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Coletânea Pablo Neruda
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Pablo Neruda
" De outro. Será de outro.
Como antes de meus beijos.
Sua voz, seu corpo claro. Seus olhos infinitos.
Já não a quero, é verdadeiro, mas talvez a quero.
É tão curto o amor, e é tão longo o esquecimento.
Porque em noites como esta a tive entre meus braços,
minha alma não se contenta com tê-la perdido.
Ainda que este seja a última dor que ela me causa,
e estes sejam os últimos versos que eu lhe escrevo."
(do "Poema 20 de Veinte poemas de amor y una canción desesperada)
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Biografia
FICHA - Pablo Neruda nome verdadeiro Ricardo E. Neftalí Reyes Basoalto
Nacionalidade: Chile
nascido em Parral 12-7-1904 morreu em Santiago de Chile em 23-9-1973
Nascido num povoado da região central chilena, era filho de um
ferroviário chamado José do Carmen Reyes e de Rosa Neftalí Basoalto, que
faleceu de tuberculose quando o menino Ricardo mal tinha num mês de idade.
Depois disto, pai e filho se mudaram para a cidade de Temuco, onde o pai se
casou com Trindade Candia Valverde. Logo cedo o jovem Ricardo começou a
mostrar interesse pela poesia, sendo um de seus primeiros atos a adoção de
um apelido, Pablo Neruda, com o que depois seria mundialmente conhecido o
pseudônimo o tomou por motivos diversos: "Pablo" que gostou por sua
musicalidade e a maneira como soa, enquanto Neruda o adotou como
homenagem ao poeta Tcheco Jan Neruda. Cursou estudos de francês para
exercer como professor, mas finalmente não conseguiu seu objetivo. A
influência de Gabriela Mistral lhe abre a sua vez ao conhecimento dos
novelistas russos, cujo estilo literário era muito admirado por Neruda. Depois
de marchar a Santiago para cursar estudos universitários no Pedagógico da
Universidade de Chile, apresenta seu poema A canção de festa ao concurso da
festa de primavera, do que sairá vencedor. Sua estadia na capital chilena lhe
põe em contato com uma vida boêmia e intelectual, o que em princípio causa
certos problemas de adaptação para um rapaz de províncias e com escassos
recursos. Em Santiago esteve entre 1920 e 1927, incrementando sua
produção poética e seu prestígio. Assim, publica Crepusculario em 1923,
graças à contribuição econômica de vários amigos sem a qual não teria sido
possível ser editado. Num ano mais tarde sai uma de suas obras mestras,
Vinte poemas de amor e uma canção desesperada, que já lhe outorga
rapidamente grande reconhecimento e benefícios econômicos. Com esta
publicação, de claro corte modernista, consegue situar-se como um dos
cumes da literatura hispano-americana. Em 1926 saem à luz O habitante e
sua esperança; Tentativa do homem infinito e Anéis , que escreve junto a
Tomás Lagos. Neles manifesta sua vontade de procurar novos caminhos
estilísticos , novas formas de expressão, numa clara tentativa por situar-se na
vanguarda literária. Já uma figura nacional, o governo chileno lhe propõe
fazer parte do corpo diplomático, o que fará desempenhar cargos consulares
na China, Ceilão, Birmânia, Barcelona e Madri (1934-1937), onde entrou em
contato com os poetas da chamada Geração do 27. Sua estadia em Espanha é
uma das experiências mais de impacto na vida de Neruda. Comprometido
politicamente com a causa republicana, sua postura pessoal lhe custou o ser
destituído de seu cargo. Depois de viajar para Paris, regressou mais tarde
para Santiago do Chile. A vitória do Testa Popular lhe leva de novo para Paris,
como cônsul, e à cidade de México. Novamente no Chile entre 1943 e 1945,
neste ano se integra no Partido Comunista Chileno, sendo designado senador.
Permanecerá no cargo até 1948. Dois anos antes se faz inscrever legalmente
como Pablo Neruda. Seu profundo compromisso político lhe levou a denunciar
a corrupção política e solicitar reformas, o que lhe obrigou a viver
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clandestinamente até que conseguiu sair do país, esta vez em direção a
Argentina. Novamente tomou as maletas, como tantas outras vezes, para
viajar por diversos países europeus até retornar ao México. De um passo à
URSS e Chinesa. Depois de voltar a seu país, apresentou formalmente sua
candidatura à presidência da nação em 1970, ainda que se retirou a favor de
seu amigo Salvador Allende, quem sairia finalmente elegido em 1973. Neruda
partiu, depois de renunciar para Paris, onde exercerá como embaixador de
Chile (1970-72. De novo ao Chile em 1973, a situação política do país deu
uma volta, porquanto o golpe de Estado de Pinochet desalojou a Allende do
poder e instaurado uma ditadura militar. Pouco tempo depois do golpe, o 23
de setembro, Neruda, quem tinha regressado enfermo, morre numas pouco
claras circunstâncias. Aparte de sua memória, legou-nos uma obra poética
que se situa entre as melhores da História da literatura ÀS já citadas teria que
adicionar Residência na terra, publicada entre 1933 e 1935; Terceira
Residência, de 1947, na que já toma um claro partido pelo marxismo ou Canto
geral, de 1950, outra obra mestra. Em prosa, é autor de uma obra teatral,
Fulgor e morte de Joaquín Murieta, bem como de suas próprias memórias,
Confesso que vivi, publicadas postumamente em 1974. Por sua qualidade
literária e seu compromisso humano recebeu o Prêmio Nacional de Literatura (1945), o Prêmio Nobel de Literatura (1971) e o Prêmio Lenine da Paz.
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1964 -1973
Manuel Rojas, Dr. San Martín, Pablo Neruda,
Fernando Alegría, Gonzalo Rojas, Talcahuano 1964.
1964
Raúl Silva Castro, crítico e Acadêmico da Língua, publica Pablo Neruda, extenso livro
biográfico e crítico. A Biblioteca Nacional de Chile comemora o sexagésimo
aniversário do poeta. Palavras do diretor, dom Guillermo Feliú Cruz, ao iniciar o
ciclo nerudiano. Pablo Neruda: Como vejo minha própria obra. Conferências de
Fernando Alegria, Mario Rodríguez, Hernán Loyola, Hugo Morros, Nelson Osorio,
Luis Sánchez Latorre, Volodia Teitelboim,Manuel Rojas, Jaime Giordano e Federico
Schop. Publicam números dedicados a Neruda nas seguintes revistas chilenas: Alerce,
Aurora e Mapocho.
12 de julho: publica-se Memorial de Ilha Negra, 5 tomos com títulos diversos, editora
Losada.
Em 9 de setembro publica-se sua tradução de Romeo e Julieta, de William
Shakespeare, Editora Losada. O ITUCH estréia esta tradução em Santiago. Pablo
Neruda trabalha intensamente na campanha presidencial percorrendo o país de norte
a sul.
1965
Em Fevereiro viaja a Europa. Em Junho se lhe outorga o título de Doctor honoris
causa em Filosofia e Letras da Universidade de Oxford, título que se dá por primeira
vez a um sul-americano. Em Julho vive em Paris. Depois viaja a Hungria, onde em
colaboração com Miguel Ángel Asturias escreve Comendo em Hungria, livro que se
publicará em cinco idiomas simultaneamente. Assiste à reunião do PEN Clube, em
Bled (Iugoslávia), ao Congresso de Paz de Helsinki (Finlândia). Viaja à URSS como
júri do Prêmio Lenine, que se lhe outorga ao poeta Rafael Alberti. Em Dezembro
passando por Buenos Aires nuns dias, regressa a Chile.
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Neruda y Arthur Miller en Nueva York, 1966.
1966
Em Junho viaja aos Estados Unidos como convidado de honra à reunião do Pen
Clube. Dá recitais em Nova York, apresentado por Archibald Mac Leish, decano dos
poetas americanos; em Washington e Berkeley; grava para a Biblioteca do Congresso
de Washington. Viaja depois a México, onde dá recitais na Universidade; ao Peru,
recital no Teatro Municipal, na Universidade de San Marcos e na Universidade de
Engenharia; recital em Arequipa. A pedido da Associação de Escritores peruanos, que
preside Ciro Alegria, é condecorado com o Sol do Peru. Louis Aragão publica Elégie á
Pablo Neruda, Gallimard. Emir Rodríguez Monegal, O viajante imóvel, editora
Losada.
Neruda con David Alfaro Siqueiros.
1966
Em 28 de outubro legaliza no Chile seu casamento com Matilde Urrutia, celebrado
antes no estrangeiro. Publica-se Arte de pássaros, edição privada, pela Sociedade de
Amigos da Arte Contemporânea, ilustrada por Antúnez, Herrera, Carreño e Toral.
Audições semanais de rádio e leitura de sua poesia (10 audições). Em agosto recebe o
prêmio especial Atenea, da Universidade de Concepción, por toda sua obra literária.
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1967
Viaja por Europa. Em julho recebe o prêmio literário internacional de Viareggio
(Itália). Edições: Obras Completas, segunda edição, dois volumes, Losada, Buenos
Aires, Fulgor e morte de Joaquín Murieta, Editora Zig-Zag, Santiago de Chile, A
barcarola, editora Losada. Em outubro estreia-se, no teatro Antonio Varas, Fulgor e
morte de Joaquín Murieta, pelo elenco do ITUCH, com a direção de Pedro Orthous.
1968
Publica As mãos do dia, Losada, Argentina. Em fevereiro viaja para o Uruguai e dá
uma conferência no paraninfo da Faculdade de Arquitetura (Montevideo). Em Abril
recebe a Condecoração Joliot Curie. Em maio é designado Membro honorário da
Academia Norte-americana de Artes e Letras e do Instituto Nacional de Artes e
Letras. Dá um recital na Universidade de Caracas. Regressa ao Chile e começa a
colaborar como colunista da revista "Ercilla", de Santiago (1968-1970)
. 1969
Publica Comendo em Hungria, escrito em colaboração com Miguel Ángel Asturias,
editora Corvina, de Budapeste e Lumen, de Barcelona. Fim de mundo, edição privada
da Sociedade de Arte Contemporânea, Santiago de Chile. Ainda, editora Nascimento,
de Santiago de Chile. Sumário (livro Onde nasce a chuva de Memorial de Ilha Negra),
edição privada de Livraria Studio, de Santiago de Chile. A copa de sangue, editora A.
Tallone, Alpignano, Itália. Em Maio é designado Membro da Academia Chilena da
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Língua. Em agosto a Universidade Católica de Chile o declara Doctor Scientiae et
Honoris Causa. Em setembro o Senado da República de Chile o condecora com a
medalha de prata que se outorga aos filhos ilustres de Chile. Em 3 de setembro é
designado pré candidato à presidência da República pelo Partido Comunista chileno.
1970
Em Janeiro renúncia a sua candidatura presidencial ao conseguir-se a designação de
um candidato único dos partidos populares chilenos (doutor Salvador Allende). Em
Abril viaja a Europa. Em Maio assiste à estreia de sua obra de teatro Fulgor e morte
de Joaquín Murieta, no Piccolo Teatro de Milão. Dá um recital na Sorbonne, França.
Publica: Vinte poemas de amor e uma canção desesperada, na editora Lord
Cochrane, de Santiago de Chile, edição de luxo com ilustrações de Mario Toral; A
espada acendida, editora Losada, Buenos Aires; Maremoto, edição privada da
Sociedade de Arte Contemporânea de Santiago de Chile; As pedras do céu, Losada,
Buenos Aires.
1971
Em 7 de Janeiro viaja à Ilha de Páscoa, com diretores e técnicos do canal 13 de
televisão chileno para filmar ali cenas do documentário «História e geografia de Pablo
Neruda» que depois se dará por esse canal em meados de ano.
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Em 21 de janeiro, o Senado chileno aprova sua designação como Embaixador de Chile
em França. Viaja a este país no mês de março, passando antes numa semana na
cidade de Buenos Aires. Em 21 de outubro lhe é concedido o Prêmio Nobel de
Literatura. Viaja a Estocolmo a recebê-lo e de ali a Polônia à estréia do Joaquín
Murieta. Dezembro 7: inaugura sua casa A Manquel.
1972
Embaixador em Paris. Viaja à URSS. No mês de março publica Losada seu livro
Geografia infrutuosa. Em 28 de outubro é nomeado Membro do Conselho Consultivo
da Unesco, elegido pela Conferência Geral, por um período de quatro anos. No mês de
novembro viaja a Chile. Homenagem do povo chileno no Estádio Nacional.
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1973
Em 5 de fevereiro renúncia à embaixada em Paris comunicando-se ao presidente
Salvador Allende quando este vai visitá-lo a sua casa de Ilha Negra. Depois trocam
cartas. Em 18 de fevereiro se publica seu livro Incitação ao nixonicidio e louvor da
revolução chilena, que é vendido pelas ruas de Santiago. O 11 de setembro morre
Salvador Allende num Golpe de Estado que tomou o Governo até 1990.
Em 23 de setembro morre Pablo Neruda na clínica Santa Maria, em Santiago de
Chile.
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Algumas Obras
Crepusculario
Vinte poema de amor e uma canção desesperada
Tentativas do homem infinito
O hondero entusiasta
Residência na Terra I
Residência na Terra II
Terceira residência
Espanha no coração
Canto geral
As uvas e o vento
Os versos do Capitão
Odes elementares
Novas odes elementares
Terceiro livro de odes
Estravagario
Cem sonetos de amor
As pedras do Chile
Cantos Cerimoniais
Plenos Poderes
Memorial de Ilha Negra
Arte de Pajaros
La barcarola
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As mãos do dia
Ainda
Fim do mundo
A espada acesa
As pedras do céu
Geografia infrutuosa
Defeitos Escondidos
Elegia
O mar e os sinos
O coração amarelo
A rosa separada
O livro das perguntas
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Internet comemora cem anos de Pablo Neruda
MARIJÔ ZILVETI
da Folha de S.Paulo
O centenário do nascimento do poeta chileno Pablo Neruda (1904-1973),
celebrado no próximo dia 12, é lembrado também na Internet, em sites que trazem
informações sobre o autor e até a reprodução completa de sua obra.
Neruda recebeu o Prêmio Nobel de literatura em 1971. Na página
www.nobel.se/literature/laureates/1971/neruda-bio.html, você descobre que o
verdadeiro nome do poeta era Neftalí Ricardo Reyes Basoalto. Vê também que, na
Espanha, durante a Guerra Civil, ele se juntou ao movimento republicano. Depois
escreveu a coleção de poesias "España en el Corazón" (1937).
A Universidade do Chile mantém em www.uchile.cl/neruda página com links
para textos sobre o centenário do nascimento do poeta. Não deixe de visitar o item
Obra, em que pode escutar Neruda recitando "20 Poemas de Amor y una Canción
Desesperada" (1968) e "Los Versos del Capitán" (1969).
O site Arte História (www.artehistoria.com/historia/personajes/7381.htm) narra
detalhes de sua biografia e seu retorno ao Chile após o golpe de Estado que levou ao
poder o general Augusto Pinochet.
Margarita Aguirre, secretária de Neruda, publicou uma cronologia sobre o
poeta, que está disponível em www.chilevive.cl/homenaje/neruda/biografia.shtml.
A Fundación Pablo Neruda, em www.neruda.cl, oferece também uma
fotobiografia. Vá até www.centenariopabloneruda.cl e conheça detalhes das casas
onde o poeta morou no Chile.
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Antes de amar-te
Antes de amar-te, amor, nada era meu:
vacilei pelas ruas e coisas:
nada contava nem tinha nome:
o mundo era do ar que esperava.
E conheci salões cinzentos,
túneis habitados pela lua,
hangares cruéis que se despediam,
perguntas que insistiam na areia.
Tudo estava vazio,morto e mudo,
caído,abandonado e decaído,
tudo era inalienavelmente alheio,
tudo era dos outros e de ninguém,
até que tua beleza e tua pobreza
de dádivas encheram o outono.
* * * * *
Áspero amor, violeta coroada de espinhos...
Arbusto entre tantas paixões erguidas,
Lança das dores, coroa da ira,
Por quais caminhos e como te dirigiu a minha alma?
Por que precipitaste teu fogo doloroso,
Repentinamente, entre as folhas frias do meu caminho?
Quem te ensinou os passos que te levaram a mim?
Que flor, que pedra, que fumaça mostraram minha casa?
A verdade é que tremeu a noite apavorante,
A aurora encheu todas as taças com seu vinho
E o sol estabeleceu sua presença celeste,
Enquanto o amor cruel me cercava sem trégua,
Até que padecendo-me com espadas e espinhos,
Abriu meu coração um caminho ardente.
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Nos bosques, perdido
Nos bosques, perdido, cortei um ramo escuro
E aos labios, sedento, levante seu sussurro:
era talvez a voz da chuva chorando,
um sino quebrado ou um coração partido.
Algo que de tão longe me parecia
oculto gravemente, coberto pela terra,
um garoto ensurdecido por imensos outonos,
pela entreaberta e úmida treva das folhas.
Porem ali, despertando dos sonhos do bosque,
o ramo de avelã cantou sob minha boca
E seu odor errante subiu para o meu entendimento
como se, repentinamente, estivessem me procurando as raízes
que abandonei, a terra perdida com minha infância,
e parei ferido pelo aroma errante.
* * * * *
Não o quero, amada.
Para que nada nos prenda
para que não nos una nada.
Nem a palavra que perfumou tua boca
nem o que não disseram as palavras.
Nem a festa de amor que não tivemos
nem teus soluços junto à janela...
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Saudade
Saudade é solidão acompanhada, é quando o amor ainda não
foi embora, mas o amado já...
Saudade é amar um passado que ainda não passou,
é recusar um presente que nos machuca,
é não ver o futuro que nos convida...
Saudade é sentir que existe o que não existe mais...
Saudade é o inferno dos que perderam,
é a dor dos que ficaram para trás,
é o gosto de morte na boca dos que continuam...
Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade:
aquela que nunca amou.
E esse é o maior dos sofrimentos:
não ter por quem sentir saudades,
passar pela vida e não viver.
O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido.
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Soneto de Amor
Talvez não ser é ser sem que tu sejas,
sem que vás cortando o meio-dia
como uma flor azul, sem que caminhes
mais tarde pela névoa e os ladrilhos,
sem essa luz que levas na mão
que talvez outros não verão dourada,
que talvez ninguém soube que crescia
como a origem rubra da rosa,
sem que sejas, enfim, sem que viesses
brusca, incitante, conhecer minha vida,
aragem de roseira, trigo do vento,
e desde então sou porque tu é,
e desde então é, sou e somos
e por amor serei, serás, seremos.
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CARTA NO CAMINHO
Adeus, porém comigo serás, sempre irás dentro
de uma gota de sangue que circule em minhas veias ou fora,
beijo que me abrasa o rosto ou cinturão de fogo na cintura.
Doce minha, recebe o grande amor que me saiu da vida e que em ti não achava
território como o explorador perdido nas ilhas do pão e do mel.
Eu te encontrei depois da tormenta, a chuva lavou o ar,
na água, teus doces pés brilharam como peixes.
Adorada, me vou a meus combates.
Arranharei a terra para te fazer uma cova e ali teu Capitão te esperará com
flores sobre o leito. Não penses mais, amada,
no tormento que passou entre nós dois como um raio de fósforo nos deixando talvez,
a queimadura.
A paz chegou também porque regresso à luta em minha terra,
e como tenho o coração completo com a parte do sangue que me deste para sempre,
e como levo minhas mãos cheias do teu ser desnudo,
olha-me, pelo mar, que vou radiante, olha-me pela noite que navego,
e o mar e a noite, amor, serão os teus olhos.
Eu não saio de ti quando me afasto.
Agora vou te contar: vai ser tua a minha terra, vou conquistá-la,
não só para te dar, mas para dar a todos, para todo o meu povo.
Um dia o ladrão deixará a sua torre, e o invasor será expulso.
E todos os frutos da vida crescerão em minhas mãos acostumadas antes à pólvora.
E saberei acariciar as novas flores porque tu me ensinaste o que é ternura.
Doce minha, adorada, virás comigo lutar corpo a corpo,
porque em meu coração vivem teus beijos como bandeiras rubras,
e se caio, não só me recobrirá a terra, também o grande amor que me trouxeste,
que viveu circulando por meu sangue.Virás comigo,
e nessa hora te espero, nessa hora e em todas as horas,
em todas as horas te espero.
E quando venha a tristeza que odeio a golpear a tua porta,
diz a ela que te espero, e quando a solidão queira que mudes esse anel em que está
meu nome escrito,
diz pra solidão falar comigo, que eu precisei partir porque sou um soldado,
e que ali onde eu estou, sob a chuva ou sob o fogo, amor meu, te espero.
Te espero no deserto mais duro e junto do limoeiro florescido,
em qualquer lugar onde esteja a vida, onde esteja nascendo a primavera, amor meu,
te espero.
Quando digam: "Esse homem não te quer", recorda que meus pés estão sós
nessa noite e procuram os doces e pequenos pés que adoro. Amor, quando te digam
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que eu já te esqueci, e quando seja eu mesmo quem diga, e quando eu te disser, não
me creias, quem e como poderiam te cortar do meu peito e quem receberia meu
sangue quando em teu ser me fosse dessangrando? Porém tampouco posso esquecer o
meu povo. Vou lutar em cada rua, atrás de cada pedra. O teu amor me ajuda: és uma
flor fechada que me enche cada vez com seu aroma e que súbita se abre dentro de
mim como uma grande estrela. Amor meu, é de noite. Essa água negra, o mundo
dormindo, me rodeiam. Já está chegando a aurora, enquanto vem, te escrevo para
dizer que te amo. Para dizer: "te amo", cuida, limpa, levanta, defende nosso amor,
alma minha. Aqui te deixo como se deixasse um punhado de terra com sementes. Do
nosso amor nascerão vidas.
Em nosso amor beberão água. Talvez chegará um dia em que um homem e uma
mulher, iguais a nós dois, tocarão este amor, que ainda terá força para queimar as
mãos que o toquem. Quem fomos? O que importa? Tocarão este fogo e o fogo, doce
minha, dirá teu simples nome e o meu, o nome que só tu soubeste porque só tu sobre a
terra sabes quem sou, e porque ninguém me conheceu como uma, como só uma de
tuas mãos, porque ninguém soube como, nem quando meu coração esteve ardendo:
tão só teus olhos grandes pardos o souberam, tua vasta boca, tua pele, teus peitos, teu
ventre, tuas entranhas e essa alma que eu despertei só para que ficasse cantando até
o fim da vida. Amor, te espero.
Adeus, amor, te espero.
Amor, amor, te espero. E assim termina esta carta sem nenhuma tristeza: sobre a
terra estão firmes os meus pés, minha mão escreve esta carta no caminho, e no meio
da vida estarei sempre junto ao amigo, frente ao inimigo, com teu nome na boca e um
beijo que jamais se separou da tua.
Pablo Neruda - ( Thiago de Mello) - Versos do Capitão -
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Angela Adonica
Hoje deitei-me junto a uma jovem pura
como se na margem de um oceano branco,
como se no centro de uma ardente estrela
de lento espaço.
Do seu olhar largamente verde
a luz caía como uma água seca,
em transparentes e profundos círculos
de fresca força.
Seu peito como um fogo de duas chamas
ardia em duas regiões levantado,
e num duplo rio chegava a seus pés,
grandes e claros.
Um clima de ouro madrugava apenas
as diurnas longitudes do seu corpo
enchendo-o de frutas estendidas
e oculto fogo. Acontece que me canso de meus pés e de minhas unhas,
do meu cabelo e até da minha sombra.
Acontece que me canso de ser homem.
Todavia, seria delicioso
assustar um notário com um lírio cortado
ou matar uma freira com um soco na orelha.
Seria belo
ir pelas ruas com uma faca verde
e aos gritos até morrer de frio.
Passeio calmamente, com olhos, com sapatos,
com fúria e esquecimento,
passo, atravesso escritórios e lojas ortopédicas,
e pátios onde há roupa pendurada num arame:
cuecas, toalhas e camisas que choram
lentas lágrimas sórdidas. É assim que te quero, amor,
assim, amor, é que eu gosto de ti,
tal como te vestes
e como arranjas
os cabelos e como
a tua boca sorri,
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ágil como a água
da fonte sobre as pedras puras,
é assim que te quero, amada,
Ao pão não peço que me ensine,
mas antes que não me falte
em cada dia que passa.
Da luz nada sei, nem donde
vem nem para onde vai,
apenas quero que a luz alumie,
e também não peço à noite explicações,
espero-a e envolve-me,
e assim tu pão e luz
e sombra és.
Chegastes à minha vida
com o que trazias,
feita
de luz e pão e sombra, eu te esperava,
e é assim que preciso de ti,
assim que te amo,
e os que amanhã quiserem ouvir
o que não lhes direi, que o leiam aqui
e retrocedam hoje porque é cedo
para tais argumentos.
Amanhã dar-lhes-emos apenas
uma folha da árvore do nosso amor, uma folha
que há-de cair sobre a terra
como se a tivessem produzido os nosso lábios,
como um beijo caído
das nossas alturas invencíveis
para mostrar o fogo e a ternura
de um amor verdadeiro. Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo. Dois amantes felizes não têm fim nem morte,
nascem e morrem tanta vez enquanto vivem,
são eternos como é a natureza.
* * * * *
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Não te quero senão porque te quero,
e de querer-te a não te querer chego,
e de esperar-te quando não te espero,
passa o meu coração do frio ao fogo.
Quero-te só porque a ti te quero,
Odeio-te sem fim e odiando te rogo,
e a medida do meu amor viajante,
é não te ver e amar-te,
como um cego.
Tal vez consumirá a luz de Janeiro,
seu raio cruel meu coração inteiro,
roubando-me a chave do sossego,
nesta história só eu me morro,
e morrerei de amor porque te quero,
porque te quero amor,
a sangue e fogo. Nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria.
* * * * *
Suave é a bela como se música e madeira,
ágata, telas, trigo, pêssegos transparentes,
tivessem erigido a fugitiva estátua.
Para a onda dirige seu contrário frescor.
O mar molha polidos pés copiados
à forma recém-trabalhada na areia
e é agora seu fogo feminino de rosa
uma borbulha só que o sol e o mar combatem.
Ai, que nada te toque senão o sal do frio!
Que nem o amor destrua a primavera intacta.
Formosa, revérbero da indelével espuma,
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deixa que teus quadris imponham na água
uma medida nova de cisne ou de nenúfar
e navegue tua estátua pelo cristal eterno.
* * * * *
Se eu morrer, sobrevive a mim com tamanha força
que acordarás as fúrias do pálido e do frio,
de sul a sul, ergue teus olhos indeléveis,
de sol a sol sonha através de tua boca cantante.
Não quero que tua risada ou teus passos hesitem.
Não quero que minha herança de alegria morra.
Não me chames. Estou ausente.
Vive em minha ausência como em uma casa.
A ausência é uma casa tão rápida
que dentro passarás pelas paredes
e pendurarás quadros no ar.
A ausência é uma casa tão transparente
que eu, morto, te verei, vivendo,
e se sofreres, meu amor, eu morrerei novamente.
* * * * *
Já és minha. Repousa com teu sonho em meu sonho.
Amor, dor, trabalhos, devem dormir agora.
Gira a noite sobra suas invisíveis rodas
e junto a mim és pura como âmbar dormido.
Nenhuma mais, amor, dormirá com meus sonhos.
Irás, iremos juntos pelas águas do tempo.
Nenhuma mais viajará pela sombra comigo,
só tu, sempre-viva, sempre sol, sempre lua.
Já tuas mãos abriram os punhos delicados
e deixaram cair suaves sinais sem rumo,
teus olhos se fecharam como duas asas cinzas.
Enquanto eu sigo a água que levas e me leva:
a noite, o mundo, o vento enovelam seu destino,
e já não sou sem ti senão apenas teu sonho.
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ODE AO GATO
tradução: Eliane Zagury
Os animais foram
imperfeitos,
compridos de rabo, tristes
de cabeça.
Pouco a pouco se foram
compondo,
fazendo-se paisagem,
adquirindo pintas, graça vôo.
O gato,
só o gato apareceu completo
e orgulhoso:
nasceu completamente terminado,
anda sozinho e sabe o que quer.
O homem quer ser peixe e pássaro,
a serpente quisera ter asas,
o cachorro é um leão desorientado,
o engenheiro quer ser poeta,
a mosca estuda para andorinha,
o poeta trata de imitar a mosca,
mas o gato
quer ser só gato
e todo gato é gato do bigode ao rabo,
do pressentimento à ratazana viva,
da noite até os seus olhos de ouro.
Não há unidade
como ele,
não tem
a lua nem a flor
tal contextura:
é uma coisa
só como o sol ou o topázio,
e a elástica linha em seu contorno
firme e sutil é como
a linha da proa de uma nave.
Os seus olhos amarelos
deixaram uma só
ranhura
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para jogar as moedas da noite .
Oh pequeno imperador sem orbe,
conquistador sem pátria,
mínimo tigre de salão, nupcial
sultão do céu
das telhas eróticas,
o vento do amor
na intempérie
reclamas
quando passas
e pousas
quatro pés delicados
no solo,
cheirando,
desconfiando
de todo o terrestre,
porque tudo
é imundo
para o imaculado pé do gato.
Oh fera independente
da casa, arrogante
vestígio da noite,
preguiçoso, ginástico
e alheio,
profundíssimo gato,
polícia secreta
dos quartos,
insígnia
de um
desaparecido veludo,
certamente não há
enigma na tua maneira,
talvez não sejas mistério,
todo o mundo sabe de ti e pertences
ao habitante menos misterioso
talvez todos acreditem,
todos se acreditem donos,
proprietários, tios
de gato, companheiros,
colegas,
discípulos ou amigos do seu gato.
Eu não.
Eu não subscrevo.
Eu não conheço o gato.
26
Tudo sei, a vida e o seu arquipélago,
o mar e a cidade incalculável,
a botânica
o gineceu com os seus extravios,
o pôr e o menos da matemática,
os funis vulcânicos do mundo,
a casca irreal do crocodilo,
a bondade ignorada do bombeiro,
o atavismo azul do sacerdote,
mas não posso decifrar um gato.
Minha razão resvalou na sua indiferença,
os seus olhos têm números de ouro.
27
POEMA XVIII
Os dias não se descartam nem se somam, são abelhas
que arderam de doçura ou enfureceram
o aguilhão: o certame continua,
vão e vêm as viagens do mel à dor.
Não, não se desfia a rede dos anos: não há rede.
não caem gota a gota de um rio: não há rio.
O sonho não divide a vida em duas metades,
nem a ação, nem o silêncio, nem a virtude:
a vida foi como uma pedra, um só movimento,
uma única fogueira que reverberou na folhagem,
uma flecha, uma só, lenta ou ativa, um metal
que subiu e desceu queimando em teus ossos.
28
Cem Sonetos de Amor - XLVI
Das estrelas que admirei,
molhadas
por rios e rocios diferentes,
eu não escolhi senão
a que eu amava
e desde então durmo
com a noite.
Da onda, uma onda e outra
onda,
verde mar, verde frio, ramo
verde,
eu não escolhi senão
uma só onda:
a onda indivisível
de teu corpo.
Todas as gotas, todas as
raízes,
todos os fios da luz vieram,
vieram-me ver tarde ou cedo.
Eu quis para mim tua cabeleira.
E de todos os dons de minha
pátria
só escolhi teu coração
selvagem.
29
Soneto XXV
Antes de amar-te, amor, nada era meu:
vacilei pelas ruas e as coisas:
nada contava nem tinha nome:
o mundo era do ar que esperava.
E conheci salões cinzentos,
túneis habitados pela lua,
hangares cruéis que se despediam,
perguntas que insistiam na areia.
Tudo estava vazio, morto e mudo,
caído, abandonado e decaído,
tudo era inalienavelmente alheio,
tudo era dos outros e de ninguém,
até que tua beleza e tua pobreza
de dádivas encheram o outono.
30
AQUI TE AMO
Aqui te amo.
Nos sombrios pinheiros desenreda-se o vento.
A lua fosforesce sobre as águas errantes.
Andam dias iguais a perseguir-se.
Desperta-se a névoa em dançantes figuras.
Uma gaivota de prata desprende-se do ocaso.
Às vezes uma vela.
Altas, altas estrelas.
Ou a cruz negra de um barco.
Sozinho. Às vezes amanheço, e até a alma está úmida.
Soa, ressoa o mar ao longe.
Este é um porto.
Aqui te amo.
Aqui te amo e em vão te oculta o horizonte.
Eu continuo a amar-te entre estas frias coisas.
Às vezes vão meus beijos nesses navios graves que correm pelo mar aonde nunca
chegam.
Já me vejo esquecido como estas velhas âncoras.
São mais tristes os cais quando fundeia a tarde.
A minha vida cansa-se inutilmente faminta.
Eu amo o que não tenho.
E tu estás tão distante.
O meu tédio forceja com os lentos crepúsculos.
Mas a noite aparece e começa a cantar-me.
A lua faz girar a sua rodagem de sonho.
Olham-me com teus as estrelas maiores.
E como eu te amo,
os pinheiros no vento querem cantar o teu nome com as folhas de arame.
31
Eu aqui me despeço
Eu me despeço.
Volto à minha casa, em meus sonhos.
Volto à Patagônia, aonde o vento golpeia os estábulos e salpica de frescor o Oceano.
Sou nada mais que um poeta: amo a todos, ando errante pelo mundo que amo.
Em minha pátria, prende-se mineiros e os soldados mandam mais que os juízes.
Entretanto, amo até mesmo as raízes de meu pequeno país frio.
Se tivesse que morrer mil vezes, ali quero morrer.
Se tivesse que nascer mil vezes, ali quero nascer.
Perto da araucária selvagem, do vendaval que vem do sul,
das campanas recém compradas.
Que ninguém pense em mim.
Pensemos em toda a terra, golpeando com amor a mesa.
Não quero que volte o sangue...
a molhar o pão, os feijões, a música:
quero que venha comigo o mineiro,
a criança, o advogado, o marinheiro, o fabricantede bonecas.
Que entremos no cinema e bebamos o vinho mais tinto.
Eu não vim para resolver nada.
Vim aqui para cantar e quero que cantes comigo.
32
Um cogito
Qual é o trabalho forçado
de Adolf Hitler no inferno?
Pinta paredes? Cadáveres?
Fareja o gás de suas vítimas?
Terá que ingerir as cinzas
dos meninos calcinados?
Ou desde sua morte há de
beber sangue num funil?
Ou lhe martelam na boca
os dentes de ouro arrancados?
Ou sobre arames farpados
lhe concederão dormir?
Vão ver sua pele tatuada
nos abajures de adorno?
Ou negros mastins de fogo
dele se incumbem no inferno?
Deve de noite e de dia
em trégua andar com seus presos?
Ou morrerá pouco a pouco
sob o mesmo gás eterno?
33
O inseto
Das tuas ancas aos teus pés
quero fazer uma longa viagem.
Sou mais pequeno que um inseto.
Percorro estas colinas,
são da cor da aveia,
têm trilhos estreitos
que só eu conheço,
centímetros queimados,
pálidas perspectivas.
Há aqui um monte.
Nunca dele sairei.
Oh que musgo gigante!
E uma cratera, uma rosa
de fogo umedecido!
Pelas tuas pernas desço
tecendo uma espiral
ou adormecendo na viagem
e alcanço os teus joelhos
duma dureza redonda
como os ásperos cumes
dum claro continente.
Para teus pés resvalo
para as oito aberturas
dos teus dedos agudos,
lentos, peninsulares,
e deles para o vazio
do lençol branco
caio, procurando cego
e faminto teu contorno
de vaso escaldante!
34
Soneto XI
Tenho fome de tua boca, de tua voz, de teu pelo,
e pelas ruas vou sem nutrir-me, calado,
não me sustenta o pão, a aurora me desequilibra,
busco o som líquido de teus pés no dia.
Estou faminto de teu riso resvalado,
de tuas mãos cor de furioso celeiro,
tenho fome da pálida pedra de tuas unhas,
quero comer tua pele como uma intacta amêndoa.
Quero comer o raio queimado de tua beleza,
o nariz soberano do arrogante rosto,
quero comer a sombra fugaz de tuas pestanas
e faminto venho e vou olfateando o crepúsculo
buscando-te, buscando teu coração ardente
como um puma na solidão de Quitratúe.
35
Livro das Perguntas
Tem coisa mais boba na vida
que chamar-se Pablo Neruda?
Que vim fazer neste planeta?
A quem dirijo esta pergunta?
E que importância tenho eu
no tribunal do esquecimento?
Não era verdade que Deus
vivia no mundo da lua?
Minha poesia desgarrada
abr'olhos com estes olhos meus?
Por que me picam as pulgas e os
sargentos da literatura?
Que dirão da minha poesia
os que não tocaram meu sangue?
Posso perguntar ao meu livro
se eu mesmo o escrevi? Desde quando?
Por que nas épocas obscuras
se escreve com uma tinta extinta?
E por que detesto as cidades
com cheiro de mulher e urina?
Quem devorou rente aos meus olhos
um tubarão cheio de pústulas?
Por que andam as ondas me indagando
sobre as mesmíssimas perguntas?
Por que não nasci misterioso?
Por que cresci sem companhia?
Das tais virtudes que esqueci
dá pra fazer um terno novo?
36
Onde está o menino que fui:
anda comigo ou evaporou-se?
Sabe que nunca fui com ele
nem ele comigo tampouco?
Por que estivemos tanto tempo
crescendo para essa ruptura?
Quando minha infância se foi
por que nós dois não fomos junto?
Ainda ontem disse aos meus olhos:
quando de novo nos veremos?
Não é melhor nunca que tarde
dentro de listões amarelos?
Em que janela me quedei
em busca do tempo, se pulcro?
Ou o que diviso destes ermos
ainda não passa de futuro?
Que me esperava em Ilha Negra:
verdades verdes? compostura?
Se morri e não me dei conta
morto, a'hora, a quem me pergunto?
Quem me mandou desvencilhar-me
das portas do meu amor-próprio?
É verdade que um condor negro
sobrevoa minha pátria noite?
Que há de pesar mais na cintura:
padecimentos? memórias?
Que deu em mim de transmigrar
se vivem no Chile meus ossos?
Por que me movo sem querer?
Por que estou sempre desinquieto?
E se minh'alma desabou
37
por que meu esqueleto prossegue?
Por que vou girando sem rodas
e voando sem asas nem penas?
Por que minha roupa desbotada
se agita como uma bandeira?
E que bandeira tremulou
no espaço em que não me esqueceram?
Pois não foi onde me perderam
que eu me dei, enfim, por achado?
Esse onde onde termina o espaço
se chama de morte ou infinito?
Por que voltei à indiferença
do mar oceano desmedido?
Achas que o luto te antecipa
à bandeira do teu destino?
Se caí no laço do mar
por que fechei os meus caminhos?
Que significa persistir
no beco da morte-sem-saída?
E no mar do não-passa-nada
mortalha faz algum sentido?
Por que trabalham sal e açúcar
construindo-se uma torre branca?
Onde fica o umbigo do mar?
Por que até ali não chegam as ondas?
Foi das costas do mar que eu vim:
para onde vou quando me atalha?
Não sentes também o perigo
na gargalhada do mar alto ?
Onde terminará o arco-íris:
dentro da alma ou no horizonte?
38
Vejo de novo o mar ab ovo:
o mar me viu ou botou banca?
Não choras rodeado de risos
- só - com as garrafas do vazio?
Quanto media o polvo negro
que obscureceu a paz do dia?
Não será nossa vida um túnel
entre duas vagas claridades?
Ou não será uma claridade
entre dois triângulos escuros?
E não achas que a morte vinga
dentro do sol de uma cereja?
Ou que em perigosas substâncias
do não ser, a morte lateja?
Devo escolher esta manhã
entre o céu e o mar, tudo ou nada?
Quem sabe lá de onde é que vem
a morte: de cima ou de baixo?
A morte não seria enfim
uma cozinha interminável?
Ou não seria a vida um peixe
preparado para ser pássaro?
Tradução Maria do Carmo Ferreira
39
Virás comigo,
disse sem que ninguém soubesse onde e
como pulsava meu estado doloroso
e para mim
não havia cravo nem barcarola,
nada senão
uma ferida pelo amor aberta.
Repeti:
vem comigo, como se morresse,
e ninguém viu em minha boca a lua que sangrava,
ninguém
viu aquele sangue que subia ao silêncio.
Oh, amor,
agora esqueçamos a estrela com pontas!
Por isso
quando ouvi que tua voz repetia
"Virás
comigo", foi como se desatasses
dor, amor,
a fúria do vinho encarcerado
que da sua
cantina submergida soubesse
e outra
vez em minha boca senti um sabor de chama,
de sangue
e cravos, de pedra e queimadura.
40
SE TU ME ESQUECES
Quero que saibas uma coisa.
Tu já sabes o que é:
Se olho a lua de cristal,
o ramo rubro do lento outono
em minha janela,
se toco junto ao fogo
a implacável cinza ou
o enrugado corpo da madeira,
tudo me leva a ti,
como se tudo o que existe,
aromas, luz , metais,
fossem pequenos barcos
que navegam para estas tuas ilhas
que me aguardam.
Pois, ora, se pouco a pouco
deixas de me amar, de te amar, pouco a pouco, deixarei.
Se de repente me esqueces, não me procures,
já te esqueci também.
Se consideras longe e louco
o vento de bandeiras que canta minha vida
e te decides a me deixar na margem do coração
no qual tenho raízes, pensa que nesse dia
a essa hora levantarei os braços
me nascerão raízes procurando outra terra.
Porém, se cada dia,
cada hora, sentes que a mim estás destinada com doçura implacável,
se cada dia se ergue uma flor
a teus lábios me buscando,
ai, amor meu, ai minha,
em mim todo esse fogo se repete,
em mim nada se apaga
nem se esquece, do teu amor, amada,
o meu se nutre,
e enquanto vivas estará em teus braços
e sem sair
Fonte http://geocities.yahoo.com.br/jerusalem_13/neruda.html
41
Walking Around
Acontece que me canso de meus pés e de minhas unhas,
do meu cabelo e até da minha sombra.
Acontece que me canso de ser homem.
Todavia, seria delicioso
assustar um notário com um lírio cortado
ou matar uma freira com um soco na orelha.
Seria belo
ir pelas ruas com uma faca verde
e aos gritos até morrer de frio.
Passeio calmamente, com olhos, com sapatos,
com fúria e esquecimento,
passo, atravesso escritórios e lojas ortopédicas,
e pátios onde há roupa pendurada num arame:
cuecas, toalhas e camisas que choram
lentas lágrimas sórdidas.
É assim que te quero, amor,
assim, amor, é que eu gosto de ti,
tal como te vestes
e como arranjas
os cabelos e como
a tua boca sorri,
ágil como a água
da fonte sobre as pedras puras,
é assim que te quero, amada,
Ao pão não peço que me ensine,
mas antes que não me falte
em cada dia que passa.
Da luz nada sei, nem donde
vem nem para onde vai,
apenas quero que a luz alumie,
e também não peço à noite explicações,
espero-a e envolve-me,
e assim tu pão e luz
e sombra és.
Chegastes à minha vida
com o que trazias,
feita
de luz e pão e sombra, eu te esperava,
e é assim que preciso de ti,
42
assim que te amo,
e os que amanhã quiserem ouvir
o que não lhes direi, que o leiam aqui
e retrocedam hoje porque é cedo
para tais argumentos.
Amanhã dar-lhes-emos apenas
uma folha da árvore do nosso amor, uma folha
que há-de cair sobre a terra
como se a tivessem produzido os nosso lábios,
como um beijo caído
das nossas alturas invencíveis
para mostrar o fogo e a ternura
de um amor verdadeiro.
Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.
Dois amantes felizes não têm fim nem morte,
nascem e morrem tanta vez enquanto vivem,
são eternos como é a natureza.
Não te quero senão porque te quero,
e de querer-te a não te querer chego,
e de esperar-te quando não te espero,
passa o meu coração do frio ao fogo.
Quero-te só porque a ti te quero,
Odeio-te sem fim e odiando te rogo,
e a medida do meu amor viajante,
é não te ver e amar-te,
como um cego.
Tal vez consumirá a luz de Janeiro,
seu raio cruel meu coração inteiro,
43
roubando-me a chave do sossego,
nesta história só eu me morro,
e morrerei de amor porque te quero,
porque te quero amor,
a sangue e fogo.
Nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria.
44
Os teus pés
Quando não te posso contemplar
Contemplo os teus pés.
Teus pés de osso arqueado,
Teus pequenos pés duros,
Eu sei que te sustentam
E que teu doce peso
Sobre eles se ergue.
Tua cintura e teus seios,
A duplicada púrpura
Dos teus mamilos,
A caixa dos teus olhos
Que há pouco levantaram vôo,
A larga boca de fruta,
Tua rubra cabeleira,
Pequena torre minha.
Mas se amo os teus pés
É só porque andaram
Sobre a terra e sobre
O vento e sobre a água,
Até me encontrarem.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Escrever, por exemplo: "A noite está estrelada,
e tiritam, azuis, os astros lá ao longe".
O vento da noite gira no céu e canta.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu amei-a e por vezes ela também me amou.
Em noites como esta tive-a em meus braços.
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.
Ela amou-me, por vezes eu também a amava.
Como não ter amado os seus grandes olhos fixos.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que já a perdi.
Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
45
E o verso cai na alma como no pasto o orvalho.
Importa lá que o meu amor não pudesse guardá-la.
A noite está estrelada e ela não está comigo.
Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe.
A minha alma não se contenta com havê-la perdido.
Como para chegá-la a mim o meu olhar procura-a.
O meu coração procura-a, ela não está comigo.
A mesma noite que faz branquejar as mesmas árvores.
Nós dois, os de então, já não somos os mesmos.
Já não a amo, é verdade, mas tanto que a amei.
Esta voz buscava o vento para tocar-lhe o ouvido.
De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.
A voz, o corpo claro. Os seus olhos infinitos.
Já não a amo, é verdade, mas talvez a ame ainda.
É tão curto o amor, tão longo o esquecimento.
Porque em noites como esta tive-a em meus braços,
a minha alma não se contenta por havê-la perdido.
Embora seja a última dor que ela me causa,
e estes sejam os últimos versos que lhe escrevo.
46
Quem morre?
Morre lentamente
quem se transforma em escravo do hábito,
repetindo todos os dias os mesmos trajetos, quem não muda de marca
Não se arrisca a vestir uma nova cor ou não conversa com quem não conhece.
Morre lentamente
quem faz da televisão o seu guru.
Morre lentamente
quem evita uma paixão,
quem prefere o negro sobre o branco
e os pontos sobre os "is" em detrimento de um redemoinho de emoções,
justamente as que resgatam o brilho dos olhos,
sorrisos dos bocejos,
corações aos tropeços e sentimentos.
Morre lentamente
quem não vira a mesa quando está infeliz com o seu trabalho,
quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho,
quem não se permite pelo menos uma vez na vida,
fugir dos conselhos sensatos.
Morre lentamente
quem não viaja,
quem não lê,
quem não ouve música,
quem não encontra graça em si mesmo.
Morre lentamente
quem destrói o seu amor-próprio,
quem não se deixa ajudar.
Morre lentamente,
quem passa os dias queixando-se da sua má sorte
ou da chuva incessante.
Morre lentamente,
quem abandona um projeto antes de iniciá-lo,
não pergunta sobre um assunto que desconhece
ou não responde quando lhe indagam sobre algo que sabe.
Evitemos a morte em doses suaves,
recordando sempre que estar vivo exige um esforço muito maior
que o simples fato de respirar. Somente a perseverança fará com que conquistemos
um estágio esplêndido de felicidade.
47
A tartaruga
A tartaruga que
andou
tanto tempo
e tanto viu
com
seus
antigos
olhos,
a tartaruga
que comeu
azeitonas
do mais profundo
mar,
a tartaruga que nadou
sete séculos
e conheceu
sete
mil
primaveras,
a tartaruga
blindada
contra
o calor
e o frio,
contra
os raios e as ondas,
a tartaruga
amarela
e prateada
com severos
lunares
ambarinos
e pés de rapina,
a tartaruga
ficou
aqui
dormindo
e não sabe
De tão velha
se foi
pondo dura,
48
deixou
de amar as ondas
e foi rígida
como o ferro de passar
Fechou
os olhos que
tanto
mar, céu, tempo e terra
desafiaram,
e dormiu
entre as outras
pedras.
49
CAVALHEIRO SÓ
Os jovens homossexuais e as mocinhas amorosas,
e as longas viúvas que sofrem de insônia delirante,
e as jovens senhoras há trinta horas emprenhadas,
e os gatos roufenhos que atravessam meu jardim em trevas,
como um colar de palpitantes ostras sexuais
rodeiam minha casa solitária,
inimigos jurados de minha alma,
conspiradores em traje de dormir,
que trocaram por senha grandes beijos espessos.
O verão radiante conduz os namorados
em uniformes regimentos melancólicos
de pares gordos magros e alegres tristes pares:
sob os coqueiros elegantes, junto ao mar e à lua,
há uma vida contínua de calças e galinhas,
um rumor de meias de seda acariciadas,
e seios femininos a brilhar como dois olhos.
O pequeno empregado, depois de tanta coisa,
depois do tédio semanal e das novelas lidas na cama toda noite,
seduziu sua vizinha inapelavelmente
e a leva agora a cinemas miseráveis
onde os heróis são potros ou são príncipes apaixonados,
e lhe acaricia as pernas, véu macio,
com suas mãos ardentes, úmidas que cheiram a cigarro
As tardes do sedutor e as noites dos esposos
se unem, dois lençóis que me sepultam,
e as horas de após almoço em que os jovens estudantes
e as jovens estudantes, e os padres se masturbam,
e os animais fornicam sem rodeios
e as abelhas cheiram a sangue e zumbem coléricas as moscas,
e os primos brincam de estranho jeito com as primas,
e os médicos olham com fúria o marido da jovem paciente,
e as horas da manhã nas quais, como que por descuido, o professor
cumpre os seus deveres conjugais e desjejua,
e inda mais os adúlteros, que com amor verdadeiro se amam
sobre leitos altos, amplos como embarcações;
seguramente, eternamente me rodeia
este respiratório e enredado grande bosque
com grandes flores e com dentaduras
e raízes negras em forma de unhas e sapatos.
Tradução de José Paulo Paes
50
Dois amantes felizes não têm fim nem morte,
nascem e morrem tanta vez enquanto vivem,
são eternos como é a natureza.
51
É assim que te quero, amor,
assim, amor, é que eu gosto de ti,
tal como te vestes
e como arranjas
os cabelos e como
a tua boca sorri,
ágil como a água
da fonte sobre as pedras puras,
é assim que te quero, amada,
Ao pão não peço que me ensine,
mas antes que não me falte
em cada dia que passa.
Da luz nada sei, nem donde
vem nem para onde vai,
apenas quero que a luz alumie,
e também não peço à noite explicações,
espero-a e envolve-me,
e assim tu pão e luz
e sombra és.
Chegastes à minha vida
com o que trazias,
feita
de luz e pão e sombra, eu te esperava,
e é assim que preciso de ti,
assim que te amo,
e os que amanhã quiserem ouvir
o que não lhes direi, que o leiam aqui
e retrocedam hoje porque é cedo
para tais argumentos.
Amanhã dar-lhes-emos apenas
uma folha da árvore do nosso amor, uma folha
que há-de cair sobre a terra
como se a tivessem produzido os nosso lábios,
como um beijo caído
das nossas alturas invencíveis
para mostrar o fogo e a ternura
de um amor verdadeiro.
52
Inicial
O dia não é hora por hora.
É dor por dor,
o tempo não se dobra,
não se gasta,
mar, diz o mar,
sem trégua,
terra, diz a terra,
o homem espera.
E só
seu sino
está ali entre os outros
guardando em seu vazio
um silêncio implacável
que se repartirá
quando levante sua língua de metal
onda após onda.
De tantas coisas que tive,
andando de joelhos pelo mundo,
aqui, despido,
não tenho mais que o duro meio-dia
do mar, e um sino.
Eles me dão sua voz para sofrer
e sua advertência para deter-me.
Isto acontece para todo o mundo,
continua o espaço.
E vive o mar.
Existem os sinos.