para
possibilitar discussões abrangentes. A ausência constante e injustificada pode levar
até mesmo a perda do mandato por desrespeitar a essência colegiada da função
(CF, Art. 55, III)429.
Para Rodrigo Bordalo, o colegiado:
424 BRASIL. Resolução nº 17/1989. Aprova o Regimento Interno da Câmara dos Deputados. “Art. 17. São atribuições do Presidente, além das que estão expressas neste Regimento, ou decorram da natureza de suas funções e prerrogativas: [...] VI - quanto à sua competência geral, dentre outras: [...] p) cumprir e fazer cumprir o Regimento. § 1º O Presidente não poderá, senão na qualidade de membro da Mesa, oferecer proposição, nem votar, em Plenário, exceto no caso de escrutínio secreto ou para desempatar o resultado de votação ostensiva”. 425 BRASIL. Resolução nº 93/1970. Dá nova redação ao Regimento Interno do Senado Federal. “Art. 51. O Presidente terá apenas voto de desempate nas votações ostensivas, contando-se, porém, a sua presença para efeito de quorum e podendo, em escrutínio secreto, votar como qualquer Senador”. 426 BRASIL. Resolução nº 17/1989. Aprova o Regimento Interno da Câmara dos Deputados. “Art. 17. [...] § 2º Para tomar parte em qualquer discussão, o Presidente transmitirá a presidência ao seu substituto, e não a reassumirá enquanto se debater a matéria que se propôs discutir”. 427 BRASIL. Resolução nº 93/1970. Dá nova redação ao Regimento Interno do Senado Federal. “Art. 50. [...] Parágrafo único. O Presidente deixará a cadeira presidencial sempre que, como Senador, quiser participar ativamente dos trabalhos da sessão”. 428 HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 5. ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey. 2010. p. 85: “A tensão política, a carga emocional e a rivalidade partidária geralmente acompanham a tramitação dos textos nas Comissões, nos Comitês, nos Grupos e deságuam no recinto ampliado do plenário, renovando-se, neste último, as etapas agitadas do percurso do projeto”. 429 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: de 5 de outubro de 1988. “Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador: [...] III - que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada;”.
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Trata-se de um ambiente no qual os componentes do órgão coletivo são instados a deliberar sobre determinado assunto, sucedendo-se à discussão uma fase de votação, com a coleta dos posicionamentos individuais, a partir da qual será proclamado um resultado. Por isso, compreende-se que a razão de ser do órgão colegiado é a ocorrência de uma deliberação, sem a qual remanesce tão somente uma instância plurissubjetiva, um mero aglomerado de agentes, desprovido de um elemento que lhe confere uma condição decisória diferenciada perante a estrutura administrativa430.
As decisões exaradas monocraticamente podem partir de premissas
equivocadas e sem a possibilidade de uma reflexão mais abrangente com outras
pessoas, cada qual com uma visão diversa, não obstante das chances de serem
arbitrárias, embora mais céleres.
Em contrapartida, caso o posicionamento seja o mais adequado, o órgão
colegiado pode criar burocracias no deslinde da questão, o que não ocorre no
regime unipessoal431. Por isso as atividades administrativas e executórias devem se
concentrar nas mãos de uma pessoa (Presidente do Legislativo e Chefe do Poder
Executivo).
Como a norma é produto da Casa, ao ser aprovada, a legislação passou pelo
crivo de todos os membros do Poder Legislativo, pouco importando a motivação do
propositor para a apresentação do projeto de lei.
Declarar uma norma como inconstitucional porque há recebimento de
vantagem indevida daquele que a propôs significaria ignorar e desprestigiar o
entendimento dos demais Parlamentares perante a relevância da legislação
aprovada, mitigando a soberania popular (CF, Art. 1º, Parágrafo Único), o que não
parece razoável e nem tampouco democrático.
430 BORDALO, Rodrigo. Os órgãos colegiados no Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 2016. p. 164. 431 BORDALO, Rodrigo. Os órgãos colegiados no Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 2016. p. 182-183: “[...] a concorrência de várias pessoas no exercício destas atribuições facilita o intercâmbio de entendimentos, de opiniões e de pontos de vista diversos, assegurando, em última instância e potencialmente, o acerto da decisão pública. Por outro lado, a agilidade requerida para o exercício de funções executivas justifica a preferência pelos órgãos unipessoais. Desta feita, a configuração dos órgãos colegiados como instâncias decisórias carreia um risco evidente de paralisar a decisão pública devido à maior complexidade do processo de formação da vontade”.
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Sem embargo, trilhar o raciocínio de que o vício de propositura é relevante
tornaria a discussão jurídica praticamente impossível nos casos em que a legislação
fosse de iniciativa popular (CF, Art. 14, §3º)432.
Isto porque, nestes casos, o critério quantitativo do número necessário de
propositores para iniciar o processo legislativo seria significativo, uma vez que é
fundamental a assinatura de ao menos 5% (cinco por cento) do eleitorado nos
municípios (CF, Art. 29, XIII) 433 e de 1% (um por cento) caso se trate de legislação
federal, cujos eleitores devem estar distribuídos em pelo menos cinco Estados, com
não menos de 0,3% (três décimos por cento) em cada um deles (CF, Art. 61, §2º) 434.
Seria irrealizável a tarefa de descobrir qual foi a motivação de cada uma dessas
pessoas, tornando mais controverso ainda caso algumas delas tivessem vício nas
condutas e outras não.
Destarte, conclui-se que é indiferente o vício de propositura para fins de
declaração de inconstitucionalidade da norma.
4.1.2 A controvérsia se o número de votos viciados é relevante
Como salientado no tópico anterior, para fins de constitucionalidade, é
irrelevante se o parlamentar recebeu qualquer tipo de vantagem para realizar a
propositura da norma (4.1.1).
Ato contínuo, considerando que após a regular tramitação o projeto de lei
deve ser remetido ao plenário para discussão e posterior votação, cabe analisar se o
número de votos viciados tem relevo significativo no tema.
É necessário abordar se a “compra” de um único voto já seria o suficiente
para arguir a declaração de inconstitucionalidade da norma ou se é necessário que
se comprove que o número mínimo de votos exigido pelo quórum somente foi obtido
432 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: de 5 de outubro de 1988. “Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: [...] III - iniciativa popular”. 433 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: de 5 de outubro de 1988. “Art. 29. [...] XIII - iniciativa popular de projetos de lei de interesse específico do Município, da cidade ou de bairros, através de manifestação de, pelo menos, cinco por cento do eleitorado”. 434 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: de 5 de outubro de 1988. “Art. 61. [...] § 2º A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles”.
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após o recebimento de vantagem indevida por parte dos parlamentares, ou seja,
houve “compra” dos votos necessários para a aprovação da legislação.
Para a Procuradoria-Geral da República a quantidade de votos viciados deve
ser em “número suficiente para alterar o quadro de aprovação do ato normativo”, sob
pena de se tornar irrelevante a conduta, conforme consta no parecer lavrado pelo
Parquet nos autos da ADI 4.887435.
A Advocacia-Geral da União possui entendimento na mesma linha do
Ministério Público, inclusive tendo afirmado naquele mesmo processo (ADI 4.887)
que “dever-se-ia perquirir, concretamente, sobre quais e quantos parlamentares
haveriam votado pela aprovação desses diplomas normativos por motivos ilícitos”.
Em sintonia com essas posições, para vislumbrar possível
inconstitucionalidade por vício no móvel do agente é primordial que seja comprovado
que o número de votos viciados foi determinante para atingir o quórum de votação.
Esse requisito não necessariamente leva à conclusão de que a norma será
inconstitucional. Pelo contrário, apenas se trata de um critério objetivo para almejar a
ilegalidade da norma. Não faria nenhum sentido que uma legislação, após ser
aprovada por mais de 500 (quinhentos) Deputados Federais, venha a ser declara
inconstitucional porque restou comprovado que 10 (dez) parlamentares receberam
vantagem indevida para a aprovação. A situação seria desproporcional e
desarrazoada, ofendendo por completo a soberania popular, sobretudo porque a
Casa Legislativa atingiu o quórum mínimo sem qualquer irregularidade.
Embora a origem da conduta seja reprovável, caso a minoria que tenha
recebido vantagem ilícita venha a tentar influenciar os demais parlamentares
mediante argumentos lícitos, se trata de algo absolutamente natural.
A persuasão é própria dos Parlamentos, de modo que àqueles que foram
convencidos a votarem dessa ou daquela maneira sem qualquer contrapartida não
incidiram em ilegalidade e os seus votos devem ser preservados em homenagem a
representatividade democrática436.
435 Parecer nº 10.323/PGR, protocolado no STF em 13 de maio de 2013. 436 ZOCKUN, Maurício. Responsabilidade patrimonial do Estado. São Paulo: Editora Malheiros, 2010. p. 124: “[...] os atos legislativos são manifestações de soberania [...]”.
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Por analogia, em se tratando de Direito Eleitoral, basta a compra de um único
voto para que o candidato venha ser cassado437. Já o resultado final da votação
pode ou não ser anulado.
Na hipótese de se tratar de disputa aos cargos majoritários, caso um único
voto tenha sido comprado (Lei nº 9.504/97, Art. 41-A)438, todos os demais são
anulados, tornando-se necessário a convocação de novas eleições (CE, Art. 224,
§3º)439. Caso o ilícito tenha sido perpetrado em eleições proporcionais, se
comprovada a captação ilícita de sufrágio, os votos são computados para a legenda
(CE, Art. 175, §§3º e 4º)440.
A hipótese de anulação da eleição nos cargos majoritários pela compra de um
único voto decorre do fato de que o bem jurídico tutelado em questão é a livre
vontade do eleitor441, o qual deve ser depositado nas urnas livre de quaisquer vícios.
Já no caso da edição de legislação com vício no móvel do agente a tutela diz
respeito à legalidade da norma em si, de modo que a quantidade de votos
contaminados é primordial, porquanto não se busca proteger a autonomia do
parlamentar em votar, mas em saber se o quórum atingido está comprometido ou
não, demonstrando, portanto, que se trata de situação diversa, justificando as razões
pelas quais em uma é possível a anulação de todos os votos (eleições majoritárias)
e na outra depende da dimensão dos votos obtidos ilegalmente (formulação de leis).
4.1.3 A natureza da vantagem
437 BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. REspe nº 54542/SP. Relatora: Ministra Luciana Lóssio. Relator: Ministro Herman Benjamin. J.em: 23 ago. 2016. M.V. Brasília, DF. Diário da Justiça Eletrônico: 18 out. 2016. Disponível em: <www.tse.jus.br>. 438 Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997. Estabelece normas para as eleições. “Art. 41-A. Ressalvado o disposto no art. 26 e seus incisos, constitui captação de sufrágio, vedada por esta Lei, o candidato doar, oferecer, prometer, ou entregar, ao eleitor, com o fim de obter-lhe o voto, bem ou vantagem pessoal de qualquer natureza, inclusive emprego ou função pública, desde o registro da candidatura até o dia da eleição, inclusive, sob pena de multa de mil a cinquenta mil Ufir, e cassação do registro ou do diploma, observado o procedimento previsto no art. 22 da Lei Complementar no 64, de 18 de maio de 1990”. 439 BRASIL. Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965. Institui o Código Eleitoral. “Art. 224. [...] §3o A decisão da Justiça Eleitoral que importe o indeferimento do registro, a cassação do diploma ou a perda do mandato de candidato eleito em pleito majoritário acarreta a realização de novas eleições, independentemente do número de votos anulados”. 440 440 BRASIL. Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965. Institui o Código Eleitoral. “Art. 175. [...] §3º Serão nulos, para todos os efeitos, os votos dados a candidatos inelegíveis ou não registrados. §4º O disposto no parágrafo anterior não se aplica quando a decisão de inelegibilidade ou de cancelamento de registro for proferida após a realização da eleição a que concorreu o candidato alcançado pela sentença, caso em que os votos serão contados para o partido pelo qual tiver sido feito o seu registro”. 441 GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 14. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2018. p. 829.
101
A oferta hábil a gerar possível mácula de constitucionalidade por norma
editada com vício no móvel do agente deve ter caráter ilícito, ou seja, se tratar de
vantagem indevida.
4.2 A distinção da legislação com vício no móvel do agente
Até aqui já se pôde concluir que é insignificante do ponto de vista da
constitucionalidade o fato do parlamentar ter proposto um projeto de lei mediante o
recebimento de vantagem indevida (vício de propositura - 4.1.1), bem como que
para se arguir a inconstitucionalidade por vício no móvel do agente é necessário que
o número de votos viciados tenha sido fundamental para se atingir o quórum exigido
(vício de votação - 4.1.2) e que a vantagem oferecida como contrapartida seja ilícita
(4.1.3).
Para dar sequência é de suma importância fazer a dicotomia entre a
legislação infraconstitucional e as emendas constitucionais editadas com vício no
móvel do agente, porque as hierarquias no ordenamento jurídico são diversas e, por
óbvio, os reflexos de incompatibilidade com o sistema constitucional também o são.
4.2.1 Vício em legislação infraconstitucional
A elasticidade com que o Parlamento pode editar normas é extremamente
abrangente por força da discricionariedade legislativa (2.3). Todavia,
independentemente do teor, a edição da legislação deve respeitar os mandamentos
constitucionais.
Caso haja fiel observância a esses critérios, e, paralelamente a isso, o
quórum de aprovação seja obtido mediante compra de apoio político (4.1.2), não há
que se falar em inconstitucionalidade por vício de votação nas leis
infraconstitucionais.
Se os valores constitucionais foram devidamente aplicados, é irrelevante a
vontade do agente e o que motivou o ato, tal qual como na discricionariedade
administrativa (2.2.3). Não há espaço para subjetivismo. Trata-se de um aspecto
objetivo. Na hipótese de terem sido satisfeitas as questões legais, pouco importa se
102
o parlamentar recebeu vantagem indevida para propor e/ou aprovar uma legislação
infraconstitucional, mormente porque os preceitos constitucionais foram cumpridos.
Para exemplificar, coloquemos uma legislação que seja excelente do ponto de
vista público por todas as vertentes (sociais, políticas, jurídicas, econômicas, dentre
outras). Entretanto, alguns parlamentares, cujos votos são preponderantes para a
aprovação da lei, afirmam que só vão consentir com a proposta se houver
recebimento de vantagem indevida.
Embora vá ao encontro do interesse público, não seria condizente declarar a
inconstitucionalidade da norma pelo simples fato de que alguns membros do
Parlamento receberam benefício ilícito como contrapartida de seus votos.
Nesses casos o problema não estaria na legislação, a qual é juridicamente
válida por atender aos aspectos materiais e formais de norma hierarquicamente
superior (Constituição). A ilegalidade repousaria na conduta dos agentes públicos,
os quais deverão ser responsabilizados pessoalmente, sem que isso possa gerar
reflexos de inconstitucionalidade na referida legislação.
A colocação de Ricardo Marcondes Martins é na linha do nosso
posicionamento:
O vício de vontade de um ou mais deputados ou senadores é absolutamente irrelevante: se a lei editada concretiza um princípio constitucional, se a ponderação efetuada pelo legislador é razoável e justa, a lei não pode ser declarada inconstitucional porque um deputado alegou ter-se enganado, que votou pensando trata-se de outro projeto ou, ainda, que não visou à concretização do princípio por ela tutelado, mas a um interesse pessoal dele. Enfim, o vício de vontade do legislador é absolutamente irrelevante para os fins de controle de constitucionalidade: basta que, observadas às regras do processo legislativo, a lei concretize um princípio constitucional e que a ponderação efetuada seja razoável e justa para que ela seja considerada legítima, independentemente de qualquer vício volitivo do parlamentar442.
Nestes casos, se a legislação ultrapassar os limites materiais ou formais da
Carta Magna ela será inconstitucional. Não porque houve vício no móvel dos
parlamentares durante a votação, o qual é indiferente para normas
infraconstitucionais, mas simplesmente porque colidiu com a Constituição.
442 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Editora Malheiros, 2008. p. 55-56.
103
Se a conduta parlamentar viciada de ato infraconstitucional resultar em
nulidade, todo e qualquer ato executado mediante o recebimento de vantagem ilícita
estaria maculado, o que se mostra incoerente, inclusive por potencializar a
insegurança jurídica443.
4.2.2 Vício em emenda constitucional
A abordagem do vício de votação nas normas infraconstitucionais é de cunho
objetivo, cujo paradigma é a Constituição (4.2.2). Já para as EC’s a questão é
subjetiva, porquanto não há norma hierarquicamente superior como parâmetro
referencial de legalidade, de modo que a possível incompatibilidade com o
ordenamento jurídico deve ser dirimida sob a ótica dos princípios constitucionais
para saber se é possível a declaração de sua inconstitucionalidade por vício no
móvel do agente.
Quando editada prefacialmente, passando pela vertente do Estado
Democrático de Direito, a Constituição de 1988 delimitou os aspectos
preponderantes que iriam nortear a atividade no país.
Traçou-se, então, uma diretriz jurídica a ser seguida na República, vinculando
os agentes públicos, inclusive no que tange ao que o ordenamento pontuou como
sendo de interesse da coletividade444.
443 STRECK, Lenio Luiz. E o juiz mineiro “azdakiou” ou “Eis aí o sintoma da crise”. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2012-nov-01/senso-incomum-juiz-mineiro-azdakiou-ou-eis-ai-sintoma-crise> . Acesso em: 27 maio. 2019. 444 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis. Bolzan de. Ciência Política & Teoria do Estado. 7. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2010. p. 97-98 e 100: “O Estado Democrático de Direito tem um conteúdo transformador da realidade, não se restringindo, como o Estado Social de Direito, a uma adaptação melhorada das condições sociais de existência. Assim, o seu conteúdo ultrapassa o aspecto material de concretização de uma vida digna ao homem e passa a agir simbolicamente como fomentador da participação pública no processo de construção e reconstrução de um projeto de sociedade, apropriando-se do caráter incerto da democracia para veicular uma perspectiva de futuro voltada à produção de uma nova sociedade, onde a questão da democracia contém e implica, necessariamente, a solução do problema das condições materiais de existência [...]. Quando assume o feitio democrático, o Estado de Direito tem como objetivo a igualdade e, assim, não lhe basta limitação ou a promoção da atuação estatal, mas referenda a pretensão à transformação do status quo. A lei aparece como instrumento de transformação da sociedade não estando mais atrelada inelutavelmente à sanção ou à promoção. O fim a que pretende é a constante reestruturação das próprias relações sociais. [...]. Assim, a Constituição é colocada no ápice de uma pirâmide escalonada, fundamentando a legislação que, enquanto tal, é aceita como poder legítimo. [...] parece apropriado lembrar, de pronto, com Eros Grau, que a Constituição do Brasil não é um mero ‘instrumento de governo’, enunciador de competências e regulador de processo, mas, além disso, enuncia diretrizes, fins e programas a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. Não compreende tão somente um ‘estatuto jurídico do político’, mas um ‘plano global normativo’ da sociedade e por isso mesmo, do Estado brasileiro”.
104
Qualquer emenda constitucional gera mudança das balizas primárias do
regime jurídico, justificando a necessidade desse procedimento ser complexo,
inclusive exigindo quórum diferenciado (CF, Art. 60, I, II, III e §2º)445.
Assim, os congressistas devem aprovar qualquer EC em obediência ao
princípio da confiança que lhes foi delegada pelos eleitores446. Não seria crível que a
Constituição de 1988, editada democraticamente após uma árdua luta contra a
ditadura militar, cujo combate foi irrigado com muito sangue e suor, pudesse ser
alterada ao deleite dos parlamentares federais em virtude de interesses privados.
A prerrogativa de alterar o sistema constitucional encontra barreiras na
própria essência da democracia, de modo que essas mudanças não podem ser
pautadas por vício de corrupção, mormente porque o seu resultado vincula o
restante da nação447, tornando necessário parâmetros muito além da vedação de
abolição das cláusulas pétreas, demonstrando, portanto, que não se trata de uma
análise objetiva.
Muito embora lhes seja facultado alterar a Constituição, os congressistas
devem votar livres da corruptela. A autonomia outorgada aos parlamentares para a
elaboração de PEC’s foi para legislarem em prol da coletividade e em sintonia com
os avanços que a sociedade necessita448.
É bem verdade que o fato de receber vantagem indevida para aprovar uma
PEC não necessariamente significa que a norma seja danosa à democracia. Pelo
contrário. Muitas vezes pode ser extremamente positiva. Contudo, determinados
parlamentares podem condicionar os seus votos ao recebimento de vantagem
445 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: de 5 de outubro de 1988. “Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; II - do Presidente da República; III - de mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros. [...] § 2º - A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros”. 446 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. 3. ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2017. p. 131: “[...] se o caso em questão for um caso difícil, em que nenhuma regra estabelecida dita uma decisão em qualquer direção, pode parecer que uma decisão apropriada possa ser gerada seja por princípios, seja por política”. 447 ZOCKUN, Maurício. Responsabilidade patrimonial do Estado. São Paulo: Editora Malheiros, 2010. p. 176: “[...] não se pode conceber que os mandatários do povo com assento no Poder Legislativo, pelo simples fato de exercerem a mais alta e relevante função republicana, possam, sob este fundamento, valerem-se do mandato que lhes foi outorgado de forma irresponsável”. 448 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. 3. ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2017. p. 13: “Enquanto não tivermos clareza sobre que juízo ou prática moral o direito reflete, não poderemos criticá-lo de forma inteligente. Contudo, assim que tivermos essa clareza, restará ainda perguntar se essa prática ou juízo é sensato, bem fundado ou coerente com outros princípios que o direito alega servir”.
105
indevida. Não seria isso que faria com que o conteúdo da legislação passasse a ser
visto como “maléfico”.
Porém, por não haver norma hierarquicamente superior que regulamente o
ato, as alterações constitucionais devem ocorrer mediante boa-fé449 e em deferência
à confiança da representatividade450, cujos valores se vinculam à segurança jurídica,
princípio este que acomoda o ordenamento jurídico.
Juliana Luvizotto pontua que:
O princípio da proteção à confiança, assim denominado no direito alemão, no qual tem sua origem, é também identificado como princípio da proteção à confiança legítima, no direito comunitário europeu. Supõe um amparo que o juiz deve dar ao cidadão, frente à repentina modificação do comportamento ou forma de decidir da Administração Pública, o que o faz romper a confiança do cidadão na manutenção de uma conduta que a Administração seguia em circunstâncias (políticas, sociais, econômicas) similares. O princípio seria destinado à manutenção do status quo e a evitar que as pessoas sejam surpreendidas por modificações no direito positivo ou na conduta do Estado, mesmo quando manifestadas em atos ilegais que possam ferir os interesses dos administrados ou frustrar-lhes as expectativas. [...] se confia na racionalização do poder do Estado e na sua ação, tendo em vista o interesse (que é social e coletivo, e não meramente individual) ao livre desenvolvimento da personalidade dos indivíduos451.
Se fosse admitida a irrelevância do vício no móvel do agente em sede de
PEC, tal qual como na legislação infraconstitucional (4.2.2), poderiam ser
estipulados até mesmos novos conceitos de interesse público e de sistemas
políticos, totalmente contrários àqueles positivados em 1988 e de forma destoante
dos reclamos sociais, inclusive podendo levar à perpetuação de determinados
grupos no poder.
449 MARTINS-COSTA, Judith. Almiro do Couto e Silva e a re-significação do princípio da segurança jurídica na relação entre o Estado e os cidadãos. In: ÁVILA, Humberto (Org.). Fundamentos do Estado de Direito: estudos em homenagem ao Professor Almiro do Couto e
Silva. São Paulo: Editora Malheiros, 2005. p. 136: “[...] a Administração deve não apenas resguardar
as situações de confiança traduzidas na boa-fé (crença) dos cidadãos na legitimidade dos atos administrativos ou na regularidade de certa conduta; deve também agir segundo impõe a boa-fé, considerada como norma de conduta, produtora de comportamentos ativos e positivos de proteção”. 450 COUTO E SILVA, Almiro do. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no Direito Público Brasileiro e o direito da Administração Pública de anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da lei do processo administrativo da União (Lei nº 9.784/99). Revista Eletrônica de Direito do Estado. Salvador. Instituto de Direito Público da Bahia, nº 2, abril-maio-junho. 2005. Disponível em : <http://www.direitodoestado.com.br>. Acesso em: 27 maio 2019. 451 LUVIZOTTO, Juliana Cristina. Responsabilidade civil do Estado legislador. São Paulo: Editora Almedina, 2015. p. 187.
106
Nestes casos o poder econômico estaria desfigurando a proposta originária, o
que não parece ser compatível com o Estado Democrático de Direito452.
A população tem o direito de ter uma premissa constitucional idônea453, sob
pena de levar até mesmo à desobediência civil, mormente porque “confia-se
também na racionalização do poder”454. Caso a norma da mais alta hierarquia se
venalize, é possível que, reflexamente, a população tenha dificuldades em respeitá-
la ao tomar ciência de como ocorreu a sua produção.
Para Odete Medauar, é necessário que haja “confiança dos indivíduos na
subsistência das normas”455, sobretudo para que os cidadãos tenham fundamentos
cívicos suficientes para obedecê-las456.
Judith Martins-Costa esclarece a indispensável necessidade de confiança na
conduta do Estado perante a sociedade. Diz ela:
O Estado-incitador propõe políticas públicas, diretrizes a serem alcançadas pela ação pública ou privada numa relação que não é mais de subordinação, mas de coordenação e de cooperação, falando-se então na ‘consensualidade nas decisões administrativas’. Tudo isso corresponde à atribulada travessia, que vivenciamos em tão poucas décadas, entre o ‘mundo da segurança’ e a ‘sociedade do risco’, e risco permanente. A essa atribulada travessia corresponde o fenômeno da mutação, que não é só de forma, senão de estrutura jurídica. Ao invés da plana e linear legalidade que levava, quase que automaticamente, à cadeia dedutiva entre: Estado de Direito/princípio da legalidade/princípio da segurança jurídica/princípio da confiança na estabilidade ou na regularidade dos comportamentos e ações estatais, o cidadão (o administrado, a
452 LUVIZOTTO, Juliana Cristina. Responsabilidade civil do Estado legislador. São Paulo: Editora
Almedina, 2015. p. 188: “[...] não há previsão expressa na Constituição quanto à proteção à confiança, de modo a possibilitar que fosse considerada como explícito limite ao legislador. O Supremo Tribunal Federal, contudo, já reconheceu que a segurança jurídica, no seu aspecto relativo à proteção à confiança, seria um princípio constitucional, imanente ao Estado de Direito, podendo ser invocado, portanto, com assento constitucional para solução das controvérsias jurídicas. As decisões proferidas na MC 2.900/RS, MS nº 24.268/MG e no MS 22.357/DF corroboram a hipótese [...]”. 453 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. 3. ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2017. p. 197: “Os indivíduos têm um direito à aplicação consistente dos princípios sobre os quais se assentam as suas instituições”. 454 MARTINS-COSTA, Judith. Almiro do Couto e Silva e a re-significação do princípio da segurança jurídica na relação entre o estado e os cidadãos. In: ÁVILA, Humberto (Org.). Fundamentos do Estado de Direito: estudos em homenagem ao Professor Almiro do Couto e Silva. São Paulo: Editora Malheiros, 2005. p. 135. 455 MEDAUAR, Odete. Segurança jurídica e confiança legítima. In: ÁVILA, Humberto (Org.). Fundamentos do Estado de Direito: estudos em homenagem ao Professor Almiro do Couto e Silva. São Paulo: 2005. p. 117. 456 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. 3. ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2017.
p. 318: “A Constituição torna nossa moral política convencional relevante para a questão da validade. [...] Toda regra jurídica é sustentada e, presumivelmente, justificada por um conjunto de políticas as quais, supomos, ela faz avançar e por princípios os quais, supomos, ela deve respeitar”.
107
pessoa) tem hoje pela frente uma hipercomplexa teia de interlegalidade, de internormatividades, cruzadas entre valores e interesses públicos e privados, estatais e sociais, corporativos e gerais, nacionais e internacionais, dignos e espúrios. Essa teia de interlegalidade, esse entrecruzar de princípios que regem políticas públicas diversas, essa diversidade valorativa a reger os comportamentos na arena social perturbam a linearidade daquela cadeia dedutiva, de modo que a segurança não está, sempre e exclusivamente, na legalidade; o princípio da segurança jurídica (como estabilidade) e o princípio da confiança do cidadão (como expectativa legítima a certo comportamento estatal que viabilize o livre desenvolvimento da personalidade, ou a expansão de um direito fundamental) podem agir e reagir sobre campos semânticos diversos457.
Um caso em que houve relato de possível vício de votação por compra de
deputados federais foi a EC nº 16/97458, a qual passou a permitir a reeleição para os
cargos do Executivo (CF, Art. 14, §5º)459. Essa EC vinculou todos os entes,
passando a permitir, reflexamente, que Prefeitos e Governadores pudessem ser
reeleitos em todo território nacional460.
Se a proposta foi aprovada sem qualquer vício, tratou-se de uma votação em
respeito ao princípio da confiança. Implicitamente foi a população, por intermédio de
seus representantes, que assim desejou.
Em sentido contrário, caso tenha ocorrido compra de apoio político mediante
recebimento de vantagem indevida, os parlamentares mudaram a vertente jurídica
do país com base em interesses econômicos e políticos individuais, sem qualquer
comprometimento com a soberania popular.
457 MARTINS-COSTA, Judith. Almiro do Couto e Silva e a re-significação do princípio da segurança jurídica na relação entre o estado e os cidadãos. In: ÁVILA, Humberto (Org.). Fundamentos do Estado de Direito: estudos em homenagem ao Professor Almiro do Couto e Silva. São Paulo: Editora Malheiros, 2005. p. 137-138. 458 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política & Teoria do Estado. 7. ed. Porto Alegre Editora Livraria do Advogado, 2010. p. 120: “Ninguém duvida que o presidente Fernando Henrique Cardoso cumpriu as promessas de campanha. [...]. Além disso, sua base de sustentação no Congresso permitiu que fosse aprovada Emenda Constitucional instituindo a reeleição do Presidente da República, em processo que até hoje suscita críticas dos setores da oposição, em face da acusação de compra de votos de deputados. No campo jurídico, vários juristas consideram a emenda da reeleição inconstitucional”. 459 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: de 5 de outubro de 1988. “Art. 14. [...] §5º - O Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal, os Prefeitos e quem os houver sucedido, ou substituído no curso dos mandatos poderão ser reeleitos para um único período subsequente”. 460 HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 5. ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2010. p. 162: “A norma constitucional é a norma primária do ordenamento jurídico, ocupando o lugar mais elevado na pirâmide do sistema jurídico. A norma constitucional é a forma norma fundamental que ocupa o vértice do ordenamento jurídico”.
108
A problemática não se encontra no conteúdo da norma em si, mas na forma
com que o devido processo legislativo se desencadeia. Quando versar a respeito de
PEC a análise do vício no móvel do agente é formal, e não material.
Caso fosse aceitável que o vício de votação em EC se tratasse de um
indiferente jurídico, em pouco tempo a Constituição poderia se tornar arrimo de
interesses de grupos econômicos e políticos, em desprestígio da população461,
mitigando por completo a soberania nacional, a qual é fundamento da República
(CF, Art. 1º, I). Nesse sentido pontifica Carlos Ayres Britto:
Para se manter como permanente referencial do ordenamento, a
Constituição tem que travar uma briga particular com suas emendas
ou revisões. Uma queda de braço com o Poder Reformador, pelo
risco maior de ela vir a ser abalroada por ele462.
O problema não está no fato de grupos econômicos e políticos defenderem
seus interesses no âmbito no Congresso Nacional, mas na forma com que isso se
operacionaliza. Caso seja concretizado por meio de expedientes ilícitos, como
ocorre no caso de compra de apoio político, inegavelmente haverá contaminação da
EC, ocasionando um divórcio entre a confiança da população e a ordem jurídica de
maior relevo.
A confiança é, pois, mais que o apelo à segurança da lei; é também
mais do que a boa-fé, embora a suponha. É crédito social, é a
expectativa, legítima, na ativa proteção da personalidade humana
como escopo fundamental do ordenamento. A confiança dos
cidadãos é constituinte do Estado de Direito, que é,
fundamentalmente, estado de confiança. Seria mesmo impensável
uma ordem jurídica na qual não se confie ou que não viabilize, por
461 PÓVOAS, Lenine de Campos. Na Tribuna da Imprensa. p. 29-31: “Se fizermos uma análise na história política do país vamos ver, com clareza meridiana, que o poder econômico sempre se fez sentir de maneira decisiva nas eleições que se processaram no país, em todos os níveis e em todos os tempos. Já vaticinei, há alguns anos passados, que a política nacional iria se tornar, dentro em breve, uma réplica perfeita da dos Estados Unidos da América do Norte [...] ali estão Senadores e Deputados eleitos sob uma ou outra dessas legendas (republicanos ou democratas), mas que são, de fato, representantes do ‘Grupo do Aço’, do ‘Grupo do Petróleo’, do ‘Grupo dos Frigoríficos’, do ‘Grupo do Carvão’ etc. Para isso é que o Brasil está caminhando, se não tomarmos urgentes providências para mudar o rumo dos acontecimentos do país”. 462 BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 126.
109
seus órgãos estatais, o indispensável estado de confiança. A
confiança, é, pois, fator essencial à realização da justiça material,
mister maior do Estado de Direito. De resto, a exigência de um
comportamento positivo da Administração Pública na tutela da
confiança legítima dos cidadãos corre paralela ao crescimento, na
consciência social, da extremada relevância da conexão entre a ação
administrativa e o dever de proteger de maneira positiva os direitos
de personalidade constituinte do eixo central dos direitos
fundamentais463.
Esse tipo de prática poderia tornar o Estado Democrático de Direito em algo
formal, se limitando a impedir que a Constituição seja alterada no seu núcleo
essencial (cláusulas pétreas), inclusive abrindo precedente para que futuramente
fossem permitidas outras alterações da Lei Maior por esse expediente, sem que
nenhuma medida judicial possa ser tomada para inibir a prática, o que não se mostra
racional e nem tampouco persuasivo464.
4.3 Consequências para o agente
A discussão entre a constitucionalidade da norma editada com vício no móvel
do agente não se confunde com a responsabilização pessoal do parlamentar que
propôs e aprovou a legislação mediante o recebimento de vantagem indevida465.
O fato do Poder Legislativo ser um órgão colegiado não afasta a
responsabilização individual de cada um dos seus representantes no caso dos seus
membros incidirem em ilegalidades. A responsabilidade se divide em política e
jurídica.
463 MARTINS-COSTA, Judith. Almiro do Couto e Silva e a re-significação do princípio da segurança jurídica na relação entre o estado e os cidadãos. In: ÁVILA, Humberto (Org.). Fundamentos do Estado de Direito: estudos em homenagem ao Professor Almiro do Couto e Silva. São Paulo: Editora Malheiros, 2005. p. 145. 464 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. 3. ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2017. p. 176: “Um precedente é um relato de uma decisão política anterior; o próprio fato dessa decisão, enquanto fragmento da história política, oferece alguma razão para se decidir outros casos de maneira similar no futuro”. 465 BORDALO, Rodrigo. Os órgãos colegiados no Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 2016. p. 243: “[...] a organização colegiada não se presta a afastar a responsabilidade dos respectivos membros, que se submetem ao regime de responsabilização dos agentes públicos, em qualquer de suas esferas. A circunstância de que a decisão coletiva resulta do amálgama de uma pluralidade subjetiva não eliminar o cometimento de ilícitos passíveis de reação”.
110
A responsabilidade política está intimamente ligada com a espinha dorsal de
um dos fundamentos da República: o prestígio que o representante goza perante a
sociedade, cuja perda leva a não reeleição e consequente alijamento da vida pública
pela falta de apoio popular, sobretudo pelo fato do agente estar atuando em
dissonância da coletividade porquanto busca a satisfação interesses privados
quando do exercício do múnus púbico. Para Geraldo Ataliba:
Essa responsabilidade política resolve-se, em regra, diante dos
mandatários, nas urnas. Essencialmente, na verdade, é pela não-
reeleição, pela perda do prestígio, pelo comprometimento do partido
– com todas as suas consequências políticas, daí advindas -, que se
punem os desvios políticos, as omissões e os gestos contrários às
grandes diretrizes consagradas pelo partido ou pela própria
Constituição. A infidelidade aos compromissos assumidos ou
excessos, desmandos, abusos ou desvios que se cometam no
exercício do mandato, com violação das prescrições éticas cabíveis
– mesmo sem chegar aos extremos da inconstitucionalidade ou da
violação de deveres legais -, resolvem-se pelos processos políticos
normais, e o sistema eleitoral aponta o caminho normal para a
solução desse tipo de problema. [...]. Evidentemente, a periodicidade
é o processo político normal e corriqueiro mediante o qual o povo se
assegura a constante fidelidade dos seus mandatários466.
Há ordenamentos que privilegiam a eficiência ao invés da estabilidade, ou
seja, caso o agente esteja conduzindo a atividade política de maneira divorciada dos
anseios populares, seja por corrupção ou inabilidade, este pode ser destituído da
função antes do término do mandato (recall)467.
Entretanto, além de não haver essa previsão na Constituição de 1988, o
sistema brasileiro optou pela estabilidade em detrimento da eficiência, o que
significa dizer que, na prática, caso o mandatário venha a ter condutas pautadas por
interesses divorciados dos reclamados sociais, nada pode ser feito468, exceto no
466 ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros. 2004. p. 67-68 e 92. 467 BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 19. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2012. p. 313: “É a forma de revogação individual. Capacita o eleitorado a destituir funcionários, cujo comportamento, por qualquer motivo, não lhe esteja agradando”. 468 BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 19. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2012. p. 335
111
próximo pleito eleitoral mediante a não reeleição do agente (responsabilização
política)469.
Pedro Sabino de Farias Neto argumenta que:
Esse regime de governo redunda, na realidade, numa ditadura a
prazo fixo. De acordo com essa argumentação, o Presidente da
República [...] pode atuar de modo equivocado e desimpedido, sem
que haja meios normais para o seu devido afastamento da
Presidência.470
A responsabilidade jurídica daqueles que receberam vantagens indevidas
pode se dar em sede de ação civil pública por ato de improbidade administrativa (Lei
nº 8.429/92) ou em processo criminal, sendo que em caso de condenação ambas as
hipóteses podem retirar a capacidade eleitoral passiva do agente e torná-lo
inelegível, impedindo-o, consequentemente, de disputar eleições pelo prazo legal
(LC nº 64/90), não se olvidando da possibilidade de eventuais cassações por quebra
de decoro no âmbito das respectivas Casas Legislativas.
469 ZOCKUN, Maurício. Responsabilidade patrimonial do Estado. São Paulo: Editora Malheiros, 2010. p. 177: “O que o povo deu com uma mão (mandato eletivo) somente por ele poderia ser retirado (censurando-o ao não reconduzi-lo no cargo eletivo ou, como querem alguns, por meio do recall)”. 470 FARIAS NETO, Pedro Sabino de. Ciência Política. São Paulo: Editora Atlas, 2011. p. 108.
112
CONCLUSÕES
O princípio que estrutura o sistema jurídico é o republicano. Todos os
desdobramentos e interpretações da atividade estatal derivam dessa premissa.
Os agentes públicos, embora tenham larga margem de atuação na atividade
discricionária, devem atingir os fins específicos delimitados em lei, sob pena de
incidir em desvio de poder e de finalidade. Isso se evidencia quando o ato é exarado
por agente incompetente ou não atende ao interesse púbico, sendo absolutamente
irrelevante a vontade íntima da autoridade que o emanou.
O instituto do desvio de poder e de finalidade também é aplicável no âmbito
da atividade parlamentar. Contudo, a forma de se detectar o vício é diversa. Nestes
casos a constatação se torna factível quando a legislação se divorcia dos fins
almejados ou quando os meios utilizados para tanto são desproporcionais.
Independentemente disto, a natureza da função legiferante outorga muita
autonomia para os parlamentares, mormente porque são eles os responsáveis para
traduzirem a vontade popular em norma.
Entrementes, atualmente há uma crise de legitimidade muito grande nas
Casas Legislativas, o que se dá por inúmeros fatores, contribuindo sobremaneira
para que os mandatários tenham atuações individualizas e voltadas para interesses
pessoais e eleitoreiros.
Esse contexto abre espaço para que normas possam ser editadas mediante o
recebimento de vantagem indevida por parte de parlamentares, tornando duvidoso
se o vício no móvel do agente durante a propositura e aprovação da norma pode ser
argumento apto a gerar a sua inconstitucionalidade.
Pelo fato do Poder Legislativo ser colegiado, pouco importa o que motivou a
propositura da norma, sobretudo porque posteriormente a legislação perpassa pelo
crivo de todos os seus membros, o que não pode ser desprezado, de modo que a
preocupação deve recair sob o número de votos viciados.
Não há como decretar a ilegalidade de norma infraconstitucional caso a
norma tenha sido aprovada mediante vício no móvel do agente. É irrelevante o que
levou o parlamentar a proferir o seu voto em legislação deste patamar hierárquico.
Caso o seu conteúdo seja compatível com a Constituição, a norma atende ao
interesse público e, portanto, é aceitável pelo ordenamento, sendo desprezível o
móvel do agente. O critério é objetivo.
113
Quando se tratar de emenda constitucional o desfecho é diverso. Caso seja
comprovado que o quórum de votação só foi atingido porque houve compra de
parlamentares mediante o recebimento de vantagens ilícitas, é plenamente possível
a declaração de sua ilegalidade por violação de inúmeros princípios que estruturam
o ordenamento jurídico.
O vício, neste caso, é de natureza subjetiva devido ao fato de não existir
norma hierarquicamente superior para aferir a compatibilidade sob o viés da
legalidade. Além disso, eventual alteração da Constituição vincula toda a nação e,
portanto, deve respeitar os preceitos republicanos para que o Congresso Nacional
exerça as modificações que entender que são necessárias.
Em legislação infraconstitucional a abordagem é pela perspectiva objetiva, de
modo que se deve observar apenas se o conteúdo da norma é compatível com a
Constituição (legalidade). Caso a resposta seja afirmativa, a legislação atendeu ao
interesse público e deve ser recebida pelo ordenamento.
Já na emenda constitucional o viés é tanto objetivo quanto subjetivo. Isso
porque, para além de vedar a abolição das cláusulas pétreas e retrocessos (critério
objetivo), não há norma hierarquicamente superior para aferir critérios objetivos de
legalidade das PEC’s, de modo que a alteração da Carta Magna deve respeitar
preceitos republicanos porquanto vincula toda a nação, razão pela qual o deslinde
de sua formação não pode macular a essência do Estado Democrático de Direito
(critério subjetivo).
Os parlamentares que receberem vantagens indevidas para proporem e
aprovarem normas estão sujeitos a responderem por ação civil pública por ato de
improbidade administrativa, processos criminais e representações por falta de
decoro, cujo desfecho poderá levar à falta de pretígio (responsabilização política),
inelegibilidade e condenações diversas (responsabilização jurídica).
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