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Piedade de Antônio Rogério Toscano
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1. Tiros
Luz cresce em resistência. Entre assustada e furiosa, a figura de Euclides da Cunha
surge da sombra, com um pequeno revólver em punho. Primeiro tiro: imagem de Ana,
aterrorizada, mas sóbria. Ela nada diz. Euclides tem então um ferimento no punho.
Segundo tiro: Dilermando, também ferido, e com arma na mão, está lívido e aparece
para fechar a imagem triangular; Euclides, conforme emerge da sombra a imagem de
Dilermando, passa a sofrer também com uma perfuração no braço. Terceiro tiro,
visivelmente vindo do revólver de Dilermando: Euclides é ferido mortalmente. B.O.
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2. Os ferimentos
Luz sobre Euclides da Cunha. Como na primeira cena, seu foco surge primeiro.
EUCLIDES Eu não sei dizer se a tocaia estava armada ou se fugiam de mim
os amantes, na estrada distante da Piedade... Não sei... Se estavam escondidos, como os
pássaros d`água, que buscam o recôndito, o recanto secreto do lago para então dançar o
amor... (Tempo.) Ou se preparavam caprichosamente uma emboscada assassina, para
dar fim aos incômodos que a convivência diária com meus impulsos febris pudessem
lhes causar. (Tempo. Ironia.) Eu não sei... Não sei se eram, enfim, como jagunços
atocaiados nos sertões, à espera sedenta da carniça que serve de pasto aos urubus ou se
buscavam, apenas, dar sobrevivência àquilo que lhes parecia tão nobre quanto a
presença de um Deus! O amor. Eu não sei... A minha Tróia foi Canudos, então eu quase
nada sabia sobre os mistérios do amor. Não fui um Ulisses, não pude ser. Não tive
minha Penélope tecendo o tempo à minha espera. (Tempo.) Então, eu cheguei lá. Eles,
sombreados na paisagem do ninho adúltero, no interior da casa simples da estrada real
da Piedade, me esperavam... Ali, não houve piedade... Nem minha, nem de ninguém.
Luz forte sobre Anna e Dilermando. Tumulto. Ecos.
ANNA Você chegou de repente...
DILERMANDO Ele chegou de repente.
ANNA Quem podia te esperar?
DILERMANDO Não havia como esperar...
ANNA Era de manhã tão cedo!
DILERMANDO Tão cedo que eu ainda estava vestido em mangas de camisa.
Focos de luz reduzidos em Euclides e Dilermando. Primeiro plano: brilho da figura
radiante de Anna. Durante a fala dela, a luz, em resistência lenta, cresce primeiramente
em Euclides; mas enquanto Anna transita seu foco para Dilermando, a luz sobe
vagarosamente em Dilermando, acompanhando sua fala.
ANNA É verdade que eu pouco ou nada sabia sobre suas chegadas,
Euclides. Às vezes, demorava-se tanto nas viagens, que parecia que a casa era um lugar
para onde você não desejara voltar... Queria ir longe... Para muito mais longe do que
esta casa na Piedade... Pra um lugar que eu nem sabia existir. (Tempo.) E eu só queria
vir pra cá. Pra esta casa, no estradão de terra da estação de trem da Piedade...
(Guardando certa mágoa da grandeza épica do marido.) Você precisava de um
encontro distante, Euclides da Cunha! Um grande encontro. Lá, onde eu não nunca
poderia estar. Seu encontro era com lugares desconhecidos para mim. (Tempo.) Eu? Eu
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estava aqui... (Luz que sobe em Dilermando.) Dentro de casa. Paredes ao redor. Sempre
quatro paredes ao redor... Até me esquecer que você poderia, um dia, voltar.
(Barulhos de tiros. Confusão. Dilermando entra e sai, ferido e desesperado.)
DILERMANDO Eu não atirei para matar. Mirei primeiro o seu braço, doutor... O
punho! Era para te desarmar... (Repentina calmaria diante do corpo caído de Euclides.)
Teria sido tão fácil se o senhor, como fazia sempre, escapasse antes da batalha começar
e deixasse a casa abandonada. Foi assim que eu a encontrei, ainda menino. Dezessete
anos. Ela estava só. A casa... Vazia. E ela me convidou para entrar... Anna.
Ecos.
ANNA Eu te convidei para entrar...
DILERMANDO Era uma moça linda...
ANNA E só. (Tempo.) Muito só.
DILERMANDO Tão linda quanto só!
ANNA Mais velha.
DILERMANDO Mais linda... A mais linda!
ANNA Mais velha. Muito mais velha... Treze anos mais velha.
DILERMANDO Sabia me ensinar o amor.
ANNA Queria aprender o amor!
Luz cresce em Euclides. Queda nos focos dos amantes.
EUCLIDES O amor? (Primeiro disparo.) De que se trata isso que vocês
chamam amor? (Solitário.) Daqui de onde eu o vejo, não passa de uma ferida aberta,
sangrando. Eu entendia que o amor estivesse vivo em todos os lugares... Nas palavras,
nos lugares não mapeados onde habitam homens que... (Segundo disparo.) É... Eu acho
que eu pouco ou nada compreendi sobre o amor. Para mim, nem literatura ele foi, a não
ser como relato de algo que não cabe neste papel... (Pequeno tempo.) Eu nunca soube o
que era esta coisa que chamam amor! (Desesperado.) O que era isso que vocês
chamaram de amor? (Terceiro disparo. Euclides cai.)
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3. Desespero na Piedade
Plano de memória. Acontecimentos.
ANNA Acudam! Ele caiu? Está ferido! Socorro, meu marido está ferido!
EUCLIDES Onde está Dilermando?
ANNA Eu não sei.
EUCLIDES Também vai morrer?
ANNA Ninguém vai morrer!
EUCLIDES Ficou ferido. Eu vi sangue no corpo dele.
ANNA Chega de sangue!
EUCLIDES Ele e o irmão! Mortos... Como eu. Atirei nos dois.
ANNA Fale baixo, que seu filho está por perto, fechado atrás de alguma
porta.
EUCLIDES Até o nosso filho você envolveu nessa loucura, Saninha? Aonde é
que isso poderia chegar?
ANNA Te acalma, Euclides.
EUCLIDES Calma... Então, é assim o delírio da morte? (Agitação
contraditória.) Eu o sinto como se pudesse ver tudo de novo, calmamente... Como se
pudéssemos conversar sobre tudo isso assim, de um modo... (Calmaria.) Me diga:
aonde achou que isso poderia dar?
Luz. Outro plano – o presente narrativo do início. Quebra do melodrama da hora da
morte. Delírio estranho, em que ambos se confortam numa espécie de tribunal íntimo,
em que as coisas fossem ditas e colocadas em pratos limpos. Euclides, que estava caído
nos braços de Anna, pode levantar-se sozinho. Chegam a afastar-se um do outro.
ANNA Não cometi nenhum crime que não fosse amar.
EUCLIDES Saiu da sua casa.
ANNA Quem de nós dois passou mais tempo fora daquelas paredes?
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EUCLIDES Eu seguia a trabalho. Brasil afora, descrevendo lugares que não
seriam vistos e nem conhecidos sem a minha coragem... Enquanto isso, eu imaginava
que minha esposa me esperava em minha casa.
ANNA Minha casa é meu corpo. É nele que habito. Isso você nunca
soube entender.
EUCLIDES É tão difícil, pra mim, compreender este seu modo de ser. Se eu
existi muito mais nos livros do que nos acontecimentos, minha Anna...
ANNA Eu percebia. Via quando você chegava e seguia direto para o
escritório, para escrever, escrever, escrever... Lá estava um mundo ao qual eu não tinha
acesso. Portas fechadas, sempre trancadas.
EUCLIDES O silêncio das palavras escritas... Não conhece?
ANNA Eu entendia melhor o barulho das vontades gritadas!
EUCLIDES Eu me recolhia, Anna. Precisava!
ANNA Não me era permitido entrar. Era um mundo em que eu não podia
entrar...
EUCLIDES Eu achava que você não tinha interesse por coisas assim!
ANNA Não tinha interesse? Entretanto, quando me conheceu, meninota,
eu acompanhava de perto cada instante dos seus debates republicanos, todas as teorias,
todas as filosofias... Na casa de meu pai, onde você chegou cheio de inocência para
ouvir as inteligências da época ecoar, ecoar, ecoar.
EUCLIDES Ecos ressonantes...
ANNA Eu estava lá. Eu também os ouvia! Cada eco... Como aquilo
poderia não me interessar? Estava na sala da minha própria casa! (Tempo.) E foi assim
que te vi chegar... (Tempo.) Você achava mesmo que eu não tinha interesse por essas
coisas? (Tempo. Desistência.) Acho que... Não tinha, mesmo.
EUCLIDES (Trunfo.) Vi que você não leu Os Sertões... Ficou parado, sobre o
criado-mudo. Praticamente intocado.
ANNA Houve tanta coisa não vista, não percebida, Euclides... Ou será
que você via tudo? Eu digo tudo! Muita coisa não era vista, não... E houve, claro, os
descuidos deliberados, propositais. Mesquinharias... Provocações... Pequenas e
doloridas mentiras.
EUCLIDES Mentiras?
ANNA No início, pequenas. Mas sempre mentiras...
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EUCLIDES Não é possível! Você, só agora, depois de tudo, está para me dizer
então que leu meus Sertões?
ANNA Eu não iria tão longe.
EUCLIDES Leu?
ANNA (Irritada. Pequenas mentiras, pequenas verdades.) E quem é que
foi que leu aquilo? Terras demais, geologias, humanidades, distâncias que eu não podia
percorrer sozinha.
EUCLIDES Muitos percorreram.
ANNA Eu não podia. Ou, ao menos, não devia! Portas fechadas,
trancadas.
EUCLIDES Tantos percorreram...
ANNA Ninguém que eu tenha conhecido de perto. Era um belo enfeite
para a estante da sala. Um modo civilizado de aplacar culpas que eu nunca pude
compreender... Um país que precisava dos mortos para se construir – enfim, os tinha! E
agora tanto pudor para enterrá-los... Eu enterrei meus mortos com muita dor, mas com
bem menos pudor! (Tempo.) Mas eu tentei, do meu jeito, te chamar de volta. Os
sumiços dos papéis da biblioteca, os rolos de anotações que quase acabaram na
fogueira... Mapas...
EUCLIDES Mapas!
ANNA Mundos abstratos demais, Euclides. Eu sentia o mundo concreto
pulsar dentro do meu corpo! E você preferia os mapas. Você sequer imaginava o que
fosse o corpo febril de uma mulher... E, nele, no meu corpo, você não escrevia as suas
palavras. Não podia rabiscar em mim as suas angústias? Deixava muito poucas marcas
no meu corpo/mundo. O seu mundo era longe do meu corpo. Longe de tudo... Para além
das minhas fronteiras...
EUCLIDES Eu tinha uma missão, minha Anna. Desde pequeno eu soube
disso. Aquele sentimento deslocado, estranho, só poderia se constituir em mim como
uma missão!
ANNA Missão? E a sua missão como pai?
EUCLIDES Eu nem pude saber como era ser um filho, Anna! Órfão, sem mãe
para acolher meu caminhar de menino, eu vaguei pelas casas dos tios, sempre
deslocado. Minha mãe morta, como uma mulher vestida de branco, só me visitava em
sonhos. Tocava a minha pele dormente, com uma aspereza gelada... Isso era a minha
mãe! Um pesadelo gelado... Fora disso, eu nunca a encontrava. Para mim, foi sempre
difícil o encontro com o aconchego da mulher.
ANNA Podia ter dito. Eu não saberia ouvir?
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EUCLIDES Eu cresci e vivi para não ser engolido, para manifestar minha
diferença em relação a tantas indiferenças! Foi essa a missão que me levou à República,
que me levou ao seu pai, que me levou a você... E que me levou ao Brasil. Que me
levou a todos os lugares em que julguei habitar!
ANNA Mapas... Eu estava, para você, desenhada em um desses seus
mapas!
EUCLIDES Ainda está. Você ainda está. É o único modo como consigo ver. A
vida teve, pra mim, um sabor acre de livro empoeirado. Tragédias escritas em papel e
vividas nos mapas, dentro das nossas cabeças.
ANNA De que tragédia você fala?
EUCLIDES Tudo parecia escrito. Previamente escrito... Havia a minha Tróia,
que foi Canudos. Mas, como anunciado no grito de Cassandra, a tragédia me esperava
em casa, no retorno para os braços de... (Aponta para Anna.) Clitemnestra...
ANNA Você está delirando! Não sei nada desses heróis de livro! Só sei
de mim!
EUCLIDES Mitologias, Anna. Antes tão distantes, agora tão perto de nós.
ANNA Do modo como você fala, parece até que havia um destino
corroendo as nossas passadas, encurralando nossas saídas.
EUCLIDES Uma missão, Anna. Uma missão que veio antes de nós! De
tempos imemoriais. Maior!
ANNA Maior? Quanta abstração! Eu sou pequena. Pequena.
EUCLIDES Abstrata... Você sempre foi, para mim, muito abstrata. (Sente frio,
calafrios.) E agora, aqui, é tão concreto! Por quê? Para mim, é muito difícil sentir o meu
corpo... O sangue que jorra...
ANNA Chega de sangue! Sangue grita por sangue... Chega, Euclides!
Trânsito do delírio para o plano de acontecimentos. Euclides está caído, de volta, nos
braços de Anna – que é sua Pietá. Entra Dilermando, sangrando no ombro.
DILERMANDO (Vertigem.) É um doido! Chegou para matar ou pra morrer!
ANNA Acuda! Meu marido está ferido...
DILERMANDO (Encostado ao parapeito de uma porta.) Como ele está?
EUCLIDES Eu te odeio!
DILERMANDO Peço perdão, doutor, pelas agressões que eu...
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EUCLIDES Pede perdão?
DILERMANDO Por tudo...
EUCLIDES Perdão... (Surpreendente.) Está perdoado. (Ironia.) Um crime
contra a honra basta para...
DILERMANDO Meu crime? (Abre um bilhete que traz guardado entre os objetos
sentimentais que carrega consigo. Lê. Entrega a Euclides.) Ter amado, aos 17 anos,
uma mulher casada cujo marido eu nem conhecia e que se achava ausente, em paragens
longínquas, sem mesmo ser lembrado, sequer por inanimada fotografia...
EUCLIDES Eu te perdôo.
DILERMANDO Há tempos escrevi este bilhete. Não pude te entregar...
EUCLIDES Eu te perdôo... E me perdôo. E também a você e aos seus erros,
Anna...
Euclides deixa o corpo cair esmorecido, nos braços de Ana.
ANNA Eu não errei. Eu amei.
EUCLIDES Amou.
ANNA Amei.
EUCLIDES Agora que a morte chegou...
ANNA Ela chega para todos nós.
EUCLIDES É hora de dizer o que antes não podia ser dito...
ANNA Era só uma questão de tempo. Tempo...
Mudança no tempo/espaço. Dimensão lírica, poética.
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4. Mortos se põem a relembrar...
Mortos; algodões nas narinas; livros nas mãos, vampirizam o passado. São dois
cadáveres amáveis.
EUCLIDES Você se lembra, Saninha? Do dia em que eu cheguei?
ANNA Uma menina boba como eu, como poderia esquecer?
(Parecem ver os acontecimentos que narram. São narradores de memórias vividas,
dramáticas.) Quando anunciaram a sua presença na casa, o reboliço foi tão grande que
eu não podia deixar de pensar que...
EUCLIDES Te vi na escada.
ANNA Eu não podia deixar de pensar que a sua presença era pra
mim...
EUCLIDES Estava linda. Sempre tão linda!
ANNA Você não parecia tão grande como contavam...
EUCLIDES O furor da hora ampliava a importância de tudo. Eu não
era nada... Era só um moleque, um rebelde...
ANNA A sua rebeldia era, para aquela hora, a força de seu caráter.
Estava no espírito da época...
EUCLIDES Um ato bobo.
ANNA Você soube captar o espírito da época... Sempre soube!
Sempre soube captar o espírito da sua época...
EUCLIDES Nem sempre. Os Sertões apontaram para um rumo torto:
uma compreensão fria, analítica, quase moderna do Brasil... Coisa pré-modernista...
Coisa para o século 20.
ANNA O seu tempo!
EUCLIDES E veja no que deu! Fui acabar derrubado por um tiroteio,
numa escaramuça de honradez, sem capa e sem espada, num melodrama romântico, fora
de época, com quase um século de atraso...
ANNA Você faz piadas de que eu quase não consigo rir.
EUCLIDES Então não ria.
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ANNA Vejo diferente... Sinto de outro modo. O romantismo, para
mim...
EUCLIDES De volta à teoria!
ANNA Não se trata de teoria! Por acaso não foi romântica aquela
sua chegada na casa de meu pai? Às vésperas da consolidação da República você
entrava em nossa casa pela porta da frente, como um herói...
EUCLIDES Eu era um tolo. Entrei naquele casarão com a imagem da
República cravada na retina... Parti de lá com a sua imagem de menina bela. Foi o que
te escrevi, naquele bilhete...
ANNA Eram tempos ainda românticos...
EUCLIDES Ainda românticos.
ANNA De bilhetes...
EUCLIDES Eram tempos de bilhetes... E eu queria escrever Os
Sertões! Para vingar o...
ANNA Eram tempos bons, mergulhados num passado que...
(Percebe a densidade da cena.) Quase pode retornar. Não sente? Eu quase posso pegar
com a mão.
EUCLIDES Memória vaga de uma novela do século 19...
ANNA Estávamos despreparados para essa sua compreensão fria,
analítica, das coisas.
EUCLIDES (Ironia maior.) A imagem da República era a de um anjo
bom, que conduzia seu pai, o major Sólon, na missão de arauto do novo tempo. Não era
essa alegoria aterrorizante que se vê nos espetáculos políticos de hoje em dia...
ANNA Mas você entrou em minha casa como um pequeno herói...
Todos repararam na sua conduta... Compreenderam que seus impulsos eram, para dizer
o mínimo, elogiáveis. Te louvavam!
EUCLIDES Um cadete querendo desmontar sozinho um mundo
inteiro.
ANNA Exatamente. Nós viemos deste tempo... Em que se
acreditava poder derribar, sozinhos, as muralhas que impedissem o nosso caminhar.
(Tempo. Reflexão.) Eu aprendi muito ali, naquela hora de outrora!
EUCLIDES Tão fácil lembrar agora o que eu era: o jovem Euclides da
Cunha, um moleque que se tinha revoltado – assim como toda a corja militar – contra o
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Império e que queria enfrentar, sozinho, a disciplina militar da Monarquia, em nome do
ideal republicano.
ANNA Você tinha muito valor... Se todos no quartel se calaram!
Menos você! Você foi o único a derrubar sua arma, em protesto, aos pés do Ministro da
Guerra.
EUCLIDES Não era pouca coisa...
ANNA Não era! (Tempo.) Eu, da escadaria, lá em casa, te vi
chegar. E fiz questão de ser vista... (Tempo.) Mas eu era só uma menina.
EUCLIDES Eu, o escolhido do seu pai, o líder republicano... Você, a
escolhida do meu estranho coração... Saímos daquela noite de casamento marcado!
ANNA Nem tanto...
EUCLIDES Mas quase...
ANNA Era o começo de um erro, que eu – tão jovem – não
saberia evitar. Minha irmã Alquimena me invejou. Não teve a mesma sorte. Naquela
época, poder escolher um amor era coisa para poucos. Ela teve que escolher o convento!
EUCLIDES Então, você me amou?
Tempo. Pensamento.
ANNA Só se ama uma vez na vida! O meu grande amor chegou
depois. Foi Dilermando...
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5. Tramas
Na casa alugada de Anna, à Rua Humaitá.
ANNA Mas se foi possível arrancar fora um Império e construir
outro mundo, por que aceitar a mediocridade de um casamento falido e não sonhar em ir
além?
DILERMANDO Quanto é possível ir além sem machucar a...
ANNA (Irritação crescente.) Uma união desastrada, marcada por
desavenças e brigas notórias, desde o início!
DILERMANDO Não é disso que se trata agora! Você vai ser recriminada, e
eu não quero que te maltratem...
ANNA Não posso ficar calada...
DILERMANDO E o seu marido, pelo que sei, não é homem de...
ANNA Pois se é! Na sala da minha própria casa, eu tive a lições
de História incomparáveis, coisa a que você e muita gente nunca assistiu... A menina
Anna Emília ouviu quieta, depois dos jantares, as lições políticas positivistas que
influenciaram os homens a proclamar a República! Coisa da prática... E agora você quer
que eu fique quieta?
DILERMANDO Calma. Fique calma...
ANNA Tudo aquilo eu registrei na memória para ver ressurgir
agora, quando eu mais preciso! Ou será que os discursos de todos aqueles homens não
iriam determinar o meu destino? Como podiam esperar de mim atitude diversa?
DILERMANDO É diferente, você é uma mulher! E ele está pra chegar...
ANNA Que fique no mar!
DILERMANDO Está escrito, veja: no telegrama!
ANNA Como conseguiu me achar?
DILERMANDO Enviou ao dono do bazar da rua Uruguaiana: “Cheguei do
Acre e ancorei na baía a bordo do Tennyson. Mande-me buscar.”
ANNA Nem deve saber ao certo onde eu estou morando.
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DILERMANDO Precisamos agir com cautela...
ANNA Euclides que cuidasse de nossa vida antes de partir e nos
deixar aqui, sem nada. Nem me encontraria mais... Só me achou porque eu tive que
fazer dívidas com o tal caixeiro da rua Uruguaiana!
DILERMANDO O fato é que agora ele vai chegar...
ANNA Se eu soubesse me esconder... Se eu pudesse me
esconder... Era a hora de escapar! De escapar... Ou ele não merece uma resposta à
altura, depois de tantos meses – mais do que ano – distante!
DILERMANDO (Tentando domar a fera.) Embora tudo isso tenha a sua
verdade, o fato é que não temos tempo para ficar de bravatas, Saninha... Nós só
precisamos ter cuidado... Ele agora está ancorado na baía num barco e, assim que
chegar, vai desconfiar. É melhor que eu mesmo vá buscá-lo. Só assim não levantaremos
suspeitas.
ANNA Passou tanto tempo na Amazônia... Na tal missão do Rio
Purus! Devia ter morrido por lá. Mas, não. Voltou... Veio trazer consigo as malárias que
não o consumiram por lá!
DILERMANDO O caixeiro que trouxe a notícia disse que ele espera a
busca para hoje.
ANNA Que espere até amanhã!
DILERMANDO Os meninos já sabem da chegada dele... A notícia corre.
Ele é Euclides da Cunha!
ANNA (Rancorosa.) Nunca soube amar o meu marido. Uma coisa
sempre me deixou cismada com ele: faz tudo até o esgotamento. E tem um excesso de
escrúpulos que o torna inumano aos meus olhos...
DILERMANDO Ele é só um homem. Mortal como todo homem...
(Silêncio.)
ANNA Pare com essas idéias. Já faço esforços demais para
espantá-las da minha cabeça perturbada!
DILERMANDO E a mim? Como você me vê?
ANNA Você é o mais humano dos homens.
DILERMANDO Tão fraco assim?
ANNA Eu te olho e é como seu eu te visse pela primeira vez, lá na
Pensão Monat...
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DILERMANDO Nossa primeira vez? (Amante que flagra o esquecimento
da parceira.) Não foi lá. Ou foi?
ANNA A memória engana. Sempre engana... Acho que nos vimos
antes, mas foi na Pensão Monat que meus olhos queimaram diante dos teus. Foi quando
a tua beleza tomou meu sangue daquele jeito repentino eu sabia já ter esquecido o meu
marido...
DILERMANDO Eu te amo.
ANNA Já não é mais tão custoso acreditar...
DILERMANDO Então? Vou buscá-lo?
ANNA Não se explique demais. Deixe que eu conte a ele como te
conheci. Suas tias, na Pensão Monat, são o elo que nos liga. Mais nada.
DILERMANDO Nenhuma palavra.
ANNA Vá. Corra. Ou ele chega com humor maligno... Nunca
soube esperar...
DILERMANDO Mil aventuras de amor... Mil beijos seus!
Após despedida amorosa, tristeza de Saninha – que olha firme para o teto.
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6. O primeiro encontro
Olhando para o teto, Saninha vê, no passado, o primeiro encontro com Dilermando.
EUCLIDES Então, foi assim?
ANNA Você consegue ver?
EUCLIDES Dói.
ANNA Viver dói, Euclides. E é tão bom... (Lembrança. Arrepio.)
A lembrança traz de volta os cheiros, umas cores estranhas... Um arranhão no céu da
boca.
EUCLIDES É parecido com os livros.
ANNA É a vida, Euclides! Na Pensão Monat, diante de todas
aquelas dificuldades financeiras, de tanto medo... O cheiro das coisas era doce. O ar
queimava denso feito neblina... Eu estava só. Sozinha. Você estava em viagem ao Acre,
para demarcar fronteiras de um país imaginado, inexistente.
EUCLIDES Que passou a existir!
ANNA Em que lugar? Eu não via. Não via... Você era o doutor
Euclides da Cunha, tinha sua missão! Eu, aqui. Com três filhos, uma casa para cuidar. E
dívidas.
EUCLIDES Eu não podia imaginar... Eu te enviava dinheiro! Não era
muito, mas...
ANNA Muitas dívidas! Afogando meu pescoço com vergonha,
medo, desejo... Precisava parar o motor daquela roda louca de infortúnios. Dei um
basta! Então, cheguei com um menino – os mais velhos, internei no colégio de São
Paulo – à pensão de dona Monat, à Rua Vergueiro, número 14.
EUCLIDES Os detalhes ganham, para você, amplitude e dimensão
poéticas.
ANNA E foi onde eu vi, pela primeira vez, o meu menino
Dilermando.
DILERMANDO (De fora da cena.) Foi mesmo lá?
ANNA (Em devaneio, para Dilermando.) Não foi? Na minha
memória, te vejo sempre chegando lá... Na Pensão Monat...
DILERMANDO Eu te vi antes, em São Paulo...
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EUCLIDES Ele...
ANNA Eu me recordo de nosso encontro na Pensão Monat...
Corte. Passado. Dilermando chega. Malas na mão. Como se fosse um primeiro
encontro.
ANNA Chega de São Paulo? (Perturbada com a presença de
Dilermando.) Estive lá, há pouco. Sozinha.
DILERMANDO Vim para trazer uma encomenda – livros! – à minha tia
Lucinda, que mora nesta pensão com a senhora...
ANNA (Apresentando-se, um tanto afoita.) Anna. Mas pode me
chamar de Saninha...
DILERMANDO É um casarão e tanto, aqui. Por carta, minha tia nunca
deixou entrever que morasse tão bem.
ANNA E há quartos vagos. Sabia? Não precisará continuar
morando naquela fortaleza úmida da Escola Militar... Um rapaz solitário, e que acaba de
ficar órfão, não deve...
DILERMANDO Como sabe tantas coisas a meu respeito?
ANNA É que... (Tempo.) Sua tia lhe dedica um carinho muito
grande. E me fala muito de sua pessoa...
DILERMANDO Fala tanto assim? Coisas de que tipo?
ANNA Coisa sem malícia. (Tempo.) Embora, de um rapaz assim,
muito se pudesse maliciar...
Tempo. Dilermando abre um botão da camisa. Sem jeito.
DILERMANDO Estou treinando tiro para um campeonato. A senhora podia
me ver atirar, um dia desses.
ANNA Treina como?
DILERMANDO Acerto limões, no ar. Boa pontaria.
Mudança de plano. Euclides, Anna e Dilermando estão de volta ao tribunal íntimo da
eternidade.
EUCLIDES Foi assim? Simples assim?
ANNA Talvez tenha sido diferente. A memória engana a gente.
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EUCLIDES Se eu soubesse antes.
ANNA Não existe antes e nem depois. Só o agora. No futuro,
Dilermando escreverá uma carta assim... (Retira uma carta e começa a leitura.) No
agora. “Contava, então, dezessete anos. (...) Jamais imaginara que desse passo – minha
mudança com poucas malas para a companhia de minha tia Lucinda Ratto e de Saninha
– adviesse tanta desventura futura...”
DILERMANDO (Escreve, no futuro.) “A convivência acarretando o
acúmulo de intimidade; a falta de experiência permitindo a aproximação mais íntima; a
vida não mais de enclausurado abrindo novos horizontes; as leituras em comum com
Anna, cheias de aventuras amorosas adocicadas, despertando fantasias; a virilidade
vislumbrando encantos e devaneios – tudo concorreu para o despertar de novos
sentimentos. E nessa ebriez incontível, o meu único crime: ter amado, aos dezessete
anos, uma mulher casada cujo marido se achava ausente, em paragens longínquas, sem
mesmo ser lembrado, sequer por inanimada fotografia.”
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7. Erotismo
Música. Aprendiz, Dilermando se aproxima, tímido, de Anna, que lhe despe a camisa.
Ela, dona da situação, se afasta e fica de costas, para trancar a porta. Neste ínterim, o
menino apressado arranca toda a sua roupa e mostra-lhe seu corpo jovem. Ela retorna
para perto dele, que lhe ajuda a desabotoar as pérolas do vestido – que fica
entreaberto. Quando, ávidos mas contidos, estão próximos de consumar um beijo,
Euclides – que segurava uma arma, trêmulo – deixa-a cair no chão. Estrondo. B.O.
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8. Espelho dos amantes
EUCLIDES Quando eu intui que o amor dos dois pudesse ser tão
comovente, eu senti inveja.
ANNA Por tanto tempo eu tinha ficado só... O toque daquele
menino era, em meu corpo, um vagalhão a desfazer meus antigos castelos de areia. Aos
trinta anos, eu finalmente fui tocada.
DILERMANDO E eu nem o conhecia, doutor. Eu só conhecia Anna.
EUCLIDES Vendo-a amar, de longe, eu então passei a amá-la
perdidamente, Anna. Como nunca.
ANNA Tarde.
EUCLIDES Tarde...
ANNA Muito tempo longe.
EUCLIDES Eu me sentia perto.
ANNA Perto? Era você chegar de viagem e eu então partir, em
meus devaneios, para bem longe. Com medo do seu toque, querendo fugir da cama de
casal. E quando você chegava feito um coelho apressado para subir em mim, doente de
vontade alimentada à distância, eu fechava os olhos e, em meu leito nupcial, sentia
como se estivesse com Dilermando...
EUCLIDES Não me queria mais.
DILERMANDO E me contava! Ela me dizia que o senhor estava
percebendo tudo. E que talvez estivesse tentando, à sua maneira, me imitar.
EUCLIDES Eu tentei desabotoar os botões do vestido, mas me
atrapalhava todo.
DILERMANDO Depois de um tempo, eu arrancava aquelas pérolas. Era
mais fácil.
EUCLIDES Por alguns poucos momentos, eu quase vi que ela se
soltava, na cama, e me deixava amar...
DILERMANDO O senhor está enganado. Isso não é da Saninha que eu
conheço. Ela não se solta nunca. O domínio do jogo é dela... Ou não é de ninguém! É
fêmea.
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ANNA Com Dilermando, Euclides, eu pude enfim realizar a
minha aventura de mulher. Era um menino, e eu podia moldar o seu caráter, o seu jeito,
o seu toque, o seu pensamento bruto, podia fazê-lo homem como gosta uma mulher...
Era a minha escultura, a minha obra.
DILERMANDO Eu só tinha a ganhar com uma mulher assim. Não havia
outra igual.
EUCLIDES E, coroando a cena, olhando de longe, havia vizinhos
curiosos, maledicências, uma família a reprovar, crianças dormindo no quarto ao lado...
Devia ser muito excitante...
ANNA Tudo ia muito bem...
DILERMANDO Até que o senhor chegou e parou na baía, no barco, a
bordo do Tennyson... O bilhete ridículo do caixeiro da rua Uruguaiana...
EUCLIDES (Irônico, para Dilermando.) E você foi me buscar!
DILERMANDO Havia outra saída?
Retorno no espaço-tempo, para cena em que Anna e Dilermando decidem como
proceder na ação farsesca de buscar Euclides no mar.
DILERMANDO Então? Vou buscá-lo?
ANNA Não se explique demais. Deixe que eu conte a ele como te
conheci. Suas tias, na Pensão Monat, são o elo que nos liga. Mais nada.
DILERMANDO Nenhuma palavra.
ANNA Vá. Corra. Ou ele chega com humor maligno... Nunca
soube esperar...
DILERMANDO Mil aventuras de amor... Mil beijos seus!
Após despedida amorosa, tristeza de Saninha – que olha firme para o teto. Queda da
luz, em resistência. No desembarque do Tennyson, Euclides e Dilermando se encontram
pela primeira vez.
DILERMANDO (Nervoso.) Acho que é o senhor o doutor que eu vim
buscar... (Corte épico.) Ele é pequeno, franzino, nem parece quem é. Nem parece ser...
(De volta ao encontro, para o interlocutor.) Euclides da Cunha?
EUCLIDES Desculpe pelo desencontro. (Corte épico. Pensamento de
Euclides.) Estranha a presença deste rapaz. Ansioso demais, trêmulo. (Para
Dilermando.) Já passei pelo senhor umas duas vezes, pra lá e pra cá. É que não se
parece com um moleque carregador de malas.
DILERMANDO Não?
22
EUCLIDES Eu esperava que minha esposa viesse ao meu encontro.
DILERMANDO Dona Anna me mandou, no lugar dela. (Pensamento
épico.) Se não desconfiou, agora ele vai desconfiar! E eu vim sozinho justamente para
dissipar suspeitas... (Para Euclides.) Devo muitos favores a ela. Tem sido muito boa
comigo, inclusive por me manter hospedado fora da moradia militar.
(Tempo do pensamento.)
EUCLIDES Que mordomia!
DILERMANDO É... Muita.
EUCLIDES (Frio.) Muita.
(Tempo.)
DILERMANDO Bem-vindo de volta, doutor... Não deve ser fácil passar
tanto tempo fora. Acre, Amazônia, florestas...
EUCLIDES Sabe tanto assim de mim? Saninha fala muito de mim para
o senhor?
23
9. O retorno de Ulisses
Euclides, com malas na mão, chega à porta.
EUCLIDES (Muito irritado, logo ao entrar.) Por que mandou aquele
borra-botas me buscar?
Corte espaço-temporal. De volta ao plano narrativo.
ANNA Não precisava chegar daquele modo, trazendo consigo da
porta as provocações...
EUCLIDES Era o que eu precisava dizer.
ANNA Todos os momentos precisavam ser intensos, ao seu lado.
A vida vivida num limite... Nunca aquém...
EUCLIDES Para quê viver aquém das possibilidades?
ANNA Eu me acostumava bem à simplicidade do cotidiano. Só
queria viver o dia-a-dia de uma mulher amada...
EUCLIDES O meu amor não te bastava.
ANNA Tua cegueira é que me exasperava. Mas tanto! Alguém
que via o mundo com lentes de longo alcance podia, então, dentro de casa, enxergar tão
pouco?
EUCLIDES Eu via tudo, cada passo teu. E relevava...
ANNA Tinha medo?
EUCLIDES Incerteza.
ANNA Naquele dia da tua chegada do Acre, eu quis revelar tudo.
Estive por um triz... Quando você se aproximou da nossa cama de dormir, tive ímpetos
tenebrosos. Queria fugir...
EUCLIDES Mas ficou. E pareceu gostar.
ANNA Era sua esposa.
EUCLIDES Por que se submeteu?
ANNA Não podia provocar um rompimento assim, inexplicável.
Dormimos juntos, você como marido, eu como mulher...
24
EUCLIDES Se não tinha mais desejo!
ANNA Você voltou com muito fogo daquela viagem. O fôlego de
um bicho no cio. Calou-me com um sexo brusco, como nunca tínhamos nos amado...
Foi bom, por um lado...
EUCLIDES Bom?
ANNA Mesmo a pior parte carrega consigo algo de bom. Até a
morte...
EUCLIDES (Jogando xadrez.) Você queria um álibi! Dali a quantos
meses, se nascesse um filho, eu não poderia te acusar.
ANNA Talvez aquele filho fosse teu!
EUCLIDES Só se tivesse nascido de seis meses!
ANNA Muitos nascem!
EUCLIDES Por isso morrem cedo, também. Poucos sobrevivem.
ANNA Eu tinha poucas forças para recusar, naquela hora... Se
fosse agora...
EUCLIDES Eu via tudo, minha Anna. Quando eu cheguei, você estava
inchada como nas outras quatro vezes em que, sim, fui o pai dos seus meninos... O seu
marido! Eu conhecia tua gravidez. (Sarcástico.) Nossos quatro filhos, até ali, tinham
sido concebidos na castidade do nosso lar... (Relembra, cabisbaixo.) E, naquela hora,
justo na minha chegada... De novo? Grávida. Era triste de ver...
ANNA Por que, então, você se submeteu?
EUCLIDES A dúvida! Ela ainda me permitia te amar.
ANNA Não, Euclides. Nós nunca soubemos direito o que fosse o
amor. Não juntos!
EUCLIDES Não pode falar por mim. Ou pode... Não sei.
ANNA Falo por mim. Nisso tive a minha cátedra... Faltavam só
alguns meses para eu completar 34 anos e somente por aquela época eu começara
realmente a viver.
EUCLIDES Com ele?
ANNA Com Dilermando!
EUCLIDES Um menino... Que precisava de uma sova bem aplicada!
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ANNA De que você sabe? Há outros mundos além de você,
Euclides.
EUCLIDES Eu sei. Tentei buscá-los...
ANNA Não era uma criança! Era um homem. E que homem!
Como um ente divino de alguma lenda antiga, ele surgiu na minha vida feito uma
aparição. Tinha apenas 17 anos... É verdade. Parecia uma criança. Mas, não... Um
homem feito! Um homem como eu nunca tinha conhecido!
EUCLIDES (Tristonho.) Então, não ia ser o fôlego de uma noite com
um marido desajeitado que retornava de uma guerra distante – porque sobreviver no
Alto Purus foi como uma guerra, para mim – que poderia te trazer de volta à lucidez...
ANNA Eu tinha a lucidez das mulheres amadas guiando os meus
passos.
EUCLIDES Por isso mentiu?
ANNA Menti. E mentiria de novo.
EUCLIDES A mentira é a lucidez das mulheres que amam?
ANNA Eu tentei te falar. Mas você nunca soube me ouvir.
EUCLIDES Perguntei se tinha profanado o seu corpo. Você respondeu
que não, que não! Que eu não precisava me preocupar, que somente tinha profanado o
espírito!
ANNA Falei isso pra você. Alguém tão hábil em deduções... O
futuro professor de lógica. Que não saía do escritório para beijar um filho!
EUCLIDES Há coisas que preferimos não ver, Saninha! Quando eu
cheguei em casa, de malas na mão, te perguntei logo por que tinha mandado aquele
borra-botas me buscar. Eu li no seu lábio a traição quando você pronunciou o nome dele
como se mordesse uma fruta vermelha, como se perguntasse de um modo
desentendido...
Corte da cena para o início dramático.
EUCLIDES Por que mandou aquele borra-botas me buscar?
ANNA (Temerosa, apaixonada.) Dilermando?
Euclides cai sentado, frágil, diante da mesa.
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10. Disputa de gamão
Euclides e Dilermando estão sentados em uma mesa. Jogam gamão.
DILERMANDO Fez boa viagem de volta?
EUCLIDES A viagem é rápida quando se deseja chegar em casa... Tem
coisa que não sai da cabeça da gente. Fica tilintando, tilintando... Mas, pelo menos,
distrai e ajuda a passar o tempo no mar.
DILERMANDO Que tipo de coisa atormenta?
EUCLIDES A tormenta. A tormenta atormenta... (Olha para o
tabuleiro.) Veja esse jogo. Se a gente mergulha nele, pode se afogar na tormenta... Com
qualquer disputa é assim.
DILERMANDO (Mexendo as távolas.) O senhor precisa ficar mais atento!
EUCLIDES Atento com o quê?
DILERMANDO Suas távolas... Eu as tranquei todas deste lado do tabuleiro,
agora o senhor está sem saída!
EUCLIDES (Assombrado. E colérico.) É isso que é a tormenta... Um
intruso a fechar o nosso caminho!
DILERMANDO Mas este jogo é assim...
EUCLIDES (Segurando-se para não partir para a briga.) Isto é um
desrespeito muito grande de vossa parte!
DILERMANDO Mas a regra do jogo me permite, se o senhor está desatento
e eu estou ávido por vencer... Posso fazê-lo.
EUCLIDES Vou te ensinar uma lição que só se aprendia no exército de
antigamente: um molecote como você devia deixar uma porta aberta para que eu visse a
saída, entende? Isto sim seria ético e aceitável!
DILERMANDO Se eu fizesse deste modo que o senhor diz, perderia todo o
interesse a partida. (Tempo.) Era melhor conversarmos diretamente sobre o que nos
aflige...
EUCLIDES Eu não sou escravo de regrinhas de jogo nenhum! De
nenhum gamão! Ou não sabe? Tudo isso é mera convenção. Fica para nós estabelecido
que não se deve bloquear o adversário de maneira tão deselegante, inutilizando-o,
deixando-o em atitude de vergonhosa inação!
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DILERMANDO Se o senhor está dizendo... Posso retirar as minhas pedras
daqui... Veja!
EUCLIDES Faz isso por piedade?
DILERMANDO Piedade? (Desconcertado.) Não... É que...
EUCLIDES Escute o que te digo e te prepare bem, rapaz: neste jogo,
sou invencível. Tanto na vida como no gamão... Aprenda bem antes de jogar comigo!
DILERMANDO Mas se o senhor estava, até aqui, encurralado!
EUCLIDES Se quiser me ganhar, tem que saber jogar melhor!
DILERMANDO Sou um bom jogador. Campeão de tiro...
EUCLIDES (Entrevendo ameaças.) O que está querendo dizer com
essas suas palavras?
DILERMANDO Nada... Nada. O senhor quer que eu me retire da sua casa?
(Tempo desafiador.) Como no gamão?
EUCLIDES A minha casa continua aberta para os que são dignos e
bons!
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11. Partida
DILERMANDO Ele está desconfiado! Já sabe... Ou não me trataria daquele
modo.
ANNA Andam escrevendo bilhetes anônimos. Insinuam coisas
terríveis. Falam até da minha gravidez.
DILERMANDO E ele? Ainda te toca?
ANNA Pedi que arranje outra comissão de demarcação de
fronteiras, lá pelas beiradas da Venezuela! Qualquer dessas Guianas bem longe daqui!
Ou, então, é o divórcio... Não tem jeito.
DILERMANDO Há meses que estamos vivendo assim... Não consigo mais.
Sempre às escondidas...
ANNA Um amigo da casa, vendo-nos brigar... Porque agora as
brigas já são públicas! Toda a família já está informada. Esse amigo disse-lhe, assim, no
atravessado dessas palavras: que ele não podia me tratar tão mal, principalmente depois
do abandono moral da companheira nas tais viagens que fez...
DILERMANDO Quem teve a coragem de dizer isso a ele?
ANNA Um amigo da casa. Não importa quem... Disse que nada
lhe repreenderia como escritor e como pensador. Era irrepreensível neste campo. Mas
que o mesmo não se dava dentro da vida privada, dentro de sua própria casa...
DILERMANDO (Saboreando as palavras.) Mas o mesmo não se dava
dentro da própria casa!
ANNA Foi exatamente assim que ele falou.
DILERMANDO Até que enfim, uma lição bem dada...
ANNA Mas Euclides é a mais pura persistência! Parece nada
ouvir...
DILERMANDO Se você não fosse tão independente... Ele não conseguiria
ser assim. Livre. Só pode viver essa vida de viagens e de livros porque você segura a
casa tão bem, e sozinha; consegue viver sozinha; cuida de tudo, sem que ele precise se
preocupar com nada. Enquanto ele pula de cabeça nos assuntos nobres dele, você
administra a família com competência, com gana de boa mãe protetora. Nunca ninguém
te recriminou por isso!
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ANNA Durante a ausência dele, eu segurei sozinha as pilastras
desta casa...
DILERMANDO Você tem a sua independência como sua amiga!
ANNA Tenho. Mas por que está me dizendo tudo isso, agora?
DILERMANDO Não é nada... Acho boa a sua independência...
ANNA Boa?
DILERMANDO Boa. Muito boa. (Tempo.) Ou não é boa?
ANNA É boa. Mas eu te conheço. Onde esse assunto quer te
levar?
DILERMANDO Assunto?
ANNA Eu reconheço cada temperatura dos seus pensamentos,
moleque. Não pense que me escapa liso, assim... Vamos, diga. (Silêncio.) Não vai me
dizer aonde deseja chegar?
DILERMANDO Eu também vou ter que partir, não lembra? A minha
viagem pro Sul, pra Escola Militar...
ANNA A viagem?
DILERMANDO Está marcada.
ANNA Eu pensei que... (Tempo.) Pensei que... Vai me deixar
agora? Assim?
DILERMANDO É uma exigência da vida. Para o nosso bem. No futuro. A
vida, é a vida! Ela quer que eu parta... Vai ver, quer testar o nosso amor.
ANNA E se você ficasse? Eu já não sou tão nova, quando você
voltar eu...
DILERMANDO É melhor que eu vá. Se eu ficasse, seu marido seria capaz
de fazer uma loucura.
ANNA Fica...
DILERMANDO Não vou te esquecer... Juro.
ANNA Jura?
DILERMANDO Nunca.
ANNA Então fica.
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DILERMANDO Vou sempre te escrever... Sempre...
ANNA Fica.
(Tempo.)
DILERMANDO Se o nosso amor é grande, vai suportar a distância.
ANNA Eu te peço... Fica...
Luz. Anna sente medo. Terror.
ANNA Por que não ficou? (Consciência da narradora.) As coisas
a partir dali iam doer tanto... Mas tanto.
Corte no espaço-tempo. Carta de Dilermando.
DILERMANDO “Minha nunca esquecida e queridinha Saninha. Foi triste o
nosso adeus. Na rua, às pressas... Um encontro às pressas. Foste embora pela avenida
afora enquanto eu, não podendo dominar as lágrimas que em borbotões jorravam-me
dos olhos, encaminhei-me para a nossa separação. Que será breve. Era preciso que triste
fosse a nossa cruel despedida, para que nada deixássemos transparecer do nosso intenso
amor. Ainda com a tua frágil e delicada mão me acenaste, em plena rua, dando-me,
quem sabe, o que parecia ser o último adeus. Foi aí, convencido então da realidade, que
não me pude conter e... chorei. Chorei lágrimas ardentes que incandesceram as faces,
podendo perceber apenas a imagem querida de teu semblante adorável e a dor do teu
terno coração... Dói, dói muito, mas assim é preciso. Com amor...”
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12. Trancados
EUCLIDES E ele foi embora... Te deixou lá, chorando.
ANNA Eu estava grávida de Mauro...
EUCLIDES E mesmo assim você o preferia a mim. Te abandonou, grávida...
ANNA Não era a primeira vez que isso me acontecia!
EUCLIDES Eu pensei, aliviado: ele se foi. Triste engano...
ANNA O navio que o levava, levava a mim também. Aos pedaços... Mas
era lá que eu ia... Minha cabeça não ficava mais aqui.
EUCLIDES No entanto, você estava diante de mim, sentada... Afundada numa
cadeira... Chorando.
ANNA Uma mulher grávida! Não se faz uma coisa daquelas... Você não
podia ter feito daquela maneira. Não era direito...
EUCLIDES Eu devia, como ele, ter abandonado você!
ANNA Mas, não. Nunca se afastava! Nunca! Pelo contrário... Berrava
impropérios descontrolados... E, assim que a criança nasceu, você me trancou naquele
quarto escuro!
EUCLIDES Se não trancasse, você ia embora. Dilermando tinha partido, havia
deixado aquele bilhete tosco, sentimental, cheio de cerimônias para uma despedida
repentina...
ANNA Que você leu diante de toda a sala de visitas, para me
envergonhar.
EUCLIDES Sentia vergonha? Enquanto chorava, desesperada?
ANNA Eu estava debilitada...
EUCLIDES Debilitada! Por quê? Eram muitos esforços para esconder a
indesejada gravidez? As criadas falavam. Era fácil saber... E você ia ainda mais longe:
tentava impedir a gravidez.
ANNA Estava assustada. Desesperada...
EUCLIDES E quando o menino morreu, ainda me culpou!
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ANNA Era um filho. Podia ser seu filho!
EUCLIDES Registrei como meu. Enterrei no meu quintal.
ANNA Não pude sequer amamentá-lo. Mal nasceu e você o apartou de
mim.
EUCLIDES Morreu doente. Prematuro demais.
ANNA De inanição...
EUCLIDES Criança tão pequena não mama. Nem consegue mamar...
ANNA Assassino!
EUCLIDES Assassino? Eu? Se fui eu o próximo a tombar. E pelas mãos de
quem? Agora, aqui, mortos, nem dói lembrar.
ANNA Meus gritos trancados no quarto não te disseram nada...
EUCLIDES Eu os ouvia, detrás da porta. Esperava que você me pedisse para
entrar... Mas você me odiava. Gritava seu ódio doido, doído.
ANNA Foram piores os gritos que tranquei, calada, cá dentro. Os venenos
caseiros que me arranharam a garganta para expelir o feto doeram silenciosos... Eu
apertei a barriga com cintas, tentando me desfazer de quem não devia vir ao mundo. E
era o meu filho...
EUCLIDES Com ele...
ANNA Quem sabe?
EUCLIDES Só de imaginá-la, essa idéia me mortificava aos poucos.
ANNA Você tem razão... A assassina fui eu.
EUCLIDES Se tivesse parado por aí... Eu teria silenciado.
ANNA Silenciado? Como? Com toda a sua inconstância! Com sua febre
descontrolada? Vinha aos meus pés pedir perdão, caído nos joelhos... Depois saía aos
berros, gritando impropérios, me maltratando diante dos olhos de todos! Sua hemoptise
o fazia tossir e vomitar sangue pela casa toda, durante madrugadas inteiras!
EUCLIDES A loucura continuava...
ANNA Crescia. A cada dia.
EUCLIDES Era loucura travestida de paixão...
ANNA Eu sofria tanto. Era dor, Euclides.
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EUCLIDES Eu notava que doía. Li algumas cartas, que consegui interceptar,
às escondidas. Doía muito. (Tempo.) Em mim!
ANNA Dilermando estava longe. E o menino estava morto!
EUCLIDES Eu, de dentro da minha própria casa, ouvia minha mulher
cantando loas de amor para um soldadeco que partira para bem longe...
ANNA Era um soldadeco muito perigoso.
EUCLIDES Era como eu: capaz de matar, por amor.
ANNA Capaz de despertar a inveja de muitos homens...
EUCLIDES Sobretudo, a minha.
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13. O sonho
Passado. Anna tem olheiras, está exausta. A doçura de Euclides é tão intensa, que é
digna de estranheza.
ANNA Euclides, por mais intranqüilo que esteja, eu peço que me
ouça.
EUCLIDES (Doce e sádico.) Vai querer conversar, agora?
ANNA Eu estive trancada, por dias, neste quarto. Sem ver o
menino. Até chegarem aqui para dizer que meu filho estava morto...
EUCLIDES Também passei noites sem dormir.
ANNA Mas, enfim, caí desmaiada num sono profundo e parecia
que meu sonho era tão real quanto a minha loucura de mãe.
EUCLIDES Desvarios da vigília. (Doce.) Estava merecendo descansar.
ANNA No sonho, eu estava junto a você e nós estávamos mortos.
Lá, também estavam Mauro... E Dilermando. Todos mortos. O tempo ia e voltava
vertiginoso, eu sentia medo. Nós estávamos todos mortos... Era como um tribunal
íntimo, póstumo... Nós estávamos todos mortos!
EUCLIDES O pior, agora, passou. Tudo vai voltar ao normal...
ANNA Não, Euclides. Você não está entendendo.
EUCLIDES Você me conta esse sonho... E o que é este sonho? Ele,
agora, não passa de um punhado de palavras...
ANNA O coração de uma mulher não pode ser devassado com
palavras. É de outra natureza o que eu te falo. Eu estou cansada. Todos estamos, mas eu
preciso tentar te fazer compreender o que se passa comigo.
EUCLIDES Se não pode ser dito em palavras, como vou entender?
ANNA No meu sonho, Mauro morria.
EUCLIDES Então não era sonho. Ele morreu.
ANNA Mas quando eu olhava para o menino morto, não era dele
o cadáver que eu via... No rosto, entre as flores do caixãozinho, era o teu rosto que eu
via, Euclides.
EUCLIDES Pensa em me matar?
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ANNA Não. Nunca. Quero te deixar em paz... Deixar você seguir
sua vida, sozinho... Pra mim, é como no meu sonho... Você morreu. Eu entendi que o
tempo da sua presença se foi, pra mim. Me entende?
EUCLIDES Você está cansada... Isso logo passará.
Tempo. Força de Anna.
ANNA (Decidida.) Eu quero sair daqui e seguir junto a
Dilermando.
EUCLIDES Mas se eu continuo a te amar!
Euclides começa a tossir. E tosse mais. Tem uma crise de hemoptise, cospe sangue.
Bastante sangue. Anna fica em torno dele, assustada; mesmo debilitada, tenta cuidar de
Euclides.
EUCLIDES Anna, eu te imploro: você não deve ficar longe de mim.
(Mostra-lhe o lenço encharcado de sangue.) Vê o meu sangue? É como estou, por
dentro... (Olha, louco, no fundo dos olhos dela.) Prove o meu amor. (Tempo.) Beba este
sangue... Beba.
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14. Hemoptise
(Crise profunda de Euclides, que sofre a dor da solidão, manifesta em sangue que jorra
de sua tosse. Ele, ainda tossindo, tenta escrever – para se acalmar. Escrever é, para
Euclides, um paliativo para sua dor. Queda, por fim, com um livro agarrado pelas
mãos, exaurido. Somente então, consegue descansar.)
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15. Desabafo cansado
Escreve sobre si, numa espécie de diário lírico.
EUCLIDES Você não queria mesmo permanecer ao meu lado. Eu
estive muito doente, passei dos limites. Não sei se posso ser perdoado... Tive ímpetos
terríveis. De nada adiantou. Mesmo naquele tempo em que Dilermando esteve ausente,
era ao lado dele que você estava. Em pensamentos, em cartas escondidas, em desejo.
Quando ele chegava de volta à cidade, de férias, os hábitos na casa se modificavam...
Era uma balbúrdia desesperadora. Por que eu não conseguia causar em você as mesmas
turbulências, minha Anna? Eu não podia, como queria, te manter trancada em nosso
quarto. Você, então, saía para a rua. Demorava a voltar. Parecia que não retornaria
nunca. Até que chegava, com um brilho nos olhos renovado, vivo... Um dia, no centro
da cidade, cruzei com ele no bonde. Cordialmente, nos cumprimentamos com um aceno
de cabeça. Eu estava com um terremoto sacudindo o meu peito. Ele não me parecia
menos inquieto. Fomos gentis, como devíamos ter sido sempre. Em outras ocasiões,
deixei-o passar despercebido. Era outra tática muito funcional... Pois era muito mais
doído quando eu te seguia na rua para ver que, em seu passeio, era com ele que você ia
se encontrar. Com Dilermando... Um homem bonito como eu já mais soubera ser. E, no
entanto, eu não desejava ser como ele – a não ser para chamar a atenção e o brilho dos
seus olhos. No fundo, eu queria me sentir nobre aos meus próprios olhos... E aquele
encontro me aviltava. Me feria. Não havia outra saída: aceitar ou aceitar! Aceitar seus
encontros... Aceitar sua nova gravidez. E, por fim, acolher em minha própria casa o
filho diferente que então chegava, tão diferente de mim e de meus meninos, que mais
parecia uma espiga de milho crescida em meio ao cafezal.
Luz sobre Anna.
ANNA Você não permaneceu calmo assim!
EUCLIDES Furioso. Eu fiquei furioso.
ANNA E, como eu estivesse decidida a ficar com Dilermando...
EUCLIDES Depois de um tempo, ele tinha voltado...
ANNA E morava, com o irmão Dinorah, em nosso refúgio de
amor, bem distante, na Estrada Real da Piedade...
EUCLIDES Onde você o encontrava.
ANNA Onde fui, por algum tempo, feliz. Eu, meu amado... E
nosso filho Luiz.
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EUCLIDES A quem eu dava abrigo em minha casa... Diziam que os
estudos de Dilermando iam também por minha conta... (Aponta para si mesmo.) Este foi
Euclides da Cunha, aquele a quem você desprezou.
ANNA Você devia ter seguido a sua vida sem mim. Você merecia
isso. Todos nós merecíamos isso...
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16. Chuva sobre a Piedade
ANNA Ele está cada vez mais nervoso. Possesso. Perde a razão
por qualquer coisa, grita os piores palavrões.
DILERMANDO É um louco!
ANNA Age sem pensar, nem parece ser quem é.
DILERMANDO Não podemos nos exasperar.
ANNA Eu tenho medo do que ele pode fazer. Não vou voltar pra
casa. Chega.
DILERMANDO Por isso, eu mandei o meu irmão para sondar como andam
as coisas lá por aquelas bandas. Vai investigar a coisa toda de longe, para nos deixar
preparados...
ANNA O tempo não está bom, vem derramando água do céu
como lágrimas dos olhos de Deus...
DILERMANDO Se ele desistisse... (Propositivo.) A gente podia ir embora!
ANNA Não adianta. Ontem, para sair de lá, menti que iria
procurar uma casa nova para alugar. Não voltei. Não quero voltar... Fui para a casa de
minha mãe, de onde ele tentou me resgatar. Hoje, vim escondida pra cá... Ele deve
pensar que ainda estou na casa da minha mãe. Por sorte, não sabe onde você mora.
Acho eu.
DILERMANDO Se quiser nos encontrar, não vai ser difícil descobrir. As
minhas tias, hospedadas na sua casa, não vão demorar um instante para dar com a língua
nos dentes.
ANNA É que elas desaprovam os nossos encontros. Falam coisas
terríveis sobre nós.
DILERMANDO Nunca foram amadas. Ninguém, a não ser nós, sabe o que
é isso que nos une aqui e agora.
ANNA Junto com você, eu vou até o fim! Subo, de novo, degrau
por degrau!
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17. Pontos de vista / Narrativas
A grande confusão da cena do crime que leva Euclides da Cunha à morte é reproduzida
pela ação, até que – atônitas – as figuras se põem a narrar, a partir de seus pontos de
vista. O jogo dos atores faz clara menção à cena inicial, dos tiros – enquanto os focos
de luz emergem para dar suporte às narrativas.
EUCLIDES No dia em que tomei a decisão de pôr tudo em pratos
limpos, foi porque Anna havia passado dos limites. Tinha abandonado o lar e isso
depunha fortemente contra a minha honra de marido. Soube por alto que ela comprara
passagens para a Itália, para fugir de mim! Saíra dizendo que ia procurar nova casa para
alugar e não mais voltara. Fui buscá-la na casa da sua mãe, no dia anterior – e ela
recusara-se a voltar. Atormentado, eu pensava como um sujeito abandonado, naquela
hora. Não consegui manter o controle quando soube que... Ela estava com ele. Não
estava mais na casa de minha sogra... Dona Lucinda Ratto e sua irmã Angélica, tias de
Dilermando, que eu hospedava, deram-me a dica de onde encontrá-los... Fui à casa de
meus primos e disse que precisava matar um cachorro louco que rondava a minha rua e
punha em risco toda a minha família. Pedi emprestado um revólver e segui, farejando,
cego como um herói trágico, à estação de trem da Piedade...
ANNA Estávamos ainda tomando café, a manhã estava chuvosa.
Meu filho mais velho tinha chegado na noite anterior, a mando de Euclides, para me
levar embora. Prometi a ele que partiríamos depois que a tempestade parasse – e ele
também acabou dormindo comigo na casa de Dilermando e de seu irmão Dinorah. O
irmão de Dilermando tinha voltado de sua visita dizendo que Euclides estava alterado,
gritando muito – e que isso tudo se ouvia até da rua. Estávamos apreensivos. Foi quando
escutamos, então, que alguém batia palmas lá fora. Dinorah saiu para ver quem era.
Voltou assustado, dizendo que meu marido estava muito nervoso, querendo falar com
Dilermando. Houve um segundo de silêncio em que todos entendemos o que deveria ser
feito! Daí por diante, foi uma correria sem fim. Gritos, desespero, depois tiros. Eu me
escondi com meus dois filhos num cômodo e ouvi os disparos, após o grito de Euclides,
que dizia ter vindo para matar ou morrer.
DILERMANDO Ele chegou atirando, disposto a matar ou morrer. Desferiu
seus golpes de arma de fogo, ao que meu irmão, num instinto bestial, reagiu – tentando
arrancar-lhe a arma. Eu já estava ferido, mas enquanto os dois lutavam, eu tive tempo de
sacar meu revólver de maior calibre para revidar. Em legítima defesa, como ficou
provado! Com um tiro na coluna vertebral saído do revólver de Euclides da Cunha, meu
irmão nunca mais andou. E eu, que não errava um tiro sequer em meus treinamentos,
pus fim ao corre-corre ferindo mortalmente o marido de minha mulher. Com duas balas
no corpo, fui socorrido – enquanto o doutor Euclides jazia morto no chão de minha
casa, na Piedade – diante de mulher e filhos. Após toda a confusão, e dos primeiros
depoimentos policiais, Saninha ficou só, com nosso filho Luiz em seu colo – os outros
foram recolhidos pela família –, sob a chuva fina, andando pela estrada de terra e
levando apenas uma trouxa de roupas, até chegar à estação do trem que lhe levaria para
longe dali...
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18. Enfim, sós
Sentados, juntos, no chão, Anna e Dilermando refletem sobre o passado e o futuro.
ANNA Enfim, ficamos nós dois, a sós.
DILERMANDO Ele morto. Eu preso. Você humilhada.
ANNA Até conseguirmos a sua absolvição! Nós ainda tínhamos
tantas coisas para viver, juntos!
DILERMANDO As duas balas que ele cravou em mim nunca puderam ser
tiradas do meu corpo.
ANNA (Dor de mãe.) Somaram-se às outras duas, que vieram
depois.
DILERMANDO Tive que matar também o seu filho, Quidinho.
ANNA E me doeu tanto... Cada tiro teu em meu filho doeu
primeiro em mim. Me feriu antes! E quando eu soube que tinha sido você, cheguei a te
odiar por algumas horas... Escrevi um bilhete terrível dizendo que nunca mais ia te ver...
Uma mãe vira fera quando um filho...
DILERMANDO Ele chegou traiçoeiro, me pegou na fila do banco, pelas
costas.
ANNA Fizeram a cabeça dele contra nós! Os tutores não
aceitavam que o irmão continuasse comigo...
DILERMANDO Queriam te ver sozinha... Abandonada.
ANNA Se sempre fui boa mãe!
DILERMANDO E ele tentou me matar. Acertou-me dois tiros pelas
costas... Que eu também nunca mais pude arrancá-los de mim...
ANNA Foi exatamente assim. Você alvejou o meu filho,
mortalmente. Nunca errava um tiro. E, mesmo assim, eu continuei ao teu lado. Sempre
do teu lado... Até provarmos, mais uma vez, que você agia em legítima defesa...
DILERMANDO Você me amou!
ANNA E como! Livres, fomos viver nossa vida, com nossa
família... Abandonei minha antiga família rica, vendi doces para sustentar os teus
estudos, até que te tornei engenheiro formado... Eu te fiz um homem!
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DILERMANDO Com quatro balas cravadas no corpo, vindas do pai e do
filho, eu sobrevivi para viver este amor.
ANNA Até o dia em que o golpe esperado tinha que chegar...
DILERMANDO Nós fomos felizes juntos!
ANNA Mas aí você me achou velha demais para a satisfação dos
seus desejos. E foi embora... Viver um pouco de amor com outro rabo de saia. Foi seu
último tiro certeiro, que matou o meu amor... Eu nunca mais falei com você. Nem as
mortes de meu marido e meu filho, pelas suas mãos, foram tão doloridas quanto a sua
traição. Mesmo tendo matado a minha cria, eu fiquei ao seu lado... Na minha cabeça,
você era o único homem do mundo que não podia prevaricar! E, assim, até o nosso
amor chegou ao fim. (Cortante.) Injusto!
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19. O que se aprende na viagem...
Cultivando sossegada cachimbada.
EUCLIDES E enquanto eles próprios bebiam em vida o doce veneno
do amor, eu aqui, morto, não sentia nenhum prazer em vê-los acabarem assim. Pelo
contrário. Depois de tudo, aliviei-me por não querer mais destruição, mais tristeza. Eu
queria um pouco de paz... Eu pensava, daqui: o magnífico seria que vivessem
tranqüilamente a difícil arte de sobreviver ao grande amor. E eles até que tentaram:
tiveram anos de paz em um casamento festivo e feliz... Antes tivessem preservado um
instante que fosse dessa coisa rara que chamam felicidade... (Tempo.) Não me apetece,
daqui de onde vejo as coisas, agora, que tudo caminhe tão mal sobre a terra... Diante
dessa história de amor, eu sou como aquele pajé amazônico que conheci na viagem ao
Alto Purus, quando entrei na mata na companhia de um negro muito alto, trabalhador da
seringa, conhecedor da mata e da vida indígena, com a finalidade de conhecer mais de
perto o Brasil. Aquele pajé, mesmo tendo visto a destruição e o genocídio de sua tribo
pela chegada branca, não desejava a vingança. Ele olhava para o rapaz negro alto que
me acompanhava e dizia, em sua língua misteriosa, que tudo estava em harmonia... Eu
não entendia o que ele falava... Então o negro alto, habituado às línguas da floresta, me
traduzia. Dizia: _Ele é índio pajé que lê os desígnios do mundo, os desígnios que estão
escritos na folhagem, na pele da onça pintada. E eu entendia que ele, olhando a vida do
cimo da árvore sagrada mais alta em que já pôde subir, na quietude daquelas solidões
monstras, dava outro entendimento a tudo o que existe – como se reescrevesse histórias
antigas, sobre sertões longínquos, em que os homens ainda se matam. Ele sabe, como
eu, que é para além da compreensão humana que estão explicadas as ações imperfeitas
cometidas, mesmo pelos mais brilhantes, seres humanos que caminham na matéria
densa das geologias terrestres. (Tempo.) Compreendi isso em Canudos, quando em meio
aos soldados, percebi que deveríamos ter enviado professores aos homens miseráveis do
Conselheiro. (Tempo.) Em minha vivência do amor, infelizmente, não tive este
discernimento... (Tempo longo.) Eu te amo. (Respiração corajosa.) E te perdôo, Anna.
(Tempo.) Siga em paz com suas quatro balas de aço a te machucar, Dilermando. Noutra
ocasião, que seja mais alegre essa nossa intensa vivência do amor.
Fim.