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PITÁGORAS
OS VERSOS DE OURO DE
PITÁGORAS CARLOS CARDOSO AVELINE
UNIVERSALISMO
OS VERSOS DE OURO DE PITÁGORAS
Os Versos de Ouro da tradição pitagórica constituem um documento de valor
inestimável. Este texto breve e único é um mapa preciso do caminho prático
para a sabedoria divina.
É verdade que o documento tem sido mantido em um relativo esquecimento,
como tantos outros que pertencem à sabedoria tradicional do ocidente. Mas
isso só aumenta o valor da sua descoberta pessoal por parte do leitor. Por
outro lado, o significado desse texto brilha hoje dentro de um contexto maior,
pelo qual as filosofias clássicas grega e romana vêm, desde o século 20,
recuperando gradualmente a sua visibilidade e a sua popularidade.
Traduzo os Versos a partir do texto de Hierocles de Alexandria1, com base na
versão inglesa feita por N. Rowe em 1707, e adotada hoje pela maior parte dos
estudiosos da tradição pitagórica2. Examinei outras versões dos Versos, em
vários idiomas, mas opto por essa versão de Hierocles em inglês, cotejada, em
alguns casos, com a de Fabre d‟Olivet. Acrescento comentários e informações
adicionais com base na filosofia clássica e na filosofia esotérica.
1. Hierocles de Alexandria, filósofo neoplatônico e neopitagórico do século 5 da era cristã, foi
aluno de Plutarco de Atenas antes de começar a ensinar filosofia em Alexandria. Esse filósofo
não deve ser confundido com outro Hierocles da mesma cidade, um filósofo estóico que viveu
nos séculos 1 e 2 da era cristã. Veja Encyclopaedia Britannica, 1967.
2. Entre as principais versões disponíveis dos Versos estão: 1) Commentaries of Hierocles on
the Golden Verses of Pythagoras, Theosophical Publishing House, Londres, 1971, 132 pp.; e 2)
The Golden Verses of Pythagoras, de Fabre d’Olivet, Samuel Weiser, Inc., Nova Iorque, 1975,
164 pp. O francês Fabre d‟Olivet (1767-1825) foi qualificado por Helena P. Blavatsky como “um
gênio de erudição quase miraculosa”. Outras versões importantes dos Versos de Ouro incluem:
1) The Pythagorean Sourcebook and Library, Compiled and Translated by Kenneth Guthrie,
Phanes Press, Michigan, EUA, 1987, 361 pp., ver pp.163-165; 2) Vida Perfeita, Comentários
aos Versos de Ouro dos Pitagóricos, de Paul Carton, Martin Claret Editores, São Paulo, 1995,
188 pp.; e 3) Pitágoras, Su Vida, Sus Símbolos y los Versos Dorados, de A. Dacier, Versión
Española de Rafael Urbano, Casa Editorial Maucci, Barcelona, edição de cerca de 1920, com
317 pp., ver especialmente pp. 173-179. Cabe registrar ainda o trabalho realizado no Brasil
pelo Instituto Neo-Pitagórico (INP), de Curitiba. Fundado em 1909 por Dario Vellozo, o INP tem
várias publicações sobre temas pitagóricos. Seu endereço é Cx. Postal 1047, 80.001-970
Curitiba, PR.
Os Versos de Ouro expressam em poucas palavras e com uma clareza
definitiva o compromisso de vida dos pitagóricos de todos os tempos. Sua
mensagem será provavelmente tão atual dentro de 20 ou 25 séculos como era
na Grécia e na Roma antigas. Por outro lado, durante a complexa transição
atual para uma civilização planetária e democrática, os Versos apontam e
sinalizam impecavelmente o caminho da autoregeneração de cada indivíduo,
que constitui a base fundamental para um renascimento coletivo da sabedoria
no futuro a médio prazo.
A seguir, pois, um texto imortal, que se pode e deve ler e reler muitas vezes ao
longo do tempo. É um mapa, um guia e um tratado completo sobre a vida dos
sábios.
1. Honra em primeiro lugar os deuses imortais, como manda a
lei.
Os deuses ou espíritos imortais são os grandes instrutores da humanidade, os
Adeptos mencionados na literatura teosófica clássica, os grandes Rishis da
Índia antiga e os Imortais da tradição taoísta. Esotericamente, a lei referida aqui
é a lei da evolução, que guia simultaneamente o cosmo e cada ser que vive
nele.
Mas, de acordo com o ponto de vista de Fabre d‟Olivet, o Verso fala da lei e
dos costumes do país em que se vive. Assim, até para evitar perseguições em
tempos de intolerância, o praticante dos Versos de Ouro pode adotar qualquer
religião externa, adaptando-se à cultura em que nasceu, enquanto segue
internamente a doutrina esotérica dos pitagóricos.
2. A seguir, reverencia o juramento que fizeste.
A decisão de buscar a verdade, manifestada através de um juramento ou voto
espiritual, é uma expressão dinâmica da nossa conexão interior com o mundo
divino. Daí sua importância, a ponto de ser colocada na abertura dos Versos de
Ouro. Este juramento, no seu aspecto mais profundo, é simplesmente a
decisão, tomada em nosso próprio coração, de seguir o caminho da sabedoria.
(O juramento dos pitagóricos é discutido com mais detalhes no Verso 48.)
3. Depois os heróis ilustres, cheios de bondade e luz.
Os heróis ilustres são seres de alto grau de evolução, embora ainda não
tenham chegado à libertação espiritual alcançada pelos Adeptos ou Imortais.
4. Homenageia então os espíritos terrestres, e manifesta por
eles o devido respeito.
Os espíritos terrestres são os homens bons e sábios.
5. Honra em seguida a teus pais, e a todos os membros da tua
família.
Cumprir os deveres familiares e ter um comportamento equilibrado no plano
emocional garante uma boa parte da tranquilidade básica necessária à busca
da sabedoria divina. O desapego é igualmente importante. Um instrutor
espiritual dos Himalaias escreveu no século 19 para um discípulo leigo, Alfred
Sinnett: “Parece pouco a você que o ano anterior tenha sido empregado
apenas em seus „deveres familiares‟? Não; que melhor causa para
recompensa, que melhor disciplina que o cumprimento do dever a cada hora e
a cada dia? Creia-me, meu „aluno‟, o homem ou a mulher que é colocado pelo
Carma no meio de deveres, sacrifícios e amabilidades pequenos e definidos
irá, através do fiel cumprimento deles, erguer-se à dimensão maior do Dever,
do Sacrifício e da Caridade para com toda a humanidade. Que melhor
caminho, para a iluminação buscada por você, que a vitória diária sobre o Eu,
a perseverança apesar da ausência de progresso psíquico visível, o suportar
da má-sorte com aquela serena resistência que a transforma em vantagem
espiritual – já que o bem e o mal não podem ser medidos por acontecimentos
no plano inferior ou físico?”3
3. Veja Cartas dos Mahatmas Para A. P. Sinnett, Ed. Teosófica, Brasília, volume II, Carta 123,
pp. 269-270.
6. Entre todos os outros, escolhe como amigo aquele que se
distingue por sua virtude.
Na sua obra intitulada “Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates”, Xenofonte
conta como Sócrates ensinou a Cristóbulo a arte de afastar-se de homens
ignorantes. Ao terminar sua exposição, o sábio aconselha: “Fica tranquilo,
Cristóbulo: procura fazer-te bom e, uma vez bom, põe-te à caça dos corações
virtuosos.”4
4. Sócrates, Coleção Os Pensadores, Nova Cultural, Círculo do Livro, 1996, 300 pp., ver
capítulo seis do livro II, pp. 105-108.
7. Aproveita sempre suas suaves exortações, e segue o
exemplo das suas ações virtuosas e úteis.
8. Mas evita, tanto quanto possível, afastar-te do teu amigo por
um pequeno erro.
9. Porque a força é limitada pela necessidade.
Hierocles comenta: “É para o nosso benefício mútuo que a lei da amizade nos
une, para que os nossos amigos possam ajudar-nos a crescer em virtude, e
para que nós possamos, reciprocamente, ajudá-los em seu progresso nesse
sentido. Porque, como companheiros de viagem no caminho que leva a uma
vida melhor, nós deveríamos, para nosso proveito comum, transmitir a eles as
coisas boas que possamos descobrir, talvez com mais clareza que eles.” E
Hierocles faz uma advertência: “Há apenas uma coisa que não devemos
aceitar em um amigo, que é que ele caia em um comportamento corrupto”.
Nesse ponto, como sempre, valem mais os atos que as palavras. Mas,
acrescenta Hierocles, nessa situação “não devemos vê-lo como inimigo,
porque já foi nosso amigo, nem devemos vê-lo como nosso amigo, por causa
do seu comportamento decadente”.
10. Lembra que todas essas coisas são como eu te disse.
11. Mas acostuma-te a vencer essas paixões: primeiro, a gula;
depois a preguiça, a luxúria e a raiva.
Segundo Hierocles, “essas são as paixões que devemos restringir e manter
dominadas, para que elas não possam descompor e obstruir a nossa razão.”
12. Nunca faças junto com outros, nem sozinho, algo que te dê
vergonha.
13. E, sobretudo, respeita a ti mesmo.
Os versos 12 e 13 recomendam duas coisas inseparáveis: a auto-restrição e o
auto-respeito, ou, em outras palavras, a abstenção do erro e a auto-estima. De
fato, só com respeito por nós mesmos – um sentimento que na verdade é amor
pelo que há de mais puro e elevado em nós – podemos ter uma suave
disciplina não-repressiva que nos permite abster-nos daquilo que sabemos que
é errado.
14. Pratica a justiça com teus atos e com tuas palavras.
15. E estabelece o hábito de nunca agir impensadamente.
16. Mas lembra sempre um fato, o de que o destino estabelece
que a morte virá a todos;
17. E que as coisas boas do mundo são incertas, e assim como
podem ser conquistadas, podem ser perdidas.
18. Suporta com paciência e sem murmúrios a tua parte, seja
qual for,
19. Dos sofrimentos que o destino determinado pelos deuses
lança sobre os seres humanos.
Temos aqui as idéias centrais adotadas mais tarde pelos filósofos estóicos. O
filósofo-imperador neoestóico Marco Aurélio recomendava: “Vive cada dia da
tua vida como se fosse o último”. Os estóicos construíram sua filosofia sobre a
idéia da indiferença diante da dor e do prazer externos e de curto prazo. Essa
regra básica da arte de viver ocupa lugar central em Sócrates, Platão, e muitos
outros filósofos, para não falar em tradições orientais como Raja Ioga e outras.
Em relação ao Verso 19, Platão escreve em A República que “Deus” – que
para os gregos é a pluralidade estrutural do mundo divino, a idéia universal –
nunca é o causador dos sofrimentos de alguém. Ali, Platão faz Sócrates
afirmar: “Deus não é a causa de tudo, mas tão-somente do bem”.5 Estaria,
então, equivocado o Verso 19? Não. O Verso não é fatalista. O “destino
determinado pelos deuses” e que é lançado sobre o ser humano foi criado pelo
próprio homem. Os “deuses”, as inteligências divinas em seu funcionamento
coletivo, apenas ordenam e organizam, natural e espontaneamente, o carma
ou destino que a própria humanidade cria para si. Por isso é errado rezar ou
pedir favores a deuses ou seres divinos. A solução prática é agir bem e
acertadamente, esperando que o bom carma amadureça para que os seus
resultados possam ser colhidos. No entanto, as orações são úteis sempre que
servem para que o nosso pensamento se erga acima das angústias. O
pensamento positivo dá bons frutos, e embora as orações não tenham valor
como pedidos, elas funcionam como mecanismos de elevação da consciência.
5. A República, Platão, Nova Cultural Ltda., SP, 2000, 352 pp., ver pp. 68-69.
20. Mas esforça-te por aliviar a tua dor no que for possível,
21. E lembra que o destino não manda muitas desgraças aos
bons.
O destino, como vimos, é o carma, isto é, o encadeamento de ações e reações
da vida. O carma, diz o verso 21, não manda muitas desgraças aos bons. Está
correto. Porém, a vida é complexa, e é oportuno lembrar uma advertência de
Helena Blavatsky, que escreveu o seguinte em 1883: “O chela” – isto é, o
aprendiz da sabedoria eterna – “é levado a enfrentar não só todas as más
propensões latentes em sua natureza, mas, por acréscimo, todo o conjunto de
poder maléfico acumulado pela comunidade e nação a que ele pertence.
Porque ele é uma parte integral daqueles agregados, e tudo o que afeta tanto o
homem individual como o grupo (cidade ou nação) reage um sobre o outro.
Nesta instância a luta pela bondade destoa do conjunto da maldade em seu
meio ambiente, e atrai sua fúria sobre si.”6
6. Veja o texto Chelas and Lay Chelas, em Collected Writings, H.P. Blavatsky, volume IV, TPH,
Adyar, Índia, 1991, p. 612
Esse parece ser o motivo pelo qual grande quantidade de seres que
trabalharam pela regeneração humana foram severamente perseguidos, ou
pelo menos incompreendidos, em seu tempo. Entre eles estão Sócrates,
Pitágoras, Apolônio de Tiana, São Francisco de Assis, São João da Cruz,
Martim Lutero, Mahatma Gandhi, Alessandro Cagliostro e a própria Helena
Blavatsky. E foram milhares. A vida de Jesus, no Novo Testamento, simboliza e
retrata esse mesmo processo. Porém, é central o fato de que, sendo bons,
eliminamos as fontes e a causa do nosso sofrimento. E isso ocorre mesmo
que, a curto prazo, haja desafios e dificuldades. Não é por acaso que o
caminho da libertação espiritual passa pelo desapego e pela indiferença à dor e
ao prazer.
Esse verso também sugere que, se formos bons e altruístas, teremos uma
quota de felicidade. Mas essa felicidade será predominantemente interior e não
surgirá de uma vida externamente prazenteira ou indulgente.
22. O que as pessoas pensam e dizem varia muito; agora é algo
bom, em seguida é algo mau.
23. Portanto, não aceites cegamente o que ouves, nem o
rejeites de modo precipitado.
24. Mas, se forem ditas falsidades, retrocede suavemente e
arma-te de paciência.
25. Cumpre fielmente, em todas as ocasiões, o que te digo
agora:
26. Não deixes que ninguém, com palavras ou atos,
27. Te leve a fazer ou dizer o que não é melhor para ti.
28. Pensa e delibera antes de agir, para que não cometas ações
tolas,
Um raja iogue dos Himalaias escreveu, no século 19, em uma carta para sua
discípula ocidental Laura C. Holloway: “Como você pode discernir o real do
irreal, o verdadeiro do falso? Só através do autodesenvolvimento. Como
conseguir isso? Primeiro, precavendo-se contra as causas do auto-engano. E
isso você pode fazer dedicando-se, em determinada hora ou horas fixas, a
cada dia, totalmente só, à autocontemplação, a escrever, a ler, a purificar suas
motivações, a estudar e corrigir seus erros, ao planejamento do seu trabalho na
vida externa. Essas horas deveriam ser reservadas como algo sagrado e
ninguém, nem mesmo o seu amigo ou seus amigos mais íntimos, deveria estar
com você naquele momento. Pouco a pouco sua visão ficará clara, você
descobrirá que as névoas se dissipam (...).”7
7. Cartas dos Mestres de Sabedoria, editadas por C. Jinarajadasa, Ed. Teosófica, Brasília, 295
pp., ver Carta II para Laura Holloway, p. 146.
29. Porque é próprio de um homem miserável agir e falar de
modo impensado.
A expressão “homem miserável” significa aqui “homem que sofre”, um ser que
passa por misérias.
30. Mas faze aquilo que não te trará aflições mais tarde, e que
não te causará arrependimento.
31. Não faças nada que sejas incapaz de entender,
32. Mas aprende tudo o que for necessário aprender, e desse
modo terás uma vida feliz.
33. Não esqueças de modo algum a saúde do corpo,
Uma espiritualidade empobrecida e estreita, baseada em crenças cegas e
cerimônias, acabou provocando na cultura ocidental um tradicional desprezo
pelo corpo, como se só o espírito fosse bom e a “carne” fosse má. Esse grave
erro tem levado à visão do caminho espiritual como algo distanciado da prática
concreta. Para a sabedoria eterna, como para a filosofia clássica, o corpo é o
templo habitado pelo espírito, e deve ser tratado com respeito e consideração.
Matéria, energia e espírito são três aspectos da mesma Vida Una8. Assim, o
corpo é um instrumento prático para vivenciar e expressar o que é sagrado.
8. Para ler mais a respeito da relação prática entre corpo e mente, matéria e espírito, veja o
capítulo 14, intitulado O Corpo Inseparável da Alma, no livro Três Caminhos Para a Paz
Interior, Carlos Cardoso Aveline, Ed. Teosófica, Brasília, 2002, 193 pp.
34. Mas dá a ele alimento com moderação, o exercício
necessário e também repouso à tua mente.
Aqui parece ter havido uma contaminação do texto ao longo do tempo. Na
versão disponível atribuída a Hierocles, lemos, literalmente: “Mas dá a ele
bebida e carne na medida certa, e também o exercício que ele necessita”. Na
verdade, sabe-se que as comunidades pitagóricas eram vegetarianas. Como a
menção a consumo de carne está fora de contexto, opto, em parte, pela versão
de Fabre d‟Olivet, que diz, literalmente: “Dá, com moderação, alimento ao
corpo, e à mente repouso”.
35. O que quero indicar com a palavra moderação é aquilo que
não te provocará mal-estar.
Os extremos devem ser evitados. Essa é uma menção ao caminho do meio e
ao avanço gradual a ser realizado pelo aprendiz, sem pressa e sem pausa.
36. Acostuma-te a uma vida decente e pura, sem luxúria.
37. Evita todas as coisas que causarão inveja.
Isso nem sempre é possível para o aprendiz. Até mesmo a bondade e a
sinceridade de alguém podem ser motivos de inveja – por exemplo, por parte
daqueles que decidiram fazer ouvidos surdos à sua própria consciência. Aquele
que optou pela astúcia pode sofrer agudamente ao ver as ações corretas e as
motivações puras de alguém que escuta a voz do coração. Um tal indivíduo
poderá invejar e atacar o aprendiz da sabedoria, tentando legitimar e confirmar
desse modo, para si mesmo e para os outros, a sua decisão de abandonar
como algo “impossível” ou “utópico”, a prática da sinceridade. Veja, a propósito,
o comentário ao Verso 21. Porém, a cautelosa recomendação do Verso 37 é
fundamental. Servirá para reduzir em boa parte os sofrimentos no caminho do
aprendizado.
38. E não cometas exageros no uso de bens materiais. Vive
como alguém que sabe o que é honrado e decente.
39. Não ajas movido pela cobiça ou avareza. É excelente usar a
justa medida em todas essas coisas.
40. Faze apenas as coisas que não podem ferir-te, e decide
antes de fazê-las.
Os princípios da conduta pitagórica devem ser ponderados uma e outra vez,
até que sejam absorvidos em cada um dos níveis de consciência e nas práticas
da rotina diária do aprendiz. Os caminhantes espirituais gradualmente se
transformam, eles mesmos, na verdade universal que é tema do seu estudo e
da sua contemplação. Por isso os Versos 38 a 40 reforçam duas idéias
fundamentais sugeridas antes: agir moderadamente e nunca atuar de modo
impensado. Segundo o Verso 40, devemos antecipar mentalmente as
consequências das nossas ações e evitar aquilo que nos causará mais mal do
que bem. Quase toda ação causa efeitos contraditórios, alguns agradáveis,
outros desagradáveis. Há ações altruístas, por exemplo, que implicam um grau
de sacrifício relativamente alto a curto ou a médio prazo. Mas o saldo das
ações deve ser positivo a longo prazo. E a decisão a respeito delas deve ser
soberana.
41. Ao deitares, nunca deixes que o sono se aproxime dos teus
olhos cansados,
42. Enquanto não examinares com a tua consciência mais
elevada todas as tuas ações do dia.
43. Pergunta: “Em que errei? Em que agi corretamente? Que
dever deixei de cumprir?”
44. Recrimina-te pelos teus erros, alegra-te pelos acertos.
Cada dia da vida é a imagem em miniatura de uma vida inteira. Pela manhã
cedo temos a vitalidade de uma criança, e à noite sentimos o cansaço de
alguém que é muito velho. A revisão pitagórica nos permite avaliar o carma
plantado e o carma colhido durante aquele dia. Desse modo podemos dormir
mais completa e profundamente, e com a consciência em paz. O estudante da
sabedoria esotérica fica, assim, livre para o aprendizado que ocorre durante o
sono do seu corpo físico. Porque, como se sabe, certos sonhos podem ser
fonte importante de ensinamento espiritual.
O hábito da auto-observação previne alguns erros e corrige outros. Essa
prática também prepara a revisão do passado que irá ocorrer na fase final da
velhice, e mesmo no último minuto da nossa vida física. Essas revisões finais
do conjunto da existência servem, por sua vez, para antecipar e definir o rumo
geral da vida após a morte, inclusive os seus dois principais estágios, que são
o kama-loka (etapa de purificação) e o devachan (etapa divina).
De modo semelhante, em pequena escala, a revisão ao final de cada dia ajuda
a definir o rumo e a qualidade de tudo o que irá ocorrer durante o sono e até o
novo despertar. Graças à revisão pitagórica do final do dia, cada nova manhã
traz consigo uma vida mais livre do perigo de repetir os erros do passado, e
mais aberta para o potencial ilimitado de felicidade que cada ser humano tem
sempre diante de si.
45. Pratica integralmente todas essas recomendações. Medita
bem nelas. Tu deves amá-las de todo coração.
46. São elas que te colocarão no caminho da Virtude Divina,
O termo virtude – areté, em grego – não é algo a ser cultivado superficial ou
artificialmente, como pode ocorrer no contexto de certas teologias cristãs.
Areté, explica Platão, é aquela atividade própria e específica de uma
determinada coisa ou pessoa. A virtude de uma bicicleta é o movimento, a
virtude de um peixe é nadar, e a virtude de um médico é curar. Assim, também,
a virtude divina da alma humana é uma característica e uma vocação essencial
da parte superior e racional do indivíduo. Ela é o dharma, o Tao, aquilo que
surge naturalmente de uma alma imortal livre de apegos externos.9
9. Veja o termo Areté em História da Filosofia Antiga, de Giovanni Reale, Edições Loyola, São
Paulo, Volume V, pp. 29-30.
47. Eu o juro por aquele que transmitiu às nossas almas o
Quaternário Sagrado,
48. A fonte da Natureza, cuja evolução é eterna.
O Quaternário Sagrado é a Tétrade ou tetraktys (em grego), o quatro sagrado
pelo qual juravam os pitagóricos. “Aquele que transmitiu o Quaternário” é o
Mestre, cujo nome se evitava pronunciar em vão. Esse era o juramento mais
inviolável dos pitagóricos. O quaternário sagrado simbolizava a unidade que se
mostra em quatro aspectos no mundo visível, e também o eu imortal em sua
ação concreta.
Um certo quaternário sagrado aparece também nos escritos esotéricos e
reservados de H.P. Blavatsky. É verdade que, ao escrever sobre a constituição
oculta do ser humano, ela ensinou publicamente sobre o quaternário inferior e
mortal e a tríade imortal. Nesse seu primeiro esquema, o quaternário mortal é
constituído de: 1) Sthula-sharira (corpo físico), 2) Prana (princípio vital), 3)
Linga-sharira (modelo sutil ou arquétipo usado pela vitalidade, o que inclui a
herança genética do indivíduo), e 4) Kama (o centro dos sentimentos animais).
Já a tríade imortal é formada por 5) Manas (mente), 6) Buddhi (inteligência
espiritual) e 7) Atma (o princípio supremo). Esse enfoque permite ao estudante
uma primeira aproximação do tema.
Porém, escrevendo para seus alunos esotéricos em um texto que só foi
publicado após sua morte, H.P. Blavatsky revelou um outro esquema setenário,
traçado do ponto de vista da energia superior. Nele, há um quaternário sagrado
e uma tríade inferior. Desse ponto de vista o quaternário é formado por 1) Ovo
Áurico (aparece aqui a aura imortal), 2) Atma, 3) Buddhi e 4) Manas; e há uma
tríade inferior com 5) Kama, 6) Linga-sharira e 7) Prana. O corpo físico, Sthula-
sharira, não aparece nesse segundo esquema.10
10. Veja Os Sete Princípios da Consciência, Carlos Cardoso Aveline, Ação Teosófica, 2002,
44pp.
A tétrade sagrada dos pitagóricos parece ter sido conhecida também pelos
chineses. Geometricamente, a sua apresentação é a seguinte:
.
. .
. . .
. . . .
A primeira linha da figura representa a unidade e o divino. A segunda linha, a
dualidade e a materialidade. A terceira linha significa a tríade, o eu imortal em
evolução, que reúne em si a unidade e a dualidade. E a quarta linha simboliza
a tétrade ou perfeição, que expressa a vacuidade e a plenitude. Presente na
figura está também a década, ou dez, a soma total dos pontos, que simboliza o
cosmo.
Desse modo, o quaternário sagrado pelo qual juravam os pitagóricos significa:
1) o conjunto dinâmico e cíclico da unidade divina; 2) o processo da
manifestação do mundo divino na matéria; e 3) o cosmo que tudo contém.11
11. Veja o Glossário Teosófico, de H. P. Blavatsky (Ed. Ground), item “Tétrade”. Em torno
desse tema, há também comentários de um Mestre de Sabedoria, na Carta 111, p. 215, vol. II,
de Cartas dos Mahatmas Para A.P. Sinnett (Ed. Teosófica, Brasília) sobre o significado
arquetípico dos números pitagóricos. Sobre a década pitagórica, veja também A Doutrina
Secreta, de H. P. Blavatsky, Ed. Pensamento, São Paulo, volume IV, Seções X e XI, pp. 143-
199.
49. Nunca comeces uma tarefa antes de pedir a bênção e a
ajuda dos Deuses.
Essa prática é recomendada em diferentes tradições religiosas orientais e
ocidentais. Na França do século 17, por exemplo, o irmão Lawrence, usando a
técnica da presença divina, orava, ao começar cada tarefa: “Oh, ser divino, já
que você está comigo, e que para cumprir meu dever devo agora concentrar
minha mente em uma tarefa concreta, peço-lhe a graça de continuar em Sua
Presença. E peço que, para isso, Você lance sobre mim a bênção da Sua
ajuda, receba os frutos do meu trabalho, e seja o proprietário de todas as
minhas afeições.”12
12. Veja Três Caminhos Para a Paz Interior, Carlos Cardoso Aveline, Ed. Teosófica, Brasília,
2002, p. 168.
50. Quando fizeres de tudo isso um hábito,
51. Conhecerás a natureza dos deuses imortais e dos homens,
52. Verás até que ponto vai a diversidade entre os seres, e
também aquilo que os reúne em si e os coloca em unidade uns
com os outros.
53. Verás então, de acordo com a Justiça, que a substância do
Universo é a mesma em todas as coisas.
“De acordo com a Justiça”, isto é, “na medida dos teus méritos”. A palavra
justiça, neste caso, significa a lei do carma. A vida recebe de cada um
conforme a sua possibilidade, e dá a cada um conforme os seus méritos. A
cada ação corresponde uma reação igual, no sentido inverso: “quem planta,
colhe”. O fato de que a substância do Universo é a mesma em todas as partes,
mencionado no Verso 53, também expressa a Lei da Justiça e do Equilíbrio
Universal. O filósofo pitagórico Thomas Stanley escreveu em sua obra sobre a
vida e os ensinamentos de Pitágoras que há uma amizade universal unindo
todos os seres e todas as coisas.13 E um Mestre de Sabedoria escreveu em
uma das suas Cartas: “A Natureza uniu todas as partes do seu Império por
meio de fios sutis de simpatia magnética, e há uma relação mútua até mesmo
entre uma estrela e o homem ...”14
13. Pythagoras, His Life and Teachings, de Thomas Stanley, edição facsimilar da edição de
1687, The Philosophical Research Society, Los Angeles, EUA, 1970, ver pp. 544-545.
14. Cartas dos Mahatmas Para A. P. Sinnett, Editora Teosófica, 2001, ver Carta 47, final da
p.217.
54. Desse modo não desejarás o que não deves desejar, e nada
nesse mundo será desconhecido de ti.
A felicidade não consiste em ter o que se deseja, mas em não desejar o que
não é adequado. Os desejos pessoais distorcem a realidade e mantêm o ser
humano na ignorância. Uma das definições de nirvana, o estado de êxtase e de
libertação espiritual, é “ausência total de desejos”. Essa é a porta que leva à
lucidez ilimitada do sábio, através da qual ele se conecta com a força do
cosmo.
55. Perceberás também que os homens lançam sobre si
mesmos suas próprias desgraças, voluntariamente e por sua
livre escolha.
56. Como são infelizes! Não vêem, nem compreendem que o
bem deles está a seu lado.
57. Poucos sabem como libertar-se dos seus sofrimentos.
58. Esse é o peso do destino que cega a humanidade.
O peso do destino é o aspecto negativo do carma humano; a carga acumulada
de erros cometidos pela humanidade. O chamado carma positivo, ao contrário,
é o peso da carga acumulada dos acertos humanos. Os santos e sábios
defendem a humanidade das consequências mais graves dos seus próprios
erros – como se ela fosse uma criança – ao mesmo tempo que orientam sua
evolução. E poucos poderiam duvidar de que a humanidade está em uma
etapa relativamente infantil do seu desenvolvimento espiritual.
59. Como grandes cilindros, os seres humanos rolam para lá e
para cá, sempre oprimidos por sofrimentos intermináveis,
60. Porque são acompanhados por uma companheira sombria,
a desunião fatal entre eles, que os lança para cima e para baixo
sem que percebam.
Um ensinamento básico e central da tradição esotérica é o da unidade e da
fraternidade universal de todos seres.
A propósito dos versos 59 e 60, Fabre d‟Olivet contribui com a seguinte
imagem: “indefesos e arrastados pelas paixões, lançados para lá e para cá por
ondas adversas em um oceano sem praias, eles rolam sem nada ver,
incapazes de resistir ou de ceder à tempestade”.15
15. Esse é o Verso 32, na contagem de Fabre d‟Olivet.
61. Trata, discretamente, de nunca despertar desarmonia, mas
foge dela!
Uma formulação mais estritamente literal deste Verso, na versão de Hierocles,
seria: “Ao invés de provocar e estimular a desunião, eles deveriam evitá-la
cedendo espaço.”
Mas é oportuno destacar que há pelo menos dois tipos de união ou harmonia.
Existe uma harmonia aparente, mantida como fachada para evitar e reprimir a
liberdade e a independência natural dos seres; e há outra harmonia interior, de
coração, que é capaz de identificar, respeitar e preservar as diferenças naturais
entre os seres. Essa verdadeira harmonia não é sinônimo de uniformidade
externa, mas nasce de uma relação criativa e positiva entre seres e
possibilidades diferentes.
62. Oh, Grande Zeus,16 pai dos homens, você os livraria de
todos os males que os oprimem, se você mostrasse a cada um
o Espírito que é seu guia.
16. Zeus. No original em inglês temos “Júpiter”, o nome romano equivalente ao termo grego
Zeus. Hierocles, como vimos, é do século 5 d.C. Daí o uso do termo romano. Zeus era o deus
grego que chefiava o Olimpo. Na mitologia grega, Zeus era o filho mais novo de Cronos
(Saturno), que Zeus destronou e substituiu como deus supremo. Zeus é o deus do céu e dos
fenômenos atmosféricos.
O Espírito que guia cada ser humano é o seu próprio eu imortal, também
chamado de mônada, Atma, ou Atma-Buddhi.
63. Porém, tu não deves ter medo, porque os homens
pertencem a uma raça divina,
De fato, tanto a origem como o destino da nossa humanidade são divinos. Luz
no Caminho, um clássico da literatura esotérica, afirma: “A alma humana é
imortal e seu futuro é o futuro de algo cujo crescimento e esplendor não têm
limites”.17
17. Luz no Caminho, de Mabel Collins, Editora Teosófica, Brasília, edição de bolso, 111 pp., ver
p. 67
64. E a natureza sagrada revelará a eles os mistérios mais
ocultos.
65. Se ela comunicar a ti os seus segredos, colocarás em
prática, com facilidade, todas as coisas que te recomendo.
Quando a disciplina espiritual nos parece difícil, isso ocorre porque ainda não
compreendemos bem a realidade da vida. A verdade é que a ausência de
disciplina traz dificuldades muito maiores.
66. E ao curar a tua alma a libertarás de todos esses males e
sofrimentos.
67. Mas evita as comidas pouco recomendáveis para a
purificação.
68. E a libertação da alma; usa um claro discernimento em
relação a elas, e examina bem todas as coisas,
69. Buscando sempre guiar-te pela compreensão divina que
tudo deveria orientar.
70. Assim, quando abandonares teu corpo físico e te elevares
no mais puro éter,
O éter é um dos níveis inferiores do Akasha, a substância primordial ou Luz
Astral. E a recíproca é verdadeira: “O akasha (palavra sânscrita) é a síntese do
éter, é o éter superior”, diz Helena Blavatsky. No contexto específico do Verso
70, éter significa o mundo da luz astral, as condições da vida após a morte, que
são determinadas pelo carma produzido em vida.
71. Serás divino, imortal, incorruptível, e a morte não terá mais
poder sobre ti.
Este Verso final simboliza não só o momento em que se alcança a sabedoria
em termos gerais, mas também a conquista da libertação espiritual, o adeptado
– a condição de um Mahatma, um Buda, um Arhat, um Rishi ou Imortal. Nesse
estágio a alma conhece o Nirvana e não tem mais necessidade de renascer.