Post on 25-Mar-2016
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Passado negro
Daiane Holdefer, reportagem e fotografia.
Moradoras da zona rural, negras quilombolas guardam a história de uma
comunidade
Ela tem nome de flor. Mas, ao contrário da flor, que é branca, ela é negra.
Negra como o chão da casa onde vive com os cinco filhos, nas terras distantes
do quilombo Quadra da Palma, em Encruzilhada do Sul. Há anos, negros
remanescentes de escravos procuraram refúgio no local, que hoje abriga
quatro famílias. Dentre os que ali chegaram, estava a mãe dela.
Nascida e criada na terra negra do quilombo, Margarida Machado Castilhos, 76
anos, não conheceu o pai. Com um sorriso banguela, suas gargalhadas
abafam as lembranças tristes da infância e cicatrizam as feridas da época em
que andava de uma casa para outra lavando, varrendo, cozinhando. “Trabalhei
desde criança fazendo faxina nas casas, para ajudar a minha mãe. Quase não
brinquei.”
Ela, que foi conhecer as letras do alfabeto depois de velha. Queria ser pediatra.
“Desejava ser médica para cuidar das crianças”, conta. Da soleira da janela, a
quilombola descobre que o tempo passou rápido demais. De repente ficou
adulta, casou, teve filhos e continuou lá, na mesma casa de chão batido. A vida
inteira no mesmo local.
Margarida perdeu o marido quando a filha caçula Nalzira ainda era bebê. Sem
a companhia do pai das crianças, ela precisou trabalhar ainda mais. Foram
anos respigando arroz nas lavouras. “Como era longe o trabalho, eu chegava
só de noite em casa. Tinha que deixar as crianças na casa de alguém”. Ao pé
do fogão à lenha vermelho, a negra lembra-se do prato preferido da infância, a
canjica.
Diante de sua casa, a sorridente Margarida viu quase todo o povo do quilombo
ir embora. Há muito ela só vê os sobrinhos pelos retratos que ficam na mesinha
de madeira, ao lado do fogão. Mas a quilombola resistiu e ficou, assim como a
energia elétrica resistiu, mas chegou. Lá se vão quase três anos que o
candeeiro e as velas foram abandonados de vez.
As mãos da negra, que tanto deu lucros ao patrão, hoje descansam. Afinal, já
estão calejadas demais. Margarida gosta mesmo é de remendar as
lembranças, de costurar o tempo com retalhos de saudade. Tempo em que os
filhos eram crianças e ela mesma fazia as roupas que vestiam. “Aproveitava os
pedaços de pano e costurava as camisas que elas usavam no colégio”, diz
orgulhosa.
As lembranças e a saudade estão espalhadas pelo quintal, onde ciscam
galinhas e pintinhos. Todo dia, ao acordar, Margarida joga milho aos animais e
recorda que adora viver ali, na casa simples, que criou os cinco filhos. O desejo
dela é morrer na terra negra do quilombo, que lhe acolheu quando criança.
Aos 70 anos, Elza Barbosa, única irmã viva de Margarida, mora sozinha em
uma casa de dois cômodos, também no quilombo Quadra da Palma. Viúva,
mãe de uma filha e avó de três netos, toma chimarrão todos os dias, sempre às
10 horas. Uma cerca de arame e algumas árvores separam as casas das duas
irmãs. Elza, uma mulher de riso fácil, acorda bem cedinho, pela manhã, para
cuidar da plantação de mandioca. Desde criança trabalhou na roça. Cortava
trigo, respigava arroz e milho. “Eu trabalhava para ganhar dinheiro, graxa e um
saco de arroz. Uma patroa minha, dona Roni, essa pagava bem”, conta.
Elza lembra que as brincadeiras, na infância, eram improvisadas. Como não
tinham dinheiro para comprar brinquedos, as roupas viravam bonecas. “A gente
enrolava uma blusa, dava um nó ali, outro aqui e surgia o corpo de uma
boneca. Aí a gente brincava assim.” Foi no colégio, mas não conseguiu
aprender a escrever sequer o próprio nome. O que importava mesmo era
trabalhar, e foi isso que ela fez. Trabalhou nas lavouras igual homem, ou até
mais. Durona, não perde para qualquer um na enxada. “Hoje em dia a negrada
nova fica falando que faz isso, faz aquilo, mas eu dou uma surra neles no
serviço”, afirma.
Assim como Margarida, Elza nasceu e se criou nas terras do quilombo. Com
uma vida sofrida, o que mais temeu foi não ter saúde para trabalhar. Há pouco
largou o cigarro porque andava muito magra. Ficou com medo de morrer e
deixar as terras distantes do quilombo que tanto ama.