Post on 25-Oct-2020
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIAacuteS
FACULDADE DE HISTOacuteRIA
PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM HISTOacuteRIA
OS USOS POLIacuteTICOS DA NARRATIVA MIacuteTICA EM
LUCIANO DE SAMOacuteSATA ASPECTOS DO REGIME DE
MEMOacuteRIA ROMANO (SEacuteC II D C)
Edson Arantes Junior
Orientadora Profordf Drordf Ana Teresa Marques Gonccedilalves
GOIAcircNIA
2014
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EDSON ARANTES JUNIOR
OS USOS POLIacuteTICOS DA NARRATIVA MIacuteTICA EM LUCIANO
DE SAMOacuteSATA ASPECTOS DO REGIME DE MEMOacuteRIA
ROMANO (SEacuteC II D C)
Tese de Doutoramento apresentada ao Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Federal de Goiaacutes
como requisito para a obtenccedilatildeo do grau de Doutor em
Histoacuteria
Aacuterea de concentraccedilatildeo Culturas fronteiras e identidades
Linha de pesquisa Histoacuteria memoacuteria e imaginaacuterios sociais
Orientadora Profordf Drordf Ana Teresa Marques Gonccedilalves
GOIAcircNIA
2014
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Dados internacionais de catalogaccedilatildeo na publicaccedilatildeo (CIP)
BJFSUEG-Uruaccedilu
Catalogaccedilatildeo na publicaccedilatildeo Sandra Carleth F Carvalho ndash CRB11455
Arantes Junior Edson
A662u Usos poliacuteticos da narrativa miacutetica em Luciano de Samoacutesata
[Manuscrito] aspectos do regime de memoacuteria romano (seacutec II
DC)
Edson Arantes Junior ndash 2014
219 f il
Orientadora Drordf Ana Teresa Marques Gonccedilalves
Tese (Doutorado) ndash Universidade Federal de Goiaacutes Faculdade de
Histoacuteria 2014
Bibliografia
1 Luciano de Samoacutesata 2 Segunda sofiacutestica 3 Mitologia 4
Poder Imperial
I Arantes Junior Edson II Gonccedilalves Ana Teresa
Marques III Tiacutetulo
CDU-
930
4
EDSON ARANTES JUNIOR
Os usos poliacuteticos da narrativa miacutetica em Luciano de Samoacutesata aspectos do regime
de memoacuteria romano (Seacutec II d C)
Tese defendida pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria niacutevel de Doutorado da
Faculdade de Histoacuteria da Universidade Federal de Goiaacutes aprovada em 9 de outubro de
2014 pela Banca examinadora constituiacuteda pelos seguintes professores
Professora Doutora Ana Teresa Marques Gonccedilalves (UFG)
(Presidente)
Professor Doutor Jacyntho Joseacute Lins Brandatildeo (UFMG)
(Membro externo)
Professora Doutora Andrea Luacutecia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi (UNESP)
(Membro externo)
Professor Doutor Noeacute Freire Sandes (UFG)
(Membro interno)
Professora Doutora Adriana Vidotte (UFG)
(Membro interno)
Professor Doutor Haroldo Reimer (UEG)
(Suplente externo)
Professora Doutora Luciane Munhoz de Omena (UFG)
(Suplente interno)
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Agrave Vivaldina Arantes (in memoriam) e Geralda Rita da
Silva (in memoriam) que sempre seratildeo meus exemplos
de perseveranccedila e sabedoria
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Agradecimentos
Ao concluir o percurso tenho muito que agradecer Em primeiro lugar agrave minha
eterna orientadora Professora Doutora Ana Teresa Marques Gonccedilalves que esteve ao meu lado
em todos os momentos difiacuteceis com sua orientaccedilatildeo firme e generosa Devo agradecer sempre
por acreditar no meu projeto de pesquisa e investir para que eu pudesse estudar e me tornar um
especialista que atuasse em Histoacuteria Antiga Seus ensinamentos satildeo um patrimocircnio que levarei
por toda a minha vida
Quero agradecer agrave Universidade Federal de Goiaacutes que por meio de seu programa
proacuteprio concedeu-me uma bolsa que foi fundamental para custear a tecitura desta Tese
principalmente a importaccedilatildeo de importantes textos bibliograacuteficos
Aos professores da UFG que sempre somaram nesse percurso Drordf Luciane Munhoz
de Omena Drordf Dulce Oliveira Amarante dos Santos Drordf Armecircnia Maria de Sousa Dr Joatildeo
Alberto da Costa Pinto e Dr Luiz Seacutergio Duarte da Silva
A banca de qualificaccedilatildeo composta pelos professores doutores Jacyntho Lins
Brandatildeo e Noeacute Freire Sandes que me ajudaram a recriar meu objeto de pesquisa e instigaram
minhas construccedilotildees bem como por aceitarem ler esse trabalho
As professoras Drordf Andreia Dorini e Drordf Adriana Vidotte por aceitarem compor a
banca de avaliaccedilatildeo deste trabalho
Aos amigos historiadores e historiadoras cujas conversas muito somaram a esta
tese Marcelo Ana Paula Thiago Maria Daiacutelza Quero agradecer de forma muito especial agrave
Cleusa por ser uma amiga presente mesmo na distacircncia Ao Manoel pelas eacutebrias discussotildees
benjaminianas Ao amigo e historiador Fernando Teodoro Divino pela constante ajuda para
conseguir textos que se mostravam impossiacuteveis nas bibliotecas brasileiras
Agrave professora Joscelina Borges de Oliveira Santana que foi uma companheira
importante ao me substituir na direccedilatildeo do cacircmpus Ao professor Gilson coordenador do curso
de Histoacuteria que ajudou em tantas ausecircncias Aos amigos Moises Neilson Genilder Claudia
Cleonice Marlene e Joatildeo Erastoacutetenes que me ampararam cada um a seu modo e a seu tempo
Agrave bibliotecaacuteria do cacircmpus professora Sandra cuja eficiecircncia muito contribuiu para o
alinhavado desta Tese Quero expressar meus agradecimentos ao Masinho (vulgo Edemar) que
eacute um amigo verdadeiro nessas estradas Agrave Terla e agrave Valquiacuteria que estiveram comigo todos os
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dias me dando forccedila e aliviando o peso da gestatildeo e em nome delas agradeccedilo a todos os
funcionaacuterios da UEG-Uruaccedilu
A Universidade Estadual de Goiaacutes na pessoa do professor Doutor Haroldo Reimer
reitor desta universidade que me acolheu e forneceu o apoio institucional necessaacuterio para a
conclusatildeo desta e agraves professoras Meire e Carla por me apoiarem nesse momento
A minha famiacutelia que entendeu minhas ausecircncias Minha matildee Eva que sempre me
apoiou e acreditou em mim Meu avocirc Joaquim tatildeo amado e presente Meu padrinho Marcio
Joseacute que eacute um exemplo de conduta Meu pai tios (Valto Seacutergio Geraldo Branco Aguimar) e
tias (Mariza Nilda Ailza Maria Anizia Osvaldina Vilma Aleida) Voacute Nilza primos (Marco
Aureacutelio Rodrigo Andrei Gabriel e Renato) e primas (Mariele Andreia Leiner Taina e
Luana) agrave Vitoacuteria minha linda ao meu irmatildeo Eduardo Siacutelvia e Luiz Henrique sem a o apoio
deles tudo seria mais difiacutecil
Aos amigos que me acolheram em Uruaccedilu Dona Nair Rozilda Ana Paula e Maria
Luiz Cristiano Claudinei Maria Ceacutelia satildeo tantos que sei que vou esquecer quem natildeo devia
mesmo assim muito obrigado
No percurso final desta tese encontrei dois profissionais que muito me auxiliaram
para diminuir as imperfeiccedilotildees desta tese Devo os mais sinceros agradecimentos ao professor
Douglas e agrave professora Valeacuteria As deficiecircncias que este trabalho contiver satildeo de
responsabilidade do autor
Por estar ao meu lado por me entender por me amar por deixar que eu a ame por
cuidar tatildeo bem de mim muito obrigado Kacya
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A tecnologia mudou mas a produccedilatildeo de mitos
estaacute mais do que nunca na ordem do dia
(GINZBURG 2001 83)
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Resumo
Luciano de Samoacutesata foi um importante inteacuterprete do Impeacuterio Romano sua prosa versou sobre
uma infinidade de temas Os estudiosos desse escritor se concentraram em duas possibilidades
de compreensatildeo para sua postura poliacutetica de um lado haacute os autores que consideram o
siacuterio desvinculado de seu tempo e de seu contexto sociopoliacutetico do outro existem os que o
veem como um militante poliacutetico contraacuterio a Roma Nesta Tese consideramos que Luciano
apresenta um posicionamento ambiacuteguo uma vez que ele se identifica como siacuterio ressalta toda
a sua formaccedilatildeo helecircnica e critica aspectos da cultura poliacutetica romana Entretanto acreditamos
que ele estava consciente dos benefiacutecios que o Impeacuterio trazia a todos os povos dominados
Dessa forma podemos dizer que ele era um escritor que colaborava com a manutenccedilatildeo do
sistema imperial Para comprovar essa hipoacutetese deslocamos a indagaccedilatildeo para os famosos
diaacutelogos satiacutericos que costumam ser desconsiderados pelos inteacuterpretes de Luciano Conhecido
por unir o sisudo diaacutelogo filosoacutefico agrave sarcaacutestica comeacutedia entendemos que o escritor tinha a
intenccedilatildeo de produzir o riso que se voltaria para a mobilizaccedilatildeo do pensamento Restringimos
nossa investigaccedilatildeo aos diaacutelogos que utilizam a mitologia como eixo temaacutetico Os mitos foram
pensados como elementos que compotildeem uma memoacuteria cultural e dessa forma satildeo
apresentados nos limites do regime de memoacuteria romano Essa seleccedilatildeo formal foi organizada em
toacutepicos referentes ao poder poliacutetico e a suas manifestaccedilotildees cotidianas Assim preocupamo-nos
com a representaccedilatildeo luciacircnica das assembleias dos tiranos e das relaccedilotildees das divindades entre
si e principalmente com Zeus Entendemos que Luciano fez uma profunda exegese de sua
realidade evidenciando e criticando posturas abusivas Em seus diaacutelogos podemos ver outras
dimensotildees possiacuteveis da interpretaccedilatildeo do poder poliacutetico no impeacuterio romano
Palavras-chave Luciano de Samoacutesata ndash Segunda Sofiacutestica ndash Mitologia ndash Poder Imperial
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Abstract
Lucian of Samosat was an important interpreter of the Roman Empire his writings were about
a varied of topics People who study about this writer focused on two possibilities for
understanding his political stance on one hand there are authors who consider he is
disconnected from his time and sociopolitical context on the other hand there are those who
see him as a political activist opposed to Rome In this Thesis we consider that Lucian has an
ambiguous position since he identifies himself as Syrian underscores his entire Hellenic
education and criticizes aspects of Roman political culture However we believe that he was
aware of the benefits that the empire brought all dominated peoples Thus we can say that he
was a writer who collaborated with the maintenance of the imperial system To prove this
hypothesis we analyze his famous satirical dialogues which were often disregarded by his
interpreters Known for combining the dour philosophical dialogue with sarcastic comedy we
understand that the writer intended to produce laughter which would turn to the mobilization
of thought We restrict our investigation to the dialogues that use mythology as subject The
myths were thought as components of a cultural memory and thus are presented within the
limits of the Roman memory system This selection was formally organized on topics related
to political power and its everyday manifestations Thus we are concerned with the Lucianic
representation of assemblies tyrants and the relations of the deities among them and especially
with Zeus We understand that Lucian did a thorough exegesis of his reality highlighting and
criticizing abusive postures In his dialogues we can see other possible dimensions of
interpretation of political power in the Roman Empire
Keywords Lucian of Samosat - Second Sophistic - Mythology - Imperial Power
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Reacutesumeacute
Lucien de Samosate fut un interpregravete important de lrsquoEmpire Romain sa prose a exploreacute une
infiniteacute de theacutemes La compreacutehension de la posture politique de Lucien est envisageacutee quasi
exclusivement par les speacutecialistes de cet auteur de deux maniegraveres drsquoun cocircteacute certains auteurs
consideacuterent le syrien deacutetacheacute de son temps et de son contexte socio-politique de lrsquoautre il est
vu comme un militant politique opposeacute agrave Rome Dans cette thegravese nous consideacuterons que Lucien
se positionne de faccedilon ambigueuml En effet il srsquoaffirme syrien met en avant toute sa formation
heacutelleacutenique et critique des aspects de la culture politique romaine tout en eacutetant nous le croyons
conscient des beacuteneacutefices apporteacutes par lrsquoEmpire agrave tous les peuples domineacutes Ainsi nous pouvons
dire qursquoil eacutetait un eacutecrivain qui collaborait au maintien du systeacuteme impeacuterial Afin de prouver
notre hypotheacutese nous deacuteplaccedilons la question sur les ceacuteleacutebres dialogues qui obtiennent
communeacutement peu de consideacuteration des interpreacutetes de Lucien Connu pour unir lrsquoaride dialogue
philosophique agrave la comeacutedie sarcastique lrsquoeacutecrivain avait selon notre compreacutehension lrsquointention
de provoquer le rire afin de mobiliser la reacuteflexion Nous limitons notre recherche aux dialogues
utilisant la mythologie comme axe de theacutematique Les mythes furent ici penseacutes comme
eacuteleacutements qui composent une meacutemoire culturelle et sont donc preacutesenteacutes dans les limites du
reacutegime de meacutemoire romain Cette seacutelection formelle fut organiseacutee en topiques concernant le
pouvoir politique et ses manifestations quotidiennes Nous nous inteacuteressons ainsi agrave la
repreacutesentation lucienniste des assembleacutees des tyrans et des relations des diviniteacutes entre elles et
principalement avec Zeus Selon notre compreacutehension Lucien a fait une exeacutegegravese profonde de
sa reacutealiteacute mettant en eacutevidence et critiquant les attitudes abusives Nous pouvons voir dans ses
dialogues drsquoautres dimensions possibles de lrsquointerpreacutetation du pouvoir politique dans lrsquoempire
romain
Mots-cleacutes Lucien de Samosate ndash Seconde Sophistiquendash Mythologie ndash Pouvoir Impeacuterial
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Lista de abreviaturas das obras antigas
Nome do escrito em portuguecircs Nome em latim Abreviatura
Anocircnimo
Retoacuterica agrave Herecircnio Rhetorica ad Herennium Rhet Ad Her
Suda Suda Suda
Aristoacuteteles
Metafiacutesica Metaphysica Metaph
Poeacutetica Poetica Po
Poliacutetica Politica Pol
Augusto
Feitos do divino Augusto Res Gestae Diui Augusti RGDA
Aulo Geacutelio
Noites Aacuteticas Noctes Atticae NA
Dioacutegenes Laeacutercio
Vida e obra dos filoacutesofos ilustres
De vitis et dogmatibus clarorum
philosophorum De vitis
Eacutelio Aristides
Oraccedilatildeo 26 Orationes XXVI Orat 26
Eunaacutepio
Vidas dos sofistas Vitae Sophistarum Vi So
Filostrato
Vidas dos sofistas Vitae Sophistarum VS
Foacutecio
Biblioteca Bibliotheca Biblio
Homero
Iliacuteada Ilias Il
Odisseia Odyssea Odys
Hesiacuteodo
Teogonia Theogonia Theog
Lactacircncio
Instituiccedilotildees Divinas Divinis Institutionibus Inst Div
Luciano
Phalaris I Phalaris prior Phal A
Phalaris II Phalaris alter Phal B
Hiacutepias ou o banho Hippias seu balneum Hipp
Dioniso Bacchus Bacch
Heacuteracles Hercules Herc
Sobre o acircmbar ou sobre os cisnes De electro s cycnis Electr
Nigrino ou a Filosoacutefia de Nigrino Nigrinus Nigr
Elogio da mosca Muscae Encomium Musc Enc
Demonax - A vida de Demonax Demonactis vita Demon
A sala De domo Dom
13
Elogio da paacutetria Patriae Encomium Patr Enc
Macroacutebios Macrobii (longaevi) Macr
Histoacuteria Verdadeira I Verae Historiae I V H I
Histoacuteria Verdadeira II Verae Historiae II V H II
De como natildeo acreditar
facilmente em caluacutenias
Calumniae non
temere credendum Cal
O processo das vogais Judicium vocalium Jud Voc
O banquete ou os lapitas Symposium (convivium) s Lapithae Symp
Pseudosofista ou O solecista Solecista s pseudo-sophista Sol
A decida (ao Hades) ou O Tirano Cataplus s tyrannus Cat
Zeus Refutado Iuppiter confutatus J conf
Zeus Traacutegico Iuppiter Tragoedus J trag
O sonho ou O Galo Gallus s somnium Gall
Prometeu Prometheus Prom
Icaromenipo ou
O sobre as nuvens
Icaromenippus s
Hypernephelus Icar
Tiacutemon ou O Misantropo Timon s misanthropos Tim
Caronte ou Os contempladores Charon s contemplantes Char
Comeacutercio de vidas ou
O leilatildeo dos filoacutesofos
Vitarum
Auctio Vit auct
O pescador ou os Ressuscitados Piscator s Reviviscentes Pisc
Acusado duas vezes ou
sobre os tribunais
Bis Acusatus s
Tribunalia Bis acc
Sobre os sacrifiacutecios De sacrificiis Sacr
Contra um ignorante bibliomaniacuteaco
Adversus Indoctum et
libros multos ementem Adv Ind
O sonho ou a vida de Luciano Somnium s Vita Luciani Somn
O parasita o parasitismo
eacute uma arte
De parasito s artem
esse parasiticam Par
O amigo da mentira ou o increacutedulo Philopseudeis s incredulis Philops
O julgamento da deusas Dearum Iudicium Dear Jud
Sobre os que recebem
salaacuterios dos poderosos De mercede conductis Merc Cond
Arnarcaacutesis ou sobre a ginaacutestica Anarcharsis s de exercitationibus Anarch
Menipo ou a Nequiomancia Necyomantia s Menippus Nec
Luacutecio ou o asno Asinus s Lucius Asin
Sobre o luto De luctu Luct
Mestre da retoacuterica Rhetorum praeceptor Rh Pr
Alexandre ou o falso profeta Alexander s pseudomantis Alex
Imagens Imagines In
Sobre a deusa Siacuteria De Syria Dea Syr Dea
Sobre a danccedila De saltatione Salt
Lexifanes Lexiphanes Lex
O eunuco Eunuchus Eun
14
Sobre a astrologia De astrologia Astr
Os amores Amores Amor
Defesa dos retratos Pro imaginibus Pro In
O pseudologista ou sobre
a palavra apophraacutes Pseudologista s de die nefasto Pseudol
Assembleacuteia dos deuses Deorum Concilium Deor Conc
O tiranicida Tyrannicida Tyr
O filho desesdado Abdicatus Abd
Sobre a morte de Peregrino De mort Peregrini Peregr
Os fugitivos Fugitivi Fug
Toxaacuteris ou sobre a amizade Toxaris s amicitia Tox
Elogio de Demoacutestenes Demosthenis Encomium Dem Enc
Como se deve escrever a Histoacuteria Quomodo historia conscribenda sit Hist Co
As dispisades De Dispsadibus Dips
As festas de Cronos Saturnalias Sat
Heroacutedoto ou Aeacutecio Herodutos s Aetion Herod
Zecircuxis ou Antiacuteocos Zeuxis s Antiochus Zeux
Em defesa de uma gafe na saudaccedilatildeo Pro lapsu inter salutandum Laps
Apologia Apologia Apol
Harmocircnides Harmonides Harm
Diaacutelogo com Hesiacuteodo Disputatio cum Hesiodo Hes
O cita ou o proxena Scytha s Hospes Scyth
Podraga Podraga Podag
Hermoacutetimos ou sobre as seitas Hermotimus s de sectis Hermot
Para aquele que diz
eacutes um Prometeus em suas palavras Prometheus es in verbis Prom Verb
Alcion ou sobre a metamorfose Alcyon s de transformatione Alc
O navio ou os desejos Navigium s vota Nav
Oquipus ou o homem de peacutes ligeiros Ocypus Ocyp
O ciacutenico Cynicus Cyn
Diaacutelogo dos mortos Dialogi mortuorum D Mort
Diaacutelogos dos Marinhos Dialogi marini D Mar
Diaacutelogo dos deuses Dialogi Deorum D Deor
Diaacutelogo das Cortesatildes Dialogi Meretricii D Meretr
Pseudo-Luciano
Sobre os danccedilarinos
(Libaacutenio agrave Aristides)
De saltatoribus
(Libanii ad Aristidem) Liban Salt
Cartas Epistulae Epist
Filoacutepatris ou que se instrui sozinho Philopatris s qui docetur Philopatr
Kharidemos ou sobre o belo Charidemos s de pulchritudine Charid
Nero ou a escavaccedilatildeo do istmo Nero s de fossione Isthmi Ner
Epigramas Epigrammata Epigr
Timaacuterion ou sobre os
sofrimentos por si mesmo Timarion s quae passus sit Timar
15
Platatildeo
Repuacuteblica Res Publica Rep
Suetocircnio
Nero Nero Nero
16
SUacuteMARIO
Introduccedilatildeo 18
Capiacutetulo I 33
Luciano de Samoacutesata a Segunda Sofiacutestica e o Impeacuterio Romano relaccedilotildees ambiacuteguas entre
literatura e poder 33
11 A trajetoacuteria e os escritos de Luciano de Samoacutesata como ser siacuterio escrever em grego e
estar no Impeacuterio Romano 34
12 Algumas consideraccedilotildees sobre as primeiras referecircncias a Luciano na tradiccedilatildeo ocidental
41
13 Histoacuteria e imaginaacuterio de uma eacutepoca de ouro o contexto dos Antoninos 45
14 A construccedilatildeo de uma identidade helecircnica no Impeacuterio Romano 49
16 Narrativas miacuteticas e memoacuteria cultural em um Impeacuterio Greco-romano 64
17 A coragem da verdade em Luciano entre a poliacutetica imperial e a fala franca 69
Capiacutetulo II 82
Mito a narrativa que todos conhecem 82
21 Mitologia e Retoacuterica saberes sobre a Memoacuteria 83
22 O mito a modernidade e o historiador 87
23 Mito e formaccedilatildeo outras pedagogias 91
24 Os mitos entre as memoacuterias naturais e as artificiais 95
25 Luciano e os mitos 98
Capiacutetulo III 104
Apropriaccedilatildeo luciacircnica das narrativas miacuteticas repensando o poder 104
31 As assembleias luciacircnicas poder e riso 106
32 Diaacutelogo dos mortos quando o mito se encontra com a Histoacuteria 116
33 Narrativas miacuteticas e os dilemas do poder o caso do Prometeu luciacircnico 138
34 Espaccedilo e Narrativa miacutetica a representaccedilatildeo dos Tiranos entre gregos e romanos 147
35 O Zeus luciacircnico tirania e a impossibilidade de intervenccedilatildeo na vida humana 161
Consideraccedilotildees finais 178
Bibliografia 184
a) Documentaccedilatildeo Textual 184
b) Obras de referecircncia 188
c) Obras gerais 189
Mapas 216
Mapa I Oriente proacuteximo no periacuteodo romano 216
17
Mapa II As principais rotas de circulaccedilatildeo na Siacuteria do Norte no Impeacuterio Romano 217
Mapa III A Camogema do periodo romano 218
Mapa IV A dispersatildeo das legiotildees romanas no periacuteodo imperial 219
18
Introduccedilatildeo
A investigaccedilatildeo que ora apresentamos dos usos poliacuteticos das narrativas miacuteticas nos
diaacutelogos de Luciano de Samoacutesata representa a culminacircncia de dez anos de leitura desses
escritos O primeiro produto desse trabalho foi uma monografia de conclusatildeo de curso intitulada
Lugares imaginaacuterios na obra de Luciano de Samoacutesata memoacuteria e identidade no contexto
imperial produzida em 2005 Nossa preocupaccedilatildeo era entender o espaccedilo dos vivos (cidade) e
dos mortos (Hades) nos escritos luciacircnicos indagando o significado dos mesmos para a cultura
imperial
Esse trabalho deu origem ao projeto de Mestrado que resultou em uma anaacutelise do
mito de Heacuteracles nos escritos de Luciano Nossa Dissertaccedilatildeo intitulada Regime de memoacuteria
romano as imagens do heroacutei Heacuteracles nos escritos de Luciano de Samoacutesata defendida em
2008 tinha a preocupaccedilatildeo central de analisar um mito especiacutefico nos escritos do samosatense
o que nos permitiu alocar este escritor no seio de uma cultura muito mais complexa e de uma
forma proacutepria de reconstruccedilatildeo do passado Nesse sentido foi fundamental forjar um conceito
adequado ao tema qual seja o de regime de memoacuteria Trata-se dos aspectos metanarrativos
que orientam a construccedilatildeo de relatos memorialiacutesticos
Ao refletir sobre os viacutenculos entre a imagem do heroacutei Heacuteracles construiacuteda nos
escritos luciacircnicos e o poder imperial surgiu paulatinamente a questatildeo que orienta toda a
construccedilatildeo desta Tese de Doutoramento a saber as relaccedilotildees entre Luciano de Samoacutesata e a
cultura poliacutetica1 imperial Para desenvolver esse tema buscamos um caminho que natildeo foi
tentado pelos lucianistas isto eacute questionar a apropriaccedilatildeo que esse autor faz das narrativas
miacuteticas e os laccedilos dessas com as praacuteticas e representaccedilotildees referentes aos poderes constituiacutedos
1 Entendemos por cultura poliacutetica o conjunto de siacutembolos praacuteticas e ideias que exprimem a maneira como uma
comunidade lida com o poder
19
Os relatos miacuteticos satildeo pensados no interior do regime de memoacuteria romano2 tendo
em vista a teologia poliacutetica3 que orientava as relaccedilotildees de poder na Roma dos Antoninos Essas
duas noccedilotildees satildeo fundamentais em nossa empreitada A ideia de regime orienta nossa
perspectiva para as forccedilas metanarrativas que por sua vez orientam a produccedilatildeo dos discursos
memorialiacutesticos Nesta Tese os elementos metanarrativos fundamentais satildeo pensados a partir
da formaccedilatildeo especiacutefica do orador o que coloca seus discursos em uma ordem de criaccedilatildeo Neste
ponto os gecircneros escolhidos a forma de apresentaccedilatildeo e a linguagem satildeo oriundos de um
trabalho consciente Mesmo quando o escritor inventa ele parte de algo que se solidificou na
cultura Assim os recursos fornecidos pela retoacuterica4 satildeo fundamentais para o estabelecimento
na vida puacuteblica Outro elemento especiacutefico eacute a linguagem com a qual os textos satildeo escritos a
partir de um trabalho intenso de construccedilatildeo verbal
2 O termo regime vem do latim regimen e geralmente vincula-se agrave orientaccedilatildeo ou direccedilatildeo de algo (ABBAGNAMO
2003 840) O conceito de regime de memoacuteria aparece em um artigo de Franccedilois Hartog intitulado Tempo e
patrimocircnio especificamente ao analisar a obra de Pierre Nora e observar a mudanccedila de um regime de memoacuteria
(HARTOG 2006 266) Entretanto essa noccedilatildeo se insere ao debate sobre o conceito de regime de historicidade
que se distingue do conceito de eacutepoca por ser muito mais dinacircmico que aquele o qual se caracteriza por ser um
corte temporal na cronologia Ao pensar em regime de historicidade Hartog coaduna em uma mesma reflexatildeo a
maneira com a qual Michel Foucault entende a apropriaccedilatildeo dos discursos em seu livro a Ordem do Discurso
(FOUCAULT 2002 8-9) e as reflexotildees sobre a relaccedilatildeo entre evento mudanccedila e estrutura permanecircncia proposta
por Marshal Shalins no livro Ilhas de Histoacuteria afirma que a ldquorelaccedilatildeo entre estrutura e evento que se inicia com a
proposiccedilatildeo de que a transformaccedilatildeo de uma cultura tambeacutem eacute um modo de sua reproduccedilatildeordquo (SHALINS 1990
174) bem como a proposta de uma semacircntica do tempo presente nas teses de Reinhart Koselleck em que ele
observa que os homens que do passado viviam em um espaccedilo de experiecircncia fruto do passado do indiviacuteduo e da
sociedade e um horizonte de expectativas que observa os sonhos e projetos para o futuro dos homens que viveram
no preteacuterito ou seja abre a possibilidade de pensar a existecircncia de um futuro almejado no passado (KOSELLECK
2006 307) A proposta de Hartog (2003a 26-30) articula essas reflexotildees Nesse sentido nossa proposta do
conceito de regime de memoacuteria restringe a reflexatildeo aos usos que os homens fazem do passado construiacutedo por
meio de narrativas Eacute a narrativa acerca do passado que fornece aos homens subsiacutedios para a construccedilatildeo de sua
identidade e de planejarem sua existecircncia 3 A noccedilatildeo de teologia poliacutetica adveacutem da obra de Ernst H Kantorowicz (1998) em seu livro Os dois corpos do rei
um estudo sobre teologia poliacutetica medieval em que o autor enfatiza as ficccedilotildees elaboradas no plano da miacutestica que
sustentam o poder estabelecido dando-lhe legitimidade o que possibilita a manutenccedilatildeo no poder Em nossa tese
essa noccedilatildeo tem significacircncia restrita aos usos dos elementos miacuteticos e religiosos para a legitimaccedilatildeo do poder no
caso romano a noccedilatildeo de pax deorum os usos poliacuteticos dos mitos e a construccedilatildeo de argumentos que justificam
determinadas praacuteticas a partir dos mitos por exemplo a consecratio cerimocircnia que eleva o Divus do Imperador
morto ao plano das deidades constituiacutedas estabelecendo culto e clero especiacutefico para o mesmo 4 A retoacuterica aristoteacutelica apresenta trecircs gecircneros baacutesicos deliberativo judiciaacuterio e epidiacutetico O primeiro busca
persuadir ou dissuadir o segundo defender ou acusar e o terceiro elogiar ou censurar
20
No seacuteculo II da era cristatilde5 o Impeacuterio Romano6 controlava uma gigantesca aacuterea no
Mediterracircneo Trata-se do Impeacuterio7 estrutura de governo em que um povo governa outro mais
longevo da histoacuteria humana Sua organizaccedilatildeo poliacutetica foi extremamente inteligente uma vez
que o mesmo conviveu de maneira sagaz e seletiva com a heterogeneidade dessa imensa
entidade poliacutetica Como afirma Maurice Duverger ldquopor natureza os impeacuterios satildeo
plurinacionaisrdquo (DUVERGER 2008 25)
Maurice Sartre (1994 7-8) salienta que o domiacutenio romano pode ser pensado a partir
da unicidade de praacuteticas tais como o culto ao Imperador a presenccedila das legiotildees e de um corpo
de funcionaacuterios ligados a Roma e algumas normatizaccedilotildees juriacutedicas e legislativas O poder
simboacutelico do Imperador8 como agente vinculado agrave ordem sobrenatural faz-se presente em
todos os rincotildees do Impeacuterio seja por meio do culto das festividades das moedas dos
monumentos dentre outras possibilidades de presentificaccedilatildeo pois ldquoo poder poliacutetico e a
legitimidade natildeo se apoiam somente em impostos e nos exeacutercitos mas tambeacutem nas concepccedilotildees
e nas crenccedilas dos homensrdquo (HOPKINS 1987 232) O poder imperial eacute um importante fator de
unicidade sentida na vida provincial por uma complexa rede capilar ou como diria Michel
Foucault (2012) por micropoderes9
5 As datas indicadas nesta Tese satildeo predominantemente da era cristatilde salvo aquelas indicadas como anteriores a
Cristo 6 Compreender a complexa Histoacuteria do Impeacuterio Romano a partir da anaacutelise de sua produccedilatildeo cultural eacute um
empreendimento bastante relevante no novo mundo por se tratar de investigar a experiecircncia humana assim como
a maneira com a qual os homens lidaram com seus sentimentos de pertencimento A distacircncia temporal e espacial
permite o afastamento das querelas identitaacuterias que povoam o imaginaacuterio europeu Um exemplo de como as
querelas atuais podem interferir na construccedilatildeo do passado pode ser visto nas anaacutelises que Pedro Paulo Abreu
Funari e Marina Cavichioli fazem no capiacutetulo intitulado ldquoOs usos do passado consideraccedilotildees sobre o papel da
arqueologia na construccedilatildeo da identidade italianardquo (2011 111-122) 7 A unidade do termo Impeacuterio camufla uma grande diversidade de organizaccedilotildees poliacuteticas administrativas e
culturais Neste sentido concordamos com Maurice Duverger quando ele afirma que eacute fundamental analisar o
processo de estabelecimento do Impeacuterio muito mais que o discurso que o mesmo produz sobre si mesmo
(DUVERGER 2008 21) Outro ponto significativo neste debate foi assentado por Renata Senna Garraffoni (2008
138-140) ao enfatizar as contribuiccedilotildees poacutes-coloniais nessa discussatildeo seguindo teoacutericos como Edward W Said
em seu livro Cultura e Imperialismo (1995) pois a partir das premissas teoacutericas desses intelectuais haacute um processo
de valorizaccedilatildeo maior das culturas locais 8 Hadrien Bru em sua Tese de Doutoramento intitulada Le pouvoir imperial dans les provinces syriennes traccedila
um importante panorama do culto imperial na regiatildeo natal de Luciano Bru mostra como os Imperadores satildeo
representados como os mestres do universo os senhores do destino terrestre (BRU 201119) ou ainda as muitas
marcas de seu domiacutenio sobrenatural presentes na paisagem (BRU 2011 30) os viacutenculos dos Imperadores com a
construccedilatildeo de aquedutos obras tipicamente romanas (BRU 2011 41-46) os monumentos e santuaacuterios (BRU
2011 63 83) e ainda a organizaccedilatildeo e promoccedilatildeo do culto imperial por meio de concursos hiacutepicos jogos de
gladiadores entre outros (BRU 2011225-264) 9 Foucault mudou o eixo dos estudos sobre o poder deslocando o olhar do Estado para as praacuteticas evidenciando
que o poder pode se manifestar em uma multiplicidade de relaccedilotildees sociais por isso micropoderes assim devemos
refletir as relaccedilotildees de clientelismo e patronagem do pater famiacutelias o professor ou tutor A coletacircnea intitulada
Microfisica do poder (2012) organizada no Brasil por Roberto Machado apresenta textos fundamentais de
Foucault sobre as relaccedilotildees de poder e sua capilaridade social aleacutem de sua relaccedilatildeo com os saberes
21
O Impeacuterio Romano pode ser contemplado em sua duplicidade jaacute que dois idiomas
se apresentavam como ordenadores poliacuteticos da vida social no Ocidente predominou o latim
e no Oriente o grego O domiacutenio da cidade de Roma natildeo impocircs em nenhum momento o ensino
dessas liacutenguas10 O latim foi utilizado no Ocidente onde natildeo havia uma liacutengua homogenizante
e o grego no Oriente onde nos reinos heleniacutesticos herdeiros das conquistas de Alexandre o
Grande (356 aC ndash 323 aC) jaacute era utilizado haacute muito tempo No governo do Imperador Claacuteudio
(41-54) foi criada uma chancelaria dupla que usava latim e grego em seus documentos fato
que tem o caraacuteter de oficializar o que jaacute ocorria no cotidiano do Impeacuterio no Oriente heleniacutestico11
O romano conviveu muito bem com a heterogeneidade do Impeacuterio permitindo o
uso de idiomas diversos o culto a divindades locais festas tradiccedilotildees e atividades econocircmicas
muacuteltiplas Jean Bayet ressalta a importacircncia para os dirigentes do Impeacuterio os senadores nos
tempos republicanos e os Imperadores durante o Principado de manter a pax deorum12
(BAYET 1984 66-69) Keith Hopkins mostra como o Imperador eacute o responsaacutevel pela ordem
material seguranccedila e condiccedilotildees de existecircncia assim como pelo ordenamento simboacutelico da vida
Evitar os conflitos que alterem a pax deorum eacute uma das suas prerrogativas fundamentais do
governante (HOPKINS 1987 249-255) A loacutegica da cultura imperial coloca o Imperador como
catalizador da unidade do Estado no plano material como condutor em uacuteltima instacircncia das
instituiccedilotildees poliacuteticas e militares Ele tambeacutem eacute o responsaacutevel pela harmonia simboacutelica entre o
mundo divino e o humano O estudo das narrativas miacuteticas na obra de Luciano nos permite
desdobrar as questotildees colocadas inicialmente em trecircs possibilidades de compreensatildeo do
Impeacuterio Romano uno duplo e muacuteltiplo13
Cabe ao historiador questionar cada elemento presente em sua investigaccedilatildeo para
compor uma imagem mais aproximada do que poderia ter sido o Impeacuterio Romano ou como
10 As elites locais que observavam a importacircncia de se comunicar com os dominadores e que aprenderam o latim 11 Erich Stephen Gruen em seu livro Culture and national identity in Republican Rome mostra que desde a eacutepoca
republicana havia um duplo processo de busca por elementos da cultura romana pela elite da cidade de Roma mas
que esse processo era acompanhado por intenso trabalho de diferenciaccedilatildeo dos gregos de seus valores Segundo
Gruen a ambiguidade e a ambivalecircncia formam as principais formas de agir romanas em relaccedilatildeo aos gregos Outro
ponto enfatizado pelo autor eacute que os romanos natildeo se sentiam inferiores aos gregos ficando claro o desejo de
participar de uma cultura admirada e ao mesmo tempo dominada (GRUEN 1994 223-271) 12 Os romanos tinham taacuteticas de controle dos territoacuterios conquistados bastante tolerantes agraves divindades como o
politeiacutesmo natildeo pressupotildee uma unidade dada por nenhum livro Desde as primeiras conquistas havia a praacutetica de
construir na cidade de Roma um altar para os deuses dos povos conquistados a guerra era entre os homens nunca
entre os deuses (GRANT 1987 26-27) 13 Natildeo podemos idealizar e pensar que os romanos eram tolerantes e gentis com os outros por exemplo quando
os hebreus negaram fazer culto ao Imperador eles foram punidos e suas atitudes condenadas O mesmo pode ser
dito dos Cristatildeos entretanto temos que ressaltar o caraacuteter poliacutetico da religiatildeo romana os hebreus e os cristatildeos
Por exemplo ao negar prestar culto ao Imperador Romano cometia crime de lesa-majestade o problema natildeo era
a crenccedila desses grupos mas as consequecircncias poliacuteticas desses atos que atentavam contra a ordem espiritual
estabelecida pela teologia poliacutetica romana
22
diria Paul Veyne (2009) o Impeacuterio Greco-Romano14 Natildeo podemos nos iludir com o
preconceito positivista de uma verdade concreta entretanto como afirma Luis Costa Lima
(2006 147) a verdade continua como aporia para o trabalho do historiador Noacutes sabemos da
impossibilidade de alcanccedilar a verdade histoacuterica entretanto esta continua sendo a meta dos
historiadores
Luciano escreveu no seacuteculo II durante o periacuteodo em que os Antoninos governaram
Roma Seus textos eram escritos predominantemente em grego aacutetico15 como era do gosto da
elite helenoacutefila Como enfatizou Jacyntho Lins Brandatildeo Luciano eacute um poliacutegrafo Natildeo pelo
imenso nuacutemero de textos literaacuterios que produziu16 mas pela diversidade temaacutetica e de gecircnero
que esse autor aborda (BRANDAtildeO 1990 138) A partir dessa premissa calcada na diversidade
do interesse luciacircnico Brandatildeo ressalta que o samosatense eacute um criacutetico da cultura vista como
Paideia17
Nosso objeto visa entender a apropriaccedilatildeo18 luciacircnica de elementos pertencentes agraves
narrativas mitoloacutegicas greco-romanas os quais satildeo utilizados nos escritos de maneira bastante
fragmentaacuteria Luciano natildeo sistematiza a apresentaccedilatildeo ou interpretaccedilatildeo desses elementos jaacute que
ele natildeo eacute um mitoacutegrafo Desse modo os mitos que ele utilizou em seus escritos natildeo satildeo
escolhidos aleatoriamente mas compotildeem uma estrateacutegia de comunicaccedilatildeo e satildeo apresentados a
partir do regime de memoacuteria romano Para que seu uso atinja os efeitos esperados na plateia
audiecircncia um nuacutecleo de sentido deve permanecer visto que eacute esse significado partilhado que
14 Paul Veyne defende que o Impeacuterio Romano deve ser tratado por Impeacuterio Greco-Romano (1) pelo uso do grego
como liacutengua oficial no Oriente (2) pela presenccedila da cultura helecircnica em todo o Impeacuterio por meio da Paideia (3)
pela afirmaccedilatildeo de Veyne de que ldquoa cultura era helecircnica e o poder era romanordquo (VEYNE 2009 VII) O historiador
francecircs ainda destaca que identificaccedilatildeo natildeo pode ser confundida com aculturaccedilatildeo logo os romanos helenizados
natildeo desprezavam a romanidade 15 Os escritores gregos que compuseram suas obras durante o domiacutenio romano utilizavam em sua maioria uma
variante do grego usado na regiatildeo da Aacutetica durante o periacuteodo claacutessico Trata-se de uma tentativa deliberada de
afastamento do grego comum ou melhor o koineacute falado pela maioria da populaccedilatildeo Seria como se um escritor
atual tentasse escrever seguindo os princiacutepios da liacutengua de Luis de Camotildees 16 Satildeo atribuiacutedas oitenta e seis obras a Luciano de Samoacutesata 17 A traduccedilatildeo desse conceito natildeo eacute simples uma vez que em grego antigo esta palavra abrangia um campo
semacircntico bastante extenso se por um lado ela pode ser traduzida por educaccedilatildeo a palavra educaccedilatildeo deve ser
vista no sentido da formaccedilatildeo integral dos indiviacuteduos tanto por meio da formaccedilatildeo intelectual quanto da praacutetica de
exerciacutecios fiacutesicos Em um niacutevel mais avanccedilado esta palavra significa tambeacutem todo o patrimocircnio cultural existente
motivo de orgulho dos homens que falavam grego Para uma Histoacuteria da Paideia grega o livro Paideia a formaccedilatildeo
do homem grego de Werner Jaeger ainda continua sendo um excelente ponto de partida (JAEGER 2010) Esse
texto apresenta uma conotaccedilatildeo bastante idealista da Histoacuteria Grega Para uma visatildeo mais histoacuterica sugerimos o
livro de Henri Marrou Histoacuteria da Educaccedilatildeo na Antiguidade (1975) Haacute uma coletacircnea de artigos importantes
sobre o tema organizada por Barbara E Borg (2004) Esses textos satildeo interessantes por relacionar a formaccedilatildeo do
homem culto com a identidade grega principalmente no artigo de Christopher Jones (2004) que debate como a
Paideia grega convive com diversas identidades 18 O conceito de apropriaccedilatildeo elaborado por esse autor parte do princiacutepio do diaacutelogo cultural Ao usar qualquer
elemento disponiacutevel na cultura os agentes culturais valoram os signos utilizados de acordo com os saberes que
estes possuem Um exemplo claacutessico de apropriaccedilatildeo neste sentido eacute a do leitor que insere a obra literaacuteria em todo
o seu quadro de significaccedilatildeo (CHATIER 1990)
23
permite a intervenccedilatildeo na ordem Por meio das narrativas de mitos conhecidos Luciano pode
inserir outras discussotildees em seus escritos uma vez que as narrativas miacuteticas satildeo elementos
culturais mobilizados por meio da retoacuterica a fim de produzir um efeito gerar sentidos e induzir
agrave accedilatildeo
Luciano foi um escritor que brincou19 em termos estiliacutesticos com a escrita sobre a
realidade uma vez que construiu estoacuterias nas quais ele mesmo avisa ao leitor que natildeo haacute
veracidade em seu escrito indo aleacutem da poeacutetica aristoteacutelica que diferencia a histoacuteria da poesia
por esta narrar o que aconteceu e aquela dizer o que poderia ter acontecido (Aristoacuteteles Poeacutetica
IX 1451b) O siacuterio aponta a possibilidade de construir um relato sobre o que natildeo poderia
acontecer e avisa o leitor disso por exemplo no texto Das Narrativas Verdadeiras20 Ele
tambeacutem produziu textos que relatavam acontecimentos que ele teria presenciado em um estilo
mais croniacutestico ou jornaliacutestico por exemplo em Alexandre ou o falso profeta21 ou Sobre a
morte de Peregrino22 Nos limites de sua escrita usou e abusou23 dos elementos tradicionais
tanto na forma como nos conteuacutedos Ele burlou os gecircneros consagrados e emulou elementos
disponiacuteveis na tradiccedilatildeo principalmente nos escritos atribuiacutedos a Homero e Hesiacuteodo mas
19 Quando falamos em brincar ou brincadeiras estamos entendendo que o riso apresenta elementos argumentativos
que permitem a criacutetica social e poliacutetica Neste sentido ao afirmar que o siacuterio brinca queremos enfatizar os usos
criativos que ele faz da tradiccedilatildeo literaacuteria de que eacute tributaacuterio e principalmente os viacutenculos desses usos com sua
proposta poliacutetica o riso serve como ferramenta para o pensamento 20 No prefaacutecio Das narrativas verdadeiras ele diz que ao falar dos escritores antigos que falavam de coisas
inverossiacutemeis afirma que ldquoEacute por esse motivo que eu proacuteprio dedicando-me pelo desejo da vangloacuteria a deixar
algo para a posteridade a fim de natildeo ser o uacutenico excluiacutedo da liberdade de efabular jaacute que nada de verdadeiro
podia relatar ndash nada digno de menccedilatildeo havia experimentado ndash me voltei para a mentira em muito mais honesta que
a dos demais pois ao menos nisso direi a verdade ao afirmar que minto Assim a mim me parece que tambeacutem
escaparia da acusaccedilatildeo dos outros eu proacuteprio concordando que nada digo de verdadeiro Escrevo portanto sobre
coisas que nem vi nem sofri nem me informei por outros e ainda sobre seres que natildeo existem em absoluto e nem
por princiacutepio podem existir Por isso aqueles que por acaso se depararem com esses escritos natildeo devem de forma
alguma neles acreditarrdquo (ldquoδιόπερ καὶ αὐτὸς ὑπὸ κενοδοξίας ἀπολιπεῖν τι σπουδάσας τοῖς μεθ ἡμᾶς ἵνα μὴ μόνος
ἄμοιρος ὦ τῆς ἐν τῷ μυθολογεῖν ἐλευθερίας ἐπεὶ μηδὲν ἀληθὲς ἱστορεῖν εἶχον ndash οὐδὲν γὰρ ἐπεπόνθειν ἀξιόλογον
ndash ἐπὶ τὸ ψεῦδος ἐτραπόμην πολὺ τῶν ἄλλων εὐγνωμονέστερον κἂν ἓν γὰρ δὴ τοῦτο ἀληθεύσω λέγων ὅτι
ψεύδομαι οὕτω δ ἄν μοι δοκῶ καὶ τὴν παρὰ τῶν ἄλλων κατηγορίαν ἐκφυγεῖν αὐτὸς ὁμολογῶν μηδὲν ἀληθὲς
λέγειν γράφω τοίνυν περὶ ὧν μήτε εἶδον μήτε ἔπαθον μήτε παρ ἄλλων ἐπυθόμην ἔτι δὲ μήτε ὅλως ὄντων μήτε
τὴν ἀρχὴν γενέσθαι δυναμένων διὸ δεῖ τοὺς ἐντυγχάνοντας μηδαμῶς πιστεύειν αὐτοῖςrdquo)(HV I 5) A brincadeira
com os gecircneros apresenta um fundo seacuterio relacionado diretamente com o rir para pensar os procedimentos de
escrita luciacircnicos apresentam profundo conhecimento da tradiccedilatildeo claacutessica como ele insinua nesta passagem mas
ao afirmar que constroacutei seu discurso sob a eacutegide da mentira (pseudos) cria uma proteccedilatildeo estiliacutestica para destilar
sua criacutetica social e intelectual Ainda nesse trecho ele natildeo nega o aprendizado com a Paideia helecircnica apenas
utiliza essa como apoio para propor novas possibilidades discursivas 21 Nesse texto Luciano narra a fundaccedilatildeo de um oraacuteculo por Alexandre que eacute descrito como um charlatatildeo Esse
texto tenta narrar um evento de sua eacutepoca por isso afirmamos que tem um estilo mais ldquocroniacutestico ou jornaliacutesticordquo 22 Esse escrito conta a estoacuteria do suiciacutedio do filoacutesofo ciacutenico Proteu que se atirou em uma fogueira em plenos jogos
oliacutempicos de 165 23 Quando falamos em usos e abusos natildeo questionamos a legitimidade dessa utilizaccedilatildeo apenas apontamos que o
escrito natildeo ficou preso aos limites impostos pelos cacircnones ou gecircneros mas fez um uso bastante criativo dos
mesmos Natildeo se trata tambeacutem de deturpaccedilatildeo uma vez que a mudanccedila eacute normal e salutar trata-se muito mais de
um trabalho de criaccedilatildeo criativa de invenccedilatildeo estiliacutestica ou literaacuteria
24
tambeacutem brincou com os gecircneros vinculados agrave filosofia como os diaacutelogos e deu novas
configuraccedilotildees aos gecircneros que produzem o riso
Mikhail Bakhtin em seu livro Problemas da poeacutetica de Dostoieacutevski publicado
originariamente em 1961 busca na literatura carnavalizada elementos para compreender a
polifonia presente nos textos dostoievisquianos O siacuterio faz parte de uma tradiccedilatildeo literaacuteria que
mobiliza o riso a fim de fazer o leitorouvinte pensar Bakhtin ressalta a atualidade desses
textos muito ligados ao cotidiano dos autores mesmo quando essa literatura evoca heroacuteis e
personagens histoacutericos a funccedilatildeo eacute pensar a realidade que cerca o produtor do escrito
(BAKHTIN 2011 122-123)
O uso da lenda e dos mitos eacute extremamente criacutetico e atualizado tendo inclusive
caraacuteter investigativo Tal gecircnero renuncia agrave unidade estiliacutestica em nome dos estilos hiacutebridos
que unem o sublime e o vulgar o cocircmico e o seacuterio (BAKHTIN 2011 123) Os diaacutelogos dos
mortos de Luciano de Samoacutesata expressa essas caracteriacutesticas Colocando-nos mesmos
diaacutelogos personagens miacuteticas e histoacutericas fazendo o ouvinte rir dos dilemas da morte
mesclando o diaacutelogo socraacutetico com a comeacutedia
Na senda calcada por Bakhtin o diaacutelogo socraacutetico colocaria em debate o caraacuteter
dialoacutegico da verdade Para esse autor ldquoA verdade natildeo nasce nem se encontra na cabeccedila de um
uacutenico homem ela nasce entre os homens que juntos a procuram no processo de comunicaccedilatildeo
dialoacutegicardquo (BAKHTIN 2011125)
A fantasia da saacutetira menipeia permitiraacute a Luciano buscar os marginalizados sociais
em situaccedilotildees extraordinaacuterias Com imensa liberdade inventiva ela se liberta por meio do riso e
experimenta cotidianamente a verdade A menipeia eacute o gecircnero das questotildees finais da vida e da
morte Os autores deslocam a accedilatildeo para espaccedilos que permitam a hipertrofia da criacutetica o Olimpo
o Hades por exemplo Os escacircndalos satildeo fundamentais Como afirma Brandatildeo ldquoA intenccedilatildeo de
divertir natildeo invalida que a obra vise a provocar no leitor lsquoreflexotildees seacuterias dignas das musasrsquordquo
(cf HV I 1) Esse eacute um dos elementos importantes da menipeia que enfatiza que o sarcasmo
eacute terriacutevel pois as criacuteticas satildeo acompanhadas do riso o que eacute bastante propiacutecio para a criacutetica
poliacutetica jaacute que o riso propicia olhar uma outra exegese do real
Nesse espaccedilo heterogecircneo Luciano produziu seus escritos por meio da interaccedilatildeo
entre inovaccedilatildeo literaacuteria e tradiccedilatildeo Sua produccedilatildeo foi tecida sob o ordenamento poliacutetico do
Impeacuterio Ele observou os preceitos helecircnicos aprendidos na Paideia reverberando soacutelida
erudiccedilatildeo literaacuteria e retoacuterica como estudou Jaques Bompaire24 Em vaacuterios momentos de seus
24 Os estudos luciacircnicos tecircm o livro Lucien Eacutecrivain imitation et creacuteation publicado originariamente em 1958
como um divisor de aacuteguas Fruto da tese de doutoramento de Jaques Bompaire o livro trata justamente do conceito
25
escritos ele ressaltou sua origem siacuteria como colocou em baila a diversidade desse Impeacuterio por
exemplo no texto A Deusa Siacuteria25
Luciano usou os mitos em seus diaacutelogos satiacutericos26 por meio da glosa burlesca com
o objetivo de transmitir uma mensagem seacuteria utilizando como principal veiacuteculo o riso No
percurso desta Tese pretendemos deslindar esses mecanismos metanarrativos Acreditamos
que o conteuacutedo mitoloacutegico como apropriado pelo siacuterio permite um novo caminho investigativo
para pensar a postura poliacutetica desse escritor
Discutimos os diaacutelogos luciacircnicos a fim de entender como o mesmo se apropria dos
mitos e qual a relaccedilatildeo desse ato com o uso da narrativa Assim os textos analisados satildeo Os
diaacutelogos dos mortos Os diaacutelogos dos deuses e Diaacutelogos dos deuses marinhos que satildeo as trecircs
coletacircneas de diaacutelogos que ele escreveu27 Trata-se de um conjunto de diaacutelogos mais breves
que envolvem duas ou mais personagens
Analisamos tambeacutem os diaacutelogos maiores que satildeo peccedilas mais densas e longas A
Descida (ao Hades) ou o Tirano Zeus Refutado Zeus Traacutegico Prometeu Icaromenipo ou
sobre as nuvens Tiacutemon ou o misantropo Caronte ou os contempladores Julgamento das
deusas Menipo ou Neciomancia Assembleia dos deuses A festa de Cronos Nesses casos
temos textos mais complexos entretanto respeitando a forma do diaacutelogo Os diaacutelogos
luciacircnicos satildeo analisados tendo em vista as narrativas miacuteticas tomadas como memoacuteria cultural
greco-romana
de miacutemeses disponiacutevel no tempo de Luciano e do uso que ele faz deste tendo em vista todo o legado cultural
helecircnico Toda a criacutetica aos textos luciacircnicos de certa maneira ou comprovam suas teses ou as refutam Ou seja
os lucianistas tecircm esse trabalho em alta conta Jacyntho Lins Brandatildeo afirma que ele eacute o mais completo estudo
sobre a poeacutetica luciacircnica e que o mesmo ainda natildeo foi superado (BRANDAtildeO 2001 19) De um lado esse trabalho
eacute fundamental para mostrar como os procedimentos poeacuteticos luciacircnicos mimeacuteticos satildeo utilizados a favor da
criatividade do escritor indo de encontro agraves teses que observam a literatura grega do periacuteodo imperial como
inferior 25 Trata-se de um texto em que Luciano descreve o culto agrave deusa Siacuteria chamada Dea Syria pelos romanos em
Hieraacutepolis Esse texto confunde os analistas por dois motivos por um lado Luciano utiliza o dialeto Jocircnico sendo
que ele eacute um dos expoentes do aticismo por outro lado o texto apresenta um tom seacuterio diferente que natildeo trata o
culto a essa deidade com comicidade O historiador Franz Cumont (1987 93-119) fornece algumas informaccedilotildees
sobre o culto a Dea Syria em Roma e principalmente as caracteriacutesticas de seu culto J L Linghtfoot (2003)
apresenta no livro Lucian on the Syrian Goddess uma cuidadosa traduccedilatildeo para o inglecircs acompanhada do original
bem como um amplo estudo sobre o culto a Atargatis tendo em vista o estado da arte das informaccedilotildees
arqueoloacutegicas sobre o templo de Hieroacutepolis e o culto a essa divindade Ele tambeacutem faz um minucioso estudo
filoloacutegico do texto e amplo comentaacuterio histoacuterico Robert Turcan faz a seguinte ponderaccedilatildeo sobre esse opuacutesculo
que trata do santuaacuterio de Hieraacutepolis ldquoum texto do seacuteculo II de nossa era uma espeacutecie de resenha publicitaacuteria que
estaacute colocada entre as obras de Luciano e que revela uma credulidade quase fingida () mas totalmente estranha
ao estilo e espiacuterito caacuteustico do escritor de Samoacutesatardquo (TURCAN 2001 132) Francesca Mestre (2007 35-37)
defende que esse texto eacute de Luciano e que o mesmo deve ser entendido como um registro que expressa o retorno
do escritor para sua casa daiacute a escolha de utilizar-se de outro dialeto 26 Luciano mescla em suas obras a flexibilidade do diaacutelogo socraacutetico com o riso da comeacutedia 27 Haacute ainda os Diaacutelogos das cortesatildes mas esses natildeo interessam ao debate que propomos nesta Tese uma vez que
os personagens apresentados por Luciano satildeo cortesatildes o que foge da nossa proposta de pensar as narrativas miacuteticas
nos textos desse escritor
26
Nesse sentido colocamos a primeira questatildeo historiograacutefica que orientou esta
pesquisa como a elite letrada formada a partir da Paideia helenoacutefila relacionou-se com o
ordenamento imperial Para dar mais indiacutecios que corroborem uma resposta a essa pergunta
propomos compreender a trajetoacuteria formadora de Luciano como um ldquointelectualrdquo atiacutepico da
Segunda Sofiacutestica
Existem duas perspectivas baacutesicas sobre a postura poliacutetica de Luciano de Samoacutesata
De um lado existe uma ampla tradiccedilatildeo que vecirc nele um escritor mergulhado no estudo dos textos
canocircnicos gregos e por esse motivo distante da realidade poliacutetica de sua eacutepoca Do outro lado
existe uma corrente que observa o siacuterio como um ativista poliacutetico que escreve contra o Impeacuterio
Romano A hipoacutetese que nos orienta nesta Tese observa que nenhuma das duas respostas estatildeo
inteiramente certas
Paul Veyne afirma que o lugar dos intelectuais gregos evidencia uma profunda
ambiguidade entre o apoio ao Imperador (os laccedilos que legitimam o poder imperial natildeo se datildeo
a uma ordem imaginada mas por meio de relaccedilotildees pessoais entre cidades e figuras
proeminentes com o Imperador) a certeza da superioridade intelectual helecircnica e certa
arrogacircncia em relaccedilatildeo agrave cultura latina (VEYNE 2009 80)
Em seguida analisamos a escrita luciacircnica isto eacute como esse autor produziu textos
literaacuterios que tinham a pretensatildeo de entreter a plateia por meio de uma narrativa que fugisse
dos elementos tradicionais de verossimilhanccedila Seu objetivo seria construir uma peccedila literaacuteria
que comunicasse que o inserisse no mundo tanto por meio de formas inovadoras e criativas
quanto pelo uso dos conteuacutedos presentes na tradiccedilatildeo claacutessica Deslindar a escrita luciacircnica em
sua construccedilatildeo formal permite a compreensatildeo de como tais registros podem dialogar com a
realidade histoacuterica Entender as regras de composiccedilatildeo literaacuteria e a proposta presente em cada
opuacutesculo orienta a interpretaccedilatildeo do texto luciacircnico na cultura imperial
Analisamos elementos da escrita luciacircnica ou seja como ele constroacutei um gecircnero
literaacuterio proacuteprio que mescla o diaacutelogo filosoacutefico agrave moda de Platatildeo e a comeacutedia Nesse sentido
o diaacutelogo satiacuterico age como veiacuteculo de ideias que produzem o riso numa tradiccedilatildeo estudada por
Mikhail Bakthin (2010 121-139) como o ldquococircmico-seacuteriordquo ou seja o riso tem a funccedilatildeo de fazer
o leitor ou ouvinte pensar O riso desarma numa sociedade na qual a criacutetica mordaz podia
significar a morte do escritor e a desaparecimento de seus escritos O riso coloca-se como ponte
privilegiada entre a reflexatildeo de um grupo e a realidade
Refletimos sobre a trajetoacuteria de Luciano de Samoacutesata tendo em vista o cenaacuterio
cultural da Segunda Sofiacutestica e sua presenccedila no Impeacuterio Romano sempre observando as
caracteriacutesticas estiliacutesticas do texto literaacuterio uma vez que estas colocam as fronteiras para a
27
tessitura da prosa artiacutestica O desafio para o historiador que se ocupa desses textos eacute justamente
encontrar os limites para a expressatildeo de ideias e sentimentos do mundo que os cercam
A nosso ver haacute em Luciano um modo de construir seu argumento que se aproxima
da parreacutesia socraacutetica O samosatense se coloca em seus escritos como aquele que deteacutem a
coragem da verdade Orienta-nos a ideia de que ele escreveu sobre essa modalidade de produzir
o dizer verdadeiro tendo em vista a possibilidade de repressatildeo
Um dos toacutepicos comuns no aprendizado da retoacuterica presente por exemplo no
Sobre o estilo28 de Demeacutetrio eacute a maneira de falar ao tirano Essa discussatildeo eacute posta da seguinte
maneira no manual de retoacuterica
Muitas vezes quando dirigimos a palavra a um tirano ou a qualquer outra
pessoa violenta dispostos a censuraacute-los usamos por necessidade o modo
figurado no discurso como fez Demeacutetrio de Faleiro contra Craacutetero da
Macedocircnia A esse que assentado sobre um leito de ouro com ar de
superioridade e envolto em uma manta puacuterpura recebia com soberba as
embaixadas dos gregos disse com censura por meio de modo figurado Noacutes
recebemos outrora como embaixadores natildeo soacute estes como este Craacutetero No
pronome decircitico este haacute uma indicaccedilatildeo de toda soberba de Craacutetero censurada
por meio de um modo figurado () Aleacutem disso muitas vezes tambeacutem
empregam a ambivalecircncia E caso algueacutem queira copiar esses e fazer
reprovaccedilotildees que natildeo sejam se fato reprovaccedilotildees um exemplo eacute a passagem
de Eacutesquines a propoacutesito do Telauges Quase toda a narraccedilatildeo sobre Telauguecircs
fornece uma aporia eacute algo a ser admirado ou eacute uma chacota Esse tipo de
ambiguidade apesar de natildeo ser na verdade uma ironia daacute a impressatildeo de secirc-
lo Mas poder-se-ia ainda empregar o modo figurado de uma maneira
diferente por exemplo assim uma vez que os soberanos e soberanas ouvem
falar de suas faltas com desagrado para aconselhaacute-los a natildeo cometecirc-las natildeo
o diremos diretamente mas reprovaremos outros por terem cometido falhas
semelhantes () E mencionei isso querendo demonstrar sobretudo o caraacuteter
do poder que demanda principalmente um discurso seguro chamado
lsquofiguradorsquo (Demeacutetrio Sobre o estilo289-293)29
28 Demeacutetrio discorre em dois momentos sobre a maneira na qual se deve dirigir a um governante na primeira vez
sua preocupaccedilatildeo eacute a escrita de cartas aos mesmos que essas devem ser elevadas mas natildeo podem perder a graccedila
(DemeacutetrioSobre o estilo234) O outro momento eacute aquele que realmente importa sobre como se deve falar diante
do governante que analisaremos no corpo do texto dada a relevacircncia para essa Tese 29 ldquoΠολλάκις δὲ ἢ πρὸς τύραννον ἢ ἄλλως βίαιόν τινα διαλεγόμενοι καὶ ὀνειδίσαι ὁρμῶντες χρῄζομεν ἐξ ἀνάγκης
σχήματος λόγου ὡς Δημήτριος ὁ Φαληρεὺς πρὸς Κρατερὸν τὸν Μακεδόνα ἐπὶ χρυσῆς κλίνης καθεζόμενον
μετέωρον καὶ ἐν πορφυρᾷ χλανίδι καὶ ὑπερηφάνως ἀποδεχόμενον τὰς πρεσβείας τῶν Ἑλλήνων σχηματίσας εἶπεν
ὀνειδιστικῶς ὅτι ὑπεδεξάμεθά ποτε πρεσβεύοντας ἡμεῖς τούσδε καὶ Κρατερὸν τοῦτον ἐν γὰρ τῷ δεικτικῷ τῷ
τοῦτον ἐμφαίνεται ltἡgt ὑπερηφανία τοῦ Κρατεροῦ πᾶσα ὠνειδισμένη ἐν σχήματι []
Πολλαχῆ μέντοι καὶ ἐπαμφοτερίζουσιν daggerοἷς ἐοικέναι εἴ τις ἐθέλοι καὶ ψόγους [εἰ καὶ ὁ ψόγους εἶναι θέλοι τις]
παράδειγμα τὸ τοῦ Αἰσχίνου τὸ ἐπὶ τοῦ Τηλαύγους πᾶσα γὰρ σχεδὸν ἡ περὶ τὸν Τηλαύγη διήγησις ἀπορίαν
παράσχοι ἄν εἴτε θαυμασμὸς εἴτε χλευασμός ἐστι τὸ δὲ τοιοῦτον εἶδος ἀμφίβολον καίτοι εἰρωνεία οὐκ ὂν ἔχει
τινὰ ὅμως καὶ εἰρωνείας ἔμφασιν
Δύναιτο δ ἄν τις καὶ ἑτέρως σχηματίζειν οἷον οὕτως ἐπειδὴ ἀηδῶς ἀκούουσιν οἱ δυνάσται καὶ δυνάστιδες τὰ
αὑτῶν ἁμαρτήματα παραινοῦντες αὐτοῖς μὴ ἁμαρτάνειν οὐκ ἐξ εὐθείας ἐροῦμεν ἀλλ ἤτοι ἑτέρους ψέξομέν τινας
τὰ ὅμοια πεποιηκότας []ταῦτα δ εἴρηκα ἐμφῆναι βουλόμενος μάλιστα τὸ ἦθος τὸ δυναστευτικόν [ὡς μάλιστα]
χρῇζον λόγου ἀσφαλοῦς ὃς καλεῖται ἐσχηματισμένοςrdquo
28
O topos30 pode ser uacutetil para entender os mecanismos utilizados para falar ao
Imperador No decorrer da nossa anaacutelise vamos observar como Luciano se utiliza desses
mecanismos para apresentar suas contestaccedilotildees agrave ordem ou comentar a realidade em que ele
vive Partimos deste lugar para colocar suas ideias o escritor utilizou recursos figurados para
apresentar suas ideias sobre o poder Haacute no texto luciacircnico os mesmos elementos citados acima
tais como ambivalecircncia e o elogio inverso
Se por um lado Luciano se coloca como o sincero essa palavra franca precisa ser
pensada na especificidade dos mecanismos de poder presentes no ordenamento imperial Diacuteon
Caacutessio senador e historiador romano conta que Ciacutecero teve a liacutengua arrancada e pregada na
porta do Senado Tais puniccedilotildees eram amplamente divulgadas com o intuito de servir de
exemplo Logo os autores tinham consciecircncia dos limites de sua accedilatildeo e de sua franqueza diante
do poder Trata-se portanto de um tema capital
Tal procedimento metodoloacutegico eacute fundamental para avanccedilar nas questotildees que
colocamos sobre a obra de Luciano jaacute que os cacircnones estiliacutesticos e literaacuterios assim como o
gecircnero satildeo elementos que orientam a escrita Como nos ensina Tzvetan Todorov o gecircnero
literaacuterio eacute um elemento histoacuterico que serve de veiacuteculo para determinadas posturas poliacuteticas
(TODOROV 1980 43-58)
Logo para enfrentar a questatildeo da postura poliacutetica do siacuterio investigamos por meio
dos fragmentos miacuteticos apresentados em seus escritos principalmente nos diaacutelogos A escolha
da mitologia justifica-se em primeiro lugar por uma constataccedilatildeo elaborada por Maurizio
Bettini (2011 19-25) em um texto intitulado As Reescritas do Mito Esse autor afirma que na
literatura claacutessica natildeo haacute o gosto pela inovaccedilatildeo mas um contiacutenuo trabalho de reescrita do mito
Ou seja existe um enorme nuacutemero de narrativas disponiacuteveis que podem ser recontadas
infinitamente Como diz o ditado popular ldquoQuem conta um conto aumenta um pontordquo
Luciano ao recontar como o Priacutencipe troiano Paris escolheu a mais bela das deusas
no diaacutelogo o Juiacutezo das deusas natildeo deixa de ser fecundo apenas apresenta sua criaccedilatildeo em um
modelo definido o que facilitava que o leitorouvinte decifrasse outros elementos disponiacuteveis
Certamente seria uma leviandade acusaacute-lo de falta de criatividade Antes de publicar um texto
era costume o autor participar de leituras puacuteblicas como forma de sentir a recepccedilatildeo do mesmo
e verificar a viabilidade de desprender recursos para sua publicaccedilatildeo Acompanhar uma estoacuteria
30 A palavra grega topos cujo plural eacute topoi ldquoNa retoacuterica claacutessica os toacutepicos eram natildeo soacute a mateacuteria dos argumentos
como tambeacutem os lugares-comuns formais (loci communes) empregado pelos oradores na composiccedilatildeo dos seus
discursosrdquo (MOISEacuteS 1992 494) Como Luciano eacute um autor que domina as teacutecnicas da retoacuterica antiga trata-se de
um exemplo de recurso memorialiacutestico utilizado conscientemente por esse escritor
29
conhecida eacute mais faacutecil mesmo quando o autor altera algum elemento tradicional Logo recontar
narrativas populares eacute uma estrateacutegia para desviar o ouvido da estoacuteria em si para outros
componentes como por exemplo a beleza de sua linguagem
Eacute o proacuteprio Bettini quem nos daacute mais um elemento para avanccedilar na anaacutelise que
propomos Ele afirma que ldquoExistem pelo menos dois gecircneros literaacuterios antigos de que o mito
estaacute ausente como lsquotemarsquo como plot a comeacutedia e o romancerdquo (BETTINI 2010 24) Essa
colocaccedilatildeo lanccedila dois elementos que justificam a escolha em analisar os diaacutelogos luciacircnicos
pois eles apresentam uma forma hiacutebrida que une o diaacutelogo filosoacutefico platocircnico com a comeacutedia
Os diaacutelogos satiacutericos estatildeo num entre lugar estiliacutestico no qual o mito aparece com
a funccedilatildeo de comunicar ideias e valores Em seguida analisamos o conceito de mito atualmente
e na tradiccedilatildeo grega como estatildeo expressos nos diaacutelogos de Luciano Para isso temos de
questionar o proacuteprio conceito de mito na tradiccedilatildeo antiga e na obra desse autor Posteriormente
cotejamos essa proposta com os debates encaminhados pela historiografia antiga
Outro elemento importante que analisamos na Tese eacute a concepccedilatildeo que adotamos do
mito como uma memoacuteria coletiva As narrativas miacuteticas gregas satildeo construiacutedas em um terreno
no qual as accedilotildees dos deuses e dos homens se mesclam Como afirma Ken Dowden
a mitologia grega eacute fundamentalmente sobre homens e mulheres eacute uma mitologia
lsquohistoacutericarsquo Em sua maior parte natildeo eacute a participaccedilatildeo dos deuses animais falantes ou
maacutegicos que torna miacutetico o mito grego eacute antes a participaccedilatildeo de homens e mulheres
que viveram em illo tempore (tempos remotos) os tempos anteriores ao iniacutecio do
registro histoacuterico e para aleacutem da tradiccedilatildeo oral confiaacutevel na para-histoacuteria ou proto-
histoacuteria (DOWDEN 1994 34)
A ideia de que os mitos pertencem a um tempo remoto illo tempore foi cunhada
por Mircea Eliade (1981 35) em seu livro O mito do eterno retorno Essa concepccedilatildeo se coaduna
com a forma como entendemos o mito grego Natildeo interessa a sua existecircncia factual pois sua
proposta era de que ele era entendido pelas populaccedilotildees como um passado comum Nesse
caminho as apropriaccedilotildees das narrativas miacuteticas satildeo construccedilotildees memorialiacutesticas
Os usos do passado satildeo instrumentos eficazes para a constituiccedilatildeo do poder Ao
adaptar fragmentos da mitologia grega Luciano estaria manipulando um importante
componente da identidade helenoacutefila Tal trabalho natildeo visa somente ao passado miacutetico mas
constroacutei-se em uma bidimensionalidade isto eacute o passado desejado ou sonhado que reverbera
em um futuro almejado
A proacutepria escrita literaacuteria luciacircnica permite que personalidades de uma histoacuteria
recente transitem nesse entre-lugar com personagens miacuteticos Observe-se que no ateliecirc do
30
escritor mito e passado natildeo se diferenciam Por exemplo Luciano coloca Dioacutegenes31 e
Heacuteracles32 em um mesmo diaacutelogo (LUCIANO D mort XI)
Assim devemos investigar os viacutenculos entre poder e mitologia atentando para os
recortes miacuteticos que tratam justamente de praacuteticas de poder Entendemos poder como accedilatildeo de
fazer com que os outros ajam da maneira como queremos Temos como foco basicamente dois
pontos 1) Zeus e os limites da accedilatildeo do deus supremo do Olimpo explorando nesse sentido a
reflexatildeo sobre o destino exposta por Luciano no diaacutelogo Zeus Refutado e Zeus Traacutegico e
citado rapidamente na Assembleia dos deuses 2) outras situaccedilotildees que entendemos como
apropriadas satildeo as relacionadas com a manutenccedilatildeo do poder ou seja as preocupaccedilotildees dos
personagens sobre a possibilidade de serem pegos em condutas questionaacuteveis ou ainda os
perigos da queda Haacute aqui uma anaacutelise sobre os limites do poder de um soberano Analisamos
nesse ponto as relaccedilotildees entre Zeus e Prometeu e focamos o delicado problema da sucessatildeo
que aparece no relato mitoloacutegico e na praacutetica poliacutetica do Principado romano
No mundo greco-romano os escritores natildeo tinham o status juriacutedico e autoral que
outorgamos aos nossos autores Com o mesmo fito natildeo consideramos que Luciano tenha uma
obra pois entendemos que esse conceito expressa uma organicidade e uma intencionalidade
que natildeo existe nos seus escritos Nossa Tese se constroacutei neste lugar contraditoacuterio que busca
entender os registros luciacircnicos sem pensar os mesmos em uma unicidade Trata-se muito
mais de um trabalho de intertextualidade e de diaacutelogo que permite entender os discursos em
uma formaccedilatildeo discursiva33 Observar que o enunciado compotildee um discurso que soacute eacute permitido
em determinada formaccedilatildeo discursiva natildeo satildeo hipertrofiadas na morte do autor34 como
31 Dioacutegenes de Sinope (412-323 a C) foi um filoacutesofo ciacutenico disciacutepulo de Antiacutestenes Eacute o mais famoso dos
filoacutesofos ciacutenicos Nada do que escreveu chegou ateacute noacutes entretanto sabemos muito do cinismo antigo por meio
das anedotas que envolvem este personagem 32 Filho de Zeus e da mortal Alcmena foi perseguido durante sua vida pela deusa Hera tendo que cumprir os doze
trabalhos Eacute um dos poucos casos da literatura grega de apoteose de um semideus quando o mesmo eacute queimado
no vulcatildeo Oeta Um dos mais populares heroacuteis da Antiguidade era cultuado tanto pela elite quanto pelas camadas
mais baixas da sociedade Jean Bayet ressalta que no seacuteculo II os cultos aos deuses humanos principalmente
Heacuteracles e Escapulaacutepio teria um aumento significativo numa tentativa pagatilde de fazer frente ao nascente
cristianismo (BAYET 1984 276) No Diaacutelogo XI Dioacutegenes questiona o espectro de Heacuteracles sobre sua suposta
divindade (ARANTES JUNIOR 2008b 16) 33 Seguindo Michel Foucault em seu livro a Arqueologia do saber ldquochamaremos de discurso um conjunto de
enunciados na medida em que se apoiem na mesma formaccedilatildeo discursiva () eacute constituiacutedo de um nuacutemero limitado
de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condiccedilotildees de existecircnciardquo (FOUCAULT 2002 135)
Jaacute a noccedilatildeo de formaccedilatildeo discursiva apresenta ordem correlaccedilatildeo funcionamento e transformaccedilatildeo que satildeo ordenadas
por um conjunto de regularidades (FOUCAULT 200235-45) 34 Millocircr Fernandes tem uma frase que diz ldquoTudo o que eu digo acreditem teria mais solidez se em vez de
carioquinha eu fosse um velho chinecircsrdquo (FERNANDES apud GOMES 1994 5) A ironia dessa frase esconde
duas coisas importantes para a nossa anaacutelise Em primeiro lugar a noccedilatildeo de autoridade que instintivamente damos
aos textos antigos como se os mesmos fossem detentores de uma aura mais profunda de um segredo que deve ser
decifrado Assim como o ldquoefeito de autoriardquo uma noccedilatildeo que natildeo existia antes da modernidade Esse enunciado
nos lembra as indagaccedilotildees de Michel Foucault (1992 32) sobre a atribuiccedilatildeo de determinado enunciado a um
31
propotildeem os filoacutesofos Michel de Foucault (1992) e Roland Barthes (2012 57-65) Jaacute que haacute no
processo de escrita intencionalidade por parte de quem escreve sem deixar de mencionar a
criatividade em escolher os elementos disponiacuteveis e inventar algo diferente Defendemos que a
escrita nunca eacute livre de orientaccedilotildees metanarrativas os chamados regimes de escrita mas que
dentro dos limites estabelecidos os autores inventam criam Ressaltemos sempre o texto de
caraacuteter literaacuterio tem o fito de ideais esteacuteticos
Analisamos a relaccedilatildeo dos personagens miacuteticos com os homens com o objetivo de
compreender como Luciano representou relaccedilotildees entre hierarquias existenciais diacutespares no
caso homens heroacuteis e deuses Nesse ponto as barreiras entre a vida e a morte a posse do
proacuteprio corpo ou o controle dos seus desejos e as conturbadas relaccedilotildees amorosas dos deuses
satildeo vistos sempre como relaccedilotildees construiacutedas em situaccedilotildees de poder assim como a inversatildeo
controlada da ordem Nesse passo analisamos os seguintes diaacutelogos O juiacutezo das deusas As
saturnaacutelias Caronte ou os contempladores Diaacutelogos dos deuses marinhos e Os diaacutelogos dos
mortos Tendo em vista esse percurso este trabalho estaacute organizado em trecircs capiacutetulos aleacutem
desta introduccedilatildeo e das consideraccedilotildees finais
No primeiro capiacutetulo apresentamos Luciano de Samoacutesata traccedilando um panorama
de sua trajetoacuteria tendo em vista que ele participa de um fenocircmeno cultural batizado por
personagem especiacutefico pois isso muda o olhar sobre o discurso Como afirma Claude Calame ldquoo autor se revela
por ser o resultado de uma construccedilatildeo que se situa na crenccedila de diferentes paracircmetros da ordem juriacutedica e
institucionalrdquo (CALAME 2004 12) Essa funccedilatildeo permite a atribuiccedilatildeo nominal o reconhecimento social e a
autenticaccedilatildeo dos textos Roger Chartier ao revisitar a reflexatildeo seminal de Foucault afirma que ldquoPodemos dizer
que a funccedilatildeo autor natildeo eacute somente uma funccedilatildeo mas tambeacutem uma ficccedilatildeo e uma ficccedilatildeo semelhante a essas ficccedilotildees
que dominam o direito quando ele constroacutei sujeitos juriacutedicos que estatildeo distantes das existecircncias individuais dos
sujeitos empiacutericosrdquo (CHATIER 2012 29-31) Tendo em vista esses elementos acreditamos que o conceito de
obra tambeacutem deve ser revisto uma vez que esta categoria enseja coerecircncia e projeto de unicidade construiacutedo no
largo das vezes por criacuteticos apoacutes o falecimento do escritor Tais pontos levam-nos a apresentar um cuidado
metodoloacutegico ao analisar os textos luciacircnicos em sua individualidade na tentativa de encontrar as linhas mestras
desta formaccedilatildeo discursiva Alguns pontos podem ser colocados de uma perspectiva mais conservadora de leitura
1) existe um autor definido como escritor destes textos por meio da filologia 2) esses escritos satildeo o produto de
um contexto definido 3) existem alguns elementos de unicidade tais como gecircnero modos de validaccedilatildeo
enunciativa visatildeo de mundo Em primeiro lugar devemos entender a filologia como um saber que responde a
questotildees de uma determinada eacutepoca no caso a Modernidade indagaccedilotildees essas que satildeo distintas daquelas presentes
no momento de confecccedilatildeo do texto Natildeo se trata aqui de denegrir o campo de atuaccedilatildeo dos filoacutelogos mas de
ressaltar que na Antiguidade natildeo havia a necessidade de atribuiccedilatildeo rigorosa como nos dias de hoje Logo a
preocupaccedilatildeo da existecircncia de um indiviacuteduo produtor destes discursos hipertrofia os questionamentos referentes agrave
constituiccedilatildeo desta formaccedilatildeo discursiva que transcende o indiviacuteduo produtor do texto Em segundo lugar a loacutegica
de um contexto que garante esta postura mais tradicional fica comprometida uma vez que os contextos satildeo
pensados pelos historiadores a partir de indiacutecios presentes com todo rigor tendo como suporte elementos criativos
e regras de validaccedilatildeo dos enunciados que produziram efeitos realiacutesticos Os contextos natildeo existem externos ao
trabalho do historiador assim como o passado Construiacutemos o passado por meio dos indiacutecios visto que ele natildeo
existe mais simplesmente passou Assim contextos natildeo podem garantir a unicidade de discursos jaacute que a dialeacutetica
entre documentaccedilatildeo e tessitura dos contextos eacute extremamente complexa Finalmente esses elementos de unicidade
satildeo configuraccedilotildees de aspectos externos de produccedilatildeo escrita modelos gecircneros que concorrem em um espaccedilo
metanarrativo o que natildeo supera os elementos criadores dos indiviacuteduos Ressaltamos que a criatividade eacute
rigorosamente tabulada nestes elementos Os textos satildeo produzidos na dialeacutetica com o real logo o trabalho do
historiador eacute tentar entender esse diaacutelogo entre realidade e discurso numa fraacutegil relaccedilatildeo epistemoloacutegica
32
Filoacutestrato de Segunda Sofiacutestica Neste passo da Tese contextualizamos os textos desse escritor
no periacuteodo dos Antoninos assim com as especificidades de seu regime de memoacuteria Aleacutem disso
indagamos sobre a escrita luciacircnica e as caracteriacutesticas da parreacutesia como forma de dizer elegida
por ele na maioria de seus escritos
No segundo capiacutetulo abordamos o conceito de mito agrave luz da moderna antropologia
e da Histoacuteria Cultural o conceito de mito na tradiccedilatildeo greco-romana e as definiccedilotildees de mito na
obra de Luciano de Samoacutesata Dessa forma compreendemos como esse autor expressou o
conteuacutedo miacutetico e os significados que o mesmo teve em seus escritos
No terceiro capiacutetulo apresentamos os usos poliacuteticos da narrativa miacutetica nos
diaacutelogos luciacircnicos tendo em vista os elementos que configuram o regime de memoacuteria greco-
romano analisamos os usos que os saberes antigos (mitologia retoacuterica e filosofia) propotildeem
para a memoacuteria e indagamos sobre os viacutenculos entre memoacuteria e poder nos escritos de Luciano
de Samoacutesata Nesse uacuteltimo item investigamos as relaccedilotildees de poder entre os personagens
miacuteticos as maneiras de deliberaccedilatildeo os debates acerca da sucessatildeo dos governantes e sobre a
manutenccedilatildeo do poder estabelecido buscando uma analogia com o que ocorria no tempo em que
ele produziu seus escritos
Essa indagaccedilatildeo dos textos luciacircnicos somente eacute possiacutevel pelo deslocamento dos
interesses dos historiadores neste iniacutecio de seacuteculo Seguindo esse roteiro vislumbramos uma
nova possibilidade de analisar a relaccedilatildeo de Luciano e o poder imperial tendo em vista que os
usos que ele faz dos mitos ensejam elementos para uma reflexatildeo sobre o poder que natildeo estaacute
alijada do contexto imperial dos Antoninos
33
Capiacutetulo I
Luciano de Samoacutesata a Segunda Sofiacutestica e o Impeacuterio Romano
relaccedilotildees ambiacuteguas entre literatura e poder
Luciano de Samoacutesata nasceu35 provavelmente entre os anos de 115-120 na cidade de
Samoacutesata antiga capital do reino de Camogema uma regiatildeo estrateacutegica para o Impeacuterio
Romano jaacute que ficava proacuteximo a um conflituoso limes Como colocamos na introduccedilatildeo deste
trabalho o siacuterio produziu um extenso corpus literaacuterio que tem intrigado os estudiosos sobre sua
relaccedilatildeo com o Impeacuterio Romano
O samosatense constroacutei em alguns de seus escritos uma imagem na qual destaca
elementos de sua trajetoacuteria sociopoliacutetica e cultural decisatildeo de se dedicar agrave Paideia formaccedilatildeo
retoacuterica viagens e debates contemporacircneos Como essa imagem eacute desprendida de seus escritos
suas informaccedilotildees e conclusotildees desdobradas estatildeo no campo do provaacutevel Entretanto isso natildeo
nos impede de analisar essa imagem e principalmente compreender algumas intencionalidades
construiacutedas pelo escritor em seus textos
Nesse sentido cabe aqui o confronto dessa imagem com os aspectos historiograacuteficos
referentes agrave atuaccedilatildeo de oradores e escritores helenoacutefilos na Segunda Sofiacutestica conceituaccedilatildeo e
atuaccedilatildeo sociocultural no Impeacuterio Romano Em seguida debatemos a relaccedilatildeo do samosatense
com esse fenocircmeno cultural e neste passo discutimos as teses pertinentes agrave relaccedilatildeo dos
intelectuais helenoacutefilos com a cultura imperial romana Tendo em vista os viacutenculos de Luciano
e o Imperador quando ele assume um cargo em Alexandria na administraccedilatildeo da proviacutencia
imperial do Egito analisamos seus escritos literaacuterios objetivando a apreciaccedilatildeo dos gecircneros
trabalhados pelo autor dando atenccedilatildeo maior ao diaacutelogo satiacuterico uma vez que nosso recorte
centra-se nesse gecircnero especiacutefico Finalmente construiacutemos uma anaacutelise do discurso do siacuterio
tendo como guia a noccedilatildeo de parreacutesia isto eacute franqueza sinceridade que permite ter a coragem
de dizer a verdade
35 A Suda afirma que Luciano nasceu sob o governo de Trajano ou seja posterior a 117 Jacques Schwarts (1965
14) propotildee 119
34
11 A trajetoacuteria e os escritos de Luciano de Samoacutesata como ser siacuterio escrever em
grego e estar no Impeacuterio Romano
Luciano de Samoacutesata escreveu um vasto nuacutemero de textos em grego aacutetico36 Sabemos
muito pouco a respeito de sua trajetoacuteria intelectual e sociopoliacutetica Podemos inferir com certeza
somente as informaccedilotildees fornecidas em seu nome Luciano eacute um nome latinizado37 o que
provavelmente ajudava em sua inserccedilatildeo sociopoliacutetica As outras informaccedilotildees que temos satildeo
desprendidas da anaacutelise de seus escritos
Como mencionado Luciano nasceu em Samoacutesata (Luciano Hist Co 24 11) uma
cidade fortificada capital do reino de Comagena38 (Ver mapa I) situada no norte da Siacuteria agrave
margem direita do Eufrates (hoje Samsacirct) Comagena (Ver mapa III) era um pequeno reino
helenizado dominado inicialmente por Tibeacuterio entretanto Claacuteudio devolveu esse reino aos
antigos soberanos O Imperador Vespasiano reconquistou esse territoacuterio aproximadamente
cinquenta anos antes do nascimento de Luciano
A populaccedilatildeo de Samoacutesata tinha origem iracircnico-semiacutetica e sua helenizaccedilatildeo data do
primeiro seacuteculo aC As principais instituiccedilotildees permaneceram com caraacuteter greco-iraniano
mesmo sob o domiacutenio romano (BRANDAtildeO 2001 328) Infelizmente como afirma
Christopher P Jones (1986 03-23) haacute uma ausecircncia de escavaccedilotildees arqueoloacutegicas na regiatildeo o
que eacute lamentaacutevel uma vez que neste local havia uma encruzilhada fluvial e diversas estradas
que davam acesso por um lado agrave Mesopotacircmia agrave Peacutersia e agrave Iacutendia e de outro agrave Ciliacutecia e agrave
Capadoacutecia e naturalmente agrave Siacuteria (Ver mapa III)
A conquista de Comagena se insere em um movimento histoacuterico maior das rivalidades
intensas com a Paacutertia Pouco a pouco o Impeacuterio Romano absorveu alguns reinos clientes
helenizados como Capadoacutecia (44) Comagena (72) e Araacutebia Nabatea (106) A cidade-estado
de Palmira conhecida no mundo antigo por seu esplendor e riqueza foi incorporada ao Impeacuterio
no seacuteculo II Do mesmo modo o reino de Osroene cuja capital era Edessa foi convertido em
colocircnia por Caracala (211-217) (MILLAR 1970 101-102)
Havia quatro legiotildees estacionadas na Siacuteria (ver mapa IV) Fergus Millar ressalta que ldquoas
fotografias aeacutereas revelaram uma ampla rede de fortalezas romanas no deserto siacuterio e na
36O aticismo eacute uma das principais caracteriacutesticas estiliacutesticas da Segunda Sofiacutestica e consiste na imitaccedilatildeo do grego
escrito na Aacutetica durante o periacuteodo claacutessico da cultura helecircnica basicamente os seacuteculos V e IV a C 37 Lucianus eacute a forma latina que deriva Luciano em Portuguecircs ele utiliza em vaacuterios diaacutelogos a forma Lykinos que
provavelmente eacute uma versatildeo em grego de seu nome 38 Luciano natildeo descreveu sua terra natal natildeo falou das gigantescas esculturas dos reis de Camogema nem de sua
paisagem tanto que Hadrien Bru (2011 94) faz apenas uma citaccedilatildeo da obra de Luciano em seu trabalho sobre o
poder imperial nas proviacutencias siacuterias
35
Mesopotacircmiardquo (MILLAR 1970 102) Paulatinamente essa concentraccedilatildeo de forccedilas foi dispersa
em posiccedilotildees fortificadas pelo limes A presenccedila de legiotildees estacionadas reflete a animosidade
constante que envolve essa regiatildeo do Impeacuterio e dois pontos devem ser ressaltados a presenccedila
dos Partos e algumas rotas comerciais importantes (ver mapas II e III)
A XVI Legiatildeo Flaacutevia estava estacionada proacutexima agrave cidade de Samoacutesata desde 72
(PETTIT 1989 112) denotando o contato dos moradores com o poder romano por meio das
relaccedilotildees socioeconocircmicas e culturais estabelecidas com os soldados oriundos de outras partes
do Impeacuterio o que era fundamental para proteger o limes oriental de uma possiacutevel invasatildeo
paacutertica (GRIMAL 1973 104) Isso representa a presenccedila do poder imperial nessa regiatildeo
Os soldados presentes em uma legiatildeo natildeo ficam ociosos esperando uma batalha Yann
Le Bohec argumenta que os soldados eram matildeo de obra relativamente qualificada que natildeo
apresentava custos ao Estado visto que eles podiam ser responsaacuteveis pelo correio oficial pela
proteccedilatildeo dos cobradores de impostos e ainda trabalhar na construccedilatildeo e na manutenccedilatildeo de obras
puacuteblicas39 O autor ainda enfatiza a interaccedilatildeo econocircmica a partir do gasto dos soldos dos
militares a difusatildeo religiosa de determinados cultos religiosos e a romanizaccedilatildeo do Impeacuterio Haacute
um processo dialoacutegico da interaccedilatildeo de soldados das mais distintas regiotildees imperiais com a
populaccedilatildeo local e a cultura grega e latina faz a ponte entre os costumes locais e aqueles que
chegam para servir na XVI Legiatildeo Flaacutevia (LE BOHEC 2007 21 327) Essa legiatildeo permite o
estabelecimento de relaccedilotildees poliacuteticas (jaacute que a mesma representa a forccedila militar do Impeacuterio)
interaccedilotildees econocircmicas culturais e religiosas travadas entre representantes romanos e moradores
provinciais Nesse contexto nasceu Luciano de Samoacutesata autor que sempre enfatizou em seus
escritos sua origem siacuteria
Para auxiliar os historiadores que desejam construir uma biografia de Luciano restam
apenas as referecircncias impliacutecitas em seus escritos Jacques Schwartz (1965) estabeleceu em sua
Biographie de Lucien de Samosate a mais coerente dataccedilatildeo para as obras de Luciano Alguns
eventos podem ser usados como terminus post quem ou ante quem como as Guerras Paacuterticas40
(161) e a morte de Peregrino (169) No opuacutesculo Alexandre ou o falso profeta Schwartz e
39Por exemplo em fevereiro do ano de 107 foi construiacuteda uma calccedilada em Eilat atraveacutes da Bostra ateacute o limite
com a Siacuteria proacuteximo de Damasco Essa obra foi encaminhada por soldados romanos (MILLAR 1970 110) 40 Ana Teresa Marques Gonccedilalves resume essa Guerra nos seguintes termos ldquoOs partos atacaram ldquoestados-
clientesrdquo romanos em 161-162 dC jaacute no governo colegiado de Marco Aureacutelio e Luacutecio Vero O rei Vologeso III
invadiu a Armecircnia e a Siacuteria procurando expandir os domiacutenios territoriais partos Foi o proacuteprio Luacutecio Vero quem
foi agrave frente das legiotildees romanas enviadas para combater mais uma vez os partos Novamente Ctesifonte foi
invadida pilhada e destruiacuteda mas a regiatildeo permaneceu fora do limes pois os partos aceitaram assinar um acordo
no qual devolviam as regiotildees conquistadas previamente e entregavam aos romanos a cidade de Doura-Europos
(166 dC) A cidade de Carras de tatildeo maacute lembranccedila para os romanos foi reduzida agrave condiccedilatildeo de colocircnia Aleacutem
disso uma peste dizimou boa parte das legiotildees que estavam no Oriente e os Quados e Marcomanos atacaram a
regiatildeo do Reno-Danuacutebio A ameaccedila parta permaneceu assim esporaacutedicardquo (GONCcedilALVES 2005 16)
36
Bompaire apontam mais um indiacutecio importante a referecircncia a Marco Aureacutelio como ldquoΘεograveς
Μάρκοςrdquo (divino Marcos) (Luciano Alex 48) do que inferem que Luciano teria sobrevivido
ao Imperador filoacutesofo Entretanto o siacuterio poderia estar escarnecendo dos poderes do Imperador
por meio de uma fina ironia jaacute que esse foi enganado por um charlatatildeo41 Outro ponto que
enfraquece a argumentaccedilatildeo do lucianista eacute que no Impeacuterio Romano do Oriente o governante
era tratado como Θεograveς (deus) naturalmente assim como tinha o mesmo status de um Faraoacute na
proviacutencia do Egito (PRICE 1984 86 SARTRE 1994 110)
Era comum que o Imperador fosse tratado por Θεograveς logo o uso de Luciano pode apenas
expressar isso pois essa forma era amplamente usada no Oriente Sabemos que
tradicionalmente no Ocidente Imperador vivo natildeo poderia ser cultuado como deus mas seu
genius era divinizado ou seja os elementos miacuteticos que o vinculavam agraves divindades tornavam
a sua famiacutelia divina (BICKERMAN 19729) Natildeo podemos esquecer que apoacutes a morte muitos
Imperadores haviam sido consagrados deuses por meio da consecratio entretanto na traduccedilatildeo
cultural essas sutilezas se perdem com muita facilidade e a compreensatildeo eacute feita a partir dos
padrotildees culturais existentes No caso do Oriente o Imperador tem seu culto influenciado pelos
reis heleniacutesticos que sucederam Alexandre Magno
Christopher P Jones afirma que Luciano esteve na corte de Lucio Vero durante a
campanha militar deste Princeps (JONES 1986 68-77) Tal premissa foi aceita por alguns
autores que reverberam em uacuteltimo grau as consequecircncias desse fato O mais recente caso eacute do
historiador francecircs Alain Billault (2010146-148) que analisou alguns escritos luciacircnicos como
composiccedilotildees de um escritor cortesatildeo feitas para bajular o Imperador Lucio Vero e em seguida
conseguir um cargo na administraccedilatildeo imperial no Egito
Natildeo podemos menosprezar essa nomeaccedilatildeo Essa proviacutencia era uma das mais
importantes do Impeacuterio Romano pois juntamente com a Siciacutelia era considerada um dos
celeiros do mundo antigo Foi anexada ao Impeacuterio por Otaacutevio apoacutes a batalha naval do Actium
(31 aC) que derrotou a esquadra de Marco Antocircnio e Cleoacutepatra Augusto decidiu que a antiga
terra dos faraoacutes seria uma proviacutencia pessoal ou seja ela faria parte do patrimocircnio do Princeps
Todos os tributos recolhidos ali seriam enviados ao patrimonium caesaris ao inveacutes de ir para
o Aerarium Saturni42 Para viajar agraves terras egiacutepcias os membros da ordem senatorial
41 Luciano estaacute falando do ldquohomem divinordquo Alexandre de Abonotico que aos seus olhos eacute um charlatatildeo Neste
passo o siacuterio fala de um oraacuteculo enviado ao Imperador referente agrave guerra contra os germanos Logo a ideia da
presenccedila da ironia luciacircnica aqui se justifica pelo contexto A ediccedilatildeo da Loeb cuja traduccedilatildeo eacute de A M Hamom
natildeo marca em sua versatildeo para o inglecircs esse termo O que ocorre por exemplo na versatildeo espanhola publicada pela
Gredos de Joseacute Luis Navarro Gonzaacutelez e na do brasileiro Daniel Gomes Bretas 42 A ideia eacute que esses recursos sejam gastos com os cidadatildeos romanos em obras puacuteblicas no pagamento de legiotildees
abastecimento de cidades construccedilotildees puacuteblicas e festividades entre outras possibilidades O Imperador poderia se
37
precisavam da autorizaccedilatildeo expressa do Imperador Dada a importacircncia estrateacutegica da
arrecadaccedilatildeo de impostos o cargo de Prefeito do Egito era ocupado sempre por algueacutem muito
proacuteximo agrave corte imperial Os funcionaacuterios da administraccedilatildeo imperial no Egito eram membros
da ordem equestre
Sabemos que Luciano esteve no Egito graccedilas ao opuacutesculo Em defesa dos que
recebem salaacuterios (Luciano Apol 4) As premissas colocadas por Jones satildeo desdobradas de
maneira interessante por alguns eruditos como Billaut Luciano teria participado da corte de
Lucio Vero durante a guerra dos romanos contra os partos assumindo uma postura cortesatilde Ele
teria escrito alguns discursos bajulatoacuterios a Panteia amante do co-Imperador Billaut
conjectura que bajular a amante do Imperador seria uma forma indireta de atingir o governante
e assim abrir caminhos para benesses poliacuteticas como a indicaccedilatildeo a um cargo na administraccedilatildeo
da proviacutencia do Egito Ser nomeado para um cargo no Egito significava proximidade com
grupos que sustentavam diretamente o poder e a legitimidade do Imperador
Ele foi para Alexandria jaacute velho como ele mesmo diz no opuacutesculo Apologia aos que
recebem salaacuterio (Luciano Apol 4) Schwartz (1965 12-14) propotildee as datas de 170-175 Ele
parte de uma hipoacutetese fascinante mas que carece de comprovaccedilatildeo empiacuterica Esse autor afirma
que para ocupar um cargo destinado a um membro da ordem equestre sem experiecircncia Luciano
teria utilizado a influecircncia que tinha com o Prefeito do Egito Essa dataccedilatildeo eacute indicada pela
ocupaccedilatildeo do cargo por C Calvisius Statianus que seria proacuteximo dos ciacuterculos letrados fato que
sabemos por meio da correspondecircncia de Frontatildeo Mesmo sem haver quaisquer referecircncias nas
correspondecircncias de Frontatildeo (o autor tinha muita influecircncia jaacute que foi preceptor de Marco
Aureacutelio e trocou com ele inuacutemeras missivas) a hipoacutetese de um viacutenculo entre o Imperador
Frontatildeo Calvisius Statianus e Luciano eacute estabelecida O fasciacutenio dessa hipoacutetese natildeo suporta o
exame da documentaccedilatildeo
O siacuterio descreve assim sua estada e suas funccedilotildees nas antigas terras dos faraoacutes
() na vida privada tenho igualdade de direitos e em puacuteblico participo do mais
alto niacutevel de comando e colaboro no que me diz respeito E se olhares
pensaraacutes que natildeo eacute muito pequena minha parte no governo do Egito iniciar
processos ordenaacute-los devidamente escrever memoacuterias do que se fez e disse
moderar as intervenccedilotildees dos litigantes manter com maior clareza e o maior
detalhe com maior fidelidade os decretos do governador e publicaacute-los para
que se conservem para sempre E o salaacuterio natildeo vem de um particular mas sim
do Imperador tampouco eacute pequeno mas muitos talentos Para o futuro as
utilizar desses recursos das mais variadas formas e propagandear tudo que fez Por exemplo os capiacutetulos XX-
XXIII das Res Gestae Diui Augusti indicam as mais diversas formas de investir os recursos egiacutepcios (Augusto
RGDA XX-XXIII)
38
esperanccedilas natildeo satildeo pequenas se acontecer o normal supervisar uma proviacutencia
ou algumas outras questotildees imperiais (Luciano Apol 14) 43
Por meio dessa descriccedilatildeo e do cotejo com outras fontes44 os especialistas debatem
o cargo que Luciano ocupou M H-G Pflaum (1959 282) eminente especialista na epigrafia
referente a carreiras de membros da ordem equestre propocircs em 1959 a partir de anaacutelises da
epigrafia de um cursus equestre que ele teria sido Archistator Praefecti Aegypti
Jaacute Hans Vander Lest (1985 79-82) egiptoacutelogo especialista em papirologia do
periacuteodo romano propotildee o cargo de εigraveσαγωγεύς Eacute interessante notar que Luciano usa a palavra
εigraveσάγειν Trata-se de um trabalho infrutiacutefero cujas conclusotildees satildeo por demais hipoteacuteticas Alain
Martin defende que archistator seria um cargo mais apropriado a um membro da ordem
equestre (MARTIN 2010 194-195) Tais palavras poderiam inclusive designar a mesma
funccedilatildeo dado que uma estaacute em latim e a outra em grego
Esse debate sobre a presenccedila de Luciano na corte de Lucio Vero e sua ida ao Egito
foi hipertrofiado na anaacutelise de alguns textos Alain Billault investiga esses opuacutesculos a partir da
premissa de serem textos que Luciano teria escrito com o intuito de agradar ao co-Imperador
O que mais nos causa estranheza eacute que ao ler os textos Sobre a Danccedila Os retratos Em defesa
dos retratos e Como se deve escrever a Histoacuteria natildeo encontramos nenhuma alusatildeo agrave presenccedila
de Luciano na corte do Imperador
O primeiro texto eacute uma defesa da pantomima45 Billault traccedila a seguinte hipoacutetese
tendo em vista que o escritor da Histoacuteria Augusta nos informa que Lucio Vero gostava desses
espetaacuteculos o exerciacutecio retoacuterico luciacircnico de defesa desta arte teria o intuito de bajular
indiretamente o Princeps (BILLAULT 2010 148) Tal hipoacutetese natildeo se sustenta jaacute que
ldquodefender o indefensaacutevelrdquo era o mote para diversos autores tendo em vista aprimorar a teacutecnica
retoacuterica e explorar os recursos argumentativos Natildeo se trata de uma anormalidade luciacircnica
43 ldquo[] τὰ μὲν οἴκοι ἰσότιμα ἡμῖν δημοσίᾳ δὲ τῆς μεγίστης ἀρχῆς κοινωνοῦμεν καὶ τὸ μέρος συνδιαπράττομεν
ἔγωγ οὖν εἰ σκέψαιο δόξαιμ ἄν σοι οὐ τὸ σμικρότατον τῆς Αἰγυπτίας ταύτης ἀρχῆς ἐγκεχει ρίσθαι τὰς δίκας
εἰσάγειν καὶ τάξιν αὐταῖς τὴν προσήκουσαν ἐπιτιθέναι καὶ τῶν πραττομένων καὶ λεγομένων ἁπαξαπάντων
ὑπομνήματα γράφεσθαι καὶ τάς τε ῥητορείας τῶν δικαιολογούντων ῥυθμίζειν καὶ τὰς τοῦ ἄρχοντος γνώσεις πρὸς
τὸ σαφέστατον ἅμα καὶ ἀκριβέστατον σὺν πίστει τῇ μεγίστῃ διαφυλάττειν καὶ παραδιδόναι δημοσίᾳ πρὸς τὸν ἀεὶ
χρόνον ἀποκεισομένας καὶ ὁ μισθὸς οὐκ ἰδιωτικός ἀλλὰ παρὰ τοῦ βασιλέως οὐ σμικρὸς οὐδὲ οὗτος ἀλλὰ
πολυτάλαντος καὶ τὰ μετὰ ταῦτα δὲ οὐ φαῦλαι ἐλπίδες εἰ τὰ εἰκότα γίγνοιτο ἀλλὰ ἔθνος ἐπιτραπῆναι ἤ τινας
ἄλλας πράξεις βασιλικάςrdquo 44 Por exemplo as inscriccedilotildees paleograacuteficas contendo o cursus honorum de funcionaacuterios que estavam no Egito
assim como em papiros do periacuteodo romano 45 Pantomima era uma forma de entretenimento dramaacutetico no qual um tema (geralmente mitoloacutegico) era
apresentado Um ator danccedilava em silecircncio acompanhado por instrumentos musicais e um coro O ator usava
diferentes maacutescaras para mudar os papeis aleacutem de roupas luxuosas Nesta performance ligavam-se representaccedilatildeo
teatral e danccedila Os gregos marginalizavam esse tipo de arte e por esse motivo viam com maus olhos a inscriccedilatildeo
nos concursos Entretanto a mesma tinha muito prestiacutegio entre os romanos que a conheciam desde o ano 22 aC
39
mesmo na Segunda Sofiacutestica a construccedilatildeo deste tipo de discurso Muito pelo contraacuterio era uma
praacutetica recorrente mesmo na obra de Luciano Lembremos que ele constroacutei um Elogio agrave mosca
por exemplo
Os outros dois opuacutesculos Os retratos e Em defesa dos retratos seriam direcionados
agrave descriccedilatildeo de retratos de Panteia a amante de Luacutecio Vero o que tambeacutem eacute bastante conjectural
Por fim o tratado sobre a escrita da Histoacuteria pode inclusive ser visto como um texto contra o
Impeacuterio como defende Brandatildeo (2009 145) Retornaremos a esse aspecto quando falarmos da
presenccedila de Luciano no Egito ainda neste capiacutetulo
Luciano teria permanecido em Antioquia e visitou Abonotico e Samoacutesata Em sua
visita agrave cidade natal pronuncia o discurso O sonho ou sobre a vida de Luciano A partir de 165
teria vivido em Alexandria no Egito local em que teria ocupado um cargo na administraccedilatildeo
imperial Em 175 retorna mais uma vez a Atenas Sua morte deve ter ocorrido apoacutes 181
Ao interrogar o corpus luciacircnico sobre a vida desse escritor natildeo podemos esquecer que
Luciano natildeo era comprometido com a factualidade dos eventos observe-se que isso natildeo o torna
algueacutem que escreve desvinculado de sua realidade como Jacques Bompaire (2000) sugere
Segundo tese defendida por esse autor o siacuterio escreveria imerso em sua biblioteca em seus
livros e a realidade externa natildeo seria um elemento relevante Nessa perspectiva o trabalho de
criaccedilatildeo luciacircnica deveria ser analisado por meio dos desdobramentos do conceito de miacutemesis
tanto na tradiccedilatildeo antiga quanto nos escritos luciacircnicos Nesta Tese objetivamos dar outro
formato agraves anaacutelises dos escritos luciacircnicos Uma vez que o imenso conhecimento advindo do
estudo dos textos canocircnicos da tradiccedilatildeo cultural helecircnica natildeo impede que esse patrimocircnio seja
pensado como forma de refletir sua realidade devemos questionar se a dedicaccedilatildeo ao estudo
desses seria um indicativo de desvinculaccedilatildeo literaacuteria com seu mundo
Luciano escolhe contar ldquomentiras variadas de maneira convincente e verossiacutemilrdquo
(LUCIANO V H I 2)46 47 assim as informaccedilotildees biograacuteficas ficam em uma zona obscura
entre as condiccedilotildees materiais de existecircncia e os eventos vividos pelo autor que os escreve a
partir de criteacuterios de ficcionalidade valorizando as relaccedilotildees entre a forma e o conteuacutedo
apresentado Nesse sentido nossas questotildees natildeo estatildeo voltadas simplesmente para a
determinaccedilatildeo de lugares e datas na curta duraccedilatildeo mas para a compreensatildeo de elementos
conjunturais (o papel deste escritor e o diaacutelogo de seus discursos com seu tempo) e estruturais
(a identidade helecircnica no seio do Impeacuterio Romano) Assim a vida de Luciano soacute nos interessa
46 Optamos por citar o texto luciacircnico pelos tiacutetulos abreviados de sua versatildeo latina Nesse caso usamos a traduccedilatildeo
Das Narrativas Verdadeiras de Lucia Sano (2008) 47 ldquoψεύσματα ποικίλα πιθανῶς τε καὶ ἐναλήθωςrdquo
40
se ela puder contribuir para a compreensatildeo desses elementos bem como sublinhar os valores
por ele apresentados
Mesmo com essas ressalvas necessaacuterias eacute importante sublinhar que a imagem presente
em seus escritos permite analisar alguns valores que ele provavelmente gostaria de enfatizar
como tambeacutem temos acesso a alguns indiacutecios sobre o lugar que ocupava na sociedade
Outro fato relevante eacute que sua liacutengua materna natildeo era o grego como afirma no opuacutesculo
Dupla Acusaccedilatildeo Falava uma liacutengua baacuterbara que natildeo sabemos qual seria Nesse diaacutelogo a
Retoacuterica personificada48 afirma ldquotecirc-lo encontrado quando era muito jovenzinho ainda baacuterbaro
de liacutengua e vestido em uma capa siacuteria vagando pela Jocircnia sem saber ainda o que fazer de sirsquo ndash
e ldquotendo-o entatildeo desposado na minha tribo o inscrevi fraudulentamente e tornei-o cidadatildeordquo49
(Luciano Bis acc 27)
No processo formativo desse autor devemos ressaltar as inuacutemeras viagens que ele fez
Jocircnia (Bis acc 27) Macedocircnia (Scyth) Traacutecia (Fug) Itaacutelia (Bis acc Fug Electr) Gaacutelia (Bis
acc Herc) Antioquia (Im Pro im) Samoacutesata (Somn) Abonotico (Alex) Egito (Apol)50
Como podemos observar Luciano conheceu muitas localidades diferentes Nessas diferentes
cidades ele exerceu a profissatildeo de advogado e fez declamaccedilotildees puacuteblicas
Cada vez que o siacuterio ia a uma localidade diferente ele reconstruiacutea sua imagem do
mundo Como afirma Franccedilois Hartog em seu livro Memoacuteria de Ulisses ldquoa Greacutecia estaacute em
toda parterdquo (HARTOG 2004225) ou seja um viajante grego acaba ensinando mais que
aprendendo ao viajar pois entende que reencontra sua cultura por onde ande Essa identidade
viajante eacute um elemento muito interessante que precisa ser ressaltado
Entretanto a imagem mais completa que Luciano deixou aos seus leitores estaacute expressa
no opuacutesculo O sonho ou sobre a vida de Luciano em que ele conta como seguiu os caminhos
da Paideia Natildeo se trata de uma biografia no estilo plutarquiano pois temos aqui um texto
alegoacuterico no qual o siacuterio nos conta que seus pais preocupados com seu destino encaminharam-
lhe para o ateliecirc de escultura do seu tio o que natildeo foi uma boa experiecircncia jaacute que destruiu um
bloco de maacutermore e foi surrado pelo tio Em casa ele teve um sonho com a Escultura e a Paideia
personificadas no qual elas disputavam quem poderia lhe dar um futuro melhor O siacuterio entatildeo
48 Trata-se de uma caracteriacutestica importante nos diaacutelogos luciacircnicos a personificaccedilatildeo de sentimentos 49 ldquoἘγὼ γάρ ὦ ἄνδρες δικασταί τουτονὶ κομιδῇ μειράκιον ὄντα βάρβαρον ἔτι τὴν φωνὴν καὶ μονονουχὶ κάνδυν
ἐνδεδυκότα εἰς τὸν Ἀσσύριον τρόπον περὶ τὴν Ἰωνίαν εὑροῦσα πλαζόμενον ἔτι καὶ ὅ τι χρήσαιτο ἑαυτῷ οὐκ
εἰδότα παραλαβοῦσα ἐπαίδευσα []εἶτα ἀγαγοῦσα αὐτὸν εἰς τοὺς φυλέτας τοὺς ἐμοὺς παρενέγραψα καὶ ἀστὸν
ἀπέφηνα []rdquo 50 As inuacutemeras viagens natildeo satildeo apresentadas diretamente em sua obra Assim ele natildeo escreveu um relato de
viagem com exceccedilatildeo das Narrativas verdadeiras Poreacutem esse texto natildeo tem a menor pretensatildeo de ser um relato
verdadeiro visto que haacute um pacto colocado no iniacutecio em que o leitor sabe que tudo que estaacute escrito adiante eacute
mentiroso
41
escolheu o caminho das Letras que o fez conhecido pelo Impeacuterio
A seguir analisamos as menccedilotildees posteriores agrave vida e agrave obra de Luciano com ecircnfase
principalmente naquelas produzidas no mundo bizantino Temos o objetivo de evidenciar como
essas leituras criam alguns topoi que permanecem entre os leitores de Luciano
12 Algumas consideraccedilotildees sobre as primeiras referecircncias a Luciano na tradiccedilatildeo
ocidental
No toacutepico anterior refletimos sobre a regiatildeo na qual Luciano nasceu e viveu seus
primeiros anos O proacuteximo passo em nossa anaacutelise eacute pensar as mais antigas referecircncias que
temos acerca da biografia de Luciano de Samoacutesata e de seus escritos Tal investigaccedilatildeo tem o
fito de evidenciar linhas interpretativas referentes aos discursos desse escritor presentes na
tradiccedilatildeo ocidental
Entre os contemporacircneos do siacuterio temos apenas uma referecircncia a ele em um escrito de
Galeno51 justamente no texto em que trata do tema das epidemias em Hipoacutecrates Trata-se de
um texto de que a criacutetica especializada cuida com cautela jaacute que sua existecircncia deve-se a uma
traduccedilatildeo aacuterabe (BOMPAIRE 2003 XIV MOREIRA 201111)
Filoacutestrato de Lemos que escreveu A vida dos sofistas natildeo cita o samosatense o que
constitui uma questatildeo complexa uma vez que foi nesse livro que ele cunhou a expressatildeo
segunda sofiacutestica a qual foi largamente utilizada para tratar da cultura literaacuteria grega produzida
no Impeacuterio Romano O silecircncio sobre Luciano eacute quebrado muito sutilmente por autores do IV
seacuteculo como Eunaacutepio de Sardes52 que afirma ldquoLuciano um homem que levava o rir a seacuterio
escreveu a vida de Democircnax um filoacutesofo daquele tempo e neste livro e em outros poucos foi
seacuterio do comeccedilo ao fimrdquo (Eunaacutepio Vi So 454)53
Trata-se de apenas uma frase mas eacute interessante observar como Eunaacutepio ao construir
um panorama dos filoacutesofos e sofistas tal como havia feito Filoacutestrato de Lemmos tem a
necessidade de justificar que Luciano era seacuterio ao produzir o riso e que havia escrito uma vida
de Demonax54 Um ponto eacute importante Luciano provavelmente era conhecido mas seus
51 Galeno de Peacutergamo foi um meacutedico grego que viveu entre 129- 204 dC e foi meacutedico dos Imperadores Marco
Aureacutelio Cocircmodo e Septiacutemio Severo (BOWERSOCK 1969 135) 52 Para uma contextualizaccedilatildeo mais elaborada do livro A vida dos Filoacutesofos e dos Sofistas ver a Dissertaccedilatildeo de
Mestrado de Joseacute Petruacutecio de Farias Juacutenior intitulada Sofistas e Filoacutesofos na administraccedilatildeo imperial o olhar de
Eunaacutepio sobre a unidade poliacutetica do Impeacuterio Romano no seacuteculo IV D C (2007) 53ldquoΛουκιανὸς δὲ ὁ ἐκ Σαμοσάτων ἀνὴρ σπουδαῖος ἐς τὸ γελασθῆναι Δημώνακτος φιλοσόφου κατ ἐκείνους τοὺς
χρόνους βίον ἀνέγραψεν ἐν ἐκείνῳ τε τῷ βιβλίῳ καὶ ἄλλοις ἐλαχίστοις δι ὅλου σπουδάσαςrdquo 54Esse texto luciacircnico eacute a uacutenica fonte que temos sobre esse filoacutesofo pois natildeo sabemos se ele existiu ou se eacute produto
da idealizaccedilatildeo do siacuterio
42
escritos dificultavam sua inclusatildeo nos modelos estabelecidos Esse problema de inserccedilatildeo em
um paradigma do que deveria ser um sofista ou um filoacutesofo explicaria a exclusatildeo filostratiana
Nesse sentido tanto Eunaacutepio quanto Filoacutestrato tinham duacutevidas se o poliacutegrafo Luciano encaixar-
se-ia em um modelo de sofista pois sua obra o faz transcender tanto na temaacutetica quanto no
gecircnero a essa categoria
Lactacircncio cita rapidamente o nome de Luciano no IX livro de suas Instituiccedilotildees Divinas
justamente aquele que trata do heroacutei Heacuteracles55 O autor cristatildeo analisa como esse heroacutei
apresenta uma conduta perniciosa e cita o samosatense a fim de fornecer autoridade ao seu
discurso jaacute que ldquoele natildeo poupou nem homens nem deuses56rdquo (Lactacircncio Inst Div I 9)
Lactacircncio termina dizendo de maneira irocircnica que ele teve os louvores dos deuses57 Assim a
citaccedilatildeo do siacuterio tem o intuito de desqualificar as accedilotildees dos deuses pagatildeos e de mostrar como
essas estoacuterias poderiam ser narradas por diversos autores Em uma sociedade na qual a oralidade
predomina sobre a escrita o discurso oral ainda tem a aura que lhe fornece autoridade
Sabemos que Isidoro de Peluacutesia faz referecircncias a Luciano colocando-o ldquodentre os
filoacutesofos ciacutenicosrdquo (Apud BRANDAtildeO sd 6) Entretanto nenhum dos escritores antigos
citados anteriormente fazem referecircncia agrave vida do siacuterio com elementos diferentes daqueles
encontrados em seus escritos (BRANDAtildeO 200116)
Existem dois verbetes do periacuteodo bizantino que fazem referecircncia aos seus escritos O
primeiro encontra-se na Biblioteca de Foacutecio58 No coacutedice 128 o Patriarca de Constantinopla
faz uma anaacutelise da obra do siacuterio nos seguintes termos
Lido de Luciano o texto sobre Falaacuteris e diferentes diaacutelogos dos mortos e das
prostitutas aleacutem de outros livros sobre diferentes assuntos nos quais em
quase todos faz comeacutedia dos costumes dos gregos tanto do erro e da loucura
de sua fabricaccedilatildeo dos deuses quanto de sua irresistiacutevel tendecircncia para a
intemperanccedila e a impudecircncia as estranhas opiniotildees e ficccedilotildees de seus poetas
a decorrente erracircncia de sua organizaccedilatildeo poliacutetica o curso anocircmalo e as
vicissitudes do resto de suas vidas o caraacuteter jactancioso de seus filoacutesofos
pleno nada mais que de hipocrisia e vatildes opiniotildees Em suma como dissemos
sua ocupaccedilatildeo eacute fazer em prosa comeacutedia dos gregos
Parece ser dos que natildeo respeitam absolutamente nada pois fazendo comeacutedia
55 Em nossa Dissertaccedilatildeo de Mestrado analisamos a presenccedila do mito do heroacutei Heacuteracles em alguns escritos de
Luciano (ARANTES JUNIOR 2008)
56 ldquoqui diis et hominibus non pepercitrdquo 57 A ironia nesses textos eacute muito sutil Trata-se de um topos literaacuterio dizer que Luciano natildeo acreditava em nada
ou seja era um ceacutetico Dioacutegenes Laeacutercio nos permite sugerir uma ironia mais sutil na vida de Pirron de Elis
fundador da escola ceacutetica Ele conta que em uma ocasiatildeo o filoacutesofo ficou agitado porque um catildeo lhe investiu
respondeu aos que o criticaram que era difiacutecil abandonar inteiramente a debilidade humana (Diogenes Laercio De
vitis IX 66) A tradiccedilatildeo registra o viacutenculo entre ceacuteticos e catildees assim confundir posturas filosoacuteficas natildeo era difiacutecil
em meio agrave tradiccedilatildeo grega recuperada no Impeacuterio Bizantino por esse enciclopedista 58Patriarca de Constantinopla entre 858 e 886 ldquoSeu livro eacute constituiacutedo por anotaccedilotildees de leitura incluindo resumos
e comentaacuterios de obras Luciano eacute referido em mais de um pontordquo (MOREIRA 2011 12)
43
e brincando com as crenccedilas alheias ele proacuteprio natildeo define a que honra a natildeo
ser que algueacutem diga que sua crenccedila eacute em nada crer
Todavia sua expressatildeo eacute excelente faz ele uso de um estilo distinto corrente
e enfaticamente brilhante mais que nenhum outro ele ama a claridade e a
pureza associadas a brilho e grandeza proporcionada Sua composiccedilatildeo eacute tatildeo
harmoniosa que parece ao que o lecirc que ele natildeo diz palavras ndash mas uma certa
melodia agradaacutevel sem canto aparente para os ouvidos saboreiam os
ouvintes
Em resumo como dissemos seu discurso eacute excelente mas natildeo conveacutem aos
argumentos com os quais ele mesmo sabe que brinca ridicularizando-os Que
ele proacuteprio eacute dos que natildeo creem em absolutamente nada a epiacutegrafe de seu
livro daacute a entender pois diz assim
Eu Luciano isto escrevi coisas antigas e estuacutepidas sabendo pois estuacutepido eacute
tudo para os homens ateacute o que parece saacutebio
Entre os homens natildeo haacute em absoluto nenhuma inteligecircncia mas o que
admiras isso para outros eacute risiacutevel (FOacuteCIO Biblio 128)59
O Patriarca marca nesse pequeno texto dois elementos que seratildeo recorrentes em toda
a fortuna criacutetica do corpus luciacircnico O primeiro deles diz respeito ao fato de que Luciano teria
sido um criacutetico mordaz da religiatildeo Nesse documento ecoa a anguacutestia de um escritor cristatildeo
cuja ambiguidade fica latente jaacute que de um lado ele concordaria com os golpes desferidos por
Luciano agrave religiosidade dos gregos e por outro lado ele compreende que o cristianismo natildeo
moveria a atenccedilatildeo do autor de Falaacuteris Ele eacute daqueles que ldquonatildeo respeitam absolutamente nadardquo
O siacuterio natildeo crecirc em nada Imagens como essa seratildeo recorrentes por exemplo em Marcel Caster
cujo trabalho marcou profundamente os estudos luciacircnicos (CASTER 1937)
O outro elemento que Foacutecio apresenta eacute o grego limpo de Luciano Sabemos que desde
o seacuteculo XV seus textos foram transcritos em manuais para o aprendizado da liacutengua helecircnica
Certamente essa qualidade estiliacutestica tem grande meacuterito na conservaccedilatildeo de tantos textos ligados
a esse escritor
59 ldquoἈνεγνώσθη ltΛουκιανοῦgt ὑπὲρ Φαλάριδος καὶ νεκρικοὶ καὶ ἑταιρικοὶ διάλογοι διάφοροι καὶ ἕτεροι διαφόρων
ὑποθέσεων λόγοι ἐν οἷς σχεδὸν ἅπασι τὰ τῶν Ἑλλήνων κωμῳδεῖ τήν τε τῆς θεοπλαστίας αὐτῶν πλάνην καὶ
μωρίαν καὶ τὴν εἰς ἀσέλγειαν ἄσχετον ὁρμὴν καὶ ἀκρασίαν καὶ τῶν ποιητῶν αὐτῶν τὰς τερατώδεις δόξας καὶ
ἀναπλάσεις καὶ τὸν ἐντεῦθεν πλάνον τῆς πολιτείας καὶ τοῦ ἄλλου βίου τὴν ἀνώμαλον περιφορὰν καὶ τὰς
περιπτώσεις καὶ τῶν φιλοσόφων αὐτῶν τὸ φιλόκομπον ἦθος καὶ μηδὲν ἄλλο πλὴν ὑποκρίσεως καὶ κενῶν
δοξασμάτων μεστόν καὶ ἁπλῶς ὡς ἔφημεν κωμῳδία τῶν Ἑλλήνων ἐστὶν αὐτῷ ἡ σπουδὴ ἐν λόγῳ πεζῷ
Ἔοικε δὲ αὐτὸς τῶν μηδὲν ὅλως πρεςβευόντων εἶναι τὰς γὰρ ἄλλων κωμῳδῶν καὶ διαπαίζων δόξας αὐτὸς ἣν
θειάζει οὐ τίθησι πλὴν εἴ τις αὐτοῦ δόξαν ἐρεῖ τὸ μηδὲν δοξάζειν
Τὴν μέντοι φράσιν ἐστὶν ἄριστος λέξει εὐσήμῳ τε καὶ κυρίᾳ καὶ τῷ ἐμφατικῷ διαπρεπούσῃ κεχρημένος
εὐκρινείας τε καὶ καθαρότητος μετά γε τοῦ λαμπροῦ καὶ συμμέτρου μεγέθους εἴ τις ἄλλος ἐραστής Συνθήκη τε
αὐτῷ οὕτως ἥρμοσται ὥστε δοκεῖν τὸν ἀναγινώσκοντα μὴ λόγους λέγειν ἀλλὰ μέλος τι τερπνὸν χωρὶς ἐμφανοῦς
ᾠδῆς τοῖς ὠσὶν ἐναποστάζειν τῶν ἀκροατῶν Καὶ ὅλως ὥσπερ ἔφημεν ἄριστος ὁ λόγος αὐτῷ καὶ οὐ πρέπων
ὑποθέσεσιν ἃς αὐτὸς ἔγνω σὺν τῷ γελοίῳ διαπαῖξαι
Ὅτι δὲ αὐτὸς τῶν μηδὲν ἦν ὅλως δοξαζόντων καὶ τὸ τῆς βίβλου ἐπίγραμμα δίδωσιν ὑπολαμβάνειν Ἔχει γὰρ
ὧδε Λουκιανὸς τάδ ἔγραψα παλαιά τε μωρά τε εἰδώς μωρὰ γὰρ ἀνθρώποις καὶ τὰ δοκοῦντα σοφά κοὐδὲν ἐν
ἀνθρώποισι διακριδόν ἐστι νόημα ἀλλ ὃ σὺ θαυμάζεις τοῦθ ἑτέροισι γέλωςrdquo
44
O outro documento que temos eacute o verbete anocircnimo da Suda60 uma grande enciclopeacutedia
No verbete Λ de nuacutemero 683 resume-se a vida de Luciano da seguinte maneira
Luciano samosatense o chamado blasfemo ou difamador ndash ou ateu para dizer
mais ndash porque em seus diaacutelogos atribuiu ser risiacutevel ateacute o que se diz sobre as
divindades Era de iniacutecio advogado em Antioquia na Siacuteria mas natildeo tendo
tido sucesso voltou-se para a logografia e escreveu infindaacuteveis obras Diz-se
ter sido morto por catildees posto que foi contaminado pela raiva contra a verdade
pois na vida de Peregrino o infame atacou o cristianismo e blasfemou contra
o proacuteprio Cristo Por isso tambeacutem pagou com a raiva a pena devida neste
mundo e no futuro sua heranccedila seraacute o fogo eterno na companhia de Satanaacutes
(SUDA Λ 683)61
Novamente o problema da religiosidade de Luciano aparece haja vista a imagem de
increacutedulo que paira sobre esse escritor Observamos que essa permanecircncia biograacutefica estaacute
presente desde a Antiguidade O siacuterio eacute aquele que ri das coisas da divindade Outro topos
literaacuterio eacute a morte pelo ataque de catildees62
A trajetoacuteria de Luciano eacute contada com o intuito de servir de exemplo o que se justifica
pelo ambiente de produccedilatildeo literaacuteria bizantina marcado profundamente pela influecircncia da
cristandade Assim morreu dilacerado por catildees por ser inimigo da verdade Observe-se que
vaacuterios dos personagens luciacircnicos satildeo representantes da filosofia ciacutenica e podemos ver
inclusive que Luciano tem retratos bem positivos de personalidades ciacutenicas (Demonax
Dioacutegenes Menipo por exemplo) Morrer dessa forma era ironizar sua existecircncia Aquele que
escarneceu as coisas sagradas morre de uma maneira que produz o riso Um catildeo morto por catildees
(MOREIRA 2011 15) Observe-se que natildeo haacute nesses comentadores bizantinos o desejo de
serem precisos em incluir Luciano em uma determinada escola filosoacutefica haacute inclusive certa
confusatildeo
A cada dia novos pesquisadores investigam a presenccedila de Luciano na tradiccedilatildeo ocidental
Como afirma Brandatildeo trata-se de um (des)conhecido autor jaacute que ele foi lido e influenciou
60 Essa enciclopeacutedia faz o levantamento de autores e de obras em ordem alfabeacutetica o que eacute uma importante
inovaccedilatildeo Datada provavelmente do seacuteculo X foi escrita por muitas matildeos tratando-se de uma obra coletiva de
escritores anocircnimos 61 ldquoltΛουκιανόςgt Σαμοσατεύς ὁ ἐπικληθεὶς βλάσφημος ἢ δύσφημος ἢ ἄθεος εἰπεῖν μᾶλλον ὅτι ἐν τοῖς διαλόγοις
αὐτοῦ γελοῖα εἶναι καὶ τὰ περὶ τῶν θείων εἰρημένα παρατίθεται γέγονε δὲ ἐπὶ τοῦ Καίσαρος Τραιανοῦ καὶ
ἐπέκεινα ἦν δὲ οὗτος τοπρὶν δικηγόρος ἐν Ἀντιοχείᾳ τῆς Συρίας δυσπραγήσας δ ἐν τούτῳ ἐπὶ τὸ λογογραφεῖν
ἐτράπη καὶ γέγραπται αὐτῷ ἄπειρα τελευτῆσαι δὲ αὐτὸν λόγος ὑπὸ κυνῶν ἐπεὶ κατὰ τῆς ἀληθείας ἐλύττησεν εἰς
γὰρ τὸν Περεγρίνου βίον καθάπτεται τοῦ Χριστιανισμοῦ καὶ αὐτὸν βλασφημεῖ τὸν Χριστὸν ὁ παμμίαρος διὸ καὶ
τῆς λύττης ποινὰς ἀρκούσας ἐν τῷ παρόντι δέδωκεν ἐν δὲ τῷ μέλλοντι κληρονόμος τοῦ αἰωνίου πυρὸς μετὰ τοῦ
Σατανᾶ γενήσεταιrdquo 62Segundo Aulo Geacutelio o tragedioacutegrafo ateniense Euriacutepedes ldquofoi dilacerado por catildees lanccedilados por algum ecircmulo e
dessas feridas seguiu-se a morterdquo (ldquoIs cum in Macedonia apud Archelaum regem esset utereturque eo rex familiariter rediens nocte ab eius cena canibus a quodam aemulo inmissis dilaceratus est et ex his uulneribus mors secuta estrdquo) (Aulo Geacutelio N A XV 20 9)
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autores bem diferentes63 mesmo que natildeo seja um dos autores mais lembrados pelo grande
puacuteblico ou mesmo pelos classicistas Destarte temos que destacar que a construccedilatildeo de uma
operaccedilatildeo historiograacutefica voltada para a compreensatildeo cultural da sociedade tem mostrado o
quanto seus escritos podem dizer aos interessados em entender o passado
Como podemos notar esses textos pouco ajudam na compreensatildeo da trajetoacuteria de
Luciano Satildeo documentos muito interessantes para a recepccedilatildeo de seus escritos uma vez que a
opiniatildeo presente nesses textos antigos iraacute reverberar em toda a criacutetica luciacircnica o que justifica
deter-nos nesses discursos neste passo da Tese
As dificuldades em estabelecer a trajetoacuteria sociopoliacutetica do siacuterio natildeo podem inviabilizar
a anaacutelise de seus escritos no horizonte histoacuterico do Impeacuterio Romano dos Antoninos Uma vez
estabelecidos os preconceitos presentes nos escritos que comentaram o corpus luciacircnico na
Antiguidade e no Medievo Bizantino podemos indagar de que sociedade fala Luciano ou seja
como o samosatense pode servir de fonte ao historiador
13 Histoacuteria e imaginaacuterio de uma eacutepoca de ouro o contexto dos Antoninos
Em linhas gerais o seacuteculo II depois de Cristo caracteriza-se pela estabilidade do
Impeacuterio Romano em seu domiacutenio mediterracircneo Esse equiliacutebrio eacute fruto de diversos fatores A
historiografia acostumou a ver esse periacuteodo como o da pax romana O historiador inglecircs
Edward Gibbon64 afirmou que ldquose fosse mister determinar o periacuteodo da Histoacuteria do mundo no
qual a condiccedilatildeo da raccedila humana foi mais ditosa e proacutespera ter-se-ia sem hesitaccedilatildeo que apontar
a que se estende da morte de Domiciano ateacute a elevaccedilatildeo de Cocircmodordquo (GIBBON 2005 104)
Como afirma Aldo Schiavone Gibbon eacute o criador de uma imagem forte de anaacutelise
deste periacuteodo (SCHIAVONE 2007 36) Sua narrativa prende o leitor com representaccedilotildees
densas da Histoacuteria Romana Ele inicia seu monumental livro com o esplendor do periacuteodo dos
Antoninos e prepara o enredo de uma grande cataacutestrofe cuja causa ele encontra em grande
medida no nascente Cristianismo (GUARINELLO 201320) uma imagem muito forte que
prende a narrativa sobre a Histoacuteria Romana nesse ponto alto que em seguida se desmoronaria
63 Sem a pretensatildeo de fornecer um mapa exaustivo desses trabalhos podemos citar o texto de Roberto Romano O
silecircncio de o ruiacutedo (1996) que trata da influecircncia de Luciano em Diderot O livro O calundu e a panaceacuteia de Elton
de Saacute Rego (1989) que investiga a presenccedila da tradiccedilatildeo luciacircnica em Machado de Assis Eduardo Sinkevisque
(2010 2011) tem pesquisado as traduccedilotildees portuguesas do Como se deve escrever a Histoacuteria e sua repercussatildeo na
historiografia setecentista 64 Para uma anaacutelise do estilo desse Historiador sugerimos o texto Gibbon um ciacutenico moderno entre os poliacuteticos
antigos (GAY 1990 33-62) Neste texto o autor elucida a maneira como o estilo irocircnico desse erudito serve de
arma argumentativa para a construccedilatildeo de sua anaacutelise
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Essa opiniatildeo do glorioso passado dos Antoninos estaacute presente por exemplo no historiador
Herodiano que comeccedilou sua Histoacuteria do Impeacuterio Romano narrando o Principado de Marco
Aureacutelio por ser o uacuteltimo governo bom (Herodiano I 101-5) O proacuteprio Dion Caacutessio entende
que o governo de Cocircmodo representava uma passagem de uma idade do ouro para um tempo
do ferro (Dion Caacutessio Histoacuteria LXXVII 94) Esses autores antigos expressavam a forma
mentis de parcela da aristocracia senatorial e equestre da cidade de Roma que naquele
momento foi alijada dos centros de decisatildeo pelos Imperadores severianos (GONCcedilALVES
2006 179)
Essa concepccedilatildeo retoma a imagem do orador Eacutelio Aristides em seu Discurso a
Roma65 sobre a integraccedilatildeo do mundo mediterracircnico Ele vecirc a conquista do mundo pelos
romanos como o desenvolvimento e a expansatildeo que transforma o gecircnero humano Para ele os
romanos ldquotransformaram o mundo inteiro em um prazeroso jardim66rdquo (Eacutelio Aristides Orat 26
99) Em contraposiccedilatildeo agrave selvageria que existia em muitas regiotildees conquistadas pelo Impeacuterio
Romano o orador destaca a implantaccedilatildeo de uma cultura civilizada representada pelo grande
nuacutemero de templos e cidades que enchem o mediterracircneo e pela facilidade do comeacutercio ou seja
a abertura de estradas e rotas que permitem o comeacutercio de produtos e o tracircnsito de pessoas Ele
ainda destaca as novas condiccedilotildees sociais e poliacuteticas implementadas pelos romanos que
espalharam um modo de governar uniforme permitindo aos melhores compor a elite Ele
afirma
Voacutes dividistes a comunidade de todos os povos do Impeacuterio e com esta
palavra estou indicando todo o mundo habitado em dois grupos distintos e
por toda a parte transformastes em cidadatildeos os mais cultos haacutebeis e capazes
enquanto os demais permaneceram suacuteditos do governo67 (Eacutelio Aristides Orat
26 59)
Esse documento eacute extremamente significativo para traccedilarmos elementos para a
composiccedilatildeo do contexto em que produziu Luciano de Samoacutesata uma vez que tanto as anaacutelises
historiograacuteficas quanto um Panegiacuterico do seacuteculo II como podemos caracterizar a narrativa de
Eacutelio Aristides sugerem esse mundo civilizado e integrado que o Impeacuterio propiciou
Alguns aspectos poliacuteticos satildeo relevantes para essa imagem Em primeiro lugar
temos um periacuteodo em que haacute uma grande estabilidade na sucessatildeo imperial Como nos lembra
Paul Veyne no texto ldquoO que eacute um Imperador romanordquo o cargo de Imperador implicava um
65 O famoso Discurso a Roma eacute a Oraccedilatildeo 26 dos discursos de Eacutelio Aristides 66 ldquoκαὶ ἡ γῆ πᾶσα οἷον παράδεισος ἐγκεκόσμηταιrdquo 67 ldquoδιελόντες γὰρ δύο μέρη πάντας τοὺς ἐπὶ τῆς ἀρχῆς τοῦτο δ εἰπὼν ἅπασαν εἴρηκα τὴν οἰκουμένην τὸ μὲν
χαριέστερόν τε καὶ γενναιότερον καὶ δυνατώτερον πανταχοῦ πολιτικὸν ἢ καὶ ὁμόφυλον πᾶν ἀπεδώκατε τὸ δὲ
λοιπὸν ὑπήκοόν τε καὶ ἀρχόμενονrdquo
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risco muito grande uma vez que a grande maioria dos que ocuparam esse cargo foram
assassinados por opositores e um pequeno nuacutemero deles morreram de causas naturais Nunca
houve regras claras para a sucessatildeo assim ldquoum dos deveres dos Imperadores era preparar a
transmissatildeo paciacutefica do poderrdquo (VEYNE 2009 3)
Entre os governos de Nerva (96-98) Trajano (98-117) Adriano (117-138) Pio
(138-161) Marco Aureacutelio e Lucio Vero (161-169) Marco Aureacutelio (169-180) e Cocircmodo (180-
192) a transmissatildeo do governo ocorreu de forma paciacutefica uma vez que o criteacuterio proposto foi
a adoccedilatildeo daquele que era considerado o melhor dos romanos
Para catalisar essa imagem de bons governantes Trajano exerce um papel central
uma vez que entrou para a memoacuteria puacuteblica romana como um bom Imperador Temos o
Panegiacuterico de Pliacutenio que evidencia as virtudes desse Priacutencipe e mostra como deveria ser um
bom governante Trajano inclusive tem algumas conquistas militares na Daacutecia e na Armecircnia
que satildeo anexadas ao Impeacuterio como proviacutencias Ele foi o uacuteltimo governante de Roma que
expandiu os limites imperiais
Essa capacidade de lidar com a sucessatildeo promove uma grande estabilidade poliacutetica
uma vez que a puacuterpura natildeo ficava disponiacutevel para qualquer aventureiro Para termos uma ideia
Aviacutedio Caacutessio (175) general romano que tentou usurpar o cargo de Marco Aureacutelio foi
rapidamente suprimido Esse contexto favoraacutevel permite a expansatildeo do modo de vida romano
e principalmente a estabilidade econocircmica
Outro fato significativo desse periacuteodo eacute o deslocamento do centro de poder da
peniacutensula itaacutelica para as proviacutencias Quando Nerva adota Trajano escolhe um cidadatildeo romano
oriundo da Baetica no sul da Hispacircnia Ele era de uma famiacutelia romana estabelecida nessa
proviacutencia Entretanto esse fato mostra como os grupos que influenciavam na sucessatildeo natildeo
estavam restritos agrave peniacutensula itaacutelica Havia nesse momento forccedilas poliacuteticas significativas em
outros lugares Adriano e Marco Aureacutelio tambeacutem eram de famiacutelias da Baetica
O poder do Imperador baseava-se em trecircs fatores o comando militar o prestiacutegio e
a riqueza A soma do poder e do prestiacutegio conferem ao governante a auctoritas Como disse o
Imperador Augusto em seu testamento ele natildeo se diferenciava dos outros Senadores em poder
(potestas) mas em auctoritas (AUGUSTO RGDA 34) Como afirma Geza Alfoumlldy ldquoo
Imperador era a encarnaccedilatildeo ideal de todas as antigas virtudes romanas sendo as principais a
virtus a clementia a iustitia e a pietasrdquo (ALFOumlLDY 1989 116)
A dominaccedilatildeo romana eacute beneacutefica para a populaccedilatildeo jaacute que garantia a manutenccedilatildeo
das estradas e o policiamento do Mediterracircneo o que permitia o estabelecimento de rendosas
rotas comerciais Para termos uma ideia das distacircncias que os produtos percorriam no Impeacuterio
48
podemos evocar as pesquisas de Pedro Paulo Funari sobre os selos nas acircnforas romanas (Dressel
20) presentes na regiatildeo da Beacutetica atual sul da Espanha Tais estudos tecircm se mostrado
interessantes uma vez que as informaccedilotildees presentes nestes selos permitem aos pesquisadores
mapear a circulaccedilatildeo de alimentos e produtos da Bretanha agrave Siacuteria (FUNARI 1987 230)
Ao contraacuterio do que poderiacuteamos pensar as populaccedilotildees dominadas eram
beneficiadas com essa seguranccedila Outro ponto significativo era a permanecircncia das estruturas
locais de poder pois o romano conquistador dialogava diretamente com a elite dominante que
continuava no poder mediante o controle do restante da populaccedilatildeo Obviamente o domiacutenio
poliacutetico natildeo levou agrave descaracterizaccedilatildeo das culturas locais O processo de romanizaccedilatildeo ocorreu
de uma forma extremamente complexa em uma via de matildeo dupla Por exemplo os idiomas
locais continuaram sendo usados Eram as proacuteprias elites provinciais que viam a necessidade
de aprender grego ou latim a fim de se comunicarem com o conquistador
Como nos lembra Sartre (1994 7-10) a dominaccedilatildeo romana estabeleceu uma seacuterie
de normatizaccedilotildees juriacutedicas em toda a extensatildeo imperial Essas regulamentaccedilotildees vinculam-se agraves
hierarquizaccedilotildees sociais que se estabeleciam no acircmbito juriacutedico definindo o estatuto de cada
pessoa diante das instituiccedilotildees Como afirma o reacutetor Eacutelio Aristides as pessoas se dividem em
todo o Impeacuterio em duas categorias distintas os cidadatildeos e os outros podendo os cidadatildeos
pertencerem a uma das trecircs ordens senatorial equestre e decuriotildees (Eacutelio Aristides Orat 26
59)
Geza Alfoumlldy sustenta que a sociedade romana eacute extremamente conservadora uma
vez que o seu desenvolvimento social e poliacutetico natildeo significou a alteraccedilatildeo da estrutura agriacutecola
do Impeacuterio o que limitava a mobilidade social pois o prestiacutegio estava ligado agrave posse da terra
Logo as ideias dominantes tambeacutem se associavam a esses grupos que monopolizavam a
produccedilatildeo textual e a sua divulgaccedilatildeo (ALFOumlLDY 1989 114-115) Essa caracteriacutestica natildeo
impedia a diversidade de ideias uma vez que as elites natildeo eram homogecircneas mas compostas
por grupos distintos que estavam em busca do domiacutenio poliacutetico
Com a ascensatildeo do Principado com Augusto o topo da piracircmide social mudou
seu aacutepice era ocupado pelo Imperador e por sua domus (famiacutelia extensa) Assim as relaccedilotildees
sociais estavam vincadas pela amizade (amicitia) com as grandes famiacutelias especialmente com
a famiacutelia do Ceacutesar Ser amicus Caesaris elevava um indiviacuteduo na sociedade romana como sua
perda significava a queda social
Como jaacute dissemos anteriormente o caso de Luciano na administraccedilatildeo imperial no
Egito sugere a proximidade com a casa imperial Tais relaccedilotildees satildeo fundamentais para entender
o lugar de escrita de Luciano e sua relaccedilatildeo com seu tempo
49
O quadro histoacuterico desse periacuteodo se matiza com a compreensatildeo da construccedilatildeo da
identidade grega no Impeacuterio Romano Trata-se de imaginar como Luciano se compreendia em
uma conjuntura que envolve entender como os intelectuais de liacutengua grega interagiam com o
Impeacuterio Romano
14 A construccedilatildeo de uma identidade helecircnica no Impeacuterio Romano
O processo de helenizaccedilatildeo ocorreu por meio de uma complexa rede de negociaccedilotildees
simboacutelicas e materiais Como enfatiza Simom Swain (1996 87) no livro intitulado Hellenisme
and Empire esse processo dar-se-ia por meio da Paideia O sentimento de pertencimento perde
paulatinamente seu caraacuteter eacutetnico e assume as caracteriacutesticas de uma identidade franca cuja
adesatildeo eacute possiacutevel a qualquer indiviacuteduo Suas estrateacutegias ainda segundo esse autor estatildeo em
uma constante polifonia Cada (des)encontro cultural pode propiciar os mais diferentes
elementos sociais e reaccedilotildees culturais
Susan Alcock em uma anaacutelise que congrega o debate acerca da paisagem memoacuteria
espaccedilo sagrado e imperialismo repensa natildeo mais a influecircncia grega sobre a cultura romana
mas o caminho inverso a presenccedila de Roma nas cidades gregas durante o periacuteodo imperial Ela
ressalta as permanecircncias de memoacuterias gregas durante a dominaccedilatildeo romana Entretanto a autora
identifica como essas reminiscecircncias satildeo relidas das mais distintas formas em um diaacutelogo
altamente seletivo construiacutedo por meio de apropriaccedilotildees e ressignificaccedilotildees (ALCOCK 2001
332)
Alcock critica os autores que apresentam o caraacuteter estaacutevel das atividades mnemocircnicas
ressaltando que a memoacuteria eacute muacuteltipla dinacircmica e tem um grande poder de persuasatildeo O que
nos interessa em sua conceituaccedilatildeo eacute justamente o elo profundo entre memoacuteria e poder A autora
tambeacutem ressalta a existecircncia da multiplicidade das memoacuterias que muitas vezes satildeo conflitantes
concorrentes A memoacuteria social eacute um espaccedilo privilegiado para que os diferentes agentes
histoacutericos contestem o que estaacute estabelecido (ALCOCK 2001 324) Cada agente social usa a
memoacuteria a favor de seus interesses tudo que eacute lembrado depende do oposto que eacute o
esquecimento
Dois pontos satildeo fundamentais para compreender o conceito de memoacuteria De um lado
haacute uma atividade mnemocircnica involuntaacuteria que ocorre ao indiviacuteduo ou seja traccedilos que satildeo
recuperados involuntariamente e compotildeem uma narrativa marcada pela maacutegica da presenccedila do
passado ausente Por outro lado existe uma atividade mnemocircnica voluntaacuteria na qual a memoacuteria
50
eacute treinada e trabalhada e o uso das reminiscecircncias compotildee um quadro de teacutecnicas retoacutericas que
recuam a Simocircnides (YATES 2007 17) Observe-se que natildeo afirmamos que Simocircnides foi o
primeiro a utilizar teacutecnicas mnemocircnicas (essas satildeo atestadas por exemplo nos poemas
homeacutericos) o que esse autor fez foi sistematizar estrateacutegias cognitivas que possibilitassem a
um orador o uso maximizado de sua memoacuteria Tais construccedilotildees fundavam-se em elementos
espaciais a lugares de memoacuteria
No caso de Luciano de Samoacutesata e de grande parte dos autores da chamada Segunda
Sofiacutestica podemos elencar o uso de uma variante do grego que imita os padrotildees linguiacutesticos de
um momento cultural anterior o que indica traccedilos das estrateacutegias de afirmaccedilatildeo social Orestes
Karavas em sua Tese de doutoramento intitulada Lucien e La Trageacutedie defende que a obra de
Luciano eacute tributaacuteria de um passado helecircnico e para demonstrar essa prerrogativa ele faz uma
inquiriccedilatildeo detalhada sobre a presenccedila da trageacutedia nestes textos (KARAVAS 2005) O uso do
aticismo compotildee o quadro cultural descrito por Swain como polifocircnico (SWAIN 2003 40)
As praacuteticas culturais natildeo necessitam de coerecircncia nem de ter a nossa loacutegica A cultura
colonizada natildeo eacute nem coerente nem homogecircnea As respostas agrave presenccedila de outra cultura
variam tanto no tempo quanto no espaccedilo68
Gostariacuteamos de relembrar que Luciano coloca-se em uma encruzilhada cultural que
serve como pequeno microcosmo de interpretaccedilatildeo do ser e estar no Impeacuterio Romano Andrew
Wallace-Handrill (2008 38) em seu recente livro Romersquos Cultural Revolution busca nos
versos do poeta latino Ecircnio uma imagem que acreditamos retratar bem o lugar em que Luciano
se insere Trata-se da imagem do tria cordia ou seja dos trecircs coraccedilotildees Esse poeta afirmava
possuir trecircs coraccedilotildees um latino um grego e um osco69 Observemos a existecircncia do processo
de triangulaccedilatildeo da identidade Trata-se de uma forma de se encontrar no mundo que mescla as
diferentes formas de experiecircncia Assim o indiviacuteduo natildeo precisa abandonar uma identidade
pois ele acumula diferentes sentimentos de pertencimento
Nesse ponto a conceituaccedilatildeo de identidade no mundo antigo se complexifica Os
historiadores buscam respostas nos distintos ramos do conhecimento Por exemplo Peter Burke
68 Richard Hingley (201035) ao estudar a colonizaccedilatildeo da Bretanha Romana a partir de uma concepccedilatildeo teoacuterica poacutes
colonial afirma que ldquonatildeo haacute uma cultura colonial uacutenica e coerenterdquo que englobaria todos os dominados As
colocircnias satildeo muacuteltiplas e apresentam loacutegicas distintas Ele complementa que sob o olhar poacutes-colonial as pesquisas
seguem trecircs premissas inter-relacionadas ldquoa) as tentativas dos estudiosos poacutes-coloniais para descentrar as
pesquisas b) relatos recentes que mostram uma gama complexa e variada de respostas ao contato colonial c)
trabalhos que sugerem oposiccedilotildees tanto manifestas quanto escondidas agrave dominaccedilatildeo dos poderes coloniaisrdquo
(HINGLEY 2010 35) 69 Aulo Geacutelio em suas Noites Aacuteticas afirma que ldquoQuinto Ecircnio dizia possuir trecircs coraccedilotildees porque soubesse falar
grego osco e latimrdquo (ldquoQuintus Ennius tria corda habere sese dicebat quod loqui Graece et Osce et Latine sciretrdquo) (AULO GEacuteLIO N A XVII 17)
51
propotildee a existecircncia de um processo de hibridizaccedilatildeo (BURKE 2003 43) Tal termo vem da
biologia e classifica como hiacutebrido o animal que eacute filho de duas espeacutecies distintas poreacutem o
animal que nasce eacute infeacutertil Logo a transposiccedilatildeo desse conceito agrave dinacircmica do (des)encontro
cultural eacute preconceituosa jaacute que o contato cultural gera uma experiecircncia distinta que natildeo pode
ser hierarquizada O processo de encontro cultural promove uma nova cultura cuja riqueza e
fertilidade podem ser comprovadas em diversos niacuteveis de anaacutelise da cultura material e da
produccedilatildeo literaacuteria
Janet Huskinson (2000 25) enfatiza que haacute frequentemente a sobreposiccedilatildeo de signos
e valores os quais satildeo corroborados por meio de achados arqueoloacutegicos especialmente nos
monumentos erigidos por importantes membros das elites provinciais Destacamos o uso de um
vocabulaacuterio mais preciso para conceituar a dinacircmica do (des)encontro cultural por isso
propomos o termo traduccedilatildeo que tem sua origem nas ciecircncias da linguagem Tal conceito se
coaduna com a apreciaccedilatildeo de cultura pelos caminhos da semioacutetica tal como foi proposto por
Clifford Geertz (2012 4) e permite atentar aos processos de negociaccedilatildeo Richard Hingley
afirma que
Indiviacuteduos no interior de uma sociedade negociam e resistem a certas
representaccedilotildees de inferioridade superioridade e erigem contra-argumentos
Assim dentro de um conjunto limitado de ideias e de experiecircncias eles
definem parcialmente seus proacuteprios conceitos de superioridade ao mesmo
tempo em que se relacionam com itens tais que como a forma e a funccedilatildeo de
um determinado pote ou a imagem de um tipo particular de construccedilatildeo
(HINGLEY 2010 37-38)
Nesse sentido devemos retomar a imagem dos trecircs coraccedilotildees e questionar em que
medida tal imagem expressa a posiccedilatildeo sociocultural de Luciano de Samoacutesata no seio do
ordenamento imperial Em primeiro lugar satildeo diversos os momentos em que esse escritor se
nomeia como siacuterio Como ressaltamos anteriormente o samosatense foi educado de acordo com
os paracircmetros da Paideia helecircnica ou ainda sua escrita refletia um purismo esteacutetico vinculado
diretamente aos autores aacuteticos do V seacuteculo aC outro traccedilo que eacute marcante em seus escritos
Em Lexiacutefanes que versa sobre o mau uso da liacutengua grega pelos sofistas contemporacircneos
eacute dito que
Se realmente desejas que te elogiem por teu estilo bem como ser famoso entre
as massas foge e evita essa classe de expressotildees comeccedila pelos melhores
poetas e os lecirc com a tutela de mestres passa logo aos oradores e quando
estejas familiarizado com a sua dicccedilatildeo muda oportunamente para Tuciacutedides
e Platatildeo mas depois de ter-te exercitado muito na formosa comeacutedia e na
52
majestosa trageacutedia Porque uma vez que tenhas libado todas as suas belezas
seraacutes algueacutem nas letras Pois agora sem te dares conta pareces com os
fabricantes de bonecas da aacutegora as quais estatildeo pintadas por fora de vermelho
e azul mas por dentro satildeo de barro e fraacutegeis (Luciano Lex 22-23)70
Esse eacute o caminho tradicional para o aprendizado nas letras e para a formaccedilatildeo da elite
letrada greco-romana A poesia tem papel de destaque principalmente os poemas homeacutericos
Esse aprendizado marcaraacute todos os discursos literaacuterios produzidos em liacutengua grega por meio
da constante recorrecircncia a esses textos indelevelmente marcados pela visatildeo de mundo de cada
contexto histoacuterico Escrever narrar discursar satildeo formas humanas de se inscrever na realidade
de dar sentido a nossa participaccedilatildeo na existecircncia Escrevemos para nos inscrever no real para
criar sentido ao viver A memoacuteria tem esse papel de marcar as recorrecircncias de construir uma
transcendecircncia que permite ao indiviacuteduo afirmar mesmo que seja de uma maneira natildeo
consciente seu lugar no mundo
Nos escritos de Luciano esses elementos satildeo evidenciados pelo uso de determinados
gecircneros citaccedilotildees determinada variaccedilatildeo linguiacutestica recorrecircncia a personagens miacuteticas ou
histoacutericas meacutetodos partilhados de validaccedilatildeo enunciativa Tais elementos marcam a construccedilatildeo
da identidade grega no Impeacuterio romano principalmente entre os oradores helenos do II seacuteculo
Um discurso excelente eacute aquele que faz com que o leitor eou ouvinte consiga ver o que
foi narrado (WEBB 1997 231) Nesse sentido temos dois pontos fundamentais para
compreender elementos metanarrativos que compotildeem a escrita Primeiro a constante citaccedilatildeo
das autoridades claacutessicas (DARBO-PESCHANSKI 200416) e em segundo lugar o uso da
representaccedilatildeo pictoacuterica por meio da construccedilatildeo de ecfrases como elemento validativo para o
discurso no mundo antigo (DUBEL 1997 250) Tal inscriccedilatildeo na realidade como nos ensinou
Michel Foucault (2002 8-9) depende de instacircncias que ordenam quem pode dizer e o que pode
ser dito As autoridades distribuiacutedas em micropoderes (FOUCAULT 2012 35-54) estabelecem
limites do que eacute real ou fantasioso para o grupo A constituiccedilatildeo de sentido natildeo se daacute de maneira
individual isso seria loucura pois o sentido eacute partilhado inclusive com suas fronteiras que
definem quem o que e como se pode dizer O discurso produzido agrave margem desse regime de
verdade natildeo encontra eco por isso devemos ressaltar o viacutenculo profundo entre discurso e poder
O uso que Luciano faz de autores mais antigos reforccedila uma identidade helenoacutefila
70 ldquoεἴπερ ἄρ ἐθέλεις ὡς ἀληθῶς ἐπαινεῖσθαι ἐπὶ λόγοις κἀν τοῖς πλήθεσιν εὐδοκιμεῖν τὰ μὲν τοιαῦτα πάντα φεῦγε
καὶ ἀποτρέπου ἀρξάμενος δὲ ἀπὸ τῶν ἀρίστων ποιητῶν καὶ ὑπὸ διδασκάλοις αὐτοὺς ἀναγνοὺς μέτιθι ἐπὶ τοὺς
ῥήτορας καὶ τῇ ἐκείνων φωνῇ συντραφεὶς ἐπὶ τὰ Θουκυδίδου καὶ Πλάτωνος ἐν καιρῷ μέτιθι πολλὰ καὶ τῇ καλῇ
κωμῳδίᾳ καὶ τῇ σεμνῇ τραγῳδίᾳ ἐγγεγυμνασμένος παρὰ γὰρ τούτων ἅπαντα τὰ κάλλιστα ἀπανθισάμενος ἔσῃ τις
ἐν λόγοις ὡς νῦν γε ἐλελήθεις σαυτὸν τοῖς ὑπὸ τῶν κοροπλάθων εἰς τὴν ἀγορὰν πλαττομένοις ἐοικώς
κεχρωσμένος μὲν τῇ μίλτῳ καὶ τῷ κυανῷ τὸ δ ἔνδοθεν πήλινός τε καὶ εὔθρυπτος ὤνrdquo
53
adquirida por isso era possiacutevel escrever um texto sobre A deusa siacuteria imitando o estilo literaacuterio
de Heroacutedoto Ser grego no Impeacuterio Romano natildeo dependia do local de nascimento Para ter a
identificaccedilatildeo helecircnica era necessaacuterio fazer parte de um processo de aprendizado (Paideia71)
que dotava o indiviacuteduo de recursos que lhe permitiam fazer parte dessa ordem
Concordamos com Jacques Bompaire (19946 6) ao afirmar que havia bem mais que um
aticismo linguiacutestico o qual deve ser definido por seu caraacuteter cultural e intelectual A citaccedilatildeo no
mundo greco-romano natildeo era feita como as referecircncias contemporacircneas A remissatildeo dependia
da memoacuteria Havia exerciacutecios para treinar a memoacuteria como por exemplo a coacutepia dos mais
variados textos Em seguida os alunos eram treinados a emular os textos claacutessicos O contato
com esses era muito intenso mesmo assim quando cotejamos uma menccedilatildeo e a origem das
mesmas nos decepcionamos jaacute que na maioria das vezes natildeo corresponde ao texto que temos
disponiacutevel
Natildeo podemos esquecer que ateacute o advento da imprensa os textos eram copiados em
manuscritos que geralmente natildeo tinham fonte e coacutepia idecircnticas considerando que o copista
muitas vezes acrescentava frases suprimia outras fazia anotaccedilotildees ao lado do texto A relaccedilatildeo
com o texto escrito era diferente da que se tem atualmente assim conveacutem pensar como a
oralidade consegue fixar e reter memoacuterias canonizadas e como a escrita permite a variaccedilatildeo
tanto com a coacutepia como com a glossa compulsiva O texto escrito permite a anaacutelise incessante
de si principalmente quando ganha status canocircnico guardando as devidas ressalvas os textos
homeacutericos entre os helecircnicos e os textos biacuteblicos entre os hebreus sofrem com esse processo
(ASSMANN 2011 88-97)
Como explica Carlo Ginzburg ldquoo criteacuterio definitivo de verdade natildeo coincidia com as
reaccedilotildees do puacuteblico E antes de tudo a verdade era considerada uma questatildeo de persuasatildeo
ligada soacute marginalmente ao controle objetivo dos fatosrdquo (GINZBURG 2007 24) As
referecircncias cumpriam outras funccedilotildees como marcar um pertencimento ornamentar o texto
gerar autoridade
A citaccedilatildeo eacute a recorrecircncia a um passado seu uso eacute fruto de um trabalho de memoacuteria ora
extremamente ativo em sua consecuccedilatildeo ora involuntaacuterio Entretanto sempre haacute um significado
poliacutetico em seu uso pois vincula o orador a determinada identidade e ao mesmo tempo a uma
visatildeo de mundo e de poliacutetica Ao narrar seus diaacutelogos o escritor de Comagena buscou inserir-
se no mundo e com isso emitir sua opiniatildeo sobre a realidade que o cercava
71 Reiteradamente devemos dizer que a palavra educaccedilatildeo natildeo traduz esse termo grego em sua inteireza uma vez
que o grego pensava na formaccedilatildeo integral do homem tanto fiacutesica quanto intelectualmente A arte da palavra era
apenas um dos acircngulos da Paideia antiga
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Luciano deve ser pensado dentro do contexto maior da presenccedila dos sofistas
helenoacutefilos no Impeacuterio Romano Logo acreditamos que esse debate deve ser complementado
por uma indagaccedilatildeo sobre a Segunda Sofiacutestica fenocircmeno cultural arcaizante que predominou
no Impeacuterio Romano nos ambientes helecircnicos Trata-se de um fenocircmeno de releitura da retoacuterica
antiga elaborado principalmente por oradores e retores Em termos estiliacutesticos os textos
produzidos nesse momento se caracterizam pela imitaccedilatildeo do grego do V aC tendecircncia
chamada pelos historiadores da literatura de aticismo (LESKY 1995)
Como afirma B P Readon o grego usado por escritores diferencia-se do koineacute e o
que se busca eacute o grego de Eacutesquines (READON 1988 80ss) Tais sofistas atuavam muitas
vezes em suas cidades como embaixadores que faziam a ponte com o governador da proviacutencia
ou com o proacuteprio Imperador (BOWERSOCK 196917-58) Nesse contexto o que predomina
eacute o discurso do gecircnero epidiacutetico72 que se vincula com o encocircmio louvando determinado valor
ou ato Eacute o gecircnero das festas puacuteblicas e dos auditoacuterios por isso se aproxima do elogio
O gecircnero encomiaacutestico natildeo estaacute simplesmente vinculado ao prazer do ouvinte Para
uma anaacutelise mais aprofundada eacute necessaacuterio considerar o mundo que o cerca e as possiacuteveis
mensagens poliacuteticas que o mesmo enseja Tal preconceito obnubilaria a anaacutelise do lugar que o
encocircmio assumiu entre os romanos no periacuteodo imperial Essa simplificaccedilatildeo fica patente quando
analisamos os discursos de alguns autores Natildeo vamos nos aprofundar nesse assunto mas por
exemplo Paul Veyne em seu texto Identidade grega contra e a favor ao analisar a atitude dos
gregos diante da dominaccedilatildeo romana afirma ldquoEra possiacutevel ao mesmo tempo desprezar Roma
orgulhar-se de ser grego e apoiar a ordem imperial Ser xenoacutefobo helecircnico patriota e
lsquocolaboradorrsquo De fato essa era a posiccedilatildeo majoritaacuteriardquo (VEYNE 2009 80) Noacutes entendemos
que esse periacuteodo marcou a escrita de diversos intelectuais que podem ser agregados sob a
insiacutegnia da Segunda Sofiacutestica
O termo Segunda Sofiacutestica foi criado por Filoacutestrato de Lemos no proacutelogo do seu
livro Vida dos Sofistas na tentativa de resumir com esse nome a atividade de muitos sofistas
helenizados espalhados pelo Impeacuterio Romano (Filoacutestrato V S I 475) Nesse sentido
Filoacutestrato constroacutei um panorama do contexto intelectual grego em face ao Impeacuterio Romano
Entretanto ele natildeo inclui Luciano como um orador ligado agrave Segunda Sofiacutestica fato que estranha
72 Eacute importante fugir de consideraccedilotildees simplistas sobre a retoacuterica epidiacutetica como o faz Carlo Ginzburg que ao
diferenciar o gecircnero epidiacutetico do deliberativo e do judiciaacuterio afirma que ldquoO exemplo e o entimema se consagram
respectivamente agrave oratoacuteria deliberativa e agrave judiciaacuteria o encocircmio agrave oratoacuteria epidiacuteticardquo (GINZBURG 2002 49)
Tais consideraccedilotildees natildeo observam o uso que esse tipo de discurso tem no Impeacuterio Romano principalmente os usos
poliacuteticos dos mesmos a fim de apresentar demandas locais camufladas em encocircmio (PERNOT 1993 230-238
PARELMAN 2005 53-57)
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os investigadores modernos quais seriam os motivos dessa exclusatildeo filostratiana Neste
capiacutetulo debatemos essa ausecircncia tendo em vista o conceito filostratiano de sofista para tentar
observar os pontos de aproximaccedilatildeo e de afastamento de Luciano desse ideal
Entendemos que a Segunda Sofiacutestica eacute um fenocircmeno cultural no qual a prosa se
coloca como forma predominante elaborada a partir de construccedilotildees retoacutericas Seus autores
nunca se autodenominaram dessa forma Entretanto aleacutem do uso da prosa existem outras
caracteriacutesticas comuns O uso da retoacuterica epidiacutetica que natildeo pode ser menosprezada haja vista
que por meio do elogio ou da censura o retoacuterico poderia inserir pedidos criacuteticas e denuacutencias de
maneira sutil observando assim elementos de uma etiqueta social necessaacuteria que evitaria a
execuccedilatildeo fiacutesica do orador e poderia favorecer a comunidade Tais especialistas da palavra eram
fundamentais para que os moradores das cidades dialogassem com o poder imperial
O constructo histoacuterico filostratiano da Segunda Sofiacutestica reverberou em parte da
historiografia contemporacircnea que tentou entender o espaccedilo grego de leitura e de escrita no
Impeacuterio Romano Desse modo faz-se mister refletir sobre as caracteriacutesticas baacutesicas dessa
historiografia Para seguir esse percurso devemos observar os seguintes pontos como os
autores contemporacircneos compreenderam a Segunda Sofiacutestica qual o estatuto que eles datildeo a
esse periacuteodo da histoacuteria da cultura antiga e finalmente como esses autores estariam vinculados
ao poder imperial
Como enfatizou G Anderson (1993 13-47) em seu livro The second Sophistic A
cultural Phenomenon in the Roman Empire a Segunda Sofiacutestica natildeo eacute apenas um fenocircmeno
literaacuterio mas cultural Sua ecircnfase recai sobre a contiacutenua reapropriaccedilatildeo por meio da retoacuterica do
passado helecircnico o que geraria fortes laccedilos identitaacuterios entre os intelectuais Francesca Mestre
ressalta que a literatura grega do Periacuteodo Imperial se caracteriza ldquopor dois aspectos
fundamentais de um lado o uso da prosa como veiacuteculo exclusivo de comunicaccedilatildeo e criaccedilatildeo e
por outro a impregnaccedilatildeo da retoacuterica em todas as suas manifestaccedilotildees em perfeita consonacircncia
com a Paideia ()rdquo (MESTRE 2000 p 61)
Para Simon Goldhill (200114-15) um ponto de difiacutecil entendimento eacute a
periodizaccedilatildeo desse movimento uma vez que dependendo dos elementos destacados ele pode
ser recuado ateacute a obra de Poliacutebio No entanto haacute uma preferecircncia em marcar tal fenocircmeno como
caracteriacutestico do Alto Impeacuterio com o auge no periacuteodo dos Antoninos
Vito A Sirago coloca o fenocircmeno como uma expressatildeo cultural das elites imperiais
Esse autor enfatiza que os problemas para a sua compreensatildeo estatildeo na dificuldade em demarcar
o seu alcance espacial e temporal Em primeiro lugar Sirago questiona a generalizaccedilatildeo
filostratiana como um empecilho Como a Segunda Sofiacutestica apresenta posturas muito distintas
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nos aspectos estiliacutesticos os pesquisadores apresentam dificuldade em sua caracterizaccedilatildeo Como
um fenocircmeno cultural sua accedilatildeo se daacute por meio da apropriaccedilatildeo contiacutenua de praacuteticas culturais
tradicionais tal accedilatildeo tem a funccedilatildeo de fazer convergir as elites como expressatildeo cultural da
aristocracia imperial (SIRAGO 1989 36-37) Natildeo se trata de um movimento contraacuterio agrave ordem
imperial mas que ressalta determinados grupos que jaacute estatildeo vinculados ao poder do Imperador
Tal reflexatildeo se aproxima de E L Bowie que analisa a maneira como essa elite
cultural ganhou sustentaccedilatildeo a partir da busca de uma identidade cujo principal signo era o uso
do passado grego A declamaccedilatildeo puacuteblica ganha ecircnfase e na segunda metade do primeiro seacuteculo
chegou a um lugar de destaque entre as atividades culturais Como afirma Bowie ldquoadquiriu
uma popularidade sem precedente e quase incompreensiacutevelrdquo (BOWIE 1981 188) Os oradores
multiplicam-se e suas obras apresentam um traccedilo importante o uso constante do passado grego
como elemento central ou como suporte para outras mensagens Os discursos versam sobre a
batalha de Maratona sobre os atenienses os espartanos os sistemas poliacuteticos que os dirigem
ou ainda a personalidade de Peacutericles Os temas do presente ficam camuflados nesses textos
(MESTRE 2000 62)
Ruth Weeb afirma que o desempenho retoacuterico proveu um foacuterum importante para os
cidadatildeos gregos do Impeacuterio afirmarem sua identidade e atingirem um status social entre seus
pares contemporacircneos Aleacutem disso foi um dos principais meios no qual o relacionamento de
Roma com os representantes das cidades e das proviacutencias foi construiacutedo (WEEB 2009 16-17)
Alcock considera que a ausecircncia de poder e gloacuteria fazem com que esses intelectuais
retomem o passado em um movimento nostaacutelgico Os escritos da Segunda Sofiacutestica
documentam a decepccedilatildeo pelo passado dominado e representam a regiatildeo com caracteriacutesticas de
resistecircncia (ALCOCK 2001 329) Eacute evidente que a dominaccedilatildeo eacute mascarada pela ascensatildeo das
famiacutelias bem nascidas na administraccedilatildeo do Impeacuterio e na participaccedilatildeo nas ordens equestre e
senatorial A busca do passado grego foi um canal ativo de comunicaccedilatildeo com o presente pois
permitia por meio de elementos culturais recorrentes dialogar com o poder estabelecido e
promover a legitimidade dos grupos A autora ressalta que essa literatura eacute somente um
epifenocircmeno de um processo muito mais complexo cujas reaccedilotildees de resistecircncia e os processos
de negociaccedilatildeo ocorrem das mais distintas formas (ALCOCK 2001 329-331)
Segundo Lukas de Blois podemos dividir os escritores gregos vinculados agrave Segunda
Sofiacutestica em dois grupos o primeiro os inseridos no sistema imperial seria o caso de Diacuteon
Caacutessio Herodiano e Filoacutestrato entre outros o segundo os demais autores cujo escopo temaacutetico
voltar-se-ia com mais frequecircncia a problemas locais relativos agraves suas respectivas cidades seria
o caso de Dion de Prusa Eacutelio Aristides e Luciano entre outros (DE BLOIS 1998 3441) Essa
57
dicotomia mostra-se falha quando a operacionalizamos na anaacutelise dos autores por exemplo
Luciano teve um cargo no Egito e Eacutelio Aristides se encontra com Pio e Marco Aureacutelio para
levar ateacute eles demandas da cidade de Peacutergamo
O que coloca uma questatildeo muito importante para a compreensatildeo do Impeacuterio
Romano eacute a relaccedilatildeo estabelecida com as cidades do Impeacuterio e os povos que viviam nelas Um
pedido mal encaminhado aleacutem de receber a negativa como resposta poderia causar prejuiacutezos
agraves cidades Outro ponto importante na atuaccedilatildeo desses intelectuais tem relaccedilatildeo com a identidade
grega no segundo e no terceiro seacuteculos Como um povo que tem um passado cultural glorioso
pode conviver com o domiacutenio poliacutetico e a perda de soberania Esse passado foi mobilizado no
nosso ponto de vista como forma de resistir ao domiacutenio imperial
Toda essa renovaccedilatildeo historiograacutefica ressalta a busca de um novo olhar sobre a
literatura grega no Impeacuterio Romano Tim Whitmarsch em seu livro Greek literature and
Roman Empire discorre sobre um revisionismo historiograacutefico jaacute que a literatura grega dos
seacuteculos II e III foi vista como inferior agravequela produzida no periacuteodo claacutessico postura que eacute
defendida por exemplo por Bernard Van Groningen (apud WHITMARSCH 2001 41)
Whitmarsch entende que o termo Segunda Sofiacutestica foi apropriado pela academia moderna para
facilitar a periodizaccedilatildeo e a aproximaccedilatildeo da Paideia helecircnica e do poder romano Essa visatildeo
depreciativa eacute extremamente superficial
Havia fortes visotildees romacircnticas estabelecidas sobre a literatura grega Ateacute a deacutecada
de 1960 os criacuteticos e historiadores da literatura tinham tendecircncia a considerar os textos do
periacuteodo arcaico e claacutessico como cacircnones e os escritos produzidos sob domiacutenio romano como
literatura menor pouco criativa e voltada ao entretenimento Ao romper com essas visotildees os
criacuteticos literaacuterios e historiadores da literatura grega podem analisar essas obras como um
momento singular do contexto literaacuterio com a sofisticaccedilatildeo da linguagem e das teacutecnicas de
escrita com a incorporaccedilatildeo de outros modos de composiccedilatildeo (WHITMARSCH 2001 41-47)
Haacute vaacuterios aspectos interessantes relativos aos viacutenculos socioculturais desses autores
com os grupos hegemocircnicos do Impeacuterio Romano Sempre os conhecemos com o nome de sua
cidade de origem ao lado mas notamos que era uma praacutetica comum a obtenccedilatildeo da cidadania de
outras cidades O caso de Diacuteon de Prusa eacute emblemaacutetico uma vez que ele obteacutem a cidadania de
Apaea-Mirlea (vizinha de Prusa) e Nicomeacutedia Eacute importante ressaltar a mobilidade desses
homens tanto em viagens particulares (por exemplo Eacutelio Aristides) quanto agravequelas vinculadas
agraves embaixadas das cidades aos Imperadores (SARTRE 1994 132-133)
A relaccedilatildeo dos sofistas com o Impeacuterio era marcada por complexos viacutenculos
socioculturais havendo uma incisiva recusa em assumir cargos e obrigaccedilotildees religiosas pois
58
tais ldquohonrariasrdquo eram muito custosas Por exemplo o avocirc e o pai de Dion de Prusa faliram ao
assumir cargos administrativos ou religiosos De fato muitas pessoas tentavam escapar das
magistraturas e das liturgias como por exemplo Eacutelio Aristides que recusou ser o grande
sacerdote em Esmirna (147) cobrador de impostos (151) e irenarca73 (152) utilizando o
argumento de falta de sauacutede e de recursos (CORTES COPETE 1995 156) Esses dados satildeo
fundamentais para pensarmos a complexidade da relaccedilatildeo desses intelectuais com o Impeacuterio ou
mesmo com os poderes locais
Esse quadro que traccedilamos possibilita-nos refletir sobre o lugar de Luciano de
Samoacutesata no Impeacuterio Romano Devemos concordar com a premissa defendida por Paul Veyne
de que intelectuais que natildeo gostam da cultura latina se sentem gregos entretanto colaboram
com a ordem e mantecircm lealdade ao Imperador (VEYNE 2009 80) Cabe-nos analisar no
entanto o lugar que o siacuterio ocupa nesse cenaacuterio
Temos basicamente duas teses levantadas entre os criacuteticos de Luciano sobre sua
relaccedilatildeo com o Impeacuterio Romano De um lado temos Maurice Croiset (1882) que ressalta as
qualidades estiliacutesticas de Luciano Para ele o que o siacuterio teria de inovador seria justamente suas
qualidades esteacuteticas no entanto os conteuacutedos de seus escritos estavam completamente alheios
ao mundo que o cercava Essa postura tambeacutem eacute defendida por Bompaire em seu claacutessico livro
Lucien Eacutecrivain imitation et creacuteation originariamente publicado em 1958 em que o autor
segue uma sugestatildeo de Croiset e trata a questatildeo luciacircnica a partir da desvalorizaccedilatildeo da oposiccedilatildeo
entre criaccedilatildeo e imitaccedilatildeo como processos antagocircnicos O objetivo de Bompaire eacute muito ousado
ele pretendia ldquover se possiacutevel o escritor em seu trabalho e captar a maneira como se elabora a
obra em seu espiacuteritordquo (BOMPAIRE 2000 5) O lucianista tentou compreender o conceito de
miacutemesis74 a partir dos significados dados pelos autores antigos tomando a imitaccedilatildeo como
73 Aquele que zela por Eireacutene a paz 74 Esse conceito eacute fundamental para a compreensatildeo da produccedilatildeo literaacuteria Para a historicizaccedilatildeo dos procedimentos
literaacuterios para a construccedilatildeo da mimeses na literatura ocidental reporte-se para o livro de Erich Auerbach Miacutemesis
a representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental (2011) Jean Pierre Vernant no texto O nascimento de
imagens (2010) se deteacutem principalmente na obra de Platatildeo para mostrar como o conceito de miacutemesis eacute construiacutedo
na filosofia antiga O helenista ainda ressalta seguindo os passos de Eric Havelock (1996) que as imagens no
mundo antigo vinculam-se estritamente a uma cultura oral A obra seminal para esse debate no periacuteodo romano da
literatura grega foi a Tese de Doutorado de Jacques Bompaire em seu livro Lucien Eacutecrivain imitation et creacuteation
(2000) que faz uma interssante investigaccedilatildeo da miacutemesis na obra de Luciano Entretanto esse autor natildeo ficou
restrito ao corpus luciacircnico sendo que a primeira parte de sua obra faz um levantamento rigoroso deste problema
nos autores do perioacutedo imperial A anaacutelise de Bompaire extremante rigorosa em sentido filoloacutegico carece de uma
percepccedilatildeo deste problema nas relaccedilotildees de poder O que pode ser encontrado no livro Greek literature and roman
Empire The politics of imitation (WEBB 2001 89) no qual retoma as colocaccedilotildees platocircnicas que desqualificam
a miacutemesis Retomando principalmente Plutarco Logino e Dioniso sua intensatildeo eacute compreender os aspectos
poliacuteticos dessa literatura e evideciar o caraacuteter subversivo da mesma A nosso ver a obra exagera ao colocar no
mesmo grupo autores tatildeo distintos como Plutarco e Logino como se ambos fossem caracterizados pela oposiccedilatildeo
ao Impeacuterio
59
atividade ativa para a criaccedilatildeo retoacuterica
Apesar dos avanccedilos que essa perspectiva fornece uma vez que valoriza os
mecanismos de criaccedilatildeo literaacuteria e as estrateacutegias de leitura usadas pelo autor prende o inteacuterprete
em uma anaacutelise dos textos luciacircnicos muito subserviente agrave biblioteca disponiacutevel ao escritor de
Samoacutesata (BRANDAtildeO 200119) Dito de outra forma os textos do siacuterio natildeo se vinculariam ao
seu tempo mas seriam fruto de um intelectual preso ao passado ou seja sua obra seria devedora
de sua biblioteca o que corrobora a colocaccedilatildeo de Cruiset (1882) de que o siacuterio natildeo se importava
com a realidade sociopoliacutetica de seu tempo
Por outro lado temos uma postura historiograacutefica que vecirc em Luciano um criacutetico do
Impeacuterio Romano Essa vertente foi apontada inicialmente por Aurelio Peretti (1946) em seu
livro Luciano un intellettuale greco contro Roma em que a partir da anaacutelise do diaacutelogo
Nigrino ou A Filosofia de Nigrino ele apresenta alguns pontos interessantes sobre a questatildeo
luciacircnica caracterizando Nigrino como um texto contra o Impeacuterio Romano Dessa forma
Peretti se coloca contra a tendecircncia geral que vecirc em Luciano um intelectual desligado das
questotildees atuais e submisso ao poder imperial
Entre essas posturas encontra-se a de C P Jones (1986 83-87) que em seu livro
Culture and Society in Lucian afirma que Luciano teria sido perseguido pelo Imperador
Adriano devido a suas caacuteusticas criacuteticas ao Impeacuterio Romano e soacute foi reabilitado por Cocircmodo
que o teria designado para um importante cargo na proviacutencia do Egito Esse autor descarta a
existecircncia de qualquer interesse poliacutetico em Luciano limitando-se a colocar os viacutenculos entre
Luciano e seu tempo juntamente com algumas figuras menores e problemas pontuais No
entanto natildeo aceita a imagem proposta por Bompaire de ldquoum artista absorvido em si mesmordquo
(JONES 1986 4-5) que natildeo se preocuparia com sua atualidade
Entendemos que podem ser mapeados nos escritos de Luciano elementos que
marcam essa intrincada identidade uma vez que ele ressalta em toda a sua obra seu lugar de
alteridade Como salienta Brandatildeo (1990 139) toda alteridade se daacute na relaccedilatildeo e sua construccedilatildeo
se daacute na Histoacuteria e na vida social Nesse contexto vemos a sobreposiccedilatildeo de signos e siacutembolos
de diferentes culturas
A anaacutelise de Brandatildeo coloca como eixo organizador do corpus Lucianeum a
alteridade Ela se encontra de diferentes maneiras por meio dos personagens marginalizados
(prostitutas eunucos escravos pobres) personagens marginalizados por opccedilatildeo (filoacutesofos
ciacutenicos) o diferente em relaccedilatildeo ao grego (o estrangeiro e baacuterbaro sendo que os romanos satildeo a
antiacutetese do que conforma a Paideia grega) em relaccedilatildeo aos vivos (mortos) os que escapam agrave
esfera da terra (habitantes da lua das estrelas do sol e os deuses) entre os deuses os deuses
60
baacuterbaros que satildeo um contraponto daqueles (BRANDAtildeO 1990 140-141) Luciano ainda
enfatiza os lugares da alteridade por exemplo o Hades confins da terra lugares estrangeiros
Uma anedota presente no opuacutesculo Hermoacutetimo pode nos ajudar a compreender o
problema da alteridade para Luciano
Conta-se que Gelatildeo de Siracusa tinha boca malcheirosa ― e tal fato foi
escondido dele durante muito tempo pois ningueacutem ousava advertir um tirano
ateacute uma mulher estrangeira tendo dormido com ele ousar dizer o que se
passava Ele voltando para junto da sua proacutepria mulher encolerizou-se por
ela natildeo tecirc-lo advertido sendo conhecedora mais do que ningueacutem do mau
cheiro Ela suplicou-lhe que a perdoasse pois natildeo tendo nunca dormido com
outro homem nem falado de perto acreditava que todos os homens exalavam
da boca o mesmo haacutelito75 (Luciano Hermot 34)
Essa estoacuteria eacute muito interessante uma vez que a mulher do tirano erra por ignoracircncia
os demais suacuteditos por medo Somente uma personagem que se move na completa alteridade
(mulher prostituta e estrangeira) lhe revela a verdade (BRANDAtildeO 1990 142)
Brandatildeo ainda ressalta que nos textos em que Luciano defende sua poeacutetica ele faz
alusatildeo ao incocircmodo papel de estrangeiro ldquoA questatildeo da alteridade em Luciano passa pelo
estatuto pouco definido do aculturado que deixando de lado o que lhe eacute proacuteprio adota uma
outra cultura mas natildeo se sente nunca totalmente adotado por elardquo (BRANDAtildeO 1990 144)
No texto O pescador ou os ressuscitados defendendo-se diante da Filosofia Luciano afirma
Sou siacuterio filosofia nas margens do Eufrates Mas para quecirc tudo isso Na
verdade sei de muitos desses meus adversaacuterios que natildeo satildeo menos baacuterbaros
de nascimento que eu mas apesar disso a sua iacutendole e a sua cultura natildeo
condizem com as Solenes dos Cipriotas dos Babilocircnios ou dos Estagiristas
Todavia para ti natildeo faz qualquer diferenccedila que um homem tenha uma
pronuacutencia baacuterbara desde que sua maneira de pensar se revele reta e justa76
(LUCIANO Pisc 19)
Se em um plano ideal a identidade grega eacute franca e aberta sendo o resultado da
formaccedilatildeo helecircnica (GOLDHILL2001 SWAIN 2003 GUARINELLO 2009) passiacutevel de
adesatildeo em seu Elogio agrave Paacutetria Luciano afirma que ldquoeacute ultrajante viver no
estrangeirordquo(LUCIANO Patr Enc 8)77
75 ldquoτῷ γὰρ Συρακουσίῳ Γέλωνί φασι δυσῶδες εἶναι τὸ στόμα καὶ τοῦτο ἐπὶ πολὺ διαλαθεῖν αὐτὸν οὐδενὸς
τολμῶντος ἐλέγχειν τύραννον ἄνδρα μέχρι δή τινα γυναῖκα ξένην συνενεχθεῖσαν αὐτῷ τολμῆσαι καὶ εἰπεῖν ὅπως
ἔχοι τὸν δὲ παρὰ τὴν γυναῖκα ἐλθόντα τὴν ἑαυτοῦ ὀργίζεσθαι ὅτι οὐκ ἐμήνυσε πρὸς αὐτὸν εἰδυῖα μάλιστα τὴν
δυσωδίαν τὴν δὲ παραιτεῖσθαι συγγνώμην ἔχειν αὐτῇ ὑπὲρ γὰρ τοῦ μὴ πεπειρᾶσθαι ἄλλου ἀνδρὸς μηδὲ ὁμιλῆσαι
πλησίον οἰηθῆναι ἅπασι τοῖς ἀνδράσι τοιοῦτό τι ἀποπνεῖν τοῦ στόματοςrdquo 76 ldquoΣύρος ὦ Φιλοσοφία τῶν Ἐπευφρατιδίων ἀλλὰ τί τοῦτο καὶ γὰρ τούτων τινὰς οἶδα τῶν ἀντιδίκων μου οὐχ
ἧττον ἐμοῦ βαρβάρους τὸ γένος ὁ τρόπος δὲ καὶ ἡ παιδεία οὐ κατὰ Σολέας ἢ Κυπρίους ἢ Βαβυλωνίους ἢ
Σταγειρίτας καίτοι πρός γε σὲ οὐδὲν ἂν ἔλαττον γένοιτο οὐδ εἰ τὴν φωνὴν βάρβαρος εἴη τις εἴπερ ἡ γνώμη ὀρθὴ
καὶ δικαία φαίνοιτο οὖσαrdquo 77 ldquoὄνειδος γὰρ τὸ τῆς ξενιτείαςrdquo
61
No opuacutesculo Hermoacutetimo ou sobre as seitas o autor discute os caminhos para se
encontrar a cidade ideal entendendo cidade como metaacutefora para a vida Qual escola filosoacutefica
poderia levar o indiviacuteduo a uma vida boa Observemos que na cidade a que se chega natildeo haacute
indiviacuteduos autoacutectones Luciano afirma que nela nesta cidade ldquotodos eram adventiacutecios
estrangeiros natildeo havendo um autoacutectone sequer pelo contraacuterio eram todos baacuterbaros escravos
aleijados pessoas humildes e pobres numa palavra qualquer um podia fazer parte daquela
cidaderdquo (LUCIANO Herm 24)78
A verdade natildeo eacute natural mas adquirida Observemos que no texto colocam-se em
causa somente os sistemas helecircnicos de formaccedilatildeo uma vez que a identidade eacute construiacuteda na
relaccedilatildeo com o outro em uma complexa rede de negociaccedilatildeo simboacutelica Cada indiviacuteduo assume
no decorrer de sua existecircncia diversas identidades em alguns momentos esses sentimentos de
pertenccedila se sobrepondo A caracteriacutestica mais evidente da identidade grega eacute o seu poder de
adesatildeo natildeo se trata de uma identidade assumida por meio do nascimento mas do aprendizado
de signos e sinais pertencentes agravequela forma de vida No caso especiacutefico de Luciano
observamos que ele fica em uma encruzilhada cultural onde o eu e o outro se (con)fundem Se
eacute ultrajante viver no estrangeiro (como citamos anteriormente) outro momento em que o caraacuteter
do estrangeiro eacute ressaltado eacute no panfleto Como se deve escrever a Histoacuteria no qual ele afirma
que
Assim pois para mim deve ser o historiador sem medo insubornaacutevel livre
e amigo da franqueza e da verdade mdash como diz o poeta cocircmico algueacutem que
chame figos de figos e gamela de gamela algueacutem que natildeo admita nem omita
nada por oacutedio ou por amizade que a ningueacutem poupe nem respeite nem
humilhe que seja juiz equacircnime benevolente com todos ateacute o ponto de natildeo
dar a um mais do que o devido estrangeiro nos livros sem cidade autocircnomo
sem rei natildeo se preocupando com o que acharaacute este ou aquele mas dizendo o
que se passou (LUCIANO Hist conscr 41)79
Para o siacuterio soacute eacute livre aquele que ao escrever natildeo tem paacutetria natildeo tem cidade que
cuida da regulamentaccedilatildeo da proacutepria vida que natildeo tem rei Aqui temos espaccedilo para natildeo ser
corrupto para ser franco para ser verdadeiro Observemos como essas mesmas caracteriacutesticas
aparecem na imagem que Luciano faz de Dioacutegenes no diaacutelogo O leilatildeo dos filoacutesofos
78 ldquoὡς ξύμπαντες μὲν ἐπήλυδες καὶ ξένοι εἶεν αὐθιγενὴς δὲ οὐδὲ εἷς ἀλλὰ καὶ βαρβάρους ἐμπολιτεύεσθαι πολλοὺς
καὶ δούλους καὶ ἀμόρφους καὶ μικροὺς καὶ πένητας καὶ ὅλως μετέχειν τῆς πόλεως τὸν βουλόμενονrdquo 79 ldquoΤοιοῦτος οὖν μοι ὁ συγγραφεὺς ἔστω ndash ἄφοβος ἀδέκαστος ἐλεύθερος παρρησίας καὶ ἀληθείας φίλος ὡς ὁ
κωμικός φησι τὰ σῦκα σῦκα τὴν σκάφην δὲ σκάφην ὀνομάσων οὐ μίσει οὐδὲ φιλίᾳ τι νέμων οὐδὲ φειδόμενος ἢ
ἐλεῶν ἢ αἰσχυνόμενος ἢ δυσωπούμενος ἴσος δικαστής εὔνους ἅπασιν ἄχρι τοῦ μὴ θατέρῳ τι ἀπονεῖμαι πλεῖον
τοῦ δέοντος ξένος ἐν τοῖς βιβλίοις καὶ ἄπολις αὐτόνομος ἀβασίλευτος οὐ τί τῷδε ἢ τῷδε δόξει λογιζόμενος
ἀλλὰ τί πέπρακται λέγωνrdquo
62
Comprador ― Primeiro oacute belo de onde eacutes
Dioacutegenes80― De todo lugar
Comprador ― Como dizes
Dioacutegenes ― Vecircs um cidadatildeo do mundo
Comprador ― E imitas algueacutem
Dioacutegenes ― Heacuteracles
Comprador ― E por que natildeo levas tu tambeacutem a pele de leatildeo Pois no bastatildeo
estaacutes parecido com ele
Dioacutegenes ― Esta eacute minha pele de leatildeo este meu manto e luto como ele
[Heacuteracles] contra os prazeres ndash sem que ningueacutem me obrigue mas por vontade
proacutepria propondo-me uma vida limpa de imundiacutecies
(LUCIANO Vit Auct 8)81
A liberdade do filoacutesofo ciacutenico eacute dada justamente pelo fato de natildeo ter cidade e eacute
justamente por ser um cidadatildeo do mundo que o filoacutesofo pode ensinar a liberdade Luciano leva
ao extremo o estatuto do estrangeiro em sua obra jaacute que ele mesmo eacute um estrangeiro em seus
livros
Ateacute aqui ressaltamos os viacutenculos ambiacuteguos de Luciano com a cultura helecircnica e a
cultura romana Preocupa-nos a atuaccedilatildeo da intelectualidade helenoacutefona no seio do Impeacuterio
Observamos que tal accedilatildeo dava-se de acordo com a proposta de Veyne ser patriota xenoacutefobo agrave
romanidade e colaborador da ordem imperial
Luciano foi acusado de uma contradiccedilatildeo performaacutetica ndash ou seja de dizer uma coisa e
fazer outra ndash pela elaboraccedilatildeo da obra Em defesa dos que recebem salaacuterio escrita em defesa das
criacuteticas de hipocrisia que Luciano recebeu ao assumir um cargo na administraccedilatildeo da proviacutencia
imperial do Egito uma vez que ele havia escrito um texto Sobre os que recebem salaacuterio no
qual criticava os gregos que aceitavam trabalhar nas casas dos romanos para receber um
80 Brandatildeo ressalta que natildeo podemos esquecer que os nomes presentes em Leilatildeo dos Filoacutesofos devem-se aos
escoliastas e aos copistas e que nenhum nome proacuteprio eacute citado o que dificulta a identificaccedilatildeo (BRANDAtildeO 2001
310) 81 ldquoΑΓΟΡΑΣΤΗΣ
Τὸ πρῶτον ὦ βέλτιστε ποδαπὸς εἶ
ΔΙΟΓΕΝΗΣ
Παντοδαπός
ΑΓΟΡΑΣΤΗΣ
Πῶς λέγεις
ΔΙΟΓΕΝΗΣ
Τοῦ κόσμου πολίτην ὁρᾷς
ΑΓΟΡΑΣΤΗΣ
Ζηλοῖς δὲ δὴ τίνα
ΔΙΟΓΕΝΗΣ
Τὸν Ἡρακλέα
ΑΓΟΡΑΣΤΗΣ
Τί οὖν οὐχὶ καὶ λεοντῆν ἀμπέχῃ τὸ μὲν γὰρ ξύλον ἔοικας αὐτῷ
ΔΙΟΓΕΝΗΣ
Τουτί μοι λεοντῆ τὸ τριβώνιον στρατεύομαι δὲ ὥσπερ ἐκεῖνος ἐπὶ τὰς ἡδονάς οὐ κελευστός ἀλλὰ ἑκούσιος
ἐκκαθᾶραι τὸν βίον προαιρούμενοςrdquo
63
ordenado
Observemos os argumentos usados por Luciano para defender-se
() como eacute muitiacutessimo diferente algueacutem que tendo ingressado na casa de
algum rico serve e suporta quantas coisas eu disse no meu livro de quem na
esfera puacuteblica realiza algum dos serviccedilos da comunidade administrando os
negoacutecios puacuteblicos de acordo com suas capacidades e recebendo do
Imperador por isso um salaacuterio () os que tecircm em suas matildeos negoacutecios
puacuteblicos e se fazem uacuteteis para cidades e povos inteiros natildeo poderiam ser
razoavelmente caluniados apenas em razatildeo do salaacuterio () E o soldo natildeo
procede de um particular e sim do Imperador tampouco eacute pequeno trata-se
de muitos talentos As esperanccedilas futuras natildeo satildeo pequenas se acontecer o
normal talvez a supervisatildeo da proviacutencia ou outro serviccedilo imperial
(LUCIANO Apol 11-12)82
Luciano evidencia uma dicotomia muito interessante entre casa e Estado
estabelecendo uma diferenccedila qualitativa entre trabalhar para um particular e servir ao Impeacuterio
Se o trabalho na casa de um particular rico coloca no horizonte a servidatildeo e a subserviecircncia a
esperanccedila de trabalhar para o Imperador possibilita o enriquecimento e o espaccedilo propiacutecio para
fazer o bom uso de suas capacidades intelectuais Se a casa de um rico eacute o espaccedilo da vergonha
o Impeacuterio eacute o da gloacuteria A lealdade eacute dada por um viacutenculo direto com o Imperador
Faz-se mister retomar as ideias que marcaram a confecccedilatildeo deste item no qual buscou-
se entender o lugar de Luciano de Samoacutesata em consonacircncia com o que a Segunda Sofiacutestica
tinha no Impeacuterio Romano As especificidades dos escritos luciacircnicos sugerem que as hipoacuteteses
de Wallace-Hadrill sobre os trecircs coraccedilotildees devem ser suavizadas e que os aspectos ambiacuteguos
indicados por Paul Veyne merecem ser investigados em um panorama mais complexo Em um
conjunto de discursos como os que Luciano escreveu a pergunta sobre o que seria pertinente a
essa ou agravequela identidade mostra-se em sua leitura um falso questionamento jaacute que os
elementos identitaacuterios satildeo apresentados a partir de uma rede de negociaccedilotildees ressignificaccedilotildees
transgressotildees que transformam ou reforccedilam signos e significados dependendo da necessidade
do discurso A partir desse ponto o processo de descriccedilatildeo densa permite compreender a
dialeacutetica entre o eu (Luciano) e o outro (cultura imperial)
Entretanto temos claro que um poliacutegrafo como Luciano era profundamente atingido
pela realidade assim nosso desafio eacute encontrar as pistas sutis que ele deixou A seguir
82 ldquo[] ὡς πάμπολυ διαφέρει ἐς οἰκίαν τινὸς πλουσίου ὑπόμισθον παρελθόντα δουλεύειν καὶ ἀνέχεσθαι ὅσα μοί
φησιν τὸ βιβλίον ἢ δημοσίᾳ πράττοντά τι τῶν κοινῶν καὶ ἐς δύναμιν πολιτευόμενον ἐπὶ τούτῳ παρὰ βασιλέως
μισθοφορεῖν [] οἱ δὲ τὰ κοινὰ διὰ χειρὸς ἔχοντες καὶ πόλεσι καὶ ἔθνεσιν ὅλοις σφᾶς αὐτοὺς χρησίμους
παρέχοντες οὐκ ἂν εἰκότως ἐκ μόνου τοῦ μισθοῦ διαβάλλοιντο [] καὶ ὁ μισθὸς οὐκ ἰδιωτικός ἀλλὰ παρὰ τοῦ
βασιλέως οὐ σμικρὸς οὐδὲ οὗτος ἀλλὰ πολυτάλαντος καὶ τὰ μετὰ ταῦτα δὲ οὐ φαῦλαι ἐλπίδες εἰ τὰ εἰκότα
γίγνοιτο ἀλλὰ ἔθνος ἐπιτραπῆναι ἤ τινας ἄλλας πράξεις βασιλικάςrdquo
64
completamos esse quadro que constroacutei os elementos metanarrativos que ordenam a elaboraccedilatildeo
do discurso memorialiacutestico assim continuamos nossa anaacutelise observando como os usos das
narrativas miacuteticas referem-se agrave construccedilatildeo de um discurso memorialiacutestico pois se ligam a um
preteacuterito comum
16 Narrativas miacuteticas e memoacuteria cultural em um Impeacuterio Greco-romano
Roger Chatier afirmou recentemente que os historiadores se surpreenderam ao notar
que seu trabalho natildeo lhes garante o monopoacutelio sobre as formas de representaccedilatildeo do passado e
que outras formas de narrativas satildeo muito mais eficientes do que aquelas elaboradas apoacutes a
pesquisa cientiacutefica Nesse domiacutenio puacuteblico dos usos do passado temos os relatos
memorialiacutesticos a mitologia os romances histoacutericos os textos eacutepicos as hagiografias
medievais as telenovelas os filmes os documentaacuterios entre outras possibilidades de narrar
aspectos do passado (CHARTIER 2009 30)
O primeiro meio de aproximaccedilatildeo com o passado que temos eacute a memoacuteria trabalho
individual que coloca o homem no mundo e o aproxima dos outros ldquoO sujeito mesmo antes
de ser um eu jaacute estaacute a um certo niacutevel imerso na placenta de uma memoacuteria que o socializa e agrave
luz da qual ele iraacute definir quer sua estrateacutegia de vida quer os seus sentimentos de pertenccedila e
de adesatildeo ao coletivordquo (CATROGA 2009 13 grifo do autor) Natildeo se trata de entender a
memoacuteria como externa aos indiviacuteduos mas de ter claro que soacute eacute possiacutevel lembrar em sociedade
pois cada um precisa das memoacuterias dos outros para representar o mundo em que habita Nesse
sentido os mitos fazem parte desse passado compartilhado
O livro de Paul Ricoer A memoacuteria a Histoacuteria e o Esquecimento diferencia
memoacuteria e Histoacuteria83 nos seguintes termos Em primeiro lugar ele coloca a distinccedilatildeo entre
testemunho e documento sendo o primeiro ligado agrave memoacuteria e o segundo agrave Histoacuteria
No testemunho a realidade factual eacute construiacuteda a partir da confiabilidade presumida
de seu autor uma vez que este pode reivindicar a veracidade daquilo que disse jaacute que vivenciou
o que foi relatado84 (RICOEUR 2007 172) sempre apresentando a foacutermula eu estava laacute O
testemunho ldquoproporciona uma sequecircncia narrativa agrave memoacuteria declarativardquo (RICOEUR 2007
83 Usamos o termo Histoacuteria com letra maiuacutescula para distinguir a ciecircncia da Histoacuteria do objeto do conhecimento
dessa a histoacuteria 84 Paul Ricoeur deixa claro que essa argumentaccedilatildeo surge a partir de ldquocertas formas contemporacircneas de depoimento
sucitadas pelas atrocidades em massa do seacuteculo XXrdquo (RICOEUR 2007 170)
65
176) e eacute acreditado ou natildeo dependendo do ouvinteleitor eacute imediatista produzido no momento
presente e finalmente permite o reconhecimento do passado
Os documentos reunidos organizados catalogados selecionados e guardados no
arquivo satildeo acessados por especialistas que podem extrair dos mesmos uma narrativa histoacuterica
que se distinguiria do testemunho O arquivo permite que o historiador tenha uma postura
indiciaacuteria A narrativa histoacuterica eacute construiacuteda com elementos que a inserem em um regime de
verdade sendo possiacutevel a refutaccedilatildeo ou verificaccedilatildeo do que foi dito claramente Ricoeur estaacute
influenciado por Michel de Certeau85 (2011 45-111) Os documentos permitem a construccedilatildeo
lenta da explicaccedilatildeo histoacuterica a partir da construccedilatildeo das argumentaccedilotildees por fim eles permitem
a representaccedilatildeo do passado (RICOEUR 2007 170-192)
Essa argumentaccedilatildeo dificultaria muito o estudo dos usos da memoacuteria no mundo
antigo uma vez que tais conceitos natildeo podem ser aplicados a essa realidade Franccedilois Hartog
no livro A evidecircncia da Histoacuteria analisa a relaccedilatildeo entre a testemunha e o historiador e constata
que no mundo antigo havia dois conceitos de testemunho o grego e o judaico-cristatildeo
O conceito grego que se vincula aos historiadores mas tambeacutem aos meacutedicos
antigos salienta a investigaccedilatildeo e a visatildeo como caracteriacutesticas para a produccedilatildeo do conhecimento
Por outro lado haacute a postura judaico-cristatilde das religiotildees reveladas em que
aqueles que viram com os proacuteprios olhos tornaram-se servidores ou para dizer
de outro modo eles viram e acreditaram e aqueles que desde o iniacutecio se
tornaram servidores satildeo aqueles que viram Ver e servir satildeo indissociaacuteveis De
tal modo que aqueles que viram sem se tornarem servidores no fundo natildeo
chegaram a ver realmente E aqueles que se tornaram servidores viram ndash
poderiacuteamos acrescentar- com os olhos da feacute (HARTOG 2011 220)
Assim o conceito moderno de documento e de testemunha que Ricoeur (2007
170-192) desdobra das indagaccedilotildees de Certeau (2011 45-111) natildeo eacute universal mas depende de
um regime de historicidade e de memoacuteria que eacute especiacutefico da modernidade e da
profissionalizaccedilatildeo do historiador Nem os historiadores gregos nem os latinos se preocupavam
com as fontes a fim de validar seu discurso Como discorre Carlo Ginzburg (2007 17-19) no
livro O fio e os rastros os historiadores antigos precisavam expressar com vivacidade
(enargeia) seu relato natildeo sendo necessaacuterio mostrar as fontes Essas poderiam aparecer mas
estavam muito mais no espaccedilo dos elementos acessoacuterios do texto do que daquilo que era
fundamental diferentemente do historiador moderno cujas fontes satildeo elementos essenciais
85 Michel de Certeau cunha o conceito de operaccedilatildeo historiograacutefica para definir o trabalho do historiador e a
distinccedilatildeo deste com outras narrativas que evocam o passado Para ele o trabalho desse sujeito tem trecircs etapas o
estabelecimento da prova documental a construccedilatildeo da explicaccedilatildeo e a narrativizaccedilatildeo (CERTEAU 2011 45-111)
66
para a elaboraccedilatildeo de sua narrativa Os criteacuterios de validaccedilatildeo enunciativa satildeo outros haacute outro
regime de memoacuteria em accedilatildeo
Outro ponto importante eacute a compreensatildeo de que o conceito antigo de Histoacuteria eacute
diferente do moderno Hanna Arendt afirma que o tema da Histoacuteria eacute o extraordinaacuterio aquilo
que pretende vencer a mortalidade da vida e se inscrever em uma ordem eterna (ARENDT
2002 72) O homem antigo desconhecia a noccedilatildeo de processo logo os eventos estudados natildeo
eram encaminhados em uma ordem causal que permitisse uma explicaccedilatildeo estrutural Nesse
sentido as guerras satildeo momentos fundamentais para esses historiadores
Seguindo esses elementos o historiador do mundo antigo que deseja operar com as
distinccedilotildees de Paul Ricoeur coloca-se em uma situaccedilatildeo difiacutecil Entretanto antes de decretar a
impossibilidade do estudo da memoacuteria em sociedades diferentes devemos ressaltar que a
distinccedilatildeo proposta pelo filoacutesofo francecircs responde aos interesses contemporacircneos sobre os usos
e abusos do passado na sociedade hodierna
A fim de ampliar o debate afirmamos que a memoacuteria vincula-se agraves repeticcedilotildees e agraves
atualizaccedilotildees culturais natildeo se restringindo agraves elaboraccedilotildees conscientes dos indiviacuteduos pois as
sociedades apresentam um rico acervo que eacute transmitido de acordo com os regimes de memoacuteria
em que se inscrevem
Jan Assmann86 afirma que ldquoo princiacutepio fundamental de todas as estruturas
conectivas eacute a repeticcedilatildeo que garante que as linhas de accedilatildeo natildeo se percam no infinito mas
tambeacutem que se ordenem em modelos reconheciacuteveis e possam identificar-se como elementos de
uma cultura comumrdquo (ASSMANN 2011 19) Esse princiacutepio de conectividade eacute a base da
cultura humana visto que os homens tecircm acima de tudo a capacidade de se comunicar
(THEML 2002 12)
Entendemos que memoacuteria eacute a capacidade que o indiviacuteduo tem de expressar
conteuacutedos adquiridos em um tempo anterior agravequele em que ele vive permitindo a troca de
experiecircncias passadas por mecanismos extremamente variados
Para Assmann (2011) existe a memoacuteria comunicativa e a memoacuteria cultural A
memoacuteria comunicativa refere-se agraves lembranccedilas relacionadas ao passado recente aquelas que os
indiviacuteduos dividem com seus contemporacircneos e podem reivindicar sua veracidade trata-se da
86 Jan Assmann eacute um egiptoacutelogo alematildeo que juntamente com sua esposa Aleida Assmann tem desenvolvido e
aplicado o conceito de memoacuteria cultural Os dois livros de Jan Assmann que citamos na bibliografia satildeo traduccedilotildees
em espanhol e francecircs do livro Das kulturelle Gedaumlchtnis Schrift Erinnerung und politische publicado
originariamente em 2002 Sua esposa eacute especialista em Renascimento sendo que seu livro Espaccedilos da recordaccedilatildeo
formas e transformaccedilotildees da memoacuteria cultural (ASSMANN 2011) foi publicado recentemente pela Editora da
UNICAMP
67
memoacuteria de uma geraccedilatildeo (ASSMANN 2011 49) Por outro lado a memoacuteria cultural orienta-
se
mediante pontos fixos do passado Tampouco nela se pode perpetuar o
passado enquanto tal Neste caso o passado se coagula em figuras simboacutelicas
que se aderem a recordaccedilatildeo () os mitos satildeo figuras da recordaccedilatildeo natildeo tem
sentido distinguir aqui entre mito e histoacuteria Para a memoacuteria cultural a histoacuteria
factual natildeo conta mas a histoacuteria como eacute lembrada Tambeacutem se poderia dizer
que na memoacuteria cultural a histoacuteria factual se converte em recordaccedilatildeo e
portanto se transforma em mito O mito eacute uma histoacuteria fundante uma histoacuteria
contada para esclarecer o presente ao iluminar as origens () Na lembranccedila
a Histoacuteria faz-se mito Deste modo natildeo se torna irreal muito pelo contrario se
transforma em realidade entendida como uma forccedila normativa e formativa
permanente (ASSMANN 2011 51)
Os elementos que compotildeem o regime de memoacuteria estatildeo relacionados justamente
com os pontos fixos que estatildeo fora dos discursos por isso metadiscursivos Trata-se daquilo
que antecede a escrita e lhe fornece limites e argumentos proacuteprios agrave sua confecccedilatildeo Esses pontos
fixos satildeo pensados a partir da loacutegica de que memoacuteria eacute aquilo que os homens repetem suas
histoacuterias de vida as narrativas de seus antepassados proacuteximos ou distantes ou ainda as
narrativas miacuteticas
O regime de memoacuteria romano no qual Luciano se inscreve apresenta um contexto
em que a formaccedilatildeo dos homens passa por treinamentos muito especiacuteficos A historiadora
Frances A Yates (2007 17-26) estudou a construccedilatildeo da arte da memoacuteria87 o que permite
entender o que Assmann chama de cultura da recordaccedilatildeo jaacute que a arte da memoacuteria treinamento
de uma memoacuteria artificial a fim de elaborar discursos complexos eacute bastante desenvolvida88
Esse treinamento orienta para a construccedilatildeo discursiva a partir de outras formas de
validaccedilatildeo enunciativa que ganha contornos diferentes no contexto histoacuterico romanizado Nesse
sentido os trabalhos de Ruth Webb (1997229-232) sobre a ecfrase antiga nos ajudam a
entender como a ideia de vivacidade (enargeia) eacute mais importante para dar credibilidade ao
texto dos historiadores do que a remissatildeo aos arquivos e agraves fontes consultadas
Esses elementos fornecem aos oradores escritores e retores elementos para
desenvolver teacutecnicas de uso da memoacuteria artificial Joumlrn Ruumlsen complementa esse debate ao
87 Yates inicia sua investigaccedilatildeo pelo estudo dos textos de Ciacutecero Quintiliano e um tratado Anocircnimo a Retoacuterica
Ad Herennium Ela mostra como a Antiguidade greco-romana produziu sofisticadas teacutecnicas memorialiacutesticas
vinculadas agrave disposiccedilatildeo precisa dos discursos em lugares de memoacuteria e em imagens 88 Mary Carruthers (2011) escreveu A teacutecnica do pensamento meditaccedilatildeo retoacuterica e a construccedilatildeo de imagens
(400-1200) que trata do mesmo tema na Idade Meacutedia Harald Weinrich estudou o oposto em seu Lete arte e criacutetica
do esquecimento (2001) se debruccedilou sobre o estudo da ars oblivionis (arte do esquecimento)
68
afirmar que as narrativas referentes ao passado satildeo uma constante antropoloacutegica fundamental agrave
existecircncia humana (RUumlSEN 2001 149-174)
Maurice Halbwaschs (2004) socioacutelogo francecircs no livro poacutestumo Memoacuteria
Coletiva enfatiza que os indiviacuteduos necessitam da coletividade para lembrar Sua conclusatildeo
chega a enfatizar que soacute existe memoacuteria coletiva que o indiviacuteduo natildeo teria existecircncia enquanto
tal se natildeo fosse o grupo A memoacuteria coletiva refere-se agrave maneira pela qual os indiviacuteduos se
aproximam das narrativas que constroem as identidades sociais Haacute um passado comum que
orienta discursos sobre como determinadas entidades devem agir ou seja as memoacuterias
construiacutedas na coletividade e que extravasam os paracircmetros da vida permitem refletir os
conceitos apresentados Nesse sentido a indagaccedilatildeo do teoacuterico portuguecircs Fernando Catroga
sobre a memoacuteria coletiva faz muito sentido ldquoNatildeo seraacute este conceito filho de uma ilusatildeo
holiacutestica de cariz antropomoacuterfico e antropopaacutetico Incompatiacutevel com a atual reivindicaccedilatildeo da
subjetividade e com a contestaccedilatildeo da autossuficiecircncia e autonomia das totalidades sociaisrdquo
(CATROGA 2009 12)
A resposta a essa pergunta deve observar que haacute na sociedade ritos monumentos
manuais e diversas miacutedias que orientam as lembranccedilas das pessoas Assim devemos superar o
positivismo metodoloacutegico de Halbwaschs e aprender com sua leitura que haacute elementos
externos a balizar nos quais os homens encontram as referecircncias para construir suas narrativas
E ainda como lembra a historiadora Jacy Seixas para o socioacutelogo francecircs a memoacuteria se daacute no
grupo (SEIXAS 2001 107)
Observando que o termo coletivo89 apresenta consideraccedilotildees holiacutesticas como
indagado anteriormente por Catroga (2009 12) salientamos que a proposta de Jan Assmann
(2011 51) de uma memoacuteria cultural nos permite avanccedilar no debate acerca das construccedilotildees
memorialiacutesticas no mundo antigo
O mito foi pensado enquanto uma narrativa fundante que representa em alguma
medida o passado de uma comunidade Nesse caminho os mitos satildeo elementos que constituem
as identidades culturais Para entender a maneira como o preteacuterito eacute reapresentado buscamos a
compreensatildeo do regime de memoacuteria romano Devemos compreender como os homens
89 Wulf Kansteiner afirma que ldquoA maioria dos estudos sobre memoacuteria se concentra na representaccedilatildeo de eventos
especiacuteficos dentro de configuraccedilotildees cronoloacutegicas geograacuteficas e de miacutedia especiacuteficas sem refletir sobre os puacuteblicos
das representaccedilotildees em questatildeo Como resultado a riqueza de novas visotildees agraves culturas histoacutericas passadas e
presentes natildeo podem ser ligadas conclusivamente aos coletivos sociais especiacuteficos e sua consciecircncia histoacutericardquo
(KANSTEINER 2002 179) Logo faz-se necessaacuterio observar a quais grupos os textos luciacircnicos atingem no
caso uma pequena elite letrada entretanto como esses textos eram apresentados em seccedilotildees puacuteblicas haacute uma
grande possibilidade de ampliaccedilatildeo desta audiecircncia obtendo com isso um alcance maior do puacuteblico Entretanto
essas afirmaccedilotildees satildeo bastante conjecturais
69
lembram assim como o uso que fazem dessa lembranccedila ou seja de como eles gerem a
memoacuteria
O regime de memoacuteria depende de um conjunto de elementos que natildeo satildeo
individuais mas externos aos indiviacuteduos No caso que estudamos devemos ressaltar que estava
disponiacutevel aos homens os saberes da retoacuterica principalmente a mnemoteacutecnica ou a arte da
memoacuteria O domiacutenio desses elementos era importante para a inserccedilatildeo poliacutetica e cultural das
comunidades A formaccedilatildeo de bons oradores era a ponte entre as cidades e o poder imperial
uma vez que somente esses especialistas das palavras poderiam fazer reivindicaccedilotildees junto aos
Imperadores eou autoridades romanas sem correr o risco de ofender o dominador Em outras
palavras os perigos de uma comunicaccedilatildeo desastrosa poderiam custar muito caro agraves
comunidades desse modo a formaccedilatildeo de bons oradores era um dado significativo
Outro elemento importante para a compreensatildeo do regime de memoacuteria romano eacute o
modo de validaccedilatildeo discursivo que predominava No mundo em que viveu Luciano a verdade
era dada pela possibilidade de o discurso produzir a sensaccedilatildeo de ser visto
As questotildees referentes ao regime de memoacuteria romano pouco a pouco se afunilam
nos escritos luciacircnicos No intuito de deslindar os mecanismos metanarrativos que satildeo
mobilizados por Luciano colocamos sua relaccedilatildeo com o dizer verdadeiro Com a produccedilatildeo de
enunciados a partir da parreacutesia franqueza Luciano tece sua argumentaccedilatildeo recorrendo
peremptoriamente a essa modalidade do dizer verdadeiro como vemos no proacuteximo toacutepico
17 A coragem da verdade em Luciano entre a poliacutetica imperial e a fala franca
Em seus dois uacuteltimos cursos no Collegravege de France o filoacutesofo francecircs Michel Foucault
ministrou uma seacuterie de conferecircncias sobre uma modalidade especiacutefica do dizer verdadeiro que
se aglutinava a partir da palavra grega Παρρησία (parreacutesia)90 cujo significado tem campo
semacircntico entre sinceridade coragem da verdade fala franca
90 Παρρησία ας significa liberdade de expressatildeo franqueza sinceridade (MALHADAS et alli 2009d 42)
Segundo o dicionaacuterio Liddell-Scott-Jones do ponto de vista etimoloacutegico essa palavra faz a combinaccedilatildeo de πᾶς e
ῥῆσις capacidade plena e inteira de dizer Esse termo foi analisado por Michel Foucault nos dois uacuteltimos cursos
que ele ministrou no Collegravege de France ao analisar esse termo em um sentido mais amplo sobre um modo
especiacutefico de dizer a verdade (FOUCAULT 2012 4) Trata-se de uma forma que coloca o produtor de discursos
em uma situaccedilatildeo especiacutefica ou seja a do parresiasta um indiviacuteduo que se coloca de maneira ousada diante do
mundo e que por este mesmo motivo pode sofrer com as consequecircncias do que diz Ele eacute capaz de usar a parreacutesia
para se comunicar com aquele que estaacute no poder (FOUCAULT 2012 9) o que eacute uma noccedilatildeo primordialmente
poliacutetica Mais adiante analisamos essa ideia em alguns textos luciacircnicos Em portuguecircs existe o temo parreacutesia
registrado no dicionaacuterio Houaiss como ldquoliberdade oratoacuteria afirmaccedilatildeo jocosardquo desdobrando o sentido etimoloacutegico
grego ldquoliberdade de linguagem franquezardquo e a etimologia latina ldquoconfissatildeo espeacutecie de concessatildeordquo registrando
ainda o adjetivo parreacutesico
70
A leitura do corpus luciacircnico nos permite encontrar essa palavra em momentos
bastante especiacuteficos que se relacionam agrave sua postura como escritor e em alguma medida como
cidadatildeo Como forma de compreender o regime de memoacuteria romano no qual o siacuterio se insere
buscamos compreender essa noccedilatildeo em seus mecanismos internos de validaccedilatildeo discursiva
Nesse sentido tal anaacutelise se insere tambeacutem no campo de uma Histoacuteria do dizer verdadeiro
como foi proposto por Foucault Entretanto apartamo-nos da anaacutelise desse filoacutesofo uma vez
que entendemos o papel das formaccedilotildees discursivas na escrita dos textos mas natildeo descartamos
a intencionalidade que o autor confere a seus escritos Haacute no texto literaacuterio elementos criadores
que expressam habilidades e processos criativos (COMPAGNON 2012 94)
Trata-se de uma modalidade do dizer verdadeiro de uma forma na qual o indiviacuteduo
manifesta a verdade e a mesma eacute reconhecida pelo grupo (FOUCAULT 2011 4) A parreacutesia
que aqui traduzimos por fala franca natildeo pode ser confundida em sua verdade com outras
formaccedilotildees discursivas
() o parresiasta natildeo eacute o profeta que diz a verdade desvelando em nome de
outro e enigmaticamente o destino O parresiasta natildeo eacute um saacutebio que em
nome da sabedoria diz quando quer e sobre o fundo de seu proacuteprio silecircncio
o ser e a natureza (a phyacutesis) O parresiasta natildeo eacute o professor o instrutor o
homem do know-how que diz em nome de uma tradiccedilatildeo a teacutekhne
(FOUCAULT 2011 24-25)
Em seu curso o autor da Histoacuteria da Loucura analisa algumas passagens dos escritos
de Luciano sem a intenccedilatildeo de compreendecirc-los Seu intento eacute deslindar a parreacutesia ciacutenica em
algumas imagens construiacutedas no corpus luciacircnico Destarte o uso que Foucault faz desses
escritos estaacute no encontro das reflexotildees sobre o dizer verdadeiro e a maneira pela qual Luciano
se construiu enquanto escritor
Em 1964 Giuseppe Scarpat publicou Parrhesia Storia del termine e delle sue
traduzioni in latino em que ele traccedila um panorama do uso dessa palavra nas assembleias
atenienses ou seja seu uso poliacutetico fundamental para a existecircncia da democracia claacutessica Ele
investiga principalmente seu uso na comeacutedia claacutessica e entre os filoacutesofos Nessa investigaccedilatildeo
o autor cita Luciano em apenas duas passagens quando fala da parreacutesia ciacutenica (SCARPAT
1964 125-148)
Recentemente foi publicado o livro Free speech in classical antiquity organizado por
Ineke Sluiter e Ralph M Rosen que apresenta capiacutetulos bastante ricos sobre a temaacutetica
novamente sobre seu uso na comeacutedia e na vida poliacutetica ateniense Entretanto seu recorte
temaacutetico prioriza o periacuteodo grego claacutessico (SLUITER amp ROSEN 2004)
Especificamente sobre os escritos de Luciano de Samoacutesata temos o artigo intitulado
71
La notion de parrheacutesia chez Lucien de Valeacuterie Visa-Ondaccediluhu que objetiva analisar como a
literatura grega do periacuteodo imperial utiliza elementos que fazem parte da tradiccedilatildeo grega
claacutessica Dessa forma o termo parreacutesia eacute pensado como componente dessa heranccedila ldquoem um
movimento de mimeacutesis vista natildeo como simples imitaccedilatildeo mas como recriaccedilatildeordquo (VISA-
ONDACcedilUHU 2006 262)
Tais reflexotildees nos ajudam a analisar os escritos luciacircnicos uma vez que esse termo
aparece em momentos significativos A hipoacutetese que levantamos eacute que o autor siacuterio se coloca
como um produtor de discursos que busca na fala franca sua construccedilatildeo literaacuteria ou seja ele se
coloca nos textos com o horizonte de construccedilatildeo textual a partir da parreacutesia No corpus
luciacircnico aparecem quarenta e seis termos da famiacutelia de παρρησία παρρησία (Phal A 9 Nigr
15 3 Demon 3 15 Demon 11 6 Demon 50 10 J conf 5 4 J trag 19 2 J trag 32 28
Tim 36 9 Char 13 1 Vict auct8 15 Pisc 17 8 Merc Cond 416 Alex 47 18 Syr Dea
22 9 Peregr 18 16 Fug 12 16 Lex 17 11 Pseudol 1 12 Pseudol 4 3 Pseudol 4 20
Deor Conc 2 6 Deor Conc 4 2 Deor Conc 6 10 Deor Conc 14 1 Abd 7 14 Hist Co
41 2 Hist Co 44 2 Hist Co 61 8 Apol 13 1 Hermot 51 10 D mort 20 9 22 D mort
21 3 14 D mort21 4 8) παρρησιάξομαι (J Trag 19 5 J Trag 41 21 J Trag 44 12 Tim
11 4 Adv Ind 30 8 Pseudol 3 2) παρρησιάαστής (Deor Conc 3 12) παρρησιαστκός
(Cal 23 7) ἀπαρρησίατος (Cal 9 1) Geralmente essa noccedilatildeo aparece secundada de outras
duas importantes noccedilotildees gregas ἐλευθερία (Nigr 15 3 Demom 3 15 Demon 11 6 Cal 23
7 Char 13 1 Vict Auct 8 15 Pisc 17 8 Peregr 18 16 Lex 17 11 Pseudol 1 12 Deor
Conc 2 6 Abd 7 14 Hist Co 41 2 Hist Co 61 8 D Mort 20 9 22 D Mort 21 3 14)
e ἀλήθεια (Nigr 15 3 Demom 3 15 Cal 9 1 J Conf 5 4 Tim 36 9 Char 13 1 Vict
Auct 8 15 Merc Cond 4 16 Alex 47 18 Lex 17 11 Pseudol 4 3 Pseudol 4 20 Abd
7 14 Hist co 41 2 Hist co 44 2 Hist co 61 8 Hermot 51 10 D mort 21 3 14 D mort
21 4 8) respectivamente Liberdade e Verdade
Foucault identificou na parreacutesia uma caracteriacutestica da forma ciacutenica de dizer a verdade
O que estaacute em conformidade por exemplo com o Ciacutenico presente no Leilatildeo dos Filoacutesofos O
comprador pergunta ao filoacutesofo ciacutenico a que ele se dedica e ele responde ldquo Sou libertador de
homens e meacutedicos de afliccedilotildees Em uma palavra quero ser profeta da verdade e da franqueza
(παρρησίας)rdquo (Luciano Vit Auct 8) Nesse passo o personagem Ciacutenico eacute o porta-voz da
verdade parreacutesica
O termo profeta natildeo pode ter a conotaccedilatildeo judaica daquele que conhece o futuro graccedilas
72
agrave divindade mas deve aproximar-se da figura de Tireacutesias91 que conhece a verdade no presente
no futuro e no passado enquanto ela estaacute oculta aos homens Por exemplo natildeo basta ter a
verdade visto que eacute necessaacuterio que o filoacutesofo apresente um mecanismo de enunciaccedilatildeo que
permite que ela seja dita mesmo em condiccedilotildees desfavoraacuteveis (HADOT 2008 52-53)
Trata-se de uma caracteriacutestica da parreacutesia colocar o dono do discurso em condiccedilotildees
perigosas No caso do diaacutelogo trata-se de um filoacutesofo vendido como escravo que jaacute adianta ao
comprador que iraacute dizer a verdade O opuacutesculo O leilatildeo dos filoacutesofos serve de mote para o texto
O pescador ou os ressuscitados no qual o siacuterio eacute acusado pelos filoacutesofos ilustres de tecirc-los
desmoralizado ao fazer com que fossem vendidos em praccedila puacuteblica como se fossem escravos
o que era uma afronta contra os filoacutesofos e a filosofia Ele eacute julgado em um tribunal onde estatildeo
presentes diversas personificaccedilotildees como a Filosofia a Virtude a Verdade entre outras Em um
longo trecho ele explica que natildeo tinha a intenccedilatildeo de criticar a Filosofia ou os grandes mestres
mas seus seguidores que soacute se interessavam por riquezas e fama Na conclusatildeo do livro Luciano
faz uma ordaacutelia para distinguir os verdadeiros filoacutesofos dos falsos Ele convida todos os ditos
filoacutesofos para receber presentes e nesse momento uma multidatildeo se apresenta Entretanto ele
afirma que os verdadeiros filoacutesofos encontrariam a felicidade e a Filosofia personificada
afugentou os falsos Como os maus fogem da puniccedilatildeo Luciano coloca ouro em um anzol o
que os atrai por isso o nome do opuacutesculo
A anaacutelise detida desse texto ajuda em dois sentidos 1) compreender como Luciano
percebe sua atitude diante da escrita 2) entender os laccedilos construiacutedos entre o dizer verdadeiro
e os mecanismos de poder O mote do texto eacute justamente a defesa de Luciano ao ataque dos
filoacutesofos que satildeo satirizados em seu escrito Nele o escritor satiriza os filoacutesofos de seu tempo
aos quais a filosofia natildeo ensinou uma maneira melhor de viver Trata-se de um registro que
exemplifica a tese de Pierre Hadot na qual ele defende que a filosofia no mundo antigo eacute uma
forma de viver e natildeo um trabalho de especulaccedilatildeo abstrato (HADOT 2008 65)
A atitude dos pensadores diante de Luciano pressupotildee a hierarquizaccedilatildeo do discurso
Soacutecrates ndash () Mas de que modo iremos castigaacute-lo Imaginemos contra ele
uma morte variada capaz de agradar a todos noacutes Sim ele merece sofrer sete
mortes por cada um de noacutes
Um filosoacutefo mdash A minha opiniatildeo eacute que o tipo deve ser empalado
Segundo filosoacutefo mdash Mas por Zeus Primeiro deve ser flagelado
91 Adivinho presente nas narrativas miacuteticas do ciclo tebano Teria sido mulher por sete anos de sua juventude Um
dia foi inquirido por Zeus e Hera para saber quem tinha mais prazer sexual o homem ou a mulher Sem hesitar
ele afirmou que era a mulher pois tinha um gozo nove vezes mais prazeroso que o do homem Por esse motivo
Hera encoleirou-se e puniu-o com a cegueira Zeus para compensar permitiu que ele vivesse e enxergasse mais
que os outros homens Em vaacuterios momentos eacute procurado no Hades por heroacuteis vivos como eacute o caso do Odisseus
no canto XI da Odisseia (GRIMAL 2005 450-451)
73
Terceiro filoacutesofo mdash E antes disso devem arrancar-lhe os olhos
Quarto filoacutesofo mdash E ainda antes devem cortar-lhe a liacutengua
Soacutescrates mdash Que eacute que te parece oacute Empeacutedocles
Empeacutedocles mdash Que deve ser lanccedilado nas crateras para aprender a natildeo
insultar os melhores que ele (LucianoPisc 2)92
O primeiro ponto que nos interessa satildeo as penas propostas pelos filoacutesofos sem o devido
processo legal jaacute que o narrador iraacute reivindicar um julgamento justo Os filoacutesofos sugerem que
o personagem seja empalado uma pena comum no Impeacuterio mas considerada a mais ultrajante
sendo que essa deveria ser precedida pelo supliacutecio do corpo a perda da visatildeo e da liacutengua A
morte do personagem infrator deveria ser precedida pelo sofrimento fiacutesico e moral assim como
pela incapacitaccedilatildeo do exerciacutecio da fala A infraccedilatildeo cometida no discurso (insulto) natildeo pode ser
tolerada por quem estaacute hierarquicamente em uma condiccedilatildeo superior O crime cometido pelo
escritor eacute a praacutetica do insulto contido na ordem do discurso
Aprendemos com Foucault que o discurso precisa ser controlado selecionado e
redistribuiacutedo por meio de mecanismos que tecircm a funccedilatildeo de dar a medida de eficaacutecia enunciativa
em cada situaccedilatildeo (FOUCAULT 1996 8-9) O proacuteximo passo do texto coloca um elemento
importante Luciano (auto)nomeia o escritor de Parresiacuteades (Παρρησίαδης) palavra derivada
de parreacutesia com o sufixo ndashδης que significa ldquofilho derdquo tendo como traduccedilatildeo possiacutevel o
Sincero o Franco
No passo seguinte esse personagem traccedila um diaacutelogo com o filoacutesofo Platatildeo por meio
de citaccedilotildees de Homero e de Euriacutepedes Como afirma Catherine Darbo-Peschanski a citaccedilatildeo eacute
feita em um sistema de negociaccedilatildeo (DARBO-PESCHANSKI 2004 10) entre o agente que
produz o enunciado e o ouvinte que compartilha a referecircncia usar versos homeacutericos cria entre
o escritor acusado e o filoacutesofo acusador uma empatia por compartilharem de elementos
culturais presentes na Paideia
O uso desses elementos evidencia a estrateacutegia discursiva de trazer o oponente para o
92 ldquoΣΩΚΡΑΤΗΣ
[] τῷ τρόπῳ δέ τις αὐτὸν καὶ μετέλθῃ ποικίλον γάρ τινα θάνατον ἐπινοῶμεν κατ αὐτοῦ πᾶσιν ἡμῖν ἐξαρκέσαι
δυνάμενον καθ ἕκαστον γοῦν ἑπτάκις δίκαιός ἐστιν ἀπολωλέναι
ΦΙΛΟΣΟΦΟΣ
Ἐμοὶ μὲν ἀνασκολοπισθῆναι δοκεῖ αὐτόν
ΑΛΛΟΣ
Νὴ Δία μαστιγωθέντα γε πρότερον
ΑΛΛΟΣ
Πολὺ πρότερον τοὺς ὀφθαλμοὺς ἐκκεκολάφθω
ΑΛΛΟΣ
Τὴν γλῶτταν αὐτὴν ἔτι πολὺ πρότερον ἀποτετμήσθω
ΣΩΚΡΑΤΗΣ
Σοὶ δὲ τί Ἐμπεδόκλεις δοκεῖ
ΕΜΠΕΔΟΚΛΗΣ
Εἰς τοὺς κρατῆρας ἐμπεσεῖν αὐτόν ὡς μάθῃ μὴ λοιδορεῖσθαι τοῖς κρείττοσινrdquo
74
mesmo campo e mostrar a ele habilidade no uso daqueles utensiacutelios culturais Entre palavras
duras que exigem o supliacutecio do escritor Parresiacuteades afirma ldquosoacute por causa de palavras agora
ides me matarrdquo (Luciano Pisc 3)93
Notemos os laccedilos que aproximam o discurso parresiaacutestico do perigo da aniquilaccedilatildeo
daquele que profere essa modalidade de discurso verdadeiro Esse discurso se funda na ousadia
de dizer principalmente de se confrontar com o poder estabelecido Quando falamos em poder
expressamos uma ideia capilar de suas relaccedilotildees Natildeo se trata de uma investigaccedilatildeo somente da
relaccedilatildeo de Luciano com o Imperador e com as instituiccedilotildees imperiais mesmo que isso nos
interesse Tambeacutem se cuida nesta Tese de investigar o poder do discurso justamente do ponto
de vista em que Luciano se coloca e discrimina os perigos da franqueza
Observem-se os passos do texto uma vez que o escritor eacute acusado pelos grandes
filoacutesofos de escarnecer dos mesmos Luciano mais uma vez mobiliza seu conhecimento da
tradiccedilatildeo grega no momento em que os filoacutesofos desejam puni-lo O personagem clama por um
julgamento justo A contradiccedilatildeo eacute colocada agrave prova
Luciano usa a memoacuteria cultural helecircnica ao retomar os diversos filoacutesofos
principalmente a figura ceacutelebre de Soacutecrates cujo nome vincula-se diretamente a um julgamento
injusto Na memoacuteria dos gregos o julgamento desse filoacutesofo representa uma inflexatildeo que
colocou natildeo um homem como reacuteu mas toda a indagaccedilatildeo filosoacutefica Trata-se de um topos caro
para representar a injusticcedila contra o pensamento Nesse sentido Luciano potencializa a ironia
presente nos descaminhos que a filosofia tomou em seu tempo ao colocar na boca de um
personagem que representava Soacutecrates a seguinte censura ldquoSim que isso de [condenar] antes
do julgamento natildeo eacute proacuteprio de noacutes mas de gente terrivelmente vulgar de certas pessoas
irasciacuteveis que acham que a justiccedila consiste na violecircnciardquo (Luciano Pisc 10)94 Nessa
declaraccedilatildeo o escritor mobiliza a tradiccedilatildeo do julgamento e condenaccedilatildeo de Soacutecrates e
consequentemente a sua injusticcedila No mais ele ainda coloca nos laacutebios do filoacutesofo ateniense a
caracterizaccedilatildeo das pessoas que natildeo se controlam que satildeo vulgares e que fazem justiccedila com as
proacuteprias matildeos
Essa contestaccedilatildeo faz com que o leitorouvinte tenha maior empatia com a trama do
diaacutelogo Nesse enredo Parresiacuteades eacute conduzido para o julgamento diante da Filosofia
personificada Entretanto essa personagem natildeo se mostra satisfeita com a conduta dos ldquograndes
93 ΠΑΡΡΗΣΙΑΔΗΣ
Νῦν οὖν ἕκατι ῥημάτων κτενεῖτέ με 94 ldquoΣΩΚΡΑΤΗΣ
[] τὸ πρὸ δίκης γὰρ οὐχ ἡμέτερον ἀλλὰ δεινῶς ἰδιωτικόν ὀργίλων τινῶν ἀνθρώπων καὶ τὸ δίκαιον ἐν τῇ χειρὶ
τιθεμένωνrdquo
75
filoacutesofosrdquo
Nesse passo a Filosofia ganha formas humanas sendo personificada juntamente com
a Virtude (Ἀρετλή) a Prudecircncia (Σωφροσύνη) a Justiccedila (Δικαιοσύνη) a Educaccedilatildeo (Παιδεία)
e a Verdade (Ἀλήθεια) A Verdade eacute descrita como desarrumada querendo sempre escapulir eacute
vista com dificuldade (LucianoPisc 16) Ela natildeo vecirc necessidade de participar do julgamento
jaacute que sabe de tudo Entretanto em face dos pedidos da Filosofia e de Parreacutesiades para que ela
os acompanhe exige a presenccedila da Liberdade (Ἐλευθερία) da Sinceridade (Παρρησία) e da
Comprovaccedilatildeo (Ἔλεγχος) e sabe que Parresiacuteades natildeo eacute culpado de nada que lhe imputam A
Comprovaccedilatildeo sugere a presenccedila da Demonstraccedilatildeo (Απόδειξις) (LucianoPisc 17) todas
personificadas a fim de participarem do julgamento
Dois pontos se destacam na confecccedilatildeo do diaacutelogo 1) o conhecimento luciacircnico das
ferramentas usadas pela filosofia para embasar seus argumentos 2) a estrateacutegia de vencer o
debate com os recursos que satildeo proacuteprios do inimigo O discurso que Luciano constroacutei conteacutem
elementos do fazer filosoacutefico mas natildeo se confunde com ele Trata-se de recursos retoacutericos para
a fundamentaccedilatildeo de uma argumentaccedilatildeo
Os filoacutesofos ficam incomodados com a presenccedila da Verdade A Filosofia interroga se
eles temem que ela diga mentiras ao que eles respondem em coro ldquoNatildeo se trata disso mas o
tipo eacute terrivelmente manhoso e adulador pelo que acabaraacute por convencecirc-lardquo (Luciano Pisc
18)95 A Filosofia se lembra da presenccedila da Justiccedila entre eles Nesse ponto ela indaga
Parresiacuteades sobre sua origem
Sou siacuterio filosofia nas margens do Eufrates Mas para quecirc tudo isso Na
verdade sei de muitos desses meus adversaacuterios que natildeo satildeo menos baacuterbaros
de nascimento que eu mas apesar disso a sua iacutendole e a sua cultura natildeo
condizem com as Solenes dos Cipriotas dos Babilocircnios ou dos Estagiristas
Todavia para ti natildeo faz qualquer diferenccedila que um homem tenha uma
pronuacutencia baacuterbara desde que sua maneira de pensar se revele reta e justa96
(LUCIANO Pisc 19)
Repetimos essa citaccedilatildeo pois como ressaltamos anteriormente as identidades no
mundo antigo se caracterizam pelo processo de aprendizado do complexo cultural existente O
95 ldquoΠΛΑΤΩΝ
Οὐ τοῦτο ἀλλὰ δεινῶς πανοῦργός ἐστιν καὶ κολακικός ὥστε παραπείσει αὐτήνrdquo 96 ldquoΦΙΛΟΣΟΦΙΑ
Πατρὶς δέ
ΠΑΡΡΗΣΙΑΔΗΣ
Σύρος ὦ Φιλοσοφία τῶν Ἐπευφρατιδίων ἀλλὰ τί τοῦτο καὶ γὰρ τούτων τινὰς οἶδα τῶν ἀντιδίκων μου οὐχ ἧττον
ἐμοῦ βαρβάρους τὸ γένος ὁ τρόπος δὲ καὶ ἡ παιδεία οὐ κατὰ Σολέας ἢ Κυπρίους ἢ Βαβυλωνίους ἢ Σταγειρίτας
καίτοι πρός γε σὲ οὐδὲν ἂν ἔλαττον γένοιτο οὐδ εἰ τὴν φωνὴν βάρβαρος εἴη τις εἴπερ ἡ γνώμη ὀρθὴ καὶ δικαία
φαίνοιτο οὖσαrdquo
76
escritor deixa claro que eacute siacuterio mas isso natildeo o torna menos grego jaacute que os filoacutesofos que o
acusam tambeacutem natildeo satildeo nascidos em cidades gregas ao lembrar a cidade de Soles na Ciliacutecia
cidade natal de Criacutesipo Estagira paacutetria de Aristoacuteteles Chipre que eacute terra natal de Zenatildeo
Babiloacutenia na Aacutesia Menor terra de Dioacutegenes o estoico Ou seja o sotaque baacuterbaro natildeo invalida
sua fala se ela estiver de acordo com as exigecircncias culturais helecircnicas A identidade luciacircnica
natildeo se constroacutei a partir da liacutengua mas de um modo de dizer que eacute possiacutevel de ser partilhado a
partir da Paideia Tornar-se grego era um processo demorado que para os homens de letras
significava tecer sua autorrepresentaccedilatildeo a partir do diaacutelogo criativo com os textos canocircnicos
principalmente Homero e Hesiacuteodo (WHITMARSH 2004 23-27)
A proacutexima pergunta que a Filosofia faz ao escritor coincide com uma das perguntas
que os compradores fizeram aos filoacutesofos no Leilatildeo dos Filoacutesofos ldquoQual a sua tekhne97rdquo
(Luciano Pisc 20) A resposta eacute dada em um jogo de palavras em que o escritor afirmava odiar
a fanfarronice a impertinecircncia e a mentira ou seja tudo que eacute proacuteprio de homens miseraacuteveis
A Filosofia lhe pergunta se tudo que ele faz estaacute contaminado de oacutedio e ele afirma que ama a
verdade a beleza a simplicidade o que pode ser resumido assim ldquoTu Filosofia conheces
essas coisas melhor que eu Mas eu sou desta conformidade odeio os maus e elogio e amo os
bonsrdquo98 (LucianoPisc 20)
Aqui estaacute outro aspecto interessante que permeia os textos luciacircnicos principalmente
os diaacutelogos Como afirmou Brandatildeo (2001 25-27) Luciano faz uma criacutetica agrave Paideia como um
todo ou seja agrave proacutepria cultura No diaacutelogo Parresiacuteades lanccedila as premissas para a conclusatildeo a
que chegaraacute Entretanto natildeo conveacutem adiantar o texto devemos seguir a sua loacutegica a fim de
compreender como a parreacutesia torna-se significativa para a construccedilatildeo do discurso desse
escritor Como afirma Platatildeo ldquoParresiacuteades eacute um oradorrdquo99 (Luciano Pisc 23) em
contraposiccedilatildeo aos filoacutesofos
O siacuterio opotildee como a tradiccedilatildeo jaacute o faz filosofia e retoacuterica O acusado natildeo eacute um
pensador autecircntico mas um orador aquele que domina a linguagem a fim de convencer a
plateia de qualquer tese Natildeo se trata de um problema de conteuacutedo e sim de forma Dizer que
Parresiacuteades eacute um orador enfatiza que ele usaraacute de todos os artifiacutecios da linguagem para
convencer os ouvintes
No texto Acerca do parasita ou que o parasitismo eacute uma arte o escritor constroacutei uma
97 ldquoἡ τέχνη δέ σοι τίςrdquo 98 ldquoΠΑΡΡΗΣΙΑΔΗΣ
Ἄμεινον σὺ ταῦτα οἶσθα ὦ Φιλοσοφία τὸ μέντοι ἐμὸν τοιοῦτόν ἐστιν οἷον τοὺς μὲν πονηροὺς μισεῖν ἐπαινεῖν
δὲ τοὺς χρηστοὺς καὶ φιλεῖνrdquo 99 ldquoῥήτωρ δὲ ὁ Παρρησιάδης ἐστίνrdquo
77
imagem irocircnica dos oradores caracterizando-os como inuacuteteis nos momentos de guerra ou seja
ora ficam dentro das cidades fazendo discursos sem conhecer o campo de batalha ou entatildeo
quando vatildeo para o combate satildeo grandes covardes que abandonam seu posto facilmente O
personagem Simon afirma que
Simon - Dentre os oradores Isoacutecrates natildeo soacute natildeo saiu jamais para a guerra
como por covardia creio nem sequer subiu diante de um tribunal entendo
que este tinha apenas a voz Por acaso Demades Eacutesquines e Filoacutecrates na
repentina declaraccedilatildeo de guerra contra Filipe natildeo entregaram por temor a
cidade e seus proacuteprios habitantes a Filipe e continuaram exercendo a poliacutetica
em Atenas segundo os interesses dele100 (Luciano Par 42)
O escritor continua fazendo a comparaccedilatildeo entre as palavras dos oradores e sua atuaccedilatildeo
diante dos perigos da guerra contra um inimigo tatildeo opressor Em uma frase bastante irocircnica o
personagem luciacircnico afirma ldquotodos eles estavam exercendo a palavra e natildeo a virtuderdquo101
(Luciano Par 43) Observamos que na formaccedilatildeo discursiva na qual o siacuterio inseria seus textos
o discurso que se prendia somente ao como era dito deveria ser questionado uma vez que seria
sinocircnimo de covardia Aquele que tinha palavras prontas seria incapaz de exercer a virtude
com todos os riscos que ela apresenta Suas palavras natildeo poderiam ser francas como o siacuterio
propunha
Observemos que se trata de uma questatildeo de linguagem de construccedilatildeo textual (beleza
e eficaacutecia) e de ordem moral (equidade entre o que se diz e o que se pratica ou coerecircncia entre
os modelos assumidos e sua accedilatildeo diaacuteria) Coloca-se em xeque o poder do discurso cuja
tentativa de monopoacutelio estaacute presente na cultura grega desde o debate entre os filoacutesofos e os
sofistas do seacuteculo V aC Assim poderiacuteamos dizer que se cuida nesse opuacutesculo de renovar
esse debate sob o signo da parreacutesia
Essa modalidade do dizer verdadeiro como bem mostrou Foucault vincula-se ao
poder
Parresiasta assume o risco Ele arrisca a relaccedilatildeo que tem com aquele a quem
se dirige E dizendo a verdade longe de estabelecer um viacutenculo positivo de
saber comum de heranccedila de filiaccedilatildeo de reconhecimento de amizade pode
ao contraacuterio provocar sua coacutelera indispor-se com o inimigo suscitar a
hostilidade da cidade acarretar a vinganccedila ou a puniccedilatildeo por parte do rei se
for um mau soberano ou se for tiracircnico E nesse risco pode expor sua proacutepria
100 ldquoΣΙΜΩΝ
Τῶν μὲν τοίνυν ῥητόρων Ἰσοκράτης οὐχ ὅπως εἰς πόλεμον ἐξῆλθέν ποτε ἀλλ οὐδ ἐπὶ δικαστήριον ἀνέβη διὰ
δειλίαν οἶμαι ὅτι οὐδὲ τὴν φωνὴν διὰ τοῦτο εἶχεν ἔτι τί δ οὐχὶ Δημάδης μὲν καὶ Αἰσχίνης καὶ Φιλοκράτης ὑπὸ
δέους εὐθὺς τῇ καταγγελίᾳ τοῦ Φιλίππου πολέμου τὴν πόλιν προὔδοσαν καὶ σφᾶς αὐτοὺς τῷ Φιλίππῳ καὶ
διετέλεσαν Ἀθήνησιν ἀεὶ τὰ ἐκείνου πολιτευόμενοι []rdquo 101 ldquoΤΥΧΙΑΔΗΣ
Ἐπίσταμαι ταῦτα ἀλλ οὗτοι μὲν ῥήτορες καὶ λόγους λέγειν ἠσκηκότες ἀρετὴν δὲ οὔrdquo
78
vida pois ele pode pagar com a existecircncia a verdade que disse (FOUCAULT
2011 130)
Ter a coragem de dizer certas verdades abre a possibilidade do oacutedio e da dilaceraccedilatildeo
Eacute esse caminho que o texto que analisamos no momento mostra com a implicaccedilatildeo de que a
verdade dita em sua modalidade parresiaacutestica pode causar a morte daquele que a diz
O siacuterio eacute acusado de fazer a populaccedilatildeo rir dos filoacutesofos como os comediantes fizeram
outrora No entanto as comeacutedias eram apresentadas durante os festivais dionisiacuteacos eram parte
de um culto especial a uma divindade importante Logo protegiam-se da censura velada pela
aura de sacralidade do culto a Dioniacuteso Os textos luciacircnicos no entanto apresentam-se em outro
contexto
Esse clima de sacralidade natildeo faz parte do texto luciacircnico pois em seu regime de
manifestaccedilatildeo artiacutestica natildeo estatildeo presentes os elementos sagrados do culto a Dioniacutesio assim
natildeo havia tais proteccedilotildees em um texto como o Leilatildeo dos Filoacutesofos Ele eacute culpado por aliciar o
Diaacutelogo gecircnero caracteriacutestico da escrita filosoacutefica e ainda o filoacutesofo Menipo de Gandara
Realmente o caso seria de algum modo desculpaacutevel se ele agisse em sua
defesa e natildeo por sua iniciativa pessoal Mas o pior de tudo eacute o fato de ele ao
proceder desse modo se abrigar sob o teu nome Filosofia de se insinuar no
Diaacutelogo nosso servidor utilizando-o contra noacutes como seu auxiliar e ator e a
juntar a tudo isto persuadiu Menipo um nosso companheiro a participar
frequentemente nas suas graccedilas de comeacutedia este eacute o uacutenico que natildeo estaacute aqui
presente nem participa conosco na acusaccedilatildeo deste modo traindo a nossa
comunidade102 (LucianoPisc 26)
Luciano lembra sempre ao leitor que o orador apresenta um discurso no qual a forma
eacute essencial para sua compreensatildeo desprestigiando dessa maneira o conteuacutedo do mesmo
Assim a defesa de Parresiacuteades move-se sob uma velha questatildeo da filosofia a dicotomia entre
essecircncia e aparecircncia Colocada no tribunal pela aproximaccedilatildeo com o teatro toda a accedilatildeo eacute ligada
aos palcos agrave atuaccedilatildeo dos atores Parresiacuteades natildeo fugiraacute desse campo
Sigamos o argumento da defesa no qual ele resguarda que natildeo acusou a Filosofia ou
os grandes filoacutesofos do passado helecircnico mas aqueles que se apropriavam dela
Na verdade logo que constatei quantas qualidades repugnantes precisavam de
possuir os advogados mdash falsidade mentira descaramento gritaria
altercaccedilotildees e mil outras manhas mdash abandonei como era natural essa
atividade e tendo-me entregado oacute Filosofia aos teus altos ideais decidi
dedicar o resto dos meus dias a viver sob a tua proteccedilatildeo como se apoacutes passar
102 ldquoεἶχε γὰρ ἄν τινα συγγνώμην αὐτῷ τὸ πρᾶγμα εἰ ἀμυνόμενος ἀλλὰ μὴ ἄρχων αὐτὸς ἔδρα Ὃ δὲ πάντων
δεινότατον ὅτι τοιαῦτα ποιῶν καὶ τὸ σὸν ὄνομα ὦ Φιλοσοφία ὑποδύεται καὶ ὑπελθὼν τὸν Διάλογον ἡμέτερον
οἰκέτην ὄντα τούτῳ συναγωνιστῇ καὶ ὑποκριτῇ χρῆται καθ ἡμῶν ἔτι καὶ Μένιππον ἀναπείσας ἑταῖρον ἡμῶν
ἄνδρα συγκωμῳδεῖν αὐτῷ τὰ πολλά ὃς μόνος οὐ πάρεστιν οὐδὲ κατηγορεῖ μεθ ἡμῶν προδοὺς τὸ κοινόνrdquo
79
por vagas e tormentas tivesse arribado a um porto tranquilo 103(Luciano
Pisc 29)104
O personagem identifica uma mudanccedila no estatuto do filoacutesofo que jaacute natildeo observa os
modos de ser necessaacuterios para abraccedilar o conhecimento e construir uma forma de viver coerente
Jaacute nos Diaacutelogos dos mortos Luciano questiona a contradiccedilatildeo entre a forma apresentada pelos
filoacutesofos e seu modo de viver Em muitos momentos o leitor ri da conduta dos filoacutesofos pelo
fato de ela ser distorcida do ideal de harmonia entre o que se diz e o que se faz Os filoacutesofos
criticados por Luciano satildeo bajuladores licenciosos e gananciosos ou seja satildeo charlatotildees
Parresiacuteades escolhe o lado da Filosofia jaacute que a oratoacuteria coloca o sujeito na posiccedilatildeo
de produtor de discursos que se preocupam com a beleza e a eficaacutecia da argumentaccedilatildeo em
detrimento da verdade Luciano teatraliza o debate levando-o para o campo da miacutemesis Os
filoacutesofos poderiam ser imitados vestimentas barbas entre outras caracteriacutesticas Seria como
se um ator efeminado tentasse representar Heacuteracles105 sendo motivo de chacota dos
espectadores (Luciano Pisc 31) Parreacutesiades se envergonhou pelos filoacutesofos Ser motivo de
riso natildeo eacute o uacutenico problema ldquoSempre que as pessoas viam um destes cometer algum ato
perverso vergonhoso ou indecente natildeo faltava quem acusasse a proacutepria Filosofiardquo (Luciano
Pisc 32)106
O escritor enfatiza que sua criacutetica natildeo eacute agrave Filosofia que ele ama mas agravequeles que a
utilizam apenas para benefiacutecio proacuteprio sem o devido conhecimento sem vivecirc-la em sua
inteireza e harmonia Esses falsos filoacutesofos ensinam por dinheiro uma filosofia que natildeo vivem
(LucianoPisc 32) Lembremos que desde o periacuteodo claacutessico grego107 existem inuacutemeras
querelas entre filoacutesofos e sofistas sobre ensinar de graccedila ou receber por isso Logo para o
personagem eacute uma contradiccedilatildeo performaacutetica um filoacutesofo que recebe para ensinar Aleacutem disso
103 Neste passo a sugestatildeo de um fato muito debatido pela criacutetica luciacircnica que eacute sua pretensa conversatildeo agrave
filosofia Tal assunto natildeo nos interessa neste momento uma vez que natildeo se cuida aqui de definir os passos ldquoreaisrdquo
da vida de Luciano mas de compreender o regime de historicidades presente em seus textos 104 ldquoἘγὼ γὰρ ἐπειδὴ τάχιστα συνεῖδον ὁπόσα τοῖς ῥητορεύουσιν ἀναγκαῖον τὰ δυσχερῆ προσεῖναι ἀπάτην καὶ
ψεῦδος καὶ θρασύτητα καὶ βοὴν καὶ ὠθισμοὺς καὶ μυρία ἄλλα ταῦτα μέν ὥσπερ εἰκὸς ἦν ἀπέφυγον ἐπὶ δὲ τὰ
σά ὦ Φιλοσοφία καλὰ ὁρμήσας ἠξίουν ὁπόσον ἔτι μοι λοιπὸν τοῦ βίου καθάπερ ἐκ ζάλης καὶ κλύδωνος εἰς εὔδιόν
τινα λιμένα ἐσπλεύσας ὑπὸ σοὶ σκεπόμενος καταβιῶναιrdquo 105 Luciano apresenta a imagem do Heacuteracles travestido no texto Como se escreve a Histoacuteria Da mesma maneira
essa imagem representa a contradiccedilatildeo o erro o absurdo que gera o riso e impede a construccedilatildeo de um discurso ou
cena coerente (Luciano Hist Co 10) 106 ldquoοἱ γὰρ ἄνθρωποι εἴ τινα τούτων ἑώρων πονηρὸν ἢ ἄσχημον ἢ ἀσελγές τι ἐπιτηδεύοντα οὐκ ἔστιν ὅστις οὐ
Φιλοσοφίαν αὐτὴν ᾐτιᾶτο []rdquo 107 Eacute interessante notar como um apologista cristatildeo do tempo de Luciano Justino de Roma em seu Diaacutelogo com
Trifatildeo tambeacutem faz criacuteticas aos filoacutesofos de seu tempo Antes de conhecer a doutrina cristatilde ele buscou o
conhecimento filosoacutefico entretanto abandonou os filoacutesofos por diversos motivos por exemplo ele abandona o
filoacutesofo parapiteacutetico por ele cobrar para ensinar (Justino Diaacutelogo com Trifatildeo 2 3) Esse caso exemplifica como
ainda no tempo de Luciano natildeo se viam com bons olhos os filoacutesofos que cobravam para ensinar
80
esses filoacutesofos satildeo covardes preguiccedilosos ou seja cheios de viacutecios nunca viveram a verdadeira
filosofia e ainda por cima satildeo bajuladores dos ricos Esse mau filoacutesofo condensaria o oposto do
que os grandes filoacutesofos pregaram
Para consumar essa anaacutelise citamos mais uma passagem na qual a Filosofia chama
Parreacutesiades e diz ldquoMuito bem Avanccedila Parresiacuteades Absolvemos-te da acusaccedilatildeo ganhaste por
unanimidade e fica sabendo que de hoje em diante eacutes caacute dos nossosrdquo (LucianoPis 39)108
Parreacutesiades personificaccedilatildeo da Sinceridade deveria sentar-se com a Filosofia a Verdade a
Virtude e todas as personificaccedilotildees presentes Natildeo podemos confundi-las Parresiacuteades natildeo eacute a
verdade em si nem a virtude
Vejamos agora outros momentos em que a palavra parreacutesia ocorre no corpus luciacircnico
Acreditamos que seu uso atesta o que exemplificamos com a anaacutelise do opuacutesculo O pescador
ou os ressuscitados isto eacute que a maneira como Luciano se porta diante do Impeacuterio Romano ou
dos poderes espalhados na sociedade parte de uma tentativa de usar a parreacutesia
A hipoacutetese eacute que essa palavra permeia o texto luciacircnico nos momentos em que ele
precisa afirmar o que faz ou como tal gecircnero deve ser composto No panfleto Como se deve
escrever a Histoacuteria ao definir a funccedilatildeo do historiador ele afirma que
Portanto assim seja para mim o historiador sem medo incorruptiacutevel livre
amigo da franqueza (παρρησίας ) e da verdade como diz o poeta cocircmico que
chame figos de figos e gamela de gamela algueacutem que natildeo admita nem omita
nada por oacutedio ou por amizade que a ningueacutem poupe nem respeite nem
humilhe que seja juiz equacircnime benevolente com todos a ponto de natildeo dar a
um mais que o devido estrangeiro nos livros e apaacutetrida autocircnomo sem rei
natildeo se preocupando com o que achara esse ou aquele mas dizendo o que se
passou (Luciano Hist conscr 41)109
Ser franco eacute uma caracteriacutestica que deve acompanhar a verdade Aquele que se
expressa por essa modalidade discursiva natildeo garante ser verdadeiro em si mas mostra que tem
coragem Aleacutem disso seraacute algueacutem que se coloca em uma posiccedilatildeo de alteridade diante da
sociedade jaacute que deve ser estrangeiro nos livros e sem paacutetria o que para o homem antigo
representaria um paradoxo jaacute que a identidade era construiacuteda em forte consonacircncia com a
108 ldquoΦΙΛΟΣΟΦΙΑ
Εὖ ἔχει πρόσιθι Παρρησιάδη ἀφίεμέν σε τῆς αἰτίας καὶ ἁπάσαις κρατεῖς καὶ τὸ λοιπὸν ἴσθι ἡμέτερος ὤνrdquo 109 ldquoΤοιοῦτος οὖν μοι ὁ συγγραφεὺς ἔστω ndash ἄφοβος ἀδέκαστος ἐλεύθερος παρρησίας καὶ ἀληθείας φίλος ὡς ὁ
κωμικός φησι τὰ σῦκα σῦκα τὴν σκάφην δὲ σκάφην ὀνομάσων οὐ μίσει οὐδὲ φιλίᾳ τι νέμων οὐδὲ φειδόμενος ἢ
ἐλεῶν ἢ αἰσχυνόμενος ἢ δυσωπούμενος ἴσος δικαστής εὔνους ἅπασιν ἄχρι τοῦ μὴ θατέρῳ τι ἀπονεῖμαι πλεῖον
τοῦ δέοντος ξένος ἐν τοῖς βιβλίοις καὶ ἄπολις αὐτόνομος ἀβασίλευτος οὐ τί τῷδε ἢ τῷδε δόξει λογιζόμενος
ἀλλὰ τί πέπρακται λέγωνrdquo
81
cidade de origem110 Sobre a expressatildeo ldquoξένος ἐν τοῖς βιβλίοις καὶ ἄπολιςrdquo (estrangeiro nos
livros e apaacutetrida) ldquomais que uma bela expressatildeo parece-me um lema que define a postura
intelectual do proacuteprio Lucianordquo (BRANDAtildeO 2009 267)
Moses Finley ao discorrer sobre Dioacutegenes ressalta que o cinismo eacute um fenocircmeno
urbano uma vez que esse personagem soacute atinge seus objetivos se puder importunar e exercer a
franqueza necessaacuteria para viver Natildeo faz sentido viver isolado da cidade (FINLEY 1991 112)
A parreacutesia exige do escritor autonomia para dizer a verdade e enfrentar o poder
estabelecido O historiador deve construir seu discurso agrave margem do poder do Imperador pois
natildeo escreve para o presente e sim para o futuro Ainda citando Brandatildeo ldquoOu seja quem teme
e espera jamais poderaacute ser livre verdadeiro e francordquo (BRANDAtildeO 2009 263)
As caracteriacutesticas exaltadas por Luciano nesse panfleto se coadunam com as
caracteriacutesticas apresentadas pelo filoacutesofo Ciacutenico no Leilatildeo dos Filoacutesofos Eacute nesse espaccedilo fora
dos muros da cidade que se movem os historiadores e os filoacutesofos ciacutenicos Trata-se aqui da
dificuldade ciacutenica por ser ἄπολις ou melhor como diz o Dioacutegenes luciacircnico ldquovocecirc vecirc um
cidadatildeo do mundordquo111 (Luciano Vit Auct 8)
Os textos luciacircnicos satildeo construiacutedos sob essa postura intelectual que retoma a tradiccedilatildeo
ateniense das assembleias No decorrer desta Tese retornamos a esse debate uma vez que
entendemos que Luciano ao escrever seus diaacutelogos utilizou-se de modos de validaccedilatildeo de seu
enunciado que natildeo satildeo os nossos Nesse sentido para pensarmos a presenccedila dos mitos gregos
devemos entender os mecanismos de construccedilatildeo dos discursos vinculados a estrateacutegias que satildeo
historicamente aceitas ou assentadas culturalmente Natildeo importa se Luciano acreditava ou natildeo
nos mitos mas o significado que atribuiacutea a eles nos diferentes usos poliacuteticos Cabe-nos agora
refletir sobre o alcance dos mitos e da mitologia para os homens antigos especificamente para
os intelectuais helenoacutefilos da Segunda Sofiacutestica
110 Ao dizer isso natildeo negamos as caracteriacutesticas de sobreposiccedilatildeo das identidades no mundo antigo apenas
enfatizamos a cidade como um espaccedilo importante para a construccedilatildeo dos sentimentos de identidade 111 ldquoΤοῦ κόσμου πολίτην ὁρᾷςrdquo
82
Capiacutetulo II
Mito a narrativa que todos conhecem
O primeiro ponto que pensamos foi justamente o ordenamento discursivo no qual
Luciano de Samoacutesata estava inserido No capiacutetulo anterior cuidamos de compreender como
onde e quando esse escritor produziu seus textos ou seja as condiccedilotildees materiais de sua
produccedilatildeo Levantamos as diferentes perspectivas historiograacuteficas referentes agrave sua trajetoacuteria sua
accedilatildeo poliacutetica e o fenocircmeno cultural no qual se inseria a saber a Segunda Sofiacutestica Por fim
analisamos como ele escrevia sob um modo especiacutefico de dizer a verdade um regime de
validaccedilatildeo enunciativa proacuteprio que eacute uma das manifestaccedilotildees da parreacutesia antiga Com esse
contexto traccedilado podemos explorar as principais categorias teoacutericas que orientaram esta Tese
mito e memoacuteria observando a maneira como Luciano utiliza recursos mitoloacutegicos em seus
textos
O primeiro aspecto dos mitos que devemos evidenciar a fim de construir uma
categoria que seja uacutetil para nossa pesquisa dos diaacutelogos de Luciano de Samoacutesata eacute o seu caraacuteter
narrativo Os mitos satildeo narrativas estoacuterias que apresentam personagens e um enredo que
fornecem sentido para as pessoas e as comunidades Como afirma Everaldo Rocha ldquo[s]e o mito
fosse uma narrativa ou uma fala qualquer estaria diluiacutedo completamente O mito eacute entatildeo uma
narrativa especial particular capaz de ser distinguida das demais narrativas humanasrdquo
(ROCHA 1986 8) No quadro simboacutelico de determinada cultura os mitos satildeo facilmente
diferenciados de outras narrativas o que os coloca em um lugar especial para as comunidades
Um erro comum agravequeles que se dedicam ao estudo dos mitos eacute consideraacute-los uma
categoria fechada que apresentaria as mesmas caracteriacutesticas nas mais distintas culturas
(KIRK 2006 48) Contrariamente a essa visatildeo entendemos que cada povo apresentaraacute suas
estoacuterias com padrotildees muito peculiares
Esse saber explica o mundo e sua aproximaccedilatildeo dele Por esse motivo faz-se mister
investigar a densa cadeia de narrativas mitoloacutegicas sobre a memoacuteria uma vez que esses
conhecimentos estavam disponiacuteveis por meio da tradiccedilatildeo na qual Luciano se inseria
83
21 Mitologia e Retoacuterica saberes sobre a Memoacuteria
Em um texto claacutessico Jean Pierre Vernant analisou a sofisticada rede de narrativas
mitoloacutegicas referentes agrave mnemosyne Esse autor conjecturou que a produccedilatildeo desses discursos
vinculava-se diretamente agrave Histoacuteria da faculdade humana da memoacuteria Essa hipoacutetese permanece
no campo das conjecturas por carecircncia de comprovaccedilatildeo empiacuterica Entretanto a anaacutelise desse
conjunto de estoacuterias que dizem respeito agrave faculdade de reter informaccedilotildees de um tempo preteacuterito
no presente conta com uma personagem que personifica essas virtudes Mnemosyacutene que eacute uma
deusa imortal112 Seguimos essa narrativa a partir da Teogonia113 de Hesiacuteodo uma das mais
antigas referentes a tal divindade e principalmente aquela que serve de ponto de inflexatildeo para
qualquer fala sobre o tema desde a Antiguidade
Na Pieacuteria gerou-as da uniatildeo do Pai Cronida
Memoacuteria rainha nas colinas de Eleutera
para obliacutevio de males e pausa de afliccedilotildees 55
Nove noites teve uniotildees com ela o saacutebio Zeus
longe dos imortais subindo ao sagrado leito
Quando girou o ano e retornaram as estaccedilotildees
com as miacutenguas das luas e muitos dias findaram
ela pariu nove moccedilas concordes que dos cantares 60
Tecircm o desvelo no peito e natildeo triste animo
perto do aacutepice altiacutessimo do nervoso Olimpo
aiacute os seus coros luzentes e belo palaacutecio114
(Hesiacuteodo Theog VV 53-63)
Esse documento se insere em um quadro de divinizaccedilatildeo da memoacuteria personificada
como uma das filhas de Urano e Gaia irmatilde de Tea Reia Tecircmis Febe e Teacutetis Ter o nome de
112 Observemos que Luciano de Samoacutesata em vaacuterios momentos de sua obra personifica virtudes e faculdades
humanas Entretanto ele natildeo as diviniza Podemos exemplificar isso com o texto Dupla Acusaccedilatildeo em que virtudes
como a Justiccedila a Verdade e a Prudecircncia tomam forma humana 113 Para essa anaacutelise usamos a traduccedilatildeo de Jaa Torrano 114 τὰς ἐν Πιερίῃ Κρονίδῃ τέκε πατρὶ μιγεῖσα
Μνημοσύνη γουνοῖσιν Ἐλευθῆρος μεδέουσα
λησμοσύνην τε κακῶν ἄμπαυμά τε μερμηράων 55
ἐννέα γάρ οἱ νύκτας ἐμίσγετο μητίετα Ζεὺς
νόσφιν ἀπ ἀθανάτων ἱερὸν λέχος εἰσαναβαίνων
ἀλλ ὅτε δή ῥ ἐνιαυτὸς ἔην περὶ δ ἔτραπον ὧραι
μηνῶν φθινόντων περὶ δ ἤματα πόλλ ἐτελέσθη
ἡ δ ἔτεκ ἐννέα κούρας ὁμόφρονας ᾗσιν ἀοιδὴ 60
μέμβλεται ἐν στήθεσσιν ἀκηδέα θυμὸν ἐχούσαις
τυτθὸν ἀπ ἀκροτάτης κορυφῆς νιφόεντος Ὀλύμπου
ἔνθά σφιν λιπαροί τε χοροὶ καὶ δώματα καλά
84
uma funccedilatildeo psicoloacutegica natildeo eacute um caso uacutenico na mitologia grega poderiacuteamos citar vaacuterias
ocorrecircncias para exemplificar esse enunciado por exemplo Eros Fobos Hebe entre outros
Mnemoacutesine ou a Memoacuteria eacute a progenitora das Musas nove divindades que velam pelas
artes e pelos artistas A accedilatildeo dessa deidade liga-se ao esquecimento dos males e ao cessar das
dores Hesiacuteodo por sua vez vecirc nessa funccedilatildeo psicoloacutegica elementos profilaacuteticos que
possibilitam que ela cure os homens e os deuses Nesse registro antigo temos o esquecimento
como um fator importante para a cultura
Ela preside as artes juntamente com as Musas ligando-se aos poetas e aedos cuja
competecircncia permite que digam algo sobre o passado Como nos lembra Vernant a atividade
poeacutetica era vista no mundo grego arcaico como uma atividade ldquoentusiaacutesticardquo no sentido
etimoloacutegico desse termo ou seja no sentido de ter deus em si Nas palavras do autor ldquoO poeta
tem uma experiecircncia imediata dessas eacutepocas passadas Ele conhece o passado porque tem o
poder de estar presente no passado Lembrar-se saber ver tantos termos que se equivalemrdquo
(VERNANT 1990 138)
Outro elemento fundante que aparece nesse contexto eacute a supremacia da visatildeo sobre os
outros sentidos As Musas filhas de Mnemoacutesyne permitem que o aedo veja o que ocorreu e
assim conte isso aos homens Existe aqui um jogo com a temporalidade no presente do cantor
ele vecirc o passado
Aristoacuteteles expressou uma importante constataccedilatildeo sobre a sensibilidade antiga Em sua
Metafiacutesica ele afirma que a visatildeo eacute o principal sentido para o conhecimento (Aristoacuteteles
Metaph 980 a 25) Desse modo a frase que Plutarco atribui a Simocircnides de que a ldquopoesia eacute
pintura falada e a pintura poesia pintadardquo (Plutarco apud GINZBURG 2007 23) liga esse
contexto mitoloacutegico expresso pela atuaccedilatildeo de Mnemoacutesyne e de suas filhas agrave retoacuterica do periacuteodo
imperial Nesse sentido um importante conceito eacute o de eacutecfrase ldquoum discurso que mostra o
assunto tratado vivamente diante do puacuteblicordquo (Eacutelio Teatildeo apud WEBB 2009 16) Esses satildeo
aspectos vinculados diretamente agrave formaccedilatildeo do orador
Ruth Webb argumenta que manejar bem os recursos da retoacuterica era fundamental para a
formaccedilatildeo dos homens que falavam grego na parte oriental do Impeacuterio Eles teriam de dominar
bem o grego aacutetico nos seus discursos e em sua execuccedilatildeo Era uma garantia de ascensatildeo social
sendo usado em muitos momentos (casamentos mortes funerais defesa de interesses) em que
as autoridades estivessem presentes para adulaacute-las ou pedir alguma benesse (WEBB 2009 16-
17)
O domiacutenio da memoacuteria artificial era fundamental para a inserccedilatildeo social no Impeacuterio
Romano Luciano se inseria de maneira criacutetica nesse espaccedilo uma vez que seus textos estatildeo
85
permeados de questionamentos sobre a) o uso da linguagem como em Lexiacutefanes b) as
caracteriacutesticas do bom orador como no Mestre da Retoacuterica c) a construccedilatildeo do texto
historiograacutefico em Como se deve escrever a Histoacuteria entre outros momentos O que
ressaltamos eacute que Luciano faz o uso do grego aacutetico como era a moda em sua eacutepoca mas se
coloca como um criacutetico do exagero performaacutetico de muitos oradores
Nossa hipoacutetese eacute que Luciano traccedila um diaacutelogo consciente com a tradiccedilatildeo Por exemplo
em seu Diaacutelogo com Hesiacuteodo denuncia que este poeta prometera no iniacutecio de suas obras contar
o passado e o futuro mas que somente cumpriu a primeira parte da promessa justamente aquela
que era dada por Mnemoacutesyne eou as Musas Caso essas tenham lhe dito o que aconteceria ele
natildeo cantou em seus versos Hesiacuteodo agiu de maacute-feacute (Luciano Hes 1-3) O diaacutelogo do
samosatense com a tradiccedilatildeo homeacuterica e hesioacutedica nos leva a crer que para compreender os usos
poliacuteticos que o escritor faz com relaccedilatildeo aos mitos eacute fundamental inseri-los em uma tradiccedilatildeo
transmitida por meio da formaccedilatildeo desses homens Entretanto a leitura de seus escritos permite
o questionamento e o desdobramento das ideias O siacuterio se insere nessa dialeacutetica com a tradiccedilatildeo
o que permite um uso bastante criativo dos mitos disponiacuteveis em sua narrativa
No poema de Hesiacuteodo a memoacuteria assume um papel importantiacutessimo para os homens
curando-os das mazelas e unindo os desgarrados A seguinte afirmaccedilatildeo de Jaa Torano nos
auxilia na compreensatildeo dos mitos e de sua funccedilatildeo social de explicaccedilatildeo idealizada das relaccedilotildees
sociais
O poeta portanto tem na palavra cantada o poder de ultrapassar e superar
todos os bloqueios e distacircncias espaciais e temporais um poder que soacute lhe eacute
conferido pela Memoacuteria (Mnemosyne) atraveacutes das palavras cantadas (Musas)
Fecundada por Zeus Pai que no panteatildeo hesioacutedico encarna a Justiccedila e a
Soberania supremas a Memoacuteria gera e daacute a luz a Palavras Cantadas que na
liacutengua de Hesiacuteodo se diz Musas Portanto o Canto (as Musas) eacute nascido da
Memoacuteria (num sentido psicoloacutegico inclusive) e do mais alto exerciacutecio do
poder (num sentido poliacutetico inclusive) (TORRANO 1986 15)
Nesse contexto o aedo eacute o mestre da verdade115 para usar a terminologia de Marcel
Detienne Eacute aquele que sabe porque viu por meio de uma vivecircncia sagrada do que aconteceu
Poderiacuteamos evocar a imagem de Odisseu chorando ao ouvir o Aedo cantar a estoacuteria do cavalo
de madeira na corte dos Feaacutecios116 O que aprendemos dessa cena eacute que para a tradiccedilatildeo
115 Marcel Detienne em seu livro Les maicirctres de veacuteriteacute em gregravece archaiumlque enfatiza que trecircs personagens da
Greacutecia Arcaica ndash o adivinho o Aedo e o rei justiceiro ndash tinham o papel de dispensadores da verdade por qualidades
presentes em seu discurso Trata-se de uma anaacutelise foucaultiana sobre a histoacuteria da verdade o que evidencia que
nesse momento histoacuterico a verdade eacute um atributo de determinados discursos (DETIENNE 2013 1-7) 116 Hanna Arendt (2002 81) considera esse momento como a primeira vez que no ocidente se enuncia um discurso
historiograacutefico Seria o nascimento da Histoacuteria uma vez que Odisseus se depara com o Aedo que conta fatos que
ele mesmo viveu por isso o choro Franccedilois Hartog (2003 21) jaacute contestou essa postura e enfatiza muito mais os
86
homeacuterica o canto do aedo tem a funccedilatildeo de conjurar os espectros do passado O discurso contado
pelo Aedo descola-se dos agentes natildeo precisa ter vivido para narraacute-los pois eles compotildeem
uma memoacuteria cultural que dispensa a validaccedilatildeo daqueles que viram ou vivenciaram os fatos
narrados daiacute o espanto de Odisseu
Na mitologia da memoacuteria vemos entatildeo Mnemoacutesyne ligada diretamente a Zeus gerando
as Musas que inspirariam os aedos Torrano (1986 15) sugeriu uma premissa que pretendemos
levar agraves uacuteltimas consequecircncias o viacutenculo entre memoacuteria e poder que jaacute estaacute presente na
tradiccedilatildeo hesioacutedica e com menor ecircnfase nos textos homeacutericos Como afirma Jan Assmann
(2011 52) todo poder precisa de uma origem
As narrativas miacuteticas foram por muito tempo relegadas ao campo das coisas
supeacuterfluas Os historiadores acreditavam que o poder era baseado apenas nos atos dos
governantes nas instituiccedilotildees nos eventos poliacuteticos deixando agrave margem todo um campo de
reflexatildeo sobre a legitimaccedilatildeo dos poderes estabelecidos
Diante disso dois pontos satildeo fundamentais Em primeiro lugar o poder natildeo se
estabelece simplesmente no Estado e em suas ramificaccedilotildees ele estaacute disperso socialmente e eacute
legitimado pela nossa linguagem Existem assim micropoderes que se espalham na sociedade
em uma rede capilar (FOUCAULT 2012)
Outro ponto significativo eacute que natildeo existe nenhum governo que se sustente
simplesmente pela forccedila fiacutesica (BALANDIER 1980 07) Natildeo negamos a importacircncia dos
exeacutercitos para garantir a puacuterpura ao Imperador no caso romano mas queremos deixar claro que
os governos necessitam de um miacutenimo de consenso para estabelecerem suas determinaccedilotildees As
formas com as quais os governantes buscavam legitimidade variavam muito no Impeacuterio
Romano Quando um novo Imperador ascendia ao poder ele precisava reconstruir os laccedilos de
legitimidade com as grandes famiacutelias e com as cidades a cada governo Aleacutem disso o
Imperador deveria garantir a pax deorum a fim de sustentar o Estado em seu plano metafiacutesico
Nesse contexto o discurso literaacuterio dialoga diretamente com a ordem estabelecida jaacute que ele
pode questionar ou reafirmar determinada situaccedilatildeo Essa eacute a chave que usamos para analisar os
textos luciacircnicos com foco na compreensatildeo do uso que esse escritor faz da mitologia helecircnica
elementos discursivos presentes nessa cena da Odisseia e principalmente sua funccedilatildeo para a construccedilatildeo do gecircnero
eacutepico homeacuterico
87
22 O mito a modernidade e o historiador
Ateacute o aparecimento da antropologia moderna no final do seacuteculo XIX os mitos eram
analisados principalmente por sua variante helecircnica eou romana cuja transmissatildeo foi expressa
nos mais diversos suportes por meio por exemplo de representaccedilatildeo pictoacuterica Com o advento
da escrita suas narrativas foram fixadas Entretanto natildeo podemos esquecer que eles foram
compartilhados inicialmente por meio da oralidade logo natildeo satildeo narrativas lineares e isentas
de contradiccedilotildees Podemos inclusive afirmar que uma caracteriacutestica do mito eacute a subversatildeo das
leis naturais e a ampliaccedilatildeo da possibilidade do agir no mundo Como disse Carlo Ginzburg ldquoO
mito eacute por definiccedilatildeo um conto que jaacute foi contado um conto que jaacute se conhecerdquo (GINZBURG
2001 84) o que eacute importante uma vez que ressalta a partilha de sentidos que o mito carrega
fato que lhe fornece seu maior potencial de comunicar e de servir aos poderes
O caso grego eacute muito interessante uma vez que de Homero ao colapso do Impeacuterio
Romano esse conjunto de narrativas foi evidenciado comentado e glosado Poderiacuteamos recuar
a anaacutelise dos mitos ateacute Teaacutegenes de Regio (seacuteculo V aC) Metrodoro de Lacircmpsaco (seacuteculo IV-
III aC) e Evecircmero (seacuteculo IV aC) Eacute uma laacutestima que seu livro Histoacuteria Sagrada somente nos
tenha chegado por meio de resumos Para essa corrente interpretativa os mitos vinculavam-se
a personagens histoacutericos antigos que com os seacuteculos tiveram suas estoacuterias cobertas pelas lendas
e fantasias Esse tipo de interpretaccedilatildeo teve grande fortuna criacutetica Para citar apenas um exemplo
Voltaire escreveu um Diaacutelogo com Evecircmero Ou ainda podemos falar das interpretaccedilotildees
neoplatocircnicas que buscavam nos mitos alegorias de verdades ocultas (KIRK 2006 17-18)
O que importa aqui eacute mostrar como a escrita permite o comentaacuterio e a interpretaccedilatildeo
que procura ligar a narrativa com o contexto ou com as duacutevidas daquele momento (neste caso
a veracidade da explicaccedilatildeo maravilhosa) A praacutetica das tessituras do texto permite que a
narrativa seja maturada decomposta reinventada num infinito processo de releitura por isso
temos de nos atentar para a maneira como o mito eacute representado em cada contexto
A relaccedilatildeo da memoacuteria com a escrita eacute extremamente ambiacutegua Se por um lado a
escrita permite a exteriorizaccedilatildeo da memoacuteria e a recuperaccedilatildeo de informaccedilotildees e comunicaccedilotildees
armazenadas por outro lado ela determina a atrofia da capacidade de memoacuteria natural
(ASSMANN 2011 25)
As manifestaccedilotildees culturais do mito natildeo satildeo uniformes logo suas fronteiras com
outras narrativas natildeo satildeo precisas117 O mito se relaciona muito intimamente com o sagrado ele
117 GS Kirk (2006 55) faz uma interessante anaacutelise do mito de Perseu para mostrar como este porta uma seacuterie de
elementos que deveriam em uma anaacutelise de gecircnero associar-se aos contos populares
88
possibilita a explicaccedilatildeo da origem dos homens das comunidades do fogo do ferro dos ritos
numa constante que poderiacuteamos estender ilimitadamente Entretanto ele transborda essas raias
pois como dissemos haacute narrativas aceitas como mitos que natildeo respondem a esses criteacuterios
Neste trabalho entendemos mitos como narrativas recorrentes na cultura que
evidenciam valores e que muito comumente satildeo cercadas com a aura do maravilhoso sendo
conhecidos de todos os membros da comunidade Outra caracteriacutestica dos mitos eacute a sua
vinculaccedilatildeo a uma regiatildeo especiacutefica o que pode variar dependendo da fonte na qual eacute recolhido
mas haacute um sentimento de que o mito pertence agrave histoacuteria daquele lugar Sobre esse aspecto G
S Kirk afirma que
Os personagens em particular o heroacutei satildeo especiacuteficos e suas relaccedilotildees
familiares cuidadosamente assinaladas estatildeo ligadas a determinada regiatildeo
ainda que essa regiatildeo possa variar de acordo com quem relata o mito () Os
mitos por mais especiacuteficos no que se refere a personagens e localizaccedilotildees
espaciais parecem desenvolver-se em um passado temporal (KIRK 2006 61-
62)
Essa observaccedilatildeo eacute muito importante para nossa anaacutelise uma vez que tais narrativas
vinculam-se diretamente agrave formaccedilatildeo de identidades locais Sua expressatildeo coloca a
bidimensionalidade da construccedilatildeo identitaacuteria uma vez que fornece aos indiviacuteduos discursos
condensados de significados referentes a um passado e permite a essa comunidade mirar um
futuro Para usar as expressotildees de Reinhart Koselleck os mitos interferem na construccedilatildeo do
campo de experiecircncia e no horizonte de expectativas de uma comunidade (KOSELLECK
2006) Nesse sentido natildeo podemos esquecer que o passado natildeo eacute algo natural e sim uma
criaccedilatildeo cultural cuja manifestaccedilatildeo pode ser expressa de diferentes maneiras (ASSMANN 2011
47 RUumlSEN 2007b)
Como afirma Assman o poder precisa de uma origem que por sua vez forma a
alianccedila entre poder e recordaccedilatildeo e mira um futuro (ASSMANN 2011 68) Ele ainda continua
O passado interiorizado ndash que eacute exatamente o lembrado ndash encontra sua forma
na narraccedilatildeo A narraccedilatildeo tem uma funccedilatildeo Ou eacute o lsquomotor do desenvolvimentorsquo
ou eacute o fundamento da continuidade em nenhum caso se lembra do passado
por si mesmo Designamos as histoacuterias fundantes de lsquomitosrsquo Normalmente se
contrapotildee este conceito a lsquohistoacuteriarsquo e se associa esta contraposiccedilatildeo a duas
oposiccedilotildees ficccedilatildeo (mito) contra realidade (histoacuteria) e funcionalidade
axiologicamente condicionada (mito)contra a objetividade sem finalidade
determinada (histoacuteria) (ASSMANN 2011 72-73)
89
Hoje sabemos que natildeo eacute possiacutevel produzir um relato sobre o passado sem a
imaginaccedilatildeo criadora ou mesmo elementos de ficcionalidade Assmann vai mais longe e afirma
que ldquoo passado que se consolida e interioriza na histoacuteria fundante eacute mito independente se eacute
fictiacutecio ou fantaacutesticordquo (ASSMANN 2011 73) Para o teoacuterico alematildeo o mito informa sobre si
e sobre uma ordem superior pensada como verdadeira cuja forccedila tem potencial normativo e
grande forccedila formativa ldquoO mito eacute o passado condensado em histoacuteria fundanterdquo (ASSMAN
2011 73-74)
Como dissemos anteriormente os mitos satildeo elementos constitutivos das
identidades sociais Eles satildeo formas de apropriaccedilatildeo do passado e como afirma Assman o mito
pertence agravequela histoacuteria fundante da comunidade Ele fornece sentido responde agrave pergunta de
onde viemos e carrega em si as respostas ou possibilidades interpretativas que respondem a
uma segunda pergunta qual seraacute o nosso futuro Esses elementos compotildeem uma constante
antropoloacutegica que se adapta agraves mais diversas sociedades sendo dessa forma uma caracteriacutestica
das narrativas miacuteticas na Antiguidade
O caso da Iliacuteada eacute significativo Ela expressa assuntos humanos se natildeo fosse a
presenccedila do maravilhoso natildeo haveria nenhum empecilho para sua veracidade Nessa narrativa
os deuses intervecircm para o desenvolvimento da accedilatildeo Aleacutem disso outros subsiacutedios maravilhosos
a rodeiam como as muralhas impermeaacuteveis de Troia e a armadura de Aquiles Afrodite e Ares
no campo de batalha que satildeo elementos que colocam a narrativa no que consideramos seu plano
miacutetico Elevam a narrativa da Guerra de Troia a um espaccedilo sagrado que tem como funccedilatildeo
costurar a existecircncia presente com o passado Daiacute a necessidade das listas de navios e mulheres
ou mesmo a suposta interpolaccedilatildeo no canto II da Iliacuteada que apresenta as naus enviadas pelos
atenienses ao campo de batalha Vincular as poleis a esses eventos funda a realidade como os
homens a conhecem Mesmo que seja no sentido de mudar o mundo ou de lutar pela
permanecircncia haacute um espaccedilo de luta simboacutelica que ocorre no plano do imaginaacuterio e da memoacuteria
coletiva
Os gregos contavam e recontavam essas histoacuterias muitas vezes em versotildees
contraditoacuterias Entretanto um elemento eacute fundamental os personagens miacuteticos apresentam
caracteriacutesticas que se repetem e permitem que eles sejam reconhecidos em qualquer situaccedilatildeo
Heacuteracles sempre levaraacute sua clava e a pele do Leatildeo de Nemeia por exemplo os deuses ou heroacuteis
condensam em si tanto caracteriacutesticas abstratas Afrodite o amor Hefesto a engenhosidade
humana quanto fiacutesicas Heacuteracles forte Hermes tem asas nos peacutes A articulaccedilatildeo dessas
estoacuterias eacute elaborada tendo em vista uma loacutegica interna Como afirma Jean Pierre Vernant
90
a ficccedilatildeo narrativa opera segundo um coacutedigo cujas regras para uma
determinada cultura satildeo rigorosas Esse coacutedigo comanda e orienta o jogo da
imaginaccedilatildeo miacutetica delimita e organiza o campo no qual ela pode se produzir
modificar os velhos esquemas elaborar novas versotildees (VERNANT 2009
232)
O que nos interessa nesse tipo de narrativa eacute sua funccedilatildeo Cuida-se nesse caso de
saber quais os aspectos da vida social satildeo influenciados por essa narrativa Como afirma Werner
Jaeger
O mito conteacutem em si este significado normativo mesmo quando natildeo eacute
empregado como modelo ou exemplo Ele natildeo eacute educativo pela comparaccedilatildeo
de um acontecimento da vida corrente com o acontecimento exemplar que lhe
corresponde no mito mas sim pela proacutepria natureza A tradiccedilatildeo do passado
celebra a gloacuteria o conhecimento do que eacute magniacutefico e nobre e natildeo um
acontecimento qualquer () O mito serve de instacircncia normativa para a qual
apela o orador Haacute no seu acircmago alguma coisa que tem validade universal
Natildeo tem um caraacuteter meramente fictiacutecio embora originariamente seja sem
duacutevida alguma o sedimento de acontecimentos histoacutericos que alcanccedilaram a
imortalidade atraveacutes de uma longa tradiccedilatildeo e da interpretaccedilatildeo enaltecedora da
fantasia criadora da posteridade (JAEGER 2010 67-68)
Essa longa citaccedilatildeo evidencia um caraacuteter significativo para esta pesquisa do mito
que eacute seu viacutenculo com a formaccedilatildeo dos indiviacuteduos ou seja os mitos orientam a sedimentaccedilatildeo
de valores e perspectivas de mundo nos jovens No caso grego o papel de Homero eacute basilar jaacute
Platatildeo na Repuacuteblica reconhecia que Homero era o educador dos gregos (Platatildeo Rep 606e)
A historiadora portuguesa Maria Helena Rocha Pereira eacute mais enfaacutetica ao afirmar que para se
conhecer a cultura helecircnica deve-se de alguma forma conhecer um pouco dos poemas
homeacutericos (PEREIRA 2003)
O que permanece durante o domiacutenio romano eacute que a formaccedilatildeo dos homens cultos
partia do estudo da poesia homeacuterica Henri Marrou em seu livro a Histoacuteria da Educaccedilatildeo no
mundo antigo descreve esse processo em que o jovem copiava e decorava textos canocircnicos
em constantes exerciacutecios (MARROU 19875 246-247) Nesse contexto o ensino dos textos em
que as narrativas miacuteticas apareciam era seminal Trata-se de um processo de construccedilatildeo de uma
memoacuteria cultural em que a narrativa miacutetica permite a imitaccedilatildeo a alusatildeo e a citaccedilatildeo
(CAMEROTTO 1998 141)
91
Como afirma Anne Gangloff118 no Alto Impeacuterio a Iliacuteada e a Odisseia satildeo os
grandes textos basilares para a formaccedilatildeo dos jovens na escola de gramaacutetica e de retoacuterica sendo
que ldquoos mitos ocupam um lugar importante nos progymnasmata ou exerciacutecios escolaresrdquo
(GANGLOFF 2008 153) Os grandes mitos satildeo essenciais para a formaccedilatildeo dos indiviacuteduos
satildeo os fundamentos tradicionais da paideia A historiadora acrescenta que ldquoos pensadores
gregos do Alto Impeacuterio usaram as grandes figuras miacuteticas em seus discursos e em sua
trajetoacuteriardquo (GANGLOFF 2008 153)
A presenccedila dos mitos no cotidiano formativo coloca a necessidade de investigarmos
com mais acuidade as relaccedilotildees entre mito e educaccedilatildeo e a consequente presenccedila de uma
pedagogia que se faz nesse jogo logo essa memoacuteria eacute fundamental para a formaccedilatildeo dos
intelectuais gregos
23 Mito e formaccedilatildeo outras pedagogias
Jaeger (2010 67-68) apresenta um aspecto do mito que nos interessa ele natildeo se
forma pela comparaccedilatildeo com os temas triviais do cotidiano mas com o que eacute elevado Nesse
ponto a leitura produzida por autores que estavam sob o Impeacuterio Romano desloca a temaacutetica
Observemos por exemplo o primeiro Diaacutelogo dos Deuses Marinhos entre Galateia119 e
Doacuteris120
Doacuteris se refere de maneira irocircnica ao Ciclope que estaacute interessado em Galateia A
ironia eacute feita no momento em que ela enfatiza que o Ciclope eacute um bonito pastor siciliano121 e a
filha de Nereu lembra que ele eacute filho de Poseidon o deus dos mares No entanto ela retruca
que natildeo importa sua linhagem jaacute que ele eacute um selvagem122 No diaacutelogo que se segue Galateia
afirma que gosta de Polifermo como ele eacute que o uacutenico olho lhe cai bem e que ela estaacute com
inveja pois ele natildeo olhou para ela
Nesse simples diaacutelogo temos duas divindades secundaacuterias do tradicional panteatildeo
helecircnico todavia essas deidades vinculam-se agraves populaccedilotildees que vivem agrave beira do mar ajudando
118 Anne Gangloff eacute uma importante especialista nos escritos de Dion Crisoacutestomo (40-115) intelectual da segunda
sofiacutestica Em seus trabalhos ela enfatiza principalmente a apropriaccedilatildeo dos mitos por esses escritos a partir das
formulaccedilotildees platocircnicas sobre o papel dos mitos na formaccedilatildeo humana (GANGLOFF 2006 2008 2002 26-38) 119 Existem dois personagens miacuteticos com esse nome entretanto Luciano fala especificamente da filha de Nereu
Seu nome remete agrave brancura de sua pele Suas estoacuterias satildeo conhecidas principalmente por seu envolvimento com
o ciclope Polifemo 120 Uma das filhas de Oceano esposa de Nereu 121 As narrativas mais antigas sobre os ciclopes os localizavam nos confins da terra Posteriormente a ilha da
Siciacutelia foi identificada como esse lugar 122 A representaccedilatildeo dos ciclopes como selvagens eacute bem antiga A primeira menccedilatildeo que temos estaacute na Odisseia no
encontro de Odisseus e Polifemo (Homero Odys IX 105-115)
92
na pesca e nas viagens ou seja trata-se de personagens do cotidiano o que facilita que o mesmo
seja compreendido Com isso Luciano insere um debate sobre o casamento ou os
relacionamentos afetivos entre esses seres Nota-se que a transposiccedilatildeo para um plano
inacessiacutevel no caso os deuses permite que as questotildees mundanas sejam debatidas sem meios
termos (BAKHTIN 2010 132) Assim temos principalmente a temaacutetica das relaccedilotildees por
motivos esteacuteticos eou interesse por poder Ele eacute filho de um deus muito poderoso e ela filha
de Nereu um antigo deus marinho Trata-se de um casamento politicamente interessante uma
vez que une duas geraccedilotildees de divindades bastante semelhante aos casamentos comuns entre as
importantes famiacutelias de seu tempo
Para Galateia e Doacuteris que satildeo deidades ligadas ao mar viacutenculos com o sacudidor
das terras colocar-lhes-iam em uma situaccedilatildeo bastante vantajosa Por traacutes da futilidade do tema
do encontro amoroso temos a profunda questatildeo das relaccedilotildees de poder seus viacutenculos com o
mundo privado e puacuteblico Tais relaccedilotildees geram inveja e desconfianccedila Observemos como
Luciano utiliza essa narrativa miacutetica que eacute uma estoacuteria que se vincula a personagens conhecidos
e maravilhosos localizada territorialmente (fala-se na Siciacutelia) ou seja a escolha luciacircnica
permite a vinculaccedilatildeo de um debate que poderia incomodar determinados ciacuterculos sociais
O desfecho do diaacutelogo condensa os pontos da anaacutelise que propomos Doacuteris diz ldquoEu
natildeo tenho nenhum namorado nem sou convencida por ser atrativa Mas um amante como o
Ciclope que fede a bode que come carne crua segundo dizem e come os hoacutespedes que o
visitamrdquo123 (Luciano D mar 1 5)
A personagem fecha ironicamente o diaacutelogo retomando as imagens dos ciclopes
presentes na tradiccedilatildeo homeacuterica mas insere o debate sobre os relacionamentos e os motivos que
os mesmos devem ter Nos textos luciacircnicos os mitos servem a outras pedagogias eles satildeo o
veiacuteculo perfeito para ideias e debates que natildeo poderiam ser forjados noutro contexto
O lugar da tradiccedilatildeo representada pelos textos homeacutericos na formaccedilatildeo do homem
grego era garantido em todo o sistema educacional Seus cantos eram copiados ditados
decorados exaustivamente para que o jovem dominasse a liacutengua grega Diferente do moderno
pesquisador cujo trabalho estaacute moldado por normas de citaccedilatildeo e referecircncia os homens antigos
citavam os cacircnones em seus discursos por meio de sua memoacuteria treinada o que confunde o
pesquisador contemporacircneo quando lecirc o documento e tenta fazer a anaacutelise do uso da citaccedilatildeo
pois ela muitas vezes eacute deslocada reinventada para servir a determinado propoacutesito
123 ldquoΔΩΡΙΣ
Ἀλλὰ ἐραστὴς μὲν οὐδεὶς ἔστι μοι οὐδὲ σεμνύνομαι ἐπέραστος εἶναι τοιοῦτος δὲ οἷος ὁ Κύκλωψ ἐστί κινάβρας
ἀπόζων ὥσπερ ὁ τράγος ὠμοβόρος ὥς φασι καὶ σιτούμενος τοὺς ἐπιδημοῦντας τῶν ξένων []rdquo
93
Como afirma Catherine Darbo-Peschanski (2004 11) a remissatildeo ao enunciado
escrito por outra pessoa satildeo feitos em uma economia do que se pode dizer e o que natildeo pode ser
dito Haacute um espaccedilo de negociaccedilatildeo entre o discurso originaacuterio e o discurso atual processo esse
que no mundo antigo tem uma loacutegica bem diferente da nossa Entendemos que esse espaccedilo
opaco pode superar as teses que clamam por uma unicidade discursiva e compreender como
existe uma polifonia de vozes que se expressam nos textos
Retomando os aspectos gerais da cultura e da formaccedilatildeo do homem antigo temos de
ressaltar que esse mergulho na tradiccedilatildeo homeacuterica natildeo era uma especificidade helecircnica mas
como afirma Pierre Grimal o homem romano lia Homero antes de Virgiacutelio (GRIMAL 1993
106) A presenccedila de pedagogos e filoacutesofos gregos marcou profundamente a aristocracia romana
Assentando estas duas importantes funccedilotildees do mito produzir sentimento de pertencimento e
seu caraacuteter pedagoacutegico podemos analisar sua transmissatildeo
Neste ponto devemos retomar um elemento que foi debatido por Paul Veyne
(1983110) o processo de helenizaccedilatildeo Ele foi extremamente seletivo com o que o romano
adota da cultura grega Poderiacuteamos dizer que eles se apropriam absorvem adaptam aprendem
aquilo que lhes foi uacutetil e os fortalece Por exemplo Roma sempre foi uma cidade aristocraacutetica
logo as celeumas sobre a democracia nunca fizeram parte do cotidiano da cidade eterna Ao
fazer citaccedilotildees miacuteticas embasadas na tradiccedilatildeo homeacuterica e hesioacutedica Luciano dialoga de muito
proacuteximo com os romanos Como dissemos o grego era uma liacutengua dominada pela elite Tal
polifonia era uacutetil para a partilha das mensagens para abrir a possibilidade do diaacutelogo
Existem diversas maneiras pelas quais os mitos podem ser expressos por meio da
escrita no mundo helecircnico Haacute o registro na poesia eacutepica e liacuterica nas trageacutedias e em outros
suportes aleacutem da representaccedilatildeo dos mitos na cultura material Todavia natildeo podemos esquecer
que a oralidade eacute a fonte para a conservaccedilatildeo dessas narrativas Ao lidar com os mitos
aprendemos o quanto a oralidade pode conservar e como a escrita pode cambiar O exemplo da
poesia eacutepica homeacuterica permite observar os elementos de oralidade tanto na Iliacuteada quanto na
Odisseia Outro elemento importante eacute que se sua narrativa principal jaacute eacute um tema mitoloacutegico
esses poemas permitem narrativas secundaacuterias124 Textualizar mitos natildeo eacute uma tarefa simples
Temos os poemas que contam justamente as origens dos deuses O mais ceacutelebre de
todos eacute atribuiacutedo a Hesiacuteodo trata-se da Teogonia Poderiacuteamos ampliar essa lista com os poemas
de Piacutendaro e outros poetas do periacuteodo arcaico Com os tragedioacutegrafos do periacuteodo claacutessico essas
narrativas foram adaptadas ao teatro Cada vez que o mito foi recontado ele atendia agraves
124 Um exemplo claacutessico satildeo os amores de Afrodite narrados pelo Aedo na corte dos Feaacutecios (Homero Odys
VIII 270-365)
94
especificidades dos gecircneros125 Geralmente quando temos acesso aos mitos satildeo versotildees
presentes nessas fontes
Uma fonte importante para os mitos satildeo os mitoacutegrafos O mais conhecido eacute
Apolodoro de Atenas que escreveu a Biblioteca Mitoloacutegica datada do seacuteculo I ou II aC
Existem trecircs textos nomeados de Histoacuterias Incriacuteveis Paleacutefato que a criacutetica filoloacutegica data da
segunda metade do seacuteculo IV aC Heraacuteclito autor do seacuteculo I dC e o Anocircnimo do Vaticano
cuja data eacute desconhecida mas pode ser datado como posterior ao seacuteculo V dC Existe ainda o
texto de Erastoacutetenes de Cirene chamado Catasterismos datado do seacuteculo III aC que eacute um
relato sobre personagens mitoloacutegicos que se transformaram em estrelas Um importante
testemunho eacute o de Lucio Aneo Cornuto que em seu Epitome das tradiccedilotildees mitoloacutegicas dos
gregos faz uma interpretaccedilatildeo etimoloacutegica de fundo estoico dos mitos gregos
Tais textos satildeo importantes para a anaacutelise mitoloacutegica pois condensam informaccedilotildees
que muitas vezes estatildeo dispersas em uma multiplicidade e diversidade gigantesca de escritos
Satildeo textos de cunho escolar que estabelecem cacircnones fixam tradiccedilotildees Era importante para os
homens mais cultos terem esse conhecimento o que os marcava com uma distinccedilatildeo social Satildeo
textos muito semelhantes aos breviaacuterios do quarto seacuteculo cuja funccedilatildeo era apresentar a Histoacuteria
do Impeacuterio aos novos senhores de Roma
Uma vez que os mitos apresentam narrativas que concentram significados das mais
distintas ordens socioculturais esses sentidos satildeo bastante flexiacuteveis logo sua apropriaccedilatildeo pode
fornecer embasamento para posiccedilotildees sociais por vezes contraditoacuterias126
Tal trabalho depende de elementos metanarrativos que organizam a seleccedilatildeo e a
transmissatildeo dos enunciados Trata-se do processo de releitura dos mitos uma vez que como
bem nos explica Luis Costa Lima a narrativa natildeo eacute anterior ao ato da escrita mas concomitante
a ele (LIMA 1989 23) O ato de escrita natildeo eacute ingecircnuo Escreve-se para se inscrever no mundo
narra-se tambeacutem com o intuito de marcar-se na vida transpor a barreira da mortalidade para
adentrar a utopia (vista como real possiacutevel) da imortalidade
Como enfatizamos anteriormente os mitoacutegrafos (autores antigos que compilaram
os mitos) constroem seus escritos a partir de criteacuterios que satildeo das mais variadas ordens e
exteriores agrave narrativa Temos aspectos poliacuteticos que evidenciam determinados mitos Filoacutestrato
125 Um caso claacutessico para exemplificar essa caracteriacutestica foi analisado por Jean Pierre Vernant no texto Eacutedipo sem
complexo em que ele mostra a diversidade de narrativas presentes no mito de Eacutedipo A narrativa sofocleana mais
conhecida do puacuteblico erudito foi apenas uma entre muitas versotildees do mito (VERNANT 1986 80) 126 Por exemplo o mito de Heacuteracles cuja narrativa atendia aos mais diferentes interesses sociais tanto da plebe
romana quanto da aristocracia senatorial Discutimos largamente o mito de Heacuteracles em nossa Dissertaccedilatildeo de
Mestrado (ARANTES JUNIOR 2008)
95
fornece um exemplo interessante de como o mito pode ser o veiacuteculo ou melhor a estrateacutegia
para posicionar-se diante do poder Em um grafite da cidade de Roma estaria a seguinte frase
ldquoNero Orestes Alcmeacuteon matricidasrdquo127 (Filostrato V S I 481)128 Essa frase expressa com
precisatildeo a ambiguidade presente nos enunciados miacuteticos Tal grafite pode expressar valores que
revelariam o apoio ao Imperador Nero uma vez que tanto Orestes como Alcmeacuteon assassinam
suas progenitoras em contextos tradicionalmente justificados Ou ainda poderiacuteamos acusar o
Princeps de cometer um crime de sangue Satildeo essas sutilezas que motivam nossa pesquisa
Para entender o contexto de produccedilatildeo desses discursos partimos de algumas
premissas Inicialmente tomamos os mitos como narrativas construiacutedas socialmente que
expressam significados referentes a um suposto passado comum A expressatildeo cultural vincula
essa narrativa a um preteacuterito pois ela eacute sentida socialmente como parte de um passado Nessa
acepccedilatildeo especiacutefica os discursos miacuteticos satildeo tambeacutem relatos de memoacuteria jaacute que satildeo aceitos
como expressatildeo de outra temporalidade
Seguindo por essa trilha os mitos fornecem suportes para a manutenccedilatildeo de
identidades assim como satildeo a expressatildeo de expectativas para o futuro Podemos observar em
suas distintas releituras apropriaccedilotildees desse passado compartilhado e a representaccedilatildeo de uma
imagem de futuro desejada naquele momento histoacuterico
O uso da mitologia nos escritos de Luciano natildeo atende aos tracircmites comuns do uso
de outros autores Nos escritos do siacuterio temos um processo de releitura da tradiccedilatildeo miacutetica Para
avanccedilar neste debate o primeiro ponto que queremos enfatizar eacute que os mitos gregos satildeo
aspectos de uma memoacuteria social Por ter essa caracteriacutestica esse tipo especiacutefico de narrativa
apresenta um forte elemento aglutinante
24 Os mitos entre as memoacuterias naturais e as artificiais
Muitos satildeo os caminhos que devemos trilhar para ter os elementos necessaacuterios agrave
compreensatildeo de como Luciano de Samoacutesata utilizou fragmentos das narrativas miacuteticas em seus
textos principalmente os personagens Para tal entendimento acreditamos ser relevante
aprofundar a anaacutelise dos mitos enquanto memoacuteria social ou histoacuteria fundante
Temos a preocupaccedilatildeo de entender esses conceitos em duas circunstacircncias como esses
conceitos foram pensados pelos saberes sociais disponiacuteveis naquele contexto (mitologia
127 Essa inscriccedilatildeo tambeacutem aparece citada em Suetocircnio (Nero 39) 128 ldquoΝέρων Ὀρέστης Ἀλκμαίων μετροκτόνοιrdquo
96
retoacuterica e filosofia) e a relaccedilatildeo desses saberes e os escritos luciacircnicos assim como cumpre
integrarmos nossa Tese nas reflexotildees das ciecircncias humanas contemporacircneas
A mitologia (conjunto de mitos de uma determinada cultura) eacute um corpo de narrativas
que propotildee uma explicaccedilatildeo sociocultural para as comunidades Por esse motivo pode ser
pensada enquanto um veiacuteculo para compreender o presente Os significados que os mitos
portam satildeo polivalentes (GANGLOFF 2006 20) permitindo diversos tipos de indagaccedilotildees e
reflexotildees
No contexto que estudamos as anaacutelises que buscam os sentidos profundos dos mitos
tendo em vista sua relaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas natildeo respondem aos usos que os mesmos
apresentaram Luciano enfatiza muito mais o fato de o mito ser uma estoacuteria conhecida ndash o que
facilitava que o mesmo transmitisse informaccedilotildees valores e desejos ndash do que seus viacutenculos com
a religiosidade Em muitos momentos o escritor de Samoacutesata evidencia as incongruecircncias do
mito Haacute o desejo de produzir o riso mas o riso precisa ser pensado em uma loacutegica proacutepria
O riso relaciona-se diretamente com o gecircnero escolhido entretanto desarma a audiecircncia
e permite que a criacutetica sociocultural seja elaborada diante dos poderes estabelecidos O efeito
cocircmico faz com que a imagem tenha uma durabilidade maior na memoacuteria daquele que ouve E
esse conhecimento estava disponiacutevel nos manuais de retoacuterica do periacuteodo imperial Por exemplo
um dos mais importantes manuais que nos restaram o Retoacuterica ad Herennium ao falar da
criaccedilatildeo de imagens e da fixaccedilatildeo de ideias lembra-nos que as mesmas para terem um efeito
mnemocircnico mais contundente atribuem ldquoum efeito cocircmico agraves nossas imagens o que tambeacutem
nos garantiraacute que lembremos delas mais prontamenterdquo129 (Anocircnimo Rhet Ad Her III XXII)
Esse ato favorece a memoacuteria uma vez que estimula reaccedilotildees emocionais
Alberto Camerotto em seu livro La metamorfosi della parola studi sulla parodia in
Luciano de Samosata ressalta o uso da memoacuteria como recurso literaacuterio usado na paroacutedia
luciacircnica A memoacuteria permite ao escritor criar por meio da imitaccedilatildeo da alusatildeo ou da citaccedilatildeo
no diaacutelogo com a tradiccedilatildeo literaacuteria que estava disponiacutevel (CAMERROTTO 1998 141) A
formaccedilatildeo do πεπαιδευμένος conceito antigo que se refere agravequele que domina os elementos
da Paideia completa-se com esse tipo de conhecimento e era fundamental para que o orador se
estabelecesse no meio poliacutetico (WHITMARSH 2001 5)
Como Camerrotto observou Luciano mescla em sua escrita poesia e prosa numa
estrateacutegia de escrita vinculada diretamente aos saberes sociais ligados agrave arte da memoacuteria A
129 ldquo[] aut ridiculas res aliquas imaginibus adtribuamus nam ea res quoque faciet ut facilius meminisse valeamusrdquo
97
partir de uma tradiccedilatildeo originaacuteria da reflexatildeo presente na obra de Mikhail Bakthin Camerrotto
tenta compreender a loacutegica do cocircmico seacuterio (BAKHTIN 2010 121-122)
Os recursos estiliacutesticos de Luciano partem do que Camerrotto chamou de ldquomixisrdquo a
mistura de gecircnero como caracteriacutestica essencial desse escritor Outro recurso presente nos seus
escritos eacute a mescla de prosa e verso ndash lembremos que o mito era transmitido pela tradiccedilatildeo
homeacuterica e hesioacutedica por meio dos versos Camerrotto ressalta ainda que a criaccedilatildeo luciacircnica
natildeo eacute totalmente livre pois estaacute na interaccedilatildeo constante do novo com a tradiccedilatildeo
(CAMERROTTO 1998 75)
Lembrar e esquecer satildeo elementos fundamentais para a construccedilatildeo cultural dos
indiviacuteduos Como ressaltamos anteriormente a construccedilatildeo de narrativas de que o passado seja
o principal referente pode ser uma constante antropoloacutegica mas natildeo eacute um ato natural e o modo
como as sociedades tecem esses discursos varia de maneiras muito diversas130 A anaacutelise dos
textos luciacircnicos necessita da clareza desses conhecimentos que estavam disponiacuteveis aos
homens cultos de sua eacutepoca Luciano deve ser visto como antes de tudo um orador o que eacute
documentado pelos exerciacutecios retoacutericos presentes em sua obra como nos textos sobre o uso do
discurso Mesmo natildeo se referindo aos manuais de retoacuterica de seu tempo podemos supor que o
siacuterio conhecia a arte da memoacuteria de Simocircnides
Frances Amelie Yates relembra uma importante estoacuteria sobre o poeta grego Simocircnides
citando o orador romano Ciacutecero que conta como o poeta foi chamado a um banquete a fim de
fazer o elogio do anfitriatildeo Entretanto metade do seu discurso foi dedicada para enaltecer os
gecircmeos Dioacutescoros131 Ao fim da alocuccedilatildeo o dono da festa resolve pagar somente a metade do
combinado o restante ele deveria cobrar dos gecircmeos A festa transcorria quando Simocircnides
foi avisado que dois homens o chamavam no portatildeo da casa Ele vai ateacute a porta e nesse instante
o teto do salatildeo desaba sobre os convivas e todos satildeo mortos ficando com seus corpos
desfigurados e por isso natildeo sendo possiacutevel reconhececirc-los Contudo o poeta mostra com
precisatildeo onde cada um dos convidados estava sentado o que possibilitou o reconhecimento dos
corpos (YATES 2007 17-18)
Essa anedota apenas configura a imagem desse personagem como o inventor da
mnemoteacutecnica Trata-se de um saber cujo principal ensinamento seria que o orador deveria
130 O teoacuterico alematildeo Jorg Rusen (2001) propocircs uma tipologia das maneiras com as quais os homens produzem
narrativas sobre o passado Postura criticada no texto do teoacuterico japonecircs Masayuki Sato (2006) Obviamente a
construccedilatildeo desses modelos natildeo eacute uma tarefa faacutecil e nossa postura eacute de duacutevida radical da capacidade de construccedilatildeo
de modelos que consigam dar conta dessa multiplicidade 131 Trata-se de dois filhos de Zeus com a mortal Leda Castor e Poacutelux Satildeo irmatildeos de Helene e Clistemenestra O
pai dos deuses se uniu com sua matildee na forma de um cisne Seu culto eacute bastante popular entre os homens do tempo
de Luciano especialmente entre os romanos (GRIMAL 2005 123)
98
treinar sua memoacuteria ligando palavras ou coisas a lugares de tal maneira que a disposiccedilatildeo dos
lugares permita ao orador lembrar os elementos necessaacuterios ao fazer um discurso
Os manuais de retoacuterica latinos foram os que melhor analisaram esse saber Podemos
citar principalmente Ciacutecero Quintiliano e o anocircnimo autor da Rhetorica ad Herennium A arte
da memoacuteria se vincula diretamente ao uso controlado da memoacuteria artificial como uma
realizaccedilatildeo do esforccedilo individual Sobre esse tema o trabalho de Yates continua mesmo depois
de 50 anos de sua publicaccedilatildeo original em inglecircs uma obra incontornaacutevel para aqueles que
estudam a cultura da memoacuteria no mundo ocidental (YATES 2007 17-38)
Ainda que a autora natildeo fosse especialista no mundo antigo sua especialidade era o
Renascimento principalmente o livro de Giordano Bruno em que os dois primeiros capiacutetulos
mapeiam os elementos constituidores da arte da memoacuteria no mundo antigo e principalmente
evidenciam como esse conhecimento era fundamental para a formaccedilatildeo do homem antigo
Trata-se de uma estrateacutegia individual na qual o orador soacute conseguia a eficaacutecia almejada
em seu discurso caso ele conseguisse manipular as informaccedilotildees disponiacuteveis e transformaacute-las
de forma a mobilizar os sentimentos do seu ouvinte a fim de convencecirc-lo Luciano de Samoacutesata
tinha conhecimento desses manuais uma vez que ele foi advogado e usou as teacutecnicas da retoacuterica
grega em seus escritos Os laccedilos entre arte da memoacuteria e retoacuterica satildeo elemento chave para
compreender porque a produccedilatildeo de Luciano vincula-se agrave cultura poliacutetica do Impeacuterio Romano
Sabe-se da presenccedila de oradores em muitos ambientes sociais pois eles declamavam em
banquetes antes de algum espetaacuteculo e nas praccedilas puacuteblicas
Dadas as condiccedilotildees poliacuteticas das sociedades dominadas pelo Impeacuterio Romano a retoacuterica
deliberativa foi paulatinamente perdendo espaccedilo e suas formas judiciais e epidiacuteticas ganhando
destaque no cenaacuterio imperial
25 Luciano e os mitos
O historiador deve desconfiar das permanecircncias de termos uma vez que os mesmos
podem camuflar profundas transformaccedilotildees por exemplo democracia132 Com o termo mito natildeo
eacute diferente visto que seu significado mudou desde Homero Como apontamos anteriormente
nos textos homeacutericos essa palavra significa apenas relato narrativa sem nenhuma conotaccedilatildeo
132 Essa palavra eacute interessante como nos mostrou Nicole Louraux pois mesmo na Greacutecia claacutessica seu significado
vacilou entre uma noccedilatildeo positiva e um termo pejorativo para a organizaccedilatildeo poliacutetica grega (LORAUX 2009197)
aleacutem da diferenccedila intriacutenseca que o termo comporta com as democracias ocidentais contemporacircneas e a ateniense
99
pejorativa Em Luciano ela aparece quarenta vezes com oito significados diferentes conforme
nossa investigaccedilatildeo
1 O mito aparece vinculado agrave narrativa de aventuras tradicionais das divindades heroacuteis e
seres maravilhosos expressando estoacuterias que satildeo interessantes mas carentes de
veracidade (Luciano Bacch 12 Syr Dea 125 Dom 192 Dom 1912 Anarch
3518 Salt 194 Salt 1911 Salt 1919 Astr 195 Hermot 2013)
2 Narrativas vinculadas agrave explicaccedilatildeo sobre algum acontecimento ou sobre a origem de
alguma coisa Luciano apresenta no texto Sobre o acircmbar ou dos cisnes (Electr 11
Electr 27) essa palavra identificada com a proacutepria narrativa que explica o surgimento
do acircmbar No Encocircmio agrave mosca ele elucida o significado da picada do inseto (Musc
Enc 101) Esse termo tambeacutem serve para explicar a toponiacutemia de uma regiatildeo (Tox
322)
3 No Encocircmio agrave mosca Luciano usa o termo mito em um contexto vinculado agrave filosofia
platocircnica da imortalidade da alma Ele afirma que a mosca eacute um dos animais que
ressuscitam e vincula isso agrave narrativa (μῦθον) sobre Hermoacutetimo de Clazoacutemenas
conhecido personagem ao qual era atribuiacuteda a transmigraccedilatildeo da alma (Torx 710-20)
4 Ele usa o termo mythos para se referir agraves histoacuterias de outros povos ou cidades num
sentido de construccedilatildeo identitaacuteria ou de tentativa de colocar em duacutevida tais narrativas
(Torx 1112 Hist Co 2811 Adv Ind 113 Apol 325 Icar 1917 Salt 211) Haacute
aqui a construccedilatildeo de uma narrativa etnograacutefica ao estilo de Heroacutedoto de Halicarnaso
5 Em alguns momentos esse termo liga-se agraves narrativas que natildeo apresentam comprovaccedilatildeo
empiacuterica ou veracidade sendo dessa forma desprovidas de racionalidade opostas agraves
ldquonarrativas verdadeirasrdquo Nesses casos os tradutores utilizam os termos faacutebula estoacuteria
lendas fable leged story (Torx 5616 Macr 104 Alex 78 Im 47) No caso de
Alexandre ou o falso profeta a palavra aparece em um contexto que catalisa seu aspecto
negativo
6 Nos textos homeacutericos a palavra mito tem o sentido de relato natildeo se opondo a logos
Luciano utiliza a palavra com esse sentido em alguns momentos (Cal 816 Somn
18189 Tim 3522 Im 121133 Sat 346) No texto Por que natildeo acreditar em caluacutenias
haacute uma citaccedilatildeo de um poeta arcaico cujo nome natildeo sabemos em que a palavra manteacutem
o sentido original
133 Nessa linha existem duas apariccedilotildees
100
7 Em alguns momentos Luciano enfatiza a proximidade entre mito e poesia ou que o
mito eacute narrado por Homero e Hesiacuteodo esses ldquofazedores de mitosrdquo (J Trag 3911)
Nesses casos o samosatense enfatiza as alegaccedilotildees platocircnicas de que o mito eacute prejudicial
para a formaccedilatildeo dos cidadatildeos jaacute que sua narrativa traz o encanto e obscurece o
raciociacutenio (Philops 919 Philops 43) O mito eacute tema de um gecircnero literaacuterio especiacutefico
o que explica sua apariccedilatildeo no opuacutesculo Como se deve escrever a Histoacuteria (Hist Co
820 Hist Co 1027) Ele ensina ainda que o historiador caso se depare com um mito
em uma investigaccedilatildeo (Hist Co 601) deve deixar ao leitor o parecer sobre a fiabilidade
do mesmo ao modo de Heroacutedoto
8 No texto Hermotimo ou sobre as seitas o termo refere-se agraves faacutebulas esoacutepicas134
(Hermot 842)
Desse modo o termo mito eacute apropriado pelo siacuterio com conteuacutedos semacircnticos
distintos Para a compreensatildeo da maneira como Luciano lida com os mitos podemos usar como
exemplo esclarecedor o texto Sobre o acircmbar ou os cisnes no qual o narrador propotildee investigar
a narrativa sobre o acircmbar Segundo essa estoacuteria ele seria originaacuterio de aacutelamos proacuteximos ao rio
Eridamo135 que choram laacutegrimas de acircmbar por causa de Faetonte136 Como o acircmbar eacute muito
valioso o narrador manifesta o desejo de ir ao rio sentar embaixo de uma dessas aacutervores e
pegar as ldquolaacutegrimasrdquo
Indo em direccedilatildeo ao Ocidente o narrador natildeo encontra os tais aacutelamos e pergunta aos
marinheiros onde eles os encontravam Como natildeo sabem do que ele fala eacute necessaacuterio narrar o
mito Essa narrativa se coloca na encruzilhada de sua polissemia pois por um lado lembra que
o termo vincula-se agrave narrativa sobre a origem de outro como estoacuteria fantasiosa Logo os
marinheiros entenderam o engano em que o viajante caiacutera pensando que encontraria os aacutelamos
que choram acircmbar Os navegantes perguntam-lhe ldquoQue indiviacuteduo enganador e mentiroso te
contou issordquo137 (Electr 315) Em seguida afirmam que nunca tinham visto nada tatildeo valioso
134 A faacutebula eacute um pequeno conto moralizador ateacute o seacuteculo XVIII era escrita em verso (MASSAUD 1992 226)
protagonizado por animais irracionais que sugerem semelhanccedilas com os homens Desde o seacuteculo V aC a faacutebula
grega se associou a seu principal copilador Esopo (SPEAKE 1999 159) Segundo a tradiccedilatildeo ele foi um escravo
traacutecio que trabalhou em Samos onde foi liberto (SPEAKE 199 148-149) 135 Trata-se de um dos cinco rios miacuteticos que cruzariam o Hades tido como um dos filhos de Oceanos e Tetis 136 Filho do deus Helio que teve a permissatildeo de dirigir o carro solar por um dia entretanto saiu da rota quase
queimando a Terra ou afastando o sol em demasia Para evitar um problema maior Zeus o fulminou com um raio
e seu corpo caiu perto do rio Eridamo o que Luciano conta no texto Astrologia (Astrol 1911) Suas irmatildes teriam
sido transformadas em aacutervores chamadas de aacutelamos por causa do desesperado pranto 137 ldquoΤίς ταῦτά σοι ἔφασκον διηγήσατο ἀπατεὼν καὶ ψευδολόγος ἄνθρωποςrdquo
101
mesmo navegando em terras distantes Caso houvesse algo tatildeo raro eles mesmos
comercializariam o produto
Em outra passagem o siacuterio questiona inicialmente as autoridades que expressam
os mitos fala tanto dos poetas tradicionais quanto das tradiccedilotildees orais que permanecem na
memoacuteria (Electr 6) O mito eacute enfrentado questionado investigado O que se fazia distante do
outro eacute buscado com a vista Eacute justamente pelo sentido da visatildeo que os marinheiros rebatem as
afirmativas do narrador logo completadas por argumentos de ordem praacutetica e comercial Os
olhos desmentem o que foi dito Assim uma investigaccedilatildeo que busca ver os locais presentes nas
narrativas contesta a veracidade dos mitos
Sendo abordado dessa forma o personagem luciacircnico desabafa agrave moda de Platatildeo
ldquo() fiquei envergonhado porque realmente me havia ocorrido algo comum agraves crianccedilas confiar
nas fantasias inverossiacutemeis dos poetas o que natildeo eacute saudaacutevel admitirrdquo138 (Electr 319-21) Haacute
nesse momento uma alegaccedilatildeo que remonta agraves elucubraccedilotildees presentes na Repuacuteblica Entretanto
Luciano natildeo aproxima as ldquofantasias do mitordquo da educaccedilatildeo do cidadatildeo ideal como o filoacutesofo
De maneira indireta eacute isto que do passo se desdobra o homem inteligente natildeo deve acreditar
em estoacuterias que natildeo satildeo fiaacuteveis deve sempre manter uma postura de duacutevida
Os marinheiros completam ldquoeacute vocecirc bom homem que natildeo se cansa de inventar
mentiras sobre nosso paiacutes e o riordquo139 (Electr 59) Luciano aponta o problema principal a
distacircncia que inviabiliza a verificaccedilatildeo das estoacuterias Obviamente ele fornece uma maneira de
lidar bem com tais narrativas alertando que eacute preciso tomar cuidado com os relatos exagerados
ou insuficientes Ele termina com um pacto de leitura afirmando ldquoem lugar algum me ouviram
vangloriar-me desta forma em meus discursos e nunca ouviratildeordquo140 (Electr 65-6)
A relaccedilatildeo de Luciano com os mitos eacute muito complexa uma vez que ele estaacute
preocupado com seu potencial educativo (preocupaccedilatildeo com as narrativas que natildeo satildeo criacuteveis)
suas relaccedilotildees com a existecircncia material (procura de produtos comercializaacuteveis) e as balizas de
uma teoria dos tipos de discursos Histoacuteria e Poesia O que notamos eacute a riqueza que o termo
mito agrega aos escritos de Luciano Como ele observa os mitos por essa ordem podemos
analisar a maneira como utiliza os elementos da narrativa miacutetica na construccedilatildeo de seus
discursos O siacuterio tinha como um de seus temas prediletos as contradiccedilotildees por exemplo o fato
de Zeus ter um tuacutemulo em Creta (Luciano Tim 611)
138 ldquo[] καὶ ἐσιώπησα αἰσχυνθείς ὅτι παιδίου τινος ὡς ἀληθῶς ἔργον ἐπεπόνθειν πιστεύσας τοῖς ποιηταῖς ἀπίθανα
οὕτως ψευδομένοις ὡς μηδὲν ὑγιὲς ἀρέσκεσθαι αὐτοῖςrdquo 139 ldquo[] Σύ ἔφησαν ὦ ἄνθρωπε οὐ παύσῃ τήμερον καταψευδόμενος τῆς χώρας ἡμῶν καὶ τοῦ ποταμοῦrdquo 140 ldquo[] ἀλλὰ μαρτύρομαι ὡς ἐμοῦ τοιαῦτα μεγαλαυχουμένου περὶ τῶν ἐμῶν οὔτε ὑμεῖς οὔτε ἄλλος πω ἀκήκοεν
οὐδ ἂν ἀκούσειέν ποτεrdquo
102
Esse uso nunca eacute ingecircnuo uma vez que quando analisamos o texto Dupla
Acusaccedilatildeo fica evidente que Luciano domina os gecircneros poeacuteticos o que lhe permite transgredi-
los estendendo-os para a mitologia Por isso em suas narrativas personagens mitoloacutegicos e
histoacutericos dialogam e se questionam Os Diaacutelogos dos mortos satildeo um excelente exemplo dessa
praacutetica
Luciano conhecia a explicaccedilatildeo evemerista141 utilizando-a para a confecccedilatildeo de seus
textos Por exemplo o mito de Proteu ganha uma explicaccedilatildeo evemerista no texto Sobre a danccedila
Nesse opuacutesculo Proteu era um danccedilarino excelente que se expressava em suas danccedilas e imitava
as qualidades dos fenocircmenos naturais (aacutegua fogo vento) dos animais (leatildeo leopardo) e das
aacutervores Por esse motivo os mesmos foram lembrados pela metaacutefora da transformaccedilatildeo que
pouco a pouco teria sido esquecida No texto Astrologia o mito de Faetonte142 ganha uma
explicaccedilatildeo nesse sentido ele eacute um astroacutelogo que estudou os misteacuterios do sol mas morreu sem
completar suas investigaccedilotildees (Astrol 18-191) Nesse mesmo texto Luciano fornece narrativas
que apresentam explicaccedilotildees semelhantes para os mitos de Beloferonte Iacutecaro e Deacutedalo entre
outros
No texto Anaacutecarsis ou sobre a ginaacutestica Soacutelon personagem histoacuterico retomado por
Luciano expressa elementos que nos ajudam a entender como o πεπαιδευμένος se formaria
Educamos para que seu espiacuterito vibre primeiro com a muacutesica e com a
aritmeacutetica e os ensinamos a escrever as letras e diferenciaacute-las sem
dificuldade A medida que vatildeo avanccedilando lhes recitamos as maacuteximas
dos homens saacutebios gestas do passado e pensamentos uacuteteis adornados
em verso para que sejam recordados mais facilmente Eles escutam
essas gestas faccedilanhas destacadas pouco a pouco se sentem inclinados
para elas e se afanam em imitaacute-las para agrave sua vez tambeacutem serem
cantados e admirados na posteridade tanto Hesiacuteodo quanto Homero
compuseram muitos poemas dessa iacutendole143 (Luciano Anarc 21 grifo
nosso)
141 Explicaccedilatildeo dos mitos que afirma que eles satildeo feitos de homens do passado divinizados pelo medo ou pela
admiraccedilatildeo dos homens 142 Trata-se do mesmo mito debatido na seccedilatildeo anterior no texto Sobre o acircmbar ou os cisnes entretanto nesse
momento Luciano encontra outra chave interpretativa para a mesma estoacuteria Natildeo podemos esquecer que a escolha
dos mitos narrados servem muitas vezes aos gecircneros escolhidos 143 ldquoΤὴν μὲν τοίνυν ψυχὴν μουσικῇ τὸ πρῶτον καὶ ἀριθμητικῇ ἀναρριπίζομεν καὶ γράμματα γράψασθαι καὶ τορῶς
αὐτὰ ἐπιλέξασθαι διδάσκομεν προϊοῦσιν δὲ ἤδη σοφῶν ἀνδρῶν γνώμας καὶ ἔργα παλαιὰ καὶ λόγους ὠφελίμους
ἐν μέτροις κατακοσμήσαντες ὡς μᾶλλον μνημονεύοιεν ῥαψῳδοῦμεν αὐτοῖς οἱ δὲ καὶ ἀκούοντες ἀριστείας τινὰς
καὶ πράξεις ἀοιδίμους ὀρέγονται κατὰ μικρὸν καὶ πρὸς μίμησιν ἐπεγείρονται ὡς καὶ αὐτοὶ ᾄδοιντο καὶ
θαυμάζοιντο ὑπὸ τῶν ὕστερον οἷα πολλὰ Ἡσίοδός τε ἡμῖν καὶ Ὅμηρος ἐποίησανrdquo
103
A proposta de anaacutelise dos diaacutelogos luciacircnicos envereda nesse sentido buscando
compreender o discurso em sua complexidade uma vez que Luciano questiona e reinventa os
mitos Sua escrita se apropria da tradiccedilatildeo de uma maneira peculiar ora questionando a tradiccedilatildeo
ora enfatizando seu caraacuteter formador
Observamos em todos os toacutepicos do segundo capiacutetulo desta Tese que Luciano de
Samoacutesata se coloca em um regime de memoacuteria especiacutefico em que os homens satildeo formados
dentro de premissas comuns As narrativas miacuteticas expressam uma face importante desse
regime especiacutefico Frente a esse contexto colocamos a indagaccedilatildeo relativa aos usos poliacuteticos
que essas narrativas tecircm nos escritos do escritor de Samoacutesata
104
Capiacutetulo III
Apropriaccedilatildeo luciacircnica das narrativas miacuteticas repensando o
poder
Os usos da mitologia nos escritos de Luciano de Samoacutesata dialogam com a cultura
poliacutetica144 greco-romana e com sua teologia poliacutetica145 Por se relacionarem a partir de uma
encruzilhada cultural que se evidencia em trecircs pontas romanos gregos e siacuterios os textos
luciacircnicos dialogam com os alicerces da teia cultural dominante a partir do olhar do dominado
sem colocar essa dicotomia em uma letra radical jaacute que estar em lugares diferentes natildeo impede
o diaacutelogo o que implica em acordos e negociaccedilotildees simboacutelicas constantes
Luciano eacute um intelectual helenizado que escreveu em uma placenta cultural
(CATROGA 200913) cuja interaccedilatildeo se torna profiacutecua e reveladora de novas possibilidades
de compreensatildeo social A resistecircncia cultural natildeo necessita do conflito aberto visto que ela
pode ocorrer das mais diversas formas Nesta pesquisa evidenciamos sua ocorrecircncia a partir
dos aspectos questionadores presentes no tratamento que o siacuterio daacute aos mitos gregos
Partimos das premissas de que as mensagens luciacircnicas discorrem sobre assuntos
poliacuteticos que precisavam de cuidados esteacuteticos eou retoacutericos substanciais para que a sua
apresentaccedilatildeo subvertesse ou questionasse a ordem estabelecida Como jaacute estava expresso no
manual de retoacuterica Sobre o Estilo de Demeacutetrio o escritor e o orador deviam ter cuidados para
falar ao tirano uma vez que a sobrevivecircncia do texto dependia disso Como afirmou Paul
Veyne ldquonaquele governo em que a defrontaccedilatildeo fiacutesica contava muito saber controlar a
fisionomia podia ser de importacircncia capital nos dois sentidos da palavrardquo (VEYNE 2009 15)
O historiador francecircs se refere especificamente ao Senado Romano entretanto essas
colocaccedilotildees se estendem a todos os espaccedilos de poder poliacutetico no Impeacuterio
No caso dos escritos de Luciano natildeo acreditamos em uma oposiccedilatildeo sistemaacutetica
feita pelo samosatense aos governos romanos mas no fato de esses documentos expressarem
as colocaccedilotildees de um intelectual que apresenta suas convicccedilotildees e opiniotildees referentes agraves coisas
que o cercam Ele usa para isso os recursos que aprendeu por meio da Paideia Os historiadores
apontam para a impossibilidade de atingir as intenccedilotildees originaacuterias do texto o que natildeo eacute possiacutevel
144 Entendemos por cultura poliacutetica o conjunto de siacutembolos praacuteticas e ideias que exprimem a maneira como uma
comunidade lida com o poder 145 Sobre a noccedilatildeo de teologia poliacutetica ver a nota 2
105
nem para autores contemporacircneos quanto mais para um escritor que viveu haacute mais de dezoito
seacuteculos Todavia existem pistas que nos permitem encontrar elementos para discutir sua
postura poliacutetica frente ao seu contexto
Haacute nesse escritor um sistemaacutetico questionamento dos elementos constituidores do
que chamamos de teologia poliacutetica romana principalmente daquela influenciada pelo
estoicismo Essa doutrina filosoacutefica defendia uma ldquovida contemplativa acima das ocupaccedilotildees
das preocupaccedilotildees e das emoccedilotildees da vida comum Seu ideal portanto eacute de ataraxia ou apatiardquo
(ABBAGNANO 2003 375 grifos do autor) No decorrer deste capiacutetulo expressamos o debate
luciacircnico sobre a ideia de providecircncia ou de uma razatildeo subjacente a todas as coisas jaacute que os
personagens miacuteticos satildeo confrontados diante dessa loacutegica
Para criticar a cultura e com isso as praacuteticas poliacuteticas de sua eacutepoca Luciano utilizou
elementos das narrativas miacuteticas helecircnicas que satildeo mobilizados no intuito de inquirir elementos
miacuteticos que sustentam a ordem simboacutelica do poder poliacutetico imperial Como ressaltamos os
elementos miacuteticos satildeo a expressatildeo de uma memoacuteria cultural Haacute um regime de memoacuteria
entendido como ordenamento metanarrativo que organiza os usos das memoacuterias e assim dos
mitos Esse trabalho natildeo eacute aleatoacuterio e como toda narrativa memorialiacutestica eacute extremamente
seletivo Aleacutem disso seus usos satildeo feitos em uma loacutegica proacutepria Os diaacutelogos questionam
justamente os usos da memoacuteria miacutetica Por meio do riso haacute a possibilidade da indagaccedilatildeo Em
termos formais existem dois tipos de diaacutelogos nos escritos de Luciano de Samoacutesata 1) os
diaacutelogos maiores que apresentam a mesma estrutura formal mas que satildeo muito mais longos
2) as coletacircneas de diaacutelogos menores distribuiacutedas por seus espaccedilos o mundo dos mortos o
Olimpo os mares e os prostiacutebulos
Este capiacutetulo estaacute distribuiacutedo por temas que se relacionam a distintas facetas do
poder No primeiro toacutepico analisamos o espaccedilo da trageacutedia e as especificidades da fala nesse
ambiente tendo em vista as reuniotildees dos deuses representadas por Luciano usamos Momo
como personagem catalisador da anaacutelise uma vez que esse reivindicava a parreacutesia como
maneira de dizer Em seguida nos detemos ao mundo dos mortos e diversas formas de pensar
a vida poliacutetica Aqui se inicia a preocupaccedilatildeo com alguns mortos ilustres por serem governantes
e especialmente a criacutetica agrave apoteose ou agrave pretensatildeo de se considerarem deuses No terceiro
passo discorremos sobre a presenccedila do titatilde Prometeu e os dilemas do poder poliacutetico em que
mencionamos a existecircncia de uma seacuterie de abusos do poder sendo cometidos e de estrateacutegias
de sobrevivecircncia no mundo da poliacutetica No quarto momento investigamos a imagem do tirano
nos textos luciacircnicos Essa anaacutelise se condensa no argumento do uacuteltimo toacutepico que eacute a imagem
de um Zeus tiracircnico construiacuteda nos escritos de Luciano
106
Dessa forma questionamos como essa memoacuteria cultural serve de contraponto agrave
interpretaccedilatildeo luciacircnica do mundo no qual ele escreve Trata-se aqui da exegese elaborada por
um inteacuterprete do Impeacuterio Greco-Romano que por muitos motivos inclusive pela sua
sobrevivecircncia e a de seus textos escolhe o riso como principal estrateacutegia para transmitir suas
mensagens O passado eacute retomado natildeo para refletir o preteacuterito mas sim o presente e apresentar
dessa forma um futuro almejado
31 As assembleias luciacircnicas poder e riso
A imagem de Luciano como um escritor alheio ao seu tempo expressa com mais forccedila
na obra de Bompaire comeccedilou a ser questionada com a ampliaccedilatildeo das informaccedilotildees
arqueoloacutegicas e epigraacuteficas Natildeo se pode questionar o profundo conhecimento que esse escritor
deteve da tradiccedilatildeo helecircnica que se expressa em seus textos pois ele conhecia os principais
textos de diferentes gecircneros
A informaccedilatildeo dada pela paleografia e pela arqueologia amplia o horizonte de
interpretaccedilatildeo dos discursos entretanto cabe ao leitor a atenccedilatildeo aos aspectos retoacutericos eou
estiliacutesticos que orientam a construccedilatildeo de determinado texto Outro fator relevante eacute a
observacircncia das lacunas que impedem objetivar empiricamente as conjecturas
Tanto a anaacutelise do texto natildeo pode ficar subordinada agraves descobertas da cultura material
bem como essa natildeo pode simplesmente servir para confirmar ou refutar uma informaccedilatildeo Um
exemplo interessante para ilustrar essas armadilhas foi exposto por Elisabeth Smadja que no
texto intitulado Image et culte de lrsquoEmpereur en Afrique (1995) conta-nos que vaacuterios
arqueoacutelogos encontram placas com inscriccedilotildees comemorativas da visita de determinado
Imperador nas cidades No caso ela trata dos Severos na Aacutefrica entretanto a anaacutelise da
documentaccedilatildeo textual natildeo corrobora essa informaccedilatildeo A autora explica que as visitas dos
governantes eram planejadas com antecedecircncia sendo que as cidades e proviacutencias eram
informadas para se prepararem para recepcionar o Princeps Logo as cidades preparavam
diversas accedilotildees para recepcionaacute-lo entre elas grandes placas comemorativas da visita Todavia
se por algum imprevisto ele natildeo fosse as placas continuariam nas cidades sendo inclusive
exibidas como forma de mostrar sua lealdade ao Impeacuterio e a seu governo (SMADJA 1995
283-285)
A proacutepria interpretaccedilatildeo dos textos luciacircnicos foi muito enriquecida com esses achados
principalmente em textos que falam sobre religiosidade como o caso de Alexandre e o falso
107
profeta Em 1980 Louis Robert publicou o livro A Travers lrsquoAsie Mineure poeacutetes et
prosateurs monnaies grecques voyageurs et geacuteographie com um capiacutetulo sobre Luciano de
Samoacutesata e seu tempo no qual o autor trabalha com a anaacutelise do Alexandre e as descobertas
arqueoloacutegicas em torno do templo de Gliacutecon no qual Alexandre estabeleceu o oraacuteculo dessa
serpente Robert apresenta moedas cunhadas em Abonotico durante os governos de Antonino
Pio Luacutecio Vero Geta (com nome de Gliacutecon) e Severo Alexandre com a representaccedilatildeo da cobra
de Glicon o novo Ascleacutepio em seu anverso O autor ainda apresenta moedas de outras cidades
naquela regiatildeo o que para o autor documentaria um culto bastante difundido (ROBERT 1980
395)
Esse processo de cotejamento do texto luciacircnico com as descobertas arqueoloacutegicas
tambeacutem alcanccedila escritos mais ficcionais tais como o diaacutelogo maior A assembleia dos deuses
J H OLIVER (1980) no artigo intitulado The actuality of Lucianrsquos ldquoAssembly of the Godsrdquo
apresenta um novo olhar sobre esse pequeno texto luciacircnico tendo em vista a carta do
Imperador Marco Aureacutelio recuperada em dois fragmentos epigraacuteficos sobre a importacircncia de
se verificar as trecircs geraccedilotildees (trigonia) para os componentes do Areoacutepago ateniense (FOLLET
apud OLIVER 1980 307-308)
Partindo da dataccedilatildeo proposta por Simone Follet Oliver acredita que a carta teria sido
enviada aos atenienses no ano de 174175 Natildeo existem duacutevidas do viacutenculo do texto com esse
registro epigraacutefico com o texto luciacircnico (FOLLET apud OLIVER 1980 310)
Noacutes partimos do pressuposto de que o opuacutesculo luciacircnico escrito nos paracircmetros do
gecircnero que ele mesmo teria inventado o diaacutelogo satiacuterico apresenta limites vinculados ao tipo
de riso que o escritor deseja produzir Ele quer gerar uma inquietaccedilatildeo um questionamento
logo haacute uma proximidade plausiacutevel entre os dois contextos a carta do Imperador e a
Assembleia dos deuses
Entretanto acreditamos que a anaacutelise desse opuacutesculo e diaacutelogo Zeus Traacutegico pode
ampliar nossa visatildeo clareando viacutenculos com a realidade histoacuterica do escritor todavia natildeo
objetivamos provar nenhum viacutenculo necessaacuterio Tal posicionamento observa a construccedilatildeo do
enredo dos diaacutelogos e as possiacuteveis metaacuteforas existentes Zeus inicia o diaacutelogo com o seguinte
problema
Zeus mdash Deixai de murmurar oacute deuses e de vos juntardes pelos cantos falando
ao ouvido uns dos outros escandalizados com o fato de muitos tomarem lugar
no nosso banquete sem o merecerem E jaacute que foi convocada uma assembleia
(ἐκκλησία) para tratar desse assunto que cada um emita abertamente a sua
108
opiniatildeo e proceda agrave acusaccedilatildeo E tu Hermes faz a proclamaccedilatildeo segundo a lei
(Luciano Deor Conc 1)146
O problema colocado eacute a presenccedila de deuses novos nos banquetes celestiais Para
resolver essa dificuldade ele convoca uma assembleia com os deuses sendo que essa eacute
convocada com foacutermulas similares agravequelas usadas nas assembleias claacutessicas Por exemplo
Hermes convoca os deuses a falar utilizando a foacutermula ldquodeuses de pleno direitordquo147 (Luciano
Deor Conc 1) para debaterem sobre os ldquometecos e os estrangeirosrdquo148 (Luciano Deor Conc
1)
Momo149 solicita a palavra e inicia cuidadosamente seu discurso observando dois
pontos 1) a ascensatildeo de mortais agrave condiccedilatildeo de divindade 2) a ascensatildeo de acompanhantes
desses novos deuses Como afirma Momo as novas divindades teriam direito a
participarem conosco das nossas assembleias (ξυνέδριον) e de se
banquetearem em peacute de igualdade conosco () trouxeram caacute para o ceacuteu
os seus criados () os registraram fraudulentamente e agora recebem
as distribuiccedilotildees em peacute de igualdade conosco participam tambeacutem nos
sacrifiacutecios sem nos terem pago a taxa de residecircncia150 (Luciano Deor
Conc 3)
Observemos que os problemas apontados por Momo pertencem agrave materialidade da existecircncia
alimentaccedilatildeo honrarias e pagamento de impostos
Momo acusa principalmente Dioniso que nascido da coxa de Zeus natildeo teria origem grega jaacute
que teria sido neto de Cadmo um comerciante siacuterio-feniacutecio Utilizando-se de recursos retoacutericos ele
evidencia a disparidade do comportamento dessa divindade que eacute descrita assim ldquoenfim natildeo falo
propriamente da sua pessoa nem da mitra nem da embriaguez nem da maneira de andar pois todos
julgo eu veem como ele eacute de sua natureza amaricado e efeminado meio louco tresandando a vinho
logo desde a manhatilderdquo151 (Luciano Deor Conc 4) Momo usa uma estrateacutegia retoacuterica ao dizer
146 ldquoΖΕΥΣ
Μηκέτι τονθορύζετε ὦ θεοί μηδὲ κατὰ γωνίας συστρεφόμενοι πρὸς οὖς ἀλλήλοις κοινολογεῖσθε ἀγανακτοῦντες
εἰ πολλοὶ ἀνάξιοι μετέχουσιν ἡμῖν τοῦ συμποσίου ἀλλ ἐπείπερ ἀποδέδοται περὶ τούτων ἐκκλησία λεγέτω ἕκαστος
ἐς τὸ φανερὸν τὰ δοκοῦντά οἱ καὶ κατηγορείτω σὺ δὲ κήρυττε ὦ Ἑρμῆ τὸ κήρυγμα τὸ ἐκ τοῦ νόμουrdquo 147 ldquoτίς ἀγορεύειν βούλεται τῶν τελείων θεῶν οἷς ἔξεστινrdquo 148 ldquoἡ δὲ σκέψις περὶ τῶν μετοίκων καὶ ξένωνrdquo 149 Momo eacute o filho da noite que aparece pela primeira vez na tradiccedilatildeo escrita ocidental na Teogonia de Hesiacuteodo
no verso 214A palavra microῶmicroος ου (ὁ) significa 1) censura reprovaccedilatildeo criacutetica 2) zombaria defeito maacutecula
mancha Nosso personagem ὁ Μῶmicroος aparece em mais duas importantes obras luciacircnicas que abrem o debate
acerca da vinculaccedilatildeo do texto deste escritor com a sociedade em que ele viveu a saber diaacutelogos maiores Zeus
Traacutegico e Assembleia dos deuses Dois textos que apresentam a assembleia dos deuses reunida 150 ldquo[] αὐτοὶ μετέχουσι τῶν αὐτῶν ἡμῖν ξυνεδρίων καὶ εὐωχοῦνται ἐπ ἴσης καὶ ταῦτα θνητοὶ ἐξ ἡμισείας ὄντες
ἔτι καὶ τοὺς ὑπηρέτας καὶ θιασώτας τοὺς αὐτῶν ἀνήγαγον ἐς τὸν οὐρανὸν καὶ παρενέγραψαν καὶ νῦν ἐπ ἴσης
διανομάς τε νέμονται καὶ θυσιῶν μετέχουσιν οὐδὲ καταβαλόντες ἡμῖν τὸ μετοίκιονrdquo 151 ldquo[] οἷος μὲν αὐτός ἐστινοὐ λέγω οὔτε τὴν μίτραν οὔτε τὴν μέθην οὔτε τὸ βάδισμα πάντες γάρ οἶμαι ὁρᾶτε
ὡς θῆλυς καὶ γυναικεῖος τὴν φύσιν ἡμιμανής ἀκράτου ἕωθεν ἀποπνέωνrdquo
109
que ele natildeo fala da conduta dele mas coloca todos os elementos considerados estranhos
Dioniso eacute descrito como outro uma alteridade da legiacutetima divindade helecircnica Observemos que
satildeo colocados em evidecircncia a maneira como essa divindade age e logo em seguida Momo
questiona a presenccedila das divindades que fazem parte dos rituais dionisiacuteacos principalmente os
saacutetiros
O riso luciacircnico coloca em questionamento o proacuteprio Zeus uma vez que esse brinca
com a multiplicidade de narrativas referentes a divindades Momo lembra que os cretenses
apresentam um tuacutemulo dessa divindade e que os habitantes de Eacutegio afirmam que ele foi ldquouma
crianccedila trocada por outrardquo152 (Luciano Deor Conc 6) Luciano tem consciecircncia da
multiplicidade e plasticidade das narrativas mitoloacutegicas Satildeo duas acusaccedilotildees 1) ele natildeo eacute
imortal pois tem um tuacutemulo em Creta 2) ele foi trocado quando era uma crianccedila A nosso
entender esses questionamentos tecircm alcances criacuteticos agrave teologia poliacutetica romana Trata-se de
uma narrativa miacutetica que questiona a consecratio ou apotheosis ou seja a transformaccedilatildeo de
um homem em Deus (BICKERMAN 1972 18) Luciano questiona como uma divindade pode
ter um tuacutemulo assim podemos inferir a duacutevida sobre a divinizaccedilatildeo dos Imperadores Romanos
O segundo elemento ainda coloca duacutevidas quanto agrave origem de um governante o que eacute comum
nos regimes de governo em que a transmissatildeo daacute-se pela consanguinidade
Entretanto Momo prefere acusar Zeus de estar na origem desse problema de sua
ilegalidade uma vez que essa divindade teve diversos filhos com mortais Satildeo filhos de Zeus
alguns humanos que se tornaram deuses por exemplo Heacuteracles e Dioniacutesio Zeus intercede no
diaacutelogo para que Momo natildeo acuse Ganimedes o jovem da Friacutegia capturado por Zeus que vive
entre os imortais Os casos de apoteose entre os helenos satildeo rariacutessimos sendo casos datados
no periacuteodo heroico Natildeo sabemos de nenhum rito de divinizaccedilatildeo entre os gregos em nenhuma
eacutepoca histoacuterica casos como os supracitados distanciam-se das praacuteticas romanas de consecratio
Entretanto tais narrativas eram utilizadas por romanos para justificar as ascensotildees dos
Imperadores O que queremos ressaltar eacute que natildeo era uma praacutetica helecircnica a divinizaccedilatildeo de
humanos em periacuteodos histoacutericos mas que essas narrativas foram utilizadas para justificar
simbolicamente a divinizaccedilatildeo dos imperadores mortos A primeira indagaccedilatildeo luciacircnica refere-
se agrave divinizaccedilatildeo de um mortal
O segundo ponto questionado pelo siacuterio por meio das indagaccedilotildees de Momo eacute a
presenccedila de deuses estrangeiros Observemos que essa divindade jaacute havia descrito
pejorativamente Dioniso por seus modos estrangeiros Momo afirma que
152 ldquoἐγὼ δὲ οὔτε ἐκείνοις πείθομαι οὔτε Ἀχαιῶν Αἰγιεῦσιν ὑποβολιμαῖόν σε εἶναι φάσκουσινrdquo
110
Mas oacute Zeus o Aacutetis153 o Coribante154 e o Sabaacutezio donde eacute que eles nos
chegaram aqui aos trambolhotildees Ou o famoso Mitra da Meacutedia com o seu
kandus155 e a sua tiara que nem sequer fala grego pelo que natildeo compreende
quando algueacutem bebe agrave sua sauacutede Entatildeo os Citas e entre eles os Getas ao
verem isto mandam-nos passear e eles proacuteprios conferem a imortalidade e
aclamam como deuses a quem muito bem entendem e foi desse modo que
Zamoacutelxis156 um escravo foi natildeo sei laacute como inscrito sem noacutes darmos por
isso E no entanto oacute deuses isto ainda natildeo eacute nada Tu aiacute oacute cabeccedila-de-catildeo157
egiacutepcio vestido com faixas de linho quem eacutes tu meu caro Como eacute que
pretendes ser um deus assim a ladrar E aqui este boi de Mecircnfis158 com a pele
agraves listas por que carga de aacutegua eacute adorado emite oraacuteculos e tem os seus
profetas Sinto pejo de nomear iacutebis macacos bodes e outros animais ainda
mais ridiacuteculos vindos do Egipto e natildeo sei laacute como introduzidos no ceacuteu
Como eacute que voacutes oacute deuses suportais vecirc-los em peacute de igualdade ou mesmo
mais venerados E tu oacute Zeus como admites que te faccedilam nascer cornos de
carneiro159 (Luciano Deor Conc 9-10)
Nesse passo podemos observar a presenccedila de divindades estrangeiras na assembleia dos
deuses Noacutes partimos da premissa de que Luciano constroacutei uma metaacutefora das assembleias de
seu tempo principalmente do Senado Romano cujas funccedilotildees haviam se transformado durante
o Principado sendo que no primeiro e segundo seacuteculo haacute uma progressiva aceitaccedilatildeo de
representantes das elites provinciais entre os senadores
Recentemente a professora Issabelle Gassino analisou detalhadamente A assembleia
dos Deuses observando que Luciano tem um cuidado muito grande na utilizaccedilatildeo dos termos
que vinculam o diaacutelogo agrave tradiccedilatildeo democraacutetica ateniense (GASSINO 20122013 93-95)
Gassino observa que o uso do termo assembleia em grego ἐκκλησία refere-se agrave assembleia dos
atenienses mas que o termo tambeacutem foi utilizado para referir-se a assembleias de outras
153 Atis e Sabaacutezio satildeo deuses Friacutegios que apresentam cultos orgiaacutesticos 154 Divindade asiaacutetica vinculada a Cibele geralmente os textos referem-se a essas divindades em grupo 155 Veste persa 156 Zalmoacutelxis tem sua lenda recolhida por Heroacutedoto (Hist IV 95) Trata-se de um escravo libertado que acumula
grande riqueza Como havia sido educado pela filosofia pitagoacuterica desprezava os costumes baacuterbaros Segundo
Heroacutedoto ele teria construiacutedo um abrigo subterracircneo em sua casa onde teria passado trecircs anos escondido Haacute
muito considerado morto pela populaccedilatildeo de Samos ele reaparece o que lhe deu a fama de ser uma divindade 157 Deus egiacutepcio Anuacutebis que tem cabeccedila de chacal natildeo de catildeo como afirma Luciano 158 Boi Apis cultuado no Egito 159 ldquoἈλλ ὁ Ἄττης γε ὦ Ζεῦ καὶ ὁ Κορύβας καὶὁ Σαβάζιος πόθεν ἡμῖν ἐπεισεκυκλήθησαν οὗτοι ἢ ὁ Μίθρης
ἐκεῖνος ὁ Μῆδος ὁ τὸν κάνδυν καὶ τὴν τιάραν οὐδὲ ἑλληνίζων τῇ φωνῇ ὥστε οὐδ ἢν προπίῃ τις ξυνίησι
τοιγαροῦν οἱ Σκύθαι ταῦτα ὁρῶντες οἱ Γέται αὐτῶν μακρὰ ἡμῖν χαίρειν εἰπόντες αὐτοὶ ἀπαθανατίζουσι καὶ θεοὺς
χειροτονοῦσιν οὓς ἂν ἐθελήσωσι τὸν αὐτὸν τρόπον ὅνπερ καὶ Ζάμολξις δοῦλος ὢν παρενεγράφη οὐκ οἶδ ὅπως
διαλαθών
Καίτοι πάντα ταῦτα ὦ θεοί μέτρια σὺ δέ ὦ κυνοπρόσωπε καὶ σινδόσιν ἐσταλμένε Αἰγύπτιε τίς εἶ ὦ βέλτιστε
ἢ πῶς ἀξιοῖς θεὸς εἶναι ὑλακτῶν τί δὲ βουλόμενος καὶ ὁ ποικίλος οὗτος ταῦρος ὁ Μεμφίτης προσκυνεῖται καὶ χρᾷ
καὶ προφήτας ἔχει αἰσχύνομαι γὰρ ἴβιδας καὶ πιθήκους εἰπεῖν καὶ τράγους καὶ ἄλλα πολλῷ γελοιότερα οὐκ οἶδ
ὅπως ἐξ Αἰγύπτου παραβυσθέντα ἐς τὸν οὐρανόν ἃ ὑμεῖς ὦ θεοί πῶς ἀνέχεσθε ὁρῶντες ἐπ ἴσης ἢ καὶ μᾶλλον
ὑμῶν προσκυνούμενα ἢ σύ ὦ Ζεῦ πῶς φέρεις ἐπειδὰν κριοῦ κέρατα φύσωσί σοιrdquo
111
cidades160 ldquoE jaacute que foi convocada uma assembleia (ἐκκλησία) para tratar desse assunto que
cada um emita abertamente a sua opiniatildeo e proceda agrave acusaccedilatildeordquo (Luciano Deor Conc 1) ldquoEm
sessatildeo (Ἐκκλησίας) convocada nos termos legais no seacutetimo dia do mecircs Metagiacutetnion sendo
Zeus ldquopresidenterdquo Posiacutedon ldquovice-presidenterdquo Apolo ldquovogalrdquo e Momo filho de Noite
secretaacuterio Hipno emitiu a seguinte propostardquo (Luciano Deor Conc 14)
Que seja convocada uma Assembleia (ἐκκλησίαν) [a ter lugar] no
Olimpo no [dia do] solstiacutecio de Inverno e que sejam eleitos como
juiacutezes sete deuses de pleno direito sendo trecircs da antiga Assembleia do
tempo de Crono e quatro de entre os doze [deuses] entre os quais Zeus
(Luciano Deor Conc 15)
Outro termo utilizado por Luciano eacute ξυνέδριον161 que designa a assembleia de cidades
gregas e natildeo gregas por exemplo para o Senado Romano (Poliacutebio I 11 1 apud GASSINO
20122013 94) ldquoRealmente mdash afirmo eu mdash muitos natildeo contentes com o facto de
comparticiparem connosco das nossas assembleias (ξυνεδρίων) e de se banquetearem em peacute de
igualdade connosco []rdquo (Luciano Deor Conc 3) ldquoDe facto a origem de tais ilegalidades e
a causa de a nossa assembleia (ξυνέδριον) andar abastardada foste tu oacute Zeus []rdquo (Luciano
Deor Conc 7) ldquoQue Hermes convoque a reunirem-se todos quantos reclamem pertencer agrave
nossa Assembleia (ξυνέδριον) e que esses se apresentem trazendo consigo testemunhas
ajuramentadas e certidotildees de nascimentordquo (Luciano Deor Conc 15)
Aleacutem desses dois termos Luciano usa o termo βουλή ldquoAprouve ao Senado (βουλῇ) e
ao Povordquo (Luciano Deor Conc 15)
Noacutes entendemos que duas anaacutelises satildeo possiacuteveis desse contexto Uma restrita que veja
esse texto em consonacircncia com a carta de Marco Aureacutelio como Oliver coloca uma vez que
nesse documento epigraacutefico haacute elementos para pensar a inclusatildeo de novos membros nas listas
do Areoacutepago ateniense Nesse periacuteodo a cidadania ateniense conserva aspectos nostaacutelgicos do
periacuteodo democraacutetico mas natildeo tem as mesmas funccedilotildees poliacuteticas de quando a cidade era
independente (OLIVER 1980 303-313) Luciano ainda fala de outro fato contemporacircneo que
eacute o pagamento de taxas dos metecos (Luciano Deor Conc 3) Observemos que Luciano natildeo
fala dessa instituiccedilatildeo especiacutefica mas em termos mais geneacutericos Como observa Gassino se
Luciano quisesse se referir agrave reforma do Areoacutepago proposta por Marco Aureacutelio teria usado um
160 Basicamente a autora cita Aristoacuteteles em sua Poliacutetica Tucidides que usa esse termo para as assembleias
homeacutericas e para a Apella espartana (apud GASSINO 20122013 93) 161 Segundo Gassino ldquoσυνέδριον ξυνέδριον eacute geralmente utilizada para designar uma assembleia poliacutetica em
situaccedilotildees variadasrdquo (GASSINO 20122013 94)
112
vocabulaacuterio mais especiacutefico (GASSINO 20122013 98) Entretanto nos apartamos da anaacutelise
dessa autora quando ela enfatiza que esse documento trata muito mais dos deuses e suas
contradiccedilotildees que da poliacutetica de seu tempo Acreditamos que ela usa um conceito bastante
restrito de poliacutetica que natildeo consegue observar os liames de uma teologia poliacutetica
Esse dado nos leva a crer que sua assembleia deve ser analisada com elementos
contextuais mais amplos jaacute que a mesma pode se referir como propomos ao Senado No
Principado segundo Hammond (1957 74-81) haacute a crescente participaccedilatildeo de membros das
elites provinciais no Senado o que eacute um desconforto semelhante agravequele expresso por Momo
sobre Dioniso repetido no diaacutelogo final
Considerando que muitos estrangeiros () jaacute encheram o ceacuteu a ponto de a
nossa sala de banquetes estar a abarrotar com uma multidatildeo de tipos
barulhentos que falam muitas liacutenguas de uns fulanos juntos aos magotes
(Luciano Deor Conc 14)162
O desconforto com a liacutengua incompreensiacutevel coloca outros mecanismos de poder em
evidecircncia uma vez que esses deuses tecircm dificuldade em se comunicar com os outros Assim a
capacidade de convencimento fica obliterada Essa participaccedilatildeo desloca o eixo do poder
estabelecido uma vez que as importantes decisotildees natildeo dependem mais das elites da peniacutensula
itaacutelica Soma-se a isso o fato de os Antoninos estarem vinculados agraves elites romanas radicadas
na Hispacircnia
Outro elemento de aproximaccedilatildeo que se expressa no final do decreto de Momo ressalta
o poderio econocircmico das divindades ao dizer que
Quanto agravequeles aos quais jaacute foram dedicados templos ou altares sacrificiais
que lhes sejam retiradas as suas imagens e que estas sejam substituiacutedas pelas
de Zeus ou de Hera ou de Apolo ou de um qualquer dos outros mas a cidade
pode erigir-lhes um tuacutemulo e erguer-lhes uma coluna em vez de um altar
(Luciano Deor Conc 18)163
O procedimento comum em uma assembleia eacute que a decisatildeo seja votada Nesse caso o
decreto de Momo destituiria a maioria dos seus componentes logo Zeus natildeo coloca a decisatildeo
para ser votada Observemos a conclusatildeo de sua fala ldquoJustiacutessimo oacute Momo Entatildeo quem eacute a
162 ldquoἘπειδὴ πολλοὶ τῶν ξένων οὐ μόνον Ἕλληνες ἀλλὰ καὶ βάρβαροι οὐδαμῶς ἄξιοι ὄντες κοινωνεῖν ἡμῖν τῆς
πολιτείας παρεγγραφέντες οὐκ οἶδα ὅπως καὶ θεοὶ δόξαντες ἐμπεπλήκασι μὲν τὸν οὐρανὸν ὡς μεστὸν εἶναι τὸ
συμπόσιον ὄχλου ταραχώδους πολυγλώσσων τινῶν καὶ ξυγκλύδων ἀνθρώπων []rdquo 163 ldquoὁπόσοι δὲ ἤδη ναῶν ἢ θυσιῶν ἠξιώθησαν ἐκείνων μὲν καθαιρεθῆναι τὰ ἀγάλματα ἐντεθῆναι δὲ ἢ Διὸς ἢ
Ἥρας ἢ Ἀπόλλωνος ἢ τῶν ἄλλων τινός ἐκείνοις δὲ τάφον χῶσαι τὴν πόλιν καὶ στήλην ἐπιστῆσαι ἀντὶ βωμοῦrdquo
113
favor que levante o braccedilo ou melhor fica assim mesmo pois apercebo-me de que haveraacute
muitos que natildeo iriam aprovarrdquo164 (Luciano Deor Conc 19)
No diaacutelogo Zeus traacutegico que iremos analisar a seguir Zeus estaacute perturbado pelo debate
filosoacutefico acerca da natureza das divindades e expotildee o problema a Hera da seguinte maneira
Eacute que oacute Hera ainda ontem o estoico Timocles e o epicurista Damis natildeo sei a
que propoacutesito iniciaram um diaacutelogo em que discutiam a respeito da
Providecircncia na presenccedila de grande nuacutemero de pessoas distintas fato este que
ainda mais me afligiu Afirmava Damis que os deuses natildeo existem e que
muito menos vigiam e governam as coisas humanas enquanto o bom do
Timocles tentava falar em nossa defesa Depois juntou-se uma grande
multidatildeo mas a discussatildeo natildeo ficou por aqui De facto separaram-se tendo
no entanto combinado analisar a questatildeo num outro dia e agora estaacute toda a
gente na expectativa de saber qual dos dois vencera e parecera mais verdadeiro
na sua argumentaccedilatildeo Estais a ver o perigo como os nossos interesses estatildeo
numa situaccedilatildeo criacutetica dependentes de um soacute homem E das duas
necessariamente uma ou somos rejeitados caso as pessoas entendam que noacutes
natildeo passamos de meros nomes ou continuamos a ser homenageados como
dantes se Timocles vencer o pleito (Luciano J trag 4) 165
Zeus se preocupa com esse fato e solicita o conselho de algumas divindades que estatildeo
proacuteximas Hermes sugere a Zeus que esse convoque uma assembleia dos deuses para debater o
caso o que eacute apoiado por Hera e tem a reprovaccedilatildeo de Atena que acha que o tema natildeo deve ser
divulgado
Entretanto Hermes lembra a Zeus que qualquer atitude que ele tomar sozinho diante
desse problema ldquovatildeo considerar que tu agiste como um tirano pelo fato de natildeo convocares as
pessoas para um assunto de maior gravidade e interesse de todosrdquo (Luciano I Trag 5)166
Apoacutes a proclamaccedilatildeo que convoca a assembleia comeccedila o problema que de fato nos
interessa a disposiccedilatildeo dos deuses na assembleia conforme Zeus
Zeus ndash Fizeste uma beliacutessima proclamaccedilatildeo oacute Hermes e eis que jaacute estatildeo vindo
em chusma Portanto vai os recebendo e colocando segundo o valor de cada
um ou seja conforme o material e a arte de cada um nos lugares da frente
164 ldquoΖΕΥΣ
Δικαιότατον ὦ Μῶμε καὶ ὅτῳ δοκεῖ ἀνατεινάτω τὴν χεῖρα μᾶλλον δέ οὕτω ιγνέσθω
πλείους γὰρ οἶδ ὅτι ἔσονται οἱ μὴ χειροτονήσοντεςrdquo 165 ldquoΖΕΥΣ
Τιμοκλῆς ὦ Ἥρα ὁ Στωϊκὸς καὶ Δᾶμις ὁ Ἐπικούρειος χθές οὐκ οἶδα ὅθεν σφίσιν ἀρξαμένου τοῦ λόγου προνοίας
πέρι διελεγέσθην παρόντων μάλα συχνῶν καὶ δοκίμων ἀνθρώπων ὅπερ μάλιστα ἠνίασέ με καὶ ὁ μὲν Δᾶμις οὐδ
εἶναι θεοὺς ἔφασκεν οὐχ ὅπως τὰ γινόμενα ἐπισκοπεῖν ἢ διατάττειν ὁ Τιμοκλῆς δὲ ὁ βέλτιστος ἐπειρᾶτο
συναγωνίζεσθαι ἡμῖν εἶτα ὄχλου πολλοῦ ἐπιρρυέντος οὐδὲν πέρας ἐγένετο τῆς συνουσίας διελύθησαν γὰρ
εἰσαῦθις ἐπισκέψεσθαι τὰ λοιπὰ συνθέμενοι καὶ νῦν μετέωροι πάντες εἰσίν ὁπότερος κρατήσει καὶ ἀληθέστερα
δόξει λέγειν ὁρᾶτε τὸν κίνδυνον ὡς ἐν στενῷ παντάπασι τὰ ἡμέτερα ἐν ἑνὶ ἀνδρὶ κινδυνευόμενα καὶ δυοῖν
θάτερον ἢ παρεῶσθαι ἀνάγκη ὀνόματα μόνον εἶναι δόξαντας ἢ τιμᾶσθαι ὥσπερ πρὸ τοῦ ἢν ὁ Τιμοκλῆς ὑπέρσχῃ
λέγωνrdquo 166 ldquo[] καὶ δόξεις τυραννικὸς εἶναι μὴ κοινούμενος περὶ τῶν οὕτω μεγάλων καὶ κοινῶν ἅπασινrdquo
114
os de ouro a seguir estes os de prata depois os de marfim depois os de
bronze ou de maacutermore e entre estes os que satildeo de Fiacutedias de Alcacircmenes de
Miron de Eufranor ou de outros artistas prestigiados Quanto aqui a esses os
da raleacute e feitos sem arte amontoa-os para aiacute a parte e em silecircncio soacute para
fazerem nuacutemero na assembleia (Luciano I Trag 7) 167
Essa disposiccedilatildeo das divindades eacute interessante pois coloca pontos importantes como o
conceito de imagem antigo que entende a imagem como a presenccedila do ser representado ou
seja a estaacutetua da deusa Nike no Senado romano significava a presenccedila da proacutepria deusa entre
os senadores No caso Luciano brinca com isso e questiona por meio de Hermes como
selecionar as divindades enfatizando o artista que realizou aquele trabalho ou o material que ele
continha
Uma visatildeo superficial do funcionamento das assembleias entende que cada membro
tenha isonomia entretanto como nos ensinou Richard Talbert (1984) sobre o Senado Romano
cada Senador tem uma presenccedila diferenciada por sua autoridade prestiacutegio e posiccedilatildeo econocircmica
No Principado o Senado paulatinamente deixa de ser uma instituiccedilatildeo composta por uma elite
tradicional para acolher diferentes membros sejam eles estrangeiros ou por ter a quantia de um
milhatildeo de sesteacutercios Muitas vezes o Imperador dava essa quantia agravequeles que ele desejava no
Senado satildeo as adlectio Na anaacutelise que fazemos a metaacutefora luciacircnica opotildee antiguidade da
famiacutelia e sua autoridade moral ao dinheiro que muitos tecircm Ou seja ter uma estaacutetua de ouro
puro significa mais do que ser uma deusa helecircnica antiga
Como o Zeus luciacircnico eacute tratado com ares de tirano ele privilegia o valor intriacutenseco da
estaacutetua e natildeo a arte que essa possa ter Em uma frase raacutepida ele responde que ldquoo ouro eacute mais
estimaacutevelrdquo (Luciano I Trag 7)168 A ironia luciacircnica aproxima-se mais uma vez da realidade
histoacuterica em que ele vive
Hermes- Compreendo mandas-me sentaacute-los segundo o seu valor
pecuniaacuterio e natildeo segundo sua excelecircncia artiacutestica e os seus meacuteritos
Nesse caso voacutes os de ouro vinde ocupar os lugares da frente Estaacutes a
me parecer oacute Zeus que somente os deuses baacuterbaros iratildeo ocupar os
lugares da frente pois quanto aos deuses gregos () feitos segundo as
regras da arte (Luciano I Trag 7-8)169
167 ldquoΖΕΥΣ
Εὖ γε ὦ Ἑρμῆ ἄριστα κεκήρυκταί σοι καὶ συνίασι γὰρ ἤδη ὥστε παραλαμβάνων κάθιζεαὐτοὺς κατὰ τὴν ἀξίαν
ἕκαστον ὡς ἂν ὕλης ἢ τέχνης ἔχῃ ἐν προεδρίᾳ μὲν τοὺς χρυσοῦς εἶτα ἐπὶ τούτοις τοὺς ἀργυροῦς εἶτα ἑξῆς ὁπόσοι
ἐλεφάντινοι εἶτα τοὺς χαλκοῦς ἢ λιθίνους καὶ ἐν αὐτοῖς τούτοις οἱ Φειδίου μὲν ἢ Ἀλκαμένους ἢ Μύρωνος ἢ
Εὐφράνορος ἢ τῶν ὁμοίων τεχνιτῶν προτετιμήσθων οἱ συρφετώδεις δὲ οὗτοι καὶ ἄτεχνοι πόρρω που
συνωσθέντες σιωπῇ ἀναπληρούντων μόνον τὴν ἐκκλησίανrdquo 168 ldquoἀλλ ὁ χρυσὸς ὅμως προτιμητέοςrdquo 169 ldquoΕΡΜΗΣ
115
A oposiccedilatildeo entre gregos e baacuterbaros refere-se mais a uma colocaccedilatildeo referente ao poder
que tais homens tecircm que agraves suas escolhas identitaacuterias Deve-se ver aqui uma criacutetica agrave postura
de valorizaccedilatildeo das riquezas em detrimento da formaccedilatildeo soacutelida dos indiviacuteduos formados de
acordo com a Paideia helecircnica ou a tradicionalidade de algumas famiacutelias A seleccedilatildeo coloca
Poseidon o deus tradicional helecircnico atraacutes de Anuacutebis que tem uma estaacutetua de ouro maciccedilo o
que ao nosso entendimento eacute uma metaacutefora das assembleias de seu tempo principalmente do
Senado
Assim como na Assembleia dos deuses Luciano nos lembra da multiplicidade de
idiomas e dos constrangimentos que essa traz Uma vez que as dificuldades em comeccedilar a
reuniatildeo satildeo diversas nem todos entendem o idioma grego Podemos imaginar a presenccedila dos
primeiros gauleses no Senado Romano inseridos por Juacutelio Ceacutesar a sensaccedilatildeo eacute similar
Membros importantes da assembleia que natildeo falam o idioma utilizado na reuniatildeo (Luciano I
Trag 13)
Entendemos que os dois textos apresentam um debate sobre a religiatildeo luciacircnica mas
que sua interpretaccedilatildeo precisa observar a articulaccedilatildeo poliacutetica no interior das assembleias
representadas nos dois textos uma vez que ela se configura no interior da cultura poliacutetica
romana
Noacutes entendemos que a presenccedila de Momo nesse texto expressa a postura luciacircnica da
necessidade de se expressar francamente por meio da Parreacutesia atributo necessaacuterio para as
assembleias mas que tem seu lugar diminuiacutedo no Impeacuterio Romano Jaacute que exercer a parreacutesia
coloca o orador em riscos o riso que Momo causa deve ser entendido como possibilidade
perigosa do falar mesmo que seja necessaacuterio Quando o debate busca um culpado entre os
homens ele volta-se contra as contradiccedilotildees existenciais humanas as muacuteltiplas narrativas
mitoloacutegicas em suas contradiccedilotildees os oraacuteculos confusos as estoacuterias fantaacutesticas Zeus responde
assim aos seus inuacutemeros argumentos
Zeus mdash Deixemos oh deuses este fulano asnear pois ele eacute sempre truculento
e amigo de criticar Na verdade como disse o admiraacutevel Demoacutestenes acusar
censurar e criticar e muito faacutecil e estaacute ao alcance de todos ao passo que dar
sugestotildees no sentido de melhorar a presente situaccedilatildeo e coisa proacutepria de um
conselheiro verdadeiramente sensato e eacute isso mesmo tenho a certeza que vos
outros ireis fazer agora que este tipo jaacute estaacute calado (Luciano I Trag 23)170
Μανθάνω πλουτίνδην κελεύεις ἀλλὰ μὴ ἀριστίνδην καθίζειν καὶ ἀπὸ τιμημάτων ἥκετ οὖν εἰς τὴν προεδρίαν
ὑμεῖς οἱ χρυσοῖ ἐοίκασι δ οὖν ὦ Ζεῦ οἱ βαρβαρικοὶ προεδρεύσειν μόνοι ὡς τούς γε Ἕλληνας ὁρᾷς ὁποῖοί εἰσι
χαρίεντες μὲν καὶ εὐπρόσωποι καὶ κατὰ τέχνην ἐσχηματισμένοι []rdquo 170 ldquoΖΕΥΣ
116
Zeus abusando do poder que lhe eacute conferido ao presidir a assembleia desqualifica a postura da
divindade e evita debater os pontos constrangedores que esse evidencia Tal atitude apresenta uma
imagem com traccedilos autoritaacuterios de Zeus como vemos mais vezes nesta Tese A anaacutelise dos textos mostra
o diaacutelogo luciacircnico com a cultura poliacutetica de seu tempo principalmente nesse caso com o
funcionamento de uma assembleia que nos dois casos pode ser a metaacutefora do Senado e das assembleias
locais diante das mudanccedilas experimentadas no Principado
32 Diaacutelogo dos mortos quando o mito se encontra com a Histoacuteria
Os Diaacutelogos dos Mortos171 de Luciano de Samoacutesata foram bastante divulgados no
Brasil Por exemplo existem pelo menos quatro traduccedilotildees cuidadosas no mercado editorial
brasileiro172 Essa ampla divulgaccedilatildeo refere-se agrave atualidade desse texto que consegue apresentar
debates profundos em breves diaacutelogos Partimos do pressuposto de que esses diaacutelogos
apresentam questotildees atuais e inquietantes para os leitores contemporacircneos e principalmente
questionam o proacuteprio tempo em que seu autor escreveu Os textos luciacircnicos satildeo a expressatildeo
de uma profunda criacutetica social principalmente a partir da oposiccedilatildeo entre pobres e ricos como
afirma Rostovtzeff (apud BRANDAtildeO 19941995 84) Nosso ponto de vista vai aleacutem pois
afirmamos que existe nos escritos luciacircnicos uma seacuterie de colocaccedilotildees que transcendem a mera
criacutetica social e reverberam em uma apreciaccedilatildeo da cultura poliacutetica do Impeacuterio Greco-romano
Franccedilois Jouan no texto Mythe histoire et philosophie dans les ldquoDialogues des Mortsrdquo
compara Luciano a um jornalista iconoclasta dada a intenccedilatildeo em questionar os dogmas sociais
(JOUAN 1994 27) Haacute no texto luciacircnico um formato aacutegil que permite maior alcance de sua
mensagem Como ressaltamos anteriormente provavelmente esses textos eram lidos em voz
alta para uma audiecircncia antes de peccedilas maiores
Natildeo podemos esquecer que o Impeacuterio Romano destarte a ampla divulgaccedilatildeo da escrita
ainda era uma sociedade basicamente oral Nesse sentido os textos eram lidos antes de sua
publicaccedilatildeo O uso de personagens presentes na memoacuteria cultural facilitava a construccedilatildeo dos
argumentos em um procedimento simples e eficaz
Τοῦτον μέν ὦ θεοί ληρεῖν ἐάσωμεν ἀεὶ τραχὺν ὄντα καὶ ἐπιτιμητικόν ὡς γὰρ ὁ θαυμαστὸς Δημοσθένης ἔφη τὸ
μὲν ἐγκαλέσαι καὶ μέμψασθαι καὶ ἐπιτιμῆσαι ῥᾴδιον καὶ παντός τὸ δὲ ὅπως τὰ παρόντα βελτίω γενήσεται
συμβουλεῦσαι τοῦτ ἔμφρονος ὡς ἀληθῶς συμβούλου ὅπερ οἱ ἄλλοι εὖ οἶδ ὅτι ποιήσετε καὶ τούτου σιωπῶντοςrdquo 171 Nas citaccedilotildees dos Diaacutelogos dos mortos usamos a disposiccedilatildeo proposta no VII volume da Loeb Classical Library
editada por M D Macleod (2002) 172 Custoacutedio Maqueijo (2012) Henrique G Murachco (2007) Ameacuterico da Costa Ramalho (1998) Maria Celeste
Consolin Dezotti (1996)
117
Como o mito eacute uma narrativa conhecida por todos seus personagens povoam o
imaginaacuterio social e permitem ser o veiacuteculo para propagar determinadas concepccedilotildees de mundo
Luciano usa desse expediente nos seus diaacutelogos expressando suas ideias por meio da memoacuteria
cultural disponiacutevel em um profundo e criativo trabalho literaacuterio no qual interagem memoacuteria
miacutetica e personagens histoacutericos mesmo que estejam envoltos em uma motricidade miacutetica
latente Como afirma Mikhail Bakhtin ldquoos heroacuteis miacuteticos e as personalidades histoacutericas do
passado satildeo deliberada e acentuadamente atualizados falam e atuam na zona de um contato
familiar com a atualidade inacabadardquo (BAKHTIN 2010 123)
Os Diaacutelogos dos mortos satildeo compostos por trinta diaacutelogos curtos muito distantes
daqueles produzidos por Platatildeo Entretanto como colocou Bakhtin o diaacutelogo socraacutetico eacute
tambeacutem um gecircnero muito ligado agrave oralidade (BAKHTIN 2010 124) Luciano combina a
estrutura deste com o riso da comeacutedia Esse novo gecircnero apresenta uma forma hiacutebrida diaacutelogo
filosoacutefico e comeacutedia O escritor tinha clara a mescla de gecircneros como coloca no opuacutesculo
Dupla Acusaccedilatildeo173 ou Agravequele que diz que eacutes um Prometeu em seus discursos174
A tradiccedilatildeo filosoacutefica de origem socraacutetica estaacute na gecircnese drsquoOs diaacutelogos dos mortos tanto
pelo platonismo presente por meio da forma dialogal quanto pelo cinismo evidenciado na
presenccedila de alguns de seus principais expoentes e na criacutetica social impiedosa
O platonismo conservou um corpus documental gigantesco substanciado pelos diaacutelogos
platocircnicos e por diversos autores que lhe sucederam na Academia o que o diferencia bastante
do cinismo cuja tradiccedilatildeo escrita eacute bastante lacunar Como ressalta Olimar Flores Junior (1999
32) o conhecimento moderno do cinismo antigo deve muito ao anedotaacuterio que se construiu
sobre esses personagens
A anedota ciacutenica foi o principal veiacuteculo para conservar as premissas dessa escola
filosoacutefica o que dificulta seu estudo uma vez que as breves narrativas estatildeo presentes em
autores que criticam ou exaltam a praacutetica filosofia ciacutenica ou em escritores semelhantes a
Luciano que se utilizam desses personagens com o intuito de expressar suas proacuteprias criacuteticas
ou mesmo tendo sua atuaccedilatildeo subserviente aos desiacutegnios da narrativa literaacuteria Poucos textos satildeo
provenientes das penas dos ciacutenicos pois na maioria dos casos suas ideias satildeo encontradas em
escritores que natildeo fazem parte do movimento sendo simpatizantes ou criacuteticos
Nos Diaacutelogos dos Mortos aparecem personagens que satildeo de trecircs ordens histoacutericos
miacuteticos e literaacuterios Nossa hipoacutetese eacute que esses diaacutelogos satildeo textos profundamente
173 Escrito em que Luciano eacute acusado por abandonar a Retoacuterica e por deformar o Diaacutelogo Filosoacutefico 174 Texto luciacircnico em que ele comenta a alcunha de Prometeu dada por um amigo e sugere que essa ocorreu por
que ele harmonizou o diaacutelogo e a comeacutedia
118
questionadores da cultura poliacutetica romana principalmente naquilo que se convencionou chamar
de teologia poliacutetica Nesse sentido o Hades luciacircnico possibilita o cenaacuterio ideal para o
questionamento da vida e das reaccedilotildees diante da morte Pensar a vida dos homens permite a
reflexatildeo sobre a vida em comunidade suas leis a ordem estabelecida e assim a cultura poliacutetica
Toda a construccedilatildeo textual eacute elaborada nesse espaccedilo miacutetico que coaduna as diversas memoacuterias
permitindo o encontro de diversas temporalidades Os mais diferentes encontros satildeo possiacuteveis
o que fornece o mote para diversas conversas e questionamentos
Bakhtin (2010 132) jaacute havia observado que uma das caracteriacutesticas da saacutetira menipeia
era o deslocamento espacial Ao produzir a narrativa em um espaccedilo em que os personagens
representam mortos o escritor constroacutei o diaacutelogo em um ambiente de franqueza e liberdade
diante dos constrangimentos da vida social O tema central desses diaacutelogos gira em torno dos
viacutecios humanos e da cultura poliacutetica Nossa perspectiva sobre os Diaacutelogos dos Mortos dilata a
percepccedilatildeo da maioria dos criacuteticos que observam as criacuteticas sociais impliacutecitas no texto Noacutes
acreditamos que a criacutetica luciacircnica tem contornos poliacuteticos claros
Os personagens natildeo representam indiviacuteduos determinados mas satildeo elaboraccedilotildees
caricaturais dos mais diferentes viacutecios e posturas poliacuteticas Logo a intenccedilatildeo de encontrar os
agentes atacados por Luciano coloca uma falsa questatildeo jaacute que ele natildeo escreve sobre um
indiviacuteduo especiacutefico mas sobre tipos sociais caricaturados que estatildeo presentes em seu contexto
sociopoliacutetico Ele manipula esses tipos a fim de construir sua narrativa e criar empatia com o
leitor eou ouvinte
Seus personagens satildeo representaccedilotildees de tipos existentes em sua eacutepoca visto que o
viacutenculo da prosa luciacircnica com a vida eacute muito forte Por ser de qualidade esteacutetica e textual
inegaacutevel o uso desses recursos natildeo eacute obvio pois Luciano natildeo construiu um texto panfletaacuterio
mas escritos com inestimaacutevel valor literaacuterio que expressam sentidos sobre o mundo que o cerca
O gecircnero textual fornece os elementos baacutesicos para a compreensatildeo de como o escritor dispotildee
de diversos personagens que analisamos a fim de decompor os acordes histoacutericos dedilhados
para a construccedilatildeo deste registro discursivo
Em primeiro lugar temos os personagens claacutessicos que compotildeem a corte de Hades Satildeo
os moradores do mundo inferior Caronte o velho barqueiro que desde sempre faz a travessia
do rio Aqueronte Ceacuterbero catildeo miacutetico de trecircs cabeccedilas que vigia a entrada do Hades para
impedir que algum vivo adentre aquele mundo Pluto epiacuteteto de Hades que evidencia a riqueza
que este encerra debaixo da terra Minos proverbial rei de Creta cujas narrativas miacuteticas
alccedilaram-no agrave condiccedilatildeo de juiz no mundo dos mortos jaacute que sua sabedoria e justiccedila seriam
incontestaacuteveis Eacuteaco outro juiz do Hades Perseacutefone esposa de Plutatildeo
119
Aos deuses e gecircnios do mundo inferior devemos somar dois personagens Hermes e
Poacutelux O primeiro eacute o senhor dos caminhos mensageiro dos deuses cujas atribuiccedilotildees podemos
resumir em um trecho dos Diaacutelogos dos Deuses no qual o mesmo reclama de suas funccedilotildees
E porque natildeo hei-de dizer se tenho tantas ocupaccedilotildees a trabalhar sozinho e
disperso por tantos serviccedilos Realmente logo de madrugada tenho de me
levantar para varrer a sala de jantar estender a toalha de mesa deixar tudo
arrumado apresentar-me diante de Zeus levar as sua mensagens fazendo de
correio para cima e para baixo e mal regresso todo coberto de poacute tenho de
lhe servir a ambroacutesia e antes de ele ter arranjado este novo escanccedilatildeo era eu
proacuteprio que lhe servia o neacutectar Mas o mais terriacutevel de tudo eacute que sou o uacutenico
de entre todos os deuses que natildeo durmo de noite pois mesmo entatildeo tenho
de levar as almas a Plutatildeo de servir de condutor de mortos e de estar presente
no tribunal E como natildeo me bastassem as funccedilotildees diurnas mdash assistir agraves
competiccedilotildees de luta ser arauto nas assembleias e orientar os oradores mdash
ainda por cima sou muito solicitado para participar em cerimoacutenias fuacutenebres
No entanto os filhos de Leda passam dia sim dia natildeo um no ceacuteu e o outro
no Hades ao passo que eu sou obrigado a fazer todos os dias o mesmo que
eles E os filhos de Alcmena e de Seacutemele nascidos de miacuteseras mulheres
passam a vida tranquilamente em banquetes enquanto eu filho da filha de
Atlas Maia sou criado deles Ainda agora acabo de chegar de Siacutedon de casa
da filha de Cadmo aonde Zeus me enviou a fim de observar como estava a
jovem e ainda eu natildeo tinha retomado focirclego acaba de me mandar ir a Argos
visitar Daacutenae laquoe depois mdash disse ele mdash vai daiacute para a Beoacutecia e de caminho
daacute uma olhadela a Antiacuteoperaquo Numa palavra estou esgotado Se pudesse
pedia com todo o gosto que me vendessem como os pobres escravos laacute da
terra (Luciano D Deor 4 276)175
O mensageiro dos deuses Hermes faz a importante funccedilatildeo de ser o psicopompo
ou seja aquele que encaminha a alma dos mortos ao mundo inferior Ele leva os mortos e os
entrega ao barqueiro Assim os primeiros diaacutelogos tratam justamente de suas relaccedilotildees com o
barqueiro e com os outros mortos
Hermes eacute o deus oliacutempico vinculado ao logos o que remete aos epiacutetetos
disponiacuteveis por exemplo no Hino Homeacuterico a Hermes Ao analisar esta deidade Vernant
afirma que ldquoNatildeo haacute nele nada fixo estaacutevel permanente circunscrito nem fechado Ele
175 ldquoΕΡΜΗΣ
Τί μὴ λέγω ὃς τοσαῦτα πράγματα ἔχω μόνος κάμνων καὶ πρὸς τοσαύτας ὑπηρεσίας διασπώμενος ἕωθεν μὲν γὰρ
ἐξαναστάντα σαίρειν τὸ συμπόσιον δεῖ καὶ διαστρώσαντα τὴν κλισίαν εὐθετίσαντά τε ἕκαστα παρεστάναι τῷ Διὶ
καὶ διαφέρειν τὰς ἀγγελίας τὰς παρ αὐτοῦ ἄνω καὶ κάτω ἡμεροδρομοῦντα καὶ ἐπανελθόντα ἔτι κεκονιμένον
παρατιθέναι τὴν ἀμβροσίαν πρὶν δὲ τὸν νεώνητον τοῦτον οἰνοχόον ἥκειν καὶ τὸ νέκταρ ἐγὼ ἐνέχεον τὸ δὲ πάντων
δεινότατον ὅτι μηδὲ νυκτὸς καθεύδω μόνος τῶν ἄλλων ἀλλὰ δεῖ με καὶ τότε τῷ Πλούτωνι ψυχαγωγεῖν καὶ
νεκροπομπὸν εἶναι καὶ παρεστάναι τῷ δικαστηρίῳ οὐ γὰρ ἱκανά μοι τὰ τῆς ἡμέρας ἔργα ἐν παλαίστραις εἶναι καὶ
ταῖς ἐκκλησίαις κηρύττειν καὶ ῥήτορας ἐκδιδάσκειν ἀλλ ἔτι καὶ νεκρικὰ συνδιαπράττειν μεμερισμένον
καίτοι τὰ μὲν τῆς Λήδας τέκνα παρ ἡμέραν ἑκάτερος ἐν οὐρανῷ ἢ ἐν ᾅδου εἰσίν ἐμοὶ δὲ καθ ἑκάστην
ἡμέραν κἀκεῖνα καὶ ταῦτα ποιεῖν ἀναγκαῖον καὶ οἱ μὲν Ἀλκμήνης καὶ Σεμέλης ἐκ γυναικῶν δυστήνων γενόμενοι
εὐωχοῦνται ἀφρόντιδες ὁ δὲ Μαίας τῆς Ἀτλαντίδος διακονοῦμαι αὐτοῖς καὶ νῦν ἄρτι ἥκοντά με ἀπὸ Σιδῶνος
παρὰ τῆς Κάδμου θυγατρός ἐφ ἣν πέπομφέ με ὀψόμενον ὅ τι πράττει ἡ παῖς μηδὲ ἀναπνεύσαντα πέπομφεν αὖθις
εἰς τὸ Ἄργος ἐπισκεψόμενον τὴν Δανάην εἶτ ἐκεῖθεν εἰς Βοιωτίαν φησίν ἐλθὼν ἐν παρόδῳ τὴν Ἀντιόπην ἰδέ
καὶ ὅλως ἀπηγόρευκα ἤδη εἰ γοῦν δυνατὸν ἦν ἡδέως ἂν ἠξίωσα πεπρᾶσθαι ὥσπερ οἱ ἐν γῇ κακῶς δουλεύοντεςrdquo
120
representa no espaccedilo e no mundo humano o movimento a passagem a mudanccedila de estado as
transiccedilotildees o contato com elementos estranhosrdquo (VERNANT 1990 192) Seus epiacutetetos ligam-
no aos assaltos por atravessar muros e portas fechadas Ele reside nas encruzilhadas nos
caminhos sobre os tuacutemulos Aleacutem disso ele eacute mensageiro dos deuses e estaacute presente nas trocas
comerciais nos debates da aacutegora e nas competiccedilotildees Eacute testemunha dos acordos treacuteguas e
juramentos bem como mediador entre os homens e os deuses Quando um diaacutelogo caiacutea no
silecircncio era costume dos gregos dizerem Hermes passa (VERNANT 1990 192-193) Nos
diaacutelogos luciacircnicos Hermes representa a encruzilhada das possibilidades existenciais uma vez
que estaacute presente entre os vivos os mortos e os imortais
Poacutelux um dos Dioacutescoros tem a permissatildeo de permanecer um dia entre os mortos e
um com os vivos Tambeacutem apresenta caraacuteter hiacutebrido o que permite que o filoacutesofo ciacutenico
Dioacutegenes lhe peccedila favores entre os vivos e especialmente que convide Menipo para zombar
da forma como os mortos agem diante da finitude A vinda de Menipo permite a tessitura de
uma fraacutegil narrativa com a conexatildeo de alguns diaacutelogos
Os outros personagens miacuteticos satildeo heroacuteis presentes na tradiccedilatildeo homeacuterica Aacutejax
Agamenon Aquiles Antiacuteloco Protesilau Menelau Paris Nireu e Tersites A presenccedila desses
heroacuteis evidencia o diaacutelogo luciacircnico com a tradiccedilatildeo homeacuterica e principalmente o desejo de
questionar os padrotildees culturais presentes nela com o desdobramento de intrigas anteriores ou
posteriores agraves epopeias homeacutericas Nesse sentido o texto luciacircnico encontra-se em uma
encruzilhada entre a inovaccedilatildeo e a permanecircncia dos recursos tradicionais Ele inova ao salientar
as contradiccedilotildees miacuteticas de cada heroacutei apresentando-o como exemplo de que o fausto terreno
serve para muito pouco ou ainda questionando o desejo de perenidade na memoacuteria humana
Nos Diaacutelogos dos Mortos natildeo adianta ter ouro riquezas ou a vaidade humana uma vez que a
morte significa o igualamento total de todas as caracteriacutesticas materiais dos seres humanos Os
mortos satildeo despidos de tudo satildeo apenas ldquocracircnios nus e sem belezardquo176 (Luciano D mort I 334)
Outros personagens miacuteticos aparecem nos diaacutelogos Existem aqueles que desafiam as
fronteiras da mortalidade e (con)fundem as narrativas miacuteticas Ressaltamos principalmente
Poacutelux que jaacute foi citado anteriormente bem como Quiacuteron Heacuteracles Trofocircnio Anfiacuteloco assim
como o ceacutelebre adivinho tebano Tireacutesias
O centauro Quiacuteron eacute indagado por seu desprezo agrave imortalidade
Menipo ndash Oacute Quiacuteron ouvi dizer que tu apesar de seres deus quiseste morrer
Quiacuteron ndash Eacute verdade o que ouviste Menipo e como vecircs estou morto
podendo ser imortal
176 ldquoΘελήσεις δὲ οὕτως κρανίον γυμνὸν ὢν καὶ ἄμορφον τῇ καλῇ σου ἐκείνῃ νύμφῃ φανῆναιrdquo
121
Menipo ndash Mas entatildeo que paixatildeo pela morte se apoderou de ti uma coisa que
a generalidade das pessoas abomina
Quiacuteron ndash Vou dizer-te mas soacute a ti que natildeo eacutes tolo eacute que deixou de me ser
agradaacutevel gozar da imortalidade
Menipo ndash Natildeo te era agradaacutevel viver e ver a luz do dia
Quiacuteron ndash Natildeo Menipo De fato eu pelo menos considero que o que eacute
agradaacutevel eacute algo de variado e natildeo simples pelo que ao viver perpetuamente
e a gozar sempre das mesmas coisas como o sol a luz a comida (e ateacute as
estaccedilotildees eram sempre as mesmas e os acontecimentos surgiam todos de
enfiada como seguindo-se uns aos outros) fartei-me de tudo isso Na
verdade o prazer consiste natildeo na constante repeticcedilatildeo do mesmo mas na
mudanccedila
Menipo ndash Diz bem Quiacuteron Mas agora como suportar as coisas aqui do
Hades jaacute que foi por opccedilatildeo tua que vieste para caacute
Quiacuteron ndash Natildeo desagradavelmente Menipo De fato a igualdade de direitos eacute
muito democraacutetica e natildeo haacute diferenccedila nesta coisa de estar agrave luz do dia ou na
escuridatildeo De resto natildeo haacute que ter sede ou fome como laacute em cima mas
estamos livres de tudo isso
Menipo - Vecirc laacute bem Quiacuteron natildeo te contradigas e que teu argumento caiacutea nos
termos anteriores
Quiacuteron ndash Por que dizes isso
Menipo - Porque se a monotomia das coisas da vida constante e sempre a
mesma acabou por te saturar entatildeo tambeacutem as coisas daqui monoacutetonas como
satildeo te hatildeo-de igualmente saturar e precisaraacutes de procurar uma qualquer
mudanccedila daqui para outra vida ndash coisa que considero impossiacutevel
Quiacuteron ndash Entatildeo que havemos de fazer Menipo
Menipo ndash Aquilo ndash creio eu ndash que soacutei dizer-se que eacute um ato de bom senso
contentarmo-nos com aquelas coisas que temos estimaacute-las e natildeo considero
nenhuma delas insuportaacutevel (Luciano D mort VIII 434-444)177
177 ldquoΜΕΝΙΠΠΟΣ
Ἤκουσα ὦ Χείρων ὡς θεὸς ὢν ἐπεθύμησας ἀποθανεῖν
ΧΕΙΡΩΝ
Ἀληθῆ ταῦτα ἤκουσας ὦ Μένιππε καὶ τέθνηκα ὡς ὁρᾷς ἀθάνατος εἶναι δυνάμενος
ΜΕΝΙΠΠΟΣ
Τίς δαί σε ἔρως τοῦ θανάτου ἔσχεν ἀνεράστου τοῖς πολλοῖς χρήματος
ΧΕΙΡΩΝ
Ἐρῶ πρὸς σὲ οὐκ ἀσύνετον ὄντα οὐκ ἦν ἔτι ἡδὺ ἀπολαύειν τῆς ἀθανασίας
ΜΕΝΙΠΠΟΣ
Οὐχ ἡδὺ ἦν ζῶντα ὁρᾶν τὸ φῶς
ΧΕΙΡΩΝ
Οὔκ ὦ Μένιππε τὸ γὰρ ἡδὺ ἔγωγε ποικίλον τι καὶ οὐχ ἁπλοῦν ἡγοῦμαι εἶναι ἐγὼ δὲ ἔζων ἀεὶ καὶ ἀπέλαυον τῶν
ὁμοίων ἡλίου φωτός τροφῆς αἱ ὧραι δὲ αἱ αὐταὶ καὶ τὰ γινόμενα ἅπαντα ἑξῆς ἕκαστον ὥσπερ ἀκολουθοῦντα
θάτερον θατέρῳ ἐνεπλήσθην οὖν αὐτῶν οὐ γὰρ ἐν τῷ αὐτῷ ἀεὶ ἀλλὰ καὶ ἐν τῷ ltμὴgt μετασχεῖν ὅλως τὸ τερπνὸν
ἦν
ΜΕΝΙΠΠΟΣ
Εὖ λέγεις ὦ Χείρων τὰ ἐν ᾅδου δὲ πῶς φέρεις ἀφ οὗ προελόμενος αὐτὰ ἥκεις
ΧΕΙΡΩΝ
Οὐκ ἀηδῶς ὦ Μένιππε ἡ γὰρ ἰσοτιμία πάνυ δημοτικὴ καὶ τὸ πρᾶγμα οὐδὲν ἔχει τὸ διάφορον ἐν φωτὶ εἶναι ἢ ἐν
σκότῳ ἄλλως τε οὔτε διψῆν ὥσπερ ἄνω οὔτε πεινῆν δεῖ ἀλλ ἀνεπιδεεῖς τούτων ἁπάντων ἐσμέν
ΜΕΝΙΠΠΟΣ
Ὅρα ὦ Χείρων μὴ περιπίπτῃς σεαυτῷ καὶ ἐς τὸ αὐτό σοι ὁ λόγος περιστῇ
ΧΕΙΡΩΝ
Πῶς τοῦτο φῄς
ΜΕΝΙΠΠΟΣ
Ὅτι εἰ τῶν ἐν τῷ βίῳ τὸ ὅμοιον ἀεὶ καὶ ταὐτὸν ἐγένετό σοι προσκορές καὶ τἀνταῦθα ὅμοια ὄντα προσκορῆ ὁμοίως
ἂν γένοιτο καὶ δεήσει μεταβολήν σε ζητεῖν τινα καὶ ἐντεῦθεν εἰς ἄλλον βίον ὅπερ οἶμαι ἀδύνατον
122
Nesse diaacutelogo haacute um desvio motivacional uma vez que nas narrativas miacuteticas
claacutessicas o centauro havia abandonado a imortalidade para se livrar dos sofrimentos causados
pela flecha envenenada de Heacuteracles O Quiacuteron luciacircnico despreza a mesmice contiacutenua da eterna
existecircncia numa contradiccedilatildeo plena jaacute que a morte natildeo lhe apresentaria nada aleacutem de um repetir
contiacutenuo Quiacuteron representa um hiacutebrido bastante complexo pois eacute um centauro e teve a
possibilidade de escolher entre a mortalidade e a imortalidade representando assim um mito
fronteira tatildeo uacutetil agraves inovaccedilotildees literaacuterias de Luciano
A imagem de Heacuteracles se manifesta no Hades o que evidencia uma contradiccedilatildeo entre
a sua divinizaccedilatildeo ndash que deveria estar no Olimpo juntamente com os outros deuses ndash e a imagem
do heroacutei que se encontra no Hades A ascensatildeo do filho de Alcmena como deus eacute uma
importante narrativa miacutetica uma vez que a mesma foi usada como justificativa para a
divinizaccedilatildeo dos Imperadores romanos O Heacuteracles luciacircnico questiona a ascensatildeo de um
homem agrave condiccedilatildeo de deus independentemente de suas qualidades origens ou posiccedilatildeo topos
que eacute retomado durante a construccedilatildeo da imagem do Alexandre luciacircnico Como vimos na
anaacutelise da Assembleia dos Deuses este eacute um tema recorrente no debate luciacircnico as
incoerecircncias trazidas pela apoteose de um mortal
Tireacutesias natildeo poderia faltar nesse conjunto de mortos hiacutebridos pois tambeacutem eacute um
personagem da fronteira uma vez que viveu como homem e como mulher O siacuterio brinca com
essa dupla condiccedilatildeo de gecircnero inclusive indagando a assertiva miacutetica que afirmava que Tireacutesias
havia afirmado que ser mulher era melhor O Menipo luciacircnico questiona esse mito a partir de
outro cacircnone da poesia antiga Ele cita a Medeia euripediana que reclamava da condiccedilatildeo
feminina (Euriacutepedes Medeia II 230-231 II 250-251) Em seus diaacutelogos o samosatense
recorre agrave memoacuteria helecircnica calcada sobre as narrativas miacuteticas tradicionais para atribuir-lhe
novo devir A disputa pela hegemonia das memoacuterias coloca em evidecircncias as disputas e
contradiccedilotildees que ela expressa Nesse caso especiacutefico Luciano recorre agrave memoacuteria miacutetica acerca
da condiccedilatildeo feminina a fim de colocar argumentos diversos questionar as fontes e
principalmente seus usos no presente
Trofocircnio e Anfiacuteloco178 satildeo heroacuteis vinculados a templos na Beoacutecia Assim como no
caso de Heacuteracles Luciano questiona como eles estatildeo mortos no Hades e fazem prodiacutegios em
ΧΕΙΡΩΝ
Τί οὖν ἂν πάθοι τις ὦ Μένιππε
ΜΕΝΙΠΠΟΣ
Ὅπερ οἶμαι φασί συνετὸν ὄντα ἀρέσκεσθαι καὶ ἀγαπᾶν τοῖς παροῦσι καὶ μηδὲν αὐτῶν ἀφόρητον οἴεσθαιrdquo 178 No diaacutelogo Menipo ou necromancia faz-se outra referecircncia ao Templo desse heroacutei que era considerado uma
das entradas do Hades (Luciano Nec 22)
123
seus templos Aleacutem do questionamento do mito o escritor coloca uma narrativa miacutetica bem
secundaacuteria como forma de encontrar empatia em regiotildees distintas em que esses diaacutelogos
fossem apresentados Mais uma vez os escritos levantam questotildees referentes agrave possibilidade
de homens comuns alccedilarem a condiccedilatildeo de divindades jaacute que o culto imperial vinculava-se ao
pertencimento do Imperador a uma famiacutelia divina o que fornece legitimidade aos herdeiros
Os personagens miacuteticos que compotildeem a memoacuteria cultural greco-romana se completam
com dois reis miacuteticos que satildeo personagens desses diaacutelogos e merecem atenccedilatildeo especial Midas
e Tacircntalo Midas ganhou de presente dos deuses o poder de transformar em ouro tudo que
tocasse Tacircntalo foi condenado por Zeus a sentir sede e fome eternamente mesmo estando no
Hades Ele tenta beber aacutegua ou pegar os frutos de uma aacutervore os quais fogem dele (Luciano
D mort VII) O diaacutelogo eacute exposto assim
Menipo ndash Por que estaacutes chorando Tacircntalo Ou melhor por que estaacutes te
lamentando sobre ti mesmo de peacute no meio do lago
Tacircntalo ndash Porque Menipo estou morrendo de sede
Menipo ndash Eacutes preguiccediloso que natildeo te abaixas nem para beber ou mesmo por
Zeus para pegar a aacutegua na concha das matildeos
Tacircntalo ndash De nada adiantaria se eu me abaixasse porque a aacutegua me foge
quando sente que eu me aproximo E se por acaso eu a pego e a levo ateacute agrave
boca nem chego a molhar os laacutebios ela escorre pelos dedos e natildeo sei como
imediatamente deixa secas minhas matildeos (Luciano D mort VII 406-407)179
Menipo no passo seguinte questiona como um morto pode sentir sede jaacute que seu corpo
estaacute na Liacutedia e afirma que ele natildeo tem o que temer uma vez que natildeo pode morrer uma segunda
vez Luciano questiona as incoerecircncias das narrativas miacuteticas mostrando como diversas
nuanccedilas natildeo compotildeem a narrativa tradicional
O proacuteximo grupo de personagens que temos satildeo os personagens pertencentes agrave memoacuteria
histoacuterica Podemos dividi-los em dois grupos os filoacutesofos e os reis Dentre os filoacutesofos
destacam-se os ciacutenicos e eventualmente algum representante das outras escolas Como ocorre
em outros textos luciacircnicos os ciacutenicos satildeo aqueles que exprimem as criacuteticas mais contundentes
sendo muitas vezes identificados com a voz de Luciano nos textos
179 ldquoΜΕΝΙΠΠΟΣ
Τί κλάεις ὦ Τάνταλε ἢ τί σεαυτὸν ὀδύρῃ ἐπὶ τῇ λίμνῃ ἑστώς
ΤΑΝΤΑΛΟΣ
Ὅτι ὦ Μένιππε ἀπόλωλα ὑπὸ τοῦ δίψους
ΜΕΝΙΠΠΟΣ
Οὕτως ἀργὸς εἶ ὡς μὴ ἐπικύψας πιεῖν ἢ καὶ νὴ Δί ἀρυσάμενος κοίλῃ τῇ χειρί
ΤΑΝΤΑΛΟΣ
Οὐδὲν ὄφελος εἰ ἐπικύψαιμι φεύγει γὰρ τὸ ὕδωρ ἐπειδὰν προσιόντα αἴσθηταί με ἢν δέ ποτε καὶ ἀρύσωμαι καὶ
προσενέγκω τῷ στόματι οὐ φθάνω βρέξας ἄκρον τὸ χεῖλος καὶ διὰ τῶν δακτύλων διαρρυὲν οὐκ οἶδ ὅπως αὖθις
ἀπολείπει ξηρὰν τὴν χεῖρά μοιrdquo
124
Dioacutegenes180 Menipo181 Crates182 e Antiacutestenes183 aparecem em dezesseis diaacutelogos da
coletacircnea Diaacutelogos dos Mortos e suas imagens expressam o desprezo pelas veleidades
humanas e uma postura extremamente controlada diante da morte
Dioacutegenes de Sinope viveu aproximadamente entre os anos de 412 e 323 foi disciacutepulo
de Antiacutestenes Aparece em seis diaacutelogos com uma postura questionadora agrave divindade de
Heacuteracles e de Alexandre como analisamos a seguir Sua presenccedila fornece uma sutil ligaccedilatildeo
entre os diaacutelogos principalmente naqueles em que encontramos a presenccedila de outros ciacutenicos
No primeiro diaacutelogo184 ele pede a Poacutelux que procure Menipo e caso ele tenha zombado
suficientemente das coisas da Terra que o convide agrave morte para que possa zombar dos mortos
No diaacutelogo XXI haacute o encontro de Dioacutegenes com seu disciacutepulo Crates e no diaacutelogo seguinte
uma reuniatildeo destes com Antiacutestenes num coloacutequio sobre a Paideia ciacutenica
O outro ciacutenico que aparece nos diaacutelogos luciacircnicos eacute Menipo de Gadara que teria sido
disciacutepulo de Dioacutegenes Sabemos muito pouco sobre sua vida pois temos uma breve notiacutecia no
Vidas e doutrinas dos filoacutesofos ilustres de Dioacutegenes Laercio que reverbera a monumental obra
de Hemipo de Esmirna Entretanto os escritos de Luciano satildeo fundamentais para a inserccedilatildeo
dessa personagem na memoacuteria ocidental Como afirmou Bompaire (2000 182-183) os
diaacutelogos luciacircnicos satildeo responsaacuteveis por sua fama sendo conhecido principalmente pelas
saacutetiras menipeias Eacute a principal personagem ciacutenica nos diaacutelogos visto que os quatro
personagens ciacutenicos satildeo uma constante nos diaacutelogos expressando sua visatildeo de mundo e
questionando os valores estabelecidos
Luciano apresenta ainda outros filoacutesofos185 questionando sempre que possiacutevel suas
colocaccedilotildees Entretanto esses satildeo personagens secundaacuterias do diaacutelogo VI no qual aparecem a)
Pitaacutegoras criticado por proibir o consumo de favas e pela lenda de ter uma coxa de ouro b)
Empeacutedocles ridicularizado pelo suiciacutedio no vulcatildeo Etna c) Soacutecrates e seu contato com os
jovens atenienses Aleacutem desses haacute Soacutestrato personagem citado por Luciano no texto Vida de
Demonax (4) e no Alexandre ou o falso profeta (6) Esse filoacutesofo do seacuteculo II eacute representado
como ciacutenico tendo sua imagem aproximada agrave de Heacuteracles o heroacutei ciacutenico por excelecircncia186
Neste diaacutelogo Soacutestrato conversa com Minos
180 Dioacutegenes aparece nos diaacutelogos I XI XIII XXI XXII e XXIX 181 Menipo aparece nos diaacutelogos II III IV VVI VII VIII IX X XX e XXX 182 Crates eacute um dos personagens dos diaacutelogos XXI e XXII 183 Antiacutetenes estaacute no diaacutelogo XXII 184 Seguiremos a ordem proposta no VII Volume da LOEB Claacutessical Library 185 Luciano apresenta uma criacutetica mais elaborada aos filoacutesofos (sua conduta e suas ideias) principalmente no
diaacutelogo O leilatildeo dos filoacutesofos Hermoacutetimos e as seitas O Eunuco e O pescador ou os ressuscitados 186 Em nossa Dissertaccedilatildeo de Mestrado analisamos o uso da imagem de Heacuteracles pelos Ciacutenicos (ARANTES
JUNIOR 2008 135-139)
125
Soacutestrato mdash Oacute Minos escuta-me a ver se te parece que eu tenho razatildeo
Minos mdash Escutar-te outra vez agora Mas oacute Soacutestrato natildeo ficou provado
que tu foste um faciacutenora que assassinou tanta gente
Soacutestrato mdash Sim ficou provado mas vecirc laacute se eu fui justamente castigado
Minos mdash Muito justamente se eacute justo pagar pelo que se fez
Soacutestrato mdash Mesmo assim oacute Minos responde-me pois soacute vou fazer-te uma
breve pergunta
Minos mdash Fala na condiccedilatildeo de natildeo te alongares para que ainda possa julgar
outros
Soacutestrato mdash Os atos eu cometi em vida seraacute que os cometi livremente ou
foram-me fiados pela Moira
Minos mdash Foram fiados pela Moira eacute claro
Soacutestrato mdash Nesse caso todos noacutes quer os bons quer os criminosos agimos
ao que parece por ordem dessa divindade natildeo eacute
Minos mdash Sim por ordem de Cloto a qual destinou a cada um ao nascer o
que ele havia de fazer
Soacutestrato mdash Portanto se algueacutem obrigado por outro matasse uma pessoa
sem ter possibilidade de resistir agravequele que o forccedilara como por exemplo um
carrasco ou um mercenaacuterio (um obedecendo ao juiz e o outro ao tirano) a
quem eacute que tu acusarias da morte
Minos mdash Claro que ao juiz ou ao tirano tal como natildeo culparia uma espada
pois esta como instrumento que eacute serve apenas a vontade do primeiro que
age como causa inicial
Soacutestrato mdash Muito bem Minos tanto mais que vens reforccedilar o meu exemplo
Se algueacutem enviado pelo seu senhor vier trazer prata ou ouro a outra pessoa
a quem eacute que se deve agradecer A quem eacute que se deve inscrever no rol dos
benfeitores
Minos mdash Ao que enviou a coisa oacute Soacutestrato pois o portador foi apenas um
criado
Soacutestrato mdash Portanto estaacutes a ver como procedes injustamente ao castigar-nos
a noacutes que fomos apenas servos executantes das ordens de Cloto e ainda por
cima enalteces estes aqui que agiram como simples executantes das boas
acccedilotildees de outros Na verdade ningueacutem poderia dizer que era possiacutevel resistir
a ordens dadas com forccedila obrigatoacuteria
Minos mdash Oacute Soacutestrato se examinasses minuciosamente poderias ver muitas
mais coisas que natildeo estatildeo de acordo com a razatildeo Em todo o caso com a tua
pergunta ganharaacutes o seguinte (pois natildeo pareces ser apenas um salteador mas
tambeacutem um sofista) Oacute Hermes liberta-o e que deixe de ser castigado E tu
Soacutestrato vecirc laacute natildeo ensines os outros mortos a fazerem perguntas semelhantes
(Luciano D Mort XXIV 450-454)187
187 ldquoΣΩΣΤΡΑΤΟΣ
Ἄκουσον ὦ Μίνως εἴ σοι δίκαια δόξω λέγειν
ΜΙΝΩΣ
Νῦν ἀκούσω αὖθις οὐ γὰρ ἐξελήλεγξαι ὦ Σώστρατε πονηρὸς ὢν καὶ τοσούτους ἀπεκτονώς
ΣΩΣΤΡΑΤΟΣ
Ἐλήλεγμαι μέν ἀλλ ὅρα εἰ δικαίως κολασθήσομαι
ΜΙΝΩΣ
Καὶ πάνυ εἴ γε ἀποτίνειν τὴν ἀξίαν δίκαιον
ΣΩΣΤΡΑΤΟΣ
Ὅμως ἀπόκριναί μοι ὦ Μίνως βραχὺ γάρ τι ἐρήσομαί σε
ΜΙΝΩΣ
Λέγε μὴ μακρὰ μόνον ὡς καὶ τοὺς ἄλλους διακρίνωμεν ἤδη
ΣΩΣΤΡΑΤΟΣ
Ὁπόσα ἔπραττον ἐν τῷ βίῳ πότερα ἑκὼν ἔπραττον ἢ ἐπεκέκλωστό μοι ὑπὸ τῆς Μοίρας
126
Esse diaacutelogo evidencia dois pontos fundamentais para compreender a inserccedilatildeo
luciacircnica no mundo greco-romano Por um lado a criacutetica agrave ideia de destino fiado pela Moira o
que impediria a responsabilidade dos homens pelos atos maleacutevolos que viessem a praticar bem
como minimizaria a bondade praticada Trata-se de um tema recorrente em seus escritos por
exemplo no diaacutelogo Zeus Refutado Por outro lado Soacutestrato em sua condiccedilatildeo de questionador
evidencia que a palavra eacute o principal iacutendice diferenciador no Hades luciacircnico pois ensinar os
outros mortos a formular essas interrogaccedilotildees eacute extremamente perigoso
Outros personagens que compotildeem a memoacuteria histoacuterica greco-romana satildeo
principalmente reis tiranos e generais Existem governantes gregos e baacuterbaros generais
gregos romanos e cartagineses Nesse ponto Luciano natildeo coloca nenhum Imperador Romano
no Hades o que evidencia um diaacutelogo cruzado em que ele fala de outro soberano a fim de
salientar suas qualidades ou seus defeitos Acreditamos que esse silecircncio eacute bastante revelador
principalmente por demonstrar conhecimento da Histoacuteria de Roma colocando em questatildeo
personagens fundamentais para a consolidaccedilatildeo do poderio romano no Mediterracircneo como
Cipiatildeo188 e Aniacutebal189
ΜΙΝΩΣ
Ὑπὸ τῆς Μοίρας δηλαδή
ΣΩΣΤΡΑΤΟΣ
Οὐκοῦν καὶ οἱ χρηστοὶ ἅπαντες καὶ οἱ πονηροὶ δοκοῦντες ἡμεῖς ἐκείνῃ ὑπηρετοῦντες ταῦτα ἐδρῶμεν
ΜΙΝΩΣ
Ναί τῇ Κλωθοῖ ἣ ἑκάστῳ ἐπέταξε γεννηθέντι τὰ πρακτέα
ΣΩΣΤΡΑΤΟΣ
Εἰ τοίνυν ἀναγκασθείς τις ὑπ ἄλλου φονεύσειέν τινα οὐ δυνάμενος ἀντιλέγειν ἐκείνῳ βιαζομένῳ οἷον δήμιος ἢ
δορυφόρος ὁ μὲν δικαστῇ πεισθείς ὁ δὲ τυράννῳ τίνα αἰτιάσῃ τοῦ φόνου
ΜΙΝΩΣ
Δῆλον ὡς τὸν δικαστὴν ἢ τὸν τύραννον ἐπεὶ οὐδὲ τὸ ξίφος αὐτό ὑπηρετεῖ γὰρ ὄργανον ὂν τοῦτο πρὸς τὸν θυμὸν
τῷ πρώτῳ παρασχόντι τὴν αἰτίαν
ΣΩΣΤΡΑΤΟΣ
Εὖ γε ὦ Μίνως ὅτι καὶ ἐπιδαψιλεύῃ τῷ παραδείγματι ἢν δέ τις ἀποστείλαντος τοῦ δεσπότου ἥκῃ αὐτὸς χρυσὸν
ἢ ἄργυρον κομίζων τίνι τὴν χάριν ἰστέον ἢ τίνα εὐεργέτην ἀναγραπτέον
ΜΙΝΩΣ
Τὸν πέμψαντα ὦ Σώστρατε διάκονος γὰρ ὁ κομίσας ἦν
ΣΩΣΤΡΑΤΟΣ
Οὐκοῦν ὁρᾷς πῶς ἄδικα ποιεῖς κολάζων ἡμᾶς ὑπηρέτας γενομένους ὧν ἡ Κλωθὼ προσέταττεν καὶ τούτους
τιμήσας τοὺς διακονησαμένους ἀλλοτρίοις ἀγαθοῖς οὐ γὰρ δὴ ἐκεῖνό γε εἰπεῖν ἔχοι τις ὡς ἀντιλέγειν δυνατὸν ἦν
τοῖς μετὰ πάσης ἀνάγκης προστεταγμένοις
ΜΙΝΩΣ
Ὦ Σώστρατε πολλὰ ἴδοις ἂν καὶ ἄλλα οὐ κατὰ λόγον γιγνόμενα εἰ ἀκριβῶς ἐξετάζοις πλὴν ἀλλὰ σὺ τοῦτο
ἀπολαύσεις τῆς ἐπερωτήσεως διότι οὐ λῃστὴς μόνον ἀλλὰ καὶ σοφιστής τις εἶναι δοκεῖς ἀπόλυσον αὐτόν ὦ
Ἑρμῆ καὶ μηκέτι κολαζέσθω ὅρα δὲ μὴ καὶ τοὺς ἄλλους νεκροὺς τὰ ὅμοια ἐρωτᾶν διδάξῃςrdquo 188 General romano (236-183 a C) que derrotou Aniacutebal na batalha de Zama pondo fim agrave Segunda Guerra Puacutenica 189 Comandante cartaginecircs que viveu entre 247-183 aC tornou-se general aos 25 anos Foi vencedor por trecircs anos
na Hispacircnia invadida por seu pai um dos motivos da Segunda Guerra Puacutenica Marchou para a Peniacutensula Itaacutelica
com um grande nuacutemero de soldados e diversos elefantes Perdeu em 202 aC para Cipiatildeo o Africano
127
Creso rei da Liacutedia citado por Heroacutedoto no livro I das Histoacuterias teria vivido no seacuteculo
VI aC Ficou conhecido por seus tesouros juntamente com Sardanaacutepalo rei da Assiacuteria no
seacuteculo VIII aC Lembrados por seu caraacuteter licencioso e pelo fausto pelo uso de um luxo
excessivo bem como pelo haacutebito de usar roupas vistas pelos gregos como femininas eles fazem
parte do terceiro diaacutelogo juntamente com o miacutetico rei Midas e Menipo As memoacuterias miacuteticas e
as histoacutericas satildeo mobilizadas por meio do regime de memoacuteria romano a fim de criticar alguns
exageros dos soberanos Apoacutes a anaacutelise dos personagens detalhamos a criacutetica luciacircnica aos
abusos do poder e agrave construccedilatildeo de mentiras sobre os governantes a fim de serem uacuteteis agraves
necessidades poliacuteticas
Alexandre190 (356-323 aC) rei da Macedocircnia aparece em trecircs diaacutelogos fundamentais
para nossa discussatildeo uma vez que Luciano permite ao leitor que no Hades um espaccedilo miacutetico
ele dialogue com outros generais com seu pai Filipe bem como com o ciacutenico Dioacutegenes Esses
diaacutelogos em nosso entendimento explicitam a criacutetica luciacircnica aos dispositivos de poder
Outro rei que aparece eacute Mausolo (377-353 aC) rei de Halicarnaso famoso por seu
monumental tuacutemulo Os outros personagens satildeo criaccedilotildees luciacircnicas ficcionais e literaacuterias
Como demonstrou a lucianista argentina Maria del Carmem Cabrero em seu livro Elogio de la
mentira (2006) e o professor Jacyntho Lins Brandatildeo no livro A invenccedilatildeo do romance (2005)
existe em Luciano de Samoacutesata uma consciecircncia expressa de produzir um texto verossiacutemil
mas que todos sabem que natildeo aconteceu Conforme o alerta que o proacuteprio Luciano faz no
proacutelogo das Histoacuterias verdadeiras ldquopois ao menos nisso direi a verdade ao afirmar que mintordquo
(Luciano V H I 4)191
Os personagens histoacutericos satildeo ficcionalizados por Luciano o que nos permite indagar
sobre sua visatildeo sociopoliacutetica do mundo em que ele vive Esses personagens ficcionais
(histoacutericos ou natildeo) satildeo resultado da interaccedilatildeo entre a imaginaccedilatildeo greco-romana e a criatividade
luciacircnica Acreditamos que os personagens que natildeo existiram apresentadas por um nome dado
por Luciano satildeo a representaccedilatildeo de valores e atos que se relacionam com a cultura de seu tempo
A criaccedilatildeo literaacuteria natildeo ocorre do nada pois ela eacute fruto de um diaacutelogo com o mundo que cercava
o escritor
O siacuterio inventa alguns personagens que natildeo fazem parte da tradiccedilatildeo miacutetica nem tecircm
sua existecircncia histoacuterica comprovada Eacute o caso de Teacuterpsion Zenofantes Calidecircnides Cnecircmon
Dacircmnipos Siacutemilos Poliacutestratos Lacircmpicos Damaacutesios e Craacuteton que satildeo caricaturas de
personagens cotidianos Ou ainda alguns tipos como o Militar o Filoacutesofo o Orador e o
190 Alexandre eacute personagem dos diaacutelogos XI XII e XIII 191 ldquoκἂν ἓν γὰρ δὴ τοῦτο ἀληθεύσω λέγων ὅτι ψεύδομαιrdquo
128
Charmoso que servem para a criacutetica social e de conduta dos homens mostrando que no aleacutem-
tuacutemulo haacute um completo igualamento
Outra ressalva jaacute elaborada por Jacques Bompaire (2000 184) que gostariacuteamos de
fazer sobre os personagens dos Diaacutelogos dos mortos eacute que natildeo podemos subestimar a criaccedilatildeo
luciacircnica diante das personalidades miacuteticas e histoacutericas que compotildeem a memoacuteria cultural greco-
romana Menipo Alexandre entre outras personalidades retratadas pelo siacuterio mesmo tendo
uma existecircncia historicamente registrada apresenta a marca do escritor O mesmo deve ser dito
do uso que Luciano faz da memoacuteria miacutetica greco-romana que eacute um processo de apropriaccedilatildeo
(CHARTIER 1990) Entretanto todos que trabalham com usos da memoacuteria sabem que ela se
caracteriza sempre por ser bastante seletiva quanto agraves escolhas das mensagens que satildeo
comunicadas assim forma e conteuacutedo satildeo exaustivamente trabalhados para servir agrave
comunicaccedilatildeo de determinadas informaccedilotildees
Essas personalidades satildeo construiacutedas em cenaacuterios com caracteriacutesticas proacuteprias O
Hades luciacircnico eacute o espaccedilo de igualamento material total No diaacutelogo XX Caronte exige que
todos os mortos entrem no barco nus pois segundo ele o barco eacute velho e natildeo aguenta tanto
peso A nudez eacute um sinal de igualamento dos mortos assim quando solicitada pelo barqueiro
natildeo se refere somente agraves roupas mas agraves atitudes que para o escritor pesam na alma
No Diaacutelogo XX travado entre Caronte Hermes Menipo e diversos mortos que satildeo
caricaturas de personagens tiacutepicos de seu tempo o velho barqueiro comeccedila explicando que
ldquopequeno para voacutes como vedes eacute o barquinho e algo roto aleacutem de muito vazarrdquo (Luciano D
mort XX 363)192 Assim a alma deve despir-se para que o barco natildeo afunde ou fique pendendo
para um lado ou girando em ciacuterculos
Menipo eacute o primeiro a entrar Natildeo traz nada visto que jaacute abandonou a sacola e o bastatildeo
bem como a tuacutenica Hermes o psicopompo eacute aquele que se responsabiliza pela nudez das
almas ajudado pelo filoacutesofo ciacutenico Um morto caracterizado por ser charmoso tem de deixar a
enorme peruca e a maquiagem da bochecha ficando apenas uma cintura fina ironicamente
observada por Hermes (Luciano D mort XX 365)
192 ldquoτὸ σκαφίδιον καὶ ὑπόσαθρόν ἐστιν καὶ διαρρεῖ τὰ πολλάrdquo
129
Lacircmpico tirano193 de Gela194 deve despir-se dos atributos materiais de seu cargo do
manto e da diadema das riquezas bem como dos pesos da alma tais como a arrogacircncia o
desdeacutem a crueldade a ignoracircncia insolecircncia e a raiva Hermes corrige-o dizendo ldquoTirano
coisa nenhuma Tu eacutes um mortordquo (Luciano D mort XX 366)195 Luciano constroacutei uma
imagem do Tirano utilizando suas insiacutegnias tradicionais bem como as caracteriacutesticas que
tradicionalmente satildeo vinculadas ao mau governante No Impeacuterio natildeo haacute mais a instituiccedilatildeo do
Tirano enquanto possibilidade de governante Entretanto a tradiccedilatildeo escrita se apropriou muito
cedo dessa noccedilatildeo que deixa de ser uma instituiccedilatildeo especiacutefica da cultura grega para se tornar
um adjetivo atribuiacutedo aos maus governantes inclusive agravequeles imperadores considerados pela
historiograacutefia senatorial como ruins Em outro diaacutelogo supracitado Luciano introduz a entrada
de Soacutestrato com o Juiz do Hades Minos deferindo suas sentenccedilas entre as quais ele condena o
Tirano a ldquoter o fiacutegado devorado por abutresrdquo196 (Luciano D Mort XXIV 450) uma das
condenaccedilotildees mais terriacuteveis aplicadas por exemplo ao Titatilde Prometeu que criou os homens
roubou o fogo dos deuses e enganou o proacuteprio Zeus
O atleta deve se despir das carnes em excesso Craacuteton deve jogar fora as riquezas a
moleza e o luxo
E natildeo deves trazer os enfeites fuacutenebres nem as honrarias dos antepassados
Deixa para traz a estirpe e a gloacuteria e se por acaso a cidade te proclamou heroacutei
joga fora as inscriccedilotildees das estaacutetuas e nem diga que eles te erigiram um grande
tuacutemulo Na verdade essas lembranccedilas satildeo muito pesadas (Luciano D mort
XX 367)197
193 A Tirania eacute uma instituiccedilatildeo grega que segundo Aristoacuteteles em sua Poliacutetica deturpa a monarquia Trata-se de
uma palavra que tem origem na Liacutedia e que significava originariamente apenas chefe priacutencipe Segundo Jean
Beacuteranger essa noccedilatildeo aparece em Arquiacuteloco (frag 19) e Alceu (frag 306) com um sentido pejorativo de adversaacuterios
da monarquia um concorrente que toma o poder de uma famiacutelia tradicional (BEacuteRANGER 1973 51-52) Jaacute em
Simocircnides Piacutendaro Heroacutedoto ainda segundo Beacuteranger tem o significado se Basileus Nos poemas de Soacutelon o
termo eacute carregado com sentidos vinculados agrave violecircncia e agrave injusticcedila Finalmente ele conclui que no seacuteculo IV aC
o sentido desse termo jaacute se vinculasse ao rei com um sentido secundaacuterio de usurpador bom ou mau De acordo
com A Humpers no verbete Tyrannus do Dictionnaire des antiquiteacutes grecques et romaines dirigido por Charlles
Daremberg e Edmund Saglio na trageacutedia esquiliniana Zeus eacute representado como o tirano dos deuses Esquilo viu
a transiccedilatildeo poliacutetica ateniense da Tirania Pisistraacutetica para a Democracia Como Zeus era cultuado por Pisiacutestrato
como deus dos tiranos a inversatildeo esquiliniana eacute possiacutevel (HUMPERS 1900 367) Os versos iniciais do proacutelogo
da trageacutedia Prometeu Agrilhoado jaacute afirmam que o Titatilde deve pagar ldquopara aprender a anuir agrave tirania de Zeus e
abster-se de ser amigo dos humanosrdquo (Esq Pr 10-11) Sian Lewis (2006 13) em seu livro Ancient Tyrrany
afirma que ldquona Antiguidade a tirania natildeo era uma ideia monoliacutetica mas uma ideia criada e adaptada
constantemente pelos historiadores com sentidos e com aplicaccedilotildees muito diversificadasrdquo 194 Cidade situada na costa sul da Siciacutelia 195 ldquoΕΡΜΗΣ
Τύραννον μὲν οὐδαμῶς νεκρὸν δὲ μάλαrdquo 196 ldquo[] ὑπὸ τῶν γυπῶν καὶ αὐτὸς κειρέσθω τὸ ἧπαρ []rdquo 197 ldquo[] μηδὲ τὰ ἐντάφια κόμιζε μηδὲ τὰ τῶν προγόνων ἀξιώματα κατάλιπε δὲ καὶ γένος καὶ δόξαν καὶ εἴ ποτέ σε
ἡ πόλις ἀνεκήρυξεν καὶ τὰς τῶν ἀνδριάντων ἐπιγραφάς μηδὲ ὅτι μέγαν τάφον ἐπί σοι ἔχωσαν λέγε βαρύνει γὰρ
καὶ ταῦτα μνημονευόμεναrdquo
130
Trata-se de insiacutegnias identitaacuterias que demonstram a antiguidade de uma famiacutelia bem
como as praacuteticas de evergetismo social uma vez que todas as benesses puacuteblicas carregavam
inscriccedilotildees de seus benfeitores Esse eacute um aspecto importante da cultura poliacutetica greco-romana
jaacute que expressa a possibilidade de doaccedilotildees particulares financiarem obras puacuteblicas Nesse
sentido observamos a criacutetica justamente a essa praacutetica lembrando sempre que no Hades essas
marcas natildeo fazem nenhuma distinccedilatildeo
O guerreiro deve deitar fora as armas e os trofeacuteus jaacute que no Hades luciacircnico reina a
paz A distinccedilatildeo militar dos homens das famiacutelias mais tradicionais eacute outro elemento cultural
importante e trata de questionar a forma como os vivos distinguem as pessoas e expressam
valores isto eacute criam as identidades Assim a guerra eacute colocada sob suspeita
Na sequecircncia do diaacutelogo Menipo procura um filoacutesofo para poder zombar dele Como
em Os pescadores ou os ressuscitados o alvo da criacutetica luciacircnica natildeo eacute a filosofia mas os
charlatotildees que se passam por filoacutesofos
Hermes ndash Joga no chatildeo primeiro essa armaccedilatildeo em seguida tambeacutem todas
essas coisas oacute Zeus Quanta fanfarronice ele estaacute trazendo Quanta besteira
e quanta discussatildeo E a gloria vatilde as interrogaccedilotildees sem saiacuteda os discursos
picantes e as meditaccedilotildees complicadas Ele traz tambeacutem trabalhos inuacuteteis e
frivolidades natildeo poucas insignificacircncias e mesquinharias e tambeacutem dinheiro
oacute Zeus E aqui a vida faacutecil falta de pudor preguiccedila luxo e moleza Nada disso
me escapa mesmo que tu as escondas Despe tambeacutem a falsidade o orgulho
e a crenccedila de que tu eacutes melhor do que os outros (Luciano D mort XX 368-
370)198
No passo seguinte Hermes reclama da barba do filoacutesofo que eacute muito pesada Caronte
pede que Menipo corte-a com o machado Juntamente com essa o ciacutenico corta as sobrancelhas
e lhe arranca a bajulaccedilatildeo debaixo dos braccedilos O simbolismo da barba alcanccedila dois pontos
importantes Em primeiro lugar critica a moda helecircnica do uso da barba para inspirar sabedoria
Em segundo conjecturamos o questionamento agrave proacutepria elite da cidade de Roma que a partir
de Marco Aureacutelio deixa para traacutes o tradicional haacutebito de se barbear que tanto marcava a
romanidade
198 ldquoΕΡΜΗΣ
Κατάθου σὺ τὸ σχῆμα πρῶτον εἶτα καὶ ταυτὶ πάντα ὦ Ζεῦ ὅσην μὲν τὴν ἀλαζονείαν κομίζει ὅσην δὲ ἀμαθίαν
καὶ ἔριν καὶ κενοδοξίαν καὶ ἐρωτήσεις ἀπόρους καὶ λόγους ἀκανθώδεις καὶ ἐννοίας πολυπλόκους ἀλλὰ καὶ
ματαιοπονίαν μάλα πολλὴν καὶ λῆρον οὐκ ὀλίγον καὶ ὕθλους καὶ μικρολογίαν νὴ Δία καὶ χρυσίον γε τουτὶ καὶ
ἡδυπάθειαν δὲ καὶ ἀναισχυντίαν καὶ ὀργὴν καὶ τρυφὴν καὶ μαλακίαν οὐ λέληθεν γάρ με εἰ καὶ μάλα περικρύπτεις
αὐτά καὶ τὸ ψεῦδος δὲ ἀπόθου καὶ τὸν τῦφον καὶ τὸ οἴεσθαι ἀμείνων εἶναι τῶν ἄλλωνrdquo
131
Cheio de tantos viacutecios o Hermes luciacircnico tambeacutem pede que o orador dispa-se de
ldquoloquacidade das antiacuteteses das frases simeacutetricas dos soliloacutequios dos barbarismos e de todos
esses pesos dos discursosrdquo (Luciano D mort XX 374)199
Os mortos devem se despir de pesos materiais (riquezas e luxo) imateriais
(sentimentos e posturas) bem como da memoacuteria e do viacutenculo que a lembranccedila enseja com as
veleidades materiais a vida e os vivos As homenagens e as gloacuterias terrenas satildeo um peso ndash em
um sentido natildeo metafoacuterico ndash para a construccedilatildeo de um espaccedilo de completa isonomia
Luciano iguala materialmente todos os indiviacuteduos e permite uma seacuterie de criacuteticas
sociais Ressaltemos que o igualamento dar-se-aacute na conjunccedilatildeo especiacutefica do desprovimento dos
bens materiais (conseguidos acumulados ou herdados) como as riquezas ou aqueles que os
indiviacuteduos nascem como a beleza A criacutetica luciacircnica eacute extremamente forte contra o apego aos
bens materiais
Os diaacutelogos dos mortos condenam o fausto em que a elite greco-romana vivia bem
como as praacuteticas que rodeiam a relaccedilatildeo dos ricos com os outros principalmente a bajulaccedilatildeo
Nesse sentido Luciano mobiliza personagens presentes na memoacuteria histoacuterica greco-romana a
fim de expressar suas ideias Brandatildeo defende que
A concepccedilatildeo radicalmente igualitaacuteria de Luciano fundamenta-se num
processo de depauperamento igualmente radical em que o resto dos mortos
se confundem num igualamento absoluto A visatildeo que tem Menipo da planiacutecie
de Aqueruacutesia mostra um espaccedilo em que semideuses heroiacutenas e mortos de
todas as naccedilotildees e tribos misturam sua inconsistecircncia (BRANDAtildeO 19941995
90)
Franccedilois Jouan infere que ldquoa unidade de inspiraccedilatildeo dos Diaacutelogos dos mortos eacute clara
Sua leitura agradaacutevel nos leva agrave conclusatildeo de que se trata somente de abolir em seu Inferno
[Enfers] todas as desigualdades sociais entre os homens e realizar o nivelamento absoluto entre
elesrdquo (JOUAN1994 28)
No diaacutelogo V Menipo questiona Hermes sobre onde encontrar ldquoOs belos e as belasrdquo200
Ao mostrar alguns semideuses que todos os poetas admiram o filoacutesofo ciacutenico responde ldquoEstou
vendo soacute ossos e cracircnios desprovidos de carnes a maioria semelhantesrdquo (Luciano D mort V
405-409)201
199 ldquoκαὶ ὁ ῥήτωρ δὲ σὺ ἀπόθου τῶν ῥημάτων τὴν τοσαύτην ἀπεραντολογίαν καὶ ἀντιθέσεις καὶ παρισώσεις καὶ
περιόδους καὶ βαρβαρισμοὺς καὶ τὰ ἄλλα βάρη τῶν λόγωνrdquo 200 ldquoΠοῦ δαὶ οἱ καλοί εἰσιν ἢ αἱ καλαί Ἑρμῆrdquo 201 ldquoὈστᾶ μόνα ὁρῶ καὶ κρανία τῶν σαρκῶν γυμνά ὅμοια τὰ πολλάrdquo
132
O Diaacutelogo XXX fornece mais um exemplo interessante para esse fenocircmeno do igualamento dos
mortos Nireu202 e Tersites203 solicitam que Menipo seja o aacuterbitro sobre quem seria o mais formoso
Luciano debate aqui a tradiccedilatildeo homeacuterica na qual o primeiro era o segundo mais belo e o segundo que eacute
o mais feio A resposta do Menipo luciacircnico reafirma a isonomia deste espaccedilo pois afirma que ldquoNem
tu eacutes mais formoso nem um outro pois no Hades reina a igualdade e todos satildeo parecidosrdquo (Luciano D
mort XXX 433 ss)204
Luciano enfatiza peremptoriamente esse nivelamento entretanto acreditamos que a perspectiva
defendida por Brandatildeo e Jouan devem ser matizadas No diaacutelogo XX o filoacutesofo que foi despido de tudo
que carregava pede para Menipo tambeacutem se despir de algumas caracteriacutesticas que levava Segue o
diaacutelogo
O filoacutesofo ndash Pois entatildeo Menipo tu tambeacutem despe a liberdade a franqueza a
ausecircncia de tristeza a nobreza e o riso porque tu eacutes o uacutenico que estaacutes rindo
Hermes ndash De forma alguma Ao contraacuterio conserva essas coisas Todas satildeo
faacuteceis de transportar e satildeo uacuteteis para a viagem (Luciano D mort XX 373)205
Natildeo haacute um desprezo agrave vida nos Diaacutelogos dos Mortos como natildeo existe um processo de
idealizaccedilatildeo da morte o que ocorre eacute uma criacutetica agrave cultura poliacutetica e agrave desigualdade social por
meio do riso uma vez que algumas virtudes uacuteteis permanecem com quem as porta Virtudes
essas que natildeo se afastam daquelas herdadas dos ciacutenicos a saber sabedoria (σοφία)
autodomiacutenio (αὐτάρκεια) verdade (ἀλήθεια) franqueza (παρρησία) liberdade (ἐλευθερία)
(Luciano D mort XXI 378) Tais qualidades satildeo o contraponto daqueles atributos dos quais
o tirano se devia despir O siacuterio nuanccedila com matizes ciacutenicas seu Hades no entanto o discurso
eacute possibilitado pela parreacutesia pela franqueza
Haacute outra exceccedilatildeo com o filho de Alcmena Heacuteracles no diaacutelogo XI visto assim por
Dioacutegenes ldquoEsse aiacute natildeo eacute Heacuteracles Natildeo pode ser outro por Heacuteracleacutes O arco o porrete a pele
202 Luciano cita o canto II da Iliacuteada no qual ldquoNireu que era o homem mais belo entre os Dacircnaos que vieram para
debaixo de Iacutelion agrave exceccedilatildeo do irrepreensiacutevel Pelidardquo (ldquoΝιρεύς ὃς κάλλιστος ἀνὴρ ὑπὸ Ἴλιον ἦλθε τῶν ἄλλων
Δαναῶν μετ ἀμύμονα Πηλεΐωναrdquo) (Homero Il II 673-674 grifo nosso) Propositalmente o siacuterio natildeo cita o
trecho sublinhado A memoacuteria eacute seletiva como podemos notar mas a ausecircncia dos trechos diz muito sobre os
objetivos luciacircnicos 203 Personagem da Iliacuteada assim descrito por Homero ldquoEra o homem mais feio que veio para Iacutelion tinha as pernas
tortas e era coxo num peacute os ombroseram encurvados dobrando-se sobre o peito A cabeccedila era pontiaguda donde
despontava uma rara lanugemrdquo (ldquo[]αἴσχιστος δὲ ἀνὴρ ὑπὸ Ἴλιον ἦλθε φολκὸς ἔην χωλὸς δ ἕτερον πόδα τὼ
δέ οἱ ὤμω κυρτὼ ἐπὶ στῆθος συνοχωκότε αὐτὰρ ὕπερθε φοξὸς ἔην κεφαλήν ψεδνὴ δ ἐπενήνοθε λάχνηrdquo)
(Homero Il II 216 217-219 trad Frederico Lourenccedilo) 204 ldquoΜΕΝΙΠΠΟΣ
Οὔτε σὺ οὔτε ἄλλος εὔμορφος ἰσοτιμία γὰρ ἐν ᾅδου καὶ ὅμοιοι ἅπαντεςrdquo 205 ldquoΦΙΛΟΣΟΦΟΣ
Οὐκοῦν καὶ σύ ὦ Μένιππε ἀπόθου τὴν ἐλευθερίαν καὶ παρρησίαν καὶ τὸ ἄλυπον καὶ τὸ γενναῖον καὶ τὸν γέλωτα
μόνος γοῦν τῶν ἄλλων γελᾷς
ΕΡΜΗΣ
Μηδαμῶς ἀλλὰ καὶ ἔχε ταῦτα κοῦφα γὰρ καὶ πάνυ εὔφορα ὄντα καὶ πρὸς τὸν κατάπλουν χρήσιμαrdquo
133
de leatildeo a estatura eacute todinho Heacuteraclesrdquo (Luciano D mort XI 402)206 O igualamento se daacute
nos niacuteveis superficiais de distinccedilatildeo Por traz de todo o debate existe uma loacutegica da essecircncia e
da aparecircncia aquilo que de fato eacute uma distinccedilatildeo essencial e aquilo que eacute uma distinccedilatildeo
superficial
Luciano se preocupa com o fato de os mortos estarem em condiccedilotildees iguais todavia em
cinco diaacutelogos207 ele se preocupa com os bajuladores Os personagens que se envolvem nessas
situaccedilotildees satildeo aqueles inventados pela criatividade luciacircnica que citamos acima geralmente
jovens que cercam algum velho rico que natildeo tenha filhos a fim de ser considerado seu herdeiro
situaccedilatildeo que se aproxima muito da instituiccedilatildeo da adoccedilatildeo Ou seja satildeo os vivos que se
preocupam com a morte daqueles que tecircm muito jaacute que como natildeo levaram nada poderatildeo
herdar desde que sejam adotados como herdeiros dos ricos Nesse sentido haacute colocaccedilotildees sobre
a relaccedilatildeo dos ricos com outras pessoas principalmente com os bajuladores
Ao analisar a cultura poliacutetica romana observamos que Luciano estaacute criticando nos
Diaacutelogos dos mortos uma instituiccedilatildeo importante que eacute uma especificidade do direito romano
a adoptio O processo legal de adoccedilatildeo em Roma somente era permitido aos homens A pessoa
adotada natildeo se distinguia dos filhos naturais daquele que o adotou tendo os mesmos direitos
sucessoacuterios bem como o nome e a posiccedilatildeo social aleacutem da heranccedila
Segundo Veyne a adoccedilatildeo poderia impedir a extinccedilatildeo de uma estirpe bem como adquirir
a condiccedilatildeo de pater famiacutelias que era exigida para o acesso a algumas honras puacuteblicas ou ao
governo das proviacutencias (Veyne 2007 30)
Os analistas do Alto Impeacuterio costumam ressaltar que a sucessatildeo foi um dos pontos fracos
do sistema imperial De acordo com o direito romano o Princeps natildeo podia escolher ou impor
seu sucessor208 Entretanto de Augusto a Cocircmodo dos dezesseis Imperadores nove chegaram
tranquilamente agrave puacuterpura sendo trecircs filhos de um Imperador (Tito Domiciano e Cocircmodo) e
cinco filhos adotados oficialmente (Tibeacuterio Nero Trajano Antonino Pio Marco Aureacutelio) Se
observarmos os Imperadores contemporacircneos ao siacuterio transmitiam o poder diminuindo as
crises poliacuteticas por meio da adoccedilatildeo daquele que eacute considerado o melhor
Esse tema ganha muita forccedila nos Diaacutelogos dos mortos uma vez que em cinco diaacutelogos
o tema principal eacute o caccedilador de heranccedilas Haacute duas criacuteticas uma social ndash agravequeles ricos que se
206 ldquoΔΙΟΓΕΝΗΣ
Οὐχ Ἡρακλῆς οὗτός ἐστιν οὐ μὲν οὖν ἄλλος μὰ τὸν Ἡρακλέα τὸ τόξον τὸ ῥόπαλον ἡ λεοντῆ τὸ μέγεθος ὅλος
Ἡρακλῆς ἐστινrdquo 207 Diaacutelogos XV XVI XVII XVIII e XIX 208 Beacuteranger analisou a transmissatildeo do poder imperial tendo em vista a questatildeo da hereditariedade Ele nos lembra
que essa instituiccedilatildeo natildeo existia formalmente no direito romano mas que na praacutetica haacute a tentativa de constituir uma
domus imperial (BEacuteRANGER 1971137-152)
134
cercavam de bajuladores que estavam em busca de suas heranccedilas ndash e uma sutil criacutetica poliacutetica
a partir do olhar aos mecanismos de sucessatildeo imperial Retomemos o que afirma Demeacutetrio no
seu manual de retoacuterica o orador precisa encontrar meios de falar ao tirano sem colocar sua
vida em risco
A presenccedila de reis tiranos e generais expressa com uma ecircnfase maior a postura que
Luciano tem de alguns mecanismos de poder Jaacute no citado diaacutelogo XX Hermes avisa ao tirano
de Gela que no Hades ele eacute mais um morto e que todo o seu poder ficou na terra O escritor
constroacutei nos Diaacutelogos dos Mortos o encontro entre a histoacuteria e o mito por meio de uma
construccedilatildeo memorialiacutestica que interage com o passado Como afirma Keith Jenkins em seu
recente livro A Histoacuteria Refigurada
O que constitui (conforma) o sujeito humano em qualquer momento no espaccedilo
e no tempo natildeo eacute portanto a expressatildeo de algum nuacutecleo interior ou essecircncia
humana e sim o resultado desse processo dinacircmico denominado
interabilidade (o processo de repeticcedilatildeo e diferenccedila da repeticcedilatildeo do nunca
exatamente igual) que garante que ningueacutem jamais esteja completo estaacutevel
ou fixo de uma vez por todas (JENKINS 2014 12-13)
Conforme dito o uso das narrativas nunca eacute exatamente igual ao repetido uma vez que
as mudanccedilas podem ocorrer em diversas ordens desde a semacircntica das palavras agraves condiccedilotildees
de enunciaccedilatildeo dadas Logo o processo de constituiccedilatildeo identitaacuteria natildeo ocorre a partir de uma
essecircncia mas principalmente no mundo greco-romano num processo de conformaccedilatildeo e
aglutinaccedilatildeo de signos identitaacuterios de culturas diversas
Como nos ensinou Assmann (2011 83-91) a escrita permite a glosa contiacutenua a anaacutelise
principalmente quando pensamos em uma cultura como a helecircnica cujos textos fundadores
natildeo foram alccedilados ao patamar da palavra divina como ocorreu com outras culturas A escrita
natildeo ficou monopolizada por escribas nem as narrativas sobre os deuses confinada aos templos
dessa forma o conjunto de textos literaacuterios gregos desde sua origem nutre-se das diversas
narrativas miacuteticas presentes na tradiccedilatildeo para se reconfigurar
Nesta senda a anaacutelise do texto luciacircnico amplia os horizontes da interpretaccedilatildeo histoacuterica
O espaccedilo do Hades representado nos diaacutelogos permite o encontro ou mesmo o confronto de
personagens histoacutericos questionadores de valores e insiacutegnias da vida sociopoliacutetica como eacute o
caso da representaccedilatildeo dos reis e dos tiranos nesses diaacutelogos
O mais emblemaacutetico caso eacute a representaccedilatildeo de Alexandre Magno Trata-se aqui do
modelo de conquistador na cultura claacutessica Plutarco na Vida de Cesar relata que
na Hispacircnia ocupando o oacutecio com a leitura de uma obra sobre Alexandre
ficou longo tempo a refletir absorto em si mesmo e depois comeccedilou a chorar
135
Espantados os amigos quiseram saber a causa daquelas laacutegrimas Natildeo vos
parece explicou ele ser motivo de afliccedilatildeo pensar que na idade em que estou
Alexandre jaacute possuiacutea um vasto impeacuterio e eu ainda natildeo empreendi nada de
grandioso (Plutarco Caesar 11)209
A imagem desse governante esteve muito presente na Repuacuteblica Romana bem como
entre os Imperadores Trata-se do grande conquistador cujos feitos teriam sido inigualaacuteveis
Haacute trecircs diaacutelogos210 em que esse soberano se faz presente O diaacutelogo XXV travado entre
Alexandre Aniacutebal Cipiatildeo e Minos discorre justamente sobre quem seria o maior general de
todos os tempos Trata-se de um exerciacutecio comum na retoacuterica uma vez que mobiliza a memoacuteria
cultural dos agentes Minos o juiz do Hades teria sido o grande rei da ilha de Creta seu
legislador e a tradiccedilatildeo lhe lega a fama de general exitoso Logo ele teria a autoridade necessaacuteria
para fazer esse julgamento (GRIMAL 2005 313-314)
Nesse caso Luciano mostra seu conhecimento de Histoacuteria Romana aleacutem de explicitar
uma posiccedilatildeo ambiacutegua para Cipiatildeo A disputa dar-se-aacute com o encontro de trecircs grandes generais
conhecidos por conquistas grandiosas e feitos memoraacuteveis Cada um dos heroacuteis representa um
povo Aniacutebal os cartagineses Cipiatildeo os romanos Alexandre os Macedocircnios
Alexandre eacute o grande general por excelecircncia extremamente cultuado entre os proacuteprios
romanos como evidencia a citaccedilatildeo anterior de Plutarco como modelo de conquistador Esse
poder condensador em torno de sua imagem permite que ela seja bastante utilizada pelos
oradores da Segunda Sofiacutestica
No diaacutelogo XXV Luciano mostra seu talento literaacuterio e a ambiguidade que sua condiccedilatildeo
lhe impotildee Retomemos a premissa de Paul Veyne sobre os escritores da Segunda Sofiacutestica
amplamente debatida no primeiro capiacutetulo Os argumentos positivos colocados por Aniacutebal
afirmam (1) que ele fez todas as suas conquistas do nada (2) a conquista de povos ocidentais
(3) o grande nuacutemero de mortos nas batalhas (4) que chegou agraves portas de Roma (5) que assumiu
sua condiccedilatildeo humana (6) que lutou com os soldados mais belicosos
Em seguida ele comeccedila os argumentos negativos atacando Alexandre (1) ele se
autodenominou filho de Amon (2) herdou o poder do pai (3) afastou-se das tradiccedilotildees dos
antepassados (4) assassinou amigos nos banquetes Aniacutebal ainda faz uma seacuterie de comparaccedilotildees
tendo em vista justificar seu exiacutelio
209 ldquoὁμοίως δὲ πάλιν ἐν Ἰβηρίᾳ σχολῆς οὔσης ἀναγινώσκοντά τι τῶν περὶ Ἀλεξάνδρου γεγραμμένων σφόδρα
γενέσθαι πρὸς ἑαυτῷ πολὺν χρόνον εἶτα καὶ δακρῦσαι τῶν δὲ φίλων θαυμασάντων τὴν αἰτίαν εἰπεῖν lsquoοὐ δοκεῖ
ὑμῖν ἄξιον εἶναι λύπης εἰ τηλικοῦτος μὲν ὢν Ἀλέξανδρος ἤδη τοσούτων ἐβασίλευεν ἐμοὶ δὲ λαμπρὸν οὐδὲν οὔπω
πέπρακταιrsquordquo 210 Alexandre eacute personagem dos diaacutelogos XII XIII e XXV
136
Luciano alude a esse governante no iniacutecio do opuacutesculo Alexandre ou o falso profeta Ao
se referir agravequele charlatatildeo que residia em Abonotico ele afirma que a ldquoeste estaacute para a maldade
tanto quanto aquele estaacute para a virtuderdquo (Luciano Alex 1)211 Os personagens satildeo mobilizados
na narrativa luciacircnica a fim de compor um argumento logo seu uso depende do contexto e da
finalidade da remissatildeo Por isso o uso desse personagem pode remeter a aspectos mais
proacuteximos que a anaacutelise superficial deixa entrever
Os argumentos do cartaginecircs voltam-se com precisatildeo para a poliacutetica no Impeacuterio Romano
e principalmente para suas intrigas Nesse sentido a defesa que Alexandre faz de sua primazia
eacute bastante esclarecedora O fundador de Alexandria inicia seu argumento afirmando que (1)
foi um rei enquanto o cartaginecircs foi um salteador (2) chegou ao poder jovem (3) colocou
ordem no reino que estava conturbado (4) vingou o assassinato do pai (5) desejou dominar
todo o mundo conhecido uma vez que seria inseguro se assim natildeo fosse (6) foi um grande
conquistador (7) conquistou o reino de Dario enviando muitas pessoas ao Hades (8) tinha a
ousadia pessoal em combate (9) morreu governando Alexandre ainda menospreza a vitoacuteria
dos itaacutelicos por Aniacutebal jaacute que teria chegado tatildeo longe sem combate Afirma que o mesmo
perdeu a guerra por se dedicar muito a uma vida luxuriosa
Por fim quem decidiu a primazia entre os generais foi Cipiatildeo que afirmou que eacute inferior
a Alexandre e superior a Aniacutebal A fina ironia luciacircnica coloca na boca de um romano que um
general estrangeiro eacute maior que um dos generais vencedores nas guerras puacutenicas Na loacutegica
luciacircnica o maior general eacute um grego seguido por um romano e finalmente pelo cartaginecircs
Entretanto os argumentos usados por gregos e cartagineses satildeo muito mais referentes agrave
sociedade na qual Luciano escreveu que naquela em que viveram os generais A memoacuteria
histoacuterica greco-romana eacute mobilizada como sempre seletivamente no intuito de discorrer
sobresua atualidade poliacutetica uma vez que era um signo importante aos governantes de seu
tempo ser considerado um grande general Assim o imaginaacuterio sobre essas personagens e seu
modelo ideal tecircm grande potencial poliacutetico As criacuteticas ao Impeacuterio e seu governante aparecem
aqui veladas por recursos retoacutericos
Nos diaacutelogos luciacircnicos Alexandre eacute interpelado tanto por Dioacutegenes quanto por seu pai
Filipe pelo uso poliacutetico que faz de sua suposta filiaccedilatildeo divina O anedotaacuterio que envolve a vida
de Dioacutegenes apresenta muitas passagens em que esse teria se encontrado com Alexandre
existindo inclusive uma tradiccedilatildeo pouco provaacutevel na Antiguidade que afirmava que os dois
teriam morrido no mesmo dia (FINLEY 1991 106)
211 ldquoτοσοῦτος εἰς κακίαν οὗτος ὅσος εἰς ἀρετὴν ἐκεῖνοςrdquo
137
O diaacutelogo coloca em duacutevida os profetas de Amom como o fato de as pessoas
acreditarem naquele ocorrido Ou seja Dioacutegenes questiona a bajulaccedilatildeo dos adivinhos mas
tambeacutem a credulidade do povo Por outro lado Alexandre se beneficiou politicamente do medo
que esse boato gerava
No diaacutelogo com seu pai tanto ao ser interpelado por aceitar que as pessoas o
considerassem filho de um deus expotildee-se o uso poliacutetico desse boato
Filipe ndash Agora Alexandre natildeo mais poderias afirmar que natildeo eacutes meu filho
pois se fosses filho de Amon natildeo estarias aqui
Alexandre ndash Nem eu desconhecia meu pai que era filho de Filipe filho de
Amintas Mas eu aceitava o oraacuteculo porque acreditava que aquilo era uacutetil para
meus projetos
Filipe ndash Como eacute isso Parecia-te uacutetil sujeitar-te a ser enganado pelos
adivinhos
Alexandre ndash Natildeo natildeo eacute isso Eacute que os baacuterbaros ficavam estarrecidos na minha
presenccedila e assim nenhum deles me resistiu por acreditar que estavam lutando
com um deus Daiacute eu os dominava mais facilmente (Luciano D mort XII
395)212
Filipe questiona o meacuterito da vitoacuteria conseguida sob esse engodo repetindo uma criacutetica
que estaacute presente no debate sobre a primazia no qual Aniacutebal nos lembra que ele natildeo valorizou
sua condiccedilatildeo humana por menosprezo aos seus adversaacuterios
Filipe ainda lembra que ldquoE o que eacute mais ridiacuteculo de tudo tu copiaste os costumes dos
vencidosrdquo (Luciano D mort XII 396)213 Tais assertivas ecoam a relaccedilatildeo dos dominadores romanos
com os povos helecircnicos Luciano volta-se agrave cultura poliacutetica de seu tempo cheia de intrigas perseguiccedilotildees
e assassinatos assim como Alexandre haveria feito Bem como as ousadias que geraram ferimentos no
conquistador uma vez que esses atos colocavam em descreacutedito a crenccedila de que ele era filho de uma
divindade
Os Diaacutelogos dos Mortos satildeo textos com um profundo questionamento da cultura poliacutetica greco-
romana Natildeo se trata de um texto panfletaacuterio muito menos de um ativista revolucionaacuterio que apresentava
grande apelo pelos oprimidos Partimos do pressuposto de que os Diaacutelogos dos Mortos questionam a
maneira como a elite imperial vivia e a relaccedilatildeo desta com os menos abastados O elemento mobilizado
212 ldquoΦΙΛΙΠΠΟΣ
Νῦν μέν ὦ Ἀλέξανδρε οὐκ ἂν ἔξαρνος γένοιο μὴ οὐκ ἐμὸς υἱὸς εἶναι οὐ γὰρ ἂν τεθνήκεις Ἄμμωνός γε ὤν
ΑΛΕΞΑΝΔΡΟΣ
Οὐδ αὐτὸς ἠγνόουν ὦ πάτερ ὡς Φιλίππου τοῦ Ἀμύντου υἱός εἰμι ἀλλ ἐδεξάμην τὸ μάντευμα χρήσιμον εἰς τὰ
πράγματα εἶναι οἰόμενος
ΦΙΛΙΠΠΟΣ
Πῶς λέγεις χρήσιμον ἐδόκει σοι τὸ παρέχειν σεαυτὸν ἐξαπατηθησόμενον ὑπὸ τῶν προφητῶν
ΑΛΕΞΑΝΔΡΟΣ
Οὐ τοῦτο ἀλλ οἱ βάρβαροι κατεπλάγησάν με καὶ οὐδεὶς ἔτι ἀνθίστατο οἰόμενοι θεῷ μάχεσθαι ὥστε ῥᾷον
ἐκράτουν αὐτῶνrdquo 213 ldquo[] καὶ τὸ πάντων γελοιότατον ἐμιμοῦ τὰ τῶν νενικημένωνrdquo
138
eacute justamente o igualamento proporcionado pela morte que coloca todos nas mesmas condiccedilotildees bem
como elementos da teologia poliacutetica como a divinizaccedilatildeo dos governantes
Os caminhos propostos por Luciano nos Diaacutelogos dos mortos satildeo intrincados e instigadores
Entretanto estamos convencidos que ele natildeo estaacute discorrendo sobre os mortos Esse texto versa sobre
os vivos e a vida natildeo existe sem a poliacutetica com suas normas leis e principalmente a comunidade
Assim Luciano opotildee as caracteriacutesticas do tirano marcadas para aleacutem das insiacutegnias materiais do cargo
(manto e diadema) por defeitos morais arrogacircncia orgulho presunccedilatildeo ignoracircncia insolecircncia
e raiva Trata-se do oposto dos elementos valorizados sabedoria autodomiacutenio verdade franqueza
liberdade Essa oposiccedilatildeo de valores serve-se das referecircncias dadas pelo regime de memoacuteria
romano expressos em uma memoacuteria cultural reatualizada por Luciano de Samoacutesata
33 Narrativas miacuteticas e os dilemas do poder o caso do Prometeu luciacircnico
Neste toacutepico analisamos os usos do poder nos diaacutelogos luciacircnicos tendo em vista
principalmente a presenccedila do titatilde Prometeu que eacute tradicionalmente ligado agraves atitudes
arbitraacuterias de Zeus o deus dos tiranos em oposiccedilatildeo agrave divindade filantroacutepica que tem a
capacidade de antever o futuro Para tal analisamos o diaacutelogo maior Prometeu ou o Caacuteucaso
o diaacutelogo I da coletacircnea Diaacutelogos dos deuses travado entre Zeus e Prometeu e sempre que
necessaacuterio faremos referecircncia ao pequeno opuacutesculo Ao que disse ldquoEacutes um Prometeu em seus
discursosrdquo
As narrativas miacuteticas vinculadas ao titatilde satildeo fundamentais na tradiccedilatildeo literaacuteria helecircnica
e foi o mote para muitas trageacutedias especialmente o Prometeu Agrilhoado de Eacutesquilo Trata-
se de um personagem recorrente nos escritos luciacircnicos sendo que o mesmo fornece o pretexto
para muitos assuntos mas principalmente para pensar os atos abusivos dos detentores do
poder214
As referecircncias luciacircnicas a esse mito satildeo de duas ordens uma referente agrave puniccedilatildeo
recebida pelo criador dos homens no Caacuteucaso e outra agrave comparaccedilatildeo indireta da poeacutetica
luciacircnica com as artes de Prometeu Inicialmente vamos pensar essa apropriaccedilatildeo vinculada agrave
reflexatildeo do proacuteprio ofiacutecio uma vez que permeado a esse debate podemos ver elementos com
os quais Luciano constroacutei seu texto cocircmico numa atitude conhecida para produzir o riso que eacute
sempre retomado como um caminho para o pensamento utilizado pelo siacuterio em seus escritos
214 Prometeu eacute citado por Luciano no J conf 8 J trag 1 Prom verbs 1 2 3 4 5 6 7 14 20 21 Sacr 5 6
Philops 2 Merc Cond 26 Salt 38 Amor 9 36 43 D deor 5 Nessa lista de vinte e uma apariccedilotildees excetuamos
o diaacutelogo maior Prometeu ou o Caacuteucaso
139
Nossa anaacutelise destaca os elementos poliacuteticos e dessa forma mobiliza o debate sobre a postura
luciacircnica frente agraves diferentes formas de poder
Ao falar de sua poeacutetica no opuacutesculo Ao que diz que ldquoEacutes um Prometeu em seus
discursosrdquo Luciano debate a aproximaccedilatildeo dos seus feitos literaacuterios com aqueles atribuiacutedos ao
titatilde colocando-se como um ldquomodelador de argilardquo (πηλοπλάθος) (Luciano Prom Verb 1)
Mais uma vez o siacuterio justifica a uniatildeo conflitante do diaacutelogo filosoacutefico com a comeacutedia O mito
prometeico eacute retomado especialmente pelos benefiacutecios que trouxe agrave humanidade a qual deve
sua existecircncia ao fato de Prometeu ter criado os homens a partir do barro Ele garantiu a
sobrevivecircncia da humanidade roubando o fogo dos deuses e entregando aos homens bem como
estabeleceu uma divisatildeo favoraacutevel aos mortais dos sacrifiacutecios realizados Na narrativa miacutetica
satildeo justamente esses benefiacutecios que levam o titatilde a receber uma puniccedilatildeo extremamente cruel
ser preso no monte Caacuteucaso e ter uma aacuteguia comendo seu fiacutegado todos os dias Ele era
considerado o mais saacutebio dos Titatildes aquele que via com antecedecircncia o desenrolar dos fatos
sendo por isso mesmo considerado um profeta ou seja o personagem miacutetico que encerra a
filantropia em todo o imaginaacuterio que se constroacutei ao redor dele
Luciano ao defender e explicitar sua poeacutetica se indaga sobre a pertinecircncia da alcunha
de Prometeu para seu oficio questiona se seus textos satildeo mesmo prometeicos ou seja
profeacuteticos indicando caminhos para o futuro Aleacutem disso ressalta que a junccedilatildeo do diaacutelogo
filosoacutefico com a comeacutedia pode ensejar o desejo de ldquoenganar os ouvintes e servir-lhes ossos
escondidos sob a gordura o riso cocircmico sob a seriedade filosoacuteficardquo (Luciano Prom Verb 7)215
O engano de que fala o escritor eacute justamente a intenccedilatildeo expliacutecita de seus escritos produzirem o
riso que faz pensar caracteriacutestico do cocircmico seacuterio
Nesse contexto em que o samosatense reflete sobre a novidade dos textos que produz
ele narra uma anedota
Ptolomeu216 filho de Lago duas coisas novas levou ao Egito uma fecircmea de
camelo de Bactres interamente negra e um homem de duas cores de modo
que uma metade ele a tinha acuradamente negra enquanto a outra era
hiperbolicamente branca por igual sendo assim dividido Reunindo entatildeo os
egiacutepcios no teatro mostrou-lhes Ptolomeu muitos e variados espetaacuteculos e
por fim tambeacutem estes a fecircmea de camelo e o homem branco pela metade
julgando haver de deixaacute-los maravilhados com o que viam Pois bem face da
fecircmea de camelo tiveram medo e pouco faltou para que fugissem em pacircnico
ainda que ela estivesse toda enfeitada com ouro coberta de puacutepura e seu freio
215 ldquo[] ἐξαπατῶν ἴσως τοὺς ἀκούοντας καὶ ὀστᾶ παραθεὶς αὐτοῖς κεκαλυμμένα τῇ πιμελῇ γέλωτα κωμικὸν ὑπὸ
σεμνότητι φιλοσόφῳrdquo 216 Ptolomeu I Soter (366 ndash 283 a C) foi o fundador da dinastia dos Laacutegidas no Egito Foi um dos generais
macedocircnicos que acompanhou Alexandre Tomou o tiacutetulo de Rei em 305 a C recusando-se a pagar impostos a
Macedocircnia Filho de um nobre Lago do qual deriva o nome da dinastia Laacutegidas
140
fosse incrustado de pedras preciosas cimeacutelio de um Daacuterio um Cambises ou
um Ciro jaacute em face do homem muitos comeccedilaram a rir outros se encheram
de horror como se diante de um monstro desse modo compreendendo
Ptolomeu que a novidade natildeo era apreciada nem admirada pelos egiacutepcios
mas eles julgavam as coisas pela eurritmia e a formosura mandou levar
embora aquelas coisas e natildeo mais as teve em consideraccedilatildeo A fecircmea de camelo
morreu por falta de cuidado o homem duplo ele deu de presente a Teacuterpis o
flautista que tocou bem durante o banquete (Luciano Prom Verb 4) 217
Colocamos duas indagaccedilotildees uma de ordem esteacutetica e literaacuteria referente agrave poeacutetica
luciacircnica outra de ordem poliacutetica referente a elementos simboacutelicos presentes no texto que
produzem o riso A indagaccedilatildeo esteacutetica pode ser resumida nas colocaccedilotildees de Brandatildeo segundo
o qual a poeacutetica luciacircnica deveria ldquoajuntar o diferente e harmonizaacute-lo () Sem isso teria o
efeito de provocar em vez de prazer e divertimento apenas pavor e riso como as novidades de
Ptolomeurdquo (BRANDAtildeO 2001 79) Essa breve anedota apresenta elementos presentes na
sociedade greco-romana na qual o siacuterio se inseria
Primeiramente haacute o viacutenculo com um soberano helenizado do Egito um sucessor dos
antigos Faraoacutes destacando-se dessa forma a aproximaccedilatildeo com as realezas orientais com a
menccedilatildeo a Ptolomeu e aos monarcas persas Haacute na cultura poliacutetica romana a criacutetica a posturas
orientalizantes dos governantes ndash podemos lembrar os casos de Juacutelio Cesar Marco Antocircnio ou
Nero
O segundo elemento a ser evidenciado eacute a fecircmea de camela enfeitada com insiacutegnias
proacuteprias de um governante manto puacuterpura e joias Haacute um alerta sobre as accedilotildees dos governantes
e a possibilidade de as mesmas gerarem riso e espanto Tudo isso teria ocorrido no Egito cuja
importacircncia estrateacutegica para a poliacutetica imperial jaacute enfatizamos o que se coaduna com as
colocaccedilotildees que avizinham a imagem do titatilde filantropo
Os usos poliacuteticos da imagem de Prometeu satildeo pautados no questionamento agrave tirania de
Zeus e dos elementos que a rodeiam Luciano constroacutei exemplos de como um governante
desatento pode vir a se tornar um mau governante Inicialmente vamos ao desdobramento desse
diaacutelogo e em seguida agrave refutaccedilatildeo dos crimes prometeicos feita pelo proacuteprio Titatilde no diaacutelogo
Prometeu ou o Caacuteucaso Noacutes dialogamos com as remissotildees miacuteticas construiacutedas de maneira
217 ldquoΠτολεμαῖος γοῦν ὁ Λάγου δύο καινὰ ἐς Αἴγυπτον ἄγων κάμηλόν τε Βακτριανὴν παμμέλαιναν καὶ δίχρωμον
ἄνθρωπον ὡς τὸ μὲν ἡμίτομον αὐτοῦ ἀκριβῶς μέλαν εἶναι τὸ δὲ ἕτερον ἐς ὑπερβολὴν λευκόν ἐπ ἴσης δὲ
μεμερισμένον ἐς τὸ θέατρον συναγαγὼν τοὺς Αἰγυπτίους ἐπεδείκνυτο αὐτοῖς ἄλλα τε πολλὰ θεάματα καὶ τὸ
τελευταῖον καὶ ταῦτα τὴν κάμηλον καὶ τὸν ἡμίλευκον ἄνθρωπον καὶ ᾤετο ἐκπλήξειν τῷ θεάματι οἱ δὲ πρὸς μὲν
τὴν κάμηλον ἐφοβήθησαν καὶ ὀλίγου δεῖν ἔφυγον ἀναθορόντες καίτοι χρυσῷ πᾶσα ἐκεκόσμητο καὶ ἁλουργίδι
ἐπέστρωτο καὶ ὁ χαλινὸς ἦν λιθοκόλλητος Δαρείου τινὸς ἢ Καμβύσου ἢ Κύρου αὐτοῦ κειμήλιον πρὸς δὲ τὸν
ἄνθρωπον οἱ μὲν πολλοὶ ἐγέλων οἱ δέ τινες ὡς ἐπὶ τέρατι ἐμυσάττοντο ὥστε ὁ Πτολεμαῖος συνεὶς ὅτι οὐκ
εὐδοκιμεῖ ἐπ αὐτοῖς οὐδὲ θαυμάζεται ὑπὸ τῶν Αἰγυπτίων ἡ καινότης ἀλλὰ πρὸ αὐτῆς τὸ εὔρυθμον καὶ τὸ
εὔμορφον κρίνουσι μετέστησεν αὐτὰ καὶ οὐκέτι διὰ τιμῆς ἦγεν ὡς πρὸ τοῦ ἀλλ ἡ μὲν κάμηλος ἀπέθανεν
ἀμελουμένη τὸν ἄνθρωπον δὲ τὸν διττὸν Θέσπιδι τῷ αὐλητῇ ἐδωρήσατο καλῶς αὐλήσαντι παρὰ τὸν πότονrdquo
141
singular nos diaacutelogos luciacircnicos Haacute uma relaccedilatildeo intriacutenseca aos elementos que tradicionalmente
constroem posturas justas e retas com aquelas sofridas pelo titatilde No caso ele representa algueacutem
que sofreu uma injusticcedila por querer beneficiar a humanidade
No diaacutelogo Prometeu ou o Caacuteucaso travado entre Prometeu Hermes e Hefesto Zeus
permanece como personagem ausente mas que fornece a tocircnica do decorrer do diaacutelogo O
diaacutelogo acontece no iniacutecio da puniccedilatildeo do titatilde que exige ser ouvido e ter o direito de se defender
Apoacutes escutar sua acusaccedilatildeo Prometeu inicia sua defesa apologia construiacuteda seguindo o topos
de uma apresentaccedilatildeo em um tribunal
Maurice Croizet afirma que o ldquoPrometeu ou o Caacuteucaso nos oferece uma vigorosa
reinvindicaccedilatildeo do direito agrave razatildeordquo (CROUZET 1882 217) Tal razatildeo enfatizada por ele
vinculava-se agrave criacutetica ao abuso do poder O primeiro ponto do diaacutelogo eacute a definiccedilatildeo do lugar
em que ele seraacute preso
Hermes ndash Aqui estaacute oacute Hefesto o Caacuteucaso ao qual o pobre do Prometeu iraacute
ser pregado Procuremos desde jaacute uma escarpa adequada se eacute que haacute por aiacute
alguma desimpedida de neve de modo que os grilhotildees fiquem cravados com
firmeza e ele fique pendurado agrave vista de toda gente
Hefesto ndash Procuremos pois oacute Hermes Na verdade natildeo conveacutem que ele seja
crucificado nem muito baixo e rasteiro para que natildeo o socorram as suas
criaturas os humanos nem laacute no cume ndash pois aiacute ficaria invisiacutevel aos que
estivessem laacute em baixo ndash mas se concordas que seja crucificado por aqui
mais ou menos a meio no alto da ravina com os braccedilos estendidos desta
escarpa ateacute agrave da frente (Luciano Prom 1)218
Tal como uma condenaccedilatildeo humana a puniccedilatildeo do titatilde deve servir de exemplo aos
homens que o observam Desta dita o texto segue com a intervenccedilatildeo de Prometeu que clama
por piedade aos seus carrascos entretanto esses natildeo podem desobedecer a Zeus pois isso eacute
muito perigoso Ao clamar suas dores Prometeu incita Hermes agrave recordaccedilatildeo de seus crimes
quais sejam 1) induzir Zeus agrave escolha do monte de gordura e ossos na distribuiccedilatildeo das
oferendas 2) criar os homens a partir do barro 3) roubar o fogo Entretanto Prometeu quer
218 ldquoΕΡΜΗΣ
Ὁ μὲν Καύκασος ὦ Ἥφαιστε οὗτος ᾧ τὸν ἄθλιον τουτονὶ Τιτᾶνα προσηλῶσθαι δεήσει περισκοπῶμεν δὲ ἤδη
κρημνόν τινα ἐπιτήδειον εἴ που τῆς χιόνος τι γυμνόν ἐστιν ὡς βεβαιότερον καταπαγείη τὰ δεσμὰ καὶ οὗτος ἅπασι
περιφανὴς εἴη κρεμάμενος
ΗΦΑΙΣΤΟΣ
Περισκοπῶμεν ὦ Ἑρμῆ οὔτε γὰρ ταπεινὸν καὶ πρόσγειον ἐσταυρῶσθαι χρή ὡς μὴ ἐπαμύνοιεν αὐτῷ τὰ
πλάσματα αὐτοῦ οἱ ἄνθρωποι οὔτε μὴν κατὰ τὸ ἄκρον ndash ἀφανὴς γὰρ ἂν εἴη τοῖς κάτω ndash ἀλλ εἰ δοκεῖ κατὰ μέσον
ἐνταῦθά που ὑπὲρ τῆς φάραγγος ἀνεσταυρώσθω ἐκπετασθεὶς τὼ χεῖρε ἀπὸ τουτουὶ τοῦ κρημνοῦ πρὸς τὸν
ἐναντίονrdquo
142
defender-se e provar que Zeus aplicou-lhe ldquouma sentenccedila injustardquo219 (Luciano Prom 4) e que ele
devia ser ldquocondenado a comer no Pritaneurdquo220 (Luciano Prom 4)
Ser condenado ao Pritaneu eacute o siacutembolo maacuteximo de uma grande injusticcedila na Histoacuteria da Filosofia
Soacutecrates quando estava sendo julgado por negar os deuses e corromper os jovens atenienses afirmou
que deveria comer com os embaixadores estrangeiros ou com pessoas que haviam realizado feitos
grandiosos para a cidade Significa comer agraves custas da polis Como no diaacutelogo o Pescador ou os
ressuscitados o siacuterio retoma esse exemplo para marcar a possibilidade de um julgamento injusto visto
que Prometeu reafirma a condiccedilatildeo injusta de sua puniccedilatildeo aproximando-se de Soacutecrates (FINLEY 1991
70)
Hermes lembra-lhe de que o debate a seguir natildeo teraacute nenhum efeito sob sua pena mas
pode ser complicado ao leitor contemporacircneo imaginar uma sociedade que tinha prazer em
ouvir uma declamaccedilatildeo sofiacutestica Nesse sentido mesmo se tratando de um assunto judicial essa
exposiccedilatildeo subverte uma vez que serve apenas de distraccedilatildeo isso eacute natildeo tem qualquer poder
deliberativo
Hermes e Hefesto satildeo os antagonistas presentes que falam sob a sombra de Zeus o
grande antagonista que natildeo se faz presente Apoacutes a acusaccedilatildeo dos crimes jaacute elencados
anteriormente haacute uma longa defesa (apologia) de Prometeu Sobre os sacrifiacutecios o titatilde acusa
Zeus de ser ldquotatildeo mesquinho e rabugentordquo (Luciano Prom 7)221
O Titatilde lembra que ldquosoacute por ter encontrado um pequenino osso na sua porccedilatildeo mandou
empalar um deus tatildeo antigo sem se lembrar da luta conjuntardquo (Luciano Prom 7)222 O
Prometeu luciacircnico trata o caso como uma brincadeira acontecida em um banquete e que Zeus
devia esquecer o fato como prescreviam as regras desta instituiccedilatildeo223 (Luciano Prom 8) A
puniccedilatildeo sofrida eacute tratada como um abuso de puder
Prometeu traccedila uma imagem interessante de Zeus que aleacutem de mesquinho e rabugento
natildeo eacute grato pelo auxiacutelio militar A fuacuteria do deus eacute ldquoproacutepria de um menino ou seja enfurecer-se
219 ldquoἄδικα ἐγνωκόταrdquo 220 ldquo[] ἐν πρυτανείῳ σιτήσεως εἰ τὰ δίκαια ἐγίγνετο ἐτιμησάμην ἂν ἐμαυτῷrdquo 221 ldquoμικρολόγος καὶ μεμψίμοιρόςrdquo 222 ldquo[] διότι μικρὸν ὀστοῦν ἐν τῇ μερίδι εὗρε ἀνασκολοπισθησόμενον πέμπειν παλαιὸν οὕτω θεόν μήτε τῆς
συμμαχίας μνημονεύσαντα []rdquo 223 O banquete ou simpoacutesio no mundo grego claacutessico era um momento extremamente feacutertil culturalmente Em
primeiro lugar era cheio de simbolismo como entrar com o peacute direito no salatildeo para natildeo desagradar os deuses Era
a uacutenica refeiccedilatildeo importante para os romanos momento de relaxamento e diversatildeo com jogos cantos danccedilas e
declamaccedilotildees sofiacutesticas (ROBERT 1995 121-124) Eacute comum no mundo greco-romano a escrita de textos com
caracteriacutesticas de um banquete cujos modelos satildeo aqueles escritos por Platatildeo e Xenofonte Luciana Romeri (2002)
em seu livro Philosophes entre mots e metsPlutarque Lucien et Atheacuteneacutee autor de la table de Platon analisa os
banquetes escritos por Luciano de Samoacutesata Plutarco de Queroneia e Ateneu de Naucratis buscando entender os
viacutenculos que se produziram nesses escritores entre filosofia e comeacutedia Recentemente Olimar Flores Junior (2014)
analisou a presenccedila do cinismo nos escritos de Luciano a partir do texto O banquete ou os Lapidas
143
e irritar-se por ele natildeo ter recebido a melhor parterdquo (Luciano Prom 7)224 O deus eacute acusado de
natildeo saber se portar em um banquete e de ser um ressentido que guarda maacutegoas dos infortuacutenios
que ocorreram naquele espaccedilo (Luciano Prom 8) As tintas colocadas na imagem traccedilada pelo
Prometeu luciacircnico satildeo fortes uma vez que suas atitudes satildeo dignas de uma ldquopessoa irritada de
mesquinhez de espiacuterito de baixeza de mentalidade e de predisposiccedilatildeo para a irardquo (Luciano
Prom 9)225 O Titatilde considera que recebeu uma pena exagerada para o lsquocrimersquo que cometera
Ele menospreza seu delito (Luciano Prom 10)
A segunda acusaccedilatildeo de ter criado os homens faz com que o Titatilde lembre os dois deuses
que sem os homens os deuses natildeo teriam templos altares muito menos hecatombes (Luciano
Prom 12) Luciano natildeo chega agrave conclusatildeo ateiacutesta de que os deuses existem porque os homens
os criaram sua argumentaccedilatildeo tem como limite a ideia de que os deuses soacute tecircm culto por que os
homens existem ou seja os deuses precisam dos homens vis
Prometeu ndash () Ora existiam no iniacutecio ndash na verdade tornar-se-aacute mais
facilmente evidente se eu cometi um crime quando alterei as coisas e inovei
no que respeita aos homens - existia pois unicamente a raccedila divina e
celestial e a Terra era uma coisa selvagem e informe toda coberta de cerrados
bosques e estes mesmos em estado bravio natildeo existiam altares dos deuses
nem templos ndash e como - nem estaacutetuas ou outras coisas do geacutenero como
atualmente se veem por toda parte veneradas com todo o desvelo (Luciano
Prom 12)226
A reflexatildeo luciacircnica coloca os homens como ldquoobras que tecircm sido uacuteteis aos deusesrdquo
(Luciano Prom 14)227 O Prometeu luciacircnico constroacutei uma imagem para si que o opotildee ao deus
tiracircnico uma vez que ele eacute preocupado com o ldquobem comumrdquo (εἰς τὸ κοινὸν) (Luciano Prom
14)
Prometeu tambeacutem refuta a ideia de que a criaccedilatildeo das mulheres foi um mal afirmando
que ldquoMas aquilo que mais me atormenta eacute o fato de voacutes que me censurais por ter fabricado os
homens vos apaixonardes particularmente pelas mulheres natildeo cessando de descer laacute abaixordquo
(Luciano Prom 17)228
224 ldquo[] καὶ ὡς μειρακίου τὸ τοιοῦτον ὀργίζεσθαι καὶ ἀγανακτεῖν εἰ μὴ τὸ μεῖζον αὐτὸς ήψεταιrdquo 225 ldquoὅρα γὰρ μὴ πολλήν τινα ταῦτα κατηγορῇ τοῦ ἀγανακτοῦντος αὐτοῦ μικροψυχίαν καὶ ἀγένειαν τῆς γνώμης καὶ
πρὸς ὀργὴν εὐχέρειανrdquo 226 ldquoἮν τοίνυν πάλαι ndash ῥᾷον γὰρ οὕτω δῆλον ἂν γένοιτο εἴ τι ἠδίκηκα ἐγὼ μετακοσμήσας καὶ νεωτερίσας τὰ
περὶ τοὺς ἀνθρώπους ndash ἦν οὖν τὸ θεῖον μόνον καὶ τὸ ἐπουράνιον γένος ἡ γῆ δὲ ἄγριόν τι χρῆμα καὶ ἄμορφον
ὕλαις ἅπασα καὶ ταύταις ἀνημέροις λάσιος οὔτε δὲ βωμοὶ θεῶν ἢ νέως ndash πόθεν γάρ ndash ἢ ξόανα ἤ τι ἄλλο τοιοῦτον
οἷα πολλὰ νῦν ἁπανταχόθι φαίνεται μετὰ πάσης ἐπιμελείας τιμώμεναrdquo 227 ldquoὅτι δὲ καὶ χρήσιμα ταῦτα γεγένηται τοῖς θεοῖς []rdquo 228 ldquoὃ δὲ μάλιστά με πνίγει τοῦτ ἐστίν ὅτι μεμφόμενοι τὴν ἀνθρωποποιίαν καὶ μάλιστά γε τὰς γυναῖκας ὅμως
ἐρᾶτε αὐτῶν καὶ οὐ διαλείπετε κατιόντες []rdquo
144
As palavras do Titatilde que por um lado tecircm o fito de defendecirc-lo das acusaccedilotildees por outro
lado colocam um importante indiacutecio para entendermos a construccedilatildeo luciacircnica da imagem de
Zeus como um tirano que se metamorfoseia em diversas formas para vir agrave terra com o intuito
de copular com mortais (Luciano Prom 17) Se a mulher fosse tatildeo danosa assim eles a
evitariam Entretanto eacute comum os deuses se apaixonarem por mulheres mortais (Luciano
Prom 17) Ele lembra inclusive que alguns deuses satildeo frutos dessas relaccedilotildees com as mortais
Haacute nos diaacutelogos a imagem do tirano que viola as mulheres e em alguns casos os homens
tratando-se portanto de mais uma arbitrariedade
Como em um tribunal Prometeu bajula seus ouvintes
Todavia ndash direis talvez ndash os homens deviam ser modelados sim senhor mas
de outra forma e natildeo agrave nossa imagem Mas que outro modelo tomaria eu
melhor do que este que eu jaacute sabia absolutamente belo Ou deveria fabricar
um animal sem inteligecircncia bestial e selvagem E como eles sacrificariam os
deuses e vos prestariam outras homenagens se natildeo fosse feito dessa maneira
(Luciano Prom 17)229
O argumento conclui que a fabricaccedilatildeo dos homens mostrou-se muito mais vantajosa aos
deuses (Luciano Prom 11) jaacute que os deuses se beneficiam bastante com os mesmos por meio
das aventuras com mortais das oferendas e preces das construccedilotildees de templos e santuaacuterios
O terceiro crime ldquoentatildeo agora com vossa licenccedila passo agrave questatildeo do fogo e a esse
censuraacutevel roubordquo230 (Luciano Prom 18) leva-nos ao entendimento de que ao levar o fogo
aos homens o Titatilde natildeo teria privado os deuses de seu benefiacutecio uma vez que o fogo se reparte
em quantas chamas forem produzidas ldquoo fogo natildeo se extingue quando outra chama se acende
nelerdquo (Luciano Prom 18)231 Nesse passo o Prometeu luciacircnico retoma a tradiccedilatildeo greco-
romana expressa pela memoacuteria eacutepica dos poemas homeacutericos e recorda que os deuses satildeo
ldquodispensadores de bensrdquo (δωτῆρας ἑάων) (Luciano Prom 18 Homero Odis VIII 325) assim
natildeo cabe aos deuses serem avarentos O Titatilde ressalta como os deuses natildeo perderam com o fato
de os homens terem o fogo mas ganharam pois agora eles podem usar o mesmo nos
hecatombes (Luciano Prom 19) Portanto a queixa feita pelos deuses ldquoseraacute absolutamente
contraacuteria ao vosso desejordquo (Luciano Prom 19)232
229 ldquoἈλλ ἐχρῆν μέν ἴσως φήσεις ἀναπεπλάσθαι τοὺς ἀνθρώπους ἄλλον δέ τινα τρόπον ἀλλὰ μὴ ἡμῖν ἐοικότας
καὶ τί ἂν ἄλλο παράδειγμα τούτου ἄμεινον προεστησάμην ὃ πάντως καλὸν ἠπιστάμην ἢ ἀσύνετον καὶ θηριῶδες
ἔδει καὶ ἄγριον ἀπεργάσασθαι τὸ ζῷον καὶ πῶς ἂν ἢ θεοῖς ἔθυσαν ἢ τὰς ἄλλας ὑμῖν τιμὰς ἀπένειμαν οὐχὶ τοιοῦτοι
γενόμενοιrdquo 230 Περὶ μὲν οὖν τῶν ἀνθρώπων καὶ ταῦτα ἱκανά ἤδη δὲ καὶ ἐπὶ τὸ πῦρ εἰ δοκεῖ μέτειμι καὶ τὴν ἐπονείδιστον
ταύτην κλοπήν 231 ldquoοὐ γὰρ ἀποσβέννυται ἐναυσαμένου τινόςrdquo 232 ldquoἐναντιωτάτη τοίνυν ἡ μέμψις αὕτη ἂν γένοιτο τῇ ὑμετέρᾳ ἐπιθυμίᾳrdquo
145
Entretanto as palavras que refutam peremptoriamente inflamariam a ira de Zeus como
afirma Hermes
Hermes ndash Oacute Prometeu natildeo eacute faacutecil rivalizar com um sofista tatildeo ardoroso No
entanto tens muita sorte pelo fato de Zeus natildeo ter escutado as suas palavras
pois bem sei que te poria dezesseis abutres a dilacerar-te as entranhas pela
maneira terriacutevel como tu o acusaste parecendo que te defendias Aleacutem disso
fico admirado pelo fato de tu um adivinho natildeo teres previsto que irias ser
punido por esses seus atos (Luciano Prom 20) 233
Por meio do personagem Hermes Luciano apresenta dois elementos que consideramos
fundamentais para a anaacutelise que propomos Primeiramente que o poder estabelecido no mundo
representado pelo escritor bem como naquele em que ele viveu natildeo permitia a contestaccedilatildeo das
decisotildees dos governantes Em segundo lugar o discurso de defesa proposto estava carregado
de denuacutencias O prometeu luciacircnico deixa claro que Zeus natildeo se preocupa com a comunidade
A forma de colocar o debate mimetiza a postura luciacircnica diante do poder estabelecido Nesse
caso observamos que Zeus se comportou como um tirano uma vez que como nos alerta
Aristoacuteteles ldquo[a tirania eacute hostil] contra os notaacuteveis elimina-os de forma oculta ou agraves claras e
exila-os como rivais e empecilhos ao exerciacutecio da autoridaderdquo (Aristoacuteteles Pol1311a 15-
18)234
Todavia Prometeu sabe que Heacuteracles o libertaraacute da aacuteguia e que chegaraacute o momento em
que Zeus o libertaraacute como pagamento de um segredo A conclusatildeo desse diaacutelogo se completaraacute
com o proacuteximo texto que analisamos
Nos Diaacutelogos dos deuses Luciano constroacutei cenas raacutepidas do cotidiano dos deuses e agrave
primeira vista os textos parecem bem superficiais Entretanto pouco a pouco vemos que o siacuterio
apresenta indiacutecios instigantes sobre a cultura poliacutetica de seu tempo sendo que a unidade desses
diaacutelogos pode ser conferida pela imagem de Zeus como analisamos no toacutepico seguinte No
primeiro diaacutelogo da coletacircnea dos Diaacutelogos dos deuses travado entre Zeus e Prometeu o Titatilde
suplica a Zeus a liberdade do castigo que lhe foi infringido no Caacuteucaso
Prometeu ndash Oacute Zeus solta-me que jaacute padeci horrivelmente
Zeus ndash O quecirc Soltar-te a ti que devias ter grilhetas ainda mais pesadas ter
todo o Caacuteucaso sobre tua cabeccedila e dezesseis abutres natildeo soacute a dilacerar-te o
fiacutegado mas tambeacutem a arrancar-te os olhos como castigo por nos teres
233 ldquoΕΡΜΗΣ
Οὐ ῥᾴδιον ὦ Προμηθεῦ πρὸς οὕτω γενναῖον σοφιστὴν ἁμιλλᾶσθαι πλὴν ἀλλὰ ὤνησο διότι μὴ καὶ ὁ Ζεὺς ταῦτα
ἐπήκουσέ σου εὖ γὰρ οἶδα ἑκκαίδεκα γῦπας ἂν ἐπέστησέ σοι τὰ ἔγκατα ἐξαιρήσοντας οὕτω δεινῶς αὐτοῦ
κατηγόρηκας ἀπολογεῖσθαι δοκῶν ἐκεῖνο δέ γε θαυμάζω ὅπως μάντις ὢν οὐ προεγίγνωσκες ἐπὶ τούτοις
κολασθησόμενοςrdquo 234 ldquoἐκ δημοκρατίας δὲ τὸ πολεμεῖν τοῖς γνωρίμοις καὶ διαφθείρειν λάθρᾳ καὶ φανερῶς καὶ φυγαδεύειν ὡς
ἀντιτέχνους καὶ πρὸς τὴν ἀρχὴν ἐμποδίουςrdquo
146
modelado esses seres que satildeo os homens por nos teres roubado o fogo235 e
teres criado as mulheres Seraacute preciso mencionar tambeacutem como me enganaste
na distribuiccedilatildeo da carne servindo-me ossos disfarccedilados nas gorduras e
guardando para ti a melhor das partes (Luciano D deor I1)236
No diaacutelogo Prometeu implora a piedade de Zeus uma vez que jaacute fora punido
Entretanto Zeus se coloca inatingiacutevel agraves suacuteplicas retomando as acusaccedilotildees tradicionais agrave
acusaccedilatildeo ao Titatilde Zeus se coloca como um tirano Diante dessa postura Prometeu propotildee um
acordo Revelaraacute uma informaccedilatildeo importante desde que tenha a liberdade Nesse breve diaacutelogo
como no decorrer dos outros diaacutelogos dos deuses Zeus se prepara em segredo para mais uma
aventura amorosa Prometeu diz ldquoSe eu te disser para onde eacute que tu te encaminhas neste
momento acreditaraacutes em mim e nas minhas restantes profeciasrdquo (Luciano D Deor I2)237
Diante da afirmativa de Zeus o Titatilde revela que o deus iraacute agrave casa de Teacutetis onde teraacute relaccedilotildees
sexuais com ela Diante do acerto ele permite que Prometeu faccedila a profecia que de fato lhe interessa
Assim se expressa Prometeu ldquoOacute Zeus natildeo tenhas relaccedilotildees com a Nereida pois se ela engravidar de ti
a crianccedila far-te-aacute o mesmo que tu fizeste ardquo (Luciano D Deor I 2)238 Diante do jogo literaacuterio o Titatilde
natildeo ousa mencionar que Zeus derrubou seu pai Cronos e se tornou o rei dos deuses pois o cuidado eacute
necessaacuterio diante daqueles que satildeo detentores do poder
No passo seguinte do diaacutelogo apresentado Prometeu utiliza-se de seus dons de prever o
futuro para conseguir a liberdade do Caacuteucaso Zeus que estaria de saiacuteda para ir agrave casa de Teacutetis
e se deitar com ela eacute advertido pelo Titatilde que se ele fizer isso ela teraacute um filho que faraacute o
mesmo que ele fez com Cronos ou seja que iraacute depor o pai e tomar seu lugar Zeus se furta de
manter relaccedilotildees com a divindade feminina e ordena a Hefesto que liberte o Titatilde Segundo
Rodolfo P Buzoacuten e Joseacute P Maksimczuk nesse trecho
Luciano lsquomanipularsquo o episoacutedio miacutetico da queda de Cronos para apresentar a
troca de mando como uma passagem da monarquia agrave tirania () A
comparaccedilatildeo entre a queda de Cronos e o hipoteacutetico rival de Zeus pelo trono eacute
uma falaacutecia as circunstacircncias os personagens e os motivos satildeo
completamente diferentes Mas Luciano muito habilmente o modifica e
235 Luis Seacutechan no livro Le mythe de Promeacutetheacute debate muitos pontos deste mito como o significado do conflito
deste com Zeus as artes do fogo e a metalurgia (SEacuteCHAN 1952 4) 236 ldquoΠΡΟΜΗΘΕΥΣ
Λῦσόν με ὦ Ζεῦ δεινὰ γὰρ ἤδη πέπονθα
ΖΕΥΣ
Λύσω σε φῄς ὃν ἐχρῆν βαρυτέρας πέδας ἔχοντα καὶ τὸν Καύκασον ὅλον ὑπὲρ κεφαλῆς ἐπικείμενον ὑπὸ
ἑκκαίδεκα γυπῶν μὴ μόνον κείρεσθαι τὸ ἧπαρ ἀλλὰ καὶ τοὺς ὀφθαλμοὺς ἐξορύττεσθαι ἀνθ ὧν τοιαῦθ ἡμῖν ζῷα
τοὺς ἀνθρώπους ἔπλασας καὶ τὸ πῦρ ἔκλεψας καὶ γυναῖκας ἐδημιούργησας ἃ μὲν γὰρ ἐμὲ ἐξηπάτησας ἐν τῇ νομῇ
τῶν κρεῶν ὀστᾶ πιμελῇ κεκαλυμμένα παραθεὶς καὶ τὴν ἀμείνω τῶν μοιρῶν σεαυτῷ φυλάττων τί χρὴ λέγεινrdquo 237 ldquoΠΡΟΜΗΘΕΥΣ
Ἢν εἴπω ἐφ ὅ τι βαδίζεις νῦν ἀξιόπιστος ἔσομαί σοι καὶ περὶ τῶν ὑπολοίπων μαντευόμενοςrdquo 238 ldquoΠΡΟΜΗΘΕΥΣ
Μηδέν ὦ Ζεῦ κοινωνήσῃς τῇ Νηρεΐδι ἢν γὰρ αὕτη κυοφορήσῃ ἐκ σοῦ τὸ τεχθὲν ἴσα ἐργάσεταί σε οἷα καὶ σὺ
ἔδρασας - rdquo
147
apresenta um Zeus que destronou seu pai silenciando seus motivos (BUZOacuteN
amp MAKSIMCZUK 201231)
Nosso ponto de vista eacute que Luciano tambeacutem se inspira em seu contexto no qual a
sucessatildeo imperial no periacuteodo dos Antoninos apresenta uma aparecircncia de tranquilidade Havia
um grande problema que era a ausecircncia de um regime juriacutedico para apresentar o nome que
deveria ser o Imperador Luciano viveu em um periacuteodo em que a propaganda imperial garantia
que o poder seria transmitido ao melhor entretanto sempre havia o risco de que esse poder
viesse a ser tomado por um filho de soberano que natildeo tivesse condiccedilotildees para tal Haacute aqui o
cuidado em dizer por meio da narrativa miacutetica retomada que se deve ter cuidado com os filhos
Natildeo acreditamos em uma mensagem direta ao governante pois nosso ponto de vista eacute de que
haacute aqui uma comunidade poliacutetica para a qual o texto luciacircnico se dirige e que essas pessoas satildeo
parte de uma pequena elite que apoia um novo governante Nesse sentido a profecia prometeica
refere-se a uma complexa rede de micropoderes dispersos nas cidades imperiais A narrativa
criada por Luciano reutiliza os mitos tradicionais para expressar sua postura referente ao poder
imperial A noccedilatildeo luciacircnica de que um governo que se comporte de maneira indevida pode ser
um mau governo fornece a tocircnica dos diaacutelogos natildeo se trata de oposiccedilatildeo mas de posiccedilatildeo diante
da realidade principalmente a partir de uma memoacuteria grega vinculada a uma instituiccedilatildeo
especiacutefica que eacute a tirania mas que no Impeacuterio Romano era um adjetivo usado para caracterizar
um mau governante
34 Espaccedilo e Narrativa miacutetica a representaccedilatildeo dos Tiranos entre gregos e
romanos
Nos toacutepicos anteriores vimos como haacute uma confluecircncia dos mitos com a Histoacuteria
nos textos luciacircnicos e que essa serve de mote para uma argumentaccedilatildeo poliacutetica Nesse passo
nos preocupamos em entrelaccedilar as imagens miacuteticas da chegada ao mundo dos mortos e da visita
do barqueiro do Hades Caronte agrave Terra com a apresentaccedilatildeo dos reis e tiranos gregos ou
melhor de homens que detinham o poder concentrado em suas matildeos Para isso nosso foco
recorta dois diaacutelogos maiores Caronte e os contempladores e A travessia para o Hades ou o
Tirano para anaacutelise O primeiro discorre sobre a visita do barqueiro ao mundo dos vivos
ciceroneado por Hermes Essa visita permite que ele observe a existecircncia humana com olhares
distanciados daquela que estaacute acostumado com os homens desesperados com a morte O outro
texto discorre principalmente sobre a chegada de um tirano ao Hades e seu julgamento Nos
148
dois diaacutelogos analisamos a representaccedilatildeo que Luciano cria dos tiranos tendo em vista os
elementos sobre a tirania que expressamos no toacutepico anterior
No mundo grego claacutessico e heleniacutestico ser um tirano significava assumir um cargo
especiacutefico com poderes e caracteriacutesticas proacuteprias Aristoacuteteles em sua Poliacutetica caracteriza a
tirania como um desvio da monarquia (Aristoacuteteles Pol 1311a 15) O filoacutesofo assim a
caracteriza ldquoA tirania () natildeo visa propriamente o bem comum mas tatildeo soacute o proveito pessoal
Enquanto a meta do tirano eacute o prazer a do rei eacute o bem Por essa razatildeo se explica de um lado
que o tirano ambicione a riqueza contrariamente ao rei que ambiciona a honrardquo (Aristoacuteteles
Pol 1311a2)239 Como jaacute vimos com o caso do Titatilde Prometeu Luciano enfatiza justamente
essas caracteriacutesticas nos tiranos poreacutem agora natildeo se trata de uma instituiccedilatildeo especiacutefica mas
de um qualificador do mau governante um alerta sobre a postura que um governante ruim pode
ter Trata-se de uma exegese do poder feita por meio dos diaacutelogos e natildeo de uma denuacutencia a
determinado governante
Como nos ensinou Chaiumlm Perelman em seu Tratado da argumentaccedilatildeo o objetivo
de toda argumentaccedilatildeo consiste em criar nos leitoresouvintes o anseio para a mudanccedila por meio
a incitar ou ampliar a adesatildeo dos homens agraves ideias que as teses defendidas expotildeem A accedilatildeo
manifestar-se-aacute em momento oportuno (PARELMAN 2005 50) As diferentes construccedilotildees
retoacutericas ou literaacuterias luciacircnicas objetivam argumentar por meio da construccedilatildeo e explicitaccedilatildeo
de caracteriacutesticas existentes em um mundo metanarrativo Os viacutenculos da narrativa com a
realidade satildeo intriacutensecos agrave sua existecircncia daiacute a ampliaccedilatildeo das narrativas e espaccedilos miacuteticos a
fim de fornecer estiacutemulo agrave reflexatildeo sobre a sociedade Todo texto vincula-se ao mundo do qual
ele fez parte mesmo quando suas colocaccedilotildees tenham pretensotildees universais As imagens
atendem a demandas de sentidos proacuteprias da conjuntura histoacuterica que lhe deu existecircncia
A argumentaccedilatildeo de Luciano foi eficaz Ele natildeo fez nenhuma revoluccedilatildeo ou
promoveu mudanccedilas socioeconocircmicas pois estas nunca estiveram em seu horizonte de
expectativas Em seu presente talvez esses futuros ainda natildeo eram possiacuteveis Sua narrativa
permite a denuacutencia da fragilidade da existecircncia perante a morte e do igualamento radical que
essa promove O riso mobilizado pela criacutetica luciacircnica faz os leitoresouvintes pensarem tal
como a argumentaccedilatildeo promoveria no momento oportuno a accedilatildeo Nosso objetivo eacute
compreender a construccedilatildeo do tirano luciacircnico tendo em vista a dissoluccedilatildeo do seu lugar de
audiecircncia e natildeo podemos esquecer que o tirano eacute ldquoaquele que em seu poder pessoal natildeo aceita
239 ldquoἡ δὲ τυραννίς ὥσπερ εἴρηται πολλάκις πρὸς οὐδὲν ἀποβλέπει κοινόν εἰ μὴ τῆς ἰδίας ὠφελείας χάριν ἔστι δὲ
σκοπὸς τυραννικὸς μὲν τὸ ἡδύ βασιλικὸς δὲ τὸ καλόν διὸ καὶ τῶν πλεονεκτημάτων τὰ μὲν χρημάτων τυραννικά
τὰ δ εἰς τιμὴν βασιλικὰ μᾶλλονrdquo
149
e natildeo pode aceitar a verdade porque natildeo faz e natildeo quer fazer senatildeo o que lhe aprazrdquo
(FOUCAULT 2011 51-52)
No texto Caronte ou os contempladores o velho barqueiro do Hades vem a Terra
contemplar a vida No diaacutelogo travado entre Caronte e Hermes eles observam de um lugar
alto os seres humanos e a forma despreocupada com que eles lidam com a vida sem se
lembrarem de que morreratildeo a qualquer momento Eles observam os homens com foco
primeiramente no atleta Miacutelon de Crotona que naquele momento eacute aplaudido pelos gregos por
carregar um touro mas sua gloacuteria eacute passageira e Caronte logo lembra
Caronte - Oacute Hermes com que mais justo motivo eles me aplaudiratildeo pelo
fato de eu em breve pegar nele e enfiar no barquinho quando ele vier ateacute noacutes
derrotado pelo mais invenciacutevel dos adversaacuterios ndash a Morte que sem ele disso
se aperceber lhe passaraacute uma rasteira Depois viraacute queixar-se a noacutes
recordando-se dessas coroas e dos aplausos Neste momento estaacute muito
orgulhoso pelo fato de ser muito admirado por ter carregado o touro E entatildeo
Pensamos noacutes porventura que ele encara a expectativa de morrer um dia
(Luciano Char 8)240
Esse trecho eacute importante pois marca o tom que todo o diaacutelogo apresenta Os
homens vivem sem se preocupar com a morte que cambia o discurso de lugar jaacute que as muitas
atitudes superficiais perdem o sentido O deslocamento faz com que toda a vida ganhe outra
significaccedilatildeo permite uma liberdade maior e nesse sentido potencializa as colocaccedilotildees
referentes ao mundo em que ele viveu
Nesse texto as duas divindades observam sujeitos muito especiacuteficos Nesse passo
nos interessamos principalmente pela percepccedilatildeo luciacircnica dos tiranos entendendo que o
escritor mobiliza a memoacuteria cultural helecircnica retomando cenas consagradas presentes em
outros escritores Por exemplo Luciano apresenta uma anedota bastante conhecida que se passa
entre Soacutelon e Creso241
Creso ndash Meu hoacutespede ateniense tu viste a minha riqueza os meus tesouros
todo o meu ouro em barra e toda a minha magnificecircncia Diz-me pois qual
de entre todos os homens consideras mais feliz
()
Soacutelon ndash Oacute Creso satildeo muito poucos os indiviacuteduos felizes Pelo que me diz
respeito de entre os que eu conheccedilo considero como sendo os mais felizes
240 ldquoΧΑΡΩΝ
Καὶ πόσῳ δικαιότερον ἂν ἐμέ ὦ Ἑρμῆ ἐπαινοῖεν ὃς αὐτόν σοι τὸν Μίλωνα μετ ὀλίγοι
συλλαβὼν ἐνθήσομαι ἐς τὸ σκαφίδιον ὁπόται ἥκῃ πρὸς ἡμᾶς ὑπὸ τοῦ ἀμαχωτάτου τῶν ἀνταγωνιστῶν
καταπαλαισθεὶς τοῦ Θανάτου μηδὲ συνεὶς ὅπως αὐτὸν ὑποσκελίζει κᾆτα οἰμώξεται ἡμῖν δηλαδὴ μεμνημένος τῶν
στεφάνων τούτων καὶ τοῦ κρότου νῦν δὲ μέγα φρονεῖ θαυμαζόμενος ἐπὶ τῇ τοῦ ταύρου φορᾷ τί δ οὖν οἰηθῶμεν
ἄρα ἐλπίζειν αὐτὸν καὶ τεθνήξεσθαί ποτεrdquo 241 Haacute no trecho um recurso estiliacutestico no qual o escritor coloca um diaacutelogo no interior do diaacutelogo entre Hermes
e Caronte
150
Cleacuteobis e Biacuteton filhos da sacerdotisa de Argos que morreram ambos
recentemente quando se atrelaram ao carro que levava a matildee ao templo
Creso ndash Seja Que esses dois tenham o primeiro lugar da felicidade E entatildeo
quem seraacute o segundo
Soacutelon ndash O ateniense Telo que viveu com muita dignidade e morreu pela
Paacutetria
Creso ndash Oacute meu malandro entatildeo natildeo te pareccedilo feliz
Soacutelon ndash Ainda natildeo sei oacute Creso uma vez que natildeo chegaste ao fim da tua vida
Realmente a morte eacute que faz um juiacutezo seguro nessa mateacuteria se a pessoa viveu
feliz ateacute o termo (Luciano Char 10)242
Essa estoacuteria foi narrada por Heroacutedoto no livro I das Histoacuterias (Herd Hist I 29-
33) texto bastante conhecido daqueles que haviam se formado segundo a Paideia helecircnica O
legislador ateniense faz parte das listas de saacutebios lendaacuterios do periacuteodo arcaico cuja fama e
sabedoria satildeo expressas por diversas anedotas como essa que foi narrada acima243 e Creso rei
de Liacutedia conhecido por sua magnificecircncia e compulsatildeo por oraacuteculos o que a levaraacute agrave ruiacutena244
O texto luciacircnico natildeo se preocupa com essa agrura isto eacute se Creso eacute um baacuterbaro
Luciano jaacute escrevia desse entre lugar que de certa forma o colocava como um baacuterbaro
helenizado Natildeo se trata de colocar agrave baila a identidade helecircnica neste instante o que seria
facilmente desmentido no decorrer do texto visto que as criacuteticas satildeo feitas indiscriminadamente
a gregos e baacuterbaros
Entretanto a apreciaccedilatildeo eacute direcionada aos governantes jaacute que o mesmo Creso
lamentaraacute nos Diaacutelogos dos mortos na representaccedilatildeo de sua chegada ao Hades como vimos
242 ldquoΚΡΟΙΣΟΣ
Ὦ ξένε Ἀθηναῖε εἶδες γάρ μου τὸν πλοῦτον καὶ τοὺς θησαυροὺς καὶ ὅσος ἄσημος χρυσός ἐστιν ἡμῖν καὶ τὴν
ἄλλην πολυτέλειαν εἰπέ μοι τίνα ἡγῇ τῶν ἁπάντων ἀνθρώπων εὐδαιμονέστατον εἶναι
[]
ΣΟΛΩΝ
Ὦ Κροῖσε ὀλίγοι μὲν οἱ εὐδαίμονες ἐγὼ δὲ ὧν οἶδα Κλέοβιν καὶ Βίτωνα ἡγοῦμαι εὐδαιμονεστάτους γενέσθαι
τοὺς τῆς ἱερείας παῖδας τῆς Ἀργόθεν τοὺς ἅμα πρῴην ἀποθανόντας ἐπεὶ τὴν μητέρα ὑποδύντες εἵλκυσαν ἐπὶ τῆς
ἀπήνης ἄχρι πρὸς τὸ ἱερόν
ΚΡΟΙΣΟΣ
Ἔστω ἐχέτωσαν ἐκεῖνοι τὰ πρῶτα τῆς εὐδαιμονίας ὁ δεύτερος δὲ τίς ἂν εἴη
ΣΟΛΩΝ
Τέλλος ὁ Ἀθηναῖος ὃς εὖ τ ἐβίω καὶ ἀπέθανεν ὑπὲρ τῆς πατρίδος
ΚΡΟΙΣΟΣ
Ἐγὼ δέ ὦ κάθαρμα οὔ σοι δοκῶ εὐδαίμων εἶναι
ΣΟΛΩΝ
Οὐδέπω οἶδα ὦ Κροῖσε ἢν μὴ πρὸς τὸ τέλος ἀφίκῃ τοῦ βίου ὁ γὰρ θάνατος ἀκριβὴς ἔλεγχος τῶν τοιούτων καὶ
τὸ ἄχρι πρὸς τὸ τέρμα εὐδαιμόνως διαβιῶναιrdquo 243 Esses personagens podem variar de acordo com a tradiccedilatildeo No texto A tradiccedilatildeo dos sete saacutebios o sapiens
enquanto paradigma de uma identidade Delfim Ferreira Leatildeo o analisa a partir da tradiccedilatildeo herodoteana e afirma
que o diaacutelogo supracitado eacute ldquoo relato mais significativo de todos a ponto de atingir o estatuto de modelo
paradigmaacutetico da forma como o diaacutelogo entre um saacutebio grego e um monarca oriental poderia ser abordadordquo
(LEAtildeO 2011 53) 244 Delfim Ferreira Leatildeo afirma que Plutarco retoma essa estoacuteria a fim de distinguir as praacuteticas e representaccedilotildees
proacuteprias dos gregos no sentido de opor o saacutebio grego a um soberano baacuterbaro o que distinguiria de Heroacutedoto cuja
narrativa tem caraacuteter universal (LEAtildeO 2011 105-106)
151
anteriormente Sofrendo por causas de seus tesouros Creso eacute o exemplo do governante vaidoso
que natildeo sabe que a morte chegaraacute a todos os viventes Luciano coloca mais uma vez a morte
como o problema seminal da existecircncia Como o proacuteprio Caronte repete diversas vezes
somente julgaremos essas vidas ldquodepois dessa barcardquo (παρὰ τὸ πορθμεῖον) (Luciano Char 10)
em referecircncia clara ao barco que ele comanda
Os governantes apresentados por Luciano expressam uma criacutetica bem contundente
agrave cultura poliacutetica de sua eacutepoca Sempre tendo em vista as premissas de Soacutelon soacute podemos dizer
que a vida de algueacutem eacute feliz com o teacutermino desta
No passo seguinte desse diaacutelogo haacute um debate sobre a relaccedilatildeo de Creso com o
oraacuteculo de Delfos Hermes comenta com Caronte essa postura desvendando uma caracteriacutestica
importante nesse contexto Hermes diz assim
Hermes - Oacute Caronte o Liacutedio natildeo suporta a franqueza e a verdade das
palavras mas pelo contraacuterio pareceu-lhe absurdo um homem pobre natildeo se
humilhar mas dizer livremente o que lhe vem agrave cabeccedila Mas passando algum
tempo haacute de se lembrar de Soacutelon quando for aprisionado e lanccedilado na fogueira
por Ciro Na verdade ouvi ainda recentemente Cloto ler o destino fiado para
cada pessoa onde este caso estava escrito Creso seria capturado por Ciro e
que o proacuteprio Ciro seria morto ali por aquela mulher (Luciano Char 13)245
O poder eacute contraposto agrave sabedoria e as palavras do saacutebio satildeo colocadas em risco
capital Seu conhecimento do futuro que aguarda aqueles personagens permite que Caronte
considere divertida aquela cena jaacute que a sabedoria do saacutebio se afirmaraacute de maneira contundente
Os homens desconhecem o seu futuro por esse motivo vivem sem se preocupar com o fim
Somente quando os homens morrem eacute que haacute um veredito final sobre sua felicidade e permite-
se dizer se algueacutem foi ou natildeo feliz como podemos observar nos comentaacuterios de Hermes e
Caronte do traacutegico destino de Creso e Ciro No entanto se a ruiacutena o aguardaraacute em um futuro
proacuteximo naquele momento ele eacute o governante tiracircnico Por mais que isso seja cocircmico sabe que
adiante teraacute uma vida marcada por desgraccedilas naquele momento ldquoquem ousaria olhaacute-lo de
frente246 esses tipos satildeo tatildeo altivos com as outras pessoasrdquo (Luciano Char 13)247 Como nos
ensinou Michel Foucault as novas assertivas de Soacutelon apresentam traccedilos da parreacutesia ou seja
245 ldquoΕΡΜΗΣ
Οὐ φέρει ὁ Λυδός ὦ Χάρων τὴν παρρησίαν καὶ τὴν ἀλήθειαν τῶν λόγων ἀλλὰ ξένον αὐτῷ δοκεῖ τὸ πρᾶγμα
πένης ἄνθρωπος οὐχ ὑποπτήσσων τὸ δὲ παριστάμενον ἐλευθέρως λέγων μεμνήσεται δ οὖν μικρὸν ὕστερον τοῦ
Σόλωνος ὅταν αὐτὸν δέῃ ἁλόντα ἐπὶ τὴν πυρὰν ὑπὸ τοῦ Κύρου ἀναχθῆναι ἤκουσα γὰρ τῆς Κλωθοῦς πρῴην
ἀναγινωσκούσης τὰ ἑκάστῳ ἐπικεκλωσμένα ἐν οἷς καὶ ταῦτα ἐγέγραπτο Κροῖσον μὲν
ἁλῶναι ὑπὸ Κύρου Κῦρον δὲ αὐτὸν ὑπ ἐκεινησὶ τῆς Μασσαγέτιδος ἀποθανεῖνrdquo 246 A proibiccedilatildeo a olhar no rosto dos governantes eacute uma caracteriacutestica das realezas heleniacutesticas Trata-se de conferir
sacralidade agrave pessoa do soberano 247 ldquoἀλλὰ νῦν τίς ἂν αὐτοὺς προσβλέψειεν οὕτως ὑπερφρονοῦντας τῶν ἄλλωνrdquo
152
ao ser sincero com o governante o legislador algueacutem coloca sua vida em risco (FOUCAULT
2011 65-66) como os tiranos se esquecem da morte nos escritos do samosatense
Outro tirano que Luciano destaca da memoacuteria cultural helecircnica eacute Poliacutecrates tirano
de Samos cuja bem-aventuranccedila era reconhecida por todos Havia uma anedota muito
conhecida referente ao seu anel248 como Poliacutecrates era extremamente beneficiado pela sorte
resolveu jogar no mar um anel valioso para ter uma perda e assim quebrar a sorte que tinha
entretanto alguns dias apoacutes o descarte um criado ao preparar a alimentaccedilatildeo encontra o anel
dentro de um peixe A cena eacute descrita desta maneira
Caronte - () Mas quem eacute aquele tipo oacute Hermes todo acolchetado num
manto puacuterpura com um diadema a quem o cozinheiro estaacute a dar um anel [que
achou] ao abrir o peixe
Numa ilha de ondas cercada
Dir-se-ia que eacute um rei249
Hermes - Mas que excelente paroacutedia oacute Caronte Pois estaacutes vendo Poliacutecrates
Tirano de Samos que se considera um homem totalmente feliz No entanto
traiacutedo e entregue ao Saacutetrapa Orete pelo seu criado Meacircndrio que estaacute ao seu
lado seraacute crucificado oacute infeliz caindo num breve instante do alto da sua
felicidade Este fato tambeacutem ouvi da boca de Cloto
Caronte ndash Como eu admiro esta nobre Cloto Queime-os ela corte lhes as
cabeccedilas crucifique-os para que eles saibam que satildeo homens Que eles sejam
elevados aos piacutencaros pois quanto mais alto caiacuterem mas dolorosa seraacute a
queda Entatildeo eu fartar-me-ei de rir ao reconhecer cada um deles na minha
barca todos nus sem trazerem consigo nem mantos de puacuterpura nem tiaras
nem tronos de ouro (Luciano Char 14)250
A narrativa sobre Poliacutecrates representava um cacircnone sobre a felicidade plena e
assim como os relatos sobre Creso simbolizava a queda a que todos estatildeo sujeitos
principalmente quando gozam da felicidade Por meio da traiccedilatildeo de um criado proacuteximo o
tirano foi entregue aos inimigos Discretamente como tecircm que ser os recados aos poderosos
Luciano lembra a finitude da vida e que essa iguala a todos mas tambeacutem ressalta que os campos
248 Heroacutedoto narrou essa famosa anedota referente ao anel de Poliacutecrates (Her Hist III 39-43) 249 Os dois trechos satildeo da Odisseacuteia (Hom Od I 50 I 80) 250 ldquoΧΑΡΩΝ
[] ἐκεῖνος δὲ τίς ἐστιν ὦ Ἑρμῆ ὁ τὴν πορφυρᾶν ἐφεστρίδα ἐμπεπορπημένος ὁ τὸ διάδημα ᾧ τὸν δακτύλιον ὁ
μάγειρος ἀναδίδωσι τὸν ἰχθὺν ἀνατεμών
νήσῳ ἐν ἀμφιρύτῃ βασιλεὺς δέ τις εὔχεται εἶναι
ΕΡΜΗΣ
Εὖ γε παρῳδεῖς ὦ Χάρων ἀλλὰ Πολυκράτην ὁρᾷς τὸν Σαμίων τύραννον πανευδαίμονα ἡγούμενον εἶναι ἀτὰρ
καὶ οὗτος αὐτὸς ὑπὸ τοῦ παρεστῶτος οἰκέτου Μαιανδρίου προδοθεὶς Ὀροίτῃ τῷ σατράπῃ ἀνασκολοπισθήσεται
ἅθλιος ἐκπεσὼν τῆς εὐδαιμονίας ἐν ἀκαρεῖ τοῦ χρόνου καὶ ταῦτα γὰρ τῆς Κλωθοῦς ἐπήκουσα
ΧΑΡΩΝ
Ἄγαμαι Κλωθοῦς γεννικῆς καῖε αὐτούς ὦ βελτίστη καὶ τὰς κεφαλὰς ἀπότεμνε καὶ ἀνασκολόπιζε ὡς εἰδῶσιν
ἄνθρωποι ὄντες ἐν τοσούτῳ δὲ ἐπαιρέσθων ὡς ἂν ἀφ ὑψηλοτέρου ἀλγεινότερον καταπεσούμενοι ἐγὼ δὲ
γελάσομαι τότε γνωρίσας αὐτῶν ἕκαστον γυμνὸν ἐν τῷ σκαφιδίῳ μήτε τὴν πορφυρίδα μήτε τιάραν ἢ κλίνην
χρυσῆν κομίζονταςrdquo
153
do poder colocam o soberano em condiccedilatildeo propiacutecia agraves traiccedilotildees daqueles que lhes satildeo proacuteximos
jaacute que a felicidade gera a inveja e o castigo das divindades
Caronte que contempla a chegada de todos os mortos faz a seguinte constataccedilatildeo
ao final do diaacutelogo
Caronte - Sim estou vendo tudo isso e agora percebo o que eacute que eles
consideram agradaacutevel durante a vida ou que coisa eacute essa cuja privaccedilatildeo os
enfurece Se considerarmos os seus reis que parecem ser as pessoas mais
felizes do mundo Aleacutem da instabilidade como tu dizes e da incerteza da
sorte verificaremos que no seu caso as situaccedilotildees desagradaacuteveis satildeo em
nuacutemero superior agraves agradaacuteveis temores perturbaccedilotildees inimizades
conspiraccedilotildees rancores e lisonjas De fato eles convivem com tudo isso E
deixo de lado os lutos as doenccedilas e os padecimentos que obviamente os
atacam em peacute de igualdade Ora se os seus males jaacute satildeo tatildeo grandes podeis
imaginar como seratildeo o dos simples particulares (Luciano Char 18)251
Luciano faz um inventaacuterio do que significa assumir o governo de uma cidade ou
de um impeacuterio Observemos o caso de Creso ou de Poliacutecrates um rei e um tirano que compotildeem
a memoacuteria histoacuterica greco-romana e submergem nas agruras da fortuna Luciano natildeo faz uma
distinccedilatildeo entre o rei e o tirano tal como foi feita por Aristoacuteteles Na verdade ele mostra com
sagacidade como os dois exemplos natildeo se distinguem em seus fins Creso eacute um rei que estaria
preocupado com bens materiais e poder enquanto Poliacutecrates natildeo eacute lembrado como tirano por
maldades Entendemos que Luciano nos alerta que qualquer governante pode vir a ser um tirano
no sentido que sua eacutepoca dava a essa palavra como sinocircnimo de mau governante Cloto a
Moira252 que enrola o fio da vida de cada mortal decide como se desenrolaraacute seu destino Logo
as peripeacutecias da existecircncia podem jogar agrave condiccedilatildeo de escravo eou prisioneiro quem estaacute em
tamanho destaque uma vez que as relaccedilotildees que se estabelecem com estes satildeo marcadas pela
bajulaccedilatildeo e pela inveja
As riquezas ou o poder natildeo compensam os infortuacutenios temores perturbaccedilotildees
inimizades conspiraccedilotildees rancores e lisonjas Os governantes do passado mobilizam uma memoacuteria que
se coaduna com a cultura poliacutetica romana Natildeo podemos esquecer que a situaccedilatildeo poliacutetica romana era
marcada pelo assassinato dos Imperadores sendo que poucos morreram em seu leito As conspiraccedilotildees
e traiccedilotildees satildeo a marca dessa forma de governo que natildeo tem a estabilidade em sua transiccedilatildeo para outro
251 ldquoὉρῶ ταῦτα πάντα καὶ πρὸς ἐμαυτόν γε ἐννοῶ ὅ τι τὸ ἡδὺ αὐτοῖς παρὰ τὸν βίον ἢ τί ἐκεῖνό ἐστιν οὗ
στερούμενοι ἀγανακτοῦσιν ἢν γοῦν τοὺς βασιλέας αὐτῶν ἴδῃ τις οἵπερ εὐδαιμονέστατοι εἶναι δοκοῦσιν ἔξω τοῦ
ἀβεβαίου ὡς φὴς καὶ ἀμφιβόλου τῆς τύχης πλείω τῶν ἡδέων τὰ ἀνιαρὰ εὑρήσει προσόντα αὐτοῖς φόβους καὶ
ταραχὰς καὶ μίση καὶ ἐπιβουλὰς καὶ ὀργὰς καὶ κολακείας τούτοις γὰρ ἅπαντες σύνεισιν ἐῶ πένθη καὶ νόσους καὶ
πάθη ἐξ ἰσοτιμίας δηλαδὴ ἄρχοντα αὐτῶν ὅπου δὲ τὰ τούτων πονηρά λογίζεσθαι καιρὸς οἷα τὰ τῶν ἰδιωτῶν ἂν
εἴηrdquo 252 As trecircs Moiras satildeo irmatildes que representam o destino humano Atroacutepo fiava a vida humana Cloto enrolava o fio
Laacutequesis cortava a vida humana
154
governante Mesmo com tamanhos infortuacutenios os governantes ainda carregam as mesmas desditas que
os meros mortais
O espaccedilo do Palaacutecio eacute representado por Luciano como um ambiente propicio agrave
deslealdade Por exemplo no diaacutelogo maior Icaromenipo ou sobre as nuvens Menipo com asas de uma
aacuteguia e de um abutre sobe aos ceacuteus e observa os homens Sua exposiccedilatildeo da vida nas residecircncias dos
governantes retoma as colocaccedilotildees apresentadas anteriormente Icaromenipo vecirc a seguinte cena
Olhando laacute para baixo para a Terra distinguia nitidamente as cidades as
pessoas e as suas accedilotildees natildeo soacute as que se passavam ao ar livre mas tambeacutem
as que se praticavam dentro das casas onde as pessoas julgavam passar
despercebidas como por exemplo253 Ptolomeu254 a ter relaccedilotildees com a sua
irmatilde o filho de Lisiacutemaco255 a conspirar contra o pai Antiacuteoco256 filho de
Seleuco a fazer agraves escondidas sinais agrave sua madrasta Estratonice o tessaacutelico
Alexandre257 a ser assassinado por sua esposa Antiacutegono a cometer adulteacuterio
com a esposa do seu filho o filho de Aacutetalo258 vertendo veneno para seu pai
noutro local Aacutersaces assassinando a jovem o eunuco Aacuterbaces puxando da
espada contra Aacutersaces Espatino da Meacutedia a ser arrastado para fora da sala do
banquete pelos guardas que lhe pegavam pelos peacutes e com um sobrolho ferido
por uma taccedila de ouro E cenas idecircnticas a estas poderiam ver-se na Liacutebia e nos
palaacutecios dos Citas e Traacutecios pessoas a praticar adulteacuterio a assassinar a
conspirar a raptar a jurar falso aterrorizadas e traiacutedas pelos seus familiares
() as cenas dos reis me proporcionaram um passatempo tatildeo divertido
(Luciano Icar 15-16)259
A imagem vista por Icaromenipo evidencia como o poder estaacute cercado de adulteacuterio
assassinato conspiraccedilatildeo sequestros e falsos juramentos pois natildeo se pode confiar nem mesmo nos
familiares mais proacuteximos O riso dessa imagem enfatiza que haacute muitas agruras no poder bem como
deixa claro que o poder vive em uma constante possibilidade de traiccedilatildeo quadro que serve para as
realezas heleniacutesticas mas natildeo estaacute distante dos palaacutecios romanos
253 Os reis e tiranos a seguir satildeo pouco conhecidos dos historiadores sendo que alguns natildeo podem ser
comprovados Eacute interessante notar como eles estatildeo vinculados ao periacuteodo heleniacutestico posterior a Alexandre
Magno 254 Ver nota 144 255 Lisimaco (c 360-280 aC) eacute um general macedocircnico e rei da Traacutecia Era amigo de infacircncia de Alexandre 256 Antioco I Soter (324-261 a C) foi rei selecircucida filho de Seleuco I 257 Alexandre tirano de Fera cidade da Tessaacutelia 258 Existem trecircs Aacutetalos I Soter II Filadelfo III Filomentor que satildeo governantes de Peacutergamo O terceiro deixou
seu reino em testamento para Roma 259 ldquoκατακύψας γοῦν ἐς τὴν γῆν ἑώρων σαφῶς τὰς πόλεις τοὺς ἀνθρώπους τὰ γιγνόμενα καὶ οὐ τὰ ἐν ὑπαίθρῳ
μόνον ἀλλὰ καὶ ὁπόσα οἴκοι ἔπραττον οἰόμενοι λανθάνειν Πτολεμαῖον μὲν συνόντα τῇ ἀδελφῇ Λυσιμάχῳ δὲ
τὸν υἱὸν ἐπιβουλεύοντα τὸν Σελεύκου δὲ Ἀντίοχον Στρατονίκῃ διανεύοντα λάθρα τῇ μητρυιᾷ τὸν δὲ Θετταλὸν
Ἀλέξανδρον ὑπὸ τῆς γυναικὸς ἀναιρούμενον καὶ Ἀντίγονον μοιχεύοντα τοῦ υἱοῦ τὴν γυναῖκα καὶ Ἀττάλῳ τὸν
υἱὸν ἐγχέοντα τὸ φάρμακον ἑτέρωθι δ αὖ Ἀρσάκην φονεύοντα τὸ γύναιον καὶ τὸν εὐνοῦχον Ἀρβάκην ἕλκοντα
τὸ ξίφος ἐπὶ τὸν Ἀρσάκην Σπατῖνος δὲ ὁ Μῆδος ἐκ τοῦ συμποσίου πρὸς τῶν δορυφορούντων εἵλκετο ἔξω τοῦ
ποδὸς σκύφῳ χρυσῷ τὴν ὀφρὺν κατηλοημένος ὅμοια δὲ τούτοις ἔν τε Λιβύῃ καὶ παρὰ Σκύθαις καὶ Θρᾳξὶ γινόμενα
ἐν τοῖς βασιλείοις ἦν ὁρᾶν μοιχεύοντας φονεύοντας ἐπιβουλεύοντας ἁρπάζοντας ἐπιορκοῦντας δεδιότας ὑπὸ
τῶν οἰκειοτάτων προδιδομένους
Καὶ τὰ μὲν τῶν βασιλέων τοιαύτην παρέσχε μοι τὴν διατριβήν []rdquo
155
Luciano movimenta a memoacuteria cultural disponiacutevel transmitida por meio da formaccedilatildeo
escolar que por sua vez orienta a leitura dos textos que satildeo referecircncia em cada gecircnero Nesse sentido
a leitura de Homero e de Heroacutedoto faz parte do curriacuteculo bem como o estudo dessas anedotas que satildeo
amiuacutede entregues aos jovens para que eles treinem sua capacidade argumentativa e expositiva Desse
modo essas recordaccedilotildees tecircm alto poder argumentativo jaacute que as mesmas compotildeem um acervo
disponiacutevel a todos
Entretanto o siacuterio se utiliza de outros recursos a fim de falar sobre os governantes No
diaacutelogo A travessia para o Hades ou O Tirano ele retoma o tema da chegada ao Hades Entretanto ele
completa o debate com o julgamento dos mortos por Radamanto Aleacutem desse juiz outros personagens
miacuteticos fazem parte do diaacutelogo entre Caronte Hermes a Moira Cloto bem como a Eriacutenia260 Tisiacutefone
Haacute um filoacutesofo ciacutenico chamado Ciniacutesco e Micilo (um sapateiro) caracterizado por ser bem pobre e o
tirano Megapentes261
O enredo do diaacutelogo primeiramente coloca Cloto e Caronte discutindo sobre o atraso de
Hermes lembrando que este uacuteltimo tem algumas caracteriacutesticas natildeo tatildeo honestas como ser um exiacutemio
ladratildeo Em um segundo momento chega o condutor de almas cansado jaacute que um dos mortos teria
tentado fugir Trata-se de Megapentes um tirano Em seguida os mortos entram na barca e satildeo
conferidos por Cloto O tirano tenta de todas as formas convencer a Moira de retornar a terra Micilo
um sapateiro comenta sobre a diferenccedila entre a morte de um rico e a de um pobre Haacute finalmente o
julgamento dos mortos A hipoacutetese que levantamos eacute que o documento ora analisado refere-se com muita
proximidade ao poder imperial em um aspecto teoacuterico pois observamos que Luciano natildeo dirige sua
criacutetica agrave pessoa de um Imperador em particular mas traccedila elementos que expotildeem o que levaria um
priacutencipe a ser um mau governante Desse modo trata-se de um texto que reflete sobre o poder natildeo sobre
determinado Imperador
Como jaacute enfatizamos algumas vezes as criacuteticas ao Impeacuterio e a seu governante devem ser
bem veladas assim acreditamos que Luciano retoma as insiacutegnias do poder romano a fim de falar do
poder imperial A estrateacutegia retoacuterica eacute colocar em cena um tirano fictiacutecio cujas praacuteticas e representaccedilotildees
fizessem parte do domiacutenio comum da cultura poliacutetica de sua eacutepoca Dessa forma a criacutetica faz-se com
mais ecircnfase
Analisemos a representaccedilatildeo desse Tirano ele tenta persuadir Hermes e Cloto para
retornar agrave vida e utiliza os argumentos mundanos de que precisa terminar uma obra tem de dar
instruccedilotildees a sua mulher precisa revelar o local secreto em que escondia seu tesouro e precisa vingar-se
de seus inimigos (Luciano Cat 8) No diaacutelogo os bens do Tirano ficam com seus inimigos os mesmos
260 As Eriacutenias tambeacutem chamadas Eumecircnides (benevolentes forma eufemiacutestica que tenta aplacar a fuacuteria destas)
satildeo trecircs divindades pertencentes ao Hades Alecto Megera e Tisiacutefone Satildeo representadas com tochas e serpentes
na cabeccedila e sempre seguram um chicote 261 Etimologicamente esse nome significa cheio de afliccedilotildees
156
que lhe causaram a morte As chantagens e propinas natildeo lhe satildeo uacuteteis Cloto o critica e questiona ldquoAinda
conservas na memoacuteria ridiacutecula criatura o ouro e os talentosrdquo (Luciano Cat 9)262
O tirano mesmo depois de morto deseja se impocircr sobre os inimigos aleacutem do desejo de
construir grandes monumentos para marcar sua memoacuteria Por fim ele inverte a loacutegica da renuacutencia e
propotildee o negoacutecio que mais espanta Cloto Ele oferece o filho em troca dele mesmo no que fica sabendo
que o filho morreraacute em seguida assassinado pelo novo rei A causa da morte do Tirano foi a traiccedilatildeo
daqueles que lhe eram proacuteximos Foi envenenado em um banquete
Em seguida o Tirano pergunta a Cloto o que ocorreraacute apoacutes a sua morte
Cloto ndash Entatildeo vai ouvindo pois ao tomares conhecimento ficaraacutes ainda mais
aflito O teu escravo Midas casaraacute com a tua mulher aliaacutes desde a muito ele
era seu amante
Megapentes - Que grande malandro Eu que persuadido por ela lhe concedi
a liberdade
Cloto ndash A tua filha seraacute inscrita entre as concubinas do atual tirano e os bustos
e as estaacutetuas que a cidade durante muito tempo erigiu em tua honra seratildeo
derrubadas e serviratildeo de risota para os espectadores
Megapentes ndash Diz-me caacute dentre os meus amigos natildeo haveraacute nem um que
fique indignado com esses atos
Cloto ndash Mas quem eacute que era teu amigo E por que motivo se tornara tal
Entatildeo natildeo sabes que aqueles que se ajoelhavam aos teus peacutes elogiando cada
uma das coisas que dizias ou fazias agiam quer por medo quer por esperanccedila
amigos sim mas do teu poder e soacute olhando as oportunidades
Megapentes - E no entanto nos banquetes ao fazerem libaccedilotildees desejavam-
me em altas vozes muitas e grandes felicidades cada um deles afirmando-se
prontos a morrer se fosse preciso no meu lugar enfim soacute juravam em meu
nome (Luciano Cat 11) 263
Essa longa citaccedilatildeo eacute necessaacuteria para observarmos a complexidade da
representaccedilatildeo criada por Luciano sobre os tiranos e seus ldquoamigosrdquo Como afirmou David
262 ldquoΚΛΩΘΩ
Ἔτι γὰρ χρυσόν ὦ γελοῖε καὶ τάλαντα διὰ μνήμης ἔχειςrdquo 263 ldquoΚΛΩΘΩ
Ἄκουε μᾶλλον γὰρ ἀνιάσῃ μαθών τὴν μὲν γυναῖκα Μίδας ὁ δοῦλος ἕξει καὶ πάλαι δὲ αὐτὴν ἐμοίχευεν
ΜΕΓΑΠΕΝΘΗΣ
Ὁ κατάρατος ὃν ἐγὼ πειθόμενος αὐτῇ ἀφῆκα ἐλεύθερον
ΚΛΩΘΩ
Ἡ θυγάτηρ δέ σοι ταῖς παλλακίσι τοῦ νυνὶ τυραννοῦντος ἐγκαταλεγήσεται αἱ εἰκόνες δὲ καὶ ἀνδριάντες οὓς ἡ
πόλις ἀνέστησέ σοι πάλαι πάντες ἀνατετραμμένοι γέλωτα παρέξουσι τοῖς θεωμένοις
ΜΕΓΑΠΕΝΘΗΣ
Εἰπέ μοι τῶν φίλων δὲ οὐδεὶς ἀγανακτήσει τοῖς δρωμένοις
ΚΛΩΘΩ
Τίς γὰρ ἦν σοι φίλος ἢ ἐκ τίνος αἰτίας γενόμενος ἀγνοεῖς ὅτι πάντες οἱ καὶ προσκυνοῦντες καὶ τῶν λεγομένων
καὶ πραττομένων ἕκαστα ἐπαινοῦντες ἢ φόβῳ ἢ ἐλπίσι ταῦτα ἔδρων τῆς ἀρχῆς ὄντες φίλοι καὶ πρὸς τὸν καιρὸν
ἀποβλέποντες
ΜΕΓΑΠΕΝΘΗΣ
Καὶ μὴν σπένδοντες ἐν τοῖς συμποσίοις μεγάλῃ τῇ φωνῇ ἐπηύχοντό μοι πολλὰ καὶ ἀγαθά προαποθανεῖν ἕκαστος
αὐτῶν ἕτοιμος εἰ οἷόν τε εἶναι καὶ ὅλως ὅρκος αὐτοῖς ἦν ἐγώrdquo
157
Konstan ldquoNo meio palaciano o problema da amizade era complicado pela autoridade absoluta
do Imperador e a tradiccedilatildeo orgulhosa da classe senatorialrdquo (KONSTAN 2005 208)
Susana M Lizcano Rejano (2000) no artigo intitulado El Toraxis de Luciano de
Samoacutesata um paradigma de la amistad entre griegos y baacuterbaros ressalta que natildeo houve uma
discussatildeo teoacuterica aprofundada sobre a amizade o que seria uma consequecircncia do contexto
poliacutetico caracterizado pela ausecircncia de condiccedilotildees de liberdade de palavra e atuaccedilatildeo Essa
impossibilidade da sinceridade em espaccedilos puacuteblicos fez com que o debate acerca da amizade
ficasse restrito ao espaccedilo privado da vida dos cidadatildeos o que natildeo implica supor que essas
relaccedilotildees perderam seu espaccedilo social muito pelo contraacuterio ldquoa amizade passou a ser considerada
natildeo somente um espaccedilo de refuacutegio pessoal como um meio de melhorar o status social e apoio
para uma carreira poliacuteticardquo (LIZCANO REJANO 2000 229-230)
O tirano fica no lugar propiacutecio agrave bajulaccedilatildeo e agrave traiccedilatildeo Nesse caso o tirano eacute traiacutedo
tanto pelo escravo que estaacute em uma diferenciaccedilatildeo social vertical quanto pelos amigos que
supostamente encontram-se em uma situaccedilatildeo horizontal Dizemos supostamente por natildeo ser
possiacutevel ter claro que haacute um laccedilo genuiacuteno de amizade em um espaccedilo no qual o poder reina e
aquele que se encontra no topo pode executar a quem lhe aprouver Natildeo haacute qualquer legislaccedilatildeo
que limite os poderes de um soberano romano Paul Veyne afirma que ldquoO priacutencipe na verdade
eacute todo-poderoso Seu poder eacute mais absoluto completo e ilimitado possiacutevel natildeo eacute compartilhado
com ningueacutem assim como a ningueacutem ele tem de prestar contasrdquo (VEYNE 2009 9) Esse poder
somente eacute controlado com a eliminaccedilatildeo capital daquele que veste a puacuterpura
Outro ponto de aproximaccedilatildeo cultural que temos desse texto com a cultura poliacutetica
romana eacute o apagamento da memoacuteria dos feitos do detentor do poder por meio da destruiccedilatildeo de
signos que representam o poder do mau governante Remete-se agrave damnatio memoriae que era
uma ordem senatorial que obrigava o apagamento das imagens do governante considerado ruim
a fim de suprimir da memoacuteria romana os feitos deste Por exemplo dever-se-ia apagar
inscriccedilotildees monumentais moedas com remissotildees agravequele que foi banido ou morto entre outros
expedientes Antes do tempo em que Luciano escreveu os Imperadores Caliacutegula Nero Galba
Viteacutelio Oto e Domiciano haviam sido condenados pelo Senado a terem suas imagens e registros
apagados de todos os documentos monumentos e moedas oficiais
Trata-se de um apagamento de rastros executado oficialmente por uma ordem
institucional ou seja uma forma de punir aquele que trairam Roma com o esquecimento Como
afirma Jacques Le Goff os Imperadores Romanos satildeo presos ao deliacuterio da memoacuteria epigraacutefica
na tentativa de marcar indelevelmente seu nome nos monumentos e construccedilotildees a fim de evitar
o desaparecimento da memoacuteria de seus feitos Sublinhou ainda que
158
o Senado Romano angariado e por vezes dizimado pelos Imperadores
encontra uma arma contra a tirania imperial Eacute a damnatio memoriae que faz
desaparecer o nome do imperador defunto dos documentos de arquivo e das
inscriccedilotildees monumentais Ao poder pela memoacuteria responde a destruiccedilatildeo da
memoacuteria (LE GOFF 1990 442)
Eacute justamente nesses aspectos que Luciano enfatiza sua criacutetica no apagamento das
inscriccedilotildees que remetem agrave memoacuteria daquele que eacute considerado um mau Imperador Megapentes
teraacute todos os seus monumentos derrubados servindo de riso a todos Desde o caso de Tersites
que apanha de Odisseu no canto II da Iliacuteada o riso tem a funccedilatildeo de rebaixar humilhar Trata-
se de um mote famoso o riso do inimigo na tradiccedilatildeo literaacuteria grega principalmente na trageacutedia
grega na qual o riso aparece frequentemente associado agrave agressatildeo natildeo violenta264 (BARBOSA
LAGE 2006 68)
Um detalhe nesse passo remete agrave figura do Tirano ao Imperador Domiciano265
a pretensatildeo de ser uma divindade quando os convidados juravam em seu nome e declaravam
publicamente que o consideravam um Deus ou assim fingiam
O texto deixa muito clara a artificialidade da vida do Tirano a famiacutelia dissolvida
pois sua mulher casa-se com um escravo a filha torna-se concubina do novo Tirano seu filho
seraacute assassinado Todo o ambiente no qual o Tirano se insere estaacute corrompido Luciano natildeo
poupa tintas para construir esse cenaacuterio
Em seguida o Tirano relata a Cloto que assim que foi dado por morto seu escravo
Caacuterion levou uma de suas concubinas para a sala onde seu corpo se encontrava e fechando a
porta transou com a mulher Depois de se satisfazer disse ao corpo inerte ldquoTu homenzinho
repugnante deste-me pancada muitas vezes sem eu ter feito qualquer malrdquo (Luciano Cat
12)266 Em seguida esbofeteou o corpo inerte e lhe cuspiu fortemente no rosto O morto tomado
de oacutedio natildeo pode fazer nada
Quando ouviram barulhos de pessoas se aproximando ele saiu do aposento e a
mulher fingiu sofrer a perda O cenaacuterio do palaacutecio torna-se o palco para a falsidade a mentira
e a bajulaccedilatildeo aleacutem de ensejar uma seacuterie de atitudes estrateacutegicas daqueles que estatildeo em condiccedilatildeo
subalterna politicamente e socialmente Trata-se de posicionamentos astuciosos dos grupos
marginalizados ou como chamou Certeau satildeo as tretas do fraco Uma vez que ldquoo cotidiano se
264 O livro de Orestis Karavaacutes apresenta um levantamento exaustivo da presenccedila de citaccedilotildees dos tragedioacutegrafos
bem como anaacutelise do uso de termos teacutecnicos da trageacutedia nos escritos luciacircnicos (KARAVAS 2005) o que permite
analisar o uso que o siacuterio faz do legado literaacuterio helecircnico em sua criaccedilatildeo literaacuteria 265 Segundo Suetocircnio o Imperador Domiciano exigiu que fosse chamado de ldquoDeus e senhorrdquo esto eacute dominus et
deus noster (Suet Dom 13 4) 266 ldquolsquoΣὺ μέντοιrsquo φησίν lsquoὦ μιαρὸν ἀνθρώπιον πληγάς μοι πολλάκις οὐδὲν ἀδικοῦντι ἐνέτειναςrsquordquo
159
inventa de mil maneiras de caccedila natildeo autorizadardquo (CERTEAU 2007 38) Ou seja existe na
sociedade um poder disciplinador que organiza e que impotildeem regras de conduta entretanto
sempre existem espaccedilos para que os indiviacuteduos burlem o sistema por meio das mais variadas
astuacutecias
No passo seguinte Cloto diz para o Tirano parar com as ameaccedilas e embarcar jaacute
que iraacute ao tribunal do Hades No que o Tirano pergunta ldquoMas quem se atreveraacute a lanccedilar o seu
voto contra um tiranordquo (Luciano Cat 13)267 A moira lembra novamente que contra um tirano
ningueacutem se levantaria mas que ele eacute apenas um morto e a morte iguala a todos ricos e pobres
Agrave maneira do Aquiles homeacuterico que preferia ser um escravo na Terra a reinar
entre os mortos (Homero Od XI 489-491) Megapentes suplica agrave Moira que ele volte como
escravo natildeo se importando em natildeo ser rei Natildeo conseguindo dissuadir a divindade do mundo
inferior tendo de entrar no barco sob vigilacircncia de todos principalmente do ciacutenico ele exige
um lugar de honra
No passo seguinte Luciano faz um contraste interessante que permite que a
denuacutencia venha de quem estaacute em condiccedilatildeo subalterna O sapateiro Micilo assim discorre sobre
sua situaccedilatildeo
A minha situaccedilatildeo natildeo eacute igual agrave dos ricos na verdade as nossas vidas satildeo ()
diametralmente opostas o tirano que enquanto vivo parecia feliz temido e
admirado por toda gente agora ao deixar tanto ouro e tanta prata tanta roupa
e tantos cavalos tantos banquetes belos rapazinhos e formosas mulheres eacute
claro que ficou triste e amargurado ao ver-se privado desses bens (Luciano
Cat 14)268
O olhar do sapateiro vem de fora nesse sentido sua visatildeo eacute harmoniosa e natildeo
consegue ver as muacuteltiplas agruras vividas por quem ocupa tais espaccedilos de poder Em seguida
Luciano relaciona a dificuldade de esquecer os bens terrenos com um visco269 A memoacuteria
marcaria a alma do morto e esse natildeo poderia esconder seus crimes270 As almas dos mortos
267 ldquoΜΕΓΑΠΕΝΘΗΣ
Καὶ τίς ἀξιώσει κατ ἀνδρὸς τυράννου ψῆφον λαβεῖνrdquo 268 ldquoἄλλως τε οὐδ ὅμοια τἀμὰ τοῖς τῶν πλουσίων ἐκ διαμέτρου γὰρ ἡμῶν οἱ βίοι φασίν ὁ μέν γε τύραννος
εὐδαίμων εἶναι δοκῶν παρὰ τὸν βίον φοβερὸς ἅπασι καὶ περίβλεπτος ἀπολιπὼν χρυσὸν τοσοῦτον καὶ ἀργύριον
καὶ ἐσθῆτα καὶ ἵππους καὶ δεῖπνα καὶ παῖδας ὡραίους καὶ γυναῖκας εὐμόρφους εἰκότως ἠνιᾶτο καὶ ἀποσπώμενος
αὐτῶν ἤχθετοrdquo 269 Haacute nesse ponto um elemento bastante interessante que eacute uma teoria da memoacuteria nos escritos de Luciano jaacute que
se trata de uma concepccedilatildeo que entende que os nossos atos ruins ficam marcados em nossa alma ou seja um exame
da alma do morto permite que o Juiz saiba se ele foi ou natildeo uma boa pessoa 270 Eacute interessante notar como em outro diaacutelogo maior Menipo ou a nequiomancia haacute a indicaccedilatildeo de que quem faz
a acusaccedilatildeo do morto eacute a sombra deste que eacute a melhor testemunha ldquouma vez que estatildeo sempre juntinhas aos nossos
corpos e nunca se afastam delesrdquo (Luciano Nec 11)
160
perdem a coragem pois se desmontam agrave medida que chegam proacuteximos aos portotildees do Hades
e os ricos se entregam ao desespero
Para Micilo o Hades funciona muito bem ele natildeo precisa se envergonhar mais
do seu manto que jaacute natildeo se distingue do manto puacuterpura do tirano natildeo tem credores nem passa
frio ou fome natildeo adoece nem eacute surrado pelos poderosos (Luciano Cat 15 22)
Trata-se das insiacutegnias do poder principalmente do poder no periacuteodo em que o
siacuterio viveu Ter um Imperador no sistema poliacutetico em que eles viviam era inevitaacutevel mas esse
natildeo precisava ser um tirano Os indiacutecios que levantamos expressam as dificuldades para o
detentor do poder gozar de amizades verdadeiras e sinceras o Palaacutecio como palco de
veleidades a inveja constante a traiccedilatildeo como vimos em outros momentos O Tirano luciacircnico
usa um manto puacuterpura271 No texto Micilo diz que
Laacute em cima morava perto do tirano pelo que via perfeitamente o que se
passava em sua casa afigurava-se-me entatildeo algueacutem igual aos deuses
considerava-o feliz ao ver o esplendor de sua puacuterpura a multidatildeo de
acompanhantes o ouro as taccedilas cravejadas de pedras preciosas e os leitos com
peacutes de prata (Luciano Cat 16) 272
Aleacutem da puacuterpura que seraacute citada outra vez a seguir quando Micilo fala do ldquosangue
do molusco do mar Lacocircnicordquo273 (Luciano Cat 16) ele se refere ao molusco gastroacutepode usado
na fabricaccedilatildeo da puacuterpura que era usada em Roma para distinguir a ordem na qual cada indiviacuteduo
se inseria sendo que o Impeacuterador utilizava um manto colorido com essa substacircncia
O texto Menipo ou neciomancia apresenta o julgamento de outro tirano Haacute uma
cena interessante que destoa das muitas apariccedilotildees dos tiranos ateacute entatildeo uma vez que ele eacute
condenado e em seguida a atuaccedilatildeo de um retor faz com que ele seja solto Apresentado diante
de Minos segue-se agrave seguinte cena
Finalmente o senhor aparecendo-lhes vestido de puacuterpura coberto de ouro e
todo garrido julgava que tornava felizes e venturosos aqueles que o
saudavam deixando-os beijar-lhe o peito ou oferecendo-lhes a matildeo direita E
eles ao ouvirem-me ficavam muito tristes
271 Custoacutedio Marqueijo tradutor das obras completas de Luciano publicadas em Portugal insere neste passo entre
colchetes a palavra faixa o que eacute um desserviccedilo para o leitor e uma superinterpretaccedilatildeo jaacute que essa pequena palavra
amplia a imagem apresentada por Luciano como os Senadores e cavaleiros usavam faixas puacuterpuras em suas
tuacutenicas Na nota seguinte o tradutor portuguecircs faz uma segunda inferecircncia que a nosso ver se encontra errada pois
ele afirma que mais que ao Imperador Luciano estaacute a pensar nos tiranos orientais Nossa opiniatildeo eacute que o siacuterio usa
os tiranos orientais a fim de falar dos e aos Imperadores Romanos 272 ldquoπαροικῶν ἄνω τῷ τυράννῳ πάνυ ἀκριβῶς ἑώρων τὰ γιγνόμενα παρ αὐτῷ καί μοι ἐδόκει τότε ἰσόθεός τις εἶναι
τῆς τε γὰρ πορφύρας τὸ ἄνθος ὁρῶν ἐμακάριζον καὶ τῶν ἀκολουθούντων τὸ πλῆθος καὶ τὸν χρυσὸν καὶ τὰ
λιθοκόλλητα ἐκπώματα καὶ τὰς κλίνας τὰς ἀργυρόποδαςrdquo 273 ldquo[] καὶ μακαρίζων ἐπὶ τῷ αἵματι τῶν ἐν τῇ Λακωνικῇ θαλάττῃ κοχλίδωνrdquo
161
Todavia Minos pronunciou uma sentenccedila favoraacutevel Foi o caso que tendo
Dioniacutesio da Siciacutelia sido acusado por Diacuteon de muitos e horriacuteveis crimes de
impiedade testemunhados pela sua sombra e estando prestes a ser lanccedilado agrave
Quimera apresentou-se Aristipo de Cirene mdash tido em grande consideraccedilatildeo e
tem enorme influecircncia no reino subterracircneo mdash que o livrou da condenaccedilatildeo
alegando o facto de Dioniacutesio ter sido generoso a dar dinheiro a muitos homens
de letras (Luciano Nec 12-13)274
Observemos que Luciano valoriza o viacutenculo de mecenato entre homens de letras
e os governantes Mesmo em sua arrogacircncia que eacute caracterizada por suas atitudes o siacuterio deixa
claro que no espaccedilo do Hades a fala eacute um dos poucos bens que natildeo satildeo perdidos e que ter ao
seu lado pessoas com essas habilidades pode ser uacutetil mesmo no mundo dos mortos Outro
elemento interessante eacute a sugestatildeo (in)discreta de que ele dava muito dinheiro aos homens de
letras Nesse passo observamos o Luciano escritor amante das letras e membro de um grupo
social bem especiacutefico Essa eacute uma constataccedilatildeo um tanto oacutebvia uma vez que os homens sempre
escrevem de lugares sociais definidos
Portanto haacute uma ampla exegese das relaccedilotildees de poder em que o escritor mostra
a imagem de falta de felicidade na qual vivem os Tiranos jaacute que eles deixam tudo quando
morrem Essas figuras tornam-se cocircmicas e produzem o riso pois natildeo impotildeem mais medo
como enquanto viviam Micilo completa o escaacuternio da seguinte maneira ldquoUma vez morto olhei-
o como um tipo ridiacuteculo despojado daquele fausto e ria sobretudo de mim por ter admirado
uma tal porcariardquo (Luciano Cat 16)275 O siacuterio produz o riso sobre a morte dos poderosos
tiranos que aqui representam um tipo possiacutevel de Imperador Romano que pode ser evitado jaacute
que essa eacute uma condiccedilatildeo inevitaacutevel desse regime poliacutetico
35 O Zeus luciacircnico tirania e a impossibilidade de intervenccedilatildeo na vida humana
Ao pensarmos as relaccedilotildees de poder nos escritos de Luciano de Samoacutesata Zeus destaca-
se como soberano dos deuses sendo referecircncia para diversos assuntos tratados pelo siacuterio O
siacuterio retoma a visatildeo homeacuterica que caracteriza Zeus como pai (Luciano Bis acc 2) mas tambeacutem
como ύς dos deuses e dos homens (Luciano Bis acc 2 D Deor 8 2 10 1 18 2) ldquoEacute
274 ldquo[] ὁ δὲ μόλις ἄν ποτε ἀνατείλας αὐτοῖς πορφυροῦς τις ἢ περίχρυσος ἢ διαποίκιλος εὐδαίμονας ᾤετο καὶ
μακαρίους ἀποφαίνειν τοὺς προσειπόντας εἰ τὸ στῆθος ἢ τὴν δεξιὰν προτείνων δοίη καταφιλεῖν ἐκεῖνοι μὲν οὖν
ἠνιῶντο ἀκούοντες
Τῷ δὲ Μίνῳ μία τις καὶ πρὸς χάριν ἐδικάσθη τὸν γάρ τοι Σικελιώτην Διονύσιον πολλά γε καὶ δεινὰ καὶ ἀνόσια
ὑπό τε Δίωνος κατηγορηθέντα καὶ ὑπὸ τῆς σκιᾶς καταμαρτυρηθέντα παρελθὼν Ἀρίστιππος ὁ Κυρηναῖος ndash ἄγουσι
δ αὐτὸν ἐν τιμῇ καὶ δύναται μέγιστον ἐν τοῖς κάτω ndash μικροῦ δεῖν τῇ Χιμαίρᾳ προσδεθέντα παρέλυσε τῆς καταδίκης
λέγων πολλοῖς αὐτὸν τῶν πεπαιδευμένων πρὸς ἀργύριον γενέσθαι δεξιόνrdquo 275 ldquoἐπεὶ δὲ ἀπέθανεν αὐτός τε παγγέλοιος ὤφθη μοι ἀποδυσάμενος τὴν τρυφήν κἀμαυτοῦ ἔτι μᾶλλον κατεγέλων
οἷον κάθαρμα ἐτεθήπειν []rdquo
162
assim que a concepccedilatildeo de Zeus em Diaacutelogos dos deuses eacute a (subversatildeo) de um rei e por
conseguinte a do Olimpo a (subversatildeo) de um reinordquo (BUZOacuteN amp MAKSIMCZUK 2012 27)
Como enfatizamos no toacutepico anterior Aristoacuteteles identifica a tirania como um desvio
da monarquia (Aristoacuteteles Pol 1279b 9) e nesse sentido os fins do tirano satildeo distintos ou
seja ele visa seu bem individual esquecendo-se da comunidade Por isso ele busca riquezas e
prazeres e se afasta da busca da honra jaacute que a meta do tirano eacute o prazer (Aristoacuteteles Pol
1311a 9) Nessa perspectiva a tirania apresenta cotidianamente abusos de poder
Platatildeo na Repuacuteblica reflete sobre a alma tiracircnica nos seguintes termos
Logo tambeacutem uma alma tiracircnica eacute sempre forccediladamente pobre e por saciar
Eacute isso
Ora bem Acaso natildeo eacute forccediloso que uma cidade dessas e uns homens desses
estejam cheios de temor
Eacute e muito
Achas que encontraraacutes em qualquer outra cidade mais gemidos suspiros
lamentaccedilotildees e sofrimentos
De modo nenhum
E no indiviacuteduo Pensas que em qualquer outro encontraraacutes essa situaccedilatildeo mas
acentuada do que no homem tiracircnico enlouquecido pelas paixotildees e por Eros
(Platatildeo Rep 578a)276
A citaccedilatildeo da Repuacuteblica de Platatildeo e da Poliacutetica de Aristoacuteteles natildeo visa em nenhum
momento estabelecer viacutenculos diretos de inspiraccedilatildeo natildeo se trata aqui de influecircncia entre os
escritores mas de uma noccedilatildeo que estaacute presente na memoacuteria cultural helecircnica Logo essas
remissotildees tratam muito mais de produzir um cenaacuterio que buscar a fonte da proposta luciacircnica
Observando que se trata de uma colocaccedilatildeo sobre uma instituiccedilatildeo no caso grego e que no
Impeacuterio Romano o termo vincula-se agrave adjetivaccedilatildeo depreciativa do governante Os escritos
luciacircnicos utilizavam-se dessa memoacuteria cultural helecircnica para expressar as tensotildees vividas
cotidianamente Natildeo se trata como vimos de uma mensagem voltada diretamente ao
Imperador mas de uma exegese do poder que naquele momento era detido pelo Imperador No
horizonte de expectativas daqueles homens natildeo havia a possibilidade de outra ordem logo era
possiacutevel prevenir Imperador para que esse viesse a se tornar um tirano
276 ldquo- Καὶ ψυχὴν ἄρα τυραννικὴν πενιχρὰν καὶ ἄπληστον ἀνάγκη ἀεὶ εἶναι
- Οὕτως ἦ δ ὅς
- Τί δέ φόβου γέμειν ἆρ οὐκ ἀνάγκη τήν τε τοιαύτην πόλιν τόν τε τοιοῦτον ἄνδρα
- Πολλή γε
- Ὀδυρμούς τε καὶ στεναγμοὺς καὶ θρήνους καὶ ἀλγηδόνας οἴει ἔν τινι ἄλλῃ πλείους εὑρήσειν
- Οὐδαμῶς
- Ἐν ἀνδρὶ δὲ ἡγῇ τὰ τοιαῦτα ἐν ἄλλῳ τινὶ πλείω εἶναι ἢ ἐν τῷ μαινομένῳ ὑπὸ ἐπιθυμιῶν τε καὶ ἐρώτων τούτῳ τῷ
τυραννικῷrdquo
163
No entanto Luciano deixa muito evidente a contradiccedilatildeo entre as narrativas miacuteticas e as
leis Em seu diaacutelogo maior Menipo ou neciomancia Menipo se sente compelido a ir ao Hades
consultar Tireacutesias por natildeo compreender a seguinte situaccedilatildeo
ao ouvir Homero e Hesiacuteodo narrarem guerras e sediccedilotildees natildeo soacute entre
semideuses mas tambeacutem entre os proacuteprios deuses bem como os seus
adulteacuterios violaccedilotildees raptos processos judiciais expulsotildees de pais e
casamentos com irmatildes julgava que todos esses atos eram dignos pelo que
ficava natildeo pouco impressionado com tudo isso Quando poreacutem cheguei agrave
idade adulta verifiquei que as leis diziam o contraacuterio dos poetas proibindo o
adulteacuterio as sediccedilotildees e os raptos pelo que me achei em grande embaraccedilo sem
saber o que devia adoptar para minha orientaccedilatildeo Realmente cuidava eu que
os deuses nunca por nunca cometeriam adulteacuterio e sediccedilotildees uns contra os
outros caso natildeo acreditassem que se tratava de boas accedilotildees e por outro lado
que os legisladores natildeo ordenariam o contraacuterio se natildeo o achassem mais
vantajoso (Luciano Nec 3)277
Como ressaltamos em muitos momentos desta Tese a formaccedilatildeo do homem antigo
estava ancorada sobre a leitura declamaccedilatildeo coacutepia e emulaccedilatildeo de Homero e Hesiacuteodo como
importantes fontes para as narrativas miacuteticas que trazem a representaccedilatildeo de valores e accedilotildees que
satildeo repudiados pelos legisladores Observamos que essas situaccedilotildees satildeo o mote para muitas das
colocaccedilotildees luciacircnicas Notemos por exemplo os deuses em suas apresentaccedilotildees
principalmente a imagem de Zeus o deus supremo do panteatildeo helecircnico
Nos Diaacutelogos dos deuses Zeus busca sua satisfaccedilatildeo pessoal que se resume em
satisfaccedilotildees sexuais O que eacute reprovado por exemplo por Prometeu ao se defender da acusaccedilatildeo
de ter criado as mulheres (Luciano Prom 17) ou ainda aquelas dirigidas por sua esposa a deusa
Hera que diz assim ldquoNatildeo procedes bem nem eacute decoroso para ti que sendo senhor de todos os
deuses me deixas aqui a mim tua legiacutetima esposa e dessas a terra para cometer adulteacuterio
disfarccedilado de ouro de saacutetiros de tourordquo (Luciano D Deor VIII 2)278 A esposa de Zeus
ironiza suas preocupaccedilotildees no diaacutelogo maior Zeus Traacutegico que analisamos no toacutepico anterior
ela afirma ldquoPois eu sei muito bem que o essencial do teu sofrimento eacute de natureza amorosa
E natildeo grito pois jaacute estou habituada jaacute fui muitas vezes ultrajada por ti nessa mateacuteriardquo (Luciano
277 ldquo[] ἀκούων Ὁμήρου καὶ Ἡσιόδου πολέμους καὶ στάσεις διηγουμένων οὐ μόνον τῶν ἡμιθέων ἀλλὰ καὶ αὐτῶν
ἤδη τῶν θεῶν ἔτι δὲ καὶ μοιχείας αὐτῶν καὶ βίας καὶ ἁρπαγὰς καὶ δίκας καὶ πατέρων ἐξελάσεις καὶ ἀδελφῶν
γάμους πάντα ταῦτα ἐνόμιζον εἶναι καλὰ καὶ οὐ παρέργως ἐκινούμην πρὸς αὐτά ἐπεὶ δὲ εἰς ἄνδρας τελεῖν
ἠρξάμην πάλιν αὖ ἐνταῦθα ἤκουον τῶν νόμων τἀναντία τοῖς ποιηταῖς κελευόντων μήτε μοιχεύειν μήτε
στασιάζειν μήτε ἁρπάζειν ἐν μεγάλῃ οὖν καθειστήκειν ἀμφιβολίᾳ οὐκ εἰδὼς ὅ τι χρησαίμην ἐμαυτῷ οὔτε γὰρ
ἄν ποτε τοὺς θεοὺς μοιχεῦσαι καὶ στασιάσαι πρὸς ἀλλήλους ἡγούμην εἰ μὴ ὡς περὶ καλῶν τούτων ἐγίγνωσκον
οὔτ ἂν τοὺς νομοθέτας τἀναντία παραινεῖν εἰ μὴ λυσιτελεῖν ὑπελάμβανονrdquo 278 ldquoΗΡΑ
Οὐδ ἐκεῖνα μὲν εὖ ποιεῖς οὐδὲ πρέποντα σεαυτῷ ὃς ἁπάντων θεῶν δεσπότης ὢν ἀπολιπὼν ἐμὲ τὴν νόμῳ γαμετὴν
ἐπὶ τὴν γῆν κάτει μοιχεύσων χρυσίον ἢ σάτυρος ἢ ταῦρος γενόμενοςrdquo
164
I Trag2)279 Na Assembleia dos deuses Momo em sua parreacutesia habitual mostra como as
relaccedilotildees de Zeus com as mortais ocorridas por meios de diversas metamorfoses aleacutem de serm
um problema eacutetico satildeo um problema poliacutetico jaacute que mudam a correlaccedilatildeo de forccedilas entre as
divindades Momo diz assim
De fato a origem de tais ilegalidades e a causa de a nossa assembleia andar
abastardada foste tu oacute Zeus quem tal coisa provocou por teres relaccedilotildees com
humanas descendo ateacute elas ora uma forma ora sob outra forma de tal modo
que noacutes receamos que algueacutem te apanhasse e te sacrificasse quando te
transformas em touro ou que algum ourives te derreta quando te transformas
em ouro e que entatildeo em vez de Zeus fiques feito um colar um bracelete ou
uns brincos (Luciano Deor Conc 7)280
Observamos por meio desses exemplos que as acusaccedilotildees nos diaacutelogos satildeo constantes
a essa postura No entanto Zeus natildeo se absteacutem de mudar a proacutepria ordem natural das coisas
para ter seus romances com mortais por exemplo no diaacutelogo XXV em que Hermes ordena em
nome de Zeus que Heacutelio o deus sol ldquonatildeo conduza hoje o teu carro nem amanhatilde nem depois
de amanhatilde mas fica em casa para que haja uma soacute noite muito longardquo (Luciano D deor XIV
1) 281
Nos Diaacutelogos dos deuses marinhos haacute outro exemplo da intervenccedilatildeo de Zeus nos
fenocircmenos fiacutesicos
Iacuteris282 mdash Oacute Poseidon aquela ilha errante que se separou da Siciacutelia e ainda
vagueia por sob as aacuteguas essa Zeus ordena-te que a faccedilas parar
imediatamente a tragas agrave superfiacutecie e faccedilas que ela bem visiacutevel em pleno mar
Egeu fique aiacute muito bem firme pois ele tem necessidade dessa ilha
Poseidon mdash Seraacute feita a sua vontade Iacuteris Mas que utilidade lhe proporcionaraacute
ela pelo facto de estar emersa e deixar de navegar
Iacuteris mdash Eacute que Leto283 deve ir dar agrave luz nessa ilha e ateacute jaacute estaacute com terriacuteveis
dores de parto
279 ldquoΗΡΑ
Οἶδα τὸ κεφάλαιον αὐτὸ ὧν πάσχεις ὅτι ἐρωτικόν ἐστιν οὐ μὴν κωκύω γε ὑπὸ ἔθους ἤδη πολλάκις ὑβρισθεῖσα
ὑπὸ σοῦ τὰ τοιαῦταrdquo 280 ldquo[] Τὴν γάρ τοι ἀρχὴν τῶν τοιούτων παρανομημάτων καὶ τὴν αἰτίαν τοῦ νοθευθῆναι ἡμῶν τὸ ξυνέδριον σύ
ὦ Ζεῦ παρέσχες θνηταῖς ἐπιμιγνύμενος καὶ κατιὼν παρ αὐτὰς ἐν ἄλλοτε ἄλλῳ σχήματι ὥστε ἡμᾶς δεδιέναι μή
σε καταθύσῃ τις ξυλλαβών ὁπόταν ταῦρος ᾖς ἢ τῶν χρυσοχόων τις κατεργάσηται χρυσὸν ὄντα καὶ ἀντὶ Διὸς ἢ
ὅρμος ἢ ψέλιον ἢ ἐλλόβιον ἡμῖν γένῃrdquo 281 ldquoΕΡΜΗΣ
Ὦ Ἥλιε μὴ ἐλάσῃς τήμερον ὁ Ζεύς φησι μηδὲ αὔριον μηδὲ εἰς τρίτην ἡμέραν ἀλλὰ ἔνδον μένε καὶ τὸ μεταξὺ
μία τις ἔστω νὺξ μακράrdquo 282 Iris eacute uma divindade mariacutetima simbolizada pelo arco-iacuteris Como Hermes tem a incumbecircncia de levar as
mensagens dos deuses (GRIMAL 2005 253-254) 283 Leto pertence agrave primeira geraccedilatildeo divina Quando estava graacutevida dos dois gecircmeos Hera enciumada havia
proibido que ela desse agrave luz em qualquer lugar do ceacuteu e da Terra Ela vagou por muitos cantos ateacute que deu agrave luz
em Delos uma ilha errante e esteacuteril que natildeo tinha nada a perder com a coacutelera de Hera Como precircmio ela ficou
165
Poseidon mdash O quecirc Entatildeo o ceacuteu natildeo bastante grande para ela aiacute dar agrave luz
Ou agrave falta deste natildeo pode toda a terra receber os filhos de Leto
Iacuteris mdash Natildeo Poseidon Na verdade Hera obrigou a Terra sob juramento
solene a natildeo dar hospitalidade a Leto em trabalhos de parto Ora estaacute ilha
estaacute fora do juramento pois natildeo era visiacutevel
Poseidon mdash Compreendo Oacute ilha emerge novamente do abismo e natildeo te
mexas daiacute mas permanece bem fixa e acolhe oacute bem-aventurada os dois filhos
de meu irmatildeo os mais formosos de entre os deuses E voacutes Tritotildees transportai
Leto a esta ilha e que o mar esteja calmo E quanto agrave serpente que a atormenta
e aterroriza logo que estes seus filhos nascerem atacaacute-la-atildeo e vingaratildeo a matildee
E tu Iacuteris vai anunciar a Zeus que estaacute tudo preparado Delos estaacute fixa Que
venha jaacute Leto e que decirc agrave luz (Luciano D mar X 1-2)284
Leto eacute uma das amantes de Zeus matildee de Apolo e Artecircmis Nesse diaacutelogo Iris leva uma
mensagem a Poseidon para que ele interfira na geografia do mar a fim de organizar um lugar
para que essa decirc a luz a seus filhos uma vez que Hera natildeo permitiria que isso ocorresse no
Olimpo Mais uma vez as relaccedilotildees extraconjugais desse fazem com que ele interfira em
elementos que natildeo poderia fazecirc-lo Tal relacionamento continua a gerar problemas como fica
evidenciado no diaacutelogo XVIII dos Diaacutelogos dos deuses travado entre Hera e Leto Hera a
esposa de Zeus contesta Leto uma amante com a qual ele teve dois importantes filhos Apolo
e Artecircmis
Em um diaacutelogo com Eros Zeus mostra-se bastante autoritaacuterio em suas conquistas
Trata-se de um elemento interessante para compreender essa caracteriacutestica tiracircnica do Zeus
luciacircnico que natildeo se preocupa com nada ao realizar uma conquista
fixa no mar e ganhou o nome de Delos brilhante (GRIMAL 2005 275) A narrativa citada no corpo da Tese natildeo
eacute encontrada em nenhuma outra fonte 284 ldquoΙΡΙΣ
Τὴν νῆσον τὴν πλανωμένην ὦ Πόσειδον ἣν ἀποσπασθεῖσαν τῆς Σικελίας ὕφαλον ἔτι νήχεσθαι συμβέβηκεν
ταύτην φησὶν ὁ Ζεύς στῆσον ἤδη καὶ ἀνάφηνον καὶ ποίησον ἤδη δῆλον ἐν τῷ Αἰγαίῳ μέσῳ βεβαίως μένειν
στηρίξας πάνυ ἀσφαλῶς δεῖται γάρ τι αὐτῆς
ΠΟΣΕΙΔΩΝ
Πεπράξεται ταῦτα ὦ Ἶρι τίνα δ ὅμως παρέξει τὴν χρείαν αὐτῷ ἀναφανεῖσα καὶ μηκέτι πλέουσα
ΙΡΙΣ
Τὴν Λητὼ ἐπ αὐτῆς δεῖ ἀποκυῆσαι ἤδη δὲ πονήρως ὑπὸ τῶν ὠδίνων ἔχει
ΠΟΣΕΙΔΩΝ
Τί οὖν οὐχ ἱκανὸς ὁ οὐρανὸς ἐντεκεῖν εἰ δὲ μὴ οὗτος ἀλλ ἥ γε γῆ πᾶσα οὐκ ἂν ὑποδέξασθαι δύναιτο τὰς γονὰς
αὐτῆς
ΙΡΙΣ
Οὔκ ὦ Πόσειδον ἡ Ἥρα γὰρ ὅρκῳ μεγάλῳ κατέλαβε τὴν γῆν μὴ παρασχεῖν τῇ Λητοῖ τῶν ὠδίνων ὑποδοχήν ἡ
τοίνυν νῆσος αὕτη ἀνώμοτός ἐστιν ἀφανὴς γὰρ ἦν
ΠΟΣΕΙΔΩΝ
Συνίημι στῆθι ὦ νῆσε καὶ ἀνάδυθι αὖθις ἐκ τοῦ βυθοῦ καὶ μηκέτι ὑποφέρου ἀλλὰ βεβαίως μένε καὶ ὑπόδεξαι
ὦ εὐδαιμονεστάτη τοῦ ἀδελφοῦ τὰ τέκνα δύο τοὺς καλλίστους τῶν θεῶν καὶ ὑμεῖς ὦ Τρίτωνες διαπορθμεύσατε
τὴν Λητὼ ἐς αὐτήν καὶ γαληνὰ ἅπαντα ἔστω τὸν δράκοντα δέ ὃς νῦν ἐξοιστρεῖ αὐτὴν φοβῶν τὰ νεογνὰ ἐπειδὰν
τεχθῇ αὐτίκα μέτεισι καὶ τιμωρήσει τῇ μητρί σὺ δὲ ἀπάγγελλε τῷ Διὶ ἅπαντα εἶναι εὐτρεπῆ ἕστηκεν ἡ Δῆλος
ἡκέτω ἡ Λητὼ ἤδη καὶ τικτέτωrdquo
166
Eros mdash Oacute Zeus se eu pequei nalguma coisa perdoa-me pois ainda sou uma
crianccedila insensata
Zeus mdash Tu Eros uma crianccedila Tu que eacutes muito mais velho que Jaacutepeto Laacute
porque natildeo tens barba nem cabelos brancos jaacute te julgas no direito de ser
considerado um bebecirc Tu que natildeo passas de um velho e de um velhaco
Eros mdash Entatildeo que grande mal eacute que eu te fiz eu um velho segundo dizes
para pensares em me pocircr a ferros
Zeus mdash Vecirc laacute bem meu tratante se eacute coisa de pouca monta teres feito pouco
de mim a ponto de natildeo haver figura por que natildeo me tenhas feito passar saacutetiro
touro ouro cisne aacuteguia Ora tu nunca por nunca fizeste que uma mulher se
apaixonasse por mim nem nunca me apercebi de graccedilas a ti ter sido
agradaacutevel a uma mulher mas pelo contraacuterio tive de servir-me de artes
maacutegicas e disfarccedilar-me Elas gostam muito de um touro ou de um cisne mas
se me vissem morreriam de medo
Eros mdash Eacute natural oacute Zeus pois elas mortais como satildeo natildeo suportam o teu
aspecto
Zeus mdash Entatildeo porque eacute que Branco e Jacinto amam Apolo
Eros mdash E no entanto Dafne fugia de Apolo apesar de ele ter uma cabeleira
e ser imberbe Ora se queres ser amado natildeo agites a eacutegide nem empunhes o
raio mas mostra-te o mais simpaacutetico possiacutevel e terno soacute de se ver usa
cabeleira encaracolada presos ao alto com uma mitra veste um manto de
puacuterpura umas sandaacutelias de ouro caminha ritmicamente ao som da flauta e de
pandeiros e veraacutes que vatildeo atraacutes de ti em nuacutemero maior que as Meacutenades de
Dioniso
Zeus mdash Vai-te daqui Natildeo admitiria ser amado agrave custa de me apresentar desta
forma
Eros mdash Nesse caso oacute Zeus natildeo queiras amar eacute mais faacutecil assim
Zeus mdash Oh natildeo Amar sim mas tambeacutem conseguir chegar junto delas sem
problemas Por estes dois favores deixo-te ir em paz (Luciano D deorVI
1-2)285
285 ldquoΕΡΩΣ
Ἀλλ εἰ καί τι ἥμαρτον ὦ Ζεῦ σύγγνωθί μοι παιδίον γάρ εἰμι καὶ ἔτι ἄφρων
ΖΕΥΣ
Σὺ παιδίον ὁ Ἔρως ὃς ἀρχαιότερος εἶ πολὺ Ἰαπετοῦ ἢ διότι μὴ πώγωνα μηδὲ πολιὰς ἔφυσας διὰ ταῦτα καὶ
βρέφος ἀξιοῖς νομίζεσθαι γέρων καὶ πανοῦργος ὤν
ΕΡΩΣ
Τί δαί σε μέγα ἠδίκησα ὁ γέρων ὡς φῂς ἐγώ διότι με καὶ πεδῆσαι διανοῇ
ΖΕΥΣ
Σκόπει ὦ κατάρατε εἰ μικρά ὃς ἐμοὶ μὲν οὕτως ἐντρυφᾷς ὥστε οὐδέν ἐστιν ὃ μὴ πεποίηκάς με σάτυρον ταῦρον
χρυσόν κύκνον ἀετόν ἐμοῦ δὲ ὅλως οὐδεμίαν ἥντινα ἐρασθῆναι πεποίηκας οὐδὲ συνῆκα ἡδὺς γυναικὶ διὰ σὲ
γεγενημένος ἀλλά με δεῖ μαγγανεύειν ἐπ αὐτὰς καὶ κρύπτειν ἐμαυτόν αἱ δὲ τὸν μὲν ταῦρον ἢ κύκνον φιλοῦσιν
ἐμὲ δὲ ἢν ἴδωσι τεθνᾶσιν ὑπὸ τοῦ δέους
ΕΡΩΣ
Εἰκότως οὐ γὰρ φέρουσιν ὦ Ζεῦ θνηταὶ οὖσαι τὴν σὴν πρόσοψιν
ΖΕΥΣ
Πῶς οὖν τὸν Ἀπόλλω ὁ Βράγχος καὶ ὁ Ὑάκινθος φιλοῦσιν
ΕΡΩΣ
Ἀλλὰ ἡ Δάφνη κἀκεῖνον ἔφευγε καίτοι κομήτην καὶ ἀγένειον ὄντα εἰ δ ἐθέλεις ἐπέραστος εἶναι μὴ ἐπίσειε τὴν
αἰγίδα μηδὲ τὸν κεραυνὸν φέρε ἀλλ ὡς ἥδιστον ποίει σεαυτὸν ἁπαλὸν ὀφθῆναι καθειμένος βοστρύχους τῇ
μίτρᾳ τούτους ἀνειλημμένος πορφυρίδα ἔχε ὑποδέου χρυσίδας ὑπ αὐλῷ καὶ τυμπάνοις εὔρυθμα βαῖνε καὶ ὄψει
ὅτι πλείους ἀκολουθήσουσί σοι τῶν Διονύσου Μαινάδων
ΖΕΥΣ
Ἄπαγε οὐκ ἂν δεξαίμην ἐπέραστος εἶναι τοιοῦτος γενόμενος
ΕΡΩΣ
Οὐκοῦν ὦ Ζεῦ μηδὲ ἐρᾶν θέλε ῥᾴδιον γὰρ τοῦτό γε
ΖΕΥΣ
167
Esse diaacutelogo eacute interessante pois completa o debate acerca da postura tiracircnica de Zeus
que natildeo se preocupa com o desejo das mulheres e para conquistaacute-las toma qualquer forma que
for necessaacuteria mas natildeo tem nenhuma preocupaccedilatildeo com a seduccedilatildeo
Em diversos momentos por exemplo com Prometeu ou com Heacutelio o Zeus luciacircnico se
mostra insensiacutevel diante dos sofrimentos como nos diaacutelogos V e XXIV ou ainda no diaacutelogo
entre Ganimedes e Zeus Ganimedes tinha sido sequestrado por Zeus ndash que havia se
metamorfoseado em uma aacuteguia ndash e pede para voltar para seu rebanho Ganimedes afirma que
sua famiacutelia sentira sua falta mas Zeus se mostra impassiacutevel agraves suas suacuteplicas (Luciano D deor
X 3) Ganimedes eacute um dos pouquiacutessimos personagens miacuteticos que transcendem a condiccedilatildeo
humana e vive entre os deuses Dessa forma Luciano faz com que o leitorouvinte ria de mais
um caso em que um humano se transformou em um deus
O Zeus luciacircnico se mostra desinteressado com o exerciacutecio de suas funccedilotildees
principalmente com a de aacuterbitro que lhe eacute atribuiacuteda tradicionalmente Podemos observar a
querela entre Heacuteracles e Ascleacutepio pelo melhor lugar no banquete em que o deus daacute o lugar para
Ascleacutepio simplesmente por ele ter chegado primeiro (Luciano D deor XV) Ou ainda no
Julgamento das deusas286 em que ele pede para Paris decidir qual eacute a deusa mais bela A cena
que antecede o chamado de Paris foi relatada nos Diaacutelogos dos deuses marinhos nos quais duas
nereidas contam
Pacircnope287 mdash Oacute Galene viste o que eacute que Eacuteris fez ontem na Tessaacutelia durante
o jantar pelo facto de natildeo ter sido convidada para o banquete
Galene mdash Natildeo estive presente no vosso banquete na verdade Pacircnope
Poseidon tinha-me ordenado que a essa hora cuidasse da tranquilidade do
mar Mas entatildeo que eacute que fez Eacuteris por natildeo ter sido convidada
Pacircnope mdash Teacutetis e Peleu288 jaacute se haviam retirado para os seus aposentos
acompanhados por Anfitrite e Poseidon quando Eacuteris passando despercebida
de todos (coisa faacutecil pois uns bebiam e outros aplaudiam ou estavam
atentos escutando Apolo a tocar ciacutetara ou as Musas a cantar) arremessou
Οὔκ ἀλλὰ ἐρᾶν μέν ἀπραγμονέστερον δὲ αὐτῶν ἐπιτυγχάνειν ἐπὶ τούτοις αὐτοῖς ἀφίημί σεrdquo 286 Trata-se de um diaacutelogo maior travado entre Zeus Hermes Hera Atena Afrodite e Paacuteris Ele conta uma ceacutelebre
narrativa que antecede a Guerra de Troia em que Paris tem de escolher qual eacute a mais bela das deusas para lhe
ofertar o pomo de Ouro dado por Eris a deusa da discoacuterdia Afrodite Atenas e Hera Cada deusa lhe oferece um
presente que se coaduna com suas funccedilotildees Afrodite lhe oferece o amor da mais bela das mulheres Atenas a
invencibilidade nas batalhas e Hera a soberania do mundo Paris escolhe o amor prometido por Afrodite e essa lhe
encaminha para Helena rainha de Esparta casada com Menelau Paris rouba a bela rainha tradicionalmente esse
eacute o fato que daacute iniacutecio a Guerra de Troia 287 Pacircnope Galene Anfitrite e Tetis satildeo nereidas divindades mariacutetimas filhas de Nereu e Doris netas de Oceano
Geralmente representam as inuacutemeras vagas do mar Anfitrite era a esposa de Poseidon o deus do mar e Tetis a
esposa de Peleu (GRIMAL 2005327-328) 288 Peleu era rei da Ftia na Tessaacutelia casado com a nereida Tetis eacute o pai do heroacutei Aquiles Prometeu em uma
profecia que analisamos no toacutepico anterior dizia que o filho de Tetis seria mais forte que o pai por esse motivo
Zeus decide casaacute-la com um mortal (GRIMAL 2005 360-361)
168
para o meio da sala uma maccedilatilde magniacutefica de oiro maciccedilo na qual estava uma
inscriccedilatildeo que dizia PARA A MAIS BELA A maccedilatilde foi rolando e como se
de propoacutesito foi parar ao siacutetio onde estavam reclinadas Hera Afrodite e
Atena Entatildeo Hermes apanhou a maccedilatilde e leu a inscriccedilatildeo e noacutes Nereidas
ficaacutemos muito caladinhas Sim que outra coisa poderiacuteamos noacutes fazer
perante aquelas grandes senhoras Cada uma delas reclamava que a maccedilatilde
lhe pertencia de direito e a discussatildeo teria chegado a vias de facto se Zeus
natildeo as tivesse apartado Entatildeo ele disse lsquoEu pessoalmente natildeo emitirei
juiacutezo sobre essa demanda (de facto elas queriam que fosse ele a julgar) mas
descei ateacute ao Ida ateacute junto do filho de Priacuteamo o qual apreciador como eacute
da beleza saberaacute sentenciar qual eacute mais bela e certamente natildeo vos julgaraacute
malrsquo (Luciano D mar V 1-2)289
Esse diaacutelogo eacute importante por colocar a passagem aludida no Julgamento das deusas
narrada por Nereidas que satildeo divindades menores com atuaccedilatildeo no mar filhas de Nereu que
colocam a cena da festa na casa de Teacutetis e Atreu em que a deusa Eacuteris da discoacuterdia natildeo foi
convidada Em meio agrave festa ela joga uma maccedilatilde de ouro entre trecircs deusas importantes (Hera
Atena e Afrodite) com a inscriccedilatildeo de que essa pertencia agrave deusa mais bela As Nereidas se
portam convenientemente agrave sua posiccedilatildeo subalterna afastando-se do debate para que Zeus
dirimisse o conflito como era sua funccedilatildeo Entretanto Zeus chama Hermes e ordena-lhe que ele
chame Paacuteris Cena semelhante ocorre no iniacutecio do Julgamento das deusas em que Zeus diz a
Hermes
Zeus - Oacute Hermes toma laacute estaacute maccedilatilde e vai agrave Friacutegia vai ter com o filho de
Priacuteamo o pastor que guarda no pico do Gaacutergaro no monte Ida e diz-lhe o
seguinte laquoPaacuteris Zeus ordena-te que visto seres formoso e entendido em
coisas de amor que julgues de entre as deusas qual delas eacute a mais bela e
que a vencedora receba esta maccedilatilde como preacutemio do concursoraquo Portanto eacute
tempo de vos dirigirdes junto do juiz Por mim nego-me a ser aacuterbitro pois
amo-vos por igual pelo que se fosse possiacutevel dar-me-ia o maior prazer ver-
vos todas vencedoras Aleacutem disso eacute fatal que aquele que atribuir o preacutemio de
beleza a uma fique odiado pelas outras Por isso eu natildeo sou o juiz adequado
289 ldquoΠΑΝΟΠΗ
Εἶδες ὦ Γαλήνη χθὲς οἷα ἐποίησεν ἡ Ἔρις παρὰ τὸ δεῖπνον ἐν Θετταλίᾳ διότι μὴ καὶ αὐτὴ ἐκλήθη εἰς τὸ
συμπόσιον
ΓΑΛΗΝΗ
Οὐ συνειστιώμην ὑμῖν ἔγωγε ὁ γὰρ Ποσειδῶν ἐκέλευσέ μέ ὦ Πανόπη ἀκύμαντον ἐν τοσούτῳ φυλάττειν τὸ
πέλαγος τί δ οὖν ἐποίησεν ἡ Ἔρις μὴ παροῦσα
ΠΑΝΟΠΗ
Ἡ Θέτις μὲν ἤδη καὶ ὁ Πηλεὺς ἀπεληλύθεσαν ἐς τὸν θάλαμον ὑπὸ τῆς Ἀμφιτρίτης καὶ τοῦ Ποσειδῶνος
παραπεμφθέντες ἡ Ἔρις δὲ ἐν τοσούτῳ λαθοῦσα πάντας ndash ἐδυνήθη δὲ ῥᾳδίως τῶν μὲν πινόντων ἐνίων δὲ
κροτούντων ἢ τῷ Ἀπόλλωνι κιθαρίζοντι ἢ ταῖς Μούσαις ᾀδούσαις προσεχόντων τὸν νοῦν ndash ἐνέβαλεν ἐς τὸ
συμπόσιον μῆλόν τι πάγκαλον χρυσοῦν ὅλον ὦ Γαλήνη ἐπεγέγραπτο δὲ ldquoἡ καλὴ λαβέτωrdquo κυλινδούμενον δὲ
τοῦτο ὥσπερ ἐξεπίτηδες ἧκεν ἔνθα Ἥρα τε καὶ Ἀφροδίτη καὶ Ἀθηνᾶ κατεκλίνοντο κἀπειδὴ ὁ Ἑρμῆς ἀνελόμενος
ἐπελέξατο τὰ γεγραμμένα αἱ μὲν Νηρεΐδες ἡμεῖς ἐσιωπήσαμεν τί γὰρ ἔδει ποιεῖν ἐκείνων παρουσῶν αἱ δὲ
ἀντεποιοῦντο ἑκάστη καὶ αὑτῆς εἶναι τὸ μῆλον ἠξίουν καὶ εἰ μή γε ὁ Ζεὺς διέστησεν αὐτάς καὶ ἄχρι χειρῶν ἂν
τὸ πρᾶγμα προὐχώρησεν ἀλλ ἐκεῖνος Αὐτὸς μὲν οὐ κρινῶ φησί περὶ τούτου ndash καίτοι ἐκεῖναι αὐτὸν δικάσαι
ἠξίουν ndash ἄπιτε δὲ ἐς τὴν Ἴδην παρὰ τὸν Πριάμου παῖδα ὃς οἶδέ τε διαγνῶναι τὸ κάλλιον φιλόκαλος ὤν καὶ οὐκ
ἂν ἐκεῖνος κρίναι κακῶςrdquo
169
ao vosso caso mas o jovem friacutegio que voacutes ides procurar eacute de famiacutelia real
parente aqui do Ganimedes e de resto muito simples e ruacutestico ningueacutem o
julgaria indigno de assistir a um tal espetaacuteculo (Luciano Dear jud 1)290
Zeus prefere natildeo ter o desgaste com as outras deusas mesmo sendo uma funccedilatildeo sua ser
dispensador da justiccedila ser o juiz supremo Ele natildeo se preocupa em dirimir os conflitos mas
com seu prazer pessoal Natildeo se volta para o bem comum como jaacute disse Prometeu em outra
passagem analisada anteriormente (Luciano Prom 12)
O deus supremo do panteatildeo helecircnico tambeacutem se mostra inacessiacutevel aos outros deuses
como por exemplo no diaacutelogo travado entre Hermes e Poseidon em que este quer ter uma
audiecircncia com Zeus e Hermes lhe diz que natildeo pode pois ele estaacute adoentado por ter dado agrave luz
Dioniso (Luciano D deor XII1)
Outro ponto importante eacute o medo que os deuses tecircm dele Nos Diaacutelogos dos deuses
podemos observar isso em dois diaacutelogos No diaacutelogo XXI travado entre Ares o deus da guerra
e Hermes temos o seguinte
Ares mdash Oacute Hermes ouviste as ameaccedilas que Zeus nos fez tatildeo arrogantes e tatildeo
disparatadas lsquoSe eu quiser mdash disse ele mdash deito uma corda caacute do ceacuteu e voacutes
todos pendurados nela esforccedilar-vos-eis por me arrastar aiacute para baixo mas
seraacute esforccedilo baldado natildeo me mandareis abaixo E se eu quisesse iccedilar-vos-
ia natildeo soacute a voacutes mas tambeacutem puxaria ao mesmo tempo a terra e o mar e
suspendecirc-los-ia no espaccedilorsquo E muitas outras coisas que tu tambeacutem ouviste
Por mim natildeo posso negar que ele seja superior e mais forte que cada um de
noacutes um por um mas que ele seja superior a todos noacutes juntos a ponto de natildeo o
vergarmos com o nosso peso mesmo que acrescentaacutessemos a terra e o mar
nisso eacute que eu jaacute natildeo posso acreditar
Hermes mdash Estaacute calado Ares pois natildeo eacute prudente falar dessas coisas natildeo se
decirc o caso de sermos castigados pela nossa tagarelice
Ares mdash Cuidas tu que eu tive esta conversa com toda a gente e natildeo apenas
contigo que eu bem sei que tens tento na liacutengua Ora eu natildeo podia deixar de
te contar uma ameaccedila que eu ouvi e que me pareceu sumamente ridiacutecula Na
verdade recordo-me de que natildeo haacute muito tempo quando Poseidon Hera e
Atena se revoltaram e conspiraram contra Zeus no sentido de prendecirc-lo e pocircr
a ferros ele ficou completamente aterrado e eram apenas trecircs e se Teacutetis
com pena dele natildeo tivesse chamado em seu socorro Briareu de cem braccedilos
teria mesmo ficado a ferros juntamente com o seu raio e o seu trovatildeo Ao
pensar neste episoacutedio desatei a rir da fanfarronice de Zeus
290 ldquoΖΕΥΣ
Ἑρμῆ λαβὼν τουτὶ τὸ μῆλον ἄπιθι εἰς τὴν Φρυγίαν παρὰ τὸν Πριάμου παῖδα τὸν βουκόλον ndash νέμει δὲ τῆς Ἴδης
ἐν τῷ Γαργάρῳ ndash καὶ λέγε πρὸς αὐτόν ὅτι ldquoΣέ ὦ Πάρι κελεύει ὁ Ζεύς ἐπειδὴ καλός τε αὐτὸς εἶ καὶ σοφὸς τὰ
ἐρωτικά δικάσαι ταῖς θεαῖς ἥτις αὐτῶν ἡ καλλίστη ἐστίν τοῦ δὲ ἀγῶνος τὸ ἆθλον ἡ νικῶσα λαβέτω τὸ μῆλονrdquo
ὥρα δὲ ἤδη καὶ ὑμῖν αὐταῖς ἀπιέναι παρὰ τὸν δικαστήν ἐγὼ γὰρ ἀπωθοῦμαι τὴν δίαιταν ἐπ ἴσης τε ὑμᾶς ἀγαπῶν
καὶ εἴ γε οἷόν τε ἦν ἡδέως ἂν ἁπάσας νενικηκυίας ἰδών ἄλλως τε καὶ ἀνάγκη μιᾷ τὸ καλλιστεῖον ἀποδόντα
πάντως ἀπεχθάνεσθαι ταῖς πλείοσιν διὰ ταῦτα αὐτὸς μὲν οὐκ ἐπιτήδειος ὑμῖν δικαστής ὁ δὲ νεανίας οὗτος ὁ Φρὺξ
ἐφ ὃν ἄπιτε βασιλικὸς μέν ἐστι καὶ Γανυμήδους τουτουὶ συγγενής τὰ ἄλλα δὲ ἀφελὴς καὶ ὄρειος κοὐκ ἄν τις
αὐτὸν ἀπαξιώσειε τοιαύτης θέαςrdquo
170
Hermes mdash Cala-te repito Natildeo eacute prudente nem para ti dizer tais coisas nem
para mim escutaacute-las (Luciano D deor XXI 1-2)291
Tais preocupaccedilotildees satildeo evidentes em um governo tiracircnico uma vez que o que caracteriza
as formas de governo que natildeo satildeo deturpadas para usar a sutileza aristoteacutelica eacute a possibilidade
da palavra franca da parreacutesia O espaccedilo tiracircnico se caracteriza justamente pela dificuldade em
expressar seus proacuteprios pensamentos pois isso pode lhe custar a vida ou a liberdade
O outro diaacutelogo em que haacute a exposiccedilatildeo de ressalvas ao governo tiracircnico de Zeus eacute
travado entre Hermes e Heacutelio citado anteriormente para falar da interferecircncia de Zeus na ordem
natural das coisas para satisfazer seus desejos Heacutelio afirma assim
Heacutelio mdash Pois entatildeo que ele meta matildeos agrave obra e boa sorte Mas essas accedilotildees
oacute Hermes (agora que ningueacutem nos ouve) natildeo aconteciam no reinado de
Cronos este nunca dormia fora do leito de Reia nem deixaria o ceacuteu para ir
dormir a Tebas mas o dia era o dia e a noite durava segundo a sua medida
de acordo com as estaccedilotildees natildeo acontecia nada de estranho ou de anormal e o
deus natildeo teria nunca tido relaccedilotildees com uma mulher mortal Agora poreacutem por
causa de miseraacutevel mulherzinha haacute que alterar tudo por completo os meus
cavalos satildeo obrigados a ficar presos de movimentos devido agrave inatividade e o
caminho sem ser pisado durante trecircs dias ficaraacute intransitaacutevel e os pobres
homens viveratildeo nas trevas Eacute isso que eles ganharatildeo com os amores de Zeus
esperando sentados e envolvidos em longa escuridatildeo ateacute que ele acabe de
fabricar o tal atleta de que tu falas
Hermes mdash Cala-te Heacutelio ainda assim natildeo te venha algum mal das tuas
palavras292
291 ldquoΑΡΗΣ
Ἤκουσας ὦ Ἑρμῆ οἷα ἠπείλησεν ἡμῖν ὁ Ζεύς ὡς ὑπεροπτικὰ καὶ ὡς ἀπίθανα Ἢν ἐθελήσω φησίν ἐγὼ μὲν ἐκ
τοῦ οὐρανοῦ σειρὰν καθήσω ὑμεῖς δὲ ἀποκρεμασθέντες κατασπᾶν βιάσεσθέ με ἀλλὰ μάτην πονήσετε οὐ γὰρ δὴ
καθελκύσετε εἰ δὲ ἐγὼ θελήσαιμι ἀνελκύσαι οὐ μόνον ὑμᾶς ἀλλὰ καὶ τὴν γῆν ἅμα καὶ τὴν θάλασσαν
συνανασπάσας μετεωριῶ καὶ τἆλλα ὅσα καὶ σὺ ἀκήκοας ἐγὼ δὲ ὅτι μὲν καθ ἕνα πάντων ἀμείνων καὶ ἰσχυρότερός
ἐστιν οὐκ ἂν ἀρνηθείην ὁμοῦ δὲ τῶν τοσούτων ὑπερφέρειν ὡς μὴ καταβαρήσειν αὐτόν ἢν καὶ τὴν γῆν καὶ τὴν
θάλασσαν προσλάβωμεν οὐκ ἂν πεισθείην
ΕΡΜΗΣ
Εὐφήμει ὦ Ἄρες οὐ γὰρ ἀσφαλὲς λέγειν τὰ τοιαῦτα μὴ καί τι κακὸν ἀπολαύσωμεν τῆς φλυαρίας
ΑΡΗΣ
Οἴει γάρ με πρὸς πάντας ἂν ταῦτα εἰπεῖν οὐχὶ δὲ πρὸς μόνον σέ ὃν ἐχεμυθήσειν ἠπιστάμην ὃ γοῦν μάλιστα
γελοῖον ἔδοξέ μοι ἀκούοντι μεταξὺ τῆς ἀπειλῆς οὐκ ἂν δυναίμην σιωπῆσαι πρὸς σέ μέμνημαι γὰρ οὐ πρὸ πολλοῦ
ὁπότε ὁ Ποσειδῶν καὶ ἡ Ἥρα καὶ ἡ Ἀθηνᾶ ἐπαναστάντες ἐπεβούλευον ξυνδῆσαι λαβόντες αὐτόν ὡς παντοῖος ἦν
δεδιώς καὶ ταῦτα τρεῖς ὄντας καὶ εἰ μή γε ἡ Θέτις κατελεήσασα ἐκάλεσεν αὐτῷ σύμμαχον Βριάρεων ἑκατόγχειρα
ὄντα κἂν ἐδέδετο αὐτῷ κεραυνῷ καὶ βροντῇ ταῦτα λογιζομένῳ ἐπῄει μοι γελᾶν ἐπὶ τῇ καλλιρρημοσύνῃ αὐτοῦ
ΕΡΜΗΣ
Σιώπα φημί οὐ γὰρ ἀσφαλὲς οὔτε σοὶ λέγειν οὔτ ἐμοὶ ἀκούειν τὰ τοιαῦταrdquo 292 ldquoΗΛΙΟΣ
Ἀλλὰ τελεσιουργείτω μὲν ἀγαθῇ τύχῃ ταῦτα δ οὖν ὦ Ἑρμῆ οὐκ ἐγίνετο ἐπὶ τοῦ Κρόνου ndash αὐτοὶ γὰρ ἡμεῖς
ἐσμεν ndash οὐδὲ ἀπόκοιτός ποτε ἐκεῖνος παρὰ τῆς Ῥέας ἦν οὐδὲ ἀπολιπὼν ἂν τὸν οὐρανὸν ἐν Θήβαις ἐκοιμᾶτο ἀλλὰ
ἡμέρα μὲν ἦν ἡ ἡμέρα νὺξ δὲ κατὰ μέτρον τὸ αὐτῆς ἀνάλογον ταῖς ὥραις ξένον δὲ ἢ παρηλλαγμένον οὐδέν οὐδ
ἂν ἐκοινώνησέ ποτε ἐκεῖνος θνητῇ γυναικί νῦν δὲ δυστήνου γυναίου ἕνεκα χρὴ ἀνεστράφθαι τὰ πάντα καὶ
ἀκαμπεστέρους μὲν γενέσθαι τοὺς ἵππους ὑπὸ τῆς ἀργίας δύσπορον δὲ τὴν ὁδὸν ἀτριβῆ μένουσαν τριῶν ἑξῆς
ἡμερῶν τοὺς δὲ ἀνθρώπους ἀθλίους ἐν σκοτεινῷ διαβιοῦν τοιαῦτα ἀπολαύσονται τῶν Διὸς ἐρώτων καὶ
καθεδοῦνται περιμένοντες ἔστ ἂν ἐκεῖνος ἀποτελέσῃ τὸν ἀθλητήν ὃν λέγεις ὑπὸ
μακρῷ τῷ ζόφῳ
171
A imagem de tirano se completa com a oposiccedilatildeo ao governante anterior como jaacute foi
enfatizado no toacutepico sobre Prometeu Luciano apresenta a referecircncia agrave monarquia governada
por Cronos que se oporia em essecircncia ao governo tiracircnico de Zeus ndash jaacute que o primeiro era
respeitoso com sua esposa e com a ordem natural ou seja com o bem comum enquanto Zeus
pensa exclusivamente em seus desejos individuais Observe-se que essa comparaccedilatildeo eacute feita
com cuidados visto que Heacutelio espera que ningueacutem os ouccedila pois sabe das puniccedilotildees que pode
sofrer
Em oposiccedilatildeo a Zeus Luciano traccedila uma imagem bastante distinta de Cronos Como
podemos observar no texto As Saturnais que versa justamente sobre essa festa as Saturnais293
Nesse diaacutelogo maior travado entre Cronos e um sacerdote haacute dois assuntos que nos interessam
Em primeiro lugar quando Cronos se diferencia de Zeus ao falar de seu reinado ele afirma que
ldquoeu natildeo te aterrorizarei com a minha eacutegide nem com o meu raiordquo (Luciano Sat 4)294
O outro aspecto que queremos ressaltar que se coaduna com a ideia de que Cronos
representa um poder legiacutetimo eacute a explicaccedilatildeo que esse fornece sobre a tradicional narrativa que
afirma que ele foi destronado por Zeus Mesmo chateado com a pergunta ele responde ao
Sacerdote da seguinte maneira
Sacerdote mdash Entatildeo em primeiro lugar o seguinte se eacute verdade o que
ouvimos dizer a teu respeito ou seja que tu devoraste os filhos de Reia e que
esta tendo surripiado Zeus deu-te dissimuladamente uma pedra em vez do
bebeacute e que este chegado agrave idade adulta depois de te vencer numa guerra te
expulsou do teu reino e em seguida te lanccedilou no Taacutertaro agrilhoando-te a ti e
a todos os aliados que tinham sido arregimentados por ti
Crono mdash Meu caro se natildeo estiveacutessemos em tempo de festa e natildeo fosse
permitido agraves pessoas embriagarem-se e ofenderem agrave vontade os seus senhores
ficarias a saber que eu posso muito bem irritar-me com o facto de tu me fazeres
essa pergunta sem respeito pelas minhas catildes e por uma velha divindade
Sacerdote mdash Mas eu oacute Crono natildeo afirmo isso vindo de mim mesmo mas eacute
Hesiacuteodo e Homero e ateacute receio dizer que quase todas as outras pessoas
acreditam nessa coisa a teu respeito
Crono mdash Entatildeo tu achas que esse pastor esse charlatatildeo sabe alguma coisa
de jeito sobre a minha pessoa Repara nisto Haveraacute algum homem (jaacute natildeo
digo algum deus) que tenha a coragem de devorar conscientemente os seus
ΕΡΜΗΣ
Σιώπα ὦ Ἥλιε μή τι κακὸν ἀπολαύσῃς τῶν λόγωνrdquo 293 Festa romana celebrada no solstiacutecio de inverno entre os dias 17 e 23 de dezembro era caracterizada pela alegria
No decorrer da festa fechavam-se as escolas e os tribunais podia-se jogar nas ruas paralisavam as guerras Os
senhores serviam os escravos em suas casas e trocavam presentes Nesta festa invocava-se a eacutepoca de ouro
governada por Saturno o Cronos dos gregos Bakhtin (2010 147) afirma que essa festa apresenta as caracteriacutesticas
de uma festividade carnavalesca principalmente por causa da inversatildeo da ordem o que eacute refutado por Gonccedilalves
(2009 3) pelo menos na apresentaccedilatildeo feita por Luciano desta festa uma vez que ela natildeo observa que existe uma
inversatildeo da ordem mas a criaccedilatildeo de outra ordem por isso as normatizaccedilotildees tratadas pelo texto luciacircnico 294 ldquoὡς ἐμοῦ πρὸς οὐδὲν δεδιξομένου σε τῇ αἰγίδι καὶ τῷ κεραυνῷrdquo
172
filhos a natildeo ser que qual outro Tiestes desse com um irmatildeo iacutempio E se
estivesse assim tatildeo louco como lhe passaria despercebido o facto de estar a
comer uma pedra em vez do menino a natildeo ser que tivesse os dentes
insensiacuteveis agrave dor Tambeacutem natildeo nos guerreaacutemos nem Zeus tomou o poder pela
forccedila mas pelo contraacuterio fui eu que abdiquei e lhe entreguei voluntariamente
E quanto ao facto de eu natildeo ter sido agrilhoado nem estar no Taacutertaro tu mesmo
o constatas creio eu se natildeo eacutes cego como Homero
Sacerdote mdash Mas entatildeo oacute Crono por que motivo abandonaste o poder
Crono mdash Vou explicar-te Em resumo por ser jaacute velho e sofrer de gota devido
agrave minha idade avanccedilada Por isso eacute que a maioria das pessoas imagina que eu
estou agrilhoado Na verdade jaacute natildeo tinha forccedila para afrontar a injusticcedila dos
tempos atuais pois tinha de estar constantemente a acorrer acima e abaixo de
raio em riste a fim de fulminar os perjuros os ladrotildees de templos os
violentos e entatildeo a coisa tornou-se muito trabalhosa e proacutepria de gente nova
Por isso abdiquei a favor de Zeus e fiz eu muito bem Aleacutem disso tive por
bem dividir o poder pelos meus filhos enquanto eu ando a maior parte das
vezes calmamente em festins sem me preocupar com os suplicantes sem ser
incomodado por pessoas que solicitam graccedilas desencontradas sem trovejar
sem relampejar sem ser algumas vezes obrigado a mandar granizo Pelo
contraacuterio levo esta agradabiliacutessima vida de velho bebendo o neacutectar
tagarelando com Jaacutepeto e os outros da minha idade enquanto Zeus eacute que
governa assoberbado de mil preocupaccedilotildees No entanto decidi tirar para mim
estes poucos dias nas condiccedilotildees que referi e retomar o poder a fim de
recordar aos homens como era a vida durante o meu reinado em que todos os
produtos sem serem semeados nem lavrados nasciam espontaneamente natildeo
na forma de espigas mas como patildees jaacute prontos e a carne jaacute vinha cozinhada
e o vinho corria como autecircnticos rios e as fontes eram de mel e de leite Todos
os homens eram bons e feitos de ouro Eis a razatildeo deste meu efeacutemero reinado
e por isso se assiste por todo o lado a algazarra cantos jogos e igualdade para
todos escravos ou homens livres De facto durante o meu reinado ningueacutem
era escravo (Luciano Sat 5-7)295
295 ldquoΙΕΡΕΥΣ
Τὸ μὲν πρῶτον ἐκεῖνο εἰ ἀληθῆ ταῦτά ἐστιν ἃ περὶ σοῦ ἀκούομεν ὡς κατήσθιες τὰ γεννώμενα ὑπὸ τῆς Ῥέας
ἐκείνη δὲ ὑφελομένη τὸν Δία λίθον ὑποβαλλομένη ἀντὶ τοῦ βρέφους ἔδωκέ σοι καταπιεῖν ὁ δὲ εἰς ἡλικίαν
ἀφικόμενος ἐξήλασέ σε τῆς ἀρχῆς πολέμῳ κρατήσας εἶτα ἐς τὸν Τάρταρον φέρων ἐνέβαλε πεδήσας αὐτόν τε καὶ
τὸ συμμαχικὸν ἅπαν ὁπόσον μετὰ σοῦ παρετάττετο
ΚΡΟΝΟΣ
Εἰ μὴ ἑορτήν ὦ οὗτος ἤγομεν καὶ μεθύειν ἐφεῖτο καὶ λοιδορεῖσθαι τοῖς δεσπόταις ἐπ
ἐξουσίας ἔγνως ἂν ὡς ὀργίζεσθαι γοῦν ἐφεῖταί μοι τοιαῦτα ἐρωτήσας οὐκ αἰδεσθεὶς πολιὸν οὕτω καὶ πρεσβύτην
θεόν
ΙΕΡΕΥΣ
Κἀγὼ ταῦτα ὦ Κρόνε οὐ παρ ἐμαυτοῦ φημι ἀλλ Ἡσίοδος καὶ Ὅμηρος ὀκνῶ γὰρ λέγειν ὅτι καὶ οἱ ἄλλοι
ἅπαντες ἄνθρωποι σχεδὸν ταῦτα πεπιστεύκασι περὶ σοῦ
ΚΡΟΝΟΣ
Οἴει γὰρ τὸν ποιμένα ἐκεῖνον τὸν ἀλαζόνα ὑγιές τι περὶ ἐμοῦ εἰδέναι σκόπει δὲ οὕτως ἔσθ ὅστις ἄνθρωπος (οὐ
γὰρ θεὸν ἐρῶ) ὑπομείνειεν ἂν ἑκὼν αὐτὸς καταφαγεῖν τὰ τέκνα εἰ μή τις Θυέστης ὢν ἀσεβεῖ ἀδελφῷ περιπεσὼν
ἤσθιε καὶ εἰ τοῦτο μανείη πῶς ἀγνοήσει λίθον ἀντὶ βρέφους ἐσθίων εἰ μὴ ἀνάλγητος εἴη τοὺς ὀδόντας ἀλλ οὔτε
ἐπολεμήσαμεν οὔτε ὁ Ζεὺς βίᾳ τὴν ἀρχὴν ἑκόντος δέ μου παραδόντος αὐτῷ καὶ ὑπεκστάντος ἄρχει ὅτι μὲν γὰρ
οὔτε πεπέδημαι οὔτε ἐν τῷ Ταρτάρῳ εἰμί καὶ αὐτὸς ὁρᾷς οἶμαι εἰ μὴ τυφλὸς ὥσπερ Ὅμηρος εἶ
ΙΕΡΕΥΣ
Τί παθὼν δέ ὦ Κρόνε ἀφῆκας τὴν ἀρχήν
ΚΡΟΝΟΣ
Ἐγώ σοι φράσω τὸ μὲν ὅλον γέρων ἤδη καὶ ποδαγρὸς ὑπὸ τοῦ χρόνου ὤν διὸ καὶ πεπεδῆσθαί με οἱ πολλοὶ
εἴκασαν οὐ γὰρ ἠδυνάμην διαρκεῖν πρὸς οὕτω πολλὴν τὴν ἀδικίαν τῶν νῦν ἀλλ ἀεὶ ἀναθεῖν ἔδει ἄνω καὶ κάτω
τὸν κεραυνὸν διηρμένον τοὺς ἐπιόρκους ἢ ἱεροσύλους ἢ βιαίους καταφλέγοντα καὶ τὸ πρᾶγμα πάνυ ἐργῶδες ἦν
καὶ νεανικόν ἐξέστην οὖν εὖ ποιῶν τῷ Διί καὶ ἄλλως δὲ καλῶς ἔχειν ἐδόκει μοι διανείμαντα τοῖς παισὶν οὖσι τὴν
173
Essa longa citaccedilatildeo eacute relevante pois confirma o argumento que se consolidou no decorrer
deste capiacutetulo que eacute da oposiccedilatildeo entre Zeus e Cronos Podemos dizer que Luciano recupera a
imagem de Cronos mas resta-nos indagar qual a intencionalidade que estaacute por traacutes disso A
nosso ver reforccedilar a oposiccedilatildeo entre duas formas distintas de governo uma vez que as Saturnais
jaacute representam uma eacutepoca de ouro de alegria e diversatildeo em que ningueacutem era escravo de
ningueacutem
O Cronos luciacircnico desmente a tradiccedilatildeo que dizia que ele comia os proacuteprios filhos
Cronos abandona o poder pela idade fato que natildeo tem correspondecircncia na vida poliacutetica romana
mas que aparece como uma possibilidade de futuro uma forma utoacutepica de sistema de sucessatildeo
No entanto Cronos deixa evidente suas criacuteticas agrave sociedade atual uma vez que natildeo tinha forccedilas
para enfrentar as injusticcedilas atuais
Tendo em vista as diversas imagens de Zeus presentes nos diaacutelogos luciacircnicos
passamos para mais um assunto que eacute fundamental os limites de atuaccedilatildeo das divindades na
vida dos homens No longo diaacutelogo Timon ou o misantropo ndash que tem como tema principal o
papel da riqueza na vida dos homens e de como essa atrairia diversos ldquoamigosrdquo interessados
nas benesses que os tesouros podem trazer-lhes ndash temos que Timon havia sido muito rico e
perdeu todos os seus bens ao ajudar todos que lhe pediam Ele inicia o diaacutelogo com um longo
discurso em que acusa os deuses de negligecircncia uma vez que ele sempre foi um excelente
devoto atento a todos os seus deveres religiosos enquanto muitas pessoas que cometiam atos
de impiedade contra os deuses natildeo eram punidos por seu raio Quando Hermes narra a Zeus a
trajetoacuteria de Timon esse se compadece e lhe envia o mensageiro dos deuses juntamente com
Pluto296 e seu Tesouro para que ele voltasse a ser rico Novamente abastado Timon jaacute natildeo aceita
a bajulaccedilatildeo daqueles que na desgraccedila lhe haviam virado agraves costas Luciano movimenta sua pena
no intuito de colocar mais uma vez a criacutetica aos ricos de seu tempo mesmo que o tempo do
diaacutelogo seja a Atenas democraacutetica
ἀρχὴν αὐτὸν εὐωχεῖσθαι τὰ πολλὰ ἐφ ἡσυχίας οὔτε τοῖς εὐχομένοις χρηματίζοντα οὔτε ὑπὸ τῶν τἀναντία
αἰτούντων ἐνοχλούμενον οὔτε βροντῶντα ἢ ἀστράπτοντα ἢ χάλαζαν ἐνίοτε βάλλειν ἀναγκαζόμενον ἀλλὰ
πρεσβυτικόν τινα τοῦτον ἥδιστον βίον διάγω ζωρότερον πίνων τὸ νέκταρ τῷ Ἰαπετῷ καὶ τοῖς ἄλλοις τοῖς
ἡλικιώταις προσμυθολογῶν ὁ δὲ ἄρχει μυρία ἔχων πράγματα πλὴν ὀλίγας ταύτας ἡμέρας ἐφ οἷς εἶπον
ὑπεξελέσθαι μοι ἔδοξε καὶ ἀναλαμβάνω τὴν ἀρχήν ὡς ὑπομνήσαιμι τοὺς ἀνθρώπους οἷος ἦν ὁ ἐπ ἐμοῦ βίος
ὁπότε ἄσπορα καὶ ἀνήροτα πάντα ἐφύετο αὐτοῖς οὐ στάχυες ἀλλ ἕτοιμος ἄρτος καὶ κρέα ἐσκευασμένα καὶ ὁ
οἶνος ἔρρει ποταμηδὸν καὶ πηγαὶ μέλιτος καὶ γάλακτος ἀγαθοὶ γὰρ ἦσαν καὶ χρυσοῖ ἅπαντες αὕτη μοι ἡ αἰτία τῆς
ὀλιγοχρονίου ταύτης δυναστείας καὶ διὰ τοῦτο ἁπανταχοῦ κρότος καὶ ᾠδὴ καὶ παιδιὰ καὶ ἰσοτιμία πᾶσι καὶ
δούλοις καὶ ἐλευθέροις οὐδεὶς γὰρ ἐπ ἐμοῦ δοῦλος ἦνrdquo 296 Personificaccedilatildeo da riqueza caracterizada como cega
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Em nossa anaacutelise natildeo interessa o debate acerca da riqueza e da pobreza que poderaacute ser
retomado agrave medida que esse nos forneccedila elementos para a compreensatildeo da imagem que Zeus
o maior dos deuses oliacutempicos apresenta em alguns diaacutelogos luciacircnicos Timon invoca o deus
de maneira bastante irocircnica
Timon ndash Oacute Zeus protetor dos amigos do hospedes e dos companheiros
lanccedilador de raios guardiatildeo dos juramentos ajuntador de nuvens tonante ou
qualquer outro nome que atribuam os poetas que perderam o juiacutezo com teu
reio ndash principalmente quando se veem em dificuldades meacutetricas pois nesse
caso ao tomares muacuteltiplos nomes sustenta o fecho do metro e preenches o
vazio do ritmo - onde estatildeo agora o teu claratildeo estrondoso o teu trovatildeo
reboante e o teu raio ardente brilhante e aterrador Sim tudo isso se revelou
afinal uma balela e fumo puramente poeacutetico para aleacutem do fragor das palavras
Essa tua arma tatildeo celebrada de tatildeo longo alcance e sempre agrave matildeo natildeo sei laacute
como extinguiu-se por completo ficou fria natildeo conservava sequer uma
centelha de coacutelera contra os malfeitores (Luciano Tim 1)297
Timon ao invocar o pai dos deuses comeccedila da maneira usual elogiando a divindade
com os epiacutetetos que a distinguem Entretanto o siacuterio se coloca em um lugar fora da construccedilatildeo
mimeacutetica e procura em seu texto inverter a colocaccedilatildeo Os famosos epiacutetetos presentes na
tradiccedilatildeo desde os poemas homeacutericos e hesioacutedicos natildeo satildeo nada aleacutem de recursos estiliacutesticos
utilizados pelos escritores a fim de compor o verso exato
Ao desvendar os recursos estiliacutesticos dos poetas o samosatense suspende a sacralidade
desses cujo poder invocatoacuterio passa a ser o instrumento vazio da construccedilatildeo verbal do poeta
Assim os poderes do grande deus satildeo questionados uma vez que a simples observaccedilatildeo
cotidiana tem revelado que os homens piedosos natildeo satildeo olhados pelos deuses e que aqueles que
cometem perjuacuterios natildeo satildeo punidos pela deidade Assim tanto poder natildeo passa de construccedilatildeo
poeacutetica
O raio de Zeus seu principal atributo e arma eacute indagado jaacute que ldquouma pessoa que
preparasse para cometer perjuacuterio mais facilmente temeria um pavio de veacutespera do que a chama
do raio omnipotenterdquo (Luciano Tim 2)298 O ataque do maior dos deuses apenas sujaria de
fuligem aqueles que ele atacasse Nesse tom Timon continua seu discurso
297 ldquoΤΙΜΩΝ
Ὦ Ζεῦ φίλιε καὶ ξένιε καὶ ἑταιρεῖε καὶ ἐφέστιε καὶ ἀστεροπητὰ καὶ ὅρκιε καὶ νεφεληγερέτα καὶ ἐρίγδουπε καὶ εἴ
τί σε ἄλλο οἱ ἐμβρόντητοι ποιηταὶ καλοῦσι ndash καὶ μάλιστα ὅταν ἀπορῶσι πρὸς τὰ μέτρα τότε γὰρ αὐτοῖς
πολυώνυμος γενόμενος ὑπερείδεις τὸ πῖπτον τοῦ μέτρου καὶ ἀναπληροῖς τὸ κεχηνὸς τοῦ ῥυθμοῦ ndash ποῦ σοι νῦν ἡ
ἐρισμάραγος ἀστραπὴ καὶ ἡ βαρύβρομος βροντὴ καὶ ὁ αἰθαλόεις καὶ ἀργήεις καὶ σμερδαλέος κεραυνός ἅπαντα
γὰρ ταῦτα λῆρος ἤδη ἀναπέφηνε καὶ καπνὸς ἀτεχνῶς ποιητικὸς ἔξω τοῦ πατάγου τῶν ὀνομάτων τὸ δὲ ἀοίδιμόν
σοι καὶ ἑκηβόλον ὅπλον καὶ πρόχειρον οὐκ οἶδ ὅπως τελέως ἀπέσβη καὶ ψυχρόν ἐστι μηδὲ ὀλίγον σπινθῆρα
ὀργῆς κατὰ τῶν ἀδικούντων διαφυλάττονrdquo 298 ldquoθᾶττον γοῦν τῶν ἐπιορκεῖν τις ἐπιχειρούντων ἕωλον θρυαλλίδα φοβηθείη ἂν ἢ τὴν τοῦ πανδαμάτορος
κεραυνοῦ φλόγαrdquo
175
Em seguida a personagem se lembra de Salmoneu que tentou imitar o trovatildeo de Zeus
Timon apenas faz alusatildeo agravequele que havia construiacutedo uma estrada pavimentada de bronze ou
de ferro e arrastado correntes atraacutes dele Pretendia se assemelhar a Zeus mimetizando o raio e
o trovatildeo Zeus puniu esse ato de impiedade fulminando-o (GRIMAL 2005 412) Como o mito
eacute de conhecimento da maioria dos possiacuteveis ouvintes eou leitores do diaacutelogo o escritor natildeo
apresenta mais que uma raacutepida alusatildeo agrave ambiccedilatildeo presente no mito No caso o mais importante
para a continuaccedilatildeo desse diaacutelogo eacute que ele foi punido com o raio de Zeus
Timon argumenta que em sua atualidade o deus natildeo punia as pessoas com essa
severidade por isso profanar os templos natildeo era um problema Timon dirige-se a Zeus dizendo
ldquoestaacutes adormecido como sob o efeito da mandraacutegora299rdquo (Luciano Tim 2) 300 O deus jaacute natildeo
ouve nem vecirc bem Estaacute remeloso tem a vista curta e os ouvidos moucos ou seja tem os sentidos
de um velho (Luciano Tim 2)
Suas atitudes se diferenciam daquelas tomadas em sua juventude na qual os crimes de
perjuacuterio eram punidos com severidade uma vez que ldquoquando eras ainda jovem irasciacutevel e no
maacuteximo de tua coacutelera aplicavas grandes castigos agraves pessoas injustas e violentas e nunca lhes
davas treacuteguasrdquo (Luciano Tim 3)301 Timon ainda evoca outra narrativa miacutetica disponiacutevel os
infortuacutenios vividos por Decaliatildeo302 fazendo referecircncia ao diluacutevio que quase destruiu a raccedila
humana
Timon enfatiza a negligecircncia natildeo somente de Zeus mas de todos os deuses em relaccedilatildeo
aos assuntos humanos Timon afirma o seguinte ldquoPortanto estaacutes a colher da parte dos homens
o fruto proveniente de tua negligecircncia pois jaacute ningueacutem te oferece sacrifiacutecios nem te coroardquo
(Luciano Tim 4)303 Segundo Timon seguindo esse caminho Zeus se tornaraacute outro Crono
esquecido e ldquoexcluiacutedo de honrariasrdquo (ldquoπαρωσάμενοι τῆς τιμῆςrdquo) (Luciano Tim 4)
Esses atos colocariam Zeus em uma situaccedilatildeo complicada uma vez que seus templos satildeo
assaltados e ele natildeo faz nada Ele cita o caso do templo de Oliacutempia cuja estaacutetua de Zeus eacute
299 Planta da famiacutelia das solanaceae tem efeitos alucinoacutegenos e analgeacutesica muito utilizada na magia de origem
greco-romana 300 ldquoπῶς γὰρ ltοὐgt ὅπου γε καθάπερ ὑπὸ μανδραγόρᾳ καθεύδεις []rdquo 301 ldquoἐπεὶ νέος γε ἔτι καὶ ὀξύθυμος ὢν καὶ ἀκμαῖος τὴν ὀργὴν πολλὰ κατὰ τῶν ἀδίκων καὶ βιαίων ἐποίεις καὶ
οὐδέποτε ἦγες τότε πρὸς αὐτοὺς ἐκεχειρίαν []rdquo 302 Filho de Prometeu escolhido por Zeus para consevar a raccedila humana quando no periacuteodo do Bronze ele resolve
enviar um grande diluacutevio e matar quase todos os homens e mulheres Aconselhado pelo Titatilde ele teria construiacutedo
uma arca que vagou por nove dias No opuacutesculo Sobre a deusa siacuteria Luciano eacute o uacutenico autor antigo grego que
afirma que Deucaliatildeo levou consigo um casal de cada animal existente (Luciano Syr Dea 12) o que
provavelmente eacute uma reminicecircncia de uma memoacuteria mesopotacircmia muito antiga uma vez que essa ideia tambeacutem
se encontra na narrativa judaica do Gecircnese 303 ldquo Τοιγάρτοι ἀκόλουθα τῆς ῥᾳθυμίας τἀπίχειρα κομίζῃ παρ αὐτῶν οὔτε θύοντος ἔτι σοί τινος οὔτε
στεφανοῦντος []rdquo
176
considerada uma das sete maravilhas do mundo antigo ldquoE jaacute nem falo das muitas vezes em
que saquearam o teu templo alguns puseram mesmo as matildeos sobre ti em Oliacutempia e tu o
lsquoaltitonantersquo nem sequer te dignaste despertar os catildees ou chamar os vizinhosrdquo (Luciano Tim
4)304 Luciano ressalta a imobilidade da divindade que mesmo diante de uma ofensa a ela
mesma natildeo age
Ele continua utilizando-se ironicamente de mais alguns epiacutetetos para falar do roubo
das cabeleiras de ouro de sua estaacutetua em Oliacutempia ldquoTu o valentatildeo o lsquoExterminador de
Gigantesrsquo o lsquoVencedor dos Titatildesrsquo ficaste ali plantado e deixando que te raspassem os cabelos
mesmo segurando tu na matildeo direita um raio de dez cocircvadosrdquo (Luciano Tim 4)305
Essa imagem natildeo representa a estaacutetua de Zeus que estava no templo de Oliacutempia uma
vez que essa trazia na matildeo esquerda a deusa Nike (Vitoacuteria) e na direita uma aacuteguia Logo trata-
se de um recurso retoacuterico que fala mais da representaccedilatildeo luciacircnica de Zeus no que tange ao
seu poder enquanto pai dos deuses Provavelmente Luciano natildeo conhecia o Templo de Zeus
em Oliacutempia
Outro ponto interessante eacute a retomada de epiacutetetos que remetem a vitoacuterias passadas o
que era algo comum entre os governantes de seu tempo Para ilustrar esse aspecto podemos
recorrer a Dion Caacutessio que nos conta que o Imperador Cocircmodo mandava suas mensagens ao
Senado Romano assim
O Imperador Ceacutesar Luacutecio Eacutelio Aureacutelio Cocircmodo Augusto Pio Feliz
Sarmaacutetico Germacircnico Maacuteximo Britacircnico Pacificador de toda a terra
Invenciacutevel o Heacutercules Romano Pontiacutefice Maacuteximo Tribuno por 18 vezes
Imperador por 8 vezes Cocircnsul por 7 vezes Pai da Paacutetria para os cocircnsules
pretores tribunos e para o afortunado Senado de Cocircmodo Saudaccedilotildees (Dion
Caacutessio Histoacuteria romana LXXII 15)306
Essa citaccedilatildeo serve para explanar o uso no periacuteodo de Luciano desses epiacutetetos como siacutembolo de
poder Cocircmodo era o conquistador dos Saacutermatas dos Germacircnicos e da Britacircnia Como Zeus ele era
invenciacutevel Dessa forma a maneira irocircnica com a qual Luciano utiliza os tiacutetulos do pai dos deuses
reinventa a imagem presente na tradiccedilatildeo helecircnica
304 ldquoἐῶ λέγειν ποσάκις ἤδη σου τὸν νεὼν σεσυλήκασιν οἱ δὲ καὶ αὐτῷ σοὶ τὰς χεῖρας Ὀλυμπίασιν ἐπιβεβλήκασι
καὶ σὺ ὁ ὑψιβρεμέτης ὤκνησας ἢ ἀναστῆσαι τοὺς κύνας ἢ τοὺς γείτονας ἐπικαλέσασθαι []rdquo 305 ldquoἀλλ ὁ γενναῖος καὶ Γιγαντολέτωρ καὶ Τιτανοκράτωρ ἐκάθησο τοὺς πλοκάμους περικειρόμενος ὑπ αὐτῶν
δεκάπηχυν κεραυνὸν ἔχων ἐν τῇ δεξιᾷrdquo 306 laquo αὐτοκράτωρ Καῖσαρ Λούκιος Αἴλιος Αὐρήλιος Κόμμοδος Αὔγουστος εὐσεβὴς εὐτυχής Σαρματικὸς
Γερμανικὸς μέγιστος Βρεττανικός εἰρηνοποιὸς τῆς οἰκουμένης εὐτυχὴς ἀνίκητος Ῥωμαῖος Ἡρακλῆς
ἀρχιερεύς δημαρχικῆς ἐξουσίας τὸ ὀκτωκαιδέκατον αὐτοκράτωρ τὸ ὄγδοον ὕπατος τὸ ἕβδομον πατὴρ πατρίδος
ὑπάτοις στρατηγοῖς δημάρχοις γερουσίᾳ Κομμοδιανῇ εὐτυχεῖ χαίρειν raquo
177
Nesse caso Zeus vecirc que Timon sempre justo e generoso estaacute pobre e sozinho reclamando dos
deuses que o esqueceram Envia-lhe Hermes com Pluto e o Tesouro a fim de fazer-lhe um homem rico
No final do diaacutelogo novamente rico Timon natildeo aceita mais os bajuladores e os falsos amigos Nesse
diaacutelogo a criacutetica social se sobressai agrave imagem do deus tiracircnico pois a intenccedilatildeo eacute mostrar as reviravoltas
da vida e o aprendizado que a pobreza fornece daiacute esse Zeus natildeo se contradizer agrave imagem traccedilada por
Luciano mas reafirmar jaacute que se distanciou do mundo dos homens por conta dos infindaacuteveis debates
filosoacuteficos e das muitas accedilotildees de perjuacuterio Como ele mesmo diz ldquoTodavia por falta de vagar e pelo
tumulto que provocam os perjuros os violentos e os ladrotildees e ainda por cima com receio dos
saqueadores de templos () haacute muito tempo que nem sequer olho para a Aacutetica sobretudo desde que a
filosofia e as disputas verbais imperaram entre os ateniensesrdquo (Luciano Tim 9)307
Para concluir essa anaacutelise sobre Zeus gostariacuteamos de retomar o diaacutelogo maior Zeus Refutado
cujo tema eacute a presenccedila do destino na vida humana Zeus eacute questionado pelo filoacutesofo ciacutenico Ciniacutesco sobre
as Parcas que tecem o destino de todos os homens e forjam os oraacuteculos Zeus eacute obrigado a afirmar que
ldquoNatildeo haacute nada que as Parcas natildeo tenham determinado mas pelo contraacuterio tudo quanto acontece eacute
enrolado pela sua roca e cada acontecimento tem o desfecho que lhe foi ficado logo desde o princiacutepio
e natildeo eacute possiacutevel acontecer de outra maneirardquo (Luciano I Conf 1)308
O ardiloso filoacutesofo questiona se os deuses tambeacutem estatildeo sob domiacutenio das Parcas o que eacute
respondido com uma afirmativa (Luciano I Conf 3) Tal argumento chega agrave conclusatildeo que fazer
sacrifiacutecios e cultuar os deuses eacute desnecessaacuterio e natildeo influi na vida das pessoas
A nosso entender o Zeus luciacircnico representa duas criacuteticas importantes agrave realidade que o
escritor vive De um lado ele representa o tirano tal como mostram os manuais poliacuteticos e muito
provavelmente sob a orientaccedilatildeo aristoteacutelica e em segundo lugar os limites de accedilatildeo dessa divindade que
natildeo controla tudo
Haacute uma anaacutelise das instituiccedilotildees poliacuteticas de seu tempo Os homens do seacuteculo II natildeo tinham outro
horizonte poliacutetico natildeo havia qualquer expectativa de mudanccedila Assim era fundamental refletir sobre
como natildeo se tornar um mau governante ndash que relembrasse os tiranos de outrora ndash uma vez que natildeo era
possiacutevel evitar o Imperador
307 ldquoπλὴν ὑπ ἀσχολίας τε καὶ θορύβου πολλοῦ τῶν ἐπιορκούντων καὶ βιαζομένων καὶ ἁρπαζόντων ἔτι δὲ καὶ
φόβου τοῦ παρὰ τῶν ἱεροσυλούντων [] πολὺν ἤδη χρόνον οὐδὲ ἀπέβλεψα ἐς τὴν Ἀττικήν καὶ μάλιστα ἐξ οὗ
φιλοσοφία καὶ λόγων ἔριδες ἐπεπόλασαν αὐτοῖςrdquo 308 ldquo[] οὐδὲν γάρ ἐστιν ὅ τι μὴ αἱ Μοῖραι διατάττουσιν ἀλλὰ πάντα ὁπόσα γίνεται ὑπὸ τῷ τούτων ἀτράκτῳ
στρεφόμενα εὐθὺς ἐξ ἀρχῆς ἕκαστον ἐπικεκλωσμένην ἔχει τὴν ἀπόβασιν καὶ οὐ θέμις ἄλλως γενέσθαιrdquo
178
Consideraccedilotildees finais
Luciano de Samoacutesata foi um dos inteacuterpretes do Impeacuterio Greco-Romano Sua prosa
documenta a postura de um intelectual desde que esse conceito se restrinja agravequele indiviacuteduo
que conhece e se relaciona com a tradiccedilatildeo literaacuteria profundamente ligado agraves atividades
culturais de seu tempo Nossa leitura do texto luciacircnico visou mostrar como esse escritor
expressa a difiacutecil relaccedilatildeo dos povos submetidos com o Impeacuterio Deliberadamente fugimos das
dicotomias empobrecedoras que fixavam uma postura ou contra ou a favor O siacuterio eacute um criacutetico
do Impeacuterio um produtor de sentido que tenta interpretar a realidade em que vive Seus textos
expressam essa realidade na contradiccedilatildeo em que ela se insere Como vimos Luciano natildeo estava
preso agrave sua biblioteca mas foi nessa que ele encontrou o material para pesar sua eacutepoca Da
mesma forma que Luciano natildeo foi um intelectual engajado contra o Impeacuterio romano haacute uma
seacuterie de criacuteticas e alertas agraves relaccedilotildees e aos costumes estabelecidos Entretanto natildeo havia um
projeto para substituir a realidade existente
Contudo ainda existia o problema da dificuldade em entender como se dava esse
uso poliacutetico Nesse sentido foi fundamental retornar aos mecanismos metanarrativos que
ordenavam o uso das narrativas sobre o passado ou seja em qual regime de memoacuteria se
inscrevem esses escritos Tal indagaccedilatildeo foi respondida tendo em vista a formaccedilatildeo retoacuterica sob
os auspiacutecios da Paideia helecircnica O uso da linguagem eacute orientado pelo escritor Os professores
de retoacuterica e seus manuais fornecem exemplos que devem ser utilizados nos diferentes
momentos O proacuteprio discurso obedece a uma organizaccedilatildeo interna e externa sendo que o orador
eacute um personagem poliacutetico importante na relaccedilatildeo das cidades com o poder imperial A Paideia
coloca os indiviacuteduos em contato com textos canocircnicos que fornecem os exemplos necessaacuterios
para a construccedilatildeo retoacuterica
Nesse sentido o gecircnero literaacuterio natildeo eacute escolhido aleatoriamente constituindo-se
um importante indiacutecio para a compreensatildeo do cenaacuterio cultural em que o escritor se insere
Luciano tem a intenccedilatildeo de produzir o riso um riso que mobiliza o pensamento e eacute construiacutedo
por meio da saacutetira Nesse caso a saacutetira menipeia de elementos conhecidos e que em seu arranjo
literaacuterio ganha formas inusitadas Haacute em seus escritos um processo de recriaccedilatildeo que visa
interpretar sua realidade fornecendo niacuteveis distintos de interpretaccedilatildeo Nesta Tese buscamos
entender os usos poliacuteticos que o texto luciacircnico poderia ter tendo em vista a relaccedilatildeo entre as
divindades a representaccedilatildeo de assembleias semelhantes agraves helecircnicas a imagem de Zeus os
espaccedilos miacuteticos (Hades e Olimpo) e o comportamento dos tiranos nesses diaacutelogos Nosso
179
objetivo foi se restringindo no decorrer da Tese ao poder poliacutetico e agrave maneira como esse poder
serviu de suporte para a utilizaccedilatildeo das narrativas miacuteticas nesses textos
Nenhum poder se fundamenta exclusivamente sobre a forccedila bruta Haacute o cimento
constituiacutedo da legitimidade simboacutelica como nos ensinou Balandier (1982) Sua manutenccedilatildeo e
sustentaccedilatildeo necessitam de um grupo de apoio com ideias e crenccedilas sonhos e aspiraccedilotildees
horizontes de expectativa e laccedilos de pertencimento Satildeo necessaacuterios consensos que orientem as
escolhas e estrateacutegias de posicionamento Os mitos satildeo narrativas conhecidas amplamente que
remetem a um passado do grupo uma espeacutecie de memoacuteria fundante Os homens antigos
colocavam em segundo plano o questionamento da realidade empiacuterica da memoacuteria miacutetica mas
natildeo a desconheciam como podemos ver nos escritos de Luciano Independentemente do uso
que se faz da narrativa miacutetica ela eacute continuamente dita e repetida em um intenso processo de
emulaccedilatildeo Esse uso contiacutenuo acontece pela capacidade de significaccedilatildeo que o mito oferece ao
seu ouvinte Nesta Tese natildeo nos preocupamos com a utilizaccedilatildeo religiosoa que o uso desse mito
podia ter para o siacuterio Ao ler os textos luciacircnicos nos deparamos com um uso muito mais
matizado e questionador das narrativas miacuteticas O siacuterio viveu em um periacuteodo de efervescecircncia
religiosa com a ascensatildeo de cultos orientais principalmente do cristianismo Assim seus
textos mostram um inteacuterprete que via as contradiccedilotildees presentes nos mitos entretanto em
nenhum lugar de seus escritos ele os descarta Muito pelo contraacuterio Luciano usa os mitos como
veiacuteculo para suas ideias poliacuteticas
A anaacutelise dos textos luciacircnicos corroborou a assertiva de que os mitos apresentam
usos distintos principalmente usos voltados ao questionamento do poder Dizer que haacute usos
poliacuteticos nos escritos luciacircnicos subentende aceitar um questionamento sobre os poderes Nesse
sentido coube interrogar as narrativas alicerccediladas em inuacutemeros conjuntos de sentido fornecidos
pela tradiccedilatildeo homeacuterica e hesioacutedica principalmente uma vez que no regime de memoacuteria greco-
romano tais textos satildeo tomados como cacircnones
Luciano eacute um leitor dessas narrativas Como a escrita permite a glosa interminaacutevel
a interpretaccedilatildeo dar-se-aacute sob o crivo do riso Rir permite questionar e possibilita fugir dos
mecanismos de censura presentes no Impeacuterio romano Natildeo havia oacutergatildeos institucionalizados que
se voltavam agrave censura dos escritores ficando tal controle do que pode ou natildeo ser dito a cargo
do Imperador ou dos homens mais proacuteximos a ele Os homens fieacuteis ao Princeps estavam
dispersos nos mais distantes lugares do Impeacuterio Romano Uma vez detectada a construccedilatildeo de
discursos que se opunham ao governo imperial esses eram destruiacutedos e seu escritor
assassinado
180
Em um processo dialoacutegico de interaccedilotildees socioculturais que superam as meras
dicotomias que opotildeem dominantes e dominados estrutura e evento engajamento e alienaccedilatildeo
os homens constroem suas relaccedilotildees com o poder Os laccedilos que ligam o poder com os elementos
miacuteticos da sociedade ficam evidentes em um trabalho como o nosso que buscou observar o
poder em sua capilaridade para aleacutem do Estado eou Imperador Nesse acircmbito a noccedilatildeo
foucaltiana de micropoderes dispersos deu um norte para avanccedilar na leitura dos diaacutelogos
luciacircnicos O longo conviacutevio com esses textos remete a um mosaico de possibilidades de
leituras sobre o poder Ressaltamos a pluralidade e a plasticidade das informaccedilotildees pois natildeo se
trata de um tratado contra certas praacuteticas ou favor delas mas da representaccedilatildeo de praacuteticas
cotidianas em outro niacutevel no caso a mitologia Cuida-se aqui de compreender um dos
muacuteltiplos usos que esse texto teve
A narrativa luciacircnica prende o agente que escreve e os ouvintes em uma exegese do
real e da poliacutetica da sociedade e dos grupos que a compotildeem Seus diaacutelogos interagem com a
teologia poliacutetica do Impeacuterio Greco-Romano e evidenciam suas contradiccedilotildees Por meio das
releituras de personagens consagrados na tradiccedilatildeo ou de situaccedilotildees referentes a espaccedilos miacuteticos
aleacutem da nossa existecircncia o samosatense se posiciona diante do poder imperial em toda a sua
capilaridade seja na presenccedila cocircmica dos deuses em sua assembleia no riso de Menipo agrave
cegueira humana diante da morte no sofrimento de Prometeu diante das injusticcedilas do poder de
um tirano no desespero dos tiranos que perderam suas riquezas na representaccedilatildeo luciacircnica de
Zeus visto como o deus dos tiranos ou na sua impossibilidade de agir contraacuterio ao que se
estabelece pelo destino A exegese luciacircnica acontece nesse acircmbito que se sustenta em uma
memoacuteria cultural helecircnica que eacute apreendida por meio da Paideia grega A novidade luciacircnica
expressa essa formaccedilatildeo mas na difiacutecil dimensatildeo daquele que aprendeu a cultura do outro
Os textos luciacircnicos satildeo uma expressatildeo complexa e em muitos momentos
contraditoacuterio da Segunda Sofiacutestica desde o momento que entendemos que essa eacute um fenocircmeno
cultural caracterizado pela utilizaccedilatildeo de uma liacutengua especiacutefica que eacute pensada e repensada por
esse escritor O domiacutenio do grego aacutetico eacute expresso em seus textos mas eacute o proacuteprio Luciano que
critica o exagero de alguns sofistas em seu uso Ou seja o siacuterio compreende a tecircnue fronteira
entre a apropriaccedilatildeo criativa da liacutengua falada pelos atenienses do periacuteodo claacutessico e o exagero
pedante de alguns sofistas
O samosatense em sua formaccedilatildeo apropriou-se dos mecanismos mentais que lhe
permitiram dialogar e enfrentar a realidade em que vivia de maneira criativa mordaz e sagaz
Ele brincou com os gecircneros em um sentido muito proacuteprio Podemos questionar se a poliacutetica ou
o poder eacute uma brincadeira e nossa resposta eacute afirmativa e veemente pois trata-se de uma
181
modalidade especiacutefica do riso o riso que mobiliza o pensamento Rir para pensar Mutatis
mutandis podemos recordar a maacutexima comum no Brasil que toda brincadeira tem um fundo
de verdade Outro aspecto importante do riso eacute que ele se coloca na tecircnue linha que separa a
fuacuteria do escarnecido e seu desarmamento simboacutelico Nesse sentido a formaccedilatildeo retoacuterica devia
munir os homens a situaccedilotildees em que a parreacutesia significasse a morte ou a escravidatildeo
O siacuterio construiu seus discursos sob essa historicidade da verdade que confere um
sentido bem restrito e limites claros agrave praacutetica da parreacutesia Esta Tese retoma Luciano e pensa
seus escritos na loacutegica da identidadealteridade ao falar do lugar do outro do lugar de fronteira
que adveacutem de seu nascimento na siacuteria e do aprendizado fundamentado na Paideia helecircnica O
diaacutelogo luciacircnico eacute construiacutedo na confluecircncia de dois outros gecircneros claacutessicos o diaacutelogo
filosoacutefico e a comeacutedia numa estrateacutegia literaacuteria que lhe permitia fazer com que o puacuteblico ndash seja
ele de leitores ou de ouvintes ndash risse e por meio do riso refletisse sobre as coisas Riso se
mobiliza junto ao pensamento Nesse sentido os textos luciacircnicos satildeo extremamente seacuterios e
seus assuntos satildeo atinentes ao mundo que o cerca O domiacutenio do grego aacutetico e dos saberes
produzidos na tradiccedilatildeo cultural helecircnica permite-lhe o ingresso nessa identidade o que eacute um
fenocircmeno bastante especiacutefico jaacute que a identidade eacute construiacuteda por meio da adesatildeo e da
aglutinaccedilatildeo Mesmo dominando esse intricado manancial fornecido pela Paideia Luciano natildeo
deixou de se chamar de siacuterio muito menos se furtou a utilizar o ldquonoacutesrdquo para se referir ao Impeacuterio
(BRANDAtildeO 2014)
Estamos convencidos de que o siacuterio dominou as teacutecnicas da retoacuterica presentes nos
manuais de seu tempo Nesse sentido a citaccedilatildeo de Demeacutetrio eacute importante para mostrar que
havia uma preocupaccedilatildeo sobre como falar aos tiranos ou agraves pessoas violentas por meio de
subterfuacutegios simboacutelicos Ao aprender a lsquofalar ao tiranordquo Luciano se municia de um leque de
possibilidade de exposiccedilatildeo daquilo que ele desejava
Trata-se de uma ingenuidade pensar que o texto luciacircnico voltar-se-ia ao Imperador
Romano diretamente Como homem de letras pertencente a importantes ciacuterculos sociais ele
tinha acesso a grupos vinculados diretamente ao poder imperial em qualquer lugar que
estivesse Assim sua anaacutelise poliacutetica eacute elaborada com a utilizaccedilatildeo da mitologia e de outros
recursos retoacutericos e estiliacutesticos O deslocamento que propomos nesta pesquisa mostrou-se
deveras salutar respondendo as hipoacuteteses que haviacuteamos colocado
O siacuterio natildeo eacute nem proacute nem contra o Impeacuterio Romano sua escrita o coloca em uma
ambiguidade que eacute muito mais complexa Mesmo dominando os fundamentos da cultura
helecircnica ele natildeo era totalmente um grego mesmo servindo ao Imperador no Egito ele natildeo eacute
um defensor inconteste de sua poliacutetica mesmo se autodenominando siacuterio em diversos
182
momentos natildeo haacute um processo de reivindicaccedilatildeo identitaacuteria excludente Veyne mostrou-se
correto ao afirmar que os intelectuais vinculados agrave Segunda Sofiacutestica orgulham-se de serem
gregos desprezam Roma e colaboram com a ordem estabelecida (VEYNE 2009 80)
Analisamos Luciano como um exegeta de seu mundo inteacuterprete privilegiado e
sagaz que natildeo atacava o Imperador mas enfatizava o que seria um bom governante tendo em
vista os tiranos de outrora A memoacuteria histoacuterica e miacutetica coaduna em sua digressatildeo Nos
Diaacutelogos dos mortos podemos ver Heacuteracles Dioacutegenes Alexandre Minos Caronte e ateacute
mesmo Ceacuterbero em diaacutelogos sobre a vida e os vivos
Os poderosos satildeo expressos a todo momento principalmente os tiranos Se naquele
momento a tirania era apenas um adjetivo que qualificava o mau Imperador o samosatense
podia falar de personagens histoacutericos que ocupavam o cargo de tirano e assim prevenir os
contemporacircneos dos possiacuteveis desvios do poder As interpretaccedilotildees luciacircnicas de seu mundo
usam como pano de fundo a representaccedilatildeo de tempos anteriores ou mesmo de personagens
preteacuteritos mas evidenciam as accedilotildees e as praacuteticas que lhe eram contemporacircneos ao ato da escrita
Nesse sentido a narrativa miacutetica com sua diversidade de personagens e situaccedilotildees
possibilitou a construccedilatildeo desse debate referente agraves relaccedilotildees de poder nos diaacutelogos luciacircnicos
Por definiccedilatildeo o relato miacutetico eacute partilhado culturalmente experimentado como um passado da
comunidade eou do grupo por isso entendido aqui como uma memoacuteria cultural cujos
mecanismos de transmissatildeo satildeo compostos por praacuteticas comuns de ensino coacutepia e declamaccedilatildeo
dos textos canocircnicos A narrativa miacutetica permite em sua plasticidade agregar diversos sentidos
que comuniquem as ideias do escritos Luciano natildeo eacute um mitoacutegrafo natildeo queria reunir as lendas
dos deuses fazer cataacutelogos ou organizar informaccedilotildees como outros eruditos sua intenccedilatildeo era
utilizar os personagens miacuteticos seus ambientes suas confluecircncias com a histoacuteria e com sua
contemporaneidade para inventar uma nova forma de discurso Dessa forma seu uso da tradiccedilatildeo
helecircnica eacute bastante seletivo e sugestivo Trata-se em uma das camadas possiacuteveis de
investigaccedilatildeo de encontrar uma reflexatildeo sobre os usos do poder inclusive quando esse se dava
de maneira abusiva
A complexidade da vida poliacutetica entrelaccedilada agrave construccedilatildeo do texto cujos fins
devem ser respeitados pelo inteacuterprete moderno nos evidenciou um Luciano distinto daquele
construiacutedo e reiterado tradicionalmente Ele natildeo era alheio a seu mundo mas tambeacutem natildeo era
um ativista poliacutetico comportou-se em seus textos como um questionador de sua realidade
Para isso mobilizou os recursos que havia aprendido Sob essa premissa margeamos nossa
leitura dos diaacutelogos luciacircnicos partindo do pressuposto de que havia um grande potencial de
leitura das muacuteltiplas relaccedilotildees de poder Nas nervuras de seu texto vemos uma mitologia que
183
dialoga com sua realidade poliacutetica Assim nossa investigaccedilatildeo se interessou pelas relaccedilotildees entre
escrita e poder tendo em vista os sentidos diversos que os escritos antigos nos possibilitam Em
um mundo cada vez mais marcado por conflitos poliacuteticos os escritos luciacircnicos explificam
como podemos viver em uma sociedade muacuteltipla plaacutestica e nunca nos esquecermos de que haacute
uma tradiccedilatildeo discursiva que deve ser lida relida e recriada a fim de encontrar outras estrateacutegias
de sentido que visem agrave construccedilatildeo de um mundo melhor
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218
Mapa III A Camogema do periodo romano (BRU 2011 373)
219
Mapa IV A dispersatildeo das legiotildees romanas no periacuteodo imperial (GRANT
200968)
2
EDSON ARANTES JUNIOR
OS USOS POLIacuteTICOS DA NARRATIVA MIacuteTICA EM LUCIANO
DE SAMOacuteSATA ASPECTOS DO REGIME DE MEMOacuteRIA
ROMANO (SEacuteC II D C)
Tese de Doutoramento apresentada ao Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Federal de Goiaacutes
como requisito para a obtenccedilatildeo do grau de Doutor em
Histoacuteria
Aacuterea de concentraccedilatildeo Culturas fronteiras e identidades
Linha de pesquisa Histoacuteria memoacuteria e imaginaacuterios sociais
Orientadora Profordf Drordf Ana Teresa Marques Gonccedilalves
GOIAcircNIA
2014
3
Dados internacionais de catalogaccedilatildeo na publicaccedilatildeo (CIP)
BJFSUEG-Uruaccedilu
Catalogaccedilatildeo na publicaccedilatildeo Sandra Carleth F Carvalho ndash CRB11455
Arantes Junior Edson
A662u Usos poliacuteticos da narrativa miacutetica em Luciano de Samoacutesata
[Manuscrito] aspectos do regime de memoacuteria romano (seacutec II
DC)
Edson Arantes Junior ndash 2014
219 f il
Orientadora Drordf Ana Teresa Marques Gonccedilalves
Tese (Doutorado) ndash Universidade Federal de Goiaacutes Faculdade de
Histoacuteria 2014
Bibliografia
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I Arantes Junior Edson II Gonccedilalves Ana Teresa
Marques III Tiacutetulo
CDU-
930
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Os usos poliacuteticos da narrativa miacutetica em Luciano de Samoacutesata aspectos do regime
de memoacuteria romano (Seacutec II d C)
Tese defendida pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria niacutevel de Doutorado da
Faculdade de Histoacuteria da Universidade Federal de Goiaacutes aprovada em 9 de outubro de
2014 pela Banca examinadora constituiacuteda pelos seguintes professores
Professora Doutora Ana Teresa Marques Gonccedilalves (UFG)
(Presidente)
Professor Doutor Jacyntho Joseacute Lins Brandatildeo (UFMG)
(Membro externo)
Professora Doutora Andrea Luacutecia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi (UNESP)
(Membro externo)
Professor Doutor Noeacute Freire Sandes (UFG)
(Membro interno)
Professora Doutora Adriana Vidotte (UFG)
(Membro interno)
Professor Doutor Haroldo Reimer (UEG)
(Suplente externo)
Professora Doutora Luciane Munhoz de Omena (UFG)
(Suplente interno)
5
Agrave Vivaldina Arantes (in memoriam) e Geralda Rita da
Silva (in memoriam) que sempre seratildeo meus exemplos
de perseveranccedila e sabedoria
6
Agradecimentos
Ao concluir o percurso tenho muito que agradecer Em primeiro lugar agrave minha
eterna orientadora Professora Doutora Ana Teresa Marques Gonccedilalves que esteve ao meu lado
em todos os momentos difiacuteceis com sua orientaccedilatildeo firme e generosa Devo agradecer sempre
por acreditar no meu projeto de pesquisa e investir para que eu pudesse estudar e me tornar um
especialista que atuasse em Histoacuteria Antiga Seus ensinamentos satildeo um patrimocircnio que levarei
por toda a minha vida
Quero agradecer agrave Universidade Federal de Goiaacutes que por meio de seu programa
proacuteprio concedeu-me uma bolsa que foi fundamental para custear a tecitura desta Tese
principalmente a importaccedilatildeo de importantes textos bibliograacuteficos
Aos professores da UFG que sempre somaram nesse percurso Drordf Luciane Munhoz
de Omena Drordf Dulce Oliveira Amarante dos Santos Drordf Armecircnia Maria de Sousa Dr Joatildeo
Alberto da Costa Pinto e Dr Luiz Seacutergio Duarte da Silva
A banca de qualificaccedilatildeo composta pelos professores doutores Jacyntho Lins
Brandatildeo e Noeacute Freire Sandes que me ajudaram a recriar meu objeto de pesquisa e instigaram
minhas construccedilotildees bem como por aceitarem ler esse trabalho
As professoras Drordf Andreia Dorini e Drordf Adriana Vidotte por aceitarem compor a
banca de avaliaccedilatildeo deste trabalho
Aos amigos historiadores e historiadoras cujas conversas muito somaram a esta
tese Marcelo Ana Paula Thiago Maria Daiacutelza Quero agradecer de forma muito especial agrave
Cleusa por ser uma amiga presente mesmo na distacircncia Ao Manoel pelas eacutebrias discussotildees
benjaminianas Ao amigo e historiador Fernando Teodoro Divino pela constante ajuda para
conseguir textos que se mostravam impossiacuteveis nas bibliotecas brasileiras
Agrave professora Joscelina Borges de Oliveira Santana que foi uma companheira
importante ao me substituir na direccedilatildeo do cacircmpus Ao professor Gilson coordenador do curso
de Histoacuteria que ajudou em tantas ausecircncias Aos amigos Moises Neilson Genilder Claudia
Cleonice Marlene e Joatildeo Erastoacutetenes que me ampararam cada um a seu modo e a seu tempo
Agrave bibliotecaacuteria do cacircmpus professora Sandra cuja eficiecircncia muito contribuiu para o
alinhavado desta Tese Quero expressar meus agradecimentos ao Masinho (vulgo Edemar) que
eacute um amigo verdadeiro nessas estradas Agrave Terla e agrave Valquiacuteria que estiveram comigo todos os
7
dias me dando forccedila e aliviando o peso da gestatildeo e em nome delas agradeccedilo a todos os
funcionaacuterios da UEG-Uruaccedilu
A Universidade Estadual de Goiaacutes na pessoa do professor Doutor Haroldo Reimer
reitor desta universidade que me acolheu e forneceu o apoio institucional necessaacuterio para a
conclusatildeo desta e agraves professoras Meire e Carla por me apoiarem nesse momento
A minha famiacutelia que entendeu minhas ausecircncias Minha matildee Eva que sempre me
apoiou e acreditou em mim Meu avocirc Joaquim tatildeo amado e presente Meu padrinho Marcio
Joseacute que eacute um exemplo de conduta Meu pai tios (Valto Seacutergio Geraldo Branco Aguimar) e
tias (Mariza Nilda Ailza Maria Anizia Osvaldina Vilma Aleida) Voacute Nilza primos (Marco
Aureacutelio Rodrigo Andrei Gabriel e Renato) e primas (Mariele Andreia Leiner Taina e
Luana) agrave Vitoacuteria minha linda ao meu irmatildeo Eduardo Siacutelvia e Luiz Henrique sem a o apoio
deles tudo seria mais difiacutecil
Aos amigos que me acolheram em Uruaccedilu Dona Nair Rozilda Ana Paula e Maria
Luiz Cristiano Claudinei Maria Ceacutelia satildeo tantos que sei que vou esquecer quem natildeo devia
mesmo assim muito obrigado
No percurso final desta tese encontrei dois profissionais que muito me auxiliaram
para diminuir as imperfeiccedilotildees desta tese Devo os mais sinceros agradecimentos ao professor
Douglas e agrave professora Valeacuteria As deficiecircncias que este trabalho contiver satildeo de
responsabilidade do autor
Por estar ao meu lado por me entender por me amar por deixar que eu a ame por
cuidar tatildeo bem de mim muito obrigado Kacya
8
A tecnologia mudou mas a produccedilatildeo de mitos
estaacute mais do que nunca na ordem do dia
(GINZBURG 2001 83)
9
Resumo
Luciano de Samoacutesata foi um importante inteacuterprete do Impeacuterio Romano sua prosa versou sobre
uma infinidade de temas Os estudiosos desse escritor se concentraram em duas possibilidades
de compreensatildeo para sua postura poliacutetica de um lado haacute os autores que consideram o
siacuterio desvinculado de seu tempo e de seu contexto sociopoliacutetico do outro existem os que o
veem como um militante poliacutetico contraacuterio a Roma Nesta Tese consideramos que Luciano
apresenta um posicionamento ambiacuteguo uma vez que ele se identifica como siacuterio ressalta toda
a sua formaccedilatildeo helecircnica e critica aspectos da cultura poliacutetica romana Entretanto acreditamos
que ele estava consciente dos benefiacutecios que o Impeacuterio trazia a todos os povos dominados
Dessa forma podemos dizer que ele era um escritor que colaborava com a manutenccedilatildeo do
sistema imperial Para comprovar essa hipoacutetese deslocamos a indagaccedilatildeo para os famosos
diaacutelogos satiacutericos que costumam ser desconsiderados pelos inteacuterpretes de Luciano Conhecido
por unir o sisudo diaacutelogo filosoacutefico agrave sarcaacutestica comeacutedia entendemos que o escritor tinha a
intenccedilatildeo de produzir o riso que se voltaria para a mobilizaccedilatildeo do pensamento Restringimos
nossa investigaccedilatildeo aos diaacutelogos que utilizam a mitologia como eixo temaacutetico Os mitos foram
pensados como elementos que compotildeem uma memoacuteria cultural e dessa forma satildeo
apresentados nos limites do regime de memoacuteria romano Essa seleccedilatildeo formal foi organizada em
toacutepicos referentes ao poder poliacutetico e a suas manifestaccedilotildees cotidianas Assim preocupamo-nos
com a representaccedilatildeo luciacircnica das assembleias dos tiranos e das relaccedilotildees das divindades entre
si e principalmente com Zeus Entendemos que Luciano fez uma profunda exegese de sua
realidade evidenciando e criticando posturas abusivas Em seus diaacutelogos podemos ver outras
dimensotildees possiacuteveis da interpretaccedilatildeo do poder poliacutetico no impeacuterio romano
Palavras-chave Luciano de Samoacutesata ndash Segunda Sofiacutestica ndash Mitologia ndash Poder Imperial
10
Abstract
Lucian of Samosat was an important interpreter of the Roman Empire his writings were about
a varied of topics People who study about this writer focused on two possibilities for
understanding his political stance on one hand there are authors who consider he is
disconnected from his time and sociopolitical context on the other hand there are those who
see him as a political activist opposed to Rome In this Thesis we consider that Lucian has an
ambiguous position since he identifies himself as Syrian underscores his entire Hellenic
education and criticizes aspects of Roman political culture However we believe that he was
aware of the benefits that the empire brought all dominated peoples Thus we can say that he
was a writer who collaborated with the maintenance of the imperial system To prove this
hypothesis we analyze his famous satirical dialogues which were often disregarded by his
interpreters Known for combining the dour philosophical dialogue with sarcastic comedy we
understand that the writer intended to produce laughter which would turn to the mobilization
of thought We restrict our investigation to the dialogues that use mythology as subject The
myths were thought as components of a cultural memory and thus are presented within the
limits of the Roman memory system This selection was formally organized on topics related
to political power and its everyday manifestations Thus we are concerned with the Lucianic
representation of assemblies tyrants and the relations of the deities among them and especially
with Zeus We understand that Lucian did a thorough exegesis of his reality highlighting and
criticizing abusive postures In his dialogues we can see other possible dimensions of
interpretation of political power in the Roman Empire
Keywords Lucian of Samosat - Second Sophistic - Mythology - Imperial Power
11
Reacutesumeacute
Lucien de Samosate fut un interpregravete important de lrsquoEmpire Romain sa prose a exploreacute une
infiniteacute de theacutemes La compreacutehension de la posture politique de Lucien est envisageacutee quasi
exclusivement par les speacutecialistes de cet auteur de deux maniegraveres drsquoun cocircteacute certains auteurs
consideacuterent le syrien deacutetacheacute de son temps et de son contexte socio-politique de lrsquoautre il est
vu comme un militant politique opposeacute agrave Rome Dans cette thegravese nous consideacuterons que Lucien
se positionne de faccedilon ambigueuml En effet il srsquoaffirme syrien met en avant toute sa formation
heacutelleacutenique et critique des aspects de la culture politique romaine tout en eacutetant nous le croyons
conscient des beacuteneacutefices apporteacutes par lrsquoEmpire agrave tous les peuples domineacutes Ainsi nous pouvons
dire qursquoil eacutetait un eacutecrivain qui collaborait au maintien du systeacuteme impeacuterial Afin de prouver
notre hypotheacutese nous deacuteplaccedilons la question sur les ceacuteleacutebres dialogues qui obtiennent
communeacutement peu de consideacuteration des interpreacutetes de Lucien Connu pour unir lrsquoaride dialogue
philosophique agrave la comeacutedie sarcastique lrsquoeacutecrivain avait selon notre compreacutehension lrsquointention
de provoquer le rire afin de mobiliser la reacuteflexion Nous limitons notre recherche aux dialogues
utilisant la mythologie comme axe de theacutematique Les mythes furent ici penseacutes comme
eacuteleacutements qui composent une meacutemoire culturelle et sont donc preacutesenteacutes dans les limites du
reacutegime de meacutemoire romain Cette seacutelection formelle fut organiseacutee en topiques concernant le
pouvoir politique et ses manifestations quotidiennes Nous nous inteacuteressons ainsi agrave la
repreacutesentation lucienniste des assembleacutees des tyrans et des relations des diviniteacutes entre elles et
principalement avec Zeus Selon notre compreacutehension Lucien a fait une exeacutegegravese profonde de
sa reacutealiteacute mettant en eacutevidence et critiquant les attitudes abusives Nous pouvons voir dans ses
dialogues drsquoautres dimensions possibles de lrsquointerpreacutetation du pouvoir politique dans lrsquoempire
romain
Mots-cleacutes Lucien de Samosate ndash Seconde Sophistiquendash Mythologie ndash Pouvoir Impeacuterial
12
Lista de abreviaturas das obras antigas
Nome do escrito em portuguecircs Nome em latim Abreviatura
Anocircnimo
Retoacuterica agrave Herecircnio Rhetorica ad Herennium Rhet Ad Her
Suda Suda Suda
Aristoacuteteles
Metafiacutesica Metaphysica Metaph
Poeacutetica Poetica Po
Poliacutetica Politica Pol
Augusto
Feitos do divino Augusto Res Gestae Diui Augusti RGDA
Aulo Geacutelio
Noites Aacuteticas Noctes Atticae NA
Dioacutegenes Laeacutercio
Vida e obra dos filoacutesofos ilustres
De vitis et dogmatibus clarorum
philosophorum De vitis
Eacutelio Aristides
Oraccedilatildeo 26 Orationes XXVI Orat 26
Eunaacutepio
Vidas dos sofistas Vitae Sophistarum Vi So
Filostrato
Vidas dos sofistas Vitae Sophistarum VS
Foacutecio
Biblioteca Bibliotheca Biblio
Homero
Iliacuteada Ilias Il
Odisseia Odyssea Odys
Hesiacuteodo
Teogonia Theogonia Theog
Lactacircncio
Instituiccedilotildees Divinas Divinis Institutionibus Inst Div
Luciano
Phalaris I Phalaris prior Phal A
Phalaris II Phalaris alter Phal B
Hiacutepias ou o banho Hippias seu balneum Hipp
Dioniso Bacchus Bacch
Heacuteracles Hercules Herc
Sobre o acircmbar ou sobre os cisnes De electro s cycnis Electr
Nigrino ou a Filosoacutefia de Nigrino Nigrinus Nigr
Elogio da mosca Muscae Encomium Musc Enc
Demonax - A vida de Demonax Demonactis vita Demon
A sala De domo Dom
13
Elogio da paacutetria Patriae Encomium Patr Enc
Macroacutebios Macrobii (longaevi) Macr
Histoacuteria Verdadeira I Verae Historiae I V H I
Histoacuteria Verdadeira II Verae Historiae II V H II
De como natildeo acreditar
facilmente em caluacutenias
Calumniae non
temere credendum Cal
O processo das vogais Judicium vocalium Jud Voc
O banquete ou os lapitas Symposium (convivium) s Lapithae Symp
Pseudosofista ou O solecista Solecista s pseudo-sophista Sol
A decida (ao Hades) ou O Tirano Cataplus s tyrannus Cat
Zeus Refutado Iuppiter confutatus J conf
Zeus Traacutegico Iuppiter Tragoedus J trag
O sonho ou O Galo Gallus s somnium Gall
Prometeu Prometheus Prom
Icaromenipo ou
O sobre as nuvens
Icaromenippus s
Hypernephelus Icar
Tiacutemon ou O Misantropo Timon s misanthropos Tim
Caronte ou Os contempladores Charon s contemplantes Char
Comeacutercio de vidas ou
O leilatildeo dos filoacutesofos
Vitarum
Auctio Vit auct
O pescador ou os Ressuscitados Piscator s Reviviscentes Pisc
Acusado duas vezes ou
sobre os tribunais
Bis Acusatus s
Tribunalia Bis acc
Sobre os sacrifiacutecios De sacrificiis Sacr
Contra um ignorante bibliomaniacuteaco
Adversus Indoctum et
libros multos ementem Adv Ind
O sonho ou a vida de Luciano Somnium s Vita Luciani Somn
O parasita o parasitismo
eacute uma arte
De parasito s artem
esse parasiticam Par
O amigo da mentira ou o increacutedulo Philopseudeis s incredulis Philops
O julgamento da deusas Dearum Iudicium Dear Jud
Sobre os que recebem
salaacuterios dos poderosos De mercede conductis Merc Cond
Arnarcaacutesis ou sobre a ginaacutestica Anarcharsis s de exercitationibus Anarch
Menipo ou a Nequiomancia Necyomantia s Menippus Nec
Luacutecio ou o asno Asinus s Lucius Asin
Sobre o luto De luctu Luct
Mestre da retoacuterica Rhetorum praeceptor Rh Pr
Alexandre ou o falso profeta Alexander s pseudomantis Alex
Imagens Imagines In
Sobre a deusa Siacuteria De Syria Dea Syr Dea
Sobre a danccedila De saltatione Salt
Lexifanes Lexiphanes Lex
O eunuco Eunuchus Eun
14
Sobre a astrologia De astrologia Astr
Os amores Amores Amor
Defesa dos retratos Pro imaginibus Pro In
O pseudologista ou sobre
a palavra apophraacutes Pseudologista s de die nefasto Pseudol
Assembleacuteia dos deuses Deorum Concilium Deor Conc
O tiranicida Tyrannicida Tyr
O filho desesdado Abdicatus Abd
Sobre a morte de Peregrino De mort Peregrini Peregr
Os fugitivos Fugitivi Fug
Toxaacuteris ou sobre a amizade Toxaris s amicitia Tox
Elogio de Demoacutestenes Demosthenis Encomium Dem Enc
Como se deve escrever a Histoacuteria Quomodo historia conscribenda sit Hist Co
As dispisades De Dispsadibus Dips
As festas de Cronos Saturnalias Sat
Heroacutedoto ou Aeacutecio Herodutos s Aetion Herod
Zecircuxis ou Antiacuteocos Zeuxis s Antiochus Zeux
Em defesa de uma gafe na saudaccedilatildeo Pro lapsu inter salutandum Laps
Apologia Apologia Apol
Harmocircnides Harmonides Harm
Diaacutelogo com Hesiacuteodo Disputatio cum Hesiodo Hes
O cita ou o proxena Scytha s Hospes Scyth
Podraga Podraga Podag
Hermoacutetimos ou sobre as seitas Hermotimus s de sectis Hermot
Para aquele que diz
eacutes um Prometeus em suas palavras Prometheus es in verbis Prom Verb
Alcion ou sobre a metamorfose Alcyon s de transformatione Alc
O navio ou os desejos Navigium s vota Nav
Oquipus ou o homem de peacutes ligeiros Ocypus Ocyp
O ciacutenico Cynicus Cyn
Diaacutelogo dos mortos Dialogi mortuorum D Mort
Diaacutelogos dos Marinhos Dialogi marini D Mar
Diaacutelogo dos deuses Dialogi Deorum D Deor
Diaacutelogo das Cortesatildes Dialogi Meretricii D Meretr
Pseudo-Luciano
Sobre os danccedilarinos
(Libaacutenio agrave Aristides)
De saltatoribus
(Libanii ad Aristidem) Liban Salt
Cartas Epistulae Epist
Filoacutepatris ou que se instrui sozinho Philopatris s qui docetur Philopatr
Kharidemos ou sobre o belo Charidemos s de pulchritudine Charid
Nero ou a escavaccedilatildeo do istmo Nero s de fossione Isthmi Ner
Epigramas Epigrammata Epigr
Timaacuterion ou sobre os
sofrimentos por si mesmo Timarion s quae passus sit Timar
15
Platatildeo
Repuacuteblica Res Publica Rep
Suetocircnio
Nero Nero Nero
16
SUacuteMARIO
Introduccedilatildeo 18
Capiacutetulo I 33
Luciano de Samoacutesata a Segunda Sofiacutestica e o Impeacuterio Romano relaccedilotildees ambiacuteguas entre
literatura e poder 33
11 A trajetoacuteria e os escritos de Luciano de Samoacutesata como ser siacuterio escrever em grego e
estar no Impeacuterio Romano 34
12 Algumas consideraccedilotildees sobre as primeiras referecircncias a Luciano na tradiccedilatildeo ocidental
41
13 Histoacuteria e imaginaacuterio de uma eacutepoca de ouro o contexto dos Antoninos 45
14 A construccedilatildeo de uma identidade helecircnica no Impeacuterio Romano 49
16 Narrativas miacuteticas e memoacuteria cultural em um Impeacuterio Greco-romano 64
17 A coragem da verdade em Luciano entre a poliacutetica imperial e a fala franca 69
Capiacutetulo II 82
Mito a narrativa que todos conhecem 82
21 Mitologia e Retoacuterica saberes sobre a Memoacuteria 83
22 O mito a modernidade e o historiador 87
23 Mito e formaccedilatildeo outras pedagogias 91
24 Os mitos entre as memoacuterias naturais e as artificiais 95
25 Luciano e os mitos 98
Capiacutetulo III 104
Apropriaccedilatildeo luciacircnica das narrativas miacuteticas repensando o poder 104
31 As assembleias luciacircnicas poder e riso 106
32 Diaacutelogo dos mortos quando o mito se encontra com a Histoacuteria 116
33 Narrativas miacuteticas e os dilemas do poder o caso do Prometeu luciacircnico 138
34 Espaccedilo e Narrativa miacutetica a representaccedilatildeo dos Tiranos entre gregos e romanos 147
35 O Zeus luciacircnico tirania e a impossibilidade de intervenccedilatildeo na vida humana 161
Consideraccedilotildees finais 178
Bibliografia 184
a) Documentaccedilatildeo Textual 184
b) Obras de referecircncia 188
c) Obras gerais 189
Mapas 216
Mapa I Oriente proacuteximo no periacuteodo romano 216
17
Mapa II As principais rotas de circulaccedilatildeo na Siacuteria do Norte no Impeacuterio Romano 217
Mapa III A Camogema do periodo romano 218
Mapa IV A dispersatildeo das legiotildees romanas no periacuteodo imperial 219
18
Introduccedilatildeo
A investigaccedilatildeo que ora apresentamos dos usos poliacuteticos das narrativas miacuteticas nos
diaacutelogos de Luciano de Samoacutesata representa a culminacircncia de dez anos de leitura desses
escritos O primeiro produto desse trabalho foi uma monografia de conclusatildeo de curso intitulada
Lugares imaginaacuterios na obra de Luciano de Samoacutesata memoacuteria e identidade no contexto
imperial produzida em 2005 Nossa preocupaccedilatildeo era entender o espaccedilo dos vivos (cidade) e
dos mortos (Hades) nos escritos luciacircnicos indagando o significado dos mesmos para a cultura
imperial
Esse trabalho deu origem ao projeto de Mestrado que resultou em uma anaacutelise do
mito de Heacuteracles nos escritos de Luciano Nossa Dissertaccedilatildeo intitulada Regime de memoacuteria
romano as imagens do heroacutei Heacuteracles nos escritos de Luciano de Samoacutesata defendida em
2008 tinha a preocupaccedilatildeo central de analisar um mito especiacutefico nos escritos do samosatense
o que nos permitiu alocar este escritor no seio de uma cultura muito mais complexa e de uma
forma proacutepria de reconstruccedilatildeo do passado Nesse sentido foi fundamental forjar um conceito
adequado ao tema qual seja o de regime de memoacuteria Trata-se dos aspectos metanarrativos
que orientam a construccedilatildeo de relatos memorialiacutesticos
Ao refletir sobre os viacutenculos entre a imagem do heroacutei Heacuteracles construiacuteda nos
escritos luciacircnicos e o poder imperial surgiu paulatinamente a questatildeo que orienta toda a
construccedilatildeo desta Tese de Doutoramento a saber as relaccedilotildees entre Luciano de Samoacutesata e a
cultura poliacutetica1 imperial Para desenvolver esse tema buscamos um caminho que natildeo foi
tentado pelos lucianistas isto eacute questionar a apropriaccedilatildeo que esse autor faz das narrativas
miacuteticas e os laccedilos dessas com as praacuteticas e representaccedilotildees referentes aos poderes constituiacutedos
1 Entendemos por cultura poliacutetica o conjunto de siacutembolos praacuteticas e ideias que exprimem a maneira como uma
comunidade lida com o poder
19
Os relatos miacuteticos satildeo pensados no interior do regime de memoacuteria romano2 tendo
em vista a teologia poliacutetica3 que orientava as relaccedilotildees de poder na Roma dos Antoninos Essas
duas noccedilotildees satildeo fundamentais em nossa empreitada A ideia de regime orienta nossa
perspectiva para as forccedilas metanarrativas que por sua vez orientam a produccedilatildeo dos discursos
memorialiacutesticos Nesta Tese os elementos metanarrativos fundamentais satildeo pensados a partir
da formaccedilatildeo especiacutefica do orador o que coloca seus discursos em uma ordem de criaccedilatildeo Neste
ponto os gecircneros escolhidos a forma de apresentaccedilatildeo e a linguagem satildeo oriundos de um
trabalho consciente Mesmo quando o escritor inventa ele parte de algo que se solidificou na
cultura Assim os recursos fornecidos pela retoacuterica4 satildeo fundamentais para o estabelecimento
na vida puacuteblica Outro elemento especiacutefico eacute a linguagem com a qual os textos satildeo escritos a
partir de um trabalho intenso de construccedilatildeo verbal
2 O termo regime vem do latim regimen e geralmente vincula-se agrave orientaccedilatildeo ou direccedilatildeo de algo (ABBAGNAMO
2003 840) O conceito de regime de memoacuteria aparece em um artigo de Franccedilois Hartog intitulado Tempo e
patrimocircnio especificamente ao analisar a obra de Pierre Nora e observar a mudanccedila de um regime de memoacuteria
(HARTOG 2006 266) Entretanto essa noccedilatildeo se insere ao debate sobre o conceito de regime de historicidade
que se distingue do conceito de eacutepoca por ser muito mais dinacircmico que aquele o qual se caracteriza por ser um
corte temporal na cronologia Ao pensar em regime de historicidade Hartog coaduna em uma mesma reflexatildeo a
maneira com a qual Michel Foucault entende a apropriaccedilatildeo dos discursos em seu livro a Ordem do Discurso
(FOUCAULT 2002 8-9) e as reflexotildees sobre a relaccedilatildeo entre evento mudanccedila e estrutura permanecircncia proposta
por Marshal Shalins no livro Ilhas de Histoacuteria afirma que a ldquorelaccedilatildeo entre estrutura e evento que se inicia com a
proposiccedilatildeo de que a transformaccedilatildeo de uma cultura tambeacutem eacute um modo de sua reproduccedilatildeordquo (SHALINS 1990
174) bem como a proposta de uma semacircntica do tempo presente nas teses de Reinhart Koselleck em que ele
observa que os homens que do passado viviam em um espaccedilo de experiecircncia fruto do passado do indiviacuteduo e da
sociedade e um horizonte de expectativas que observa os sonhos e projetos para o futuro dos homens que viveram
no preteacuterito ou seja abre a possibilidade de pensar a existecircncia de um futuro almejado no passado (KOSELLECK
2006 307) A proposta de Hartog (2003a 26-30) articula essas reflexotildees Nesse sentido nossa proposta do
conceito de regime de memoacuteria restringe a reflexatildeo aos usos que os homens fazem do passado construiacutedo por
meio de narrativas Eacute a narrativa acerca do passado que fornece aos homens subsiacutedios para a construccedilatildeo de sua
identidade e de planejarem sua existecircncia 3 A noccedilatildeo de teologia poliacutetica adveacutem da obra de Ernst H Kantorowicz (1998) em seu livro Os dois corpos do rei
um estudo sobre teologia poliacutetica medieval em que o autor enfatiza as ficccedilotildees elaboradas no plano da miacutestica que
sustentam o poder estabelecido dando-lhe legitimidade o que possibilita a manutenccedilatildeo no poder Em nossa tese
essa noccedilatildeo tem significacircncia restrita aos usos dos elementos miacuteticos e religiosos para a legitimaccedilatildeo do poder no
caso romano a noccedilatildeo de pax deorum os usos poliacuteticos dos mitos e a construccedilatildeo de argumentos que justificam
determinadas praacuteticas a partir dos mitos por exemplo a consecratio cerimocircnia que eleva o Divus do Imperador
morto ao plano das deidades constituiacutedas estabelecendo culto e clero especiacutefico para o mesmo 4 A retoacuterica aristoteacutelica apresenta trecircs gecircneros baacutesicos deliberativo judiciaacuterio e epidiacutetico O primeiro busca
persuadir ou dissuadir o segundo defender ou acusar e o terceiro elogiar ou censurar
20
No seacuteculo II da era cristatilde5 o Impeacuterio Romano6 controlava uma gigantesca aacuterea no
Mediterracircneo Trata-se do Impeacuterio7 estrutura de governo em que um povo governa outro mais
longevo da histoacuteria humana Sua organizaccedilatildeo poliacutetica foi extremamente inteligente uma vez
que o mesmo conviveu de maneira sagaz e seletiva com a heterogeneidade dessa imensa
entidade poliacutetica Como afirma Maurice Duverger ldquopor natureza os impeacuterios satildeo
plurinacionaisrdquo (DUVERGER 2008 25)
Maurice Sartre (1994 7-8) salienta que o domiacutenio romano pode ser pensado a partir
da unicidade de praacuteticas tais como o culto ao Imperador a presenccedila das legiotildees e de um corpo
de funcionaacuterios ligados a Roma e algumas normatizaccedilotildees juriacutedicas e legislativas O poder
simboacutelico do Imperador8 como agente vinculado agrave ordem sobrenatural faz-se presente em
todos os rincotildees do Impeacuterio seja por meio do culto das festividades das moedas dos
monumentos dentre outras possibilidades de presentificaccedilatildeo pois ldquoo poder poliacutetico e a
legitimidade natildeo se apoiam somente em impostos e nos exeacutercitos mas tambeacutem nas concepccedilotildees
e nas crenccedilas dos homensrdquo (HOPKINS 1987 232) O poder imperial eacute um importante fator de
unicidade sentida na vida provincial por uma complexa rede capilar ou como diria Michel
Foucault (2012) por micropoderes9
5 As datas indicadas nesta Tese satildeo predominantemente da era cristatilde salvo aquelas indicadas como anteriores a
Cristo 6 Compreender a complexa Histoacuteria do Impeacuterio Romano a partir da anaacutelise de sua produccedilatildeo cultural eacute um
empreendimento bastante relevante no novo mundo por se tratar de investigar a experiecircncia humana assim como
a maneira com a qual os homens lidaram com seus sentimentos de pertencimento A distacircncia temporal e espacial
permite o afastamento das querelas identitaacuterias que povoam o imaginaacuterio europeu Um exemplo de como as
querelas atuais podem interferir na construccedilatildeo do passado pode ser visto nas anaacutelises que Pedro Paulo Abreu
Funari e Marina Cavichioli fazem no capiacutetulo intitulado ldquoOs usos do passado consideraccedilotildees sobre o papel da
arqueologia na construccedilatildeo da identidade italianardquo (2011 111-122) 7 A unidade do termo Impeacuterio camufla uma grande diversidade de organizaccedilotildees poliacuteticas administrativas e
culturais Neste sentido concordamos com Maurice Duverger quando ele afirma que eacute fundamental analisar o
processo de estabelecimento do Impeacuterio muito mais que o discurso que o mesmo produz sobre si mesmo
(DUVERGER 2008 21) Outro ponto significativo neste debate foi assentado por Renata Senna Garraffoni (2008
138-140) ao enfatizar as contribuiccedilotildees poacutes-coloniais nessa discussatildeo seguindo teoacutericos como Edward W Said
em seu livro Cultura e Imperialismo (1995) pois a partir das premissas teoacutericas desses intelectuais haacute um processo
de valorizaccedilatildeo maior das culturas locais 8 Hadrien Bru em sua Tese de Doutoramento intitulada Le pouvoir imperial dans les provinces syriennes traccedila
um importante panorama do culto imperial na regiatildeo natal de Luciano Bru mostra como os Imperadores satildeo
representados como os mestres do universo os senhores do destino terrestre (BRU 201119) ou ainda as muitas
marcas de seu domiacutenio sobrenatural presentes na paisagem (BRU 2011 30) os viacutenculos dos Imperadores com a
construccedilatildeo de aquedutos obras tipicamente romanas (BRU 2011 41-46) os monumentos e santuaacuterios (BRU
2011 63 83) e ainda a organizaccedilatildeo e promoccedilatildeo do culto imperial por meio de concursos hiacutepicos jogos de
gladiadores entre outros (BRU 2011225-264) 9 Foucault mudou o eixo dos estudos sobre o poder deslocando o olhar do Estado para as praacuteticas evidenciando
que o poder pode se manifestar em uma multiplicidade de relaccedilotildees sociais por isso micropoderes assim devemos
refletir as relaccedilotildees de clientelismo e patronagem do pater famiacutelias o professor ou tutor A coletacircnea intitulada
Microfisica do poder (2012) organizada no Brasil por Roberto Machado apresenta textos fundamentais de
Foucault sobre as relaccedilotildees de poder e sua capilaridade social aleacutem de sua relaccedilatildeo com os saberes
21
O Impeacuterio Romano pode ser contemplado em sua duplicidade jaacute que dois idiomas
se apresentavam como ordenadores poliacuteticos da vida social no Ocidente predominou o latim
e no Oriente o grego O domiacutenio da cidade de Roma natildeo impocircs em nenhum momento o ensino
dessas liacutenguas10 O latim foi utilizado no Ocidente onde natildeo havia uma liacutengua homogenizante
e o grego no Oriente onde nos reinos heleniacutesticos herdeiros das conquistas de Alexandre o
Grande (356 aC ndash 323 aC) jaacute era utilizado haacute muito tempo No governo do Imperador Claacuteudio
(41-54) foi criada uma chancelaria dupla que usava latim e grego em seus documentos fato
que tem o caraacuteter de oficializar o que jaacute ocorria no cotidiano do Impeacuterio no Oriente heleniacutestico11
O romano conviveu muito bem com a heterogeneidade do Impeacuterio permitindo o
uso de idiomas diversos o culto a divindades locais festas tradiccedilotildees e atividades econocircmicas
muacuteltiplas Jean Bayet ressalta a importacircncia para os dirigentes do Impeacuterio os senadores nos
tempos republicanos e os Imperadores durante o Principado de manter a pax deorum12
(BAYET 1984 66-69) Keith Hopkins mostra como o Imperador eacute o responsaacutevel pela ordem
material seguranccedila e condiccedilotildees de existecircncia assim como pelo ordenamento simboacutelico da vida
Evitar os conflitos que alterem a pax deorum eacute uma das suas prerrogativas fundamentais do
governante (HOPKINS 1987 249-255) A loacutegica da cultura imperial coloca o Imperador como
catalizador da unidade do Estado no plano material como condutor em uacuteltima instacircncia das
instituiccedilotildees poliacuteticas e militares Ele tambeacutem eacute o responsaacutevel pela harmonia simboacutelica entre o
mundo divino e o humano O estudo das narrativas miacuteticas na obra de Luciano nos permite
desdobrar as questotildees colocadas inicialmente em trecircs possibilidades de compreensatildeo do
Impeacuterio Romano uno duplo e muacuteltiplo13
Cabe ao historiador questionar cada elemento presente em sua investigaccedilatildeo para
compor uma imagem mais aproximada do que poderia ter sido o Impeacuterio Romano ou como
10 As elites locais que observavam a importacircncia de se comunicar com os dominadores e que aprenderam o latim 11 Erich Stephen Gruen em seu livro Culture and national identity in Republican Rome mostra que desde a eacutepoca
republicana havia um duplo processo de busca por elementos da cultura romana pela elite da cidade de Roma mas
que esse processo era acompanhado por intenso trabalho de diferenciaccedilatildeo dos gregos de seus valores Segundo
Gruen a ambiguidade e a ambivalecircncia formam as principais formas de agir romanas em relaccedilatildeo aos gregos Outro
ponto enfatizado pelo autor eacute que os romanos natildeo se sentiam inferiores aos gregos ficando claro o desejo de
participar de uma cultura admirada e ao mesmo tempo dominada (GRUEN 1994 223-271) 12 Os romanos tinham taacuteticas de controle dos territoacuterios conquistados bastante tolerantes agraves divindades como o
politeiacutesmo natildeo pressupotildee uma unidade dada por nenhum livro Desde as primeiras conquistas havia a praacutetica de
construir na cidade de Roma um altar para os deuses dos povos conquistados a guerra era entre os homens nunca
entre os deuses (GRANT 1987 26-27) 13 Natildeo podemos idealizar e pensar que os romanos eram tolerantes e gentis com os outros por exemplo quando
os hebreus negaram fazer culto ao Imperador eles foram punidos e suas atitudes condenadas O mesmo pode ser
dito dos Cristatildeos entretanto temos que ressaltar o caraacuteter poliacutetico da religiatildeo romana os hebreus e os cristatildeos
Por exemplo ao negar prestar culto ao Imperador Romano cometia crime de lesa-majestade o problema natildeo era
a crenccedila desses grupos mas as consequecircncias poliacuteticas desses atos que atentavam contra a ordem espiritual
estabelecida pela teologia poliacutetica romana
22
diria Paul Veyne (2009) o Impeacuterio Greco-Romano14 Natildeo podemos nos iludir com o
preconceito positivista de uma verdade concreta entretanto como afirma Luis Costa Lima
(2006 147) a verdade continua como aporia para o trabalho do historiador Noacutes sabemos da
impossibilidade de alcanccedilar a verdade histoacuterica entretanto esta continua sendo a meta dos
historiadores
Luciano escreveu no seacuteculo II durante o periacuteodo em que os Antoninos governaram
Roma Seus textos eram escritos predominantemente em grego aacutetico15 como era do gosto da
elite helenoacutefila Como enfatizou Jacyntho Lins Brandatildeo Luciano eacute um poliacutegrafo Natildeo pelo
imenso nuacutemero de textos literaacuterios que produziu16 mas pela diversidade temaacutetica e de gecircnero
que esse autor aborda (BRANDAtildeO 1990 138) A partir dessa premissa calcada na diversidade
do interesse luciacircnico Brandatildeo ressalta que o samosatense eacute um criacutetico da cultura vista como
Paideia17
Nosso objeto visa entender a apropriaccedilatildeo18 luciacircnica de elementos pertencentes agraves
narrativas mitoloacutegicas greco-romanas os quais satildeo utilizados nos escritos de maneira bastante
fragmentaacuteria Luciano natildeo sistematiza a apresentaccedilatildeo ou interpretaccedilatildeo desses elementos jaacute que
ele natildeo eacute um mitoacutegrafo Desse modo os mitos que ele utilizou em seus escritos natildeo satildeo
escolhidos aleatoriamente mas compotildeem uma estrateacutegia de comunicaccedilatildeo e satildeo apresentados a
partir do regime de memoacuteria romano Para que seu uso atinja os efeitos esperados na plateia
audiecircncia um nuacutecleo de sentido deve permanecer visto que eacute esse significado partilhado que
14 Paul Veyne defende que o Impeacuterio Romano deve ser tratado por Impeacuterio Greco-Romano (1) pelo uso do grego
como liacutengua oficial no Oriente (2) pela presenccedila da cultura helecircnica em todo o Impeacuterio por meio da Paideia (3)
pela afirmaccedilatildeo de Veyne de que ldquoa cultura era helecircnica e o poder era romanordquo (VEYNE 2009 VII) O historiador
francecircs ainda destaca que identificaccedilatildeo natildeo pode ser confundida com aculturaccedilatildeo logo os romanos helenizados
natildeo desprezavam a romanidade 15 Os escritores gregos que compuseram suas obras durante o domiacutenio romano utilizavam em sua maioria uma
variante do grego usado na regiatildeo da Aacutetica durante o periacuteodo claacutessico Trata-se de uma tentativa deliberada de
afastamento do grego comum ou melhor o koineacute falado pela maioria da populaccedilatildeo Seria como se um escritor
atual tentasse escrever seguindo os princiacutepios da liacutengua de Luis de Camotildees 16 Satildeo atribuiacutedas oitenta e seis obras a Luciano de Samoacutesata 17 A traduccedilatildeo desse conceito natildeo eacute simples uma vez que em grego antigo esta palavra abrangia um campo
semacircntico bastante extenso se por um lado ela pode ser traduzida por educaccedilatildeo a palavra educaccedilatildeo deve ser
vista no sentido da formaccedilatildeo integral dos indiviacuteduos tanto por meio da formaccedilatildeo intelectual quanto da praacutetica de
exerciacutecios fiacutesicos Em um niacutevel mais avanccedilado esta palavra significa tambeacutem todo o patrimocircnio cultural existente
motivo de orgulho dos homens que falavam grego Para uma Histoacuteria da Paideia grega o livro Paideia a formaccedilatildeo
do homem grego de Werner Jaeger ainda continua sendo um excelente ponto de partida (JAEGER 2010) Esse
texto apresenta uma conotaccedilatildeo bastante idealista da Histoacuteria Grega Para uma visatildeo mais histoacuterica sugerimos o
livro de Henri Marrou Histoacuteria da Educaccedilatildeo na Antiguidade (1975) Haacute uma coletacircnea de artigos importantes
sobre o tema organizada por Barbara E Borg (2004) Esses textos satildeo interessantes por relacionar a formaccedilatildeo do
homem culto com a identidade grega principalmente no artigo de Christopher Jones (2004) que debate como a
Paideia grega convive com diversas identidades 18 O conceito de apropriaccedilatildeo elaborado por esse autor parte do princiacutepio do diaacutelogo cultural Ao usar qualquer
elemento disponiacutevel na cultura os agentes culturais valoram os signos utilizados de acordo com os saberes que
estes possuem Um exemplo claacutessico de apropriaccedilatildeo neste sentido eacute a do leitor que insere a obra literaacuteria em todo
o seu quadro de significaccedilatildeo (CHATIER 1990)
23
permite a intervenccedilatildeo na ordem Por meio das narrativas de mitos conhecidos Luciano pode
inserir outras discussotildees em seus escritos uma vez que as narrativas miacuteticas satildeo elementos
culturais mobilizados por meio da retoacuterica a fim de produzir um efeito gerar sentidos e induzir
agrave accedilatildeo
Luciano foi um escritor que brincou19 em termos estiliacutesticos com a escrita sobre a
realidade uma vez que construiu estoacuterias nas quais ele mesmo avisa ao leitor que natildeo haacute
veracidade em seu escrito indo aleacutem da poeacutetica aristoteacutelica que diferencia a histoacuteria da poesia
por esta narrar o que aconteceu e aquela dizer o que poderia ter acontecido (Aristoacuteteles Poeacutetica
IX 1451b) O siacuterio aponta a possibilidade de construir um relato sobre o que natildeo poderia
acontecer e avisa o leitor disso por exemplo no texto Das Narrativas Verdadeiras20 Ele
tambeacutem produziu textos que relatavam acontecimentos que ele teria presenciado em um estilo
mais croniacutestico ou jornaliacutestico por exemplo em Alexandre ou o falso profeta21 ou Sobre a
morte de Peregrino22 Nos limites de sua escrita usou e abusou23 dos elementos tradicionais
tanto na forma como nos conteuacutedos Ele burlou os gecircneros consagrados e emulou elementos
disponiacuteveis na tradiccedilatildeo principalmente nos escritos atribuiacutedos a Homero e Hesiacuteodo mas
19 Quando falamos em brincar ou brincadeiras estamos entendendo que o riso apresenta elementos argumentativos
que permitem a criacutetica social e poliacutetica Neste sentido ao afirmar que o siacuterio brinca queremos enfatizar os usos
criativos que ele faz da tradiccedilatildeo literaacuteria de que eacute tributaacuterio e principalmente os viacutenculos desses usos com sua
proposta poliacutetica o riso serve como ferramenta para o pensamento 20 No prefaacutecio Das narrativas verdadeiras ele diz que ao falar dos escritores antigos que falavam de coisas
inverossiacutemeis afirma que ldquoEacute por esse motivo que eu proacuteprio dedicando-me pelo desejo da vangloacuteria a deixar
algo para a posteridade a fim de natildeo ser o uacutenico excluiacutedo da liberdade de efabular jaacute que nada de verdadeiro
podia relatar ndash nada digno de menccedilatildeo havia experimentado ndash me voltei para a mentira em muito mais honesta que
a dos demais pois ao menos nisso direi a verdade ao afirmar que minto Assim a mim me parece que tambeacutem
escaparia da acusaccedilatildeo dos outros eu proacuteprio concordando que nada digo de verdadeiro Escrevo portanto sobre
coisas que nem vi nem sofri nem me informei por outros e ainda sobre seres que natildeo existem em absoluto e nem
por princiacutepio podem existir Por isso aqueles que por acaso se depararem com esses escritos natildeo devem de forma
alguma neles acreditarrdquo (ldquoδιόπερ καὶ αὐτὸς ὑπὸ κενοδοξίας ἀπολιπεῖν τι σπουδάσας τοῖς μεθ ἡμᾶς ἵνα μὴ μόνος
ἄμοιρος ὦ τῆς ἐν τῷ μυθολογεῖν ἐλευθερίας ἐπεὶ μηδὲν ἀληθὲς ἱστορεῖν εἶχον ndash οὐδὲν γὰρ ἐπεπόνθειν ἀξιόλογον
ndash ἐπὶ τὸ ψεῦδος ἐτραπόμην πολὺ τῶν ἄλλων εὐγνωμονέστερον κἂν ἓν γὰρ δὴ τοῦτο ἀληθεύσω λέγων ὅτι
ψεύδομαι οὕτω δ ἄν μοι δοκῶ καὶ τὴν παρὰ τῶν ἄλλων κατηγορίαν ἐκφυγεῖν αὐτὸς ὁμολογῶν μηδὲν ἀληθὲς
λέγειν γράφω τοίνυν περὶ ὧν μήτε εἶδον μήτε ἔπαθον μήτε παρ ἄλλων ἐπυθόμην ἔτι δὲ μήτε ὅλως ὄντων μήτε
τὴν ἀρχὴν γενέσθαι δυναμένων διὸ δεῖ τοὺς ἐντυγχάνοντας μηδαμῶς πιστεύειν αὐτοῖςrdquo)(HV I 5) A brincadeira
com os gecircneros apresenta um fundo seacuterio relacionado diretamente com o rir para pensar os procedimentos de
escrita luciacircnicos apresentam profundo conhecimento da tradiccedilatildeo claacutessica como ele insinua nesta passagem mas
ao afirmar que constroacutei seu discurso sob a eacutegide da mentira (pseudos) cria uma proteccedilatildeo estiliacutestica para destilar
sua criacutetica social e intelectual Ainda nesse trecho ele natildeo nega o aprendizado com a Paideia helecircnica apenas
utiliza essa como apoio para propor novas possibilidades discursivas 21 Nesse texto Luciano narra a fundaccedilatildeo de um oraacuteculo por Alexandre que eacute descrito como um charlatatildeo Esse
texto tenta narrar um evento de sua eacutepoca por isso afirmamos que tem um estilo mais ldquocroniacutestico ou jornaliacutesticordquo 22 Esse escrito conta a estoacuteria do suiciacutedio do filoacutesofo ciacutenico Proteu que se atirou em uma fogueira em plenos jogos
oliacutempicos de 165 23 Quando falamos em usos e abusos natildeo questionamos a legitimidade dessa utilizaccedilatildeo apenas apontamos que o
escrito natildeo ficou preso aos limites impostos pelos cacircnones ou gecircneros mas fez um uso bastante criativo dos
mesmos Natildeo se trata tambeacutem de deturpaccedilatildeo uma vez que a mudanccedila eacute normal e salutar trata-se muito mais de
um trabalho de criaccedilatildeo criativa de invenccedilatildeo estiliacutestica ou literaacuteria
24
tambeacutem brincou com os gecircneros vinculados agrave filosofia como os diaacutelogos e deu novas
configuraccedilotildees aos gecircneros que produzem o riso
Mikhail Bakhtin em seu livro Problemas da poeacutetica de Dostoieacutevski publicado
originariamente em 1961 busca na literatura carnavalizada elementos para compreender a
polifonia presente nos textos dostoievisquianos O siacuterio faz parte de uma tradiccedilatildeo literaacuteria que
mobiliza o riso a fim de fazer o leitorouvinte pensar Bakhtin ressalta a atualidade desses
textos muito ligados ao cotidiano dos autores mesmo quando essa literatura evoca heroacuteis e
personagens histoacutericos a funccedilatildeo eacute pensar a realidade que cerca o produtor do escrito
(BAKHTIN 2011 122-123)
O uso da lenda e dos mitos eacute extremamente criacutetico e atualizado tendo inclusive
caraacuteter investigativo Tal gecircnero renuncia agrave unidade estiliacutestica em nome dos estilos hiacutebridos
que unem o sublime e o vulgar o cocircmico e o seacuterio (BAKHTIN 2011 123) Os diaacutelogos dos
mortos de Luciano de Samoacutesata expressa essas caracteriacutesticas Colocando-nos mesmos
diaacutelogos personagens miacuteticas e histoacutericas fazendo o ouvinte rir dos dilemas da morte
mesclando o diaacutelogo socraacutetico com a comeacutedia
Na senda calcada por Bakhtin o diaacutelogo socraacutetico colocaria em debate o caraacuteter
dialoacutegico da verdade Para esse autor ldquoA verdade natildeo nasce nem se encontra na cabeccedila de um
uacutenico homem ela nasce entre os homens que juntos a procuram no processo de comunicaccedilatildeo
dialoacutegicardquo (BAKHTIN 2011125)
A fantasia da saacutetira menipeia permitiraacute a Luciano buscar os marginalizados sociais
em situaccedilotildees extraordinaacuterias Com imensa liberdade inventiva ela se liberta por meio do riso e
experimenta cotidianamente a verdade A menipeia eacute o gecircnero das questotildees finais da vida e da
morte Os autores deslocam a accedilatildeo para espaccedilos que permitam a hipertrofia da criacutetica o Olimpo
o Hades por exemplo Os escacircndalos satildeo fundamentais Como afirma Brandatildeo ldquoA intenccedilatildeo de
divertir natildeo invalida que a obra vise a provocar no leitor lsquoreflexotildees seacuterias dignas das musasrsquordquo
(cf HV I 1) Esse eacute um dos elementos importantes da menipeia que enfatiza que o sarcasmo
eacute terriacutevel pois as criacuteticas satildeo acompanhadas do riso o que eacute bastante propiacutecio para a criacutetica
poliacutetica jaacute que o riso propicia olhar uma outra exegese do real
Nesse espaccedilo heterogecircneo Luciano produziu seus escritos por meio da interaccedilatildeo
entre inovaccedilatildeo literaacuteria e tradiccedilatildeo Sua produccedilatildeo foi tecida sob o ordenamento poliacutetico do
Impeacuterio Ele observou os preceitos helecircnicos aprendidos na Paideia reverberando soacutelida
erudiccedilatildeo literaacuteria e retoacuterica como estudou Jaques Bompaire24 Em vaacuterios momentos de seus
24 Os estudos luciacircnicos tecircm o livro Lucien Eacutecrivain imitation et creacuteation publicado originariamente em 1958
como um divisor de aacuteguas Fruto da tese de doutoramento de Jaques Bompaire o livro trata justamente do conceito
25
escritos ele ressaltou sua origem siacuteria como colocou em baila a diversidade desse Impeacuterio por
exemplo no texto A Deusa Siacuteria25
Luciano usou os mitos em seus diaacutelogos satiacutericos26 por meio da glosa burlesca com
o objetivo de transmitir uma mensagem seacuteria utilizando como principal veiacuteculo o riso No
percurso desta Tese pretendemos deslindar esses mecanismos metanarrativos Acreditamos
que o conteuacutedo mitoloacutegico como apropriado pelo siacuterio permite um novo caminho investigativo
para pensar a postura poliacutetica desse escritor
Discutimos os diaacutelogos luciacircnicos a fim de entender como o mesmo se apropria dos
mitos e qual a relaccedilatildeo desse ato com o uso da narrativa Assim os textos analisados satildeo Os
diaacutelogos dos mortos Os diaacutelogos dos deuses e Diaacutelogos dos deuses marinhos que satildeo as trecircs
coletacircneas de diaacutelogos que ele escreveu27 Trata-se de um conjunto de diaacutelogos mais breves
que envolvem duas ou mais personagens
Analisamos tambeacutem os diaacutelogos maiores que satildeo peccedilas mais densas e longas A
Descida (ao Hades) ou o Tirano Zeus Refutado Zeus Traacutegico Prometeu Icaromenipo ou
sobre as nuvens Tiacutemon ou o misantropo Caronte ou os contempladores Julgamento das
deusas Menipo ou Neciomancia Assembleia dos deuses A festa de Cronos Nesses casos
temos textos mais complexos entretanto respeitando a forma do diaacutelogo Os diaacutelogos
luciacircnicos satildeo analisados tendo em vista as narrativas miacuteticas tomadas como memoacuteria cultural
greco-romana
de miacutemeses disponiacutevel no tempo de Luciano e do uso que ele faz deste tendo em vista todo o legado cultural
helecircnico Toda a criacutetica aos textos luciacircnicos de certa maneira ou comprovam suas teses ou as refutam Ou seja
os lucianistas tecircm esse trabalho em alta conta Jacyntho Lins Brandatildeo afirma que ele eacute o mais completo estudo
sobre a poeacutetica luciacircnica e que o mesmo ainda natildeo foi superado (BRANDAtildeO 2001 19) De um lado esse trabalho
eacute fundamental para mostrar como os procedimentos poeacuteticos luciacircnicos mimeacuteticos satildeo utilizados a favor da
criatividade do escritor indo de encontro agraves teses que observam a literatura grega do periacuteodo imperial como
inferior 25 Trata-se de um texto em que Luciano descreve o culto agrave deusa Siacuteria chamada Dea Syria pelos romanos em
Hieraacutepolis Esse texto confunde os analistas por dois motivos por um lado Luciano utiliza o dialeto Jocircnico sendo
que ele eacute um dos expoentes do aticismo por outro lado o texto apresenta um tom seacuterio diferente que natildeo trata o
culto a essa deidade com comicidade O historiador Franz Cumont (1987 93-119) fornece algumas informaccedilotildees
sobre o culto a Dea Syria em Roma e principalmente as caracteriacutesticas de seu culto J L Linghtfoot (2003)
apresenta no livro Lucian on the Syrian Goddess uma cuidadosa traduccedilatildeo para o inglecircs acompanhada do original
bem como um amplo estudo sobre o culto a Atargatis tendo em vista o estado da arte das informaccedilotildees
arqueoloacutegicas sobre o templo de Hieroacutepolis e o culto a essa divindade Ele tambeacutem faz um minucioso estudo
filoloacutegico do texto e amplo comentaacuterio histoacuterico Robert Turcan faz a seguinte ponderaccedilatildeo sobre esse opuacutesculo
que trata do santuaacuterio de Hieraacutepolis ldquoum texto do seacuteculo II de nossa era uma espeacutecie de resenha publicitaacuteria que
estaacute colocada entre as obras de Luciano e que revela uma credulidade quase fingida () mas totalmente estranha
ao estilo e espiacuterito caacuteustico do escritor de Samoacutesatardquo (TURCAN 2001 132) Francesca Mestre (2007 35-37)
defende que esse texto eacute de Luciano e que o mesmo deve ser entendido como um registro que expressa o retorno
do escritor para sua casa daiacute a escolha de utilizar-se de outro dialeto 26 Luciano mescla em suas obras a flexibilidade do diaacutelogo socraacutetico com o riso da comeacutedia 27 Haacute ainda os Diaacutelogos das cortesatildes mas esses natildeo interessam ao debate que propomos nesta Tese uma vez que
os personagens apresentados por Luciano satildeo cortesatildes o que foge da nossa proposta de pensar as narrativas miacuteticas
nos textos desse escritor
26
Nesse sentido colocamos a primeira questatildeo historiograacutefica que orientou esta
pesquisa como a elite letrada formada a partir da Paideia helenoacutefila relacionou-se com o
ordenamento imperial Para dar mais indiacutecios que corroborem uma resposta a essa pergunta
propomos compreender a trajetoacuteria formadora de Luciano como um ldquointelectualrdquo atiacutepico da
Segunda Sofiacutestica
Existem duas perspectivas baacutesicas sobre a postura poliacutetica de Luciano de Samoacutesata
De um lado existe uma ampla tradiccedilatildeo que vecirc nele um escritor mergulhado no estudo dos textos
canocircnicos gregos e por esse motivo distante da realidade poliacutetica de sua eacutepoca Do outro lado
existe uma corrente que observa o siacuterio como um ativista poliacutetico que escreve contra o Impeacuterio
Romano A hipoacutetese que nos orienta nesta Tese observa que nenhuma das duas respostas estatildeo
inteiramente certas
Paul Veyne afirma que o lugar dos intelectuais gregos evidencia uma profunda
ambiguidade entre o apoio ao Imperador (os laccedilos que legitimam o poder imperial natildeo se datildeo
a uma ordem imaginada mas por meio de relaccedilotildees pessoais entre cidades e figuras
proeminentes com o Imperador) a certeza da superioridade intelectual helecircnica e certa
arrogacircncia em relaccedilatildeo agrave cultura latina (VEYNE 2009 80)
Em seguida analisamos a escrita luciacircnica isto eacute como esse autor produziu textos
literaacuterios que tinham a pretensatildeo de entreter a plateia por meio de uma narrativa que fugisse
dos elementos tradicionais de verossimilhanccedila Seu objetivo seria construir uma peccedila literaacuteria
que comunicasse que o inserisse no mundo tanto por meio de formas inovadoras e criativas
quanto pelo uso dos conteuacutedos presentes na tradiccedilatildeo claacutessica Deslindar a escrita luciacircnica em
sua construccedilatildeo formal permite a compreensatildeo de como tais registros podem dialogar com a
realidade histoacuterica Entender as regras de composiccedilatildeo literaacuteria e a proposta presente em cada
opuacutesculo orienta a interpretaccedilatildeo do texto luciacircnico na cultura imperial
Analisamos elementos da escrita luciacircnica ou seja como ele constroacutei um gecircnero
literaacuterio proacuteprio que mescla o diaacutelogo filosoacutefico agrave moda de Platatildeo e a comeacutedia Nesse sentido
o diaacutelogo satiacuterico age como veiacuteculo de ideias que produzem o riso numa tradiccedilatildeo estudada por
Mikhail Bakthin (2010 121-139) como o ldquococircmico-seacuteriordquo ou seja o riso tem a funccedilatildeo de fazer
o leitor ou ouvinte pensar O riso desarma numa sociedade na qual a criacutetica mordaz podia
significar a morte do escritor e a desaparecimento de seus escritos O riso coloca-se como ponte
privilegiada entre a reflexatildeo de um grupo e a realidade
Refletimos sobre a trajetoacuteria de Luciano de Samoacutesata tendo em vista o cenaacuterio
cultural da Segunda Sofiacutestica e sua presenccedila no Impeacuterio Romano sempre observando as
caracteriacutesticas estiliacutesticas do texto literaacuterio uma vez que estas colocam as fronteiras para a
27
tessitura da prosa artiacutestica O desafio para o historiador que se ocupa desses textos eacute justamente
encontrar os limites para a expressatildeo de ideias e sentimentos do mundo que os cercam
A nosso ver haacute em Luciano um modo de construir seu argumento que se aproxima
da parreacutesia socraacutetica O samosatense se coloca em seus escritos como aquele que deteacutem a
coragem da verdade Orienta-nos a ideia de que ele escreveu sobre essa modalidade de produzir
o dizer verdadeiro tendo em vista a possibilidade de repressatildeo
Um dos toacutepicos comuns no aprendizado da retoacuterica presente por exemplo no
Sobre o estilo28 de Demeacutetrio eacute a maneira de falar ao tirano Essa discussatildeo eacute posta da seguinte
maneira no manual de retoacuterica
Muitas vezes quando dirigimos a palavra a um tirano ou a qualquer outra
pessoa violenta dispostos a censuraacute-los usamos por necessidade o modo
figurado no discurso como fez Demeacutetrio de Faleiro contra Craacutetero da
Macedocircnia A esse que assentado sobre um leito de ouro com ar de
superioridade e envolto em uma manta puacuterpura recebia com soberba as
embaixadas dos gregos disse com censura por meio de modo figurado Noacutes
recebemos outrora como embaixadores natildeo soacute estes como este Craacutetero No
pronome decircitico este haacute uma indicaccedilatildeo de toda soberba de Craacutetero censurada
por meio de um modo figurado () Aleacutem disso muitas vezes tambeacutem
empregam a ambivalecircncia E caso algueacutem queira copiar esses e fazer
reprovaccedilotildees que natildeo sejam se fato reprovaccedilotildees um exemplo eacute a passagem
de Eacutesquines a propoacutesito do Telauges Quase toda a narraccedilatildeo sobre Telauguecircs
fornece uma aporia eacute algo a ser admirado ou eacute uma chacota Esse tipo de
ambiguidade apesar de natildeo ser na verdade uma ironia daacute a impressatildeo de secirc-
lo Mas poder-se-ia ainda empregar o modo figurado de uma maneira
diferente por exemplo assim uma vez que os soberanos e soberanas ouvem
falar de suas faltas com desagrado para aconselhaacute-los a natildeo cometecirc-las natildeo
o diremos diretamente mas reprovaremos outros por terem cometido falhas
semelhantes () E mencionei isso querendo demonstrar sobretudo o caraacuteter
do poder que demanda principalmente um discurso seguro chamado
lsquofiguradorsquo (Demeacutetrio Sobre o estilo289-293)29
28 Demeacutetrio discorre em dois momentos sobre a maneira na qual se deve dirigir a um governante na primeira vez
sua preocupaccedilatildeo eacute a escrita de cartas aos mesmos que essas devem ser elevadas mas natildeo podem perder a graccedila
(DemeacutetrioSobre o estilo234) O outro momento eacute aquele que realmente importa sobre como se deve falar diante
do governante que analisaremos no corpo do texto dada a relevacircncia para essa Tese 29 ldquoΠολλάκις δὲ ἢ πρὸς τύραννον ἢ ἄλλως βίαιόν τινα διαλεγόμενοι καὶ ὀνειδίσαι ὁρμῶντες χρῄζομεν ἐξ ἀνάγκης
σχήματος λόγου ὡς Δημήτριος ὁ Φαληρεὺς πρὸς Κρατερὸν τὸν Μακεδόνα ἐπὶ χρυσῆς κλίνης καθεζόμενον
μετέωρον καὶ ἐν πορφυρᾷ χλανίδι καὶ ὑπερηφάνως ἀποδεχόμενον τὰς πρεσβείας τῶν Ἑλλήνων σχηματίσας εἶπεν
ὀνειδιστικῶς ὅτι ὑπεδεξάμεθά ποτε πρεσβεύοντας ἡμεῖς τούσδε καὶ Κρατερὸν τοῦτον ἐν γὰρ τῷ δεικτικῷ τῷ
τοῦτον ἐμφαίνεται ltἡgt ὑπερηφανία τοῦ Κρατεροῦ πᾶσα ὠνειδισμένη ἐν σχήματι []
Πολλαχῆ μέντοι καὶ ἐπαμφοτερίζουσιν daggerοἷς ἐοικέναι εἴ τις ἐθέλοι καὶ ψόγους [εἰ καὶ ὁ ψόγους εἶναι θέλοι τις]
παράδειγμα τὸ τοῦ Αἰσχίνου τὸ ἐπὶ τοῦ Τηλαύγους πᾶσα γὰρ σχεδὸν ἡ περὶ τὸν Τηλαύγη διήγησις ἀπορίαν
παράσχοι ἄν εἴτε θαυμασμὸς εἴτε χλευασμός ἐστι τὸ δὲ τοιοῦτον εἶδος ἀμφίβολον καίτοι εἰρωνεία οὐκ ὂν ἔχει
τινὰ ὅμως καὶ εἰρωνείας ἔμφασιν
Δύναιτο δ ἄν τις καὶ ἑτέρως σχηματίζειν οἷον οὕτως ἐπειδὴ ἀηδῶς ἀκούουσιν οἱ δυνάσται καὶ δυνάστιδες τὰ
αὑτῶν ἁμαρτήματα παραινοῦντες αὐτοῖς μὴ ἁμαρτάνειν οὐκ ἐξ εὐθείας ἐροῦμεν ἀλλ ἤτοι ἑτέρους ψέξομέν τινας
τὰ ὅμοια πεποιηκότας []ταῦτα δ εἴρηκα ἐμφῆναι βουλόμενος μάλιστα τὸ ἦθος τὸ δυναστευτικόν [ὡς μάλιστα]
χρῇζον λόγου ἀσφαλοῦς ὃς καλεῖται ἐσχηματισμένοςrdquo
28
O topos30 pode ser uacutetil para entender os mecanismos utilizados para falar ao
Imperador No decorrer da nossa anaacutelise vamos observar como Luciano se utiliza desses
mecanismos para apresentar suas contestaccedilotildees agrave ordem ou comentar a realidade em que ele
vive Partimos deste lugar para colocar suas ideias o escritor utilizou recursos figurados para
apresentar suas ideias sobre o poder Haacute no texto luciacircnico os mesmos elementos citados acima
tais como ambivalecircncia e o elogio inverso
Se por um lado Luciano se coloca como o sincero essa palavra franca precisa ser
pensada na especificidade dos mecanismos de poder presentes no ordenamento imperial Diacuteon
Caacutessio senador e historiador romano conta que Ciacutecero teve a liacutengua arrancada e pregada na
porta do Senado Tais puniccedilotildees eram amplamente divulgadas com o intuito de servir de
exemplo Logo os autores tinham consciecircncia dos limites de sua accedilatildeo e de sua franqueza diante
do poder Trata-se portanto de um tema capital
Tal procedimento metodoloacutegico eacute fundamental para avanccedilar nas questotildees que
colocamos sobre a obra de Luciano jaacute que os cacircnones estiliacutesticos e literaacuterios assim como o
gecircnero satildeo elementos que orientam a escrita Como nos ensina Tzvetan Todorov o gecircnero
literaacuterio eacute um elemento histoacuterico que serve de veiacuteculo para determinadas posturas poliacuteticas
(TODOROV 1980 43-58)
Logo para enfrentar a questatildeo da postura poliacutetica do siacuterio investigamos por meio
dos fragmentos miacuteticos apresentados em seus escritos principalmente nos diaacutelogos A escolha
da mitologia justifica-se em primeiro lugar por uma constataccedilatildeo elaborada por Maurizio
Bettini (2011 19-25) em um texto intitulado As Reescritas do Mito Esse autor afirma que na
literatura claacutessica natildeo haacute o gosto pela inovaccedilatildeo mas um contiacutenuo trabalho de reescrita do mito
Ou seja existe um enorme nuacutemero de narrativas disponiacuteveis que podem ser recontadas
infinitamente Como diz o ditado popular ldquoQuem conta um conto aumenta um pontordquo
Luciano ao recontar como o Priacutencipe troiano Paris escolheu a mais bela das deusas
no diaacutelogo o Juiacutezo das deusas natildeo deixa de ser fecundo apenas apresenta sua criaccedilatildeo em um
modelo definido o que facilitava que o leitorouvinte decifrasse outros elementos disponiacuteveis
Certamente seria uma leviandade acusaacute-lo de falta de criatividade Antes de publicar um texto
era costume o autor participar de leituras puacuteblicas como forma de sentir a recepccedilatildeo do mesmo
e verificar a viabilidade de desprender recursos para sua publicaccedilatildeo Acompanhar uma estoacuteria
30 A palavra grega topos cujo plural eacute topoi ldquoNa retoacuterica claacutessica os toacutepicos eram natildeo soacute a mateacuteria dos argumentos
como tambeacutem os lugares-comuns formais (loci communes) empregado pelos oradores na composiccedilatildeo dos seus
discursosrdquo (MOISEacuteS 1992 494) Como Luciano eacute um autor que domina as teacutecnicas da retoacuterica antiga trata-se de
um exemplo de recurso memorialiacutestico utilizado conscientemente por esse escritor
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conhecida eacute mais faacutecil mesmo quando o autor altera algum elemento tradicional Logo recontar
narrativas populares eacute uma estrateacutegia para desviar o ouvido da estoacuteria em si para outros
componentes como por exemplo a beleza de sua linguagem
Eacute o proacuteprio Bettini quem nos daacute mais um elemento para avanccedilar na anaacutelise que
propomos Ele afirma que ldquoExistem pelo menos dois gecircneros literaacuterios antigos de que o mito
estaacute ausente como lsquotemarsquo como plot a comeacutedia e o romancerdquo (BETTINI 2010 24) Essa
colocaccedilatildeo lanccedila dois elementos que justificam a escolha em analisar os diaacutelogos luciacircnicos
pois eles apresentam uma forma hiacutebrida que une o diaacutelogo filosoacutefico platocircnico com a comeacutedia
Os diaacutelogos satiacutericos estatildeo num entre lugar estiliacutestico no qual o mito aparece com
a funccedilatildeo de comunicar ideias e valores Em seguida analisamos o conceito de mito atualmente
e na tradiccedilatildeo grega como estatildeo expressos nos diaacutelogos de Luciano Para isso temos de
questionar o proacuteprio conceito de mito na tradiccedilatildeo antiga e na obra desse autor Posteriormente
cotejamos essa proposta com os debates encaminhados pela historiografia antiga
Outro elemento importante que analisamos na Tese eacute a concepccedilatildeo que adotamos do
mito como uma memoacuteria coletiva As narrativas miacuteticas gregas satildeo construiacutedas em um terreno
no qual as accedilotildees dos deuses e dos homens se mesclam Como afirma Ken Dowden
a mitologia grega eacute fundamentalmente sobre homens e mulheres eacute uma mitologia
lsquohistoacutericarsquo Em sua maior parte natildeo eacute a participaccedilatildeo dos deuses animais falantes ou
maacutegicos que torna miacutetico o mito grego eacute antes a participaccedilatildeo de homens e mulheres
que viveram em illo tempore (tempos remotos) os tempos anteriores ao iniacutecio do
registro histoacuterico e para aleacutem da tradiccedilatildeo oral confiaacutevel na para-histoacuteria ou proto-
histoacuteria (DOWDEN 1994 34)
A ideia de que os mitos pertencem a um tempo remoto illo tempore foi cunhada
por Mircea Eliade (1981 35) em seu livro O mito do eterno retorno Essa concepccedilatildeo se coaduna
com a forma como entendemos o mito grego Natildeo interessa a sua existecircncia factual pois sua
proposta era de que ele era entendido pelas populaccedilotildees como um passado comum Nesse
caminho as apropriaccedilotildees das narrativas miacuteticas satildeo construccedilotildees memorialiacutesticas
Os usos do passado satildeo instrumentos eficazes para a constituiccedilatildeo do poder Ao
adaptar fragmentos da mitologia grega Luciano estaria manipulando um importante
componente da identidade helenoacutefila Tal trabalho natildeo visa somente ao passado miacutetico mas
constroacutei-se em uma bidimensionalidade isto eacute o passado desejado ou sonhado que reverbera
em um futuro almejado
A proacutepria escrita literaacuteria luciacircnica permite que personalidades de uma histoacuteria
recente transitem nesse entre-lugar com personagens miacuteticos Observe-se que no ateliecirc do
30
escritor mito e passado natildeo se diferenciam Por exemplo Luciano coloca Dioacutegenes31 e
Heacuteracles32 em um mesmo diaacutelogo (LUCIANO D mort XI)
Assim devemos investigar os viacutenculos entre poder e mitologia atentando para os
recortes miacuteticos que tratam justamente de praacuteticas de poder Entendemos poder como accedilatildeo de
fazer com que os outros ajam da maneira como queremos Temos como foco basicamente dois
pontos 1) Zeus e os limites da accedilatildeo do deus supremo do Olimpo explorando nesse sentido a
reflexatildeo sobre o destino exposta por Luciano no diaacutelogo Zeus Refutado e Zeus Traacutegico e
citado rapidamente na Assembleia dos deuses 2) outras situaccedilotildees que entendemos como
apropriadas satildeo as relacionadas com a manutenccedilatildeo do poder ou seja as preocupaccedilotildees dos
personagens sobre a possibilidade de serem pegos em condutas questionaacuteveis ou ainda os
perigos da queda Haacute aqui uma anaacutelise sobre os limites do poder de um soberano Analisamos
nesse ponto as relaccedilotildees entre Zeus e Prometeu e focamos o delicado problema da sucessatildeo
que aparece no relato mitoloacutegico e na praacutetica poliacutetica do Principado romano
No mundo greco-romano os escritores natildeo tinham o status juriacutedico e autoral que
outorgamos aos nossos autores Com o mesmo fito natildeo consideramos que Luciano tenha uma
obra pois entendemos que esse conceito expressa uma organicidade e uma intencionalidade
que natildeo existe nos seus escritos Nossa Tese se constroacutei neste lugar contraditoacuterio que busca
entender os registros luciacircnicos sem pensar os mesmos em uma unicidade Trata-se muito
mais de um trabalho de intertextualidade e de diaacutelogo que permite entender os discursos em
uma formaccedilatildeo discursiva33 Observar que o enunciado compotildee um discurso que soacute eacute permitido
em determinada formaccedilatildeo discursiva natildeo satildeo hipertrofiadas na morte do autor34 como
31 Dioacutegenes de Sinope (412-323 a C) foi um filoacutesofo ciacutenico disciacutepulo de Antiacutestenes Eacute o mais famoso dos
filoacutesofos ciacutenicos Nada do que escreveu chegou ateacute noacutes entretanto sabemos muito do cinismo antigo por meio
das anedotas que envolvem este personagem 32 Filho de Zeus e da mortal Alcmena foi perseguido durante sua vida pela deusa Hera tendo que cumprir os doze
trabalhos Eacute um dos poucos casos da literatura grega de apoteose de um semideus quando o mesmo eacute queimado
no vulcatildeo Oeta Um dos mais populares heroacuteis da Antiguidade era cultuado tanto pela elite quanto pelas camadas
mais baixas da sociedade Jean Bayet ressalta que no seacuteculo II os cultos aos deuses humanos principalmente
Heacuteracles e Escapulaacutepio teria um aumento significativo numa tentativa pagatilde de fazer frente ao nascente
cristianismo (BAYET 1984 276) No Diaacutelogo XI Dioacutegenes questiona o espectro de Heacuteracles sobre sua suposta
divindade (ARANTES JUNIOR 2008b 16) 33 Seguindo Michel Foucault em seu livro a Arqueologia do saber ldquochamaremos de discurso um conjunto de
enunciados na medida em que se apoiem na mesma formaccedilatildeo discursiva () eacute constituiacutedo de um nuacutemero limitado
de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condiccedilotildees de existecircnciardquo (FOUCAULT 2002 135)
Jaacute a noccedilatildeo de formaccedilatildeo discursiva apresenta ordem correlaccedilatildeo funcionamento e transformaccedilatildeo que satildeo ordenadas
por um conjunto de regularidades (FOUCAULT 200235-45) 34 Millocircr Fernandes tem uma frase que diz ldquoTudo o que eu digo acreditem teria mais solidez se em vez de
carioquinha eu fosse um velho chinecircsrdquo (FERNANDES apud GOMES 1994 5) A ironia dessa frase esconde
duas coisas importantes para a nossa anaacutelise Em primeiro lugar a noccedilatildeo de autoridade que instintivamente damos
aos textos antigos como se os mesmos fossem detentores de uma aura mais profunda de um segredo que deve ser
decifrado Assim como o ldquoefeito de autoriardquo uma noccedilatildeo que natildeo existia antes da modernidade Esse enunciado
nos lembra as indagaccedilotildees de Michel Foucault (1992 32) sobre a atribuiccedilatildeo de determinado enunciado a um
31
propotildeem os filoacutesofos Michel de Foucault (1992) e Roland Barthes (2012 57-65) Jaacute que haacute no
processo de escrita intencionalidade por parte de quem escreve sem deixar de mencionar a
criatividade em escolher os elementos disponiacuteveis e inventar algo diferente Defendemos que a
escrita nunca eacute livre de orientaccedilotildees metanarrativas os chamados regimes de escrita mas que
dentro dos limites estabelecidos os autores inventam criam Ressaltemos sempre o texto de
caraacuteter literaacuterio tem o fito de ideais esteacuteticos
Analisamos a relaccedilatildeo dos personagens miacuteticos com os homens com o objetivo de
compreender como Luciano representou relaccedilotildees entre hierarquias existenciais diacutespares no
caso homens heroacuteis e deuses Nesse ponto as barreiras entre a vida e a morte a posse do
proacuteprio corpo ou o controle dos seus desejos e as conturbadas relaccedilotildees amorosas dos deuses
satildeo vistos sempre como relaccedilotildees construiacutedas em situaccedilotildees de poder assim como a inversatildeo
controlada da ordem Nesse passo analisamos os seguintes diaacutelogos O juiacutezo das deusas As
saturnaacutelias Caronte ou os contempladores Diaacutelogos dos deuses marinhos e Os diaacutelogos dos
mortos Tendo em vista esse percurso este trabalho estaacute organizado em trecircs capiacutetulos aleacutem
desta introduccedilatildeo e das consideraccedilotildees finais
No primeiro capiacutetulo apresentamos Luciano de Samoacutesata traccedilando um panorama
de sua trajetoacuteria tendo em vista que ele participa de um fenocircmeno cultural batizado por
personagem especiacutefico pois isso muda o olhar sobre o discurso Como afirma Claude Calame ldquoo autor se revela
por ser o resultado de uma construccedilatildeo que se situa na crenccedila de diferentes paracircmetros da ordem juriacutedica e
institucionalrdquo (CALAME 2004 12) Essa funccedilatildeo permite a atribuiccedilatildeo nominal o reconhecimento social e a
autenticaccedilatildeo dos textos Roger Chartier ao revisitar a reflexatildeo seminal de Foucault afirma que ldquoPodemos dizer
que a funccedilatildeo autor natildeo eacute somente uma funccedilatildeo mas tambeacutem uma ficccedilatildeo e uma ficccedilatildeo semelhante a essas ficccedilotildees
que dominam o direito quando ele constroacutei sujeitos juriacutedicos que estatildeo distantes das existecircncias individuais dos
sujeitos empiacutericosrdquo (CHATIER 2012 29-31) Tendo em vista esses elementos acreditamos que o conceito de
obra tambeacutem deve ser revisto uma vez que esta categoria enseja coerecircncia e projeto de unicidade construiacutedo no
largo das vezes por criacuteticos apoacutes o falecimento do escritor Tais pontos levam-nos a apresentar um cuidado
metodoloacutegico ao analisar os textos luciacircnicos em sua individualidade na tentativa de encontrar as linhas mestras
desta formaccedilatildeo discursiva Alguns pontos podem ser colocados de uma perspectiva mais conservadora de leitura
1) existe um autor definido como escritor destes textos por meio da filologia 2) esses escritos satildeo o produto de
um contexto definido 3) existem alguns elementos de unicidade tais como gecircnero modos de validaccedilatildeo
enunciativa visatildeo de mundo Em primeiro lugar devemos entender a filologia como um saber que responde a
questotildees de uma determinada eacutepoca no caso a Modernidade indagaccedilotildees essas que satildeo distintas daquelas presentes
no momento de confecccedilatildeo do texto Natildeo se trata aqui de denegrir o campo de atuaccedilatildeo dos filoacutelogos mas de
ressaltar que na Antiguidade natildeo havia a necessidade de atribuiccedilatildeo rigorosa como nos dias de hoje Logo a
preocupaccedilatildeo da existecircncia de um indiviacuteduo produtor destes discursos hipertrofia os questionamentos referentes agrave
constituiccedilatildeo desta formaccedilatildeo discursiva que transcende o indiviacuteduo produtor do texto Em segundo lugar a loacutegica
de um contexto que garante esta postura mais tradicional fica comprometida uma vez que os contextos satildeo
pensados pelos historiadores a partir de indiacutecios presentes com todo rigor tendo como suporte elementos criativos
e regras de validaccedilatildeo dos enunciados que produziram efeitos realiacutesticos Os contextos natildeo existem externos ao
trabalho do historiador assim como o passado Construiacutemos o passado por meio dos indiacutecios visto que ele natildeo
existe mais simplesmente passou Assim contextos natildeo podem garantir a unicidade de discursos jaacute que a dialeacutetica
entre documentaccedilatildeo e tessitura dos contextos eacute extremamente complexa Finalmente esses elementos de unicidade
satildeo configuraccedilotildees de aspectos externos de produccedilatildeo escrita modelos gecircneros que concorrem em um espaccedilo
metanarrativo o que natildeo supera os elementos criadores dos indiviacuteduos Ressaltamos que a criatividade eacute
rigorosamente tabulada nestes elementos Os textos satildeo produzidos na dialeacutetica com o real logo o trabalho do
historiador eacute tentar entender esse diaacutelogo entre realidade e discurso numa fraacutegil relaccedilatildeo epistemoloacutegica
32
Filoacutestrato de Segunda Sofiacutestica Neste passo da Tese contextualizamos os textos desse escritor
no periacuteodo dos Antoninos assim com as especificidades de seu regime de memoacuteria Aleacutem disso
indagamos sobre a escrita luciacircnica e as caracteriacutesticas da parreacutesia como forma de dizer elegida
por ele na maioria de seus escritos
No segundo capiacutetulo abordamos o conceito de mito agrave luz da moderna antropologia
e da Histoacuteria Cultural o conceito de mito na tradiccedilatildeo greco-romana e as definiccedilotildees de mito na
obra de Luciano de Samoacutesata Dessa forma compreendemos como esse autor expressou o
conteuacutedo miacutetico e os significados que o mesmo teve em seus escritos
No terceiro capiacutetulo apresentamos os usos poliacuteticos da narrativa miacutetica nos
diaacutelogos luciacircnicos tendo em vista os elementos que configuram o regime de memoacuteria greco-
romano analisamos os usos que os saberes antigos (mitologia retoacuterica e filosofia) propotildeem
para a memoacuteria e indagamos sobre os viacutenculos entre memoacuteria e poder nos escritos de Luciano
de Samoacutesata Nesse uacuteltimo item investigamos as relaccedilotildees de poder entre os personagens
miacuteticos as maneiras de deliberaccedilatildeo os debates acerca da sucessatildeo dos governantes e sobre a
manutenccedilatildeo do poder estabelecido buscando uma analogia com o que ocorria no tempo em que
ele produziu seus escritos
Essa indagaccedilatildeo dos textos luciacircnicos somente eacute possiacutevel pelo deslocamento dos
interesses dos historiadores neste iniacutecio de seacuteculo Seguindo esse roteiro vislumbramos uma
nova possibilidade de analisar a relaccedilatildeo de Luciano e o poder imperial tendo em vista que os
usos que ele faz dos mitos ensejam elementos para uma reflexatildeo sobre o poder que natildeo estaacute
alijada do contexto imperial dos Antoninos
33
Capiacutetulo I
Luciano de Samoacutesata a Segunda Sofiacutestica e o Impeacuterio Romano
relaccedilotildees ambiacuteguas entre literatura e poder
Luciano de Samoacutesata nasceu35 provavelmente entre os anos de 115-120 na cidade de
Samoacutesata antiga capital do reino de Camogema uma regiatildeo estrateacutegica para o Impeacuterio
Romano jaacute que ficava proacuteximo a um conflituoso limes Como colocamos na introduccedilatildeo deste
trabalho o siacuterio produziu um extenso corpus literaacuterio que tem intrigado os estudiosos sobre sua
relaccedilatildeo com o Impeacuterio Romano
O samosatense constroacutei em alguns de seus escritos uma imagem na qual destaca
elementos de sua trajetoacuteria sociopoliacutetica e cultural decisatildeo de se dedicar agrave Paideia formaccedilatildeo
retoacuterica viagens e debates contemporacircneos Como essa imagem eacute desprendida de seus escritos
suas informaccedilotildees e conclusotildees desdobradas estatildeo no campo do provaacutevel Entretanto isso natildeo
nos impede de analisar essa imagem e principalmente compreender algumas intencionalidades
construiacutedas pelo escritor em seus textos
Nesse sentido cabe aqui o confronto dessa imagem com os aspectos historiograacuteficos
referentes agrave atuaccedilatildeo de oradores e escritores helenoacutefilos na Segunda Sofiacutestica conceituaccedilatildeo e
atuaccedilatildeo sociocultural no Impeacuterio Romano Em seguida debatemos a relaccedilatildeo do samosatense
com esse fenocircmeno cultural e neste passo discutimos as teses pertinentes agrave relaccedilatildeo dos
intelectuais helenoacutefilos com a cultura imperial romana Tendo em vista os viacutenculos de Luciano
e o Imperador quando ele assume um cargo em Alexandria na administraccedilatildeo da proviacutencia
imperial do Egito analisamos seus escritos literaacuterios objetivando a apreciaccedilatildeo dos gecircneros
trabalhados pelo autor dando atenccedilatildeo maior ao diaacutelogo satiacuterico uma vez que nosso recorte
centra-se nesse gecircnero especiacutefico Finalmente construiacutemos uma anaacutelise do discurso do siacuterio
tendo como guia a noccedilatildeo de parreacutesia isto eacute franqueza sinceridade que permite ter a coragem
de dizer a verdade
35 A Suda afirma que Luciano nasceu sob o governo de Trajano ou seja posterior a 117 Jacques Schwarts (1965
14) propotildee 119
34
11 A trajetoacuteria e os escritos de Luciano de Samoacutesata como ser siacuterio escrever em
grego e estar no Impeacuterio Romano
Luciano de Samoacutesata escreveu um vasto nuacutemero de textos em grego aacutetico36 Sabemos
muito pouco a respeito de sua trajetoacuteria intelectual e sociopoliacutetica Podemos inferir com certeza
somente as informaccedilotildees fornecidas em seu nome Luciano eacute um nome latinizado37 o que
provavelmente ajudava em sua inserccedilatildeo sociopoliacutetica As outras informaccedilotildees que temos satildeo
desprendidas da anaacutelise de seus escritos
Como mencionado Luciano nasceu em Samoacutesata (Luciano Hist Co 24 11) uma
cidade fortificada capital do reino de Comagena38 (Ver mapa I) situada no norte da Siacuteria agrave
margem direita do Eufrates (hoje Samsacirct) Comagena (Ver mapa III) era um pequeno reino
helenizado dominado inicialmente por Tibeacuterio entretanto Claacuteudio devolveu esse reino aos
antigos soberanos O Imperador Vespasiano reconquistou esse territoacuterio aproximadamente
cinquenta anos antes do nascimento de Luciano
A populaccedilatildeo de Samoacutesata tinha origem iracircnico-semiacutetica e sua helenizaccedilatildeo data do
primeiro seacuteculo aC As principais instituiccedilotildees permaneceram com caraacuteter greco-iraniano
mesmo sob o domiacutenio romano (BRANDAtildeO 2001 328) Infelizmente como afirma
Christopher P Jones (1986 03-23) haacute uma ausecircncia de escavaccedilotildees arqueoloacutegicas na regiatildeo o
que eacute lamentaacutevel uma vez que neste local havia uma encruzilhada fluvial e diversas estradas
que davam acesso por um lado agrave Mesopotacircmia agrave Peacutersia e agrave Iacutendia e de outro agrave Ciliacutecia e agrave
Capadoacutecia e naturalmente agrave Siacuteria (Ver mapa III)
A conquista de Comagena se insere em um movimento histoacuterico maior das rivalidades
intensas com a Paacutertia Pouco a pouco o Impeacuterio Romano absorveu alguns reinos clientes
helenizados como Capadoacutecia (44) Comagena (72) e Araacutebia Nabatea (106) A cidade-estado
de Palmira conhecida no mundo antigo por seu esplendor e riqueza foi incorporada ao Impeacuterio
no seacuteculo II Do mesmo modo o reino de Osroene cuja capital era Edessa foi convertido em
colocircnia por Caracala (211-217) (MILLAR 1970 101-102)
Havia quatro legiotildees estacionadas na Siacuteria (ver mapa IV) Fergus Millar ressalta que ldquoas
fotografias aeacutereas revelaram uma ampla rede de fortalezas romanas no deserto siacuterio e na
36O aticismo eacute uma das principais caracteriacutesticas estiliacutesticas da Segunda Sofiacutestica e consiste na imitaccedilatildeo do grego
escrito na Aacutetica durante o periacuteodo claacutessico da cultura helecircnica basicamente os seacuteculos V e IV a C 37 Lucianus eacute a forma latina que deriva Luciano em Portuguecircs ele utiliza em vaacuterios diaacutelogos a forma Lykinos que
provavelmente eacute uma versatildeo em grego de seu nome 38 Luciano natildeo descreveu sua terra natal natildeo falou das gigantescas esculturas dos reis de Camogema nem de sua
paisagem tanto que Hadrien Bru (2011 94) faz apenas uma citaccedilatildeo da obra de Luciano em seu trabalho sobre o
poder imperial nas proviacutencias siacuterias
35
Mesopotacircmiardquo (MILLAR 1970 102) Paulatinamente essa concentraccedilatildeo de forccedilas foi dispersa
em posiccedilotildees fortificadas pelo limes A presenccedila de legiotildees estacionadas reflete a animosidade
constante que envolve essa regiatildeo do Impeacuterio e dois pontos devem ser ressaltados a presenccedila
dos Partos e algumas rotas comerciais importantes (ver mapas II e III)
A XVI Legiatildeo Flaacutevia estava estacionada proacutexima agrave cidade de Samoacutesata desde 72
(PETTIT 1989 112) denotando o contato dos moradores com o poder romano por meio das
relaccedilotildees socioeconocircmicas e culturais estabelecidas com os soldados oriundos de outras partes
do Impeacuterio o que era fundamental para proteger o limes oriental de uma possiacutevel invasatildeo
paacutertica (GRIMAL 1973 104) Isso representa a presenccedila do poder imperial nessa regiatildeo
Os soldados presentes em uma legiatildeo natildeo ficam ociosos esperando uma batalha Yann
Le Bohec argumenta que os soldados eram matildeo de obra relativamente qualificada que natildeo
apresentava custos ao Estado visto que eles podiam ser responsaacuteveis pelo correio oficial pela
proteccedilatildeo dos cobradores de impostos e ainda trabalhar na construccedilatildeo e na manutenccedilatildeo de obras
puacuteblicas39 O autor ainda enfatiza a interaccedilatildeo econocircmica a partir do gasto dos soldos dos
militares a difusatildeo religiosa de determinados cultos religiosos e a romanizaccedilatildeo do Impeacuterio Haacute
um processo dialoacutegico da interaccedilatildeo de soldados das mais distintas regiotildees imperiais com a
populaccedilatildeo local e a cultura grega e latina faz a ponte entre os costumes locais e aqueles que
chegam para servir na XVI Legiatildeo Flaacutevia (LE BOHEC 2007 21 327) Essa legiatildeo permite o
estabelecimento de relaccedilotildees poliacuteticas (jaacute que a mesma representa a forccedila militar do Impeacuterio)
interaccedilotildees econocircmicas culturais e religiosas travadas entre representantes romanos e moradores
provinciais Nesse contexto nasceu Luciano de Samoacutesata autor que sempre enfatizou em seus
escritos sua origem siacuteria
Para auxiliar os historiadores que desejam construir uma biografia de Luciano restam
apenas as referecircncias impliacutecitas em seus escritos Jacques Schwartz (1965) estabeleceu em sua
Biographie de Lucien de Samosate a mais coerente dataccedilatildeo para as obras de Luciano Alguns
eventos podem ser usados como terminus post quem ou ante quem como as Guerras Paacuterticas40
(161) e a morte de Peregrino (169) No opuacutesculo Alexandre ou o falso profeta Schwartz e
39Por exemplo em fevereiro do ano de 107 foi construiacuteda uma calccedilada em Eilat atraveacutes da Bostra ateacute o limite
com a Siacuteria proacuteximo de Damasco Essa obra foi encaminhada por soldados romanos (MILLAR 1970 110) 40 Ana Teresa Marques Gonccedilalves resume essa Guerra nos seguintes termos ldquoOs partos atacaram ldquoestados-
clientesrdquo romanos em 161-162 dC jaacute no governo colegiado de Marco Aureacutelio e Luacutecio Vero O rei Vologeso III
invadiu a Armecircnia e a Siacuteria procurando expandir os domiacutenios territoriais partos Foi o proacuteprio Luacutecio Vero quem
foi agrave frente das legiotildees romanas enviadas para combater mais uma vez os partos Novamente Ctesifonte foi
invadida pilhada e destruiacuteda mas a regiatildeo permaneceu fora do limes pois os partos aceitaram assinar um acordo
no qual devolviam as regiotildees conquistadas previamente e entregavam aos romanos a cidade de Doura-Europos
(166 dC) A cidade de Carras de tatildeo maacute lembranccedila para os romanos foi reduzida agrave condiccedilatildeo de colocircnia Aleacutem
disso uma peste dizimou boa parte das legiotildees que estavam no Oriente e os Quados e Marcomanos atacaram a
regiatildeo do Reno-Danuacutebio A ameaccedila parta permaneceu assim esporaacutedicardquo (GONCcedilALVES 2005 16)
36
Bompaire apontam mais um indiacutecio importante a referecircncia a Marco Aureacutelio como ldquoΘεograveς
Μάρκοςrdquo (divino Marcos) (Luciano Alex 48) do que inferem que Luciano teria sobrevivido
ao Imperador filoacutesofo Entretanto o siacuterio poderia estar escarnecendo dos poderes do Imperador
por meio de uma fina ironia jaacute que esse foi enganado por um charlatatildeo41 Outro ponto que
enfraquece a argumentaccedilatildeo do lucianista eacute que no Impeacuterio Romano do Oriente o governante
era tratado como Θεograveς (deus) naturalmente assim como tinha o mesmo status de um Faraoacute na
proviacutencia do Egito (PRICE 1984 86 SARTRE 1994 110)
Era comum que o Imperador fosse tratado por Θεograveς logo o uso de Luciano pode apenas
expressar isso pois essa forma era amplamente usada no Oriente Sabemos que
tradicionalmente no Ocidente Imperador vivo natildeo poderia ser cultuado como deus mas seu
genius era divinizado ou seja os elementos miacuteticos que o vinculavam agraves divindades tornavam
a sua famiacutelia divina (BICKERMAN 19729) Natildeo podemos esquecer que apoacutes a morte muitos
Imperadores haviam sido consagrados deuses por meio da consecratio entretanto na traduccedilatildeo
cultural essas sutilezas se perdem com muita facilidade e a compreensatildeo eacute feita a partir dos
padrotildees culturais existentes No caso do Oriente o Imperador tem seu culto influenciado pelos
reis heleniacutesticos que sucederam Alexandre Magno
Christopher P Jones afirma que Luciano esteve na corte de Lucio Vero durante a
campanha militar deste Princeps (JONES 1986 68-77) Tal premissa foi aceita por alguns
autores que reverberam em uacuteltimo grau as consequecircncias desse fato O mais recente caso eacute do
historiador francecircs Alain Billault (2010146-148) que analisou alguns escritos luciacircnicos como
composiccedilotildees de um escritor cortesatildeo feitas para bajular o Imperador Lucio Vero e em seguida
conseguir um cargo na administraccedilatildeo imperial no Egito
Natildeo podemos menosprezar essa nomeaccedilatildeo Essa proviacutencia era uma das mais
importantes do Impeacuterio Romano pois juntamente com a Siciacutelia era considerada um dos
celeiros do mundo antigo Foi anexada ao Impeacuterio por Otaacutevio apoacutes a batalha naval do Actium
(31 aC) que derrotou a esquadra de Marco Antocircnio e Cleoacutepatra Augusto decidiu que a antiga
terra dos faraoacutes seria uma proviacutencia pessoal ou seja ela faria parte do patrimocircnio do Princeps
Todos os tributos recolhidos ali seriam enviados ao patrimonium caesaris ao inveacutes de ir para
o Aerarium Saturni42 Para viajar agraves terras egiacutepcias os membros da ordem senatorial
41 Luciano estaacute falando do ldquohomem divinordquo Alexandre de Abonotico que aos seus olhos eacute um charlatatildeo Neste
passo o siacuterio fala de um oraacuteculo enviado ao Imperador referente agrave guerra contra os germanos Logo a ideia da
presenccedila da ironia luciacircnica aqui se justifica pelo contexto A ediccedilatildeo da Loeb cuja traduccedilatildeo eacute de A M Hamom
natildeo marca em sua versatildeo para o inglecircs esse termo O que ocorre por exemplo na versatildeo espanhola publicada pela
Gredos de Joseacute Luis Navarro Gonzaacutelez e na do brasileiro Daniel Gomes Bretas 42 A ideia eacute que esses recursos sejam gastos com os cidadatildeos romanos em obras puacuteblicas no pagamento de legiotildees
abastecimento de cidades construccedilotildees puacuteblicas e festividades entre outras possibilidades O Imperador poderia se
37
precisavam da autorizaccedilatildeo expressa do Imperador Dada a importacircncia estrateacutegica da
arrecadaccedilatildeo de impostos o cargo de Prefeito do Egito era ocupado sempre por algueacutem muito
proacuteximo agrave corte imperial Os funcionaacuterios da administraccedilatildeo imperial no Egito eram membros
da ordem equestre
Sabemos que Luciano esteve no Egito graccedilas ao opuacutesculo Em defesa dos que
recebem salaacuterios (Luciano Apol 4) As premissas colocadas por Jones satildeo desdobradas de
maneira interessante por alguns eruditos como Billaut Luciano teria participado da corte de
Lucio Vero durante a guerra dos romanos contra os partos assumindo uma postura cortesatilde Ele
teria escrito alguns discursos bajulatoacuterios a Panteia amante do co-Imperador Billaut
conjectura que bajular a amante do Imperador seria uma forma indireta de atingir o governante
e assim abrir caminhos para benesses poliacuteticas como a indicaccedilatildeo a um cargo na administraccedilatildeo
da proviacutencia do Egito Ser nomeado para um cargo no Egito significava proximidade com
grupos que sustentavam diretamente o poder e a legitimidade do Imperador
Ele foi para Alexandria jaacute velho como ele mesmo diz no opuacutesculo Apologia aos que
recebem salaacuterio (Luciano Apol 4) Schwartz (1965 12-14) propotildee as datas de 170-175 Ele
parte de uma hipoacutetese fascinante mas que carece de comprovaccedilatildeo empiacuterica Esse autor afirma
que para ocupar um cargo destinado a um membro da ordem equestre sem experiecircncia Luciano
teria utilizado a influecircncia que tinha com o Prefeito do Egito Essa dataccedilatildeo eacute indicada pela
ocupaccedilatildeo do cargo por C Calvisius Statianus que seria proacuteximo dos ciacuterculos letrados fato que
sabemos por meio da correspondecircncia de Frontatildeo Mesmo sem haver quaisquer referecircncias nas
correspondecircncias de Frontatildeo (o autor tinha muita influecircncia jaacute que foi preceptor de Marco
Aureacutelio e trocou com ele inuacutemeras missivas) a hipoacutetese de um viacutenculo entre o Imperador
Frontatildeo Calvisius Statianus e Luciano eacute estabelecida O fasciacutenio dessa hipoacutetese natildeo suporta o
exame da documentaccedilatildeo
O siacuterio descreve assim sua estada e suas funccedilotildees nas antigas terras dos faraoacutes
() na vida privada tenho igualdade de direitos e em puacuteblico participo do mais
alto niacutevel de comando e colaboro no que me diz respeito E se olhares
pensaraacutes que natildeo eacute muito pequena minha parte no governo do Egito iniciar
processos ordenaacute-los devidamente escrever memoacuterias do que se fez e disse
moderar as intervenccedilotildees dos litigantes manter com maior clareza e o maior
detalhe com maior fidelidade os decretos do governador e publicaacute-los para
que se conservem para sempre E o salaacuterio natildeo vem de um particular mas sim
do Imperador tampouco eacute pequeno mas muitos talentos Para o futuro as
utilizar desses recursos das mais variadas formas e propagandear tudo que fez Por exemplo os capiacutetulos XX-
XXIII das Res Gestae Diui Augusti indicam as mais diversas formas de investir os recursos egiacutepcios (Augusto
RGDA XX-XXIII)
38
esperanccedilas natildeo satildeo pequenas se acontecer o normal supervisar uma proviacutencia
ou algumas outras questotildees imperiais (Luciano Apol 14) 43
Por meio dessa descriccedilatildeo e do cotejo com outras fontes44 os especialistas debatem
o cargo que Luciano ocupou M H-G Pflaum (1959 282) eminente especialista na epigrafia
referente a carreiras de membros da ordem equestre propocircs em 1959 a partir de anaacutelises da
epigrafia de um cursus equestre que ele teria sido Archistator Praefecti Aegypti
Jaacute Hans Vander Lest (1985 79-82) egiptoacutelogo especialista em papirologia do
periacuteodo romano propotildee o cargo de εigraveσαγωγεύς Eacute interessante notar que Luciano usa a palavra
εigraveσάγειν Trata-se de um trabalho infrutiacutefero cujas conclusotildees satildeo por demais hipoteacuteticas Alain
Martin defende que archistator seria um cargo mais apropriado a um membro da ordem
equestre (MARTIN 2010 194-195) Tais palavras poderiam inclusive designar a mesma
funccedilatildeo dado que uma estaacute em latim e a outra em grego
Esse debate sobre a presenccedila de Luciano na corte de Lucio Vero e sua ida ao Egito
foi hipertrofiado na anaacutelise de alguns textos Alain Billault investiga esses opuacutesculos a partir da
premissa de serem textos que Luciano teria escrito com o intuito de agradar ao co-Imperador
O que mais nos causa estranheza eacute que ao ler os textos Sobre a Danccedila Os retratos Em defesa
dos retratos e Como se deve escrever a Histoacuteria natildeo encontramos nenhuma alusatildeo agrave presenccedila
de Luciano na corte do Imperador
O primeiro texto eacute uma defesa da pantomima45 Billault traccedila a seguinte hipoacutetese
tendo em vista que o escritor da Histoacuteria Augusta nos informa que Lucio Vero gostava desses
espetaacuteculos o exerciacutecio retoacuterico luciacircnico de defesa desta arte teria o intuito de bajular
indiretamente o Princeps (BILLAULT 2010 148) Tal hipoacutetese natildeo se sustenta jaacute que
ldquodefender o indefensaacutevelrdquo era o mote para diversos autores tendo em vista aprimorar a teacutecnica
retoacuterica e explorar os recursos argumentativos Natildeo se trata de uma anormalidade luciacircnica
43 ldquo[] τὰ μὲν οἴκοι ἰσότιμα ἡμῖν δημοσίᾳ δὲ τῆς μεγίστης ἀρχῆς κοινωνοῦμεν καὶ τὸ μέρος συνδιαπράττομεν
ἔγωγ οὖν εἰ σκέψαιο δόξαιμ ἄν σοι οὐ τὸ σμικρότατον τῆς Αἰγυπτίας ταύτης ἀρχῆς ἐγκεχει ρίσθαι τὰς δίκας
εἰσάγειν καὶ τάξιν αὐταῖς τὴν προσήκουσαν ἐπιτιθέναι καὶ τῶν πραττομένων καὶ λεγομένων ἁπαξαπάντων
ὑπομνήματα γράφεσθαι καὶ τάς τε ῥητορείας τῶν δικαιολογούντων ῥυθμίζειν καὶ τὰς τοῦ ἄρχοντος γνώσεις πρὸς
τὸ σαφέστατον ἅμα καὶ ἀκριβέστατον σὺν πίστει τῇ μεγίστῃ διαφυλάττειν καὶ παραδιδόναι δημοσίᾳ πρὸς τὸν ἀεὶ
χρόνον ἀποκεισομένας καὶ ὁ μισθὸς οὐκ ἰδιωτικός ἀλλὰ παρὰ τοῦ βασιλέως οὐ σμικρὸς οὐδὲ οὗτος ἀλλὰ
πολυτάλαντος καὶ τὰ μετὰ ταῦτα δὲ οὐ φαῦλαι ἐλπίδες εἰ τὰ εἰκότα γίγνοιτο ἀλλὰ ἔθνος ἐπιτραπῆναι ἤ τινας
ἄλλας πράξεις βασιλικάςrdquo 44 Por exemplo as inscriccedilotildees paleograacuteficas contendo o cursus honorum de funcionaacuterios que estavam no Egito
assim como em papiros do periacuteodo romano 45 Pantomima era uma forma de entretenimento dramaacutetico no qual um tema (geralmente mitoloacutegico) era
apresentado Um ator danccedilava em silecircncio acompanhado por instrumentos musicais e um coro O ator usava
diferentes maacutescaras para mudar os papeis aleacutem de roupas luxuosas Nesta performance ligavam-se representaccedilatildeo
teatral e danccedila Os gregos marginalizavam esse tipo de arte e por esse motivo viam com maus olhos a inscriccedilatildeo
nos concursos Entretanto a mesma tinha muito prestiacutegio entre os romanos que a conheciam desde o ano 22 aC
39
mesmo na Segunda Sofiacutestica a construccedilatildeo deste tipo de discurso Muito pelo contraacuterio era uma
praacutetica recorrente mesmo na obra de Luciano Lembremos que ele constroacutei um Elogio agrave mosca
por exemplo
Os outros dois opuacutesculos Os retratos e Em defesa dos retratos seriam direcionados
agrave descriccedilatildeo de retratos de Panteia a amante de Luacutecio Vero o que tambeacutem eacute bastante conjectural
Por fim o tratado sobre a escrita da Histoacuteria pode inclusive ser visto como um texto contra o
Impeacuterio como defende Brandatildeo (2009 145) Retornaremos a esse aspecto quando falarmos da
presenccedila de Luciano no Egito ainda neste capiacutetulo
Luciano teria permanecido em Antioquia e visitou Abonotico e Samoacutesata Em sua
visita agrave cidade natal pronuncia o discurso O sonho ou sobre a vida de Luciano A partir de 165
teria vivido em Alexandria no Egito local em que teria ocupado um cargo na administraccedilatildeo
imperial Em 175 retorna mais uma vez a Atenas Sua morte deve ter ocorrido apoacutes 181
Ao interrogar o corpus luciacircnico sobre a vida desse escritor natildeo podemos esquecer que
Luciano natildeo era comprometido com a factualidade dos eventos observe-se que isso natildeo o torna
algueacutem que escreve desvinculado de sua realidade como Jacques Bompaire (2000) sugere
Segundo tese defendida por esse autor o siacuterio escreveria imerso em sua biblioteca em seus
livros e a realidade externa natildeo seria um elemento relevante Nessa perspectiva o trabalho de
criaccedilatildeo luciacircnica deveria ser analisado por meio dos desdobramentos do conceito de miacutemesis
tanto na tradiccedilatildeo antiga quanto nos escritos luciacircnicos Nesta Tese objetivamos dar outro
formato agraves anaacutelises dos escritos luciacircnicos Uma vez que o imenso conhecimento advindo do
estudo dos textos canocircnicos da tradiccedilatildeo cultural helecircnica natildeo impede que esse patrimocircnio seja
pensado como forma de refletir sua realidade devemos questionar se a dedicaccedilatildeo ao estudo
desses seria um indicativo de desvinculaccedilatildeo literaacuteria com seu mundo
Luciano escolhe contar ldquomentiras variadas de maneira convincente e verossiacutemilrdquo
(LUCIANO V H I 2)46 47 assim as informaccedilotildees biograacuteficas ficam em uma zona obscura
entre as condiccedilotildees materiais de existecircncia e os eventos vividos pelo autor que os escreve a
partir de criteacuterios de ficcionalidade valorizando as relaccedilotildees entre a forma e o conteuacutedo
apresentado Nesse sentido nossas questotildees natildeo estatildeo voltadas simplesmente para a
determinaccedilatildeo de lugares e datas na curta duraccedilatildeo mas para a compreensatildeo de elementos
conjunturais (o papel deste escritor e o diaacutelogo de seus discursos com seu tempo) e estruturais
(a identidade helecircnica no seio do Impeacuterio Romano) Assim a vida de Luciano soacute nos interessa
46 Optamos por citar o texto luciacircnico pelos tiacutetulos abreviados de sua versatildeo latina Nesse caso usamos a traduccedilatildeo
Das Narrativas Verdadeiras de Lucia Sano (2008) 47 ldquoψεύσματα ποικίλα πιθανῶς τε καὶ ἐναλήθωςrdquo
40
se ela puder contribuir para a compreensatildeo desses elementos bem como sublinhar os valores
por ele apresentados
Mesmo com essas ressalvas necessaacuterias eacute importante sublinhar que a imagem presente
em seus escritos permite analisar alguns valores que ele provavelmente gostaria de enfatizar
como tambeacutem temos acesso a alguns indiacutecios sobre o lugar que ocupava na sociedade
Outro fato relevante eacute que sua liacutengua materna natildeo era o grego como afirma no opuacutesculo
Dupla Acusaccedilatildeo Falava uma liacutengua baacuterbara que natildeo sabemos qual seria Nesse diaacutelogo a
Retoacuterica personificada48 afirma ldquotecirc-lo encontrado quando era muito jovenzinho ainda baacuterbaro
de liacutengua e vestido em uma capa siacuteria vagando pela Jocircnia sem saber ainda o que fazer de sirsquo ndash
e ldquotendo-o entatildeo desposado na minha tribo o inscrevi fraudulentamente e tornei-o cidadatildeordquo49
(Luciano Bis acc 27)
No processo formativo desse autor devemos ressaltar as inuacutemeras viagens que ele fez
Jocircnia (Bis acc 27) Macedocircnia (Scyth) Traacutecia (Fug) Itaacutelia (Bis acc Fug Electr) Gaacutelia (Bis
acc Herc) Antioquia (Im Pro im) Samoacutesata (Somn) Abonotico (Alex) Egito (Apol)50
Como podemos observar Luciano conheceu muitas localidades diferentes Nessas diferentes
cidades ele exerceu a profissatildeo de advogado e fez declamaccedilotildees puacuteblicas
Cada vez que o siacuterio ia a uma localidade diferente ele reconstruiacutea sua imagem do
mundo Como afirma Franccedilois Hartog em seu livro Memoacuteria de Ulisses ldquoa Greacutecia estaacute em
toda parterdquo (HARTOG 2004225) ou seja um viajante grego acaba ensinando mais que
aprendendo ao viajar pois entende que reencontra sua cultura por onde ande Essa identidade
viajante eacute um elemento muito interessante que precisa ser ressaltado
Entretanto a imagem mais completa que Luciano deixou aos seus leitores estaacute expressa
no opuacutesculo O sonho ou sobre a vida de Luciano em que ele conta como seguiu os caminhos
da Paideia Natildeo se trata de uma biografia no estilo plutarquiano pois temos aqui um texto
alegoacuterico no qual o siacuterio nos conta que seus pais preocupados com seu destino encaminharam-
lhe para o ateliecirc de escultura do seu tio o que natildeo foi uma boa experiecircncia jaacute que destruiu um
bloco de maacutermore e foi surrado pelo tio Em casa ele teve um sonho com a Escultura e a Paideia
personificadas no qual elas disputavam quem poderia lhe dar um futuro melhor O siacuterio entatildeo
48 Trata-se de uma caracteriacutestica importante nos diaacutelogos luciacircnicos a personificaccedilatildeo de sentimentos 49 ldquoἘγὼ γάρ ὦ ἄνδρες δικασταί τουτονὶ κομιδῇ μειράκιον ὄντα βάρβαρον ἔτι τὴν φωνὴν καὶ μονονουχὶ κάνδυν
ἐνδεδυκότα εἰς τὸν Ἀσσύριον τρόπον περὶ τὴν Ἰωνίαν εὑροῦσα πλαζόμενον ἔτι καὶ ὅ τι χρήσαιτο ἑαυτῷ οὐκ
εἰδότα παραλαβοῦσα ἐπαίδευσα []εἶτα ἀγαγοῦσα αὐτὸν εἰς τοὺς φυλέτας τοὺς ἐμοὺς παρενέγραψα καὶ ἀστὸν
ἀπέφηνα []rdquo 50 As inuacutemeras viagens natildeo satildeo apresentadas diretamente em sua obra Assim ele natildeo escreveu um relato de
viagem com exceccedilatildeo das Narrativas verdadeiras Poreacutem esse texto natildeo tem a menor pretensatildeo de ser um relato
verdadeiro visto que haacute um pacto colocado no iniacutecio em que o leitor sabe que tudo que estaacute escrito adiante eacute
mentiroso
41
escolheu o caminho das Letras que o fez conhecido pelo Impeacuterio
A seguir analisamos as menccedilotildees posteriores agrave vida e agrave obra de Luciano com ecircnfase
principalmente naquelas produzidas no mundo bizantino Temos o objetivo de evidenciar como
essas leituras criam alguns topoi que permanecem entre os leitores de Luciano
12 Algumas consideraccedilotildees sobre as primeiras referecircncias a Luciano na tradiccedilatildeo
ocidental
No toacutepico anterior refletimos sobre a regiatildeo na qual Luciano nasceu e viveu seus
primeiros anos O proacuteximo passo em nossa anaacutelise eacute pensar as mais antigas referecircncias que
temos acerca da biografia de Luciano de Samoacutesata e de seus escritos Tal investigaccedilatildeo tem o
fito de evidenciar linhas interpretativas referentes aos discursos desse escritor presentes na
tradiccedilatildeo ocidental
Entre os contemporacircneos do siacuterio temos apenas uma referecircncia a ele em um escrito de
Galeno51 justamente no texto em que trata do tema das epidemias em Hipoacutecrates Trata-se de
um texto de que a criacutetica especializada cuida com cautela jaacute que sua existecircncia deve-se a uma
traduccedilatildeo aacuterabe (BOMPAIRE 2003 XIV MOREIRA 201111)
Filoacutestrato de Lemos que escreveu A vida dos sofistas natildeo cita o samosatense o que
constitui uma questatildeo complexa uma vez que foi nesse livro que ele cunhou a expressatildeo
segunda sofiacutestica a qual foi largamente utilizada para tratar da cultura literaacuteria grega produzida
no Impeacuterio Romano O silecircncio sobre Luciano eacute quebrado muito sutilmente por autores do IV
seacuteculo como Eunaacutepio de Sardes52 que afirma ldquoLuciano um homem que levava o rir a seacuterio
escreveu a vida de Democircnax um filoacutesofo daquele tempo e neste livro e em outros poucos foi
seacuterio do comeccedilo ao fimrdquo (Eunaacutepio Vi So 454)53
Trata-se de apenas uma frase mas eacute interessante observar como Eunaacutepio ao construir
um panorama dos filoacutesofos e sofistas tal como havia feito Filoacutestrato de Lemmos tem a
necessidade de justificar que Luciano era seacuterio ao produzir o riso e que havia escrito uma vida
de Demonax54 Um ponto eacute importante Luciano provavelmente era conhecido mas seus
51 Galeno de Peacutergamo foi um meacutedico grego que viveu entre 129- 204 dC e foi meacutedico dos Imperadores Marco
Aureacutelio Cocircmodo e Septiacutemio Severo (BOWERSOCK 1969 135) 52 Para uma contextualizaccedilatildeo mais elaborada do livro A vida dos Filoacutesofos e dos Sofistas ver a Dissertaccedilatildeo de
Mestrado de Joseacute Petruacutecio de Farias Juacutenior intitulada Sofistas e Filoacutesofos na administraccedilatildeo imperial o olhar de
Eunaacutepio sobre a unidade poliacutetica do Impeacuterio Romano no seacuteculo IV D C (2007) 53ldquoΛουκιανὸς δὲ ὁ ἐκ Σαμοσάτων ἀνὴρ σπουδαῖος ἐς τὸ γελασθῆναι Δημώνακτος φιλοσόφου κατ ἐκείνους τοὺς
χρόνους βίον ἀνέγραψεν ἐν ἐκείνῳ τε τῷ βιβλίῳ καὶ ἄλλοις ἐλαχίστοις δι ὅλου σπουδάσαςrdquo 54Esse texto luciacircnico eacute a uacutenica fonte que temos sobre esse filoacutesofo pois natildeo sabemos se ele existiu ou se eacute produto
da idealizaccedilatildeo do siacuterio
42
escritos dificultavam sua inclusatildeo nos modelos estabelecidos Esse problema de inserccedilatildeo em
um paradigma do que deveria ser um sofista ou um filoacutesofo explicaria a exclusatildeo filostratiana
Nesse sentido tanto Eunaacutepio quanto Filoacutestrato tinham duacutevidas se o poliacutegrafo Luciano encaixar-
se-ia em um modelo de sofista pois sua obra o faz transcender tanto na temaacutetica quanto no
gecircnero a essa categoria
Lactacircncio cita rapidamente o nome de Luciano no IX livro de suas Instituiccedilotildees Divinas
justamente aquele que trata do heroacutei Heacuteracles55 O autor cristatildeo analisa como esse heroacutei
apresenta uma conduta perniciosa e cita o samosatense a fim de fornecer autoridade ao seu
discurso jaacute que ldquoele natildeo poupou nem homens nem deuses56rdquo (Lactacircncio Inst Div I 9)
Lactacircncio termina dizendo de maneira irocircnica que ele teve os louvores dos deuses57 Assim a
citaccedilatildeo do siacuterio tem o intuito de desqualificar as accedilotildees dos deuses pagatildeos e de mostrar como
essas estoacuterias poderiam ser narradas por diversos autores Em uma sociedade na qual a oralidade
predomina sobre a escrita o discurso oral ainda tem a aura que lhe fornece autoridade
Sabemos que Isidoro de Peluacutesia faz referecircncias a Luciano colocando-o ldquodentre os
filoacutesofos ciacutenicosrdquo (Apud BRANDAtildeO sd 6) Entretanto nenhum dos escritores antigos
citados anteriormente fazem referecircncia agrave vida do siacuterio com elementos diferentes daqueles
encontrados em seus escritos (BRANDAtildeO 200116)
Existem dois verbetes do periacuteodo bizantino que fazem referecircncia aos seus escritos O
primeiro encontra-se na Biblioteca de Foacutecio58 No coacutedice 128 o Patriarca de Constantinopla
faz uma anaacutelise da obra do siacuterio nos seguintes termos
Lido de Luciano o texto sobre Falaacuteris e diferentes diaacutelogos dos mortos e das
prostitutas aleacutem de outros livros sobre diferentes assuntos nos quais em
quase todos faz comeacutedia dos costumes dos gregos tanto do erro e da loucura
de sua fabricaccedilatildeo dos deuses quanto de sua irresistiacutevel tendecircncia para a
intemperanccedila e a impudecircncia as estranhas opiniotildees e ficccedilotildees de seus poetas
a decorrente erracircncia de sua organizaccedilatildeo poliacutetica o curso anocircmalo e as
vicissitudes do resto de suas vidas o caraacuteter jactancioso de seus filoacutesofos
pleno nada mais que de hipocrisia e vatildes opiniotildees Em suma como dissemos
sua ocupaccedilatildeo eacute fazer em prosa comeacutedia dos gregos
Parece ser dos que natildeo respeitam absolutamente nada pois fazendo comeacutedia
55 Em nossa Dissertaccedilatildeo de Mestrado analisamos a presenccedila do mito do heroacutei Heacuteracles em alguns escritos de
Luciano (ARANTES JUNIOR 2008)
56 ldquoqui diis et hominibus non pepercitrdquo 57 A ironia nesses textos eacute muito sutil Trata-se de um topos literaacuterio dizer que Luciano natildeo acreditava em nada
ou seja era um ceacutetico Dioacutegenes Laeacutercio nos permite sugerir uma ironia mais sutil na vida de Pirron de Elis
fundador da escola ceacutetica Ele conta que em uma ocasiatildeo o filoacutesofo ficou agitado porque um catildeo lhe investiu
respondeu aos que o criticaram que era difiacutecil abandonar inteiramente a debilidade humana (Diogenes Laercio De
vitis IX 66) A tradiccedilatildeo registra o viacutenculo entre ceacuteticos e catildees assim confundir posturas filosoacuteficas natildeo era difiacutecil
em meio agrave tradiccedilatildeo grega recuperada no Impeacuterio Bizantino por esse enciclopedista 58Patriarca de Constantinopla entre 858 e 886 ldquoSeu livro eacute constituiacutedo por anotaccedilotildees de leitura incluindo resumos
e comentaacuterios de obras Luciano eacute referido em mais de um pontordquo (MOREIRA 2011 12)
43
e brincando com as crenccedilas alheias ele proacuteprio natildeo define a que honra a natildeo
ser que algueacutem diga que sua crenccedila eacute em nada crer
Todavia sua expressatildeo eacute excelente faz ele uso de um estilo distinto corrente
e enfaticamente brilhante mais que nenhum outro ele ama a claridade e a
pureza associadas a brilho e grandeza proporcionada Sua composiccedilatildeo eacute tatildeo
harmoniosa que parece ao que o lecirc que ele natildeo diz palavras ndash mas uma certa
melodia agradaacutevel sem canto aparente para os ouvidos saboreiam os
ouvintes
Em resumo como dissemos seu discurso eacute excelente mas natildeo conveacutem aos
argumentos com os quais ele mesmo sabe que brinca ridicularizando-os Que
ele proacuteprio eacute dos que natildeo creem em absolutamente nada a epiacutegrafe de seu
livro daacute a entender pois diz assim
Eu Luciano isto escrevi coisas antigas e estuacutepidas sabendo pois estuacutepido eacute
tudo para os homens ateacute o que parece saacutebio
Entre os homens natildeo haacute em absoluto nenhuma inteligecircncia mas o que
admiras isso para outros eacute risiacutevel (FOacuteCIO Biblio 128)59
O Patriarca marca nesse pequeno texto dois elementos que seratildeo recorrentes em toda
a fortuna criacutetica do corpus luciacircnico O primeiro deles diz respeito ao fato de que Luciano teria
sido um criacutetico mordaz da religiatildeo Nesse documento ecoa a anguacutestia de um escritor cristatildeo
cuja ambiguidade fica latente jaacute que de um lado ele concordaria com os golpes desferidos por
Luciano agrave religiosidade dos gregos e por outro lado ele compreende que o cristianismo natildeo
moveria a atenccedilatildeo do autor de Falaacuteris Ele eacute daqueles que ldquonatildeo respeitam absolutamente nadardquo
O siacuterio natildeo crecirc em nada Imagens como essa seratildeo recorrentes por exemplo em Marcel Caster
cujo trabalho marcou profundamente os estudos luciacircnicos (CASTER 1937)
O outro elemento que Foacutecio apresenta eacute o grego limpo de Luciano Sabemos que desde
o seacuteculo XV seus textos foram transcritos em manuais para o aprendizado da liacutengua helecircnica
Certamente essa qualidade estiliacutestica tem grande meacuterito na conservaccedilatildeo de tantos textos ligados
a esse escritor
59 ldquoἈνεγνώσθη ltΛουκιανοῦgt ὑπὲρ Φαλάριδος καὶ νεκρικοὶ καὶ ἑταιρικοὶ διάλογοι διάφοροι καὶ ἕτεροι διαφόρων
ὑποθέσεων λόγοι ἐν οἷς σχεδὸν ἅπασι τὰ τῶν Ἑλλήνων κωμῳδεῖ τήν τε τῆς θεοπλαστίας αὐτῶν πλάνην καὶ
μωρίαν καὶ τὴν εἰς ἀσέλγειαν ἄσχετον ὁρμὴν καὶ ἀκρασίαν καὶ τῶν ποιητῶν αὐτῶν τὰς τερατώδεις δόξας καὶ
ἀναπλάσεις καὶ τὸν ἐντεῦθεν πλάνον τῆς πολιτείας καὶ τοῦ ἄλλου βίου τὴν ἀνώμαλον περιφορὰν καὶ τὰς
περιπτώσεις καὶ τῶν φιλοσόφων αὐτῶν τὸ φιλόκομπον ἦθος καὶ μηδὲν ἄλλο πλὴν ὑποκρίσεως καὶ κενῶν
δοξασμάτων μεστόν καὶ ἁπλῶς ὡς ἔφημεν κωμῳδία τῶν Ἑλλήνων ἐστὶν αὐτῷ ἡ σπουδὴ ἐν λόγῳ πεζῷ
Ἔοικε δὲ αὐτὸς τῶν μηδὲν ὅλως πρεςβευόντων εἶναι τὰς γὰρ ἄλλων κωμῳδῶν καὶ διαπαίζων δόξας αὐτὸς ἣν
θειάζει οὐ τίθησι πλὴν εἴ τις αὐτοῦ δόξαν ἐρεῖ τὸ μηδὲν δοξάζειν
Τὴν μέντοι φράσιν ἐστὶν ἄριστος λέξει εὐσήμῳ τε καὶ κυρίᾳ καὶ τῷ ἐμφατικῷ διαπρεπούσῃ κεχρημένος
εὐκρινείας τε καὶ καθαρότητος μετά γε τοῦ λαμπροῦ καὶ συμμέτρου μεγέθους εἴ τις ἄλλος ἐραστής Συνθήκη τε
αὐτῷ οὕτως ἥρμοσται ὥστε δοκεῖν τὸν ἀναγινώσκοντα μὴ λόγους λέγειν ἀλλὰ μέλος τι τερπνὸν χωρὶς ἐμφανοῦς
ᾠδῆς τοῖς ὠσὶν ἐναποστάζειν τῶν ἀκροατῶν Καὶ ὅλως ὥσπερ ἔφημεν ἄριστος ὁ λόγος αὐτῷ καὶ οὐ πρέπων
ὑποθέσεσιν ἃς αὐτὸς ἔγνω σὺν τῷ γελοίῳ διαπαῖξαι
Ὅτι δὲ αὐτὸς τῶν μηδὲν ἦν ὅλως δοξαζόντων καὶ τὸ τῆς βίβλου ἐπίγραμμα δίδωσιν ὑπολαμβάνειν Ἔχει γὰρ
ὧδε Λουκιανὸς τάδ ἔγραψα παλαιά τε μωρά τε εἰδώς μωρὰ γὰρ ἀνθρώποις καὶ τὰ δοκοῦντα σοφά κοὐδὲν ἐν
ἀνθρώποισι διακριδόν ἐστι νόημα ἀλλ ὃ σὺ θαυμάζεις τοῦθ ἑτέροισι γέλωςrdquo
44
O outro documento que temos eacute o verbete anocircnimo da Suda60 uma grande enciclopeacutedia
No verbete Λ de nuacutemero 683 resume-se a vida de Luciano da seguinte maneira
Luciano samosatense o chamado blasfemo ou difamador ndash ou ateu para dizer
mais ndash porque em seus diaacutelogos atribuiu ser risiacutevel ateacute o que se diz sobre as
divindades Era de iniacutecio advogado em Antioquia na Siacuteria mas natildeo tendo
tido sucesso voltou-se para a logografia e escreveu infindaacuteveis obras Diz-se
ter sido morto por catildees posto que foi contaminado pela raiva contra a verdade
pois na vida de Peregrino o infame atacou o cristianismo e blasfemou contra
o proacuteprio Cristo Por isso tambeacutem pagou com a raiva a pena devida neste
mundo e no futuro sua heranccedila seraacute o fogo eterno na companhia de Satanaacutes
(SUDA Λ 683)61
Novamente o problema da religiosidade de Luciano aparece haja vista a imagem de
increacutedulo que paira sobre esse escritor Observamos que essa permanecircncia biograacutefica estaacute
presente desde a Antiguidade O siacuterio eacute aquele que ri das coisas da divindade Outro topos
literaacuterio eacute a morte pelo ataque de catildees62
A trajetoacuteria de Luciano eacute contada com o intuito de servir de exemplo o que se justifica
pelo ambiente de produccedilatildeo literaacuteria bizantina marcado profundamente pela influecircncia da
cristandade Assim morreu dilacerado por catildees por ser inimigo da verdade Observe-se que
vaacuterios dos personagens luciacircnicos satildeo representantes da filosofia ciacutenica e podemos ver
inclusive que Luciano tem retratos bem positivos de personalidades ciacutenicas (Demonax
Dioacutegenes Menipo por exemplo) Morrer dessa forma era ironizar sua existecircncia Aquele que
escarneceu as coisas sagradas morre de uma maneira que produz o riso Um catildeo morto por catildees
(MOREIRA 2011 15) Observe-se que natildeo haacute nesses comentadores bizantinos o desejo de
serem precisos em incluir Luciano em uma determinada escola filosoacutefica haacute inclusive certa
confusatildeo
A cada dia novos pesquisadores investigam a presenccedila de Luciano na tradiccedilatildeo ocidental
Como afirma Brandatildeo trata-se de um (des)conhecido autor jaacute que ele foi lido e influenciou
60 Essa enciclopeacutedia faz o levantamento de autores e de obras em ordem alfabeacutetica o que eacute uma importante
inovaccedilatildeo Datada provavelmente do seacuteculo X foi escrita por muitas matildeos tratando-se de uma obra coletiva de
escritores anocircnimos 61 ldquoltΛουκιανόςgt Σαμοσατεύς ὁ ἐπικληθεὶς βλάσφημος ἢ δύσφημος ἢ ἄθεος εἰπεῖν μᾶλλον ὅτι ἐν τοῖς διαλόγοις
αὐτοῦ γελοῖα εἶναι καὶ τὰ περὶ τῶν θείων εἰρημένα παρατίθεται γέγονε δὲ ἐπὶ τοῦ Καίσαρος Τραιανοῦ καὶ
ἐπέκεινα ἦν δὲ οὗτος τοπρὶν δικηγόρος ἐν Ἀντιοχείᾳ τῆς Συρίας δυσπραγήσας δ ἐν τούτῳ ἐπὶ τὸ λογογραφεῖν
ἐτράπη καὶ γέγραπται αὐτῷ ἄπειρα τελευτῆσαι δὲ αὐτὸν λόγος ὑπὸ κυνῶν ἐπεὶ κατὰ τῆς ἀληθείας ἐλύττησεν εἰς
γὰρ τὸν Περεγρίνου βίον καθάπτεται τοῦ Χριστιανισμοῦ καὶ αὐτὸν βλασφημεῖ τὸν Χριστὸν ὁ παμμίαρος διὸ καὶ
τῆς λύττης ποινὰς ἀρκούσας ἐν τῷ παρόντι δέδωκεν ἐν δὲ τῷ μέλλοντι κληρονόμος τοῦ αἰωνίου πυρὸς μετὰ τοῦ
Σατανᾶ γενήσεταιrdquo 62Segundo Aulo Geacutelio o tragedioacutegrafo ateniense Euriacutepedes ldquofoi dilacerado por catildees lanccedilados por algum ecircmulo e
dessas feridas seguiu-se a morterdquo (ldquoIs cum in Macedonia apud Archelaum regem esset utereturque eo rex familiariter rediens nocte ab eius cena canibus a quodam aemulo inmissis dilaceratus est et ex his uulneribus mors secuta estrdquo) (Aulo Geacutelio N A XV 20 9)
45
autores bem diferentes63 mesmo que natildeo seja um dos autores mais lembrados pelo grande
puacuteblico ou mesmo pelos classicistas Destarte temos que destacar que a construccedilatildeo de uma
operaccedilatildeo historiograacutefica voltada para a compreensatildeo cultural da sociedade tem mostrado o
quanto seus escritos podem dizer aos interessados em entender o passado
Como podemos notar esses textos pouco ajudam na compreensatildeo da trajetoacuteria de
Luciano Satildeo documentos muito interessantes para a recepccedilatildeo de seus escritos uma vez que a
opiniatildeo presente nesses textos antigos iraacute reverberar em toda a criacutetica luciacircnica o que justifica
deter-nos nesses discursos neste passo da Tese
As dificuldades em estabelecer a trajetoacuteria sociopoliacutetica do siacuterio natildeo podem inviabilizar
a anaacutelise de seus escritos no horizonte histoacuterico do Impeacuterio Romano dos Antoninos Uma vez
estabelecidos os preconceitos presentes nos escritos que comentaram o corpus luciacircnico na
Antiguidade e no Medievo Bizantino podemos indagar de que sociedade fala Luciano ou seja
como o samosatense pode servir de fonte ao historiador
13 Histoacuteria e imaginaacuterio de uma eacutepoca de ouro o contexto dos Antoninos
Em linhas gerais o seacuteculo II depois de Cristo caracteriza-se pela estabilidade do
Impeacuterio Romano em seu domiacutenio mediterracircneo Esse equiliacutebrio eacute fruto de diversos fatores A
historiografia acostumou a ver esse periacuteodo como o da pax romana O historiador inglecircs
Edward Gibbon64 afirmou que ldquose fosse mister determinar o periacuteodo da Histoacuteria do mundo no
qual a condiccedilatildeo da raccedila humana foi mais ditosa e proacutespera ter-se-ia sem hesitaccedilatildeo que apontar
a que se estende da morte de Domiciano ateacute a elevaccedilatildeo de Cocircmodordquo (GIBBON 2005 104)
Como afirma Aldo Schiavone Gibbon eacute o criador de uma imagem forte de anaacutelise
deste periacuteodo (SCHIAVONE 2007 36) Sua narrativa prende o leitor com representaccedilotildees
densas da Histoacuteria Romana Ele inicia seu monumental livro com o esplendor do periacuteodo dos
Antoninos e prepara o enredo de uma grande cataacutestrofe cuja causa ele encontra em grande
medida no nascente Cristianismo (GUARINELLO 201320) uma imagem muito forte que
prende a narrativa sobre a Histoacuteria Romana nesse ponto alto que em seguida se desmoronaria
63 Sem a pretensatildeo de fornecer um mapa exaustivo desses trabalhos podemos citar o texto de Roberto Romano O
silecircncio de o ruiacutedo (1996) que trata da influecircncia de Luciano em Diderot O livro O calundu e a panaceacuteia de Elton
de Saacute Rego (1989) que investiga a presenccedila da tradiccedilatildeo luciacircnica em Machado de Assis Eduardo Sinkevisque
(2010 2011) tem pesquisado as traduccedilotildees portuguesas do Como se deve escrever a Histoacuteria e sua repercussatildeo na
historiografia setecentista 64 Para uma anaacutelise do estilo desse Historiador sugerimos o texto Gibbon um ciacutenico moderno entre os poliacuteticos
antigos (GAY 1990 33-62) Neste texto o autor elucida a maneira como o estilo irocircnico desse erudito serve de
arma argumentativa para a construccedilatildeo de sua anaacutelise
46
Essa opiniatildeo do glorioso passado dos Antoninos estaacute presente por exemplo no historiador
Herodiano que comeccedilou sua Histoacuteria do Impeacuterio Romano narrando o Principado de Marco
Aureacutelio por ser o uacuteltimo governo bom (Herodiano I 101-5) O proacuteprio Dion Caacutessio entende
que o governo de Cocircmodo representava uma passagem de uma idade do ouro para um tempo
do ferro (Dion Caacutessio Histoacuteria LXXVII 94) Esses autores antigos expressavam a forma
mentis de parcela da aristocracia senatorial e equestre da cidade de Roma que naquele
momento foi alijada dos centros de decisatildeo pelos Imperadores severianos (GONCcedilALVES
2006 179)
Essa concepccedilatildeo retoma a imagem do orador Eacutelio Aristides em seu Discurso a
Roma65 sobre a integraccedilatildeo do mundo mediterracircnico Ele vecirc a conquista do mundo pelos
romanos como o desenvolvimento e a expansatildeo que transforma o gecircnero humano Para ele os
romanos ldquotransformaram o mundo inteiro em um prazeroso jardim66rdquo (Eacutelio Aristides Orat 26
99) Em contraposiccedilatildeo agrave selvageria que existia em muitas regiotildees conquistadas pelo Impeacuterio
Romano o orador destaca a implantaccedilatildeo de uma cultura civilizada representada pelo grande
nuacutemero de templos e cidades que enchem o mediterracircneo e pela facilidade do comeacutercio ou seja
a abertura de estradas e rotas que permitem o comeacutercio de produtos e o tracircnsito de pessoas Ele
ainda destaca as novas condiccedilotildees sociais e poliacuteticas implementadas pelos romanos que
espalharam um modo de governar uniforme permitindo aos melhores compor a elite Ele
afirma
Voacutes dividistes a comunidade de todos os povos do Impeacuterio e com esta
palavra estou indicando todo o mundo habitado em dois grupos distintos e
por toda a parte transformastes em cidadatildeos os mais cultos haacutebeis e capazes
enquanto os demais permaneceram suacuteditos do governo67 (Eacutelio Aristides Orat
26 59)
Esse documento eacute extremamente significativo para traccedilarmos elementos para a
composiccedilatildeo do contexto em que produziu Luciano de Samoacutesata uma vez que tanto as anaacutelises
historiograacuteficas quanto um Panegiacuterico do seacuteculo II como podemos caracterizar a narrativa de
Eacutelio Aristides sugerem esse mundo civilizado e integrado que o Impeacuterio propiciou
Alguns aspectos poliacuteticos satildeo relevantes para essa imagem Em primeiro lugar
temos um periacuteodo em que haacute uma grande estabilidade na sucessatildeo imperial Como nos lembra
Paul Veyne no texto ldquoO que eacute um Imperador romanordquo o cargo de Imperador implicava um
65 O famoso Discurso a Roma eacute a Oraccedilatildeo 26 dos discursos de Eacutelio Aristides 66 ldquoκαὶ ἡ γῆ πᾶσα οἷον παράδεισος ἐγκεκόσμηταιrdquo 67 ldquoδιελόντες γὰρ δύο μέρη πάντας τοὺς ἐπὶ τῆς ἀρχῆς τοῦτο δ εἰπὼν ἅπασαν εἴρηκα τὴν οἰκουμένην τὸ μὲν
χαριέστερόν τε καὶ γενναιότερον καὶ δυνατώτερον πανταχοῦ πολιτικὸν ἢ καὶ ὁμόφυλον πᾶν ἀπεδώκατε τὸ δὲ
λοιπὸν ὑπήκοόν τε καὶ ἀρχόμενονrdquo
47
risco muito grande uma vez que a grande maioria dos que ocuparam esse cargo foram
assassinados por opositores e um pequeno nuacutemero deles morreram de causas naturais Nunca
houve regras claras para a sucessatildeo assim ldquoum dos deveres dos Imperadores era preparar a
transmissatildeo paciacutefica do poderrdquo (VEYNE 2009 3)
Entre os governos de Nerva (96-98) Trajano (98-117) Adriano (117-138) Pio
(138-161) Marco Aureacutelio e Lucio Vero (161-169) Marco Aureacutelio (169-180) e Cocircmodo (180-
192) a transmissatildeo do governo ocorreu de forma paciacutefica uma vez que o criteacuterio proposto foi
a adoccedilatildeo daquele que era considerado o melhor dos romanos
Para catalisar essa imagem de bons governantes Trajano exerce um papel central
uma vez que entrou para a memoacuteria puacuteblica romana como um bom Imperador Temos o
Panegiacuterico de Pliacutenio que evidencia as virtudes desse Priacutencipe e mostra como deveria ser um
bom governante Trajano inclusive tem algumas conquistas militares na Daacutecia e na Armecircnia
que satildeo anexadas ao Impeacuterio como proviacutencias Ele foi o uacuteltimo governante de Roma que
expandiu os limites imperiais
Essa capacidade de lidar com a sucessatildeo promove uma grande estabilidade poliacutetica
uma vez que a puacuterpura natildeo ficava disponiacutevel para qualquer aventureiro Para termos uma ideia
Aviacutedio Caacutessio (175) general romano que tentou usurpar o cargo de Marco Aureacutelio foi
rapidamente suprimido Esse contexto favoraacutevel permite a expansatildeo do modo de vida romano
e principalmente a estabilidade econocircmica
Outro fato significativo desse periacuteodo eacute o deslocamento do centro de poder da
peniacutensula itaacutelica para as proviacutencias Quando Nerva adota Trajano escolhe um cidadatildeo romano
oriundo da Baetica no sul da Hispacircnia Ele era de uma famiacutelia romana estabelecida nessa
proviacutencia Entretanto esse fato mostra como os grupos que influenciavam na sucessatildeo natildeo
estavam restritos agrave peniacutensula itaacutelica Havia nesse momento forccedilas poliacuteticas significativas em
outros lugares Adriano e Marco Aureacutelio tambeacutem eram de famiacutelias da Baetica
O poder do Imperador baseava-se em trecircs fatores o comando militar o prestiacutegio e
a riqueza A soma do poder e do prestiacutegio conferem ao governante a auctoritas Como disse o
Imperador Augusto em seu testamento ele natildeo se diferenciava dos outros Senadores em poder
(potestas) mas em auctoritas (AUGUSTO RGDA 34) Como afirma Geza Alfoumlldy ldquoo
Imperador era a encarnaccedilatildeo ideal de todas as antigas virtudes romanas sendo as principais a
virtus a clementia a iustitia e a pietasrdquo (ALFOumlLDY 1989 116)
A dominaccedilatildeo romana eacute beneacutefica para a populaccedilatildeo jaacute que garantia a manutenccedilatildeo
das estradas e o policiamento do Mediterracircneo o que permitia o estabelecimento de rendosas
rotas comerciais Para termos uma ideia das distacircncias que os produtos percorriam no Impeacuterio
48
podemos evocar as pesquisas de Pedro Paulo Funari sobre os selos nas acircnforas romanas (Dressel
20) presentes na regiatildeo da Beacutetica atual sul da Espanha Tais estudos tecircm se mostrado
interessantes uma vez que as informaccedilotildees presentes nestes selos permitem aos pesquisadores
mapear a circulaccedilatildeo de alimentos e produtos da Bretanha agrave Siacuteria (FUNARI 1987 230)
Ao contraacuterio do que poderiacuteamos pensar as populaccedilotildees dominadas eram
beneficiadas com essa seguranccedila Outro ponto significativo era a permanecircncia das estruturas
locais de poder pois o romano conquistador dialogava diretamente com a elite dominante que
continuava no poder mediante o controle do restante da populaccedilatildeo Obviamente o domiacutenio
poliacutetico natildeo levou agrave descaracterizaccedilatildeo das culturas locais O processo de romanizaccedilatildeo ocorreu
de uma forma extremamente complexa em uma via de matildeo dupla Por exemplo os idiomas
locais continuaram sendo usados Eram as proacuteprias elites provinciais que viam a necessidade
de aprender grego ou latim a fim de se comunicarem com o conquistador
Como nos lembra Sartre (1994 7-10) a dominaccedilatildeo romana estabeleceu uma seacuterie
de normatizaccedilotildees juriacutedicas em toda a extensatildeo imperial Essas regulamentaccedilotildees vinculam-se agraves
hierarquizaccedilotildees sociais que se estabeleciam no acircmbito juriacutedico definindo o estatuto de cada
pessoa diante das instituiccedilotildees Como afirma o reacutetor Eacutelio Aristides as pessoas se dividem em
todo o Impeacuterio em duas categorias distintas os cidadatildeos e os outros podendo os cidadatildeos
pertencerem a uma das trecircs ordens senatorial equestre e decuriotildees (Eacutelio Aristides Orat 26
59)
Geza Alfoumlldy sustenta que a sociedade romana eacute extremamente conservadora uma
vez que o seu desenvolvimento social e poliacutetico natildeo significou a alteraccedilatildeo da estrutura agriacutecola
do Impeacuterio o que limitava a mobilidade social pois o prestiacutegio estava ligado agrave posse da terra
Logo as ideias dominantes tambeacutem se associavam a esses grupos que monopolizavam a
produccedilatildeo textual e a sua divulgaccedilatildeo (ALFOumlLDY 1989 114-115) Essa caracteriacutestica natildeo
impedia a diversidade de ideias uma vez que as elites natildeo eram homogecircneas mas compostas
por grupos distintos que estavam em busca do domiacutenio poliacutetico
Com a ascensatildeo do Principado com Augusto o topo da piracircmide social mudou
seu aacutepice era ocupado pelo Imperador e por sua domus (famiacutelia extensa) Assim as relaccedilotildees
sociais estavam vincadas pela amizade (amicitia) com as grandes famiacutelias especialmente com
a famiacutelia do Ceacutesar Ser amicus Caesaris elevava um indiviacuteduo na sociedade romana como sua
perda significava a queda social
Como jaacute dissemos anteriormente o caso de Luciano na administraccedilatildeo imperial no
Egito sugere a proximidade com a casa imperial Tais relaccedilotildees satildeo fundamentais para entender
o lugar de escrita de Luciano e sua relaccedilatildeo com seu tempo
49
O quadro histoacuterico desse periacuteodo se matiza com a compreensatildeo da construccedilatildeo da
identidade grega no Impeacuterio Romano Trata-se de imaginar como Luciano se compreendia em
uma conjuntura que envolve entender como os intelectuais de liacutengua grega interagiam com o
Impeacuterio Romano
14 A construccedilatildeo de uma identidade helecircnica no Impeacuterio Romano
O processo de helenizaccedilatildeo ocorreu por meio de uma complexa rede de negociaccedilotildees
simboacutelicas e materiais Como enfatiza Simom Swain (1996 87) no livro intitulado Hellenisme
and Empire esse processo dar-se-ia por meio da Paideia O sentimento de pertencimento perde
paulatinamente seu caraacuteter eacutetnico e assume as caracteriacutesticas de uma identidade franca cuja
adesatildeo eacute possiacutevel a qualquer indiviacuteduo Suas estrateacutegias ainda segundo esse autor estatildeo em
uma constante polifonia Cada (des)encontro cultural pode propiciar os mais diferentes
elementos sociais e reaccedilotildees culturais
Susan Alcock em uma anaacutelise que congrega o debate acerca da paisagem memoacuteria
espaccedilo sagrado e imperialismo repensa natildeo mais a influecircncia grega sobre a cultura romana
mas o caminho inverso a presenccedila de Roma nas cidades gregas durante o periacuteodo imperial Ela
ressalta as permanecircncias de memoacuterias gregas durante a dominaccedilatildeo romana Entretanto a autora
identifica como essas reminiscecircncias satildeo relidas das mais distintas formas em um diaacutelogo
altamente seletivo construiacutedo por meio de apropriaccedilotildees e ressignificaccedilotildees (ALCOCK 2001
332)
Alcock critica os autores que apresentam o caraacuteter estaacutevel das atividades mnemocircnicas
ressaltando que a memoacuteria eacute muacuteltipla dinacircmica e tem um grande poder de persuasatildeo O que
nos interessa em sua conceituaccedilatildeo eacute justamente o elo profundo entre memoacuteria e poder A autora
tambeacutem ressalta a existecircncia da multiplicidade das memoacuterias que muitas vezes satildeo conflitantes
concorrentes A memoacuteria social eacute um espaccedilo privilegiado para que os diferentes agentes
histoacutericos contestem o que estaacute estabelecido (ALCOCK 2001 324) Cada agente social usa a
memoacuteria a favor de seus interesses tudo que eacute lembrado depende do oposto que eacute o
esquecimento
Dois pontos satildeo fundamentais para compreender o conceito de memoacuteria De um lado
haacute uma atividade mnemocircnica involuntaacuteria que ocorre ao indiviacuteduo ou seja traccedilos que satildeo
recuperados involuntariamente e compotildeem uma narrativa marcada pela maacutegica da presenccedila do
passado ausente Por outro lado existe uma atividade mnemocircnica voluntaacuteria na qual a memoacuteria
50
eacute treinada e trabalhada e o uso das reminiscecircncias compotildee um quadro de teacutecnicas retoacutericas que
recuam a Simocircnides (YATES 2007 17) Observe-se que natildeo afirmamos que Simocircnides foi o
primeiro a utilizar teacutecnicas mnemocircnicas (essas satildeo atestadas por exemplo nos poemas
homeacutericos) o que esse autor fez foi sistematizar estrateacutegias cognitivas que possibilitassem a
um orador o uso maximizado de sua memoacuteria Tais construccedilotildees fundavam-se em elementos
espaciais a lugares de memoacuteria
No caso de Luciano de Samoacutesata e de grande parte dos autores da chamada Segunda
Sofiacutestica podemos elencar o uso de uma variante do grego que imita os padrotildees linguiacutesticos de
um momento cultural anterior o que indica traccedilos das estrateacutegias de afirmaccedilatildeo social Orestes
Karavas em sua Tese de doutoramento intitulada Lucien e La Trageacutedie defende que a obra de
Luciano eacute tributaacuteria de um passado helecircnico e para demonstrar essa prerrogativa ele faz uma
inquiriccedilatildeo detalhada sobre a presenccedila da trageacutedia nestes textos (KARAVAS 2005) O uso do
aticismo compotildee o quadro cultural descrito por Swain como polifocircnico (SWAIN 2003 40)
As praacuteticas culturais natildeo necessitam de coerecircncia nem de ter a nossa loacutegica A cultura
colonizada natildeo eacute nem coerente nem homogecircnea As respostas agrave presenccedila de outra cultura
variam tanto no tempo quanto no espaccedilo68
Gostariacuteamos de relembrar que Luciano coloca-se em uma encruzilhada cultural que
serve como pequeno microcosmo de interpretaccedilatildeo do ser e estar no Impeacuterio Romano Andrew
Wallace-Handrill (2008 38) em seu recente livro Romersquos Cultural Revolution busca nos
versos do poeta latino Ecircnio uma imagem que acreditamos retratar bem o lugar em que Luciano
se insere Trata-se da imagem do tria cordia ou seja dos trecircs coraccedilotildees Esse poeta afirmava
possuir trecircs coraccedilotildees um latino um grego e um osco69 Observemos a existecircncia do processo
de triangulaccedilatildeo da identidade Trata-se de uma forma de se encontrar no mundo que mescla as
diferentes formas de experiecircncia Assim o indiviacuteduo natildeo precisa abandonar uma identidade
pois ele acumula diferentes sentimentos de pertencimento
Nesse ponto a conceituaccedilatildeo de identidade no mundo antigo se complexifica Os
historiadores buscam respostas nos distintos ramos do conhecimento Por exemplo Peter Burke
68 Richard Hingley (201035) ao estudar a colonizaccedilatildeo da Bretanha Romana a partir de uma concepccedilatildeo teoacuterica poacutes
colonial afirma que ldquonatildeo haacute uma cultura colonial uacutenica e coerenterdquo que englobaria todos os dominados As
colocircnias satildeo muacuteltiplas e apresentam loacutegicas distintas Ele complementa que sob o olhar poacutes-colonial as pesquisas
seguem trecircs premissas inter-relacionadas ldquoa) as tentativas dos estudiosos poacutes-coloniais para descentrar as
pesquisas b) relatos recentes que mostram uma gama complexa e variada de respostas ao contato colonial c)
trabalhos que sugerem oposiccedilotildees tanto manifestas quanto escondidas agrave dominaccedilatildeo dos poderes coloniaisrdquo
(HINGLEY 2010 35) 69 Aulo Geacutelio em suas Noites Aacuteticas afirma que ldquoQuinto Ecircnio dizia possuir trecircs coraccedilotildees porque soubesse falar
grego osco e latimrdquo (ldquoQuintus Ennius tria corda habere sese dicebat quod loqui Graece et Osce et Latine sciretrdquo) (AULO GEacuteLIO N A XVII 17)
51
propotildee a existecircncia de um processo de hibridizaccedilatildeo (BURKE 2003 43) Tal termo vem da
biologia e classifica como hiacutebrido o animal que eacute filho de duas espeacutecies distintas poreacutem o
animal que nasce eacute infeacutertil Logo a transposiccedilatildeo desse conceito agrave dinacircmica do (des)encontro
cultural eacute preconceituosa jaacute que o contato cultural gera uma experiecircncia distinta que natildeo pode
ser hierarquizada O processo de encontro cultural promove uma nova cultura cuja riqueza e
fertilidade podem ser comprovadas em diversos niacuteveis de anaacutelise da cultura material e da
produccedilatildeo literaacuteria
Janet Huskinson (2000 25) enfatiza que haacute frequentemente a sobreposiccedilatildeo de signos
e valores os quais satildeo corroborados por meio de achados arqueoloacutegicos especialmente nos
monumentos erigidos por importantes membros das elites provinciais Destacamos o uso de um
vocabulaacuterio mais preciso para conceituar a dinacircmica do (des)encontro cultural por isso
propomos o termo traduccedilatildeo que tem sua origem nas ciecircncias da linguagem Tal conceito se
coaduna com a apreciaccedilatildeo de cultura pelos caminhos da semioacutetica tal como foi proposto por
Clifford Geertz (2012 4) e permite atentar aos processos de negociaccedilatildeo Richard Hingley
afirma que
Indiviacuteduos no interior de uma sociedade negociam e resistem a certas
representaccedilotildees de inferioridade superioridade e erigem contra-argumentos
Assim dentro de um conjunto limitado de ideias e de experiecircncias eles
definem parcialmente seus proacuteprios conceitos de superioridade ao mesmo
tempo em que se relacionam com itens tais que como a forma e a funccedilatildeo de
um determinado pote ou a imagem de um tipo particular de construccedilatildeo
(HINGLEY 2010 37-38)
Nesse sentido devemos retomar a imagem dos trecircs coraccedilotildees e questionar em que
medida tal imagem expressa a posiccedilatildeo sociocultural de Luciano de Samoacutesata no seio do
ordenamento imperial Em primeiro lugar satildeo diversos os momentos em que esse escritor se
nomeia como siacuterio Como ressaltamos anteriormente o samosatense foi educado de acordo com
os paracircmetros da Paideia helecircnica ou ainda sua escrita refletia um purismo esteacutetico vinculado
diretamente aos autores aacuteticos do V seacuteculo aC outro traccedilo que eacute marcante em seus escritos
Em Lexiacutefanes que versa sobre o mau uso da liacutengua grega pelos sofistas contemporacircneos
eacute dito que
Se realmente desejas que te elogiem por teu estilo bem como ser famoso entre
as massas foge e evita essa classe de expressotildees comeccedila pelos melhores
poetas e os lecirc com a tutela de mestres passa logo aos oradores e quando
estejas familiarizado com a sua dicccedilatildeo muda oportunamente para Tuciacutedides
e Platatildeo mas depois de ter-te exercitado muito na formosa comeacutedia e na
52
majestosa trageacutedia Porque uma vez que tenhas libado todas as suas belezas
seraacutes algueacutem nas letras Pois agora sem te dares conta pareces com os
fabricantes de bonecas da aacutegora as quais estatildeo pintadas por fora de vermelho
e azul mas por dentro satildeo de barro e fraacutegeis (Luciano Lex 22-23)70
Esse eacute o caminho tradicional para o aprendizado nas letras e para a formaccedilatildeo da elite
letrada greco-romana A poesia tem papel de destaque principalmente os poemas homeacutericos
Esse aprendizado marcaraacute todos os discursos literaacuterios produzidos em liacutengua grega por meio
da constante recorrecircncia a esses textos indelevelmente marcados pela visatildeo de mundo de cada
contexto histoacuterico Escrever narrar discursar satildeo formas humanas de se inscrever na realidade
de dar sentido a nossa participaccedilatildeo na existecircncia Escrevemos para nos inscrever no real para
criar sentido ao viver A memoacuteria tem esse papel de marcar as recorrecircncias de construir uma
transcendecircncia que permite ao indiviacuteduo afirmar mesmo que seja de uma maneira natildeo
consciente seu lugar no mundo
Nos escritos de Luciano esses elementos satildeo evidenciados pelo uso de determinados
gecircneros citaccedilotildees determinada variaccedilatildeo linguiacutestica recorrecircncia a personagens miacuteticas ou
histoacutericas meacutetodos partilhados de validaccedilatildeo enunciativa Tais elementos marcam a construccedilatildeo
da identidade grega no Impeacuterio romano principalmente entre os oradores helenos do II seacuteculo
Um discurso excelente eacute aquele que faz com que o leitor eou ouvinte consiga ver o que
foi narrado (WEBB 1997 231) Nesse sentido temos dois pontos fundamentais para
compreender elementos metanarrativos que compotildeem a escrita Primeiro a constante citaccedilatildeo
das autoridades claacutessicas (DARBO-PESCHANSKI 200416) e em segundo lugar o uso da
representaccedilatildeo pictoacuterica por meio da construccedilatildeo de ecfrases como elemento validativo para o
discurso no mundo antigo (DUBEL 1997 250) Tal inscriccedilatildeo na realidade como nos ensinou
Michel Foucault (2002 8-9) depende de instacircncias que ordenam quem pode dizer e o que pode
ser dito As autoridades distribuiacutedas em micropoderes (FOUCAULT 2012 35-54) estabelecem
limites do que eacute real ou fantasioso para o grupo A constituiccedilatildeo de sentido natildeo se daacute de maneira
individual isso seria loucura pois o sentido eacute partilhado inclusive com suas fronteiras que
definem quem o que e como se pode dizer O discurso produzido agrave margem desse regime de
verdade natildeo encontra eco por isso devemos ressaltar o viacutenculo profundo entre discurso e poder
O uso que Luciano faz de autores mais antigos reforccedila uma identidade helenoacutefila
70 ldquoεἴπερ ἄρ ἐθέλεις ὡς ἀληθῶς ἐπαινεῖσθαι ἐπὶ λόγοις κἀν τοῖς πλήθεσιν εὐδοκιμεῖν τὰ μὲν τοιαῦτα πάντα φεῦγε
καὶ ἀποτρέπου ἀρξάμενος δὲ ἀπὸ τῶν ἀρίστων ποιητῶν καὶ ὑπὸ διδασκάλοις αὐτοὺς ἀναγνοὺς μέτιθι ἐπὶ τοὺς
ῥήτορας καὶ τῇ ἐκείνων φωνῇ συντραφεὶς ἐπὶ τὰ Θουκυδίδου καὶ Πλάτωνος ἐν καιρῷ μέτιθι πολλὰ καὶ τῇ καλῇ
κωμῳδίᾳ καὶ τῇ σεμνῇ τραγῳδίᾳ ἐγγεγυμνασμένος παρὰ γὰρ τούτων ἅπαντα τὰ κάλλιστα ἀπανθισάμενος ἔσῃ τις
ἐν λόγοις ὡς νῦν γε ἐλελήθεις σαυτὸν τοῖς ὑπὸ τῶν κοροπλάθων εἰς τὴν ἀγορὰν πλαττομένοις ἐοικώς
κεχρωσμένος μὲν τῇ μίλτῳ καὶ τῷ κυανῷ τὸ δ ἔνδοθεν πήλινός τε καὶ εὔθρυπτος ὤνrdquo
53
adquirida por isso era possiacutevel escrever um texto sobre A deusa siacuteria imitando o estilo literaacuterio
de Heroacutedoto Ser grego no Impeacuterio Romano natildeo dependia do local de nascimento Para ter a
identificaccedilatildeo helecircnica era necessaacuterio fazer parte de um processo de aprendizado (Paideia71)
que dotava o indiviacuteduo de recursos que lhe permitiam fazer parte dessa ordem
Concordamos com Jacques Bompaire (19946 6) ao afirmar que havia bem mais que um
aticismo linguiacutestico o qual deve ser definido por seu caraacuteter cultural e intelectual A citaccedilatildeo no
mundo greco-romano natildeo era feita como as referecircncias contemporacircneas A remissatildeo dependia
da memoacuteria Havia exerciacutecios para treinar a memoacuteria como por exemplo a coacutepia dos mais
variados textos Em seguida os alunos eram treinados a emular os textos claacutessicos O contato
com esses era muito intenso mesmo assim quando cotejamos uma menccedilatildeo e a origem das
mesmas nos decepcionamos jaacute que na maioria das vezes natildeo corresponde ao texto que temos
disponiacutevel
Natildeo podemos esquecer que ateacute o advento da imprensa os textos eram copiados em
manuscritos que geralmente natildeo tinham fonte e coacutepia idecircnticas considerando que o copista
muitas vezes acrescentava frases suprimia outras fazia anotaccedilotildees ao lado do texto A relaccedilatildeo
com o texto escrito era diferente da que se tem atualmente assim conveacutem pensar como a
oralidade consegue fixar e reter memoacuterias canonizadas e como a escrita permite a variaccedilatildeo
tanto com a coacutepia como com a glossa compulsiva O texto escrito permite a anaacutelise incessante
de si principalmente quando ganha status canocircnico guardando as devidas ressalvas os textos
homeacutericos entre os helecircnicos e os textos biacuteblicos entre os hebreus sofrem com esse processo
(ASSMANN 2011 88-97)
Como explica Carlo Ginzburg ldquoo criteacuterio definitivo de verdade natildeo coincidia com as
reaccedilotildees do puacuteblico E antes de tudo a verdade era considerada uma questatildeo de persuasatildeo
ligada soacute marginalmente ao controle objetivo dos fatosrdquo (GINZBURG 2007 24) As
referecircncias cumpriam outras funccedilotildees como marcar um pertencimento ornamentar o texto
gerar autoridade
A citaccedilatildeo eacute a recorrecircncia a um passado seu uso eacute fruto de um trabalho de memoacuteria ora
extremamente ativo em sua consecuccedilatildeo ora involuntaacuterio Entretanto sempre haacute um significado
poliacutetico em seu uso pois vincula o orador a determinada identidade e ao mesmo tempo a uma
visatildeo de mundo e de poliacutetica Ao narrar seus diaacutelogos o escritor de Comagena buscou inserir-
se no mundo e com isso emitir sua opiniatildeo sobre a realidade que o cercava
71 Reiteradamente devemos dizer que a palavra educaccedilatildeo natildeo traduz esse termo grego em sua inteireza uma vez
que o grego pensava na formaccedilatildeo integral do homem tanto fiacutesica quanto intelectualmente A arte da palavra era
apenas um dos acircngulos da Paideia antiga
54
Luciano deve ser pensado dentro do contexto maior da presenccedila dos sofistas
helenoacutefilos no Impeacuterio Romano Logo acreditamos que esse debate deve ser complementado
por uma indagaccedilatildeo sobre a Segunda Sofiacutestica fenocircmeno cultural arcaizante que predominou
no Impeacuterio Romano nos ambientes helecircnicos Trata-se de um fenocircmeno de releitura da retoacuterica
antiga elaborado principalmente por oradores e retores Em termos estiliacutesticos os textos
produzidos nesse momento se caracterizam pela imitaccedilatildeo do grego do V aC tendecircncia
chamada pelos historiadores da literatura de aticismo (LESKY 1995)
Como afirma B P Readon o grego usado por escritores diferencia-se do koineacute e o
que se busca eacute o grego de Eacutesquines (READON 1988 80ss) Tais sofistas atuavam muitas
vezes em suas cidades como embaixadores que faziam a ponte com o governador da proviacutencia
ou com o proacuteprio Imperador (BOWERSOCK 196917-58) Nesse contexto o que predomina
eacute o discurso do gecircnero epidiacutetico72 que se vincula com o encocircmio louvando determinado valor
ou ato Eacute o gecircnero das festas puacuteblicas e dos auditoacuterios por isso se aproxima do elogio
O gecircnero encomiaacutestico natildeo estaacute simplesmente vinculado ao prazer do ouvinte Para
uma anaacutelise mais aprofundada eacute necessaacuterio considerar o mundo que o cerca e as possiacuteveis
mensagens poliacuteticas que o mesmo enseja Tal preconceito obnubilaria a anaacutelise do lugar que o
encocircmio assumiu entre os romanos no periacuteodo imperial Essa simplificaccedilatildeo fica patente quando
analisamos os discursos de alguns autores Natildeo vamos nos aprofundar nesse assunto mas por
exemplo Paul Veyne em seu texto Identidade grega contra e a favor ao analisar a atitude dos
gregos diante da dominaccedilatildeo romana afirma ldquoEra possiacutevel ao mesmo tempo desprezar Roma
orgulhar-se de ser grego e apoiar a ordem imperial Ser xenoacutefobo helecircnico patriota e
lsquocolaboradorrsquo De fato essa era a posiccedilatildeo majoritaacuteriardquo (VEYNE 2009 80) Noacutes entendemos
que esse periacuteodo marcou a escrita de diversos intelectuais que podem ser agregados sob a
insiacutegnia da Segunda Sofiacutestica
O termo Segunda Sofiacutestica foi criado por Filoacutestrato de Lemos no proacutelogo do seu
livro Vida dos Sofistas na tentativa de resumir com esse nome a atividade de muitos sofistas
helenizados espalhados pelo Impeacuterio Romano (Filoacutestrato V S I 475) Nesse sentido
Filoacutestrato constroacutei um panorama do contexto intelectual grego em face ao Impeacuterio Romano
Entretanto ele natildeo inclui Luciano como um orador ligado agrave Segunda Sofiacutestica fato que estranha
72 Eacute importante fugir de consideraccedilotildees simplistas sobre a retoacuterica epidiacutetica como o faz Carlo Ginzburg que ao
diferenciar o gecircnero epidiacutetico do deliberativo e do judiciaacuterio afirma que ldquoO exemplo e o entimema se consagram
respectivamente agrave oratoacuteria deliberativa e agrave judiciaacuteria o encocircmio agrave oratoacuteria epidiacuteticardquo (GINZBURG 2002 49)
Tais consideraccedilotildees natildeo observam o uso que esse tipo de discurso tem no Impeacuterio Romano principalmente os usos
poliacuteticos dos mesmos a fim de apresentar demandas locais camufladas em encocircmio (PERNOT 1993 230-238
PARELMAN 2005 53-57)
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os investigadores modernos quais seriam os motivos dessa exclusatildeo filostratiana Neste
capiacutetulo debatemos essa ausecircncia tendo em vista o conceito filostratiano de sofista para tentar
observar os pontos de aproximaccedilatildeo e de afastamento de Luciano desse ideal
Entendemos que a Segunda Sofiacutestica eacute um fenocircmeno cultural no qual a prosa se
coloca como forma predominante elaborada a partir de construccedilotildees retoacutericas Seus autores
nunca se autodenominaram dessa forma Entretanto aleacutem do uso da prosa existem outras
caracteriacutesticas comuns O uso da retoacuterica epidiacutetica que natildeo pode ser menosprezada haja vista
que por meio do elogio ou da censura o retoacuterico poderia inserir pedidos criacuteticas e denuacutencias de
maneira sutil observando assim elementos de uma etiqueta social necessaacuteria que evitaria a
execuccedilatildeo fiacutesica do orador e poderia favorecer a comunidade Tais especialistas da palavra eram
fundamentais para que os moradores das cidades dialogassem com o poder imperial
O constructo histoacuterico filostratiano da Segunda Sofiacutestica reverberou em parte da
historiografia contemporacircnea que tentou entender o espaccedilo grego de leitura e de escrita no
Impeacuterio Romano Desse modo faz-se mister refletir sobre as caracteriacutesticas baacutesicas dessa
historiografia Para seguir esse percurso devemos observar os seguintes pontos como os
autores contemporacircneos compreenderam a Segunda Sofiacutestica qual o estatuto que eles datildeo a
esse periacuteodo da histoacuteria da cultura antiga e finalmente como esses autores estariam vinculados
ao poder imperial
Como enfatizou G Anderson (1993 13-47) em seu livro The second Sophistic A
cultural Phenomenon in the Roman Empire a Segunda Sofiacutestica natildeo eacute apenas um fenocircmeno
literaacuterio mas cultural Sua ecircnfase recai sobre a contiacutenua reapropriaccedilatildeo por meio da retoacuterica do
passado helecircnico o que geraria fortes laccedilos identitaacuterios entre os intelectuais Francesca Mestre
ressalta que a literatura grega do Periacuteodo Imperial se caracteriza ldquopor dois aspectos
fundamentais de um lado o uso da prosa como veiacuteculo exclusivo de comunicaccedilatildeo e criaccedilatildeo e
por outro a impregnaccedilatildeo da retoacuterica em todas as suas manifestaccedilotildees em perfeita consonacircncia
com a Paideia ()rdquo (MESTRE 2000 p 61)
Para Simon Goldhill (200114-15) um ponto de difiacutecil entendimento eacute a
periodizaccedilatildeo desse movimento uma vez que dependendo dos elementos destacados ele pode
ser recuado ateacute a obra de Poliacutebio No entanto haacute uma preferecircncia em marcar tal fenocircmeno como
caracteriacutestico do Alto Impeacuterio com o auge no periacuteodo dos Antoninos
Vito A Sirago coloca o fenocircmeno como uma expressatildeo cultural das elites imperiais
Esse autor enfatiza que os problemas para a sua compreensatildeo estatildeo na dificuldade em demarcar
o seu alcance espacial e temporal Em primeiro lugar Sirago questiona a generalizaccedilatildeo
filostratiana como um empecilho Como a Segunda Sofiacutestica apresenta posturas muito distintas
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nos aspectos estiliacutesticos os pesquisadores apresentam dificuldade em sua caracterizaccedilatildeo Como
um fenocircmeno cultural sua accedilatildeo se daacute por meio da apropriaccedilatildeo contiacutenua de praacuteticas culturais
tradicionais tal accedilatildeo tem a funccedilatildeo de fazer convergir as elites como expressatildeo cultural da
aristocracia imperial (SIRAGO 1989 36-37) Natildeo se trata de um movimento contraacuterio agrave ordem
imperial mas que ressalta determinados grupos que jaacute estatildeo vinculados ao poder do Imperador
Tal reflexatildeo se aproxima de E L Bowie que analisa a maneira como essa elite
cultural ganhou sustentaccedilatildeo a partir da busca de uma identidade cujo principal signo era o uso
do passado grego A declamaccedilatildeo puacuteblica ganha ecircnfase e na segunda metade do primeiro seacuteculo
chegou a um lugar de destaque entre as atividades culturais Como afirma Bowie ldquoadquiriu
uma popularidade sem precedente e quase incompreensiacutevelrdquo (BOWIE 1981 188) Os oradores
multiplicam-se e suas obras apresentam um traccedilo importante o uso constante do passado grego
como elemento central ou como suporte para outras mensagens Os discursos versam sobre a
batalha de Maratona sobre os atenienses os espartanos os sistemas poliacuteticos que os dirigem
ou ainda a personalidade de Peacutericles Os temas do presente ficam camuflados nesses textos
(MESTRE 2000 62)
Ruth Weeb afirma que o desempenho retoacuterico proveu um foacuterum importante para os
cidadatildeos gregos do Impeacuterio afirmarem sua identidade e atingirem um status social entre seus
pares contemporacircneos Aleacutem disso foi um dos principais meios no qual o relacionamento de
Roma com os representantes das cidades e das proviacutencias foi construiacutedo (WEEB 2009 16-17)
Alcock considera que a ausecircncia de poder e gloacuteria fazem com que esses intelectuais
retomem o passado em um movimento nostaacutelgico Os escritos da Segunda Sofiacutestica
documentam a decepccedilatildeo pelo passado dominado e representam a regiatildeo com caracteriacutesticas de
resistecircncia (ALCOCK 2001 329) Eacute evidente que a dominaccedilatildeo eacute mascarada pela ascensatildeo das
famiacutelias bem nascidas na administraccedilatildeo do Impeacuterio e na participaccedilatildeo nas ordens equestre e
senatorial A busca do passado grego foi um canal ativo de comunicaccedilatildeo com o presente pois
permitia por meio de elementos culturais recorrentes dialogar com o poder estabelecido e
promover a legitimidade dos grupos A autora ressalta que essa literatura eacute somente um
epifenocircmeno de um processo muito mais complexo cujas reaccedilotildees de resistecircncia e os processos
de negociaccedilatildeo ocorrem das mais distintas formas (ALCOCK 2001 329-331)
Segundo Lukas de Blois podemos dividir os escritores gregos vinculados agrave Segunda
Sofiacutestica em dois grupos o primeiro os inseridos no sistema imperial seria o caso de Diacuteon
Caacutessio Herodiano e Filoacutestrato entre outros o segundo os demais autores cujo escopo temaacutetico
voltar-se-ia com mais frequecircncia a problemas locais relativos agraves suas respectivas cidades seria
o caso de Dion de Prusa Eacutelio Aristides e Luciano entre outros (DE BLOIS 1998 3441) Essa
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dicotomia mostra-se falha quando a operacionalizamos na anaacutelise dos autores por exemplo
Luciano teve um cargo no Egito e Eacutelio Aristides se encontra com Pio e Marco Aureacutelio para
levar ateacute eles demandas da cidade de Peacutergamo
O que coloca uma questatildeo muito importante para a compreensatildeo do Impeacuterio
Romano eacute a relaccedilatildeo estabelecida com as cidades do Impeacuterio e os povos que viviam nelas Um
pedido mal encaminhado aleacutem de receber a negativa como resposta poderia causar prejuiacutezos
agraves cidades Outro ponto importante na atuaccedilatildeo desses intelectuais tem relaccedilatildeo com a identidade
grega no segundo e no terceiro seacuteculos Como um povo que tem um passado cultural glorioso
pode conviver com o domiacutenio poliacutetico e a perda de soberania Esse passado foi mobilizado no
nosso ponto de vista como forma de resistir ao domiacutenio imperial
Toda essa renovaccedilatildeo historiograacutefica ressalta a busca de um novo olhar sobre a
literatura grega no Impeacuterio Romano Tim Whitmarsch em seu livro Greek literature and
Roman Empire discorre sobre um revisionismo historiograacutefico jaacute que a literatura grega dos
seacuteculos II e III foi vista como inferior agravequela produzida no periacuteodo claacutessico postura que eacute
defendida por exemplo por Bernard Van Groningen (apud WHITMARSCH 2001 41)
Whitmarsch entende que o termo Segunda Sofiacutestica foi apropriado pela academia moderna para
facilitar a periodizaccedilatildeo e a aproximaccedilatildeo da Paideia helecircnica e do poder romano Essa visatildeo
depreciativa eacute extremamente superficial
Havia fortes visotildees romacircnticas estabelecidas sobre a literatura grega Ateacute a deacutecada
de 1960 os criacuteticos e historiadores da literatura tinham tendecircncia a considerar os textos do
periacuteodo arcaico e claacutessico como cacircnones e os escritos produzidos sob domiacutenio romano como
literatura menor pouco criativa e voltada ao entretenimento Ao romper com essas visotildees os
criacuteticos literaacuterios e historiadores da literatura grega podem analisar essas obras como um
momento singular do contexto literaacuterio com a sofisticaccedilatildeo da linguagem e das teacutecnicas de
escrita com a incorporaccedilatildeo de outros modos de composiccedilatildeo (WHITMARSCH 2001 41-47)
Haacute vaacuterios aspectos interessantes relativos aos viacutenculos socioculturais desses autores
com os grupos hegemocircnicos do Impeacuterio Romano Sempre os conhecemos com o nome de sua
cidade de origem ao lado mas notamos que era uma praacutetica comum a obtenccedilatildeo da cidadania de
outras cidades O caso de Diacuteon de Prusa eacute emblemaacutetico uma vez que ele obteacutem a cidadania de
Apaea-Mirlea (vizinha de Prusa) e Nicomeacutedia Eacute importante ressaltar a mobilidade desses
homens tanto em viagens particulares (por exemplo Eacutelio Aristides) quanto agravequelas vinculadas
agraves embaixadas das cidades aos Imperadores (SARTRE 1994 132-133)
A relaccedilatildeo dos sofistas com o Impeacuterio era marcada por complexos viacutenculos
socioculturais havendo uma incisiva recusa em assumir cargos e obrigaccedilotildees religiosas pois
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tais ldquohonrariasrdquo eram muito custosas Por exemplo o avocirc e o pai de Dion de Prusa faliram ao
assumir cargos administrativos ou religiosos De fato muitas pessoas tentavam escapar das
magistraturas e das liturgias como por exemplo Eacutelio Aristides que recusou ser o grande
sacerdote em Esmirna (147) cobrador de impostos (151) e irenarca73 (152) utilizando o
argumento de falta de sauacutede e de recursos (CORTES COPETE 1995 156) Esses dados satildeo
fundamentais para pensarmos a complexidade da relaccedilatildeo desses intelectuais com o Impeacuterio ou
mesmo com os poderes locais
Esse quadro que traccedilamos possibilita-nos refletir sobre o lugar de Luciano de
Samoacutesata no Impeacuterio Romano Devemos concordar com a premissa defendida por Paul Veyne
de que intelectuais que natildeo gostam da cultura latina se sentem gregos entretanto colaboram
com a ordem e mantecircm lealdade ao Imperador (VEYNE 2009 80) Cabe-nos analisar no
entanto o lugar que o siacuterio ocupa nesse cenaacuterio
Temos basicamente duas teses levantadas entre os criacuteticos de Luciano sobre sua
relaccedilatildeo com o Impeacuterio Romano De um lado temos Maurice Croiset (1882) que ressalta as
qualidades estiliacutesticas de Luciano Para ele o que o siacuterio teria de inovador seria justamente suas
qualidades esteacuteticas no entanto os conteuacutedos de seus escritos estavam completamente alheios
ao mundo que o cercava Essa postura tambeacutem eacute defendida por Bompaire em seu claacutessico livro
Lucien Eacutecrivain imitation et creacuteation originariamente publicado em 1958 em que o autor
segue uma sugestatildeo de Croiset e trata a questatildeo luciacircnica a partir da desvalorizaccedilatildeo da oposiccedilatildeo
entre criaccedilatildeo e imitaccedilatildeo como processos antagocircnicos O objetivo de Bompaire eacute muito ousado
ele pretendia ldquover se possiacutevel o escritor em seu trabalho e captar a maneira como se elabora a
obra em seu espiacuteritordquo (BOMPAIRE 2000 5) O lucianista tentou compreender o conceito de
miacutemesis74 a partir dos significados dados pelos autores antigos tomando a imitaccedilatildeo como
73 Aquele que zela por Eireacutene a paz 74 Esse conceito eacute fundamental para a compreensatildeo da produccedilatildeo literaacuteria Para a historicizaccedilatildeo dos procedimentos
literaacuterios para a construccedilatildeo da mimeses na literatura ocidental reporte-se para o livro de Erich Auerbach Miacutemesis
a representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental (2011) Jean Pierre Vernant no texto O nascimento de
imagens (2010) se deteacutem principalmente na obra de Platatildeo para mostrar como o conceito de miacutemesis eacute construiacutedo
na filosofia antiga O helenista ainda ressalta seguindo os passos de Eric Havelock (1996) que as imagens no
mundo antigo vinculam-se estritamente a uma cultura oral A obra seminal para esse debate no periacuteodo romano da
literatura grega foi a Tese de Doutorado de Jacques Bompaire em seu livro Lucien Eacutecrivain imitation et creacuteation
(2000) que faz uma interssante investigaccedilatildeo da miacutemesis na obra de Luciano Entretanto esse autor natildeo ficou
restrito ao corpus luciacircnico sendo que a primeira parte de sua obra faz um levantamento rigoroso deste problema
nos autores do perioacutedo imperial A anaacutelise de Bompaire extremante rigorosa em sentido filoloacutegico carece de uma
percepccedilatildeo deste problema nas relaccedilotildees de poder O que pode ser encontrado no livro Greek literature and roman
Empire The politics of imitation (WEBB 2001 89) no qual retoma as colocaccedilotildees platocircnicas que desqualificam
a miacutemesis Retomando principalmente Plutarco Logino e Dioniso sua intensatildeo eacute compreender os aspectos
poliacuteticos dessa literatura e evideciar o caraacuteter subversivo da mesma A nosso ver a obra exagera ao colocar no
mesmo grupo autores tatildeo distintos como Plutarco e Logino como se ambos fossem caracterizados pela oposiccedilatildeo
ao Impeacuterio
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atividade ativa para a criaccedilatildeo retoacuterica
Apesar dos avanccedilos que essa perspectiva fornece uma vez que valoriza os
mecanismos de criaccedilatildeo literaacuteria e as estrateacutegias de leitura usadas pelo autor prende o inteacuterprete
em uma anaacutelise dos textos luciacircnicos muito subserviente agrave biblioteca disponiacutevel ao escritor de
Samoacutesata (BRANDAtildeO 200119) Dito de outra forma os textos do siacuterio natildeo se vinculariam ao
seu tempo mas seriam fruto de um intelectual preso ao passado ou seja sua obra seria devedora
de sua biblioteca o que corrobora a colocaccedilatildeo de Cruiset (1882) de que o siacuterio natildeo se importava
com a realidade sociopoliacutetica de seu tempo
Por outro lado temos uma postura historiograacutefica que vecirc em Luciano um criacutetico do
Impeacuterio Romano Essa vertente foi apontada inicialmente por Aurelio Peretti (1946) em seu
livro Luciano un intellettuale greco contro Roma em que a partir da anaacutelise do diaacutelogo
Nigrino ou A Filosofia de Nigrino ele apresenta alguns pontos interessantes sobre a questatildeo
luciacircnica caracterizando Nigrino como um texto contra o Impeacuterio Romano Dessa forma
Peretti se coloca contra a tendecircncia geral que vecirc em Luciano um intelectual desligado das
questotildees atuais e submisso ao poder imperial
Entre essas posturas encontra-se a de C P Jones (1986 83-87) que em seu livro
Culture and Society in Lucian afirma que Luciano teria sido perseguido pelo Imperador
Adriano devido a suas caacuteusticas criacuteticas ao Impeacuterio Romano e soacute foi reabilitado por Cocircmodo
que o teria designado para um importante cargo na proviacutencia do Egito Esse autor descarta a
existecircncia de qualquer interesse poliacutetico em Luciano limitando-se a colocar os viacutenculos entre
Luciano e seu tempo juntamente com algumas figuras menores e problemas pontuais No
entanto natildeo aceita a imagem proposta por Bompaire de ldquoum artista absorvido em si mesmordquo
(JONES 1986 4-5) que natildeo se preocuparia com sua atualidade
Entendemos que podem ser mapeados nos escritos de Luciano elementos que
marcam essa intrincada identidade uma vez que ele ressalta em toda a sua obra seu lugar de
alteridade Como salienta Brandatildeo (1990 139) toda alteridade se daacute na relaccedilatildeo e sua construccedilatildeo
se daacute na Histoacuteria e na vida social Nesse contexto vemos a sobreposiccedilatildeo de signos e siacutembolos
de diferentes culturas
A anaacutelise de Brandatildeo coloca como eixo organizador do corpus Lucianeum a
alteridade Ela se encontra de diferentes maneiras por meio dos personagens marginalizados
(prostitutas eunucos escravos pobres) personagens marginalizados por opccedilatildeo (filoacutesofos
ciacutenicos) o diferente em relaccedilatildeo ao grego (o estrangeiro e baacuterbaro sendo que os romanos satildeo a
antiacutetese do que conforma a Paideia grega) em relaccedilatildeo aos vivos (mortos) os que escapam agrave
esfera da terra (habitantes da lua das estrelas do sol e os deuses) entre os deuses os deuses
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baacuterbaros que satildeo um contraponto daqueles (BRANDAtildeO 1990 140-141) Luciano ainda
enfatiza os lugares da alteridade por exemplo o Hades confins da terra lugares estrangeiros
Uma anedota presente no opuacutesculo Hermoacutetimo pode nos ajudar a compreender o
problema da alteridade para Luciano
Conta-se que Gelatildeo de Siracusa tinha boca malcheirosa ― e tal fato foi
escondido dele durante muito tempo pois ningueacutem ousava advertir um tirano
ateacute uma mulher estrangeira tendo dormido com ele ousar dizer o que se
passava Ele voltando para junto da sua proacutepria mulher encolerizou-se por
ela natildeo tecirc-lo advertido sendo conhecedora mais do que ningueacutem do mau
cheiro Ela suplicou-lhe que a perdoasse pois natildeo tendo nunca dormido com
outro homem nem falado de perto acreditava que todos os homens exalavam
da boca o mesmo haacutelito75 (Luciano Hermot 34)
Essa estoacuteria eacute muito interessante uma vez que a mulher do tirano erra por ignoracircncia
os demais suacuteditos por medo Somente uma personagem que se move na completa alteridade
(mulher prostituta e estrangeira) lhe revela a verdade (BRANDAtildeO 1990 142)
Brandatildeo ainda ressalta que nos textos em que Luciano defende sua poeacutetica ele faz
alusatildeo ao incocircmodo papel de estrangeiro ldquoA questatildeo da alteridade em Luciano passa pelo
estatuto pouco definido do aculturado que deixando de lado o que lhe eacute proacuteprio adota uma
outra cultura mas natildeo se sente nunca totalmente adotado por elardquo (BRANDAtildeO 1990 144)
No texto O pescador ou os ressuscitados defendendo-se diante da Filosofia Luciano afirma
Sou siacuterio filosofia nas margens do Eufrates Mas para quecirc tudo isso Na
verdade sei de muitos desses meus adversaacuterios que natildeo satildeo menos baacuterbaros
de nascimento que eu mas apesar disso a sua iacutendole e a sua cultura natildeo
condizem com as Solenes dos Cipriotas dos Babilocircnios ou dos Estagiristas
Todavia para ti natildeo faz qualquer diferenccedila que um homem tenha uma
pronuacutencia baacuterbara desde que sua maneira de pensar se revele reta e justa76
(LUCIANO Pisc 19)
Se em um plano ideal a identidade grega eacute franca e aberta sendo o resultado da
formaccedilatildeo helecircnica (GOLDHILL2001 SWAIN 2003 GUARINELLO 2009) passiacutevel de
adesatildeo em seu Elogio agrave Paacutetria Luciano afirma que ldquoeacute ultrajante viver no
estrangeirordquo(LUCIANO Patr Enc 8)77
75 ldquoτῷ γὰρ Συρακουσίῳ Γέλωνί φασι δυσῶδες εἶναι τὸ στόμα καὶ τοῦτο ἐπὶ πολὺ διαλαθεῖν αὐτὸν οὐδενὸς
τολμῶντος ἐλέγχειν τύραννον ἄνδρα μέχρι δή τινα γυναῖκα ξένην συνενεχθεῖσαν αὐτῷ τολμῆσαι καὶ εἰπεῖν ὅπως
ἔχοι τὸν δὲ παρὰ τὴν γυναῖκα ἐλθόντα τὴν ἑαυτοῦ ὀργίζεσθαι ὅτι οὐκ ἐμήνυσε πρὸς αὐτὸν εἰδυῖα μάλιστα τὴν
δυσωδίαν τὴν δὲ παραιτεῖσθαι συγγνώμην ἔχειν αὐτῇ ὑπὲρ γὰρ τοῦ μὴ πεπειρᾶσθαι ἄλλου ἀνδρὸς μηδὲ ὁμιλῆσαι
πλησίον οἰηθῆναι ἅπασι τοῖς ἀνδράσι τοιοῦτό τι ἀποπνεῖν τοῦ στόματοςrdquo 76 ldquoΣύρος ὦ Φιλοσοφία τῶν Ἐπευφρατιδίων ἀλλὰ τί τοῦτο καὶ γὰρ τούτων τινὰς οἶδα τῶν ἀντιδίκων μου οὐχ
ἧττον ἐμοῦ βαρβάρους τὸ γένος ὁ τρόπος δὲ καὶ ἡ παιδεία οὐ κατὰ Σολέας ἢ Κυπρίους ἢ Βαβυλωνίους ἢ
Σταγειρίτας καίτοι πρός γε σὲ οὐδὲν ἂν ἔλαττον γένοιτο οὐδ εἰ τὴν φωνὴν βάρβαρος εἴη τις εἴπερ ἡ γνώμη ὀρθὴ
καὶ δικαία φαίνοιτο οὖσαrdquo 77 ldquoὄνειδος γὰρ τὸ τῆς ξενιτείαςrdquo
61
No opuacutesculo Hermoacutetimo ou sobre as seitas o autor discute os caminhos para se
encontrar a cidade ideal entendendo cidade como metaacutefora para a vida Qual escola filosoacutefica
poderia levar o indiviacuteduo a uma vida boa Observemos que na cidade a que se chega natildeo haacute
indiviacuteduos autoacutectones Luciano afirma que nela nesta cidade ldquotodos eram adventiacutecios
estrangeiros natildeo havendo um autoacutectone sequer pelo contraacuterio eram todos baacuterbaros escravos
aleijados pessoas humildes e pobres numa palavra qualquer um podia fazer parte daquela
cidaderdquo (LUCIANO Herm 24)78
A verdade natildeo eacute natural mas adquirida Observemos que no texto colocam-se em
causa somente os sistemas helecircnicos de formaccedilatildeo uma vez que a identidade eacute construiacuteda na
relaccedilatildeo com o outro em uma complexa rede de negociaccedilatildeo simboacutelica Cada indiviacuteduo assume
no decorrer de sua existecircncia diversas identidades em alguns momentos esses sentimentos de
pertenccedila se sobrepondo A caracteriacutestica mais evidente da identidade grega eacute o seu poder de
adesatildeo natildeo se trata de uma identidade assumida por meio do nascimento mas do aprendizado
de signos e sinais pertencentes agravequela forma de vida No caso especiacutefico de Luciano
observamos que ele fica em uma encruzilhada cultural onde o eu e o outro se (con)fundem Se
eacute ultrajante viver no estrangeiro (como citamos anteriormente) outro momento em que o caraacuteter
do estrangeiro eacute ressaltado eacute no panfleto Como se deve escrever a Histoacuteria no qual ele afirma
que
Assim pois para mim deve ser o historiador sem medo insubornaacutevel livre
e amigo da franqueza e da verdade mdash como diz o poeta cocircmico algueacutem que
chame figos de figos e gamela de gamela algueacutem que natildeo admita nem omita
nada por oacutedio ou por amizade que a ningueacutem poupe nem respeite nem
humilhe que seja juiz equacircnime benevolente com todos ateacute o ponto de natildeo
dar a um mais do que o devido estrangeiro nos livros sem cidade autocircnomo
sem rei natildeo se preocupando com o que acharaacute este ou aquele mas dizendo o
que se passou (LUCIANO Hist conscr 41)79
Para o siacuterio soacute eacute livre aquele que ao escrever natildeo tem paacutetria natildeo tem cidade que
cuida da regulamentaccedilatildeo da proacutepria vida que natildeo tem rei Aqui temos espaccedilo para natildeo ser
corrupto para ser franco para ser verdadeiro Observemos como essas mesmas caracteriacutesticas
aparecem na imagem que Luciano faz de Dioacutegenes no diaacutelogo O leilatildeo dos filoacutesofos
78 ldquoὡς ξύμπαντες μὲν ἐπήλυδες καὶ ξένοι εἶεν αὐθιγενὴς δὲ οὐδὲ εἷς ἀλλὰ καὶ βαρβάρους ἐμπολιτεύεσθαι πολλοὺς
καὶ δούλους καὶ ἀμόρφους καὶ μικροὺς καὶ πένητας καὶ ὅλως μετέχειν τῆς πόλεως τὸν βουλόμενονrdquo 79 ldquoΤοιοῦτος οὖν μοι ὁ συγγραφεὺς ἔστω ndash ἄφοβος ἀδέκαστος ἐλεύθερος παρρησίας καὶ ἀληθείας φίλος ὡς ὁ
κωμικός φησι τὰ σῦκα σῦκα τὴν σκάφην δὲ σκάφην ὀνομάσων οὐ μίσει οὐδὲ φιλίᾳ τι νέμων οὐδὲ φειδόμενος ἢ
ἐλεῶν ἢ αἰσχυνόμενος ἢ δυσωπούμενος ἴσος δικαστής εὔνους ἅπασιν ἄχρι τοῦ μὴ θατέρῳ τι ἀπονεῖμαι πλεῖον
τοῦ δέοντος ξένος ἐν τοῖς βιβλίοις καὶ ἄπολις αὐτόνομος ἀβασίλευτος οὐ τί τῷδε ἢ τῷδε δόξει λογιζόμενος
ἀλλὰ τί πέπρακται λέγωνrdquo
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Comprador ― Primeiro oacute belo de onde eacutes
Dioacutegenes80― De todo lugar
Comprador ― Como dizes
Dioacutegenes ― Vecircs um cidadatildeo do mundo
Comprador ― E imitas algueacutem
Dioacutegenes ― Heacuteracles
Comprador ― E por que natildeo levas tu tambeacutem a pele de leatildeo Pois no bastatildeo
estaacutes parecido com ele
Dioacutegenes ― Esta eacute minha pele de leatildeo este meu manto e luto como ele
[Heacuteracles] contra os prazeres ndash sem que ningueacutem me obrigue mas por vontade
proacutepria propondo-me uma vida limpa de imundiacutecies
(LUCIANO Vit Auct 8)81
A liberdade do filoacutesofo ciacutenico eacute dada justamente pelo fato de natildeo ter cidade e eacute
justamente por ser um cidadatildeo do mundo que o filoacutesofo pode ensinar a liberdade Luciano leva
ao extremo o estatuto do estrangeiro em sua obra jaacute que ele mesmo eacute um estrangeiro em seus
livros
Ateacute aqui ressaltamos os viacutenculos ambiacuteguos de Luciano com a cultura helecircnica e a
cultura romana Preocupa-nos a atuaccedilatildeo da intelectualidade helenoacutefona no seio do Impeacuterio
Observamos que tal accedilatildeo dava-se de acordo com a proposta de Veyne ser patriota xenoacutefobo agrave
romanidade e colaborador da ordem imperial
Luciano foi acusado de uma contradiccedilatildeo performaacutetica ndash ou seja de dizer uma coisa e
fazer outra ndash pela elaboraccedilatildeo da obra Em defesa dos que recebem salaacuterio escrita em defesa das
criacuteticas de hipocrisia que Luciano recebeu ao assumir um cargo na administraccedilatildeo da proviacutencia
imperial do Egito uma vez que ele havia escrito um texto Sobre os que recebem salaacuterio no
qual criticava os gregos que aceitavam trabalhar nas casas dos romanos para receber um
80 Brandatildeo ressalta que natildeo podemos esquecer que os nomes presentes em Leilatildeo dos Filoacutesofos devem-se aos
escoliastas e aos copistas e que nenhum nome proacuteprio eacute citado o que dificulta a identificaccedilatildeo (BRANDAtildeO 2001
310) 81 ldquoΑΓΟΡΑΣΤΗΣ
Τὸ πρῶτον ὦ βέλτιστε ποδαπὸς εἶ
ΔΙΟΓΕΝΗΣ
Παντοδαπός
ΑΓΟΡΑΣΤΗΣ
Πῶς λέγεις
ΔΙΟΓΕΝΗΣ
Τοῦ κόσμου πολίτην ὁρᾷς
ΑΓΟΡΑΣΤΗΣ
Ζηλοῖς δὲ δὴ τίνα
ΔΙΟΓΕΝΗΣ
Τὸν Ἡρακλέα
ΑΓΟΡΑΣΤΗΣ
Τί οὖν οὐχὶ καὶ λεοντῆν ἀμπέχῃ τὸ μὲν γὰρ ξύλον ἔοικας αὐτῷ
ΔΙΟΓΕΝΗΣ
Τουτί μοι λεοντῆ τὸ τριβώνιον στρατεύομαι δὲ ὥσπερ ἐκεῖνος ἐπὶ τὰς ἡδονάς οὐ κελευστός ἀλλὰ ἑκούσιος
ἐκκαθᾶραι τὸν βίον προαιρούμενοςrdquo
63
ordenado
Observemos os argumentos usados por Luciano para defender-se
() como eacute muitiacutessimo diferente algueacutem que tendo ingressado na casa de
algum rico serve e suporta quantas coisas eu disse no meu livro de quem na
esfera puacuteblica realiza algum dos serviccedilos da comunidade administrando os
negoacutecios puacuteblicos de acordo com suas capacidades e recebendo do
Imperador por isso um salaacuterio () os que tecircm em suas matildeos negoacutecios
puacuteblicos e se fazem uacuteteis para cidades e povos inteiros natildeo poderiam ser
razoavelmente caluniados apenas em razatildeo do salaacuterio () E o soldo natildeo
procede de um particular e sim do Imperador tampouco eacute pequeno trata-se
de muitos talentos As esperanccedilas futuras natildeo satildeo pequenas se acontecer o
normal talvez a supervisatildeo da proviacutencia ou outro serviccedilo imperial
(LUCIANO Apol 11-12)82
Luciano evidencia uma dicotomia muito interessante entre casa e Estado
estabelecendo uma diferenccedila qualitativa entre trabalhar para um particular e servir ao Impeacuterio
Se o trabalho na casa de um particular rico coloca no horizonte a servidatildeo e a subserviecircncia a
esperanccedila de trabalhar para o Imperador possibilita o enriquecimento e o espaccedilo propiacutecio para
fazer o bom uso de suas capacidades intelectuais Se a casa de um rico eacute o espaccedilo da vergonha
o Impeacuterio eacute o da gloacuteria A lealdade eacute dada por um viacutenculo direto com o Imperador
Faz-se mister retomar as ideias que marcaram a confecccedilatildeo deste item no qual buscou-
se entender o lugar de Luciano de Samoacutesata em consonacircncia com o que a Segunda Sofiacutestica
tinha no Impeacuterio Romano As especificidades dos escritos luciacircnicos sugerem que as hipoacuteteses
de Wallace-Hadrill sobre os trecircs coraccedilotildees devem ser suavizadas e que os aspectos ambiacuteguos
indicados por Paul Veyne merecem ser investigados em um panorama mais complexo Em um
conjunto de discursos como os que Luciano escreveu a pergunta sobre o que seria pertinente a
essa ou agravequela identidade mostra-se em sua leitura um falso questionamento jaacute que os
elementos identitaacuterios satildeo apresentados a partir de uma rede de negociaccedilotildees ressignificaccedilotildees
transgressotildees que transformam ou reforccedilam signos e significados dependendo da necessidade
do discurso A partir desse ponto o processo de descriccedilatildeo densa permite compreender a
dialeacutetica entre o eu (Luciano) e o outro (cultura imperial)
Entretanto temos claro que um poliacutegrafo como Luciano era profundamente atingido
pela realidade assim nosso desafio eacute encontrar as pistas sutis que ele deixou A seguir
82 ldquo[] ὡς πάμπολυ διαφέρει ἐς οἰκίαν τινὸς πλουσίου ὑπόμισθον παρελθόντα δουλεύειν καὶ ἀνέχεσθαι ὅσα μοί
φησιν τὸ βιβλίον ἢ δημοσίᾳ πράττοντά τι τῶν κοινῶν καὶ ἐς δύναμιν πολιτευόμενον ἐπὶ τούτῳ παρὰ βασιλέως
μισθοφορεῖν [] οἱ δὲ τὰ κοινὰ διὰ χειρὸς ἔχοντες καὶ πόλεσι καὶ ἔθνεσιν ὅλοις σφᾶς αὐτοὺς χρησίμους
παρέχοντες οὐκ ἂν εἰκότως ἐκ μόνου τοῦ μισθοῦ διαβάλλοιντο [] καὶ ὁ μισθὸς οὐκ ἰδιωτικός ἀλλὰ παρὰ τοῦ
βασιλέως οὐ σμικρὸς οὐδὲ οὗτος ἀλλὰ πολυτάλαντος καὶ τὰ μετὰ ταῦτα δὲ οὐ φαῦλαι ἐλπίδες εἰ τὰ εἰκότα
γίγνοιτο ἀλλὰ ἔθνος ἐπιτραπῆναι ἤ τινας ἄλλας πράξεις βασιλικάςrdquo
64
completamos esse quadro que constroacutei os elementos metanarrativos que ordenam a elaboraccedilatildeo
do discurso memorialiacutestico assim continuamos nossa anaacutelise observando como os usos das
narrativas miacuteticas referem-se agrave construccedilatildeo de um discurso memorialiacutestico pois se ligam a um
preteacuterito comum
16 Narrativas miacuteticas e memoacuteria cultural em um Impeacuterio Greco-romano
Roger Chatier afirmou recentemente que os historiadores se surpreenderam ao notar
que seu trabalho natildeo lhes garante o monopoacutelio sobre as formas de representaccedilatildeo do passado e
que outras formas de narrativas satildeo muito mais eficientes do que aquelas elaboradas apoacutes a
pesquisa cientiacutefica Nesse domiacutenio puacuteblico dos usos do passado temos os relatos
memorialiacutesticos a mitologia os romances histoacutericos os textos eacutepicos as hagiografias
medievais as telenovelas os filmes os documentaacuterios entre outras possibilidades de narrar
aspectos do passado (CHARTIER 2009 30)
O primeiro meio de aproximaccedilatildeo com o passado que temos eacute a memoacuteria trabalho
individual que coloca o homem no mundo e o aproxima dos outros ldquoO sujeito mesmo antes
de ser um eu jaacute estaacute a um certo niacutevel imerso na placenta de uma memoacuteria que o socializa e agrave
luz da qual ele iraacute definir quer sua estrateacutegia de vida quer os seus sentimentos de pertenccedila e
de adesatildeo ao coletivordquo (CATROGA 2009 13 grifo do autor) Natildeo se trata de entender a
memoacuteria como externa aos indiviacuteduos mas de ter claro que soacute eacute possiacutevel lembrar em sociedade
pois cada um precisa das memoacuterias dos outros para representar o mundo em que habita Nesse
sentido os mitos fazem parte desse passado compartilhado
O livro de Paul Ricoer A memoacuteria a Histoacuteria e o Esquecimento diferencia
memoacuteria e Histoacuteria83 nos seguintes termos Em primeiro lugar ele coloca a distinccedilatildeo entre
testemunho e documento sendo o primeiro ligado agrave memoacuteria e o segundo agrave Histoacuteria
No testemunho a realidade factual eacute construiacuteda a partir da confiabilidade presumida
de seu autor uma vez que este pode reivindicar a veracidade daquilo que disse jaacute que vivenciou
o que foi relatado84 (RICOEUR 2007 172) sempre apresentando a foacutermula eu estava laacute O
testemunho ldquoproporciona uma sequecircncia narrativa agrave memoacuteria declarativardquo (RICOEUR 2007
83 Usamos o termo Histoacuteria com letra maiuacutescula para distinguir a ciecircncia da Histoacuteria do objeto do conhecimento
dessa a histoacuteria 84 Paul Ricoeur deixa claro que essa argumentaccedilatildeo surge a partir de ldquocertas formas contemporacircneas de depoimento
sucitadas pelas atrocidades em massa do seacuteculo XXrdquo (RICOEUR 2007 170)
65
176) e eacute acreditado ou natildeo dependendo do ouvinteleitor eacute imediatista produzido no momento
presente e finalmente permite o reconhecimento do passado
Os documentos reunidos organizados catalogados selecionados e guardados no
arquivo satildeo acessados por especialistas que podem extrair dos mesmos uma narrativa histoacuterica
que se distinguiria do testemunho O arquivo permite que o historiador tenha uma postura
indiciaacuteria A narrativa histoacuterica eacute construiacuteda com elementos que a inserem em um regime de
verdade sendo possiacutevel a refutaccedilatildeo ou verificaccedilatildeo do que foi dito claramente Ricoeur estaacute
influenciado por Michel de Certeau85 (2011 45-111) Os documentos permitem a construccedilatildeo
lenta da explicaccedilatildeo histoacuterica a partir da construccedilatildeo das argumentaccedilotildees por fim eles permitem
a representaccedilatildeo do passado (RICOEUR 2007 170-192)
Essa argumentaccedilatildeo dificultaria muito o estudo dos usos da memoacuteria no mundo
antigo uma vez que tais conceitos natildeo podem ser aplicados a essa realidade Franccedilois Hartog
no livro A evidecircncia da Histoacuteria analisa a relaccedilatildeo entre a testemunha e o historiador e constata
que no mundo antigo havia dois conceitos de testemunho o grego e o judaico-cristatildeo
O conceito grego que se vincula aos historiadores mas tambeacutem aos meacutedicos
antigos salienta a investigaccedilatildeo e a visatildeo como caracteriacutesticas para a produccedilatildeo do conhecimento
Por outro lado haacute a postura judaico-cristatilde das religiotildees reveladas em que
aqueles que viram com os proacuteprios olhos tornaram-se servidores ou para dizer
de outro modo eles viram e acreditaram e aqueles que desde o iniacutecio se
tornaram servidores satildeo aqueles que viram Ver e servir satildeo indissociaacuteveis De
tal modo que aqueles que viram sem se tornarem servidores no fundo natildeo
chegaram a ver realmente E aqueles que se tornaram servidores viram ndash
poderiacuteamos acrescentar- com os olhos da feacute (HARTOG 2011 220)
Assim o conceito moderno de documento e de testemunha que Ricoeur (2007
170-192) desdobra das indagaccedilotildees de Certeau (2011 45-111) natildeo eacute universal mas depende de
um regime de historicidade e de memoacuteria que eacute especiacutefico da modernidade e da
profissionalizaccedilatildeo do historiador Nem os historiadores gregos nem os latinos se preocupavam
com as fontes a fim de validar seu discurso Como discorre Carlo Ginzburg (2007 17-19) no
livro O fio e os rastros os historiadores antigos precisavam expressar com vivacidade
(enargeia) seu relato natildeo sendo necessaacuterio mostrar as fontes Essas poderiam aparecer mas
estavam muito mais no espaccedilo dos elementos acessoacuterios do texto do que daquilo que era
fundamental diferentemente do historiador moderno cujas fontes satildeo elementos essenciais
85 Michel de Certeau cunha o conceito de operaccedilatildeo historiograacutefica para definir o trabalho do historiador e a
distinccedilatildeo deste com outras narrativas que evocam o passado Para ele o trabalho desse sujeito tem trecircs etapas o
estabelecimento da prova documental a construccedilatildeo da explicaccedilatildeo e a narrativizaccedilatildeo (CERTEAU 2011 45-111)
66
para a elaboraccedilatildeo de sua narrativa Os criteacuterios de validaccedilatildeo enunciativa satildeo outros haacute outro
regime de memoacuteria em accedilatildeo
Outro ponto importante eacute a compreensatildeo de que o conceito antigo de Histoacuteria eacute
diferente do moderno Hanna Arendt afirma que o tema da Histoacuteria eacute o extraordinaacuterio aquilo
que pretende vencer a mortalidade da vida e se inscrever em uma ordem eterna (ARENDT
2002 72) O homem antigo desconhecia a noccedilatildeo de processo logo os eventos estudados natildeo
eram encaminhados em uma ordem causal que permitisse uma explicaccedilatildeo estrutural Nesse
sentido as guerras satildeo momentos fundamentais para esses historiadores
Seguindo esses elementos o historiador do mundo antigo que deseja operar com as
distinccedilotildees de Paul Ricoeur coloca-se em uma situaccedilatildeo difiacutecil Entretanto antes de decretar a
impossibilidade do estudo da memoacuteria em sociedades diferentes devemos ressaltar que a
distinccedilatildeo proposta pelo filoacutesofo francecircs responde aos interesses contemporacircneos sobre os usos
e abusos do passado na sociedade hodierna
A fim de ampliar o debate afirmamos que a memoacuteria vincula-se agraves repeticcedilotildees e agraves
atualizaccedilotildees culturais natildeo se restringindo agraves elaboraccedilotildees conscientes dos indiviacuteduos pois as
sociedades apresentam um rico acervo que eacute transmitido de acordo com os regimes de memoacuteria
em que se inscrevem
Jan Assmann86 afirma que ldquoo princiacutepio fundamental de todas as estruturas
conectivas eacute a repeticcedilatildeo que garante que as linhas de accedilatildeo natildeo se percam no infinito mas
tambeacutem que se ordenem em modelos reconheciacuteveis e possam identificar-se como elementos de
uma cultura comumrdquo (ASSMANN 2011 19) Esse princiacutepio de conectividade eacute a base da
cultura humana visto que os homens tecircm acima de tudo a capacidade de se comunicar
(THEML 2002 12)
Entendemos que memoacuteria eacute a capacidade que o indiviacuteduo tem de expressar
conteuacutedos adquiridos em um tempo anterior agravequele em que ele vive permitindo a troca de
experiecircncias passadas por mecanismos extremamente variados
Para Assmann (2011) existe a memoacuteria comunicativa e a memoacuteria cultural A
memoacuteria comunicativa refere-se agraves lembranccedilas relacionadas ao passado recente aquelas que os
indiviacuteduos dividem com seus contemporacircneos e podem reivindicar sua veracidade trata-se da
86 Jan Assmann eacute um egiptoacutelogo alematildeo que juntamente com sua esposa Aleida Assmann tem desenvolvido e
aplicado o conceito de memoacuteria cultural Os dois livros de Jan Assmann que citamos na bibliografia satildeo traduccedilotildees
em espanhol e francecircs do livro Das kulturelle Gedaumlchtnis Schrift Erinnerung und politische publicado
originariamente em 2002 Sua esposa eacute especialista em Renascimento sendo que seu livro Espaccedilos da recordaccedilatildeo
formas e transformaccedilotildees da memoacuteria cultural (ASSMANN 2011) foi publicado recentemente pela Editora da
UNICAMP
67
memoacuteria de uma geraccedilatildeo (ASSMANN 2011 49) Por outro lado a memoacuteria cultural orienta-
se
mediante pontos fixos do passado Tampouco nela se pode perpetuar o
passado enquanto tal Neste caso o passado se coagula em figuras simboacutelicas
que se aderem a recordaccedilatildeo () os mitos satildeo figuras da recordaccedilatildeo natildeo tem
sentido distinguir aqui entre mito e histoacuteria Para a memoacuteria cultural a histoacuteria
factual natildeo conta mas a histoacuteria como eacute lembrada Tambeacutem se poderia dizer
que na memoacuteria cultural a histoacuteria factual se converte em recordaccedilatildeo e
portanto se transforma em mito O mito eacute uma histoacuteria fundante uma histoacuteria
contada para esclarecer o presente ao iluminar as origens () Na lembranccedila
a Histoacuteria faz-se mito Deste modo natildeo se torna irreal muito pelo contrario se
transforma em realidade entendida como uma forccedila normativa e formativa
permanente (ASSMANN 2011 51)
Os elementos que compotildeem o regime de memoacuteria estatildeo relacionados justamente
com os pontos fixos que estatildeo fora dos discursos por isso metadiscursivos Trata-se daquilo
que antecede a escrita e lhe fornece limites e argumentos proacuteprios agrave sua confecccedilatildeo Esses pontos
fixos satildeo pensados a partir da loacutegica de que memoacuteria eacute aquilo que os homens repetem suas
histoacuterias de vida as narrativas de seus antepassados proacuteximos ou distantes ou ainda as
narrativas miacuteticas
O regime de memoacuteria romano no qual Luciano se inscreve apresenta um contexto
em que a formaccedilatildeo dos homens passa por treinamentos muito especiacuteficos A historiadora
Frances A Yates (2007 17-26) estudou a construccedilatildeo da arte da memoacuteria87 o que permite
entender o que Assmann chama de cultura da recordaccedilatildeo jaacute que a arte da memoacuteria treinamento
de uma memoacuteria artificial a fim de elaborar discursos complexos eacute bastante desenvolvida88
Esse treinamento orienta para a construccedilatildeo discursiva a partir de outras formas de
validaccedilatildeo enunciativa que ganha contornos diferentes no contexto histoacuterico romanizado Nesse
sentido os trabalhos de Ruth Webb (1997229-232) sobre a ecfrase antiga nos ajudam a
entender como a ideia de vivacidade (enargeia) eacute mais importante para dar credibilidade ao
texto dos historiadores do que a remissatildeo aos arquivos e agraves fontes consultadas
Esses elementos fornecem aos oradores escritores e retores elementos para
desenvolver teacutecnicas de uso da memoacuteria artificial Joumlrn Ruumlsen complementa esse debate ao
87 Yates inicia sua investigaccedilatildeo pelo estudo dos textos de Ciacutecero Quintiliano e um tratado Anocircnimo a Retoacuterica
Ad Herennium Ela mostra como a Antiguidade greco-romana produziu sofisticadas teacutecnicas memorialiacutesticas
vinculadas agrave disposiccedilatildeo precisa dos discursos em lugares de memoacuteria e em imagens 88 Mary Carruthers (2011) escreveu A teacutecnica do pensamento meditaccedilatildeo retoacuterica e a construccedilatildeo de imagens
(400-1200) que trata do mesmo tema na Idade Meacutedia Harald Weinrich estudou o oposto em seu Lete arte e criacutetica
do esquecimento (2001) se debruccedilou sobre o estudo da ars oblivionis (arte do esquecimento)
68
afirmar que as narrativas referentes ao passado satildeo uma constante antropoloacutegica fundamental agrave
existecircncia humana (RUumlSEN 2001 149-174)
Maurice Halbwaschs (2004) socioacutelogo francecircs no livro poacutestumo Memoacuteria
Coletiva enfatiza que os indiviacuteduos necessitam da coletividade para lembrar Sua conclusatildeo
chega a enfatizar que soacute existe memoacuteria coletiva que o indiviacuteduo natildeo teria existecircncia enquanto
tal se natildeo fosse o grupo A memoacuteria coletiva refere-se agrave maneira pela qual os indiviacuteduos se
aproximam das narrativas que constroem as identidades sociais Haacute um passado comum que
orienta discursos sobre como determinadas entidades devem agir ou seja as memoacuterias
construiacutedas na coletividade e que extravasam os paracircmetros da vida permitem refletir os
conceitos apresentados Nesse sentido a indagaccedilatildeo do teoacuterico portuguecircs Fernando Catroga
sobre a memoacuteria coletiva faz muito sentido ldquoNatildeo seraacute este conceito filho de uma ilusatildeo
holiacutestica de cariz antropomoacuterfico e antropopaacutetico Incompatiacutevel com a atual reivindicaccedilatildeo da
subjetividade e com a contestaccedilatildeo da autossuficiecircncia e autonomia das totalidades sociaisrdquo
(CATROGA 2009 12)
A resposta a essa pergunta deve observar que haacute na sociedade ritos monumentos
manuais e diversas miacutedias que orientam as lembranccedilas das pessoas Assim devemos superar o
positivismo metodoloacutegico de Halbwaschs e aprender com sua leitura que haacute elementos
externos a balizar nos quais os homens encontram as referecircncias para construir suas narrativas
E ainda como lembra a historiadora Jacy Seixas para o socioacutelogo francecircs a memoacuteria se daacute no
grupo (SEIXAS 2001 107)
Observando que o termo coletivo89 apresenta consideraccedilotildees holiacutesticas como
indagado anteriormente por Catroga (2009 12) salientamos que a proposta de Jan Assmann
(2011 51) de uma memoacuteria cultural nos permite avanccedilar no debate acerca das construccedilotildees
memorialiacutesticas no mundo antigo
O mito foi pensado enquanto uma narrativa fundante que representa em alguma
medida o passado de uma comunidade Nesse caminho os mitos satildeo elementos que constituem
as identidades culturais Para entender a maneira como o preteacuterito eacute reapresentado buscamos a
compreensatildeo do regime de memoacuteria romano Devemos compreender como os homens
89 Wulf Kansteiner afirma que ldquoA maioria dos estudos sobre memoacuteria se concentra na representaccedilatildeo de eventos
especiacuteficos dentro de configuraccedilotildees cronoloacutegicas geograacuteficas e de miacutedia especiacuteficas sem refletir sobre os puacuteblicos
das representaccedilotildees em questatildeo Como resultado a riqueza de novas visotildees agraves culturas histoacutericas passadas e
presentes natildeo podem ser ligadas conclusivamente aos coletivos sociais especiacuteficos e sua consciecircncia histoacutericardquo
(KANSTEINER 2002 179) Logo faz-se necessaacuterio observar a quais grupos os textos luciacircnicos atingem no
caso uma pequena elite letrada entretanto como esses textos eram apresentados em seccedilotildees puacuteblicas haacute uma
grande possibilidade de ampliaccedilatildeo desta audiecircncia obtendo com isso um alcance maior do puacuteblico Entretanto
essas afirmaccedilotildees satildeo bastante conjecturais
69
lembram assim como o uso que fazem dessa lembranccedila ou seja de como eles gerem a
memoacuteria
O regime de memoacuteria depende de um conjunto de elementos que natildeo satildeo
individuais mas externos aos indiviacuteduos No caso que estudamos devemos ressaltar que estava
disponiacutevel aos homens os saberes da retoacuterica principalmente a mnemoteacutecnica ou a arte da
memoacuteria O domiacutenio desses elementos era importante para a inserccedilatildeo poliacutetica e cultural das
comunidades A formaccedilatildeo de bons oradores era a ponte entre as cidades e o poder imperial
uma vez que somente esses especialistas das palavras poderiam fazer reivindicaccedilotildees junto aos
Imperadores eou autoridades romanas sem correr o risco de ofender o dominador Em outras
palavras os perigos de uma comunicaccedilatildeo desastrosa poderiam custar muito caro agraves
comunidades desse modo a formaccedilatildeo de bons oradores era um dado significativo
Outro elemento importante para a compreensatildeo do regime de memoacuteria romano eacute o
modo de validaccedilatildeo discursivo que predominava No mundo em que viveu Luciano a verdade
era dada pela possibilidade de o discurso produzir a sensaccedilatildeo de ser visto
As questotildees referentes ao regime de memoacuteria romano pouco a pouco se afunilam
nos escritos luciacircnicos No intuito de deslindar os mecanismos metanarrativos que satildeo
mobilizados por Luciano colocamos sua relaccedilatildeo com o dizer verdadeiro Com a produccedilatildeo de
enunciados a partir da parreacutesia franqueza Luciano tece sua argumentaccedilatildeo recorrendo
peremptoriamente a essa modalidade do dizer verdadeiro como vemos no proacuteximo toacutepico
17 A coragem da verdade em Luciano entre a poliacutetica imperial e a fala franca
Em seus dois uacuteltimos cursos no Collegravege de France o filoacutesofo francecircs Michel Foucault
ministrou uma seacuterie de conferecircncias sobre uma modalidade especiacutefica do dizer verdadeiro que
se aglutinava a partir da palavra grega Παρρησία (parreacutesia)90 cujo significado tem campo
semacircntico entre sinceridade coragem da verdade fala franca
90 Παρρησία ας significa liberdade de expressatildeo franqueza sinceridade (MALHADAS et alli 2009d 42)
Segundo o dicionaacuterio Liddell-Scott-Jones do ponto de vista etimoloacutegico essa palavra faz a combinaccedilatildeo de πᾶς e
ῥῆσις capacidade plena e inteira de dizer Esse termo foi analisado por Michel Foucault nos dois uacuteltimos cursos
que ele ministrou no Collegravege de France ao analisar esse termo em um sentido mais amplo sobre um modo
especiacutefico de dizer a verdade (FOUCAULT 2012 4) Trata-se de uma forma que coloca o produtor de discursos
em uma situaccedilatildeo especiacutefica ou seja a do parresiasta um indiviacuteduo que se coloca de maneira ousada diante do
mundo e que por este mesmo motivo pode sofrer com as consequecircncias do que diz Ele eacute capaz de usar a parreacutesia
para se comunicar com aquele que estaacute no poder (FOUCAULT 2012 9) o que eacute uma noccedilatildeo primordialmente
poliacutetica Mais adiante analisamos essa ideia em alguns textos luciacircnicos Em portuguecircs existe o temo parreacutesia
registrado no dicionaacuterio Houaiss como ldquoliberdade oratoacuteria afirmaccedilatildeo jocosardquo desdobrando o sentido etimoloacutegico
grego ldquoliberdade de linguagem franquezardquo e a etimologia latina ldquoconfissatildeo espeacutecie de concessatildeordquo registrando
ainda o adjetivo parreacutesico
70
A leitura do corpus luciacircnico nos permite encontrar essa palavra em momentos
bastante especiacuteficos que se relacionam agrave sua postura como escritor e em alguma medida como
cidadatildeo Como forma de compreender o regime de memoacuteria romano no qual o siacuterio se insere
buscamos compreender essa noccedilatildeo em seus mecanismos internos de validaccedilatildeo discursiva
Nesse sentido tal anaacutelise se insere tambeacutem no campo de uma Histoacuteria do dizer verdadeiro
como foi proposto por Foucault Entretanto apartamo-nos da anaacutelise desse filoacutesofo uma vez
que entendemos o papel das formaccedilotildees discursivas na escrita dos textos mas natildeo descartamos
a intencionalidade que o autor confere a seus escritos Haacute no texto literaacuterio elementos criadores
que expressam habilidades e processos criativos (COMPAGNON 2012 94)
Trata-se de uma modalidade do dizer verdadeiro de uma forma na qual o indiviacuteduo
manifesta a verdade e a mesma eacute reconhecida pelo grupo (FOUCAULT 2011 4) A parreacutesia
que aqui traduzimos por fala franca natildeo pode ser confundida em sua verdade com outras
formaccedilotildees discursivas
() o parresiasta natildeo eacute o profeta que diz a verdade desvelando em nome de
outro e enigmaticamente o destino O parresiasta natildeo eacute um saacutebio que em
nome da sabedoria diz quando quer e sobre o fundo de seu proacuteprio silecircncio
o ser e a natureza (a phyacutesis) O parresiasta natildeo eacute o professor o instrutor o
homem do know-how que diz em nome de uma tradiccedilatildeo a teacutekhne
(FOUCAULT 2011 24-25)
Em seu curso o autor da Histoacuteria da Loucura analisa algumas passagens dos escritos
de Luciano sem a intenccedilatildeo de compreendecirc-los Seu intento eacute deslindar a parreacutesia ciacutenica em
algumas imagens construiacutedas no corpus luciacircnico Destarte o uso que Foucault faz desses
escritos estaacute no encontro das reflexotildees sobre o dizer verdadeiro e a maneira pela qual Luciano
se construiu enquanto escritor
Em 1964 Giuseppe Scarpat publicou Parrhesia Storia del termine e delle sue
traduzioni in latino em que ele traccedila um panorama do uso dessa palavra nas assembleias
atenienses ou seja seu uso poliacutetico fundamental para a existecircncia da democracia claacutessica Ele
investiga principalmente seu uso na comeacutedia claacutessica e entre os filoacutesofos Nessa investigaccedilatildeo
o autor cita Luciano em apenas duas passagens quando fala da parreacutesia ciacutenica (SCARPAT
1964 125-148)
Recentemente foi publicado o livro Free speech in classical antiquity organizado por
Ineke Sluiter e Ralph M Rosen que apresenta capiacutetulos bastante ricos sobre a temaacutetica
novamente sobre seu uso na comeacutedia e na vida poliacutetica ateniense Entretanto seu recorte
temaacutetico prioriza o periacuteodo grego claacutessico (SLUITER amp ROSEN 2004)
Especificamente sobre os escritos de Luciano de Samoacutesata temos o artigo intitulado
71
La notion de parrheacutesia chez Lucien de Valeacuterie Visa-Ondaccediluhu que objetiva analisar como a
literatura grega do periacuteodo imperial utiliza elementos que fazem parte da tradiccedilatildeo grega
claacutessica Dessa forma o termo parreacutesia eacute pensado como componente dessa heranccedila ldquoem um
movimento de mimeacutesis vista natildeo como simples imitaccedilatildeo mas como recriaccedilatildeordquo (VISA-
ONDACcedilUHU 2006 262)
Tais reflexotildees nos ajudam a analisar os escritos luciacircnicos uma vez que esse termo
aparece em momentos significativos A hipoacutetese que levantamos eacute que o autor siacuterio se coloca
como um produtor de discursos que busca na fala franca sua construccedilatildeo literaacuteria ou seja ele se
coloca nos textos com o horizonte de construccedilatildeo textual a partir da parreacutesia No corpus
luciacircnico aparecem quarenta e seis termos da famiacutelia de παρρησία παρρησία (Phal A 9 Nigr
15 3 Demon 3 15 Demon 11 6 Demon 50 10 J conf 5 4 J trag 19 2 J trag 32 28
Tim 36 9 Char 13 1 Vict auct8 15 Pisc 17 8 Merc Cond 416 Alex 47 18 Syr Dea
22 9 Peregr 18 16 Fug 12 16 Lex 17 11 Pseudol 1 12 Pseudol 4 3 Pseudol 4 20
Deor Conc 2 6 Deor Conc 4 2 Deor Conc 6 10 Deor Conc 14 1 Abd 7 14 Hist Co
41 2 Hist Co 44 2 Hist Co 61 8 Apol 13 1 Hermot 51 10 D mort 20 9 22 D mort
21 3 14 D mort21 4 8) παρρησιάξομαι (J Trag 19 5 J Trag 41 21 J Trag 44 12 Tim
11 4 Adv Ind 30 8 Pseudol 3 2) παρρησιάαστής (Deor Conc 3 12) παρρησιαστκός
(Cal 23 7) ἀπαρρησίατος (Cal 9 1) Geralmente essa noccedilatildeo aparece secundada de outras
duas importantes noccedilotildees gregas ἐλευθερία (Nigr 15 3 Demom 3 15 Demon 11 6 Cal 23
7 Char 13 1 Vict Auct 8 15 Pisc 17 8 Peregr 18 16 Lex 17 11 Pseudol 1 12 Deor
Conc 2 6 Abd 7 14 Hist Co 41 2 Hist Co 61 8 D Mort 20 9 22 D Mort 21 3 14)
e ἀλήθεια (Nigr 15 3 Demom 3 15 Cal 9 1 J Conf 5 4 Tim 36 9 Char 13 1 Vict
Auct 8 15 Merc Cond 4 16 Alex 47 18 Lex 17 11 Pseudol 4 3 Pseudol 4 20 Abd
7 14 Hist co 41 2 Hist co 44 2 Hist co 61 8 Hermot 51 10 D mort 21 3 14 D mort
21 4 8) respectivamente Liberdade e Verdade
Foucault identificou na parreacutesia uma caracteriacutestica da forma ciacutenica de dizer a verdade
O que estaacute em conformidade por exemplo com o Ciacutenico presente no Leilatildeo dos Filoacutesofos O
comprador pergunta ao filoacutesofo ciacutenico a que ele se dedica e ele responde ldquo Sou libertador de
homens e meacutedicos de afliccedilotildees Em uma palavra quero ser profeta da verdade e da franqueza
(παρρησίας)rdquo (Luciano Vit Auct 8) Nesse passo o personagem Ciacutenico eacute o porta-voz da
verdade parreacutesica
O termo profeta natildeo pode ter a conotaccedilatildeo judaica daquele que conhece o futuro graccedilas
72
agrave divindade mas deve aproximar-se da figura de Tireacutesias91 que conhece a verdade no presente
no futuro e no passado enquanto ela estaacute oculta aos homens Por exemplo natildeo basta ter a
verdade visto que eacute necessaacuterio que o filoacutesofo apresente um mecanismo de enunciaccedilatildeo que
permite que ela seja dita mesmo em condiccedilotildees desfavoraacuteveis (HADOT 2008 52-53)
Trata-se de uma caracteriacutestica da parreacutesia colocar o dono do discurso em condiccedilotildees
perigosas No caso do diaacutelogo trata-se de um filoacutesofo vendido como escravo que jaacute adianta ao
comprador que iraacute dizer a verdade O opuacutesculo O leilatildeo dos filoacutesofos serve de mote para o texto
O pescador ou os ressuscitados no qual o siacuterio eacute acusado pelos filoacutesofos ilustres de tecirc-los
desmoralizado ao fazer com que fossem vendidos em praccedila puacuteblica como se fossem escravos
o que era uma afronta contra os filoacutesofos e a filosofia Ele eacute julgado em um tribunal onde estatildeo
presentes diversas personificaccedilotildees como a Filosofia a Virtude a Verdade entre outras Em um
longo trecho ele explica que natildeo tinha a intenccedilatildeo de criticar a Filosofia ou os grandes mestres
mas seus seguidores que soacute se interessavam por riquezas e fama Na conclusatildeo do livro Luciano
faz uma ordaacutelia para distinguir os verdadeiros filoacutesofos dos falsos Ele convida todos os ditos
filoacutesofos para receber presentes e nesse momento uma multidatildeo se apresenta Entretanto ele
afirma que os verdadeiros filoacutesofos encontrariam a felicidade e a Filosofia personificada
afugentou os falsos Como os maus fogem da puniccedilatildeo Luciano coloca ouro em um anzol o
que os atrai por isso o nome do opuacutesculo
A anaacutelise detida desse texto ajuda em dois sentidos 1) compreender como Luciano
percebe sua atitude diante da escrita 2) entender os laccedilos construiacutedos entre o dizer verdadeiro
e os mecanismos de poder O mote do texto eacute justamente a defesa de Luciano ao ataque dos
filoacutesofos que satildeo satirizados em seu escrito Nele o escritor satiriza os filoacutesofos de seu tempo
aos quais a filosofia natildeo ensinou uma maneira melhor de viver Trata-se de um registro que
exemplifica a tese de Pierre Hadot na qual ele defende que a filosofia no mundo antigo eacute uma
forma de viver e natildeo um trabalho de especulaccedilatildeo abstrato (HADOT 2008 65)
A atitude dos pensadores diante de Luciano pressupotildee a hierarquizaccedilatildeo do discurso
Soacutecrates ndash () Mas de que modo iremos castigaacute-lo Imaginemos contra ele
uma morte variada capaz de agradar a todos noacutes Sim ele merece sofrer sete
mortes por cada um de noacutes
Um filosoacutefo mdash A minha opiniatildeo eacute que o tipo deve ser empalado
Segundo filosoacutefo mdash Mas por Zeus Primeiro deve ser flagelado
91 Adivinho presente nas narrativas miacuteticas do ciclo tebano Teria sido mulher por sete anos de sua juventude Um
dia foi inquirido por Zeus e Hera para saber quem tinha mais prazer sexual o homem ou a mulher Sem hesitar
ele afirmou que era a mulher pois tinha um gozo nove vezes mais prazeroso que o do homem Por esse motivo
Hera encoleirou-se e puniu-o com a cegueira Zeus para compensar permitiu que ele vivesse e enxergasse mais
que os outros homens Em vaacuterios momentos eacute procurado no Hades por heroacuteis vivos como eacute o caso do Odisseus
no canto XI da Odisseia (GRIMAL 2005 450-451)
73
Terceiro filoacutesofo mdash E antes disso devem arrancar-lhe os olhos
Quarto filoacutesofo mdash E ainda antes devem cortar-lhe a liacutengua
Soacutescrates mdash Que eacute que te parece oacute Empeacutedocles
Empeacutedocles mdash Que deve ser lanccedilado nas crateras para aprender a natildeo
insultar os melhores que ele (LucianoPisc 2)92
O primeiro ponto que nos interessa satildeo as penas propostas pelos filoacutesofos sem o devido
processo legal jaacute que o narrador iraacute reivindicar um julgamento justo Os filoacutesofos sugerem que
o personagem seja empalado uma pena comum no Impeacuterio mas considerada a mais ultrajante
sendo que essa deveria ser precedida pelo supliacutecio do corpo a perda da visatildeo e da liacutengua A
morte do personagem infrator deveria ser precedida pelo sofrimento fiacutesico e moral assim como
pela incapacitaccedilatildeo do exerciacutecio da fala A infraccedilatildeo cometida no discurso (insulto) natildeo pode ser
tolerada por quem estaacute hierarquicamente em uma condiccedilatildeo superior O crime cometido pelo
escritor eacute a praacutetica do insulto contido na ordem do discurso
Aprendemos com Foucault que o discurso precisa ser controlado selecionado e
redistribuiacutedo por meio de mecanismos que tecircm a funccedilatildeo de dar a medida de eficaacutecia enunciativa
em cada situaccedilatildeo (FOUCAULT 1996 8-9) O proacuteximo passo do texto coloca um elemento
importante Luciano (auto)nomeia o escritor de Parresiacuteades (Παρρησίαδης) palavra derivada
de parreacutesia com o sufixo ndashδης que significa ldquofilho derdquo tendo como traduccedilatildeo possiacutevel o
Sincero o Franco
No passo seguinte esse personagem traccedila um diaacutelogo com o filoacutesofo Platatildeo por meio
de citaccedilotildees de Homero e de Euriacutepedes Como afirma Catherine Darbo-Peschanski a citaccedilatildeo eacute
feita em um sistema de negociaccedilatildeo (DARBO-PESCHANSKI 2004 10) entre o agente que
produz o enunciado e o ouvinte que compartilha a referecircncia usar versos homeacutericos cria entre
o escritor acusado e o filoacutesofo acusador uma empatia por compartilharem de elementos
culturais presentes na Paideia
O uso desses elementos evidencia a estrateacutegia discursiva de trazer o oponente para o
92 ldquoΣΩΚΡΑΤΗΣ
[] τῷ τρόπῳ δέ τις αὐτὸν καὶ μετέλθῃ ποικίλον γάρ τινα θάνατον ἐπινοῶμεν κατ αὐτοῦ πᾶσιν ἡμῖν ἐξαρκέσαι
δυνάμενον καθ ἕκαστον γοῦν ἑπτάκις δίκαιός ἐστιν ἀπολωλέναι
ΦΙΛΟΣΟΦΟΣ
Ἐμοὶ μὲν ἀνασκολοπισθῆναι δοκεῖ αὐτόν
ΑΛΛΟΣ
Νὴ Δία μαστιγωθέντα γε πρότερον
ΑΛΛΟΣ
Πολὺ πρότερον τοὺς ὀφθαλμοὺς ἐκκεκολάφθω
ΑΛΛΟΣ
Τὴν γλῶτταν αὐτὴν ἔτι πολὺ πρότερον ἀποτετμήσθω
ΣΩΚΡΑΤΗΣ
Σοὶ δὲ τί Ἐμπεδόκλεις δοκεῖ
ΕΜΠΕΔΟΚΛΗΣ
Εἰς τοὺς κρατῆρας ἐμπεσεῖν αὐτόν ὡς μάθῃ μὴ λοιδορεῖσθαι τοῖς κρείττοσινrdquo
74
mesmo campo e mostrar a ele habilidade no uso daqueles utensiacutelios culturais Entre palavras
duras que exigem o supliacutecio do escritor Parresiacuteades afirma ldquosoacute por causa de palavras agora
ides me matarrdquo (Luciano Pisc 3)93
Notemos os laccedilos que aproximam o discurso parresiaacutestico do perigo da aniquilaccedilatildeo
daquele que profere essa modalidade de discurso verdadeiro Esse discurso se funda na ousadia
de dizer principalmente de se confrontar com o poder estabelecido Quando falamos em poder
expressamos uma ideia capilar de suas relaccedilotildees Natildeo se trata de uma investigaccedilatildeo somente da
relaccedilatildeo de Luciano com o Imperador e com as instituiccedilotildees imperiais mesmo que isso nos
interesse Tambeacutem se cuida nesta Tese de investigar o poder do discurso justamente do ponto
de vista em que Luciano se coloca e discrimina os perigos da franqueza
Observem-se os passos do texto uma vez que o escritor eacute acusado pelos grandes
filoacutesofos de escarnecer dos mesmos Luciano mais uma vez mobiliza seu conhecimento da
tradiccedilatildeo grega no momento em que os filoacutesofos desejam puni-lo O personagem clama por um
julgamento justo A contradiccedilatildeo eacute colocada agrave prova
Luciano usa a memoacuteria cultural helecircnica ao retomar os diversos filoacutesofos
principalmente a figura ceacutelebre de Soacutecrates cujo nome vincula-se diretamente a um julgamento
injusto Na memoacuteria dos gregos o julgamento desse filoacutesofo representa uma inflexatildeo que
colocou natildeo um homem como reacuteu mas toda a indagaccedilatildeo filosoacutefica Trata-se de um topos caro
para representar a injusticcedila contra o pensamento Nesse sentido Luciano potencializa a ironia
presente nos descaminhos que a filosofia tomou em seu tempo ao colocar na boca de um
personagem que representava Soacutecrates a seguinte censura ldquoSim que isso de [condenar] antes
do julgamento natildeo eacute proacuteprio de noacutes mas de gente terrivelmente vulgar de certas pessoas
irasciacuteveis que acham que a justiccedila consiste na violecircnciardquo (Luciano Pisc 10)94 Nessa
declaraccedilatildeo o escritor mobiliza a tradiccedilatildeo do julgamento e condenaccedilatildeo de Soacutecrates e
consequentemente a sua injusticcedila No mais ele ainda coloca nos laacutebios do filoacutesofo ateniense a
caracterizaccedilatildeo das pessoas que natildeo se controlam que satildeo vulgares e que fazem justiccedila com as
proacuteprias matildeos
Essa contestaccedilatildeo faz com que o leitorouvinte tenha maior empatia com a trama do
diaacutelogo Nesse enredo Parresiacuteades eacute conduzido para o julgamento diante da Filosofia
personificada Entretanto essa personagem natildeo se mostra satisfeita com a conduta dos ldquograndes
93 ΠΑΡΡΗΣΙΑΔΗΣ
Νῦν οὖν ἕκατι ῥημάτων κτενεῖτέ με 94 ldquoΣΩΚΡΑΤΗΣ
[] τὸ πρὸ δίκης γὰρ οὐχ ἡμέτερον ἀλλὰ δεινῶς ἰδιωτικόν ὀργίλων τινῶν ἀνθρώπων καὶ τὸ δίκαιον ἐν τῇ χειρὶ
τιθεμένωνrdquo
75
filoacutesofosrdquo
Nesse passo a Filosofia ganha formas humanas sendo personificada juntamente com
a Virtude (Ἀρετλή) a Prudecircncia (Σωφροσύνη) a Justiccedila (Δικαιοσύνη) a Educaccedilatildeo (Παιδεία)
e a Verdade (Ἀλήθεια) A Verdade eacute descrita como desarrumada querendo sempre escapulir eacute
vista com dificuldade (LucianoPisc 16) Ela natildeo vecirc necessidade de participar do julgamento
jaacute que sabe de tudo Entretanto em face dos pedidos da Filosofia e de Parreacutesiades para que ela
os acompanhe exige a presenccedila da Liberdade (Ἐλευθερία) da Sinceridade (Παρρησία) e da
Comprovaccedilatildeo (Ἔλεγχος) e sabe que Parresiacuteades natildeo eacute culpado de nada que lhe imputam A
Comprovaccedilatildeo sugere a presenccedila da Demonstraccedilatildeo (Απόδειξις) (LucianoPisc 17) todas
personificadas a fim de participarem do julgamento
Dois pontos se destacam na confecccedilatildeo do diaacutelogo 1) o conhecimento luciacircnico das
ferramentas usadas pela filosofia para embasar seus argumentos 2) a estrateacutegia de vencer o
debate com os recursos que satildeo proacuteprios do inimigo O discurso que Luciano constroacutei conteacutem
elementos do fazer filosoacutefico mas natildeo se confunde com ele Trata-se de recursos retoacutericos para
a fundamentaccedilatildeo de uma argumentaccedilatildeo
Os filoacutesofos ficam incomodados com a presenccedila da Verdade A Filosofia interroga se
eles temem que ela diga mentiras ao que eles respondem em coro ldquoNatildeo se trata disso mas o
tipo eacute terrivelmente manhoso e adulador pelo que acabaraacute por convencecirc-lardquo (Luciano Pisc
18)95 A Filosofia se lembra da presenccedila da Justiccedila entre eles Nesse ponto ela indaga
Parresiacuteades sobre sua origem
Sou siacuterio filosofia nas margens do Eufrates Mas para quecirc tudo isso Na
verdade sei de muitos desses meus adversaacuterios que natildeo satildeo menos baacuterbaros
de nascimento que eu mas apesar disso a sua iacutendole e a sua cultura natildeo
condizem com as Solenes dos Cipriotas dos Babilocircnios ou dos Estagiristas
Todavia para ti natildeo faz qualquer diferenccedila que um homem tenha uma
pronuacutencia baacuterbara desde que sua maneira de pensar se revele reta e justa96
(LUCIANO Pisc 19)
Repetimos essa citaccedilatildeo pois como ressaltamos anteriormente as identidades no
mundo antigo se caracterizam pelo processo de aprendizado do complexo cultural existente O
95 ldquoΠΛΑΤΩΝ
Οὐ τοῦτο ἀλλὰ δεινῶς πανοῦργός ἐστιν καὶ κολακικός ὥστε παραπείσει αὐτήνrdquo 96 ldquoΦΙΛΟΣΟΦΙΑ
Πατρὶς δέ
ΠΑΡΡΗΣΙΑΔΗΣ
Σύρος ὦ Φιλοσοφία τῶν Ἐπευφρατιδίων ἀλλὰ τί τοῦτο καὶ γὰρ τούτων τινὰς οἶδα τῶν ἀντιδίκων μου οὐχ ἧττον
ἐμοῦ βαρβάρους τὸ γένος ὁ τρόπος δὲ καὶ ἡ παιδεία οὐ κατὰ Σολέας ἢ Κυπρίους ἢ Βαβυλωνίους ἢ Σταγειρίτας
καίτοι πρός γε σὲ οὐδὲν ἂν ἔλαττον γένοιτο οὐδ εἰ τὴν φωνὴν βάρβαρος εἴη τις εἴπερ ἡ γνώμη ὀρθὴ καὶ δικαία
φαίνοιτο οὖσαrdquo
76
escritor deixa claro que eacute siacuterio mas isso natildeo o torna menos grego jaacute que os filoacutesofos que o
acusam tambeacutem natildeo satildeo nascidos em cidades gregas ao lembrar a cidade de Soles na Ciliacutecia
cidade natal de Criacutesipo Estagira paacutetria de Aristoacuteteles Chipre que eacute terra natal de Zenatildeo
Babiloacutenia na Aacutesia Menor terra de Dioacutegenes o estoico Ou seja o sotaque baacuterbaro natildeo invalida
sua fala se ela estiver de acordo com as exigecircncias culturais helecircnicas A identidade luciacircnica
natildeo se constroacutei a partir da liacutengua mas de um modo de dizer que eacute possiacutevel de ser partilhado a
partir da Paideia Tornar-se grego era um processo demorado que para os homens de letras
significava tecer sua autorrepresentaccedilatildeo a partir do diaacutelogo criativo com os textos canocircnicos
principalmente Homero e Hesiacuteodo (WHITMARSH 2004 23-27)
A proacutexima pergunta que a Filosofia faz ao escritor coincide com uma das perguntas
que os compradores fizeram aos filoacutesofos no Leilatildeo dos Filoacutesofos ldquoQual a sua tekhne97rdquo
(Luciano Pisc 20) A resposta eacute dada em um jogo de palavras em que o escritor afirmava odiar
a fanfarronice a impertinecircncia e a mentira ou seja tudo que eacute proacuteprio de homens miseraacuteveis
A Filosofia lhe pergunta se tudo que ele faz estaacute contaminado de oacutedio e ele afirma que ama a
verdade a beleza a simplicidade o que pode ser resumido assim ldquoTu Filosofia conheces
essas coisas melhor que eu Mas eu sou desta conformidade odeio os maus e elogio e amo os
bonsrdquo98 (LucianoPisc 20)
Aqui estaacute outro aspecto interessante que permeia os textos luciacircnicos principalmente
os diaacutelogos Como afirmou Brandatildeo (2001 25-27) Luciano faz uma criacutetica agrave Paideia como um
todo ou seja agrave proacutepria cultura No diaacutelogo Parresiacuteades lanccedila as premissas para a conclusatildeo a
que chegaraacute Entretanto natildeo conveacutem adiantar o texto devemos seguir a sua loacutegica a fim de
compreender como a parreacutesia torna-se significativa para a construccedilatildeo do discurso desse
escritor Como afirma Platatildeo ldquoParresiacuteades eacute um oradorrdquo99 (Luciano Pisc 23) em
contraposiccedilatildeo aos filoacutesofos
O siacuterio opotildee como a tradiccedilatildeo jaacute o faz filosofia e retoacuterica O acusado natildeo eacute um
pensador autecircntico mas um orador aquele que domina a linguagem a fim de convencer a
plateia de qualquer tese Natildeo se trata de um problema de conteuacutedo e sim de forma Dizer que
Parresiacuteades eacute um orador enfatiza que ele usaraacute de todos os artifiacutecios da linguagem para
convencer os ouvintes
No texto Acerca do parasita ou que o parasitismo eacute uma arte o escritor constroacutei uma
97 ldquoἡ τέχνη δέ σοι τίςrdquo 98 ldquoΠΑΡΡΗΣΙΑΔΗΣ
Ἄμεινον σὺ ταῦτα οἶσθα ὦ Φιλοσοφία τὸ μέντοι ἐμὸν τοιοῦτόν ἐστιν οἷον τοὺς μὲν πονηροὺς μισεῖν ἐπαινεῖν
δὲ τοὺς χρηστοὺς καὶ φιλεῖνrdquo 99 ldquoῥήτωρ δὲ ὁ Παρρησιάδης ἐστίνrdquo
77
imagem irocircnica dos oradores caracterizando-os como inuacuteteis nos momentos de guerra ou seja
ora ficam dentro das cidades fazendo discursos sem conhecer o campo de batalha ou entatildeo
quando vatildeo para o combate satildeo grandes covardes que abandonam seu posto facilmente O
personagem Simon afirma que
Simon - Dentre os oradores Isoacutecrates natildeo soacute natildeo saiu jamais para a guerra
como por covardia creio nem sequer subiu diante de um tribunal entendo
que este tinha apenas a voz Por acaso Demades Eacutesquines e Filoacutecrates na
repentina declaraccedilatildeo de guerra contra Filipe natildeo entregaram por temor a
cidade e seus proacuteprios habitantes a Filipe e continuaram exercendo a poliacutetica
em Atenas segundo os interesses dele100 (Luciano Par 42)
O escritor continua fazendo a comparaccedilatildeo entre as palavras dos oradores e sua atuaccedilatildeo
diante dos perigos da guerra contra um inimigo tatildeo opressor Em uma frase bastante irocircnica o
personagem luciacircnico afirma ldquotodos eles estavam exercendo a palavra e natildeo a virtuderdquo101
(Luciano Par 43) Observamos que na formaccedilatildeo discursiva na qual o siacuterio inseria seus textos
o discurso que se prendia somente ao como era dito deveria ser questionado uma vez que seria
sinocircnimo de covardia Aquele que tinha palavras prontas seria incapaz de exercer a virtude
com todos os riscos que ela apresenta Suas palavras natildeo poderiam ser francas como o siacuterio
propunha
Observemos que se trata de uma questatildeo de linguagem de construccedilatildeo textual (beleza
e eficaacutecia) e de ordem moral (equidade entre o que se diz e o que se pratica ou coerecircncia entre
os modelos assumidos e sua accedilatildeo diaacuteria) Coloca-se em xeque o poder do discurso cuja
tentativa de monopoacutelio estaacute presente na cultura grega desde o debate entre os filoacutesofos e os
sofistas do seacuteculo V aC Assim poderiacuteamos dizer que se cuida nesse opuacutesculo de renovar
esse debate sob o signo da parreacutesia
Essa modalidade do dizer verdadeiro como bem mostrou Foucault vincula-se ao
poder
Parresiasta assume o risco Ele arrisca a relaccedilatildeo que tem com aquele a quem
se dirige E dizendo a verdade longe de estabelecer um viacutenculo positivo de
saber comum de heranccedila de filiaccedilatildeo de reconhecimento de amizade pode
ao contraacuterio provocar sua coacutelera indispor-se com o inimigo suscitar a
hostilidade da cidade acarretar a vinganccedila ou a puniccedilatildeo por parte do rei se
for um mau soberano ou se for tiracircnico E nesse risco pode expor sua proacutepria
100 ldquoΣΙΜΩΝ
Τῶν μὲν τοίνυν ῥητόρων Ἰσοκράτης οὐχ ὅπως εἰς πόλεμον ἐξῆλθέν ποτε ἀλλ οὐδ ἐπὶ δικαστήριον ἀνέβη διὰ
δειλίαν οἶμαι ὅτι οὐδὲ τὴν φωνὴν διὰ τοῦτο εἶχεν ἔτι τί δ οὐχὶ Δημάδης μὲν καὶ Αἰσχίνης καὶ Φιλοκράτης ὑπὸ
δέους εὐθὺς τῇ καταγγελίᾳ τοῦ Φιλίππου πολέμου τὴν πόλιν προὔδοσαν καὶ σφᾶς αὐτοὺς τῷ Φιλίππῳ καὶ
διετέλεσαν Ἀθήνησιν ἀεὶ τὰ ἐκείνου πολιτευόμενοι []rdquo 101 ldquoΤΥΧΙΑΔΗΣ
Ἐπίσταμαι ταῦτα ἀλλ οὗτοι μὲν ῥήτορες καὶ λόγους λέγειν ἠσκηκότες ἀρετὴν δὲ οὔrdquo
78
vida pois ele pode pagar com a existecircncia a verdade que disse (FOUCAULT
2011 130)
Ter a coragem de dizer certas verdades abre a possibilidade do oacutedio e da dilaceraccedilatildeo
Eacute esse caminho que o texto que analisamos no momento mostra com a implicaccedilatildeo de que a
verdade dita em sua modalidade parresiaacutestica pode causar a morte daquele que a diz
O siacuterio eacute acusado de fazer a populaccedilatildeo rir dos filoacutesofos como os comediantes fizeram
outrora No entanto as comeacutedias eram apresentadas durante os festivais dionisiacuteacos eram parte
de um culto especial a uma divindade importante Logo protegiam-se da censura velada pela
aura de sacralidade do culto a Dioniacuteso Os textos luciacircnicos no entanto apresentam-se em outro
contexto
Esse clima de sacralidade natildeo faz parte do texto luciacircnico pois em seu regime de
manifestaccedilatildeo artiacutestica natildeo estatildeo presentes os elementos sagrados do culto a Dioniacutesio assim
natildeo havia tais proteccedilotildees em um texto como o Leilatildeo dos Filoacutesofos Ele eacute culpado por aliciar o
Diaacutelogo gecircnero caracteriacutestico da escrita filosoacutefica e ainda o filoacutesofo Menipo de Gandara
Realmente o caso seria de algum modo desculpaacutevel se ele agisse em sua
defesa e natildeo por sua iniciativa pessoal Mas o pior de tudo eacute o fato de ele ao
proceder desse modo se abrigar sob o teu nome Filosofia de se insinuar no
Diaacutelogo nosso servidor utilizando-o contra noacutes como seu auxiliar e ator e a
juntar a tudo isto persuadiu Menipo um nosso companheiro a participar
frequentemente nas suas graccedilas de comeacutedia este eacute o uacutenico que natildeo estaacute aqui
presente nem participa conosco na acusaccedilatildeo deste modo traindo a nossa
comunidade102 (LucianoPisc 26)
Luciano lembra sempre ao leitor que o orador apresenta um discurso no qual a forma
eacute essencial para sua compreensatildeo desprestigiando dessa maneira o conteuacutedo do mesmo
Assim a defesa de Parresiacuteades move-se sob uma velha questatildeo da filosofia a dicotomia entre
essecircncia e aparecircncia Colocada no tribunal pela aproximaccedilatildeo com o teatro toda a accedilatildeo eacute ligada
aos palcos agrave atuaccedilatildeo dos atores Parresiacuteades natildeo fugiraacute desse campo
Sigamos o argumento da defesa no qual ele resguarda que natildeo acusou a Filosofia ou
os grandes filoacutesofos do passado helecircnico mas aqueles que se apropriavam dela
Na verdade logo que constatei quantas qualidades repugnantes precisavam de
possuir os advogados mdash falsidade mentira descaramento gritaria
altercaccedilotildees e mil outras manhas mdash abandonei como era natural essa
atividade e tendo-me entregado oacute Filosofia aos teus altos ideais decidi
dedicar o resto dos meus dias a viver sob a tua proteccedilatildeo como se apoacutes passar
102 ldquoεἶχε γὰρ ἄν τινα συγγνώμην αὐτῷ τὸ πρᾶγμα εἰ ἀμυνόμενος ἀλλὰ μὴ ἄρχων αὐτὸς ἔδρα Ὃ δὲ πάντων
δεινότατον ὅτι τοιαῦτα ποιῶν καὶ τὸ σὸν ὄνομα ὦ Φιλοσοφία ὑποδύεται καὶ ὑπελθὼν τὸν Διάλογον ἡμέτερον
οἰκέτην ὄντα τούτῳ συναγωνιστῇ καὶ ὑποκριτῇ χρῆται καθ ἡμῶν ἔτι καὶ Μένιππον ἀναπείσας ἑταῖρον ἡμῶν
ἄνδρα συγκωμῳδεῖν αὐτῷ τὰ πολλά ὃς μόνος οὐ πάρεστιν οὐδὲ κατηγορεῖ μεθ ἡμῶν προδοὺς τὸ κοινόνrdquo
79
por vagas e tormentas tivesse arribado a um porto tranquilo 103(Luciano
Pisc 29)104
O personagem identifica uma mudanccedila no estatuto do filoacutesofo que jaacute natildeo observa os
modos de ser necessaacuterios para abraccedilar o conhecimento e construir uma forma de viver coerente
Jaacute nos Diaacutelogos dos mortos Luciano questiona a contradiccedilatildeo entre a forma apresentada pelos
filoacutesofos e seu modo de viver Em muitos momentos o leitor ri da conduta dos filoacutesofos pelo
fato de ela ser distorcida do ideal de harmonia entre o que se diz e o que se faz Os filoacutesofos
criticados por Luciano satildeo bajuladores licenciosos e gananciosos ou seja satildeo charlatotildees
Parresiacuteades escolhe o lado da Filosofia jaacute que a oratoacuteria coloca o sujeito na posiccedilatildeo
de produtor de discursos que se preocupam com a beleza e a eficaacutecia da argumentaccedilatildeo em
detrimento da verdade Luciano teatraliza o debate levando-o para o campo da miacutemesis Os
filoacutesofos poderiam ser imitados vestimentas barbas entre outras caracteriacutesticas Seria como
se um ator efeminado tentasse representar Heacuteracles105 sendo motivo de chacota dos
espectadores (Luciano Pisc 31) Parreacutesiades se envergonhou pelos filoacutesofos Ser motivo de
riso natildeo eacute o uacutenico problema ldquoSempre que as pessoas viam um destes cometer algum ato
perverso vergonhoso ou indecente natildeo faltava quem acusasse a proacutepria Filosofiardquo (Luciano
Pisc 32)106
O escritor enfatiza que sua criacutetica natildeo eacute agrave Filosofia que ele ama mas agravequeles que a
utilizam apenas para benefiacutecio proacuteprio sem o devido conhecimento sem vivecirc-la em sua
inteireza e harmonia Esses falsos filoacutesofos ensinam por dinheiro uma filosofia que natildeo vivem
(LucianoPisc 32) Lembremos que desde o periacuteodo claacutessico grego107 existem inuacutemeras
querelas entre filoacutesofos e sofistas sobre ensinar de graccedila ou receber por isso Logo para o
personagem eacute uma contradiccedilatildeo performaacutetica um filoacutesofo que recebe para ensinar Aleacutem disso
103 Neste passo a sugestatildeo de um fato muito debatido pela criacutetica luciacircnica que eacute sua pretensa conversatildeo agrave
filosofia Tal assunto natildeo nos interessa neste momento uma vez que natildeo se cuida aqui de definir os passos ldquoreaisrdquo
da vida de Luciano mas de compreender o regime de historicidades presente em seus textos 104 ldquoἘγὼ γὰρ ἐπειδὴ τάχιστα συνεῖδον ὁπόσα τοῖς ῥητορεύουσιν ἀναγκαῖον τὰ δυσχερῆ προσεῖναι ἀπάτην καὶ
ψεῦδος καὶ θρασύτητα καὶ βοὴν καὶ ὠθισμοὺς καὶ μυρία ἄλλα ταῦτα μέν ὥσπερ εἰκὸς ἦν ἀπέφυγον ἐπὶ δὲ τὰ
σά ὦ Φιλοσοφία καλὰ ὁρμήσας ἠξίουν ὁπόσον ἔτι μοι λοιπὸν τοῦ βίου καθάπερ ἐκ ζάλης καὶ κλύδωνος εἰς εὔδιόν
τινα λιμένα ἐσπλεύσας ὑπὸ σοὶ σκεπόμενος καταβιῶναιrdquo 105 Luciano apresenta a imagem do Heacuteracles travestido no texto Como se escreve a Histoacuteria Da mesma maneira
essa imagem representa a contradiccedilatildeo o erro o absurdo que gera o riso e impede a construccedilatildeo de um discurso ou
cena coerente (Luciano Hist Co 10) 106 ldquoοἱ γὰρ ἄνθρωποι εἴ τινα τούτων ἑώρων πονηρὸν ἢ ἄσχημον ἢ ἀσελγές τι ἐπιτηδεύοντα οὐκ ἔστιν ὅστις οὐ
Φιλοσοφίαν αὐτὴν ᾐτιᾶτο []rdquo 107 Eacute interessante notar como um apologista cristatildeo do tempo de Luciano Justino de Roma em seu Diaacutelogo com
Trifatildeo tambeacutem faz criacuteticas aos filoacutesofos de seu tempo Antes de conhecer a doutrina cristatilde ele buscou o
conhecimento filosoacutefico entretanto abandonou os filoacutesofos por diversos motivos por exemplo ele abandona o
filoacutesofo parapiteacutetico por ele cobrar para ensinar (Justino Diaacutelogo com Trifatildeo 2 3) Esse caso exemplifica como
ainda no tempo de Luciano natildeo se viam com bons olhos os filoacutesofos que cobravam para ensinar
80
esses filoacutesofos satildeo covardes preguiccedilosos ou seja cheios de viacutecios nunca viveram a verdadeira
filosofia e ainda por cima satildeo bajuladores dos ricos Esse mau filoacutesofo condensaria o oposto do
que os grandes filoacutesofos pregaram
Para consumar essa anaacutelise citamos mais uma passagem na qual a Filosofia chama
Parreacutesiades e diz ldquoMuito bem Avanccedila Parresiacuteades Absolvemos-te da acusaccedilatildeo ganhaste por
unanimidade e fica sabendo que de hoje em diante eacutes caacute dos nossosrdquo (LucianoPis 39)108
Parreacutesiades personificaccedilatildeo da Sinceridade deveria sentar-se com a Filosofia a Verdade a
Virtude e todas as personificaccedilotildees presentes Natildeo podemos confundi-las Parresiacuteades natildeo eacute a
verdade em si nem a virtude
Vejamos agora outros momentos em que a palavra parreacutesia ocorre no corpus luciacircnico
Acreditamos que seu uso atesta o que exemplificamos com a anaacutelise do opuacutesculo O pescador
ou os ressuscitados isto eacute que a maneira como Luciano se porta diante do Impeacuterio Romano ou
dos poderes espalhados na sociedade parte de uma tentativa de usar a parreacutesia
A hipoacutetese eacute que essa palavra permeia o texto luciacircnico nos momentos em que ele
precisa afirmar o que faz ou como tal gecircnero deve ser composto No panfleto Como se deve
escrever a Histoacuteria ao definir a funccedilatildeo do historiador ele afirma que
Portanto assim seja para mim o historiador sem medo incorruptiacutevel livre
amigo da franqueza (παρρησίας ) e da verdade como diz o poeta cocircmico que
chame figos de figos e gamela de gamela algueacutem que natildeo admita nem omita
nada por oacutedio ou por amizade que a ningueacutem poupe nem respeite nem
humilhe que seja juiz equacircnime benevolente com todos a ponto de natildeo dar a
um mais que o devido estrangeiro nos livros e apaacutetrida autocircnomo sem rei
natildeo se preocupando com o que achara esse ou aquele mas dizendo o que se
passou (Luciano Hist conscr 41)109
Ser franco eacute uma caracteriacutestica que deve acompanhar a verdade Aquele que se
expressa por essa modalidade discursiva natildeo garante ser verdadeiro em si mas mostra que tem
coragem Aleacutem disso seraacute algueacutem que se coloca em uma posiccedilatildeo de alteridade diante da
sociedade jaacute que deve ser estrangeiro nos livros e sem paacutetria o que para o homem antigo
representaria um paradoxo jaacute que a identidade era construiacuteda em forte consonacircncia com a
108 ldquoΦΙΛΟΣΟΦΙΑ
Εὖ ἔχει πρόσιθι Παρρησιάδη ἀφίεμέν σε τῆς αἰτίας καὶ ἁπάσαις κρατεῖς καὶ τὸ λοιπὸν ἴσθι ἡμέτερος ὤνrdquo 109 ldquoΤοιοῦτος οὖν μοι ὁ συγγραφεὺς ἔστω ndash ἄφοβος ἀδέκαστος ἐλεύθερος παρρησίας καὶ ἀληθείας φίλος ὡς ὁ
κωμικός φησι τὰ σῦκα σῦκα τὴν σκάφην δὲ σκάφην ὀνομάσων οὐ μίσει οὐδὲ φιλίᾳ τι νέμων οὐδὲ φειδόμενος ἢ
ἐλεῶν ἢ αἰσχυνόμενος ἢ δυσωπούμενος ἴσος δικαστής εὔνους ἅπασιν ἄχρι τοῦ μὴ θατέρῳ τι ἀπονεῖμαι πλεῖον
τοῦ δέοντος ξένος ἐν τοῖς βιβλίοις καὶ ἄπολις αὐτόνομος ἀβασίλευτος οὐ τί τῷδε ἢ τῷδε δόξει λογιζόμενος
ἀλλὰ τί πέπρακται λέγωνrdquo
81
cidade de origem110 Sobre a expressatildeo ldquoξένος ἐν τοῖς βιβλίοις καὶ ἄπολιςrdquo (estrangeiro nos
livros e apaacutetrida) ldquomais que uma bela expressatildeo parece-me um lema que define a postura
intelectual do proacuteprio Lucianordquo (BRANDAtildeO 2009 267)
Moses Finley ao discorrer sobre Dioacutegenes ressalta que o cinismo eacute um fenocircmeno
urbano uma vez que esse personagem soacute atinge seus objetivos se puder importunar e exercer a
franqueza necessaacuteria para viver Natildeo faz sentido viver isolado da cidade (FINLEY 1991 112)
A parreacutesia exige do escritor autonomia para dizer a verdade e enfrentar o poder
estabelecido O historiador deve construir seu discurso agrave margem do poder do Imperador pois
natildeo escreve para o presente e sim para o futuro Ainda citando Brandatildeo ldquoOu seja quem teme
e espera jamais poderaacute ser livre verdadeiro e francordquo (BRANDAtildeO 2009 263)
As caracteriacutesticas exaltadas por Luciano nesse panfleto se coadunam com as
caracteriacutesticas apresentadas pelo filoacutesofo Ciacutenico no Leilatildeo dos Filoacutesofos Eacute nesse espaccedilo fora
dos muros da cidade que se movem os historiadores e os filoacutesofos ciacutenicos Trata-se aqui da
dificuldade ciacutenica por ser ἄπολις ou melhor como diz o Dioacutegenes luciacircnico ldquovocecirc vecirc um
cidadatildeo do mundordquo111 (Luciano Vit Auct 8)
Os textos luciacircnicos satildeo construiacutedos sob essa postura intelectual que retoma a tradiccedilatildeo
ateniense das assembleias No decorrer desta Tese retornamos a esse debate uma vez que
entendemos que Luciano ao escrever seus diaacutelogos utilizou-se de modos de validaccedilatildeo de seu
enunciado que natildeo satildeo os nossos Nesse sentido para pensarmos a presenccedila dos mitos gregos
devemos entender os mecanismos de construccedilatildeo dos discursos vinculados a estrateacutegias que satildeo
historicamente aceitas ou assentadas culturalmente Natildeo importa se Luciano acreditava ou natildeo
nos mitos mas o significado que atribuiacutea a eles nos diferentes usos poliacuteticos Cabe-nos agora
refletir sobre o alcance dos mitos e da mitologia para os homens antigos especificamente para
os intelectuais helenoacutefilos da Segunda Sofiacutestica
110 Ao dizer isso natildeo negamos as caracteriacutesticas de sobreposiccedilatildeo das identidades no mundo antigo apenas
enfatizamos a cidade como um espaccedilo importante para a construccedilatildeo dos sentimentos de identidade 111 ldquoΤοῦ κόσμου πολίτην ὁρᾷςrdquo
82
Capiacutetulo II
Mito a narrativa que todos conhecem
O primeiro ponto que pensamos foi justamente o ordenamento discursivo no qual
Luciano de Samoacutesata estava inserido No capiacutetulo anterior cuidamos de compreender como
onde e quando esse escritor produziu seus textos ou seja as condiccedilotildees materiais de sua
produccedilatildeo Levantamos as diferentes perspectivas historiograacuteficas referentes agrave sua trajetoacuteria sua
accedilatildeo poliacutetica e o fenocircmeno cultural no qual se inseria a saber a Segunda Sofiacutestica Por fim
analisamos como ele escrevia sob um modo especiacutefico de dizer a verdade um regime de
validaccedilatildeo enunciativa proacuteprio que eacute uma das manifestaccedilotildees da parreacutesia antiga Com esse
contexto traccedilado podemos explorar as principais categorias teoacutericas que orientaram esta Tese
mito e memoacuteria observando a maneira como Luciano utiliza recursos mitoloacutegicos em seus
textos
O primeiro aspecto dos mitos que devemos evidenciar a fim de construir uma
categoria que seja uacutetil para nossa pesquisa dos diaacutelogos de Luciano de Samoacutesata eacute o seu caraacuteter
narrativo Os mitos satildeo narrativas estoacuterias que apresentam personagens e um enredo que
fornecem sentido para as pessoas e as comunidades Como afirma Everaldo Rocha ldquo[s]e o mito
fosse uma narrativa ou uma fala qualquer estaria diluiacutedo completamente O mito eacute entatildeo uma
narrativa especial particular capaz de ser distinguida das demais narrativas humanasrdquo
(ROCHA 1986 8) No quadro simboacutelico de determinada cultura os mitos satildeo facilmente
diferenciados de outras narrativas o que os coloca em um lugar especial para as comunidades
Um erro comum agravequeles que se dedicam ao estudo dos mitos eacute consideraacute-los uma
categoria fechada que apresentaria as mesmas caracteriacutesticas nas mais distintas culturas
(KIRK 2006 48) Contrariamente a essa visatildeo entendemos que cada povo apresentaraacute suas
estoacuterias com padrotildees muito peculiares
Esse saber explica o mundo e sua aproximaccedilatildeo dele Por esse motivo faz-se mister
investigar a densa cadeia de narrativas mitoloacutegicas sobre a memoacuteria uma vez que esses
conhecimentos estavam disponiacuteveis por meio da tradiccedilatildeo na qual Luciano se inseria
83
21 Mitologia e Retoacuterica saberes sobre a Memoacuteria
Em um texto claacutessico Jean Pierre Vernant analisou a sofisticada rede de narrativas
mitoloacutegicas referentes agrave mnemosyne Esse autor conjecturou que a produccedilatildeo desses discursos
vinculava-se diretamente agrave Histoacuteria da faculdade humana da memoacuteria Essa hipoacutetese permanece
no campo das conjecturas por carecircncia de comprovaccedilatildeo empiacuterica Entretanto a anaacutelise desse
conjunto de estoacuterias que dizem respeito agrave faculdade de reter informaccedilotildees de um tempo preteacuterito
no presente conta com uma personagem que personifica essas virtudes Mnemosyacutene que eacute uma
deusa imortal112 Seguimos essa narrativa a partir da Teogonia113 de Hesiacuteodo uma das mais
antigas referentes a tal divindade e principalmente aquela que serve de ponto de inflexatildeo para
qualquer fala sobre o tema desde a Antiguidade
Na Pieacuteria gerou-as da uniatildeo do Pai Cronida
Memoacuteria rainha nas colinas de Eleutera
para obliacutevio de males e pausa de afliccedilotildees 55
Nove noites teve uniotildees com ela o saacutebio Zeus
longe dos imortais subindo ao sagrado leito
Quando girou o ano e retornaram as estaccedilotildees
com as miacutenguas das luas e muitos dias findaram
ela pariu nove moccedilas concordes que dos cantares 60
Tecircm o desvelo no peito e natildeo triste animo
perto do aacutepice altiacutessimo do nervoso Olimpo
aiacute os seus coros luzentes e belo palaacutecio114
(Hesiacuteodo Theog VV 53-63)
Esse documento se insere em um quadro de divinizaccedilatildeo da memoacuteria personificada
como uma das filhas de Urano e Gaia irmatilde de Tea Reia Tecircmis Febe e Teacutetis Ter o nome de
112 Observemos que Luciano de Samoacutesata em vaacuterios momentos de sua obra personifica virtudes e faculdades
humanas Entretanto ele natildeo as diviniza Podemos exemplificar isso com o texto Dupla Acusaccedilatildeo em que virtudes
como a Justiccedila a Verdade e a Prudecircncia tomam forma humana 113 Para essa anaacutelise usamos a traduccedilatildeo de Jaa Torrano 114 τὰς ἐν Πιερίῃ Κρονίδῃ τέκε πατρὶ μιγεῖσα
Μνημοσύνη γουνοῖσιν Ἐλευθῆρος μεδέουσα
λησμοσύνην τε κακῶν ἄμπαυμά τε μερμηράων 55
ἐννέα γάρ οἱ νύκτας ἐμίσγετο μητίετα Ζεὺς
νόσφιν ἀπ ἀθανάτων ἱερὸν λέχος εἰσαναβαίνων
ἀλλ ὅτε δή ῥ ἐνιαυτὸς ἔην περὶ δ ἔτραπον ὧραι
μηνῶν φθινόντων περὶ δ ἤματα πόλλ ἐτελέσθη
ἡ δ ἔτεκ ἐννέα κούρας ὁμόφρονας ᾗσιν ἀοιδὴ 60
μέμβλεται ἐν στήθεσσιν ἀκηδέα θυμὸν ἐχούσαις
τυτθὸν ἀπ ἀκροτάτης κορυφῆς νιφόεντος Ὀλύμπου
ἔνθά σφιν λιπαροί τε χοροὶ καὶ δώματα καλά
84
uma funccedilatildeo psicoloacutegica natildeo eacute um caso uacutenico na mitologia grega poderiacuteamos citar vaacuterias
ocorrecircncias para exemplificar esse enunciado por exemplo Eros Fobos Hebe entre outros
Mnemoacutesine ou a Memoacuteria eacute a progenitora das Musas nove divindades que velam pelas
artes e pelos artistas A accedilatildeo dessa deidade liga-se ao esquecimento dos males e ao cessar das
dores Hesiacuteodo por sua vez vecirc nessa funccedilatildeo psicoloacutegica elementos profilaacuteticos que
possibilitam que ela cure os homens e os deuses Nesse registro antigo temos o esquecimento
como um fator importante para a cultura
Ela preside as artes juntamente com as Musas ligando-se aos poetas e aedos cuja
competecircncia permite que digam algo sobre o passado Como nos lembra Vernant a atividade
poeacutetica era vista no mundo grego arcaico como uma atividade ldquoentusiaacutesticardquo no sentido
etimoloacutegico desse termo ou seja no sentido de ter deus em si Nas palavras do autor ldquoO poeta
tem uma experiecircncia imediata dessas eacutepocas passadas Ele conhece o passado porque tem o
poder de estar presente no passado Lembrar-se saber ver tantos termos que se equivalemrdquo
(VERNANT 1990 138)
Outro elemento fundante que aparece nesse contexto eacute a supremacia da visatildeo sobre os
outros sentidos As Musas filhas de Mnemoacutesyne permitem que o aedo veja o que ocorreu e
assim conte isso aos homens Existe aqui um jogo com a temporalidade no presente do cantor
ele vecirc o passado
Aristoacuteteles expressou uma importante constataccedilatildeo sobre a sensibilidade antiga Em sua
Metafiacutesica ele afirma que a visatildeo eacute o principal sentido para o conhecimento (Aristoacuteteles
Metaph 980 a 25) Desse modo a frase que Plutarco atribui a Simocircnides de que a ldquopoesia eacute
pintura falada e a pintura poesia pintadardquo (Plutarco apud GINZBURG 2007 23) liga esse
contexto mitoloacutegico expresso pela atuaccedilatildeo de Mnemoacutesyne e de suas filhas agrave retoacuterica do periacuteodo
imperial Nesse sentido um importante conceito eacute o de eacutecfrase ldquoum discurso que mostra o
assunto tratado vivamente diante do puacuteblicordquo (Eacutelio Teatildeo apud WEBB 2009 16) Esses satildeo
aspectos vinculados diretamente agrave formaccedilatildeo do orador
Ruth Webb argumenta que manejar bem os recursos da retoacuterica era fundamental para a
formaccedilatildeo dos homens que falavam grego na parte oriental do Impeacuterio Eles teriam de dominar
bem o grego aacutetico nos seus discursos e em sua execuccedilatildeo Era uma garantia de ascensatildeo social
sendo usado em muitos momentos (casamentos mortes funerais defesa de interesses) em que
as autoridades estivessem presentes para adulaacute-las ou pedir alguma benesse (WEBB 2009 16-
17)
O domiacutenio da memoacuteria artificial era fundamental para a inserccedilatildeo social no Impeacuterio
Romano Luciano se inseria de maneira criacutetica nesse espaccedilo uma vez que seus textos estatildeo
85
permeados de questionamentos sobre a) o uso da linguagem como em Lexiacutefanes b) as
caracteriacutesticas do bom orador como no Mestre da Retoacuterica c) a construccedilatildeo do texto
historiograacutefico em Como se deve escrever a Histoacuteria entre outros momentos O que
ressaltamos eacute que Luciano faz o uso do grego aacutetico como era a moda em sua eacutepoca mas se
coloca como um criacutetico do exagero performaacutetico de muitos oradores
Nossa hipoacutetese eacute que Luciano traccedila um diaacutelogo consciente com a tradiccedilatildeo Por exemplo
em seu Diaacutelogo com Hesiacuteodo denuncia que este poeta prometera no iniacutecio de suas obras contar
o passado e o futuro mas que somente cumpriu a primeira parte da promessa justamente aquela
que era dada por Mnemoacutesyne eou as Musas Caso essas tenham lhe dito o que aconteceria ele
natildeo cantou em seus versos Hesiacuteodo agiu de maacute-feacute (Luciano Hes 1-3) O diaacutelogo do
samosatense com a tradiccedilatildeo homeacuterica e hesioacutedica nos leva a crer que para compreender os usos
poliacuteticos que o escritor faz com relaccedilatildeo aos mitos eacute fundamental inseri-los em uma tradiccedilatildeo
transmitida por meio da formaccedilatildeo desses homens Entretanto a leitura de seus escritos permite
o questionamento e o desdobramento das ideias O siacuterio se insere nessa dialeacutetica com a tradiccedilatildeo
o que permite um uso bastante criativo dos mitos disponiacuteveis em sua narrativa
No poema de Hesiacuteodo a memoacuteria assume um papel importantiacutessimo para os homens
curando-os das mazelas e unindo os desgarrados A seguinte afirmaccedilatildeo de Jaa Torano nos
auxilia na compreensatildeo dos mitos e de sua funccedilatildeo social de explicaccedilatildeo idealizada das relaccedilotildees
sociais
O poeta portanto tem na palavra cantada o poder de ultrapassar e superar
todos os bloqueios e distacircncias espaciais e temporais um poder que soacute lhe eacute
conferido pela Memoacuteria (Mnemosyne) atraveacutes das palavras cantadas (Musas)
Fecundada por Zeus Pai que no panteatildeo hesioacutedico encarna a Justiccedila e a
Soberania supremas a Memoacuteria gera e daacute a luz a Palavras Cantadas que na
liacutengua de Hesiacuteodo se diz Musas Portanto o Canto (as Musas) eacute nascido da
Memoacuteria (num sentido psicoloacutegico inclusive) e do mais alto exerciacutecio do
poder (num sentido poliacutetico inclusive) (TORRANO 1986 15)
Nesse contexto o aedo eacute o mestre da verdade115 para usar a terminologia de Marcel
Detienne Eacute aquele que sabe porque viu por meio de uma vivecircncia sagrada do que aconteceu
Poderiacuteamos evocar a imagem de Odisseu chorando ao ouvir o Aedo cantar a estoacuteria do cavalo
de madeira na corte dos Feaacutecios116 O que aprendemos dessa cena eacute que para a tradiccedilatildeo
115 Marcel Detienne em seu livro Les maicirctres de veacuteriteacute em gregravece archaiumlque enfatiza que trecircs personagens da
Greacutecia Arcaica ndash o adivinho o Aedo e o rei justiceiro ndash tinham o papel de dispensadores da verdade por qualidades
presentes em seu discurso Trata-se de uma anaacutelise foucaultiana sobre a histoacuteria da verdade o que evidencia que
nesse momento histoacuterico a verdade eacute um atributo de determinados discursos (DETIENNE 2013 1-7) 116 Hanna Arendt (2002 81) considera esse momento como a primeira vez que no ocidente se enuncia um discurso
historiograacutefico Seria o nascimento da Histoacuteria uma vez que Odisseus se depara com o Aedo que conta fatos que
ele mesmo viveu por isso o choro Franccedilois Hartog (2003 21) jaacute contestou essa postura e enfatiza muito mais os
86
homeacuterica o canto do aedo tem a funccedilatildeo de conjurar os espectros do passado O discurso contado
pelo Aedo descola-se dos agentes natildeo precisa ter vivido para narraacute-los pois eles compotildeem
uma memoacuteria cultural que dispensa a validaccedilatildeo daqueles que viram ou vivenciaram os fatos
narrados daiacute o espanto de Odisseu
Na mitologia da memoacuteria vemos entatildeo Mnemoacutesyne ligada diretamente a Zeus gerando
as Musas que inspirariam os aedos Torrano (1986 15) sugeriu uma premissa que pretendemos
levar agraves uacuteltimas consequecircncias o viacutenculo entre memoacuteria e poder que jaacute estaacute presente na
tradiccedilatildeo hesioacutedica e com menor ecircnfase nos textos homeacutericos Como afirma Jan Assmann
(2011 52) todo poder precisa de uma origem
As narrativas miacuteticas foram por muito tempo relegadas ao campo das coisas
supeacuterfluas Os historiadores acreditavam que o poder era baseado apenas nos atos dos
governantes nas instituiccedilotildees nos eventos poliacuteticos deixando agrave margem todo um campo de
reflexatildeo sobre a legitimaccedilatildeo dos poderes estabelecidos
Diante disso dois pontos satildeo fundamentais Em primeiro lugar o poder natildeo se
estabelece simplesmente no Estado e em suas ramificaccedilotildees ele estaacute disperso socialmente e eacute
legitimado pela nossa linguagem Existem assim micropoderes que se espalham na sociedade
em uma rede capilar (FOUCAULT 2012)
Outro ponto significativo eacute que natildeo existe nenhum governo que se sustente
simplesmente pela forccedila fiacutesica (BALANDIER 1980 07) Natildeo negamos a importacircncia dos
exeacutercitos para garantir a puacuterpura ao Imperador no caso romano mas queremos deixar claro que
os governos necessitam de um miacutenimo de consenso para estabelecerem suas determinaccedilotildees As
formas com as quais os governantes buscavam legitimidade variavam muito no Impeacuterio
Romano Quando um novo Imperador ascendia ao poder ele precisava reconstruir os laccedilos de
legitimidade com as grandes famiacutelias e com as cidades a cada governo Aleacutem disso o
Imperador deveria garantir a pax deorum a fim de sustentar o Estado em seu plano metafiacutesico
Nesse contexto o discurso literaacuterio dialoga diretamente com a ordem estabelecida jaacute que ele
pode questionar ou reafirmar determinada situaccedilatildeo Essa eacute a chave que usamos para analisar os
textos luciacircnicos com foco na compreensatildeo do uso que esse escritor faz da mitologia helecircnica
elementos discursivos presentes nessa cena da Odisseia e principalmente sua funccedilatildeo para a construccedilatildeo do gecircnero
eacutepico homeacuterico
87
22 O mito a modernidade e o historiador
Ateacute o aparecimento da antropologia moderna no final do seacuteculo XIX os mitos eram
analisados principalmente por sua variante helecircnica eou romana cuja transmissatildeo foi expressa
nos mais diversos suportes por meio por exemplo de representaccedilatildeo pictoacuterica Com o advento
da escrita suas narrativas foram fixadas Entretanto natildeo podemos esquecer que eles foram
compartilhados inicialmente por meio da oralidade logo natildeo satildeo narrativas lineares e isentas
de contradiccedilotildees Podemos inclusive afirmar que uma caracteriacutestica do mito eacute a subversatildeo das
leis naturais e a ampliaccedilatildeo da possibilidade do agir no mundo Como disse Carlo Ginzburg ldquoO
mito eacute por definiccedilatildeo um conto que jaacute foi contado um conto que jaacute se conhecerdquo (GINZBURG
2001 84) o que eacute importante uma vez que ressalta a partilha de sentidos que o mito carrega
fato que lhe fornece seu maior potencial de comunicar e de servir aos poderes
O caso grego eacute muito interessante uma vez que de Homero ao colapso do Impeacuterio
Romano esse conjunto de narrativas foi evidenciado comentado e glosado Poderiacuteamos recuar
a anaacutelise dos mitos ateacute Teaacutegenes de Regio (seacuteculo V aC) Metrodoro de Lacircmpsaco (seacuteculo IV-
III aC) e Evecircmero (seacuteculo IV aC) Eacute uma laacutestima que seu livro Histoacuteria Sagrada somente nos
tenha chegado por meio de resumos Para essa corrente interpretativa os mitos vinculavam-se
a personagens histoacutericos antigos que com os seacuteculos tiveram suas estoacuterias cobertas pelas lendas
e fantasias Esse tipo de interpretaccedilatildeo teve grande fortuna criacutetica Para citar apenas um exemplo
Voltaire escreveu um Diaacutelogo com Evecircmero Ou ainda podemos falar das interpretaccedilotildees
neoplatocircnicas que buscavam nos mitos alegorias de verdades ocultas (KIRK 2006 17-18)
O que importa aqui eacute mostrar como a escrita permite o comentaacuterio e a interpretaccedilatildeo
que procura ligar a narrativa com o contexto ou com as duacutevidas daquele momento (neste caso
a veracidade da explicaccedilatildeo maravilhosa) A praacutetica das tessituras do texto permite que a
narrativa seja maturada decomposta reinventada num infinito processo de releitura por isso
temos de nos atentar para a maneira como o mito eacute representado em cada contexto
A relaccedilatildeo da memoacuteria com a escrita eacute extremamente ambiacutegua Se por um lado a
escrita permite a exteriorizaccedilatildeo da memoacuteria e a recuperaccedilatildeo de informaccedilotildees e comunicaccedilotildees
armazenadas por outro lado ela determina a atrofia da capacidade de memoacuteria natural
(ASSMANN 2011 25)
As manifestaccedilotildees culturais do mito natildeo satildeo uniformes logo suas fronteiras com
outras narrativas natildeo satildeo precisas117 O mito se relaciona muito intimamente com o sagrado ele
117 GS Kirk (2006 55) faz uma interessante anaacutelise do mito de Perseu para mostrar como este porta uma seacuterie de
elementos que deveriam em uma anaacutelise de gecircnero associar-se aos contos populares
88
possibilita a explicaccedilatildeo da origem dos homens das comunidades do fogo do ferro dos ritos
numa constante que poderiacuteamos estender ilimitadamente Entretanto ele transborda essas raias
pois como dissemos haacute narrativas aceitas como mitos que natildeo respondem a esses criteacuterios
Neste trabalho entendemos mitos como narrativas recorrentes na cultura que
evidenciam valores e que muito comumente satildeo cercadas com a aura do maravilhoso sendo
conhecidos de todos os membros da comunidade Outra caracteriacutestica dos mitos eacute a sua
vinculaccedilatildeo a uma regiatildeo especiacutefica o que pode variar dependendo da fonte na qual eacute recolhido
mas haacute um sentimento de que o mito pertence agrave histoacuteria daquele lugar Sobre esse aspecto G
S Kirk afirma que
Os personagens em particular o heroacutei satildeo especiacuteficos e suas relaccedilotildees
familiares cuidadosamente assinaladas estatildeo ligadas a determinada regiatildeo
ainda que essa regiatildeo possa variar de acordo com quem relata o mito () Os
mitos por mais especiacuteficos no que se refere a personagens e localizaccedilotildees
espaciais parecem desenvolver-se em um passado temporal (KIRK 2006 61-
62)
Essa observaccedilatildeo eacute muito importante para nossa anaacutelise uma vez que tais narrativas
vinculam-se diretamente agrave formaccedilatildeo de identidades locais Sua expressatildeo coloca a
bidimensionalidade da construccedilatildeo identitaacuteria uma vez que fornece aos indiviacuteduos discursos
condensados de significados referentes a um passado e permite a essa comunidade mirar um
futuro Para usar as expressotildees de Reinhart Koselleck os mitos interferem na construccedilatildeo do
campo de experiecircncia e no horizonte de expectativas de uma comunidade (KOSELLECK
2006) Nesse sentido natildeo podemos esquecer que o passado natildeo eacute algo natural e sim uma
criaccedilatildeo cultural cuja manifestaccedilatildeo pode ser expressa de diferentes maneiras (ASSMANN 2011
47 RUumlSEN 2007b)
Como afirma Assman o poder precisa de uma origem que por sua vez forma a
alianccedila entre poder e recordaccedilatildeo e mira um futuro (ASSMANN 2011 68) Ele ainda continua
O passado interiorizado ndash que eacute exatamente o lembrado ndash encontra sua forma
na narraccedilatildeo A narraccedilatildeo tem uma funccedilatildeo Ou eacute o lsquomotor do desenvolvimentorsquo
ou eacute o fundamento da continuidade em nenhum caso se lembra do passado
por si mesmo Designamos as histoacuterias fundantes de lsquomitosrsquo Normalmente se
contrapotildee este conceito a lsquohistoacuteriarsquo e se associa esta contraposiccedilatildeo a duas
oposiccedilotildees ficccedilatildeo (mito) contra realidade (histoacuteria) e funcionalidade
axiologicamente condicionada (mito)contra a objetividade sem finalidade
determinada (histoacuteria) (ASSMANN 2011 72-73)
89
Hoje sabemos que natildeo eacute possiacutevel produzir um relato sobre o passado sem a
imaginaccedilatildeo criadora ou mesmo elementos de ficcionalidade Assmann vai mais longe e afirma
que ldquoo passado que se consolida e interioriza na histoacuteria fundante eacute mito independente se eacute
fictiacutecio ou fantaacutesticordquo (ASSMANN 2011 73) Para o teoacuterico alematildeo o mito informa sobre si
e sobre uma ordem superior pensada como verdadeira cuja forccedila tem potencial normativo e
grande forccedila formativa ldquoO mito eacute o passado condensado em histoacuteria fundanterdquo (ASSMAN
2011 73-74)
Como dissemos anteriormente os mitos satildeo elementos constitutivos das
identidades sociais Eles satildeo formas de apropriaccedilatildeo do passado e como afirma Assman o mito
pertence agravequela histoacuteria fundante da comunidade Ele fornece sentido responde agrave pergunta de
onde viemos e carrega em si as respostas ou possibilidades interpretativas que respondem a
uma segunda pergunta qual seraacute o nosso futuro Esses elementos compotildeem uma constante
antropoloacutegica que se adapta agraves mais diversas sociedades sendo dessa forma uma caracteriacutestica
das narrativas miacuteticas na Antiguidade
O caso da Iliacuteada eacute significativo Ela expressa assuntos humanos se natildeo fosse a
presenccedila do maravilhoso natildeo haveria nenhum empecilho para sua veracidade Nessa narrativa
os deuses intervecircm para o desenvolvimento da accedilatildeo Aleacutem disso outros subsiacutedios maravilhosos
a rodeiam como as muralhas impermeaacuteveis de Troia e a armadura de Aquiles Afrodite e Ares
no campo de batalha que satildeo elementos que colocam a narrativa no que consideramos seu plano
miacutetico Elevam a narrativa da Guerra de Troia a um espaccedilo sagrado que tem como funccedilatildeo
costurar a existecircncia presente com o passado Daiacute a necessidade das listas de navios e mulheres
ou mesmo a suposta interpolaccedilatildeo no canto II da Iliacuteada que apresenta as naus enviadas pelos
atenienses ao campo de batalha Vincular as poleis a esses eventos funda a realidade como os
homens a conhecem Mesmo que seja no sentido de mudar o mundo ou de lutar pela
permanecircncia haacute um espaccedilo de luta simboacutelica que ocorre no plano do imaginaacuterio e da memoacuteria
coletiva
Os gregos contavam e recontavam essas histoacuterias muitas vezes em versotildees
contraditoacuterias Entretanto um elemento eacute fundamental os personagens miacuteticos apresentam
caracteriacutesticas que se repetem e permitem que eles sejam reconhecidos em qualquer situaccedilatildeo
Heacuteracles sempre levaraacute sua clava e a pele do Leatildeo de Nemeia por exemplo os deuses ou heroacuteis
condensam em si tanto caracteriacutesticas abstratas Afrodite o amor Hefesto a engenhosidade
humana quanto fiacutesicas Heacuteracles forte Hermes tem asas nos peacutes A articulaccedilatildeo dessas
estoacuterias eacute elaborada tendo em vista uma loacutegica interna Como afirma Jean Pierre Vernant
90
a ficccedilatildeo narrativa opera segundo um coacutedigo cujas regras para uma
determinada cultura satildeo rigorosas Esse coacutedigo comanda e orienta o jogo da
imaginaccedilatildeo miacutetica delimita e organiza o campo no qual ela pode se produzir
modificar os velhos esquemas elaborar novas versotildees (VERNANT 2009
232)
O que nos interessa nesse tipo de narrativa eacute sua funccedilatildeo Cuida-se nesse caso de
saber quais os aspectos da vida social satildeo influenciados por essa narrativa Como afirma Werner
Jaeger
O mito conteacutem em si este significado normativo mesmo quando natildeo eacute
empregado como modelo ou exemplo Ele natildeo eacute educativo pela comparaccedilatildeo
de um acontecimento da vida corrente com o acontecimento exemplar que lhe
corresponde no mito mas sim pela proacutepria natureza A tradiccedilatildeo do passado
celebra a gloacuteria o conhecimento do que eacute magniacutefico e nobre e natildeo um
acontecimento qualquer () O mito serve de instacircncia normativa para a qual
apela o orador Haacute no seu acircmago alguma coisa que tem validade universal
Natildeo tem um caraacuteter meramente fictiacutecio embora originariamente seja sem
duacutevida alguma o sedimento de acontecimentos histoacutericos que alcanccedilaram a
imortalidade atraveacutes de uma longa tradiccedilatildeo e da interpretaccedilatildeo enaltecedora da
fantasia criadora da posteridade (JAEGER 2010 67-68)
Essa longa citaccedilatildeo evidencia um caraacuteter significativo para esta pesquisa do mito
que eacute seu viacutenculo com a formaccedilatildeo dos indiviacuteduos ou seja os mitos orientam a sedimentaccedilatildeo
de valores e perspectivas de mundo nos jovens No caso grego o papel de Homero eacute basilar jaacute
Platatildeo na Repuacuteblica reconhecia que Homero era o educador dos gregos (Platatildeo Rep 606e)
A historiadora portuguesa Maria Helena Rocha Pereira eacute mais enfaacutetica ao afirmar que para se
conhecer a cultura helecircnica deve-se de alguma forma conhecer um pouco dos poemas
homeacutericos (PEREIRA 2003)
O que permanece durante o domiacutenio romano eacute que a formaccedilatildeo dos homens cultos
partia do estudo da poesia homeacuterica Henri Marrou em seu livro a Histoacuteria da Educaccedilatildeo no
mundo antigo descreve esse processo em que o jovem copiava e decorava textos canocircnicos
em constantes exerciacutecios (MARROU 19875 246-247) Nesse contexto o ensino dos textos em
que as narrativas miacuteticas apareciam era seminal Trata-se de um processo de construccedilatildeo de uma
memoacuteria cultural em que a narrativa miacutetica permite a imitaccedilatildeo a alusatildeo e a citaccedilatildeo
(CAMEROTTO 1998 141)
91
Como afirma Anne Gangloff118 no Alto Impeacuterio a Iliacuteada e a Odisseia satildeo os
grandes textos basilares para a formaccedilatildeo dos jovens na escola de gramaacutetica e de retoacuterica sendo
que ldquoos mitos ocupam um lugar importante nos progymnasmata ou exerciacutecios escolaresrdquo
(GANGLOFF 2008 153) Os grandes mitos satildeo essenciais para a formaccedilatildeo dos indiviacuteduos
satildeo os fundamentos tradicionais da paideia A historiadora acrescenta que ldquoos pensadores
gregos do Alto Impeacuterio usaram as grandes figuras miacuteticas em seus discursos e em sua
trajetoacuteriardquo (GANGLOFF 2008 153)
A presenccedila dos mitos no cotidiano formativo coloca a necessidade de investigarmos
com mais acuidade as relaccedilotildees entre mito e educaccedilatildeo e a consequente presenccedila de uma
pedagogia que se faz nesse jogo logo essa memoacuteria eacute fundamental para a formaccedilatildeo dos
intelectuais gregos
23 Mito e formaccedilatildeo outras pedagogias
Jaeger (2010 67-68) apresenta um aspecto do mito que nos interessa ele natildeo se
forma pela comparaccedilatildeo com os temas triviais do cotidiano mas com o que eacute elevado Nesse
ponto a leitura produzida por autores que estavam sob o Impeacuterio Romano desloca a temaacutetica
Observemos por exemplo o primeiro Diaacutelogo dos Deuses Marinhos entre Galateia119 e
Doacuteris120
Doacuteris se refere de maneira irocircnica ao Ciclope que estaacute interessado em Galateia A
ironia eacute feita no momento em que ela enfatiza que o Ciclope eacute um bonito pastor siciliano121 e a
filha de Nereu lembra que ele eacute filho de Poseidon o deus dos mares No entanto ela retruca
que natildeo importa sua linhagem jaacute que ele eacute um selvagem122 No diaacutelogo que se segue Galateia
afirma que gosta de Polifermo como ele eacute que o uacutenico olho lhe cai bem e que ela estaacute com
inveja pois ele natildeo olhou para ela
Nesse simples diaacutelogo temos duas divindades secundaacuterias do tradicional panteatildeo
helecircnico todavia essas deidades vinculam-se agraves populaccedilotildees que vivem agrave beira do mar ajudando
118 Anne Gangloff eacute uma importante especialista nos escritos de Dion Crisoacutestomo (40-115) intelectual da segunda
sofiacutestica Em seus trabalhos ela enfatiza principalmente a apropriaccedilatildeo dos mitos por esses escritos a partir das
formulaccedilotildees platocircnicas sobre o papel dos mitos na formaccedilatildeo humana (GANGLOFF 2006 2008 2002 26-38) 119 Existem dois personagens miacuteticos com esse nome entretanto Luciano fala especificamente da filha de Nereu
Seu nome remete agrave brancura de sua pele Suas estoacuterias satildeo conhecidas principalmente por seu envolvimento com
o ciclope Polifemo 120 Uma das filhas de Oceano esposa de Nereu 121 As narrativas mais antigas sobre os ciclopes os localizavam nos confins da terra Posteriormente a ilha da
Siciacutelia foi identificada como esse lugar 122 A representaccedilatildeo dos ciclopes como selvagens eacute bem antiga A primeira menccedilatildeo que temos estaacute na Odisseia no
encontro de Odisseus e Polifemo (Homero Odys IX 105-115)
92
na pesca e nas viagens ou seja trata-se de personagens do cotidiano o que facilita que o mesmo
seja compreendido Com isso Luciano insere um debate sobre o casamento ou os
relacionamentos afetivos entre esses seres Nota-se que a transposiccedilatildeo para um plano
inacessiacutevel no caso os deuses permite que as questotildees mundanas sejam debatidas sem meios
termos (BAKHTIN 2010 132) Assim temos principalmente a temaacutetica das relaccedilotildees por
motivos esteacuteticos eou interesse por poder Ele eacute filho de um deus muito poderoso e ela filha
de Nereu um antigo deus marinho Trata-se de um casamento politicamente interessante uma
vez que une duas geraccedilotildees de divindades bastante semelhante aos casamentos comuns entre as
importantes famiacutelias de seu tempo
Para Galateia e Doacuteris que satildeo deidades ligadas ao mar viacutenculos com o sacudidor
das terras colocar-lhes-iam em uma situaccedilatildeo bastante vantajosa Por traacutes da futilidade do tema
do encontro amoroso temos a profunda questatildeo das relaccedilotildees de poder seus viacutenculos com o
mundo privado e puacuteblico Tais relaccedilotildees geram inveja e desconfianccedila Observemos como
Luciano utiliza essa narrativa miacutetica que eacute uma estoacuteria que se vincula a personagens conhecidos
e maravilhosos localizada territorialmente (fala-se na Siciacutelia) ou seja a escolha luciacircnica
permite a vinculaccedilatildeo de um debate que poderia incomodar determinados ciacuterculos sociais
O desfecho do diaacutelogo condensa os pontos da anaacutelise que propomos Doacuteris diz ldquoEu
natildeo tenho nenhum namorado nem sou convencida por ser atrativa Mas um amante como o
Ciclope que fede a bode que come carne crua segundo dizem e come os hoacutespedes que o
visitamrdquo123 (Luciano D mar 1 5)
A personagem fecha ironicamente o diaacutelogo retomando as imagens dos ciclopes
presentes na tradiccedilatildeo homeacuterica mas insere o debate sobre os relacionamentos e os motivos que
os mesmos devem ter Nos textos luciacircnicos os mitos servem a outras pedagogias eles satildeo o
veiacuteculo perfeito para ideias e debates que natildeo poderiam ser forjados noutro contexto
O lugar da tradiccedilatildeo representada pelos textos homeacutericos na formaccedilatildeo do homem
grego era garantido em todo o sistema educacional Seus cantos eram copiados ditados
decorados exaustivamente para que o jovem dominasse a liacutengua grega Diferente do moderno
pesquisador cujo trabalho estaacute moldado por normas de citaccedilatildeo e referecircncia os homens antigos
citavam os cacircnones em seus discursos por meio de sua memoacuteria treinada o que confunde o
pesquisador contemporacircneo quando lecirc o documento e tenta fazer a anaacutelise do uso da citaccedilatildeo
pois ela muitas vezes eacute deslocada reinventada para servir a determinado propoacutesito
123 ldquoΔΩΡΙΣ
Ἀλλὰ ἐραστὴς μὲν οὐδεὶς ἔστι μοι οὐδὲ σεμνύνομαι ἐπέραστος εἶναι τοιοῦτος δὲ οἷος ὁ Κύκλωψ ἐστί κινάβρας
ἀπόζων ὥσπερ ὁ τράγος ὠμοβόρος ὥς φασι καὶ σιτούμενος τοὺς ἐπιδημοῦντας τῶν ξένων []rdquo
93
Como afirma Catherine Darbo-Peschanski (2004 11) a remissatildeo ao enunciado
escrito por outra pessoa satildeo feitos em uma economia do que se pode dizer e o que natildeo pode ser
dito Haacute um espaccedilo de negociaccedilatildeo entre o discurso originaacuterio e o discurso atual processo esse
que no mundo antigo tem uma loacutegica bem diferente da nossa Entendemos que esse espaccedilo
opaco pode superar as teses que clamam por uma unicidade discursiva e compreender como
existe uma polifonia de vozes que se expressam nos textos
Retomando os aspectos gerais da cultura e da formaccedilatildeo do homem antigo temos de
ressaltar que esse mergulho na tradiccedilatildeo homeacuterica natildeo era uma especificidade helecircnica mas
como afirma Pierre Grimal o homem romano lia Homero antes de Virgiacutelio (GRIMAL 1993
106) A presenccedila de pedagogos e filoacutesofos gregos marcou profundamente a aristocracia romana
Assentando estas duas importantes funccedilotildees do mito produzir sentimento de pertencimento e
seu caraacuteter pedagoacutegico podemos analisar sua transmissatildeo
Neste ponto devemos retomar um elemento que foi debatido por Paul Veyne
(1983110) o processo de helenizaccedilatildeo Ele foi extremamente seletivo com o que o romano
adota da cultura grega Poderiacuteamos dizer que eles se apropriam absorvem adaptam aprendem
aquilo que lhes foi uacutetil e os fortalece Por exemplo Roma sempre foi uma cidade aristocraacutetica
logo as celeumas sobre a democracia nunca fizeram parte do cotidiano da cidade eterna Ao
fazer citaccedilotildees miacuteticas embasadas na tradiccedilatildeo homeacuterica e hesioacutedica Luciano dialoga de muito
proacuteximo com os romanos Como dissemos o grego era uma liacutengua dominada pela elite Tal
polifonia era uacutetil para a partilha das mensagens para abrir a possibilidade do diaacutelogo
Existem diversas maneiras pelas quais os mitos podem ser expressos por meio da
escrita no mundo helecircnico Haacute o registro na poesia eacutepica e liacuterica nas trageacutedias e em outros
suportes aleacutem da representaccedilatildeo dos mitos na cultura material Todavia natildeo podemos esquecer
que a oralidade eacute a fonte para a conservaccedilatildeo dessas narrativas Ao lidar com os mitos
aprendemos o quanto a oralidade pode conservar e como a escrita pode cambiar O exemplo da
poesia eacutepica homeacuterica permite observar os elementos de oralidade tanto na Iliacuteada quanto na
Odisseia Outro elemento importante eacute que se sua narrativa principal jaacute eacute um tema mitoloacutegico
esses poemas permitem narrativas secundaacuterias124 Textualizar mitos natildeo eacute uma tarefa simples
Temos os poemas que contam justamente as origens dos deuses O mais ceacutelebre de
todos eacute atribuiacutedo a Hesiacuteodo trata-se da Teogonia Poderiacuteamos ampliar essa lista com os poemas
de Piacutendaro e outros poetas do periacuteodo arcaico Com os tragedioacutegrafos do periacuteodo claacutessico essas
narrativas foram adaptadas ao teatro Cada vez que o mito foi recontado ele atendia agraves
124 Um exemplo claacutessico satildeo os amores de Afrodite narrados pelo Aedo na corte dos Feaacutecios (Homero Odys
VIII 270-365)
94
especificidades dos gecircneros125 Geralmente quando temos acesso aos mitos satildeo versotildees
presentes nessas fontes
Uma fonte importante para os mitos satildeo os mitoacutegrafos O mais conhecido eacute
Apolodoro de Atenas que escreveu a Biblioteca Mitoloacutegica datada do seacuteculo I ou II aC
Existem trecircs textos nomeados de Histoacuterias Incriacuteveis Paleacutefato que a criacutetica filoloacutegica data da
segunda metade do seacuteculo IV aC Heraacuteclito autor do seacuteculo I dC e o Anocircnimo do Vaticano
cuja data eacute desconhecida mas pode ser datado como posterior ao seacuteculo V dC Existe ainda o
texto de Erastoacutetenes de Cirene chamado Catasterismos datado do seacuteculo III aC que eacute um
relato sobre personagens mitoloacutegicos que se transformaram em estrelas Um importante
testemunho eacute o de Lucio Aneo Cornuto que em seu Epitome das tradiccedilotildees mitoloacutegicas dos
gregos faz uma interpretaccedilatildeo etimoloacutegica de fundo estoico dos mitos gregos
Tais textos satildeo importantes para a anaacutelise mitoloacutegica pois condensam informaccedilotildees
que muitas vezes estatildeo dispersas em uma multiplicidade e diversidade gigantesca de escritos
Satildeo textos de cunho escolar que estabelecem cacircnones fixam tradiccedilotildees Era importante para os
homens mais cultos terem esse conhecimento o que os marcava com uma distinccedilatildeo social Satildeo
textos muito semelhantes aos breviaacuterios do quarto seacuteculo cuja funccedilatildeo era apresentar a Histoacuteria
do Impeacuterio aos novos senhores de Roma
Uma vez que os mitos apresentam narrativas que concentram significados das mais
distintas ordens socioculturais esses sentidos satildeo bastante flexiacuteveis logo sua apropriaccedilatildeo pode
fornecer embasamento para posiccedilotildees sociais por vezes contraditoacuterias126
Tal trabalho depende de elementos metanarrativos que organizam a seleccedilatildeo e a
transmissatildeo dos enunciados Trata-se do processo de releitura dos mitos uma vez que como
bem nos explica Luis Costa Lima a narrativa natildeo eacute anterior ao ato da escrita mas concomitante
a ele (LIMA 1989 23) O ato de escrita natildeo eacute ingecircnuo Escreve-se para se inscrever no mundo
narra-se tambeacutem com o intuito de marcar-se na vida transpor a barreira da mortalidade para
adentrar a utopia (vista como real possiacutevel) da imortalidade
Como enfatizamos anteriormente os mitoacutegrafos (autores antigos que compilaram
os mitos) constroem seus escritos a partir de criteacuterios que satildeo das mais variadas ordens e
exteriores agrave narrativa Temos aspectos poliacuteticos que evidenciam determinados mitos Filoacutestrato
125 Um caso claacutessico para exemplificar essa caracteriacutestica foi analisado por Jean Pierre Vernant no texto Eacutedipo sem
complexo em que ele mostra a diversidade de narrativas presentes no mito de Eacutedipo A narrativa sofocleana mais
conhecida do puacuteblico erudito foi apenas uma entre muitas versotildees do mito (VERNANT 1986 80) 126 Por exemplo o mito de Heacuteracles cuja narrativa atendia aos mais diferentes interesses sociais tanto da plebe
romana quanto da aristocracia senatorial Discutimos largamente o mito de Heacuteracles em nossa Dissertaccedilatildeo de
Mestrado (ARANTES JUNIOR 2008)
95
fornece um exemplo interessante de como o mito pode ser o veiacuteculo ou melhor a estrateacutegia
para posicionar-se diante do poder Em um grafite da cidade de Roma estaria a seguinte frase
ldquoNero Orestes Alcmeacuteon matricidasrdquo127 (Filostrato V S I 481)128 Essa frase expressa com
precisatildeo a ambiguidade presente nos enunciados miacuteticos Tal grafite pode expressar valores que
revelariam o apoio ao Imperador Nero uma vez que tanto Orestes como Alcmeacuteon assassinam
suas progenitoras em contextos tradicionalmente justificados Ou ainda poderiacuteamos acusar o
Princeps de cometer um crime de sangue Satildeo essas sutilezas que motivam nossa pesquisa
Para entender o contexto de produccedilatildeo desses discursos partimos de algumas
premissas Inicialmente tomamos os mitos como narrativas construiacutedas socialmente que
expressam significados referentes a um suposto passado comum A expressatildeo cultural vincula
essa narrativa a um preteacuterito pois ela eacute sentida socialmente como parte de um passado Nessa
acepccedilatildeo especiacutefica os discursos miacuteticos satildeo tambeacutem relatos de memoacuteria jaacute que satildeo aceitos
como expressatildeo de outra temporalidade
Seguindo por essa trilha os mitos fornecem suportes para a manutenccedilatildeo de
identidades assim como satildeo a expressatildeo de expectativas para o futuro Podemos observar em
suas distintas releituras apropriaccedilotildees desse passado compartilhado e a representaccedilatildeo de uma
imagem de futuro desejada naquele momento histoacuterico
O uso da mitologia nos escritos de Luciano natildeo atende aos tracircmites comuns do uso
de outros autores Nos escritos do siacuterio temos um processo de releitura da tradiccedilatildeo miacutetica Para
avanccedilar neste debate o primeiro ponto que queremos enfatizar eacute que os mitos gregos satildeo
aspectos de uma memoacuteria social Por ter essa caracteriacutestica esse tipo especiacutefico de narrativa
apresenta um forte elemento aglutinante
24 Os mitos entre as memoacuterias naturais e as artificiais
Muitos satildeo os caminhos que devemos trilhar para ter os elementos necessaacuterios agrave
compreensatildeo de como Luciano de Samoacutesata utilizou fragmentos das narrativas miacuteticas em seus
textos principalmente os personagens Para tal entendimento acreditamos ser relevante
aprofundar a anaacutelise dos mitos enquanto memoacuteria social ou histoacuteria fundante
Temos a preocupaccedilatildeo de entender esses conceitos em duas circunstacircncias como esses
conceitos foram pensados pelos saberes sociais disponiacuteveis naquele contexto (mitologia
127 Essa inscriccedilatildeo tambeacutem aparece citada em Suetocircnio (Nero 39) 128 ldquoΝέρων Ὀρέστης Ἀλκμαίων μετροκτόνοιrdquo
96
retoacuterica e filosofia) e a relaccedilatildeo desses saberes e os escritos luciacircnicos assim como cumpre
integrarmos nossa Tese nas reflexotildees das ciecircncias humanas contemporacircneas
A mitologia (conjunto de mitos de uma determinada cultura) eacute um corpo de narrativas
que propotildee uma explicaccedilatildeo sociocultural para as comunidades Por esse motivo pode ser
pensada enquanto um veiacuteculo para compreender o presente Os significados que os mitos
portam satildeo polivalentes (GANGLOFF 2006 20) permitindo diversos tipos de indagaccedilotildees e
reflexotildees
No contexto que estudamos as anaacutelises que buscam os sentidos profundos dos mitos
tendo em vista sua relaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas natildeo respondem aos usos que os mesmos
apresentaram Luciano enfatiza muito mais o fato de o mito ser uma estoacuteria conhecida ndash o que
facilitava que o mesmo transmitisse informaccedilotildees valores e desejos ndash do que seus viacutenculos com
a religiosidade Em muitos momentos o escritor de Samoacutesata evidencia as incongruecircncias do
mito Haacute o desejo de produzir o riso mas o riso precisa ser pensado em uma loacutegica proacutepria
O riso relaciona-se diretamente com o gecircnero escolhido entretanto desarma a audiecircncia
e permite que a criacutetica sociocultural seja elaborada diante dos poderes estabelecidos O efeito
cocircmico faz com que a imagem tenha uma durabilidade maior na memoacuteria daquele que ouve E
esse conhecimento estava disponiacutevel nos manuais de retoacuterica do periacuteodo imperial Por exemplo
um dos mais importantes manuais que nos restaram o Retoacuterica ad Herennium ao falar da
criaccedilatildeo de imagens e da fixaccedilatildeo de ideias lembra-nos que as mesmas para terem um efeito
mnemocircnico mais contundente atribuem ldquoum efeito cocircmico agraves nossas imagens o que tambeacutem
nos garantiraacute que lembremos delas mais prontamenterdquo129 (Anocircnimo Rhet Ad Her III XXII)
Esse ato favorece a memoacuteria uma vez que estimula reaccedilotildees emocionais
Alberto Camerotto em seu livro La metamorfosi della parola studi sulla parodia in
Luciano de Samosata ressalta o uso da memoacuteria como recurso literaacuterio usado na paroacutedia
luciacircnica A memoacuteria permite ao escritor criar por meio da imitaccedilatildeo da alusatildeo ou da citaccedilatildeo
no diaacutelogo com a tradiccedilatildeo literaacuteria que estava disponiacutevel (CAMERROTTO 1998 141) A
formaccedilatildeo do πεπαιδευμένος conceito antigo que se refere agravequele que domina os elementos
da Paideia completa-se com esse tipo de conhecimento e era fundamental para que o orador se
estabelecesse no meio poliacutetico (WHITMARSH 2001 5)
Como Camerrotto observou Luciano mescla em sua escrita poesia e prosa numa
estrateacutegia de escrita vinculada diretamente aos saberes sociais ligados agrave arte da memoacuteria A
129 ldquo[] aut ridiculas res aliquas imaginibus adtribuamus nam ea res quoque faciet ut facilius meminisse valeamusrdquo
97
partir de uma tradiccedilatildeo originaacuteria da reflexatildeo presente na obra de Mikhail Bakthin Camerrotto
tenta compreender a loacutegica do cocircmico seacuterio (BAKHTIN 2010 121-122)
Os recursos estiliacutesticos de Luciano partem do que Camerrotto chamou de ldquomixisrdquo a
mistura de gecircnero como caracteriacutestica essencial desse escritor Outro recurso presente nos seus
escritos eacute a mescla de prosa e verso ndash lembremos que o mito era transmitido pela tradiccedilatildeo
homeacuterica e hesioacutedica por meio dos versos Camerrotto ressalta ainda que a criaccedilatildeo luciacircnica
natildeo eacute totalmente livre pois estaacute na interaccedilatildeo constante do novo com a tradiccedilatildeo
(CAMERROTTO 1998 75)
Lembrar e esquecer satildeo elementos fundamentais para a construccedilatildeo cultural dos
indiviacuteduos Como ressaltamos anteriormente a construccedilatildeo de narrativas de que o passado seja
o principal referente pode ser uma constante antropoloacutegica mas natildeo eacute um ato natural e o modo
como as sociedades tecem esses discursos varia de maneiras muito diversas130 A anaacutelise dos
textos luciacircnicos necessita da clareza desses conhecimentos que estavam disponiacuteveis aos
homens cultos de sua eacutepoca Luciano deve ser visto como antes de tudo um orador o que eacute
documentado pelos exerciacutecios retoacutericos presentes em sua obra como nos textos sobre o uso do
discurso Mesmo natildeo se referindo aos manuais de retoacuterica de seu tempo podemos supor que o
siacuterio conhecia a arte da memoacuteria de Simocircnides
Frances Amelie Yates relembra uma importante estoacuteria sobre o poeta grego Simocircnides
citando o orador romano Ciacutecero que conta como o poeta foi chamado a um banquete a fim de
fazer o elogio do anfitriatildeo Entretanto metade do seu discurso foi dedicada para enaltecer os
gecircmeos Dioacutescoros131 Ao fim da alocuccedilatildeo o dono da festa resolve pagar somente a metade do
combinado o restante ele deveria cobrar dos gecircmeos A festa transcorria quando Simocircnides
foi avisado que dois homens o chamavam no portatildeo da casa Ele vai ateacute a porta e nesse instante
o teto do salatildeo desaba sobre os convivas e todos satildeo mortos ficando com seus corpos
desfigurados e por isso natildeo sendo possiacutevel reconhececirc-los Contudo o poeta mostra com
precisatildeo onde cada um dos convidados estava sentado o que possibilitou o reconhecimento dos
corpos (YATES 2007 17-18)
Essa anedota apenas configura a imagem desse personagem como o inventor da
mnemoteacutecnica Trata-se de um saber cujo principal ensinamento seria que o orador deveria
130 O teoacuterico alematildeo Jorg Rusen (2001) propocircs uma tipologia das maneiras com as quais os homens produzem
narrativas sobre o passado Postura criticada no texto do teoacuterico japonecircs Masayuki Sato (2006) Obviamente a
construccedilatildeo desses modelos natildeo eacute uma tarefa faacutecil e nossa postura eacute de duacutevida radical da capacidade de construccedilatildeo
de modelos que consigam dar conta dessa multiplicidade 131 Trata-se de dois filhos de Zeus com a mortal Leda Castor e Poacutelux Satildeo irmatildeos de Helene e Clistemenestra O
pai dos deuses se uniu com sua matildee na forma de um cisne Seu culto eacute bastante popular entre os homens do tempo
de Luciano especialmente entre os romanos (GRIMAL 2005 123)
98
treinar sua memoacuteria ligando palavras ou coisas a lugares de tal maneira que a disposiccedilatildeo dos
lugares permita ao orador lembrar os elementos necessaacuterios ao fazer um discurso
Os manuais de retoacuterica latinos foram os que melhor analisaram esse saber Podemos
citar principalmente Ciacutecero Quintiliano e o anocircnimo autor da Rhetorica ad Herennium A arte
da memoacuteria se vincula diretamente ao uso controlado da memoacuteria artificial como uma
realizaccedilatildeo do esforccedilo individual Sobre esse tema o trabalho de Yates continua mesmo depois
de 50 anos de sua publicaccedilatildeo original em inglecircs uma obra incontornaacutevel para aqueles que
estudam a cultura da memoacuteria no mundo ocidental (YATES 2007 17-38)
Ainda que a autora natildeo fosse especialista no mundo antigo sua especialidade era o
Renascimento principalmente o livro de Giordano Bruno em que os dois primeiros capiacutetulos
mapeiam os elementos constituidores da arte da memoacuteria no mundo antigo e principalmente
evidenciam como esse conhecimento era fundamental para a formaccedilatildeo do homem antigo
Trata-se de uma estrateacutegia individual na qual o orador soacute conseguia a eficaacutecia almejada
em seu discurso caso ele conseguisse manipular as informaccedilotildees disponiacuteveis e transformaacute-las
de forma a mobilizar os sentimentos do seu ouvinte a fim de convencecirc-lo Luciano de Samoacutesata
tinha conhecimento desses manuais uma vez que ele foi advogado e usou as teacutecnicas da retoacuterica
grega em seus escritos Os laccedilos entre arte da memoacuteria e retoacuterica satildeo elemento chave para
compreender porque a produccedilatildeo de Luciano vincula-se agrave cultura poliacutetica do Impeacuterio Romano
Sabe-se da presenccedila de oradores em muitos ambientes sociais pois eles declamavam em
banquetes antes de algum espetaacuteculo e nas praccedilas puacuteblicas
Dadas as condiccedilotildees poliacuteticas das sociedades dominadas pelo Impeacuterio Romano a retoacuterica
deliberativa foi paulatinamente perdendo espaccedilo e suas formas judiciais e epidiacuteticas ganhando
destaque no cenaacuterio imperial
25 Luciano e os mitos
O historiador deve desconfiar das permanecircncias de termos uma vez que os mesmos
podem camuflar profundas transformaccedilotildees por exemplo democracia132 Com o termo mito natildeo
eacute diferente visto que seu significado mudou desde Homero Como apontamos anteriormente
nos textos homeacutericos essa palavra significa apenas relato narrativa sem nenhuma conotaccedilatildeo
132 Essa palavra eacute interessante como nos mostrou Nicole Louraux pois mesmo na Greacutecia claacutessica seu significado
vacilou entre uma noccedilatildeo positiva e um termo pejorativo para a organizaccedilatildeo poliacutetica grega (LORAUX 2009197)
aleacutem da diferenccedila intriacutenseca que o termo comporta com as democracias ocidentais contemporacircneas e a ateniense
99
pejorativa Em Luciano ela aparece quarenta vezes com oito significados diferentes conforme
nossa investigaccedilatildeo
1 O mito aparece vinculado agrave narrativa de aventuras tradicionais das divindades heroacuteis e
seres maravilhosos expressando estoacuterias que satildeo interessantes mas carentes de
veracidade (Luciano Bacch 12 Syr Dea 125 Dom 192 Dom 1912 Anarch
3518 Salt 194 Salt 1911 Salt 1919 Astr 195 Hermot 2013)
2 Narrativas vinculadas agrave explicaccedilatildeo sobre algum acontecimento ou sobre a origem de
alguma coisa Luciano apresenta no texto Sobre o acircmbar ou dos cisnes (Electr 11
Electr 27) essa palavra identificada com a proacutepria narrativa que explica o surgimento
do acircmbar No Encocircmio agrave mosca ele elucida o significado da picada do inseto (Musc
Enc 101) Esse termo tambeacutem serve para explicar a toponiacutemia de uma regiatildeo (Tox
322)
3 No Encocircmio agrave mosca Luciano usa o termo mito em um contexto vinculado agrave filosofia
platocircnica da imortalidade da alma Ele afirma que a mosca eacute um dos animais que
ressuscitam e vincula isso agrave narrativa (μῦθον) sobre Hermoacutetimo de Clazoacutemenas
conhecido personagem ao qual era atribuiacuteda a transmigraccedilatildeo da alma (Torx 710-20)
4 Ele usa o termo mythos para se referir agraves histoacuterias de outros povos ou cidades num
sentido de construccedilatildeo identitaacuteria ou de tentativa de colocar em duacutevida tais narrativas
(Torx 1112 Hist Co 2811 Adv Ind 113 Apol 325 Icar 1917 Salt 211) Haacute
aqui a construccedilatildeo de uma narrativa etnograacutefica ao estilo de Heroacutedoto de Halicarnaso
5 Em alguns momentos esse termo liga-se agraves narrativas que natildeo apresentam comprovaccedilatildeo
empiacuterica ou veracidade sendo dessa forma desprovidas de racionalidade opostas agraves
ldquonarrativas verdadeirasrdquo Nesses casos os tradutores utilizam os termos faacutebula estoacuteria
lendas fable leged story (Torx 5616 Macr 104 Alex 78 Im 47) No caso de
Alexandre ou o falso profeta a palavra aparece em um contexto que catalisa seu aspecto
negativo
6 Nos textos homeacutericos a palavra mito tem o sentido de relato natildeo se opondo a logos
Luciano utiliza a palavra com esse sentido em alguns momentos (Cal 816 Somn
18189 Tim 3522 Im 121133 Sat 346) No texto Por que natildeo acreditar em caluacutenias
haacute uma citaccedilatildeo de um poeta arcaico cujo nome natildeo sabemos em que a palavra manteacutem
o sentido original
133 Nessa linha existem duas apariccedilotildees
100
7 Em alguns momentos Luciano enfatiza a proximidade entre mito e poesia ou que o
mito eacute narrado por Homero e Hesiacuteodo esses ldquofazedores de mitosrdquo (J Trag 3911)
Nesses casos o samosatense enfatiza as alegaccedilotildees platocircnicas de que o mito eacute prejudicial
para a formaccedilatildeo dos cidadatildeos jaacute que sua narrativa traz o encanto e obscurece o
raciociacutenio (Philops 919 Philops 43) O mito eacute tema de um gecircnero literaacuterio especiacutefico
o que explica sua apariccedilatildeo no opuacutesculo Como se deve escrever a Histoacuteria (Hist Co
820 Hist Co 1027) Ele ensina ainda que o historiador caso se depare com um mito
em uma investigaccedilatildeo (Hist Co 601) deve deixar ao leitor o parecer sobre a fiabilidade
do mesmo ao modo de Heroacutedoto
8 No texto Hermotimo ou sobre as seitas o termo refere-se agraves faacutebulas esoacutepicas134
(Hermot 842)
Desse modo o termo mito eacute apropriado pelo siacuterio com conteuacutedos semacircnticos
distintos Para a compreensatildeo da maneira como Luciano lida com os mitos podemos usar como
exemplo esclarecedor o texto Sobre o acircmbar ou os cisnes no qual o narrador propotildee investigar
a narrativa sobre o acircmbar Segundo essa estoacuteria ele seria originaacuterio de aacutelamos proacuteximos ao rio
Eridamo135 que choram laacutegrimas de acircmbar por causa de Faetonte136 Como o acircmbar eacute muito
valioso o narrador manifesta o desejo de ir ao rio sentar embaixo de uma dessas aacutervores e
pegar as ldquolaacutegrimasrdquo
Indo em direccedilatildeo ao Ocidente o narrador natildeo encontra os tais aacutelamos e pergunta aos
marinheiros onde eles os encontravam Como natildeo sabem do que ele fala eacute necessaacuterio narrar o
mito Essa narrativa se coloca na encruzilhada de sua polissemia pois por um lado lembra que
o termo vincula-se agrave narrativa sobre a origem de outro como estoacuteria fantasiosa Logo os
marinheiros entenderam o engano em que o viajante caiacutera pensando que encontraria os aacutelamos
que choram acircmbar Os navegantes perguntam-lhe ldquoQue indiviacuteduo enganador e mentiroso te
contou issordquo137 (Electr 315) Em seguida afirmam que nunca tinham visto nada tatildeo valioso
134 A faacutebula eacute um pequeno conto moralizador ateacute o seacuteculo XVIII era escrita em verso (MASSAUD 1992 226)
protagonizado por animais irracionais que sugerem semelhanccedilas com os homens Desde o seacuteculo V aC a faacutebula
grega se associou a seu principal copilador Esopo (SPEAKE 1999 159) Segundo a tradiccedilatildeo ele foi um escravo
traacutecio que trabalhou em Samos onde foi liberto (SPEAKE 199 148-149) 135 Trata-se de um dos cinco rios miacuteticos que cruzariam o Hades tido como um dos filhos de Oceanos e Tetis 136 Filho do deus Helio que teve a permissatildeo de dirigir o carro solar por um dia entretanto saiu da rota quase
queimando a Terra ou afastando o sol em demasia Para evitar um problema maior Zeus o fulminou com um raio
e seu corpo caiu perto do rio Eridamo o que Luciano conta no texto Astrologia (Astrol 1911) Suas irmatildes teriam
sido transformadas em aacutervores chamadas de aacutelamos por causa do desesperado pranto 137 ldquoΤίς ταῦτά σοι ἔφασκον διηγήσατο ἀπατεὼν καὶ ψευδολόγος ἄνθρωποςrdquo
101
mesmo navegando em terras distantes Caso houvesse algo tatildeo raro eles mesmos
comercializariam o produto
Em outra passagem o siacuterio questiona inicialmente as autoridades que expressam
os mitos fala tanto dos poetas tradicionais quanto das tradiccedilotildees orais que permanecem na
memoacuteria (Electr 6) O mito eacute enfrentado questionado investigado O que se fazia distante do
outro eacute buscado com a vista Eacute justamente pelo sentido da visatildeo que os marinheiros rebatem as
afirmativas do narrador logo completadas por argumentos de ordem praacutetica e comercial Os
olhos desmentem o que foi dito Assim uma investigaccedilatildeo que busca ver os locais presentes nas
narrativas contesta a veracidade dos mitos
Sendo abordado dessa forma o personagem luciacircnico desabafa agrave moda de Platatildeo
ldquo() fiquei envergonhado porque realmente me havia ocorrido algo comum agraves crianccedilas confiar
nas fantasias inverossiacutemeis dos poetas o que natildeo eacute saudaacutevel admitirrdquo138 (Electr 319-21) Haacute
nesse momento uma alegaccedilatildeo que remonta agraves elucubraccedilotildees presentes na Repuacuteblica Entretanto
Luciano natildeo aproxima as ldquofantasias do mitordquo da educaccedilatildeo do cidadatildeo ideal como o filoacutesofo
De maneira indireta eacute isto que do passo se desdobra o homem inteligente natildeo deve acreditar
em estoacuterias que natildeo satildeo fiaacuteveis deve sempre manter uma postura de duacutevida
Os marinheiros completam ldquoeacute vocecirc bom homem que natildeo se cansa de inventar
mentiras sobre nosso paiacutes e o riordquo139 (Electr 59) Luciano aponta o problema principal a
distacircncia que inviabiliza a verificaccedilatildeo das estoacuterias Obviamente ele fornece uma maneira de
lidar bem com tais narrativas alertando que eacute preciso tomar cuidado com os relatos exagerados
ou insuficientes Ele termina com um pacto de leitura afirmando ldquoem lugar algum me ouviram
vangloriar-me desta forma em meus discursos e nunca ouviratildeordquo140 (Electr 65-6)
A relaccedilatildeo de Luciano com os mitos eacute muito complexa uma vez que ele estaacute
preocupado com seu potencial educativo (preocupaccedilatildeo com as narrativas que natildeo satildeo criacuteveis)
suas relaccedilotildees com a existecircncia material (procura de produtos comercializaacuteveis) e as balizas de
uma teoria dos tipos de discursos Histoacuteria e Poesia O que notamos eacute a riqueza que o termo
mito agrega aos escritos de Luciano Como ele observa os mitos por essa ordem podemos
analisar a maneira como utiliza os elementos da narrativa miacutetica na construccedilatildeo de seus
discursos O siacuterio tinha como um de seus temas prediletos as contradiccedilotildees por exemplo o fato
de Zeus ter um tuacutemulo em Creta (Luciano Tim 611)
138 ldquo[] καὶ ἐσιώπησα αἰσχυνθείς ὅτι παιδίου τινος ὡς ἀληθῶς ἔργον ἐπεπόνθειν πιστεύσας τοῖς ποιηταῖς ἀπίθανα
οὕτως ψευδομένοις ὡς μηδὲν ὑγιὲς ἀρέσκεσθαι αὐτοῖςrdquo 139 ldquo[] Σύ ἔφησαν ὦ ἄνθρωπε οὐ παύσῃ τήμερον καταψευδόμενος τῆς χώρας ἡμῶν καὶ τοῦ ποταμοῦrdquo 140 ldquo[] ἀλλὰ μαρτύρομαι ὡς ἐμοῦ τοιαῦτα μεγαλαυχουμένου περὶ τῶν ἐμῶν οὔτε ὑμεῖς οὔτε ἄλλος πω ἀκήκοεν
οὐδ ἂν ἀκούσειέν ποτεrdquo
102
Esse uso nunca eacute ingecircnuo uma vez que quando analisamos o texto Dupla
Acusaccedilatildeo fica evidente que Luciano domina os gecircneros poeacuteticos o que lhe permite transgredi-
los estendendo-os para a mitologia Por isso em suas narrativas personagens mitoloacutegicos e
histoacutericos dialogam e se questionam Os Diaacutelogos dos mortos satildeo um excelente exemplo dessa
praacutetica
Luciano conhecia a explicaccedilatildeo evemerista141 utilizando-a para a confecccedilatildeo de seus
textos Por exemplo o mito de Proteu ganha uma explicaccedilatildeo evemerista no texto Sobre a danccedila
Nesse opuacutesculo Proteu era um danccedilarino excelente que se expressava em suas danccedilas e imitava
as qualidades dos fenocircmenos naturais (aacutegua fogo vento) dos animais (leatildeo leopardo) e das
aacutervores Por esse motivo os mesmos foram lembrados pela metaacutefora da transformaccedilatildeo que
pouco a pouco teria sido esquecida No texto Astrologia o mito de Faetonte142 ganha uma
explicaccedilatildeo nesse sentido ele eacute um astroacutelogo que estudou os misteacuterios do sol mas morreu sem
completar suas investigaccedilotildees (Astrol 18-191) Nesse mesmo texto Luciano fornece narrativas
que apresentam explicaccedilotildees semelhantes para os mitos de Beloferonte Iacutecaro e Deacutedalo entre
outros
No texto Anaacutecarsis ou sobre a ginaacutestica Soacutelon personagem histoacuterico retomado por
Luciano expressa elementos que nos ajudam a entender como o πεπαιδευμένος se formaria
Educamos para que seu espiacuterito vibre primeiro com a muacutesica e com a
aritmeacutetica e os ensinamos a escrever as letras e diferenciaacute-las sem
dificuldade A medida que vatildeo avanccedilando lhes recitamos as maacuteximas
dos homens saacutebios gestas do passado e pensamentos uacuteteis adornados
em verso para que sejam recordados mais facilmente Eles escutam
essas gestas faccedilanhas destacadas pouco a pouco se sentem inclinados
para elas e se afanam em imitaacute-las para agrave sua vez tambeacutem serem
cantados e admirados na posteridade tanto Hesiacuteodo quanto Homero
compuseram muitos poemas dessa iacutendole143 (Luciano Anarc 21 grifo
nosso)
141 Explicaccedilatildeo dos mitos que afirma que eles satildeo feitos de homens do passado divinizados pelo medo ou pela
admiraccedilatildeo dos homens 142 Trata-se do mesmo mito debatido na seccedilatildeo anterior no texto Sobre o acircmbar ou os cisnes entretanto nesse
momento Luciano encontra outra chave interpretativa para a mesma estoacuteria Natildeo podemos esquecer que a escolha
dos mitos narrados servem muitas vezes aos gecircneros escolhidos 143 ldquoΤὴν μὲν τοίνυν ψυχὴν μουσικῇ τὸ πρῶτον καὶ ἀριθμητικῇ ἀναρριπίζομεν καὶ γράμματα γράψασθαι καὶ τορῶς
αὐτὰ ἐπιλέξασθαι διδάσκομεν προϊοῦσιν δὲ ἤδη σοφῶν ἀνδρῶν γνώμας καὶ ἔργα παλαιὰ καὶ λόγους ὠφελίμους
ἐν μέτροις κατακοσμήσαντες ὡς μᾶλλον μνημονεύοιεν ῥαψῳδοῦμεν αὐτοῖς οἱ δὲ καὶ ἀκούοντες ἀριστείας τινὰς
καὶ πράξεις ἀοιδίμους ὀρέγονται κατὰ μικρὸν καὶ πρὸς μίμησιν ἐπεγείρονται ὡς καὶ αὐτοὶ ᾄδοιντο καὶ
θαυμάζοιντο ὑπὸ τῶν ὕστερον οἷα πολλὰ Ἡσίοδός τε ἡμῖν καὶ Ὅμηρος ἐποίησανrdquo
103
A proposta de anaacutelise dos diaacutelogos luciacircnicos envereda nesse sentido buscando
compreender o discurso em sua complexidade uma vez que Luciano questiona e reinventa os
mitos Sua escrita se apropria da tradiccedilatildeo de uma maneira peculiar ora questionando a tradiccedilatildeo
ora enfatizando seu caraacuteter formador
Observamos em todos os toacutepicos do segundo capiacutetulo desta Tese que Luciano de
Samoacutesata se coloca em um regime de memoacuteria especiacutefico em que os homens satildeo formados
dentro de premissas comuns As narrativas miacuteticas expressam uma face importante desse
regime especiacutefico Frente a esse contexto colocamos a indagaccedilatildeo relativa aos usos poliacuteticos
que essas narrativas tecircm nos escritos do escritor de Samoacutesata
104
Capiacutetulo III
Apropriaccedilatildeo luciacircnica das narrativas miacuteticas repensando o
poder
Os usos da mitologia nos escritos de Luciano de Samoacutesata dialogam com a cultura
poliacutetica144 greco-romana e com sua teologia poliacutetica145 Por se relacionarem a partir de uma
encruzilhada cultural que se evidencia em trecircs pontas romanos gregos e siacuterios os textos
luciacircnicos dialogam com os alicerces da teia cultural dominante a partir do olhar do dominado
sem colocar essa dicotomia em uma letra radical jaacute que estar em lugares diferentes natildeo impede
o diaacutelogo o que implica em acordos e negociaccedilotildees simboacutelicas constantes
Luciano eacute um intelectual helenizado que escreveu em uma placenta cultural
(CATROGA 200913) cuja interaccedilatildeo se torna profiacutecua e reveladora de novas possibilidades
de compreensatildeo social A resistecircncia cultural natildeo necessita do conflito aberto visto que ela
pode ocorrer das mais diversas formas Nesta pesquisa evidenciamos sua ocorrecircncia a partir
dos aspectos questionadores presentes no tratamento que o siacuterio daacute aos mitos gregos
Partimos das premissas de que as mensagens luciacircnicas discorrem sobre assuntos
poliacuteticos que precisavam de cuidados esteacuteticos eou retoacutericos substanciais para que a sua
apresentaccedilatildeo subvertesse ou questionasse a ordem estabelecida Como jaacute estava expresso no
manual de retoacuterica Sobre o Estilo de Demeacutetrio o escritor e o orador deviam ter cuidados para
falar ao tirano uma vez que a sobrevivecircncia do texto dependia disso Como afirmou Paul
Veyne ldquonaquele governo em que a defrontaccedilatildeo fiacutesica contava muito saber controlar a
fisionomia podia ser de importacircncia capital nos dois sentidos da palavrardquo (VEYNE 2009 15)
O historiador francecircs se refere especificamente ao Senado Romano entretanto essas
colocaccedilotildees se estendem a todos os espaccedilos de poder poliacutetico no Impeacuterio
No caso dos escritos de Luciano natildeo acreditamos em uma oposiccedilatildeo sistemaacutetica
feita pelo samosatense aos governos romanos mas no fato de esses documentos expressarem
as colocaccedilotildees de um intelectual que apresenta suas convicccedilotildees e opiniotildees referentes agraves coisas
que o cercam Ele usa para isso os recursos que aprendeu por meio da Paideia Os historiadores
apontam para a impossibilidade de atingir as intenccedilotildees originaacuterias do texto o que natildeo eacute possiacutevel
144 Entendemos por cultura poliacutetica o conjunto de siacutembolos praacuteticas e ideias que exprimem a maneira como uma
comunidade lida com o poder 145 Sobre a noccedilatildeo de teologia poliacutetica ver a nota 2
105
nem para autores contemporacircneos quanto mais para um escritor que viveu haacute mais de dezoito
seacuteculos Todavia existem pistas que nos permitem encontrar elementos para discutir sua
postura poliacutetica frente ao seu contexto
Haacute nesse escritor um sistemaacutetico questionamento dos elementos constituidores do
que chamamos de teologia poliacutetica romana principalmente daquela influenciada pelo
estoicismo Essa doutrina filosoacutefica defendia uma ldquovida contemplativa acima das ocupaccedilotildees
das preocupaccedilotildees e das emoccedilotildees da vida comum Seu ideal portanto eacute de ataraxia ou apatiardquo
(ABBAGNANO 2003 375 grifos do autor) No decorrer deste capiacutetulo expressamos o debate
luciacircnico sobre a ideia de providecircncia ou de uma razatildeo subjacente a todas as coisas jaacute que os
personagens miacuteticos satildeo confrontados diante dessa loacutegica
Para criticar a cultura e com isso as praacuteticas poliacuteticas de sua eacutepoca Luciano utilizou
elementos das narrativas miacuteticas helecircnicas que satildeo mobilizados no intuito de inquirir elementos
miacuteticos que sustentam a ordem simboacutelica do poder poliacutetico imperial Como ressaltamos os
elementos miacuteticos satildeo a expressatildeo de uma memoacuteria cultural Haacute um regime de memoacuteria
entendido como ordenamento metanarrativo que organiza os usos das memoacuterias e assim dos
mitos Esse trabalho natildeo eacute aleatoacuterio e como toda narrativa memorialiacutestica eacute extremamente
seletivo Aleacutem disso seus usos satildeo feitos em uma loacutegica proacutepria Os diaacutelogos questionam
justamente os usos da memoacuteria miacutetica Por meio do riso haacute a possibilidade da indagaccedilatildeo Em
termos formais existem dois tipos de diaacutelogos nos escritos de Luciano de Samoacutesata 1) os
diaacutelogos maiores que apresentam a mesma estrutura formal mas que satildeo muito mais longos
2) as coletacircneas de diaacutelogos menores distribuiacutedas por seus espaccedilos o mundo dos mortos o
Olimpo os mares e os prostiacutebulos
Este capiacutetulo estaacute distribuiacutedo por temas que se relacionam a distintas facetas do
poder No primeiro toacutepico analisamos o espaccedilo da trageacutedia e as especificidades da fala nesse
ambiente tendo em vista as reuniotildees dos deuses representadas por Luciano usamos Momo
como personagem catalisador da anaacutelise uma vez que esse reivindicava a parreacutesia como
maneira de dizer Em seguida nos detemos ao mundo dos mortos e diversas formas de pensar
a vida poliacutetica Aqui se inicia a preocupaccedilatildeo com alguns mortos ilustres por serem governantes
e especialmente a criacutetica agrave apoteose ou agrave pretensatildeo de se considerarem deuses No terceiro
passo discorremos sobre a presenccedila do titatilde Prometeu e os dilemas do poder poliacutetico em que
mencionamos a existecircncia de uma seacuterie de abusos do poder sendo cometidos e de estrateacutegias
de sobrevivecircncia no mundo da poliacutetica No quarto momento investigamos a imagem do tirano
nos textos luciacircnicos Essa anaacutelise se condensa no argumento do uacuteltimo toacutepico que eacute a imagem
de um Zeus tiracircnico construiacuteda nos escritos de Luciano
106
Dessa forma questionamos como essa memoacuteria cultural serve de contraponto agrave
interpretaccedilatildeo luciacircnica do mundo no qual ele escreve Trata-se aqui da exegese elaborada por
um inteacuterprete do Impeacuterio Greco-Romano que por muitos motivos inclusive pela sua
sobrevivecircncia e a de seus textos escolhe o riso como principal estrateacutegia para transmitir suas
mensagens O passado eacute retomado natildeo para refletir o preteacuterito mas sim o presente e apresentar
dessa forma um futuro almejado
31 As assembleias luciacircnicas poder e riso
A imagem de Luciano como um escritor alheio ao seu tempo expressa com mais forccedila
na obra de Bompaire comeccedilou a ser questionada com a ampliaccedilatildeo das informaccedilotildees
arqueoloacutegicas e epigraacuteficas Natildeo se pode questionar o profundo conhecimento que esse escritor
deteve da tradiccedilatildeo helecircnica que se expressa em seus textos pois ele conhecia os principais
textos de diferentes gecircneros
A informaccedilatildeo dada pela paleografia e pela arqueologia amplia o horizonte de
interpretaccedilatildeo dos discursos entretanto cabe ao leitor a atenccedilatildeo aos aspectos retoacutericos eou
estiliacutesticos que orientam a construccedilatildeo de determinado texto Outro fator relevante eacute a
observacircncia das lacunas que impedem objetivar empiricamente as conjecturas
Tanto a anaacutelise do texto natildeo pode ficar subordinada agraves descobertas da cultura material
bem como essa natildeo pode simplesmente servir para confirmar ou refutar uma informaccedilatildeo Um
exemplo interessante para ilustrar essas armadilhas foi exposto por Elisabeth Smadja que no
texto intitulado Image et culte de lrsquoEmpereur en Afrique (1995) conta-nos que vaacuterios
arqueoacutelogos encontram placas com inscriccedilotildees comemorativas da visita de determinado
Imperador nas cidades No caso ela trata dos Severos na Aacutefrica entretanto a anaacutelise da
documentaccedilatildeo textual natildeo corrobora essa informaccedilatildeo A autora explica que as visitas dos
governantes eram planejadas com antecedecircncia sendo que as cidades e proviacutencias eram
informadas para se prepararem para recepcionar o Princeps Logo as cidades preparavam
diversas accedilotildees para recepcionaacute-lo entre elas grandes placas comemorativas da visita Todavia
se por algum imprevisto ele natildeo fosse as placas continuariam nas cidades sendo inclusive
exibidas como forma de mostrar sua lealdade ao Impeacuterio e a seu governo (SMADJA 1995
283-285)
A proacutepria interpretaccedilatildeo dos textos luciacircnicos foi muito enriquecida com esses achados
principalmente em textos que falam sobre religiosidade como o caso de Alexandre e o falso
107
profeta Em 1980 Louis Robert publicou o livro A Travers lrsquoAsie Mineure poeacutetes et
prosateurs monnaies grecques voyageurs et geacuteographie com um capiacutetulo sobre Luciano de
Samoacutesata e seu tempo no qual o autor trabalha com a anaacutelise do Alexandre e as descobertas
arqueoloacutegicas em torno do templo de Gliacutecon no qual Alexandre estabeleceu o oraacuteculo dessa
serpente Robert apresenta moedas cunhadas em Abonotico durante os governos de Antonino
Pio Luacutecio Vero Geta (com nome de Gliacutecon) e Severo Alexandre com a representaccedilatildeo da cobra
de Glicon o novo Ascleacutepio em seu anverso O autor ainda apresenta moedas de outras cidades
naquela regiatildeo o que para o autor documentaria um culto bastante difundido (ROBERT 1980
395)
Esse processo de cotejamento do texto luciacircnico com as descobertas arqueoloacutegicas
tambeacutem alcanccedila escritos mais ficcionais tais como o diaacutelogo maior A assembleia dos deuses
J H OLIVER (1980) no artigo intitulado The actuality of Lucianrsquos ldquoAssembly of the Godsrdquo
apresenta um novo olhar sobre esse pequeno texto luciacircnico tendo em vista a carta do
Imperador Marco Aureacutelio recuperada em dois fragmentos epigraacuteficos sobre a importacircncia de
se verificar as trecircs geraccedilotildees (trigonia) para os componentes do Areoacutepago ateniense (FOLLET
apud OLIVER 1980 307-308)
Partindo da dataccedilatildeo proposta por Simone Follet Oliver acredita que a carta teria sido
enviada aos atenienses no ano de 174175 Natildeo existem duacutevidas do viacutenculo do texto com esse
registro epigraacutefico com o texto luciacircnico (FOLLET apud OLIVER 1980 310)
Noacutes partimos do pressuposto de que o opuacutesculo luciacircnico escrito nos paracircmetros do
gecircnero que ele mesmo teria inventado o diaacutelogo satiacuterico apresenta limites vinculados ao tipo
de riso que o escritor deseja produzir Ele quer gerar uma inquietaccedilatildeo um questionamento
logo haacute uma proximidade plausiacutevel entre os dois contextos a carta do Imperador e a
Assembleia dos deuses
Entretanto acreditamos que a anaacutelise desse opuacutesculo e diaacutelogo Zeus Traacutegico pode
ampliar nossa visatildeo clareando viacutenculos com a realidade histoacuterica do escritor todavia natildeo
objetivamos provar nenhum viacutenculo necessaacuterio Tal posicionamento observa a construccedilatildeo do
enredo dos diaacutelogos e as possiacuteveis metaacuteforas existentes Zeus inicia o diaacutelogo com o seguinte
problema
Zeus mdash Deixai de murmurar oacute deuses e de vos juntardes pelos cantos falando
ao ouvido uns dos outros escandalizados com o fato de muitos tomarem lugar
no nosso banquete sem o merecerem E jaacute que foi convocada uma assembleia
(ἐκκλησία) para tratar desse assunto que cada um emita abertamente a sua
108
opiniatildeo e proceda agrave acusaccedilatildeo E tu Hermes faz a proclamaccedilatildeo segundo a lei
(Luciano Deor Conc 1)146
O problema colocado eacute a presenccedila de deuses novos nos banquetes celestiais Para
resolver essa dificuldade ele convoca uma assembleia com os deuses sendo que essa eacute
convocada com foacutermulas similares agravequelas usadas nas assembleias claacutessicas Por exemplo
Hermes convoca os deuses a falar utilizando a foacutermula ldquodeuses de pleno direitordquo147 (Luciano
Deor Conc 1) para debaterem sobre os ldquometecos e os estrangeirosrdquo148 (Luciano Deor Conc
1)
Momo149 solicita a palavra e inicia cuidadosamente seu discurso observando dois
pontos 1) a ascensatildeo de mortais agrave condiccedilatildeo de divindade 2) a ascensatildeo de acompanhantes
desses novos deuses Como afirma Momo as novas divindades teriam direito a
participarem conosco das nossas assembleias (ξυνέδριον) e de se
banquetearem em peacute de igualdade conosco () trouxeram caacute para o ceacuteu
os seus criados () os registraram fraudulentamente e agora recebem
as distribuiccedilotildees em peacute de igualdade conosco participam tambeacutem nos
sacrifiacutecios sem nos terem pago a taxa de residecircncia150 (Luciano Deor
Conc 3)
Observemos que os problemas apontados por Momo pertencem agrave materialidade da existecircncia
alimentaccedilatildeo honrarias e pagamento de impostos
Momo acusa principalmente Dioniso que nascido da coxa de Zeus natildeo teria origem grega jaacute
que teria sido neto de Cadmo um comerciante siacuterio-feniacutecio Utilizando-se de recursos retoacutericos ele
evidencia a disparidade do comportamento dessa divindade que eacute descrita assim ldquoenfim natildeo falo
propriamente da sua pessoa nem da mitra nem da embriaguez nem da maneira de andar pois todos
julgo eu veem como ele eacute de sua natureza amaricado e efeminado meio louco tresandando a vinho
logo desde a manhatilderdquo151 (Luciano Deor Conc 4) Momo usa uma estrateacutegia retoacuterica ao dizer
146 ldquoΖΕΥΣ
Μηκέτι τονθορύζετε ὦ θεοί μηδὲ κατὰ γωνίας συστρεφόμενοι πρὸς οὖς ἀλλήλοις κοινολογεῖσθε ἀγανακτοῦντες
εἰ πολλοὶ ἀνάξιοι μετέχουσιν ἡμῖν τοῦ συμποσίου ἀλλ ἐπείπερ ἀποδέδοται περὶ τούτων ἐκκλησία λεγέτω ἕκαστος
ἐς τὸ φανερὸν τὰ δοκοῦντά οἱ καὶ κατηγορείτω σὺ δὲ κήρυττε ὦ Ἑρμῆ τὸ κήρυγμα τὸ ἐκ τοῦ νόμουrdquo 147 ldquoτίς ἀγορεύειν βούλεται τῶν τελείων θεῶν οἷς ἔξεστινrdquo 148 ldquoἡ δὲ σκέψις περὶ τῶν μετοίκων καὶ ξένωνrdquo 149 Momo eacute o filho da noite que aparece pela primeira vez na tradiccedilatildeo escrita ocidental na Teogonia de Hesiacuteodo
no verso 214A palavra microῶmicroος ου (ὁ) significa 1) censura reprovaccedilatildeo criacutetica 2) zombaria defeito maacutecula
mancha Nosso personagem ὁ Μῶmicroος aparece em mais duas importantes obras luciacircnicas que abrem o debate
acerca da vinculaccedilatildeo do texto deste escritor com a sociedade em que ele viveu a saber diaacutelogos maiores Zeus
Traacutegico e Assembleia dos deuses Dois textos que apresentam a assembleia dos deuses reunida 150 ldquo[] αὐτοὶ μετέχουσι τῶν αὐτῶν ἡμῖν ξυνεδρίων καὶ εὐωχοῦνται ἐπ ἴσης καὶ ταῦτα θνητοὶ ἐξ ἡμισείας ὄντες
ἔτι καὶ τοὺς ὑπηρέτας καὶ θιασώτας τοὺς αὐτῶν ἀνήγαγον ἐς τὸν οὐρανὸν καὶ παρενέγραψαν καὶ νῦν ἐπ ἴσης
διανομάς τε νέμονται καὶ θυσιῶν μετέχουσιν οὐδὲ καταβαλόντες ἡμῖν τὸ μετοίκιονrdquo 151 ldquo[] οἷος μὲν αὐτός ἐστινοὐ λέγω οὔτε τὴν μίτραν οὔτε τὴν μέθην οὔτε τὸ βάδισμα πάντες γάρ οἶμαι ὁρᾶτε
ὡς θῆλυς καὶ γυναικεῖος τὴν φύσιν ἡμιμανής ἀκράτου ἕωθεν ἀποπνέωνrdquo
109
que ele natildeo fala da conduta dele mas coloca todos os elementos considerados estranhos
Dioniso eacute descrito como outro uma alteridade da legiacutetima divindade helecircnica Observemos que
satildeo colocados em evidecircncia a maneira como essa divindade age e logo em seguida Momo
questiona a presenccedila das divindades que fazem parte dos rituais dionisiacuteacos principalmente os
saacutetiros
O riso luciacircnico coloca em questionamento o proacuteprio Zeus uma vez que esse brinca
com a multiplicidade de narrativas referentes a divindades Momo lembra que os cretenses
apresentam um tuacutemulo dessa divindade e que os habitantes de Eacutegio afirmam que ele foi ldquouma
crianccedila trocada por outrardquo152 (Luciano Deor Conc 6) Luciano tem consciecircncia da
multiplicidade e plasticidade das narrativas mitoloacutegicas Satildeo duas acusaccedilotildees 1) ele natildeo eacute
imortal pois tem um tuacutemulo em Creta 2) ele foi trocado quando era uma crianccedila A nosso
entender esses questionamentos tecircm alcances criacuteticos agrave teologia poliacutetica romana Trata-se de
uma narrativa miacutetica que questiona a consecratio ou apotheosis ou seja a transformaccedilatildeo de
um homem em Deus (BICKERMAN 1972 18) Luciano questiona como uma divindade pode
ter um tuacutemulo assim podemos inferir a duacutevida sobre a divinizaccedilatildeo dos Imperadores Romanos
O segundo elemento ainda coloca duacutevidas quanto agrave origem de um governante o que eacute comum
nos regimes de governo em que a transmissatildeo daacute-se pela consanguinidade
Entretanto Momo prefere acusar Zeus de estar na origem desse problema de sua
ilegalidade uma vez que essa divindade teve diversos filhos com mortais Satildeo filhos de Zeus
alguns humanos que se tornaram deuses por exemplo Heacuteracles e Dioniacutesio Zeus intercede no
diaacutelogo para que Momo natildeo acuse Ganimedes o jovem da Friacutegia capturado por Zeus que vive
entre os imortais Os casos de apoteose entre os helenos satildeo rariacutessimos sendo casos datados
no periacuteodo heroico Natildeo sabemos de nenhum rito de divinizaccedilatildeo entre os gregos em nenhuma
eacutepoca histoacuterica casos como os supracitados distanciam-se das praacuteticas romanas de consecratio
Entretanto tais narrativas eram utilizadas por romanos para justificar as ascensotildees dos
Imperadores O que queremos ressaltar eacute que natildeo era uma praacutetica helecircnica a divinizaccedilatildeo de
humanos em periacuteodos histoacutericos mas que essas narrativas foram utilizadas para justificar
simbolicamente a divinizaccedilatildeo dos imperadores mortos A primeira indagaccedilatildeo luciacircnica refere-
se agrave divinizaccedilatildeo de um mortal
O segundo ponto questionado pelo siacuterio por meio das indagaccedilotildees de Momo eacute a
presenccedila de deuses estrangeiros Observemos que essa divindade jaacute havia descrito
pejorativamente Dioniso por seus modos estrangeiros Momo afirma que
152 ldquoἐγὼ δὲ οὔτε ἐκείνοις πείθομαι οὔτε Ἀχαιῶν Αἰγιεῦσιν ὑποβολιμαῖόν σε εἶναι φάσκουσινrdquo
110
Mas oacute Zeus o Aacutetis153 o Coribante154 e o Sabaacutezio donde eacute que eles nos
chegaram aqui aos trambolhotildees Ou o famoso Mitra da Meacutedia com o seu
kandus155 e a sua tiara que nem sequer fala grego pelo que natildeo compreende
quando algueacutem bebe agrave sua sauacutede Entatildeo os Citas e entre eles os Getas ao
verem isto mandam-nos passear e eles proacuteprios conferem a imortalidade e
aclamam como deuses a quem muito bem entendem e foi desse modo que
Zamoacutelxis156 um escravo foi natildeo sei laacute como inscrito sem noacutes darmos por
isso E no entanto oacute deuses isto ainda natildeo eacute nada Tu aiacute oacute cabeccedila-de-catildeo157
egiacutepcio vestido com faixas de linho quem eacutes tu meu caro Como eacute que
pretendes ser um deus assim a ladrar E aqui este boi de Mecircnfis158 com a pele
agraves listas por que carga de aacutegua eacute adorado emite oraacuteculos e tem os seus
profetas Sinto pejo de nomear iacutebis macacos bodes e outros animais ainda
mais ridiacuteculos vindos do Egipto e natildeo sei laacute como introduzidos no ceacuteu
Como eacute que voacutes oacute deuses suportais vecirc-los em peacute de igualdade ou mesmo
mais venerados E tu oacute Zeus como admites que te faccedilam nascer cornos de
carneiro159 (Luciano Deor Conc 9-10)
Nesse passo podemos observar a presenccedila de divindades estrangeiras na assembleia dos
deuses Noacutes partimos da premissa de que Luciano constroacutei uma metaacutefora das assembleias de
seu tempo principalmente do Senado Romano cujas funccedilotildees haviam se transformado durante
o Principado sendo que no primeiro e segundo seacuteculo haacute uma progressiva aceitaccedilatildeo de
representantes das elites provinciais entre os senadores
Recentemente a professora Issabelle Gassino analisou detalhadamente A assembleia
dos Deuses observando que Luciano tem um cuidado muito grande na utilizaccedilatildeo dos termos
que vinculam o diaacutelogo agrave tradiccedilatildeo democraacutetica ateniense (GASSINO 20122013 93-95)
Gassino observa que o uso do termo assembleia em grego ἐκκλησία refere-se agrave assembleia dos
atenienses mas que o termo tambeacutem foi utilizado para referir-se a assembleias de outras
153 Atis e Sabaacutezio satildeo deuses Friacutegios que apresentam cultos orgiaacutesticos 154 Divindade asiaacutetica vinculada a Cibele geralmente os textos referem-se a essas divindades em grupo 155 Veste persa 156 Zalmoacutelxis tem sua lenda recolhida por Heroacutedoto (Hist IV 95) Trata-se de um escravo libertado que acumula
grande riqueza Como havia sido educado pela filosofia pitagoacuterica desprezava os costumes baacuterbaros Segundo
Heroacutedoto ele teria construiacutedo um abrigo subterracircneo em sua casa onde teria passado trecircs anos escondido Haacute
muito considerado morto pela populaccedilatildeo de Samos ele reaparece o que lhe deu a fama de ser uma divindade 157 Deus egiacutepcio Anuacutebis que tem cabeccedila de chacal natildeo de catildeo como afirma Luciano 158 Boi Apis cultuado no Egito 159 ldquoἈλλ ὁ Ἄττης γε ὦ Ζεῦ καὶ ὁ Κορύβας καὶὁ Σαβάζιος πόθεν ἡμῖν ἐπεισεκυκλήθησαν οὗτοι ἢ ὁ Μίθρης
ἐκεῖνος ὁ Μῆδος ὁ τὸν κάνδυν καὶ τὴν τιάραν οὐδὲ ἑλληνίζων τῇ φωνῇ ὥστε οὐδ ἢν προπίῃ τις ξυνίησι
τοιγαροῦν οἱ Σκύθαι ταῦτα ὁρῶντες οἱ Γέται αὐτῶν μακρὰ ἡμῖν χαίρειν εἰπόντες αὐτοὶ ἀπαθανατίζουσι καὶ θεοὺς
χειροτονοῦσιν οὓς ἂν ἐθελήσωσι τὸν αὐτὸν τρόπον ὅνπερ καὶ Ζάμολξις δοῦλος ὢν παρενεγράφη οὐκ οἶδ ὅπως
διαλαθών
Καίτοι πάντα ταῦτα ὦ θεοί μέτρια σὺ δέ ὦ κυνοπρόσωπε καὶ σινδόσιν ἐσταλμένε Αἰγύπτιε τίς εἶ ὦ βέλτιστε
ἢ πῶς ἀξιοῖς θεὸς εἶναι ὑλακτῶν τί δὲ βουλόμενος καὶ ὁ ποικίλος οὗτος ταῦρος ὁ Μεμφίτης προσκυνεῖται καὶ χρᾷ
καὶ προφήτας ἔχει αἰσχύνομαι γὰρ ἴβιδας καὶ πιθήκους εἰπεῖν καὶ τράγους καὶ ἄλλα πολλῷ γελοιότερα οὐκ οἶδ
ὅπως ἐξ Αἰγύπτου παραβυσθέντα ἐς τὸν οὐρανόν ἃ ὑμεῖς ὦ θεοί πῶς ἀνέχεσθε ὁρῶντες ἐπ ἴσης ἢ καὶ μᾶλλον
ὑμῶν προσκυνούμενα ἢ σύ ὦ Ζεῦ πῶς φέρεις ἐπειδὰν κριοῦ κέρατα φύσωσί σοιrdquo
111
cidades160 ldquoE jaacute que foi convocada uma assembleia (ἐκκλησία) para tratar desse assunto que
cada um emita abertamente a sua opiniatildeo e proceda agrave acusaccedilatildeordquo (Luciano Deor Conc 1) ldquoEm
sessatildeo (Ἐκκλησίας) convocada nos termos legais no seacutetimo dia do mecircs Metagiacutetnion sendo
Zeus ldquopresidenterdquo Posiacutedon ldquovice-presidenterdquo Apolo ldquovogalrdquo e Momo filho de Noite
secretaacuterio Hipno emitiu a seguinte propostardquo (Luciano Deor Conc 14)
Que seja convocada uma Assembleia (ἐκκλησίαν) [a ter lugar] no
Olimpo no [dia do] solstiacutecio de Inverno e que sejam eleitos como
juiacutezes sete deuses de pleno direito sendo trecircs da antiga Assembleia do
tempo de Crono e quatro de entre os doze [deuses] entre os quais Zeus
(Luciano Deor Conc 15)
Outro termo utilizado por Luciano eacute ξυνέδριον161 que designa a assembleia de cidades
gregas e natildeo gregas por exemplo para o Senado Romano (Poliacutebio I 11 1 apud GASSINO
20122013 94) ldquoRealmente mdash afirmo eu mdash muitos natildeo contentes com o facto de
comparticiparem connosco das nossas assembleias (ξυνεδρίων) e de se banquetearem em peacute de
igualdade connosco []rdquo (Luciano Deor Conc 3) ldquoDe facto a origem de tais ilegalidades e
a causa de a nossa assembleia (ξυνέδριον) andar abastardada foste tu oacute Zeus []rdquo (Luciano
Deor Conc 7) ldquoQue Hermes convoque a reunirem-se todos quantos reclamem pertencer agrave
nossa Assembleia (ξυνέδριον) e que esses se apresentem trazendo consigo testemunhas
ajuramentadas e certidotildees de nascimentordquo (Luciano Deor Conc 15)
Aleacutem desses dois termos Luciano usa o termo βουλή ldquoAprouve ao Senado (βουλῇ) e
ao Povordquo (Luciano Deor Conc 15)
Noacutes entendemos que duas anaacutelises satildeo possiacuteveis desse contexto Uma restrita que veja
esse texto em consonacircncia com a carta de Marco Aureacutelio como Oliver coloca uma vez que
nesse documento epigraacutefico haacute elementos para pensar a inclusatildeo de novos membros nas listas
do Areoacutepago ateniense Nesse periacuteodo a cidadania ateniense conserva aspectos nostaacutelgicos do
periacuteodo democraacutetico mas natildeo tem as mesmas funccedilotildees poliacuteticas de quando a cidade era
independente (OLIVER 1980 303-313) Luciano ainda fala de outro fato contemporacircneo que
eacute o pagamento de taxas dos metecos (Luciano Deor Conc 3) Observemos que Luciano natildeo
fala dessa instituiccedilatildeo especiacutefica mas em termos mais geneacutericos Como observa Gassino se
Luciano quisesse se referir agrave reforma do Areoacutepago proposta por Marco Aureacutelio teria usado um
160 Basicamente a autora cita Aristoacuteteles em sua Poliacutetica Tucidides que usa esse termo para as assembleias
homeacutericas e para a Apella espartana (apud GASSINO 20122013 93) 161 Segundo Gassino ldquoσυνέδριον ξυνέδριον eacute geralmente utilizada para designar uma assembleia poliacutetica em
situaccedilotildees variadasrdquo (GASSINO 20122013 94)
112
vocabulaacuterio mais especiacutefico (GASSINO 20122013 98) Entretanto nos apartamos da anaacutelise
dessa autora quando ela enfatiza que esse documento trata muito mais dos deuses e suas
contradiccedilotildees que da poliacutetica de seu tempo Acreditamos que ela usa um conceito bastante
restrito de poliacutetica que natildeo consegue observar os liames de uma teologia poliacutetica
Esse dado nos leva a crer que sua assembleia deve ser analisada com elementos
contextuais mais amplos jaacute que a mesma pode se referir como propomos ao Senado No
Principado segundo Hammond (1957 74-81) haacute a crescente participaccedilatildeo de membros das
elites provinciais no Senado o que eacute um desconforto semelhante agravequele expresso por Momo
sobre Dioniso repetido no diaacutelogo final
Considerando que muitos estrangeiros () jaacute encheram o ceacuteu a ponto de a
nossa sala de banquetes estar a abarrotar com uma multidatildeo de tipos
barulhentos que falam muitas liacutenguas de uns fulanos juntos aos magotes
(Luciano Deor Conc 14)162
O desconforto com a liacutengua incompreensiacutevel coloca outros mecanismos de poder em
evidecircncia uma vez que esses deuses tecircm dificuldade em se comunicar com os outros Assim a
capacidade de convencimento fica obliterada Essa participaccedilatildeo desloca o eixo do poder
estabelecido uma vez que as importantes decisotildees natildeo dependem mais das elites da peniacutensula
itaacutelica Soma-se a isso o fato de os Antoninos estarem vinculados agraves elites romanas radicadas
na Hispacircnia
Outro elemento de aproximaccedilatildeo que se expressa no final do decreto de Momo ressalta
o poderio econocircmico das divindades ao dizer que
Quanto agravequeles aos quais jaacute foram dedicados templos ou altares sacrificiais
que lhes sejam retiradas as suas imagens e que estas sejam substituiacutedas pelas
de Zeus ou de Hera ou de Apolo ou de um qualquer dos outros mas a cidade
pode erigir-lhes um tuacutemulo e erguer-lhes uma coluna em vez de um altar
(Luciano Deor Conc 18)163
O procedimento comum em uma assembleia eacute que a decisatildeo seja votada Nesse caso o
decreto de Momo destituiria a maioria dos seus componentes logo Zeus natildeo coloca a decisatildeo
para ser votada Observemos a conclusatildeo de sua fala ldquoJustiacutessimo oacute Momo Entatildeo quem eacute a
162 ldquoἘπειδὴ πολλοὶ τῶν ξένων οὐ μόνον Ἕλληνες ἀλλὰ καὶ βάρβαροι οὐδαμῶς ἄξιοι ὄντες κοινωνεῖν ἡμῖν τῆς
πολιτείας παρεγγραφέντες οὐκ οἶδα ὅπως καὶ θεοὶ δόξαντες ἐμπεπλήκασι μὲν τὸν οὐρανὸν ὡς μεστὸν εἶναι τὸ
συμπόσιον ὄχλου ταραχώδους πολυγλώσσων τινῶν καὶ ξυγκλύδων ἀνθρώπων []rdquo 163 ldquoὁπόσοι δὲ ἤδη ναῶν ἢ θυσιῶν ἠξιώθησαν ἐκείνων μὲν καθαιρεθῆναι τὰ ἀγάλματα ἐντεθῆναι δὲ ἢ Διὸς ἢ
Ἥρας ἢ Ἀπόλλωνος ἢ τῶν ἄλλων τινός ἐκείνοις δὲ τάφον χῶσαι τὴν πόλιν καὶ στήλην ἐπιστῆσαι ἀντὶ βωμοῦrdquo
113
favor que levante o braccedilo ou melhor fica assim mesmo pois apercebo-me de que haveraacute
muitos que natildeo iriam aprovarrdquo164 (Luciano Deor Conc 19)
No diaacutelogo Zeus traacutegico que iremos analisar a seguir Zeus estaacute perturbado pelo debate
filosoacutefico acerca da natureza das divindades e expotildee o problema a Hera da seguinte maneira
Eacute que oacute Hera ainda ontem o estoico Timocles e o epicurista Damis natildeo sei a
que propoacutesito iniciaram um diaacutelogo em que discutiam a respeito da
Providecircncia na presenccedila de grande nuacutemero de pessoas distintas fato este que
ainda mais me afligiu Afirmava Damis que os deuses natildeo existem e que
muito menos vigiam e governam as coisas humanas enquanto o bom do
Timocles tentava falar em nossa defesa Depois juntou-se uma grande
multidatildeo mas a discussatildeo natildeo ficou por aqui De facto separaram-se tendo
no entanto combinado analisar a questatildeo num outro dia e agora estaacute toda a
gente na expectativa de saber qual dos dois vencera e parecera mais verdadeiro
na sua argumentaccedilatildeo Estais a ver o perigo como os nossos interesses estatildeo
numa situaccedilatildeo criacutetica dependentes de um soacute homem E das duas
necessariamente uma ou somos rejeitados caso as pessoas entendam que noacutes
natildeo passamos de meros nomes ou continuamos a ser homenageados como
dantes se Timocles vencer o pleito (Luciano J trag 4) 165
Zeus se preocupa com esse fato e solicita o conselho de algumas divindades que estatildeo
proacuteximas Hermes sugere a Zeus que esse convoque uma assembleia dos deuses para debater o
caso o que eacute apoiado por Hera e tem a reprovaccedilatildeo de Atena que acha que o tema natildeo deve ser
divulgado
Entretanto Hermes lembra a Zeus que qualquer atitude que ele tomar sozinho diante
desse problema ldquovatildeo considerar que tu agiste como um tirano pelo fato de natildeo convocares as
pessoas para um assunto de maior gravidade e interesse de todosrdquo (Luciano I Trag 5)166
Apoacutes a proclamaccedilatildeo que convoca a assembleia comeccedila o problema que de fato nos
interessa a disposiccedilatildeo dos deuses na assembleia conforme Zeus
Zeus ndash Fizeste uma beliacutessima proclamaccedilatildeo oacute Hermes e eis que jaacute estatildeo vindo
em chusma Portanto vai os recebendo e colocando segundo o valor de cada
um ou seja conforme o material e a arte de cada um nos lugares da frente
164 ldquoΖΕΥΣ
Δικαιότατον ὦ Μῶμε καὶ ὅτῳ δοκεῖ ἀνατεινάτω τὴν χεῖρα μᾶλλον δέ οὕτω ιγνέσθω
πλείους γὰρ οἶδ ὅτι ἔσονται οἱ μὴ χειροτονήσοντεςrdquo 165 ldquoΖΕΥΣ
Τιμοκλῆς ὦ Ἥρα ὁ Στωϊκὸς καὶ Δᾶμις ὁ Ἐπικούρειος χθές οὐκ οἶδα ὅθεν σφίσιν ἀρξαμένου τοῦ λόγου προνοίας
πέρι διελεγέσθην παρόντων μάλα συχνῶν καὶ δοκίμων ἀνθρώπων ὅπερ μάλιστα ἠνίασέ με καὶ ὁ μὲν Δᾶμις οὐδ
εἶναι θεοὺς ἔφασκεν οὐχ ὅπως τὰ γινόμενα ἐπισκοπεῖν ἢ διατάττειν ὁ Τιμοκλῆς δὲ ὁ βέλτιστος ἐπειρᾶτο
συναγωνίζεσθαι ἡμῖν εἶτα ὄχλου πολλοῦ ἐπιρρυέντος οὐδὲν πέρας ἐγένετο τῆς συνουσίας διελύθησαν γὰρ
εἰσαῦθις ἐπισκέψεσθαι τὰ λοιπὰ συνθέμενοι καὶ νῦν μετέωροι πάντες εἰσίν ὁπότερος κρατήσει καὶ ἀληθέστερα
δόξει λέγειν ὁρᾶτε τὸν κίνδυνον ὡς ἐν στενῷ παντάπασι τὰ ἡμέτερα ἐν ἑνὶ ἀνδρὶ κινδυνευόμενα καὶ δυοῖν
θάτερον ἢ παρεῶσθαι ἀνάγκη ὀνόματα μόνον εἶναι δόξαντας ἢ τιμᾶσθαι ὥσπερ πρὸ τοῦ ἢν ὁ Τιμοκλῆς ὑπέρσχῃ
λέγωνrdquo 166 ldquo[] καὶ δόξεις τυραννικὸς εἶναι μὴ κοινούμενος περὶ τῶν οὕτω μεγάλων καὶ κοινῶν ἅπασινrdquo
114
os de ouro a seguir estes os de prata depois os de marfim depois os de
bronze ou de maacutermore e entre estes os que satildeo de Fiacutedias de Alcacircmenes de
Miron de Eufranor ou de outros artistas prestigiados Quanto aqui a esses os
da raleacute e feitos sem arte amontoa-os para aiacute a parte e em silecircncio soacute para
fazerem nuacutemero na assembleia (Luciano I Trag 7) 167
Essa disposiccedilatildeo das divindades eacute interessante pois coloca pontos importantes como o
conceito de imagem antigo que entende a imagem como a presenccedila do ser representado ou
seja a estaacutetua da deusa Nike no Senado romano significava a presenccedila da proacutepria deusa entre
os senadores No caso Luciano brinca com isso e questiona por meio de Hermes como
selecionar as divindades enfatizando o artista que realizou aquele trabalho ou o material que ele
continha
Uma visatildeo superficial do funcionamento das assembleias entende que cada membro
tenha isonomia entretanto como nos ensinou Richard Talbert (1984) sobre o Senado Romano
cada Senador tem uma presenccedila diferenciada por sua autoridade prestiacutegio e posiccedilatildeo econocircmica
No Principado o Senado paulatinamente deixa de ser uma instituiccedilatildeo composta por uma elite
tradicional para acolher diferentes membros sejam eles estrangeiros ou por ter a quantia de um
milhatildeo de sesteacutercios Muitas vezes o Imperador dava essa quantia agravequeles que ele desejava no
Senado satildeo as adlectio Na anaacutelise que fazemos a metaacutefora luciacircnica opotildee antiguidade da
famiacutelia e sua autoridade moral ao dinheiro que muitos tecircm Ou seja ter uma estaacutetua de ouro
puro significa mais do que ser uma deusa helecircnica antiga
Como o Zeus luciacircnico eacute tratado com ares de tirano ele privilegia o valor intriacutenseco da
estaacutetua e natildeo a arte que essa possa ter Em uma frase raacutepida ele responde que ldquoo ouro eacute mais
estimaacutevelrdquo (Luciano I Trag 7)168 A ironia luciacircnica aproxima-se mais uma vez da realidade
histoacuterica em que ele vive
Hermes- Compreendo mandas-me sentaacute-los segundo o seu valor
pecuniaacuterio e natildeo segundo sua excelecircncia artiacutestica e os seus meacuteritos
Nesse caso voacutes os de ouro vinde ocupar os lugares da frente Estaacutes a
me parecer oacute Zeus que somente os deuses baacuterbaros iratildeo ocupar os
lugares da frente pois quanto aos deuses gregos () feitos segundo as
regras da arte (Luciano I Trag 7-8)169
167 ldquoΖΕΥΣ
Εὖ γε ὦ Ἑρμῆ ἄριστα κεκήρυκταί σοι καὶ συνίασι γὰρ ἤδη ὥστε παραλαμβάνων κάθιζεαὐτοὺς κατὰ τὴν ἀξίαν
ἕκαστον ὡς ἂν ὕλης ἢ τέχνης ἔχῃ ἐν προεδρίᾳ μὲν τοὺς χρυσοῦς εἶτα ἐπὶ τούτοις τοὺς ἀργυροῦς εἶτα ἑξῆς ὁπόσοι
ἐλεφάντινοι εἶτα τοὺς χαλκοῦς ἢ λιθίνους καὶ ἐν αὐτοῖς τούτοις οἱ Φειδίου μὲν ἢ Ἀλκαμένους ἢ Μύρωνος ἢ
Εὐφράνορος ἢ τῶν ὁμοίων τεχνιτῶν προτετιμήσθων οἱ συρφετώδεις δὲ οὗτοι καὶ ἄτεχνοι πόρρω που
συνωσθέντες σιωπῇ ἀναπληρούντων μόνον τὴν ἐκκλησίανrdquo 168 ldquoἀλλ ὁ χρυσὸς ὅμως προτιμητέοςrdquo 169 ldquoΕΡΜΗΣ
115
A oposiccedilatildeo entre gregos e baacuterbaros refere-se mais a uma colocaccedilatildeo referente ao poder
que tais homens tecircm que agraves suas escolhas identitaacuterias Deve-se ver aqui uma criacutetica agrave postura
de valorizaccedilatildeo das riquezas em detrimento da formaccedilatildeo soacutelida dos indiviacuteduos formados de
acordo com a Paideia helecircnica ou a tradicionalidade de algumas famiacutelias A seleccedilatildeo coloca
Poseidon o deus tradicional helecircnico atraacutes de Anuacutebis que tem uma estaacutetua de ouro maciccedilo o
que ao nosso entendimento eacute uma metaacutefora das assembleias de seu tempo principalmente do
Senado
Assim como na Assembleia dos deuses Luciano nos lembra da multiplicidade de
idiomas e dos constrangimentos que essa traz Uma vez que as dificuldades em comeccedilar a
reuniatildeo satildeo diversas nem todos entendem o idioma grego Podemos imaginar a presenccedila dos
primeiros gauleses no Senado Romano inseridos por Juacutelio Ceacutesar a sensaccedilatildeo eacute similar
Membros importantes da assembleia que natildeo falam o idioma utilizado na reuniatildeo (Luciano I
Trag 13)
Entendemos que os dois textos apresentam um debate sobre a religiatildeo luciacircnica mas
que sua interpretaccedilatildeo precisa observar a articulaccedilatildeo poliacutetica no interior das assembleias
representadas nos dois textos uma vez que ela se configura no interior da cultura poliacutetica
romana
Noacutes entendemos que a presenccedila de Momo nesse texto expressa a postura luciacircnica da
necessidade de se expressar francamente por meio da Parreacutesia atributo necessaacuterio para as
assembleias mas que tem seu lugar diminuiacutedo no Impeacuterio Romano Jaacute que exercer a parreacutesia
coloca o orador em riscos o riso que Momo causa deve ser entendido como possibilidade
perigosa do falar mesmo que seja necessaacuterio Quando o debate busca um culpado entre os
homens ele volta-se contra as contradiccedilotildees existenciais humanas as muacuteltiplas narrativas
mitoloacutegicas em suas contradiccedilotildees os oraacuteculos confusos as estoacuterias fantaacutesticas Zeus responde
assim aos seus inuacutemeros argumentos
Zeus mdash Deixemos oh deuses este fulano asnear pois ele eacute sempre truculento
e amigo de criticar Na verdade como disse o admiraacutevel Demoacutestenes acusar
censurar e criticar e muito faacutecil e estaacute ao alcance de todos ao passo que dar
sugestotildees no sentido de melhorar a presente situaccedilatildeo e coisa proacutepria de um
conselheiro verdadeiramente sensato e eacute isso mesmo tenho a certeza que vos
outros ireis fazer agora que este tipo jaacute estaacute calado (Luciano I Trag 23)170
Μανθάνω πλουτίνδην κελεύεις ἀλλὰ μὴ ἀριστίνδην καθίζειν καὶ ἀπὸ τιμημάτων ἥκετ οὖν εἰς τὴν προεδρίαν
ὑμεῖς οἱ χρυσοῖ ἐοίκασι δ οὖν ὦ Ζεῦ οἱ βαρβαρικοὶ προεδρεύσειν μόνοι ὡς τούς γε Ἕλληνας ὁρᾷς ὁποῖοί εἰσι
χαρίεντες μὲν καὶ εὐπρόσωποι καὶ κατὰ τέχνην ἐσχηματισμένοι []rdquo 170 ldquoΖΕΥΣ
116
Zeus abusando do poder que lhe eacute conferido ao presidir a assembleia desqualifica a postura da
divindade e evita debater os pontos constrangedores que esse evidencia Tal atitude apresenta uma
imagem com traccedilos autoritaacuterios de Zeus como vemos mais vezes nesta Tese A anaacutelise dos textos mostra
o diaacutelogo luciacircnico com a cultura poliacutetica de seu tempo principalmente nesse caso com o
funcionamento de uma assembleia que nos dois casos pode ser a metaacutefora do Senado e das assembleias
locais diante das mudanccedilas experimentadas no Principado
32 Diaacutelogo dos mortos quando o mito se encontra com a Histoacuteria
Os Diaacutelogos dos Mortos171 de Luciano de Samoacutesata foram bastante divulgados no
Brasil Por exemplo existem pelo menos quatro traduccedilotildees cuidadosas no mercado editorial
brasileiro172 Essa ampla divulgaccedilatildeo refere-se agrave atualidade desse texto que consegue apresentar
debates profundos em breves diaacutelogos Partimos do pressuposto de que esses diaacutelogos
apresentam questotildees atuais e inquietantes para os leitores contemporacircneos e principalmente
questionam o proacuteprio tempo em que seu autor escreveu Os textos luciacircnicos satildeo a expressatildeo
de uma profunda criacutetica social principalmente a partir da oposiccedilatildeo entre pobres e ricos como
afirma Rostovtzeff (apud BRANDAtildeO 19941995 84) Nosso ponto de vista vai aleacutem pois
afirmamos que existe nos escritos luciacircnicos uma seacuterie de colocaccedilotildees que transcendem a mera
criacutetica social e reverberam em uma apreciaccedilatildeo da cultura poliacutetica do Impeacuterio Greco-romano
Franccedilois Jouan no texto Mythe histoire et philosophie dans les ldquoDialogues des Mortsrdquo
compara Luciano a um jornalista iconoclasta dada a intenccedilatildeo em questionar os dogmas sociais
(JOUAN 1994 27) Haacute no texto luciacircnico um formato aacutegil que permite maior alcance de sua
mensagem Como ressaltamos anteriormente provavelmente esses textos eram lidos em voz
alta para uma audiecircncia antes de peccedilas maiores
Natildeo podemos esquecer que o Impeacuterio Romano destarte a ampla divulgaccedilatildeo da escrita
ainda era uma sociedade basicamente oral Nesse sentido os textos eram lidos antes de sua
publicaccedilatildeo O uso de personagens presentes na memoacuteria cultural facilitava a construccedilatildeo dos
argumentos em um procedimento simples e eficaz
Τοῦτον μέν ὦ θεοί ληρεῖν ἐάσωμεν ἀεὶ τραχὺν ὄντα καὶ ἐπιτιμητικόν ὡς γὰρ ὁ θαυμαστὸς Δημοσθένης ἔφη τὸ
μὲν ἐγκαλέσαι καὶ μέμψασθαι καὶ ἐπιτιμῆσαι ῥᾴδιον καὶ παντός τὸ δὲ ὅπως τὰ παρόντα βελτίω γενήσεται
συμβουλεῦσαι τοῦτ ἔμφρονος ὡς ἀληθῶς συμβούλου ὅπερ οἱ ἄλλοι εὖ οἶδ ὅτι ποιήσετε καὶ τούτου σιωπῶντοςrdquo 171 Nas citaccedilotildees dos Diaacutelogos dos mortos usamos a disposiccedilatildeo proposta no VII volume da Loeb Classical Library
editada por M D Macleod (2002) 172 Custoacutedio Maqueijo (2012) Henrique G Murachco (2007) Ameacuterico da Costa Ramalho (1998) Maria Celeste
Consolin Dezotti (1996)
117
Como o mito eacute uma narrativa conhecida por todos seus personagens povoam o
imaginaacuterio social e permitem ser o veiacuteculo para propagar determinadas concepccedilotildees de mundo
Luciano usa desse expediente nos seus diaacutelogos expressando suas ideias por meio da memoacuteria
cultural disponiacutevel em um profundo e criativo trabalho literaacuterio no qual interagem memoacuteria
miacutetica e personagens histoacutericos mesmo que estejam envoltos em uma motricidade miacutetica
latente Como afirma Mikhail Bakhtin ldquoos heroacuteis miacuteticos e as personalidades histoacutericas do
passado satildeo deliberada e acentuadamente atualizados falam e atuam na zona de um contato
familiar com a atualidade inacabadardquo (BAKHTIN 2010 123)
Os Diaacutelogos dos mortos satildeo compostos por trinta diaacutelogos curtos muito distantes
daqueles produzidos por Platatildeo Entretanto como colocou Bakhtin o diaacutelogo socraacutetico eacute
tambeacutem um gecircnero muito ligado agrave oralidade (BAKHTIN 2010 124) Luciano combina a
estrutura deste com o riso da comeacutedia Esse novo gecircnero apresenta uma forma hiacutebrida diaacutelogo
filosoacutefico e comeacutedia O escritor tinha clara a mescla de gecircneros como coloca no opuacutesculo
Dupla Acusaccedilatildeo173 ou Agravequele que diz que eacutes um Prometeu em seus discursos174
A tradiccedilatildeo filosoacutefica de origem socraacutetica estaacute na gecircnese drsquoOs diaacutelogos dos mortos tanto
pelo platonismo presente por meio da forma dialogal quanto pelo cinismo evidenciado na
presenccedila de alguns de seus principais expoentes e na criacutetica social impiedosa
O platonismo conservou um corpus documental gigantesco substanciado pelos diaacutelogos
platocircnicos e por diversos autores que lhe sucederam na Academia o que o diferencia bastante
do cinismo cuja tradiccedilatildeo escrita eacute bastante lacunar Como ressalta Olimar Flores Junior (1999
32) o conhecimento moderno do cinismo antigo deve muito ao anedotaacuterio que se construiu
sobre esses personagens
A anedota ciacutenica foi o principal veiacuteculo para conservar as premissas dessa escola
filosoacutefica o que dificulta seu estudo uma vez que as breves narrativas estatildeo presentes em
autores que criticam ou exaltam a praacutetica filosofia ciacutenica ou em escritores semelhantes a
Luciano que se utilizam desses personagens com o intuito de expressar suas proacuteprias criacuteticas
ou mesmo tendo sua atuaccedilatildeo subserviente aos desiacutegnios da narrativa literaacuteria Poucos textos satildeo
provenientes das penas dos ciacutenicos pois na maioria dos casos suas ideias satildeo encontradas em
escritores que natildeo fazem parte do movimento sendo simpatizantes ou criacuteticos
Nos Diaacutelogos dos Mortos aparecem personagens que satildeo de trecircs ordens histoacutericos
miacuteticos e literaacuterios Nossa hipoacutetese eacute que esses diaacutelogos satildeo textos profundamente
173 Escrito em que Luciano eacute acusado por abandonar a Retoacuterica e por deformar o Diaacutelogo Filosoacutefico 174 Texto luciacircnico em que ele comenta a alcunha de Prometeu dada por um amigo e sugere que essa ocorreu por
que ele harmonizou o diaacutelogo e a comeacutedia
118
questionadores da cultura poliacutetica romana principalmente naquilo que se convencionou chamar
de teologia poliacutetica Nesse sentido o Hades luciacircnico possibilita o cenaacuterio ideal para o
questionamento da vida e das reaccedilotildees diante da morte Pensar a vida dos homens permite a
reflexatildeo sobre a vida em comunidade suas leis a ordem estabelecida e assim a cultura poliacutetica
Toda a construccedilatildeo textual eacute elaborada nesse espaccedilo miacutetico que coaduna as diversas memoacuterias
permitindo o encontro de diversas temporalidades Os mais diferentes encontros satildeo possiacuteveis
o que fornece o mote para diversas conversas e questionamentos
Bakhtin (2010 132) jaacute havia observado que uma das caracteriacutesticas da saacutetira menipeia
era o deslocamento espacial Ao produzir a narrativa em um espaccedilo em que os personagens
representam mortos o escritor constroacutei o diaacutelogo em um ambiente de franqueza e liberdade
diante dos constrangimentos da vida social O tema central desses diaacutelogos gira em torno dos
viacutecios humanos e da cultura poliacutetica Nossa perspectiva sobre os Diaacutelogos dos Mortos dilata a
percepccedilatildeo da maioria dos criacuteticos que observam as criacuteticas sociais impliacutecitas no texto Noacutes
acreditamos que a criacutetica luciacircnica tem contornos poliacuteticos claros
Os personagens natildeo representam indiviacuteduos determinados mas satildeo elaboraccedilotildees
caricaturais dos mais diferentes viacutecios e posturas poliacuteticas Logo a intenccedilatildeo de encontrar os
agentes atacados por Luciano coloca uma falsa questatildeo jaacute que ele natildeo escreve sobre um
indiviacuteduo especiacutefico mas sobre tipos sociais caricaturados que estatildeo presentes em seu contexto
sociopoliacutetico Ele manipula esses tipos a fim de construir sua narrativa e criar empatia com o
leitor eou ouvinte
Seus personagens satildeo representaccedilotildees de tipos existentes em sua eacutepoca visto que o
viacutenculo da prosa luciacircnica com a vida eacute muito forte Por ser de qualidade esteacutetica e textual
inegaacutevel o uso desses recursos natildeo eacute obvio pois Luciano natildeo construiu um texto panfletaacuterio
mas escritos com inestimaacutevel valor literaacuterio que expressam sentidos sobre o mundo que o cerca
O gecircnero textual fornece os elementos baacutesicos para a compreensatildeo de como o escritor dispotildee
de diversos personagens que analisamos a fim de decompor os acordes histoacutericos dedilhados
para a construccedilatildeo deste registro discursivo
Em primeiro lugar temos os personagens claacutessicos que compotildeem a corte de Hades Satildeo
os moradores do mundo inferior Caronte o velho barqueiro que desde sempre faz a travessia
do rio Aqueronte Ceacuterbero catildeo miacutetico de trecircs cabeccedilas que vigia a entrada do Hades para
impedir que algum vivo adentre aquele mundo Pluto epiacuteteto de Hades que evidencia a riqueza
que este encerra debaixo da terra Minos proverbial rei de Creta cujas narrativas miacuteticas
alccedilaram-no agrave condiccedilatildeo de juiz no mundo dos mortos jaacute que sua sabedoria e justiccedila seriam
incontestaacuteveis Eacuteaco outro juiz do Hades Perseacutefone esposa de Plutatildeo
119
Aos deuses e gecircnios do mundo inferior devemos somar dois personagens Hermes e
Poacutelux O primeiro eacute o senhor dos caminhos mensageiro dos deuses cujas atribuiccedilotildees podemos
resumir em um trecho dos Diaacutelogos dos Deuses no qual o mesmo reclama de suas funccedilotildees
E porque natildeo hei-de dizer se tenho tantas ocupaccedilotildees a trabalhar sozinho e
disperso por tantos serviccedilos Realmente logo de madrugada tenho de me
levantar para varrer a sala de jantar estender a toalha de mesa deixar tudo
arrumado apresentar-me diante de Zeus levar as sua mensagens fazendo de
correio para cima e para baixo e mal regresso todo coberto de poacute tenho de
lhe servir a ambroacutesia e antes de ele ter arranjado este novo escanccedilatildeo era eu
proacuteprio que lhe servia o neacutectar Mas o mais terriacutevel de tudo eacute que sou o uacutenico
de entre todos os deuses que natildeo durmo de noite pois mesmo entatildeo tenho
de levar as almas a Plutatildeo de servir de condutor de mortos e de estar presente
no tribunal E como natildeo me bastassem as funccedilotildees diurnas mdash assistir agraves
competiccedilotildees de luta ser arauto nas assembleias e orientar os oradores mdash
ainda por cima sou muito solicitado para participar em cerimoacutenias fuacutenebres
No entanto os filhos de Leda passam dia sim dia natildeo um no ceacuteu e o outro
no Hades ao passo que eu sou obrigado a fazer todos os dias o mesmo que
eles E os filhos de Alcmena e de Seacutemele nascidos de miacuteseras mulheres
passam a vida tranquilamente em banquetes enquanto eu filho da filha de
Atlas Maia sou criado deles Ainda agora acabo de chegar de Siacutedon de casa
da filha de Cadmo aonde Zeus me enviou a fim de observar como estava a
jovem e ainda eu natildeo tinha retomado focirclego acaba de me mandar ir a Argos
visitar Daacutenae laquoe depois mdash disse ele mdash vai daiacute para a Beoacutecia e de caminho
daacute uma olhadela a Antiacuteoperaquo Numa palavra estou esgotado Se pudesse
pedia com todo o gosto que me vendessem como os pobres escravos laacute da
terra (Luciano D Deor 4 276)175
O mensageiro dos deuses Hermes faz a importante funccedilatildeo de ser o psicopompo
ou seja aquele que encaminha a alma dos mortos ao mundo inferior Ele leva os mortos e os
entrega ao barqueiro Assim os primeiros diaacutelogos tratam justamente de suas relaccedilotildees com o
barqueiro e com os outros mortos
Hermes eacute o deus oliacutempico vinculado ao logos o que remete aos epiacutetetos
disponiacuteveis por exemplo no Hino Homeacuterico a Hermes Ao analisar esta deidade Vernant
afirma que ldquoNatildeo haacute nele nada fixo estaacutevel permanente circunscrito nem fechado Ele
175 ldquoΕΡΜΗΣ
Τί μὴ λέγω ὃς τοσαῦτα πράγματα ἔχω μόνος κάμνων καὶ πρὸς τοσαύτας ὑπηρεσίας διασπώμενος ἕωθεν μὲν γὰρ
ἐξαναστάντα σαίρειν τὸ συμπόσιον δεῖ καὶ διαστρώσαντα τὴν κλισίαν εὐθετίσαντά τε ἕκαστα παρεστάναι τῷ Διὶ
καὶ διαφέρειν τὰς ἀγγελίας τὰς παρ αὐτοῦ ἄνω καὶ κάτω ἡμεροδρομοῦντα καὶ ἐπανελθόντα ἔτι κεκονιμένον
παρατιθέναι τὴν ἀμβροσίαν πρὶν δὲ τὸν νεώνητον τοῦτον οἰνοχόον ἥκειν καὶ τὸ νέκταρ ἐγὼ ἐνέχεον τὸ δὲ πάντων
δεινότατον ὅτι μηδὲ νυκτὸς καθεύδω μόνος τῶν ἄλλων ἀλλὰ δεῖ με καὶ τότε τῷ Πλούτωνι ψυχαγωγεῖν καὶ
νεκροπομπὸν εἶναι καὶ παρεστάναι τῷ δικαστηρίῳ οὐ γὰρ ἱκανά μοι τὰ τῆς ἡμέρας ἔργα ἐν παλαίστραις εἶναι καὶ
ταῖς ἐκκλησίαις κηρύττειν καὶ ῥήτορας ἐκδιδάσκειν ἀλλ ἔτι καὶ νεκρικὰ συνδιαπράττειν μεμερισμένον
καίτοι τὰ μὲν τῆς Λήδας τέκνα παρ ἡμέραν ἑκάτερος ἐν οὐρανῷ ἢ ἐν ᾅδου εἰσίν ἐμοὶ δὲ καθ ἑκάστην
ἡμέραν κἀκεῖνα καὶ ταῦτα ποιεῖν ἀναγκαῖον καὶ οἱ μὲν Ἀλκμήνης καὶ Σεμέλης ἐκ γυναικῶν δυστήνων γενόμενοι
εὐωχοῦνται ἀφρόντιδες ὁ δὲ Μαίας τῆς Ἀτλαντίδος διακονοῦμαι αὐτοῖς καὶ νῦν ἄρτι ἥκοντά με ἀπὸ Σιδῶνος
παρὰ τῆς Κάδμου θυγατρός ἐφ ἣν πέπομφέ με ὀψόμενον ὅ τι πράττει ἡ παῖς μηδὲ ἀναπνεύσαντα πέπομφεν αὖθις
εἰς τὸ Ἄργος ἐπισκεψόμενον τὴν Δανάην εἶτ ἐκεῖθεν εἰς Βοιωτίαν φησίν ἐλθὼν ἐν παρόδῳ τὴν Ἀντιόπην ἰδέ
καὶ ὅλως ἀπηγόρευκα ἤδη εἰ γοῦν δυνατὸν ἦν ἡδέως ἂν ἠξίωσα πεπρᾶσθαι ὥσπερ οἱ ἐν γῇ κακῶς δουλεύοντεςrdquo
120
representa no espaccedilo e no mundo humano o movimento a passagem a mudanccedila de estado as
transiccedilotildees o contato com elementos estranhosrdquo (VERNANT 1990 192) Seus epiacutetetos ligam-
no aos assaltos por atravessar muros e portas fechadas Ele reside nas encruzilhadas nos
caminhos sobre os tuacutemulos Aleacutem disso ele eacute mensageiro dos deuses e estaacute presente nas trocas
comerciais nos debates da aacutegora e nas competiccedilotildees Eacute testemunha dos acordos treacuteguas e
juramentos bem como mediador entre os homens e os deuses Quando um diaacutelogo caiacutea no
silecircncio era costume dos gregos dizerem Hermes passa (VERNANT 1990 192-193) Nos
diaacutelogos luciacircnicos Hermes representa a encruzilhada das possibilidades existenciais uma vez
que estaacute presente entre os vivos os mortos e os imortais
Poacutelux um dos Dioacutescoros tem a permissatildeo de permanecer um dia entre os mortos e
um com os vivos Tambeacutem apresenta caraacuteter hiacutebrido o que permite que o filoacutesofo ciacutenico
Dioacutegenes lhe peccedila favores entre os vivos e especialmente que convide Menipo para zombar
da forma como os mortos agem diante da finitude A vinda de Menipo permite a tessitura de
uma fraacutegil narrativa com a conexatildeo de alguns diaacutelogos
Os outros personagens miacuteticos satildeo heroacuteis presentes na tradiccedilatildeo homeacuterica Aacutejax
Agamenon Aquiles Antiacuteloco Protesilau Menelau Paris Nireu e Tersites A presenccedila desses
heroacuteis evidencia o diaacutelogo luciacircnico com a tradiccedilatildeo homeacuterica e principalmente o desejo de
questionar os padrotildees culturais presentes nela com o desdobramento de intrigas anteriores ou
posteriores agraves epopeias homeacutericas Nesse sentido o texto luciacircnico encontra-se em uma
encruzilhada entre a inovaccedilatildeo e a permanecircncia dos recursos tradicionais Ele inova ao salientar
as contradiccedilotildees miacuteticas de cada heroacutei apresentando-o como exemplo de que o fausto terreno
serve para muito pouco ou ainda questionando o desejo de perenidade na memoacuteria humana
Nos Diaacutelogos dos Mortos natildeo adianta ter ouro riquezas ou a vaidade humana uma vez que a
morte significa o igualamento total de todas as caracteriacutesticas materiais dos seres humanos Os
mortos satildeo despidos de tudo satildeo apenas ldquocracircnios nus e sem belezardquo176 (Luciano D mort I 334)
Outros personagens miacuteticos aparecem nos diaacutelogos Existem aqueles que desafiam as
fronteiras da mortalidade e (con)fundem as narrativas miacuteticas Ressaltamos principalmente
Poacutelux que jaacute foi citado anteriormente bem como Quiacuteron Heacuteracles Trofocircnio Anfiacuteloco assim
como o ceacutelebre adivinho tebano Tireacutesias
O centauro Quiacuteron eacute indagado por seu desprezo agrave imortalidade
Menipo ndash Oacute Quiacuteron ouvi dizer que tu apesar de seres deus quiseste morrer
Quiacuteron ndash Eacute verdade o que ouviste Menipo e como vecircs estou morto
podendo ser imortal
176 ldquoΘελήσεις δὲ οὕτως κρανίον γυμνὸν ὢν καὶ ἄμορφον τῇ καλῇ σου ἐκείνῃ νύμφῃ φανῆναιrdquo
121
Menipo ndash Mas entatildeo que paixatildeo pela morte se apoderou de ti uma coisa que
a generalidade das pessoas abomina
Quiacuteron ndash Vou dizer-te mas soacute a ti que natildeo eacutes tolo eacute que deixou de me ser
agradaacutevel gozar da imortalidade
Menipo ndash Natildeo te era agradaacutevel viver e ver a luz do dia
Quiacuteron ndash Natildeo Menipo De fato eu pelo menos considero que o que eacute
agradaacutevel eacute algo de variado e natildeo simples pelo que ao viver perpetuamente
e a gozar sempre das mesmas coisas como o sol a luz a comida (e ateacute as
estaccedilotildees eram sempre as mesmas e os acontecimentos surgiam todos de
enfiada como seguindo-se uns aos outros) fartei-me de tudo isso Na
verdade o prazer consiste natildeo na constante repeticcedilatildeo do mesmo mas na
mudanccedila
Menipo ndash Diz bem Quiacuteron Mas agora como suportar as coisas aqui do
Hades jaacute que foi por opccedilatildeo tua que vieste para caacute
Quiacuteron ndash Natildeo desagradavelmente Menipo De fato a igualdade de direitos eacute
muito democraacutetica e natildeo haacute diferenccedila nesta coisa de estar agrave luz do dia ou na
escuridatildeo De resto natildeo haacute que ter sede ou fome como laacute em cima mas
estamos livres de tudo isso
Menipo - Vecirc laacute bem Quiacuteron natildeo te contradigas e que teu argumento caiacutea nos
termos anteriores
Quiacuteron ndash Por que dizes isso
Menipo - Porque se a monotomia das coisas da vida constante e sempre a
mesma acabou por te saturar entatildeo tambeacutem as coisas daqui monoacutetonas como
satildeo te hatildeo-de igualmente saturar e precisaraacutes de procurar uma qualquer
mudanccedila daqui para outra vida ndash coisa que considero impossiacutevel
Quiacuteron ndash Entatildeo que havemos de fazer Menipo
Menipo ndash Aquilo ndash creio eu ndash que soacutei dizer-se que eacute um ato de bom senso
contentarmo-nos com aquelas coisas que temos estimaacute-las e natildeo considero
nenhuma delas insuportaacutevel (Luciano D mort VIII 434-444)177
177 ldquoΜΕΝΙΠΠΟΣ
Ἤκουσα ὦ Χείρων ὡς θεὸς ὢν ἐπεθύμησας ἀποθανεῖν
ΧΕΙΡΩΝ
Ἀληθῆ ταῦτα ἤκουσας ὦ Μένιππε καὶ τέθνηκα ὡς ὁρᾷς ἀθάνατος εἶναι δυνάμενος
ΜΕΝΙΠΠΟΣ
Τίς δαί σε ἔρως τοῦ θανάτου ἔσχεν ἀνεράστου τοῖς πολλοῖς χρήματος
ΧΕΙΡΩΝ
Ἐρῶ πρὸς σὲ οὐκ ἀσύνετον ὄντα οὐκ ἦν ἔτι ἡδὺ ἀπολαύειν τῆς ἀθανασίας
ΜΕΝΙΠΠΟΣ
Οὐχ ἡδὺ ἦν ζῶντα ὁρᾶν τὸ φῶς
ΧΕΙΡΩΝ
Οὔκ ὦ Μένιππε τὸ γὰρ ἡδὺ ἔγωγε ποικίλον τι καὶ οὐχ ἁπλοῦν ἡγοῦμαι εἶναι ἐγὼ δὲ ἔζων ἀεὶ καὶ ἀπέλαυον τῶν
ὁμοίων ἡλίου φωτός τροφῆς αἱ ὧραι δὲ αἱ αὐταὶ καὶ τὰ γινόμενα ἅπαντα ἑξῆς ἕκαστον ὥσπερ ἀκολουθοῦντα
θάτερον θατέρῳ ἐνεπλήσθην οὖν αὐτῶν οὐ γὰρ ἐν τῷ αὐτῷ ἀεὶ ἀλλὰ καὶ ἐν τῷ ltμὴgt μετασχεῖν ὅλως τὸ τερπνὸν
ἦν
ΜΕΝΙΠΠΟΣ
Εὖ λέγεις ὦ Χείρων τὰ ἐν ᾅδου δὲ πῶς φέρεις ἀφ οὗ προελόμενος αὐτὰ ἥκεις
ΧΕΙΡΩΝ
Οὐκ ἀηδῶς ὦ Μένιππε ἡ γὰρ ἰσοτιμία πάνυ δημοτικὴ καὶ τὸ πρᾶγμα οὐδὲν ἔχει τὸ διάφορον ἐν φωτὶ εἶναι ἢ ἐν
σκότῳ ἄλλως τε οὔτε διψῆν ὥσπερ ἄνω οὔτε πεινῆν δεῖ ἀλλ ἀνεπιδεεῖς τούτων ἁπάντων ἐσμέν
ΜΕΝΙΠΠΟΣ
Ὅρα ὦ Χείρων μὴ περιπίπτῃς σεαυτῷ καὶ ἐς τὸ αὐτό σοι ὁ λόγος περιστῇ
ΧΕΙΡΩΝ
Πῶς τοῦτο φῄς
ΜΕΝΙΠΠΟΣ
Ὅτι εἰ τῶν ἐν τῷ βίῳ τὸ ὅμοιον ἀεὶ καὶ ταὐτὸν ἐγένετό σοι προσκορές καὶ τἀνταῦθα ὅμοια ὄντα προσκορῆ ὁμοίως
ἂν γένοιτο καὶ δεήσει μεταβολήν σε ζητεῖν τινα καὶ ἐντεῦθεν εἰς ἄλλον βίον ὅπερ οἶμαι ἀδύνατον
122
Nesse diaacutelogo haacute um desvio motivacional uma vez que nas narrativas miacuteticas
claacutessicas o centauro havia abandonado a imortalidade para se livrar dos sofrimentos causados
pela flecha envenenada de Heacuteracles O Quiacuteron luciacircnico despreza a mesmice contiacutenua da eterna
existecircncia numa contradiccedilatildeo plena jaacute que a morte natildeo lhe apresentaria nada aleacutem de um repetir
contiacutenuo Quiacuteron representa um hiacutebrido bastante complexo pois eacute um centauro e teve a
possibilidade de escolher entre a mortalidade e a imortalidade representando assim um mito
fronteira tatildeo uacutetil agraves inovaccedilotildees literaacuterias de Luciano
A imagem de Heacuteracles se manifesta no Hades o que evidencia uma contradiccedilatildeo entre
a sua divinizaccedilatildeo ndash que deveria estar no Olimpo juntamente com os outros deuses ndash e a imagem
do heroacutei que se encontra no Hades A ascensatildeo do filho de Alcmena como deus eacute uma
importante narrativa miacutetica uma vez que a mesma foi usada como justificativa para a
divinizaccedilatildeo dos Imperadores romanos O Heacuteracles luciacircnico questiona a ascensatildeo de um
homem agrave condiccedilatildeo de deus independentemente de suas qualidades origens ou posiccedilatildeo topos
que eacute retomado durante a construccedilatildeo da imagem do Alexandre luciacircnico Como vimos na
anaacutelise da Assembleia dos Deuses este eacute um tema recorrente no debate luciacircnico as
incoerecircncias trazidas pela apoteose de um mortal
Tireacutesias natildeo poderia faltar nesse conjunto de mortos hiacutebridos pois tambeacutem eacute um
personagem da fronteira uma vez que viveu como homem e como mulher O siacuterio brinca com
essa dupla condiccedilatildeo de gecircnero inclusive indagando a assertiva miacutetica que afirmava que Tireacutesias
havia afirmado que ser mulher era melhor O Menipo luciacircnico questiona esse mito a partir de
outro cacircnone da poesia antiga Ele cita a Medeia euripediana que reclamava da condiccedilatildeo
feminina (Euriacutepedes Medeia II 230-231 II 250-251) Em seus diaacutelogos o samosatense
recorre agrave memoacuteria helecircnica calcada sobre as narrativas miacuteticas tradicionais para atribuir-lhe
novo devir A disputa pela hegemonia das memoacuterias coloca em evidecircncias as disputas e
contradiccedilotildees que ela expressa Nesse caso especiacutefico Luciano recorre agrave memoacuteria miacutetica acerca
da condiccedilatildeo feminina a fim de colocar argumentos diversos questionar as fontes e
principalmente seus usos no presente
Trofocircnio e Anfiacuteloco178 satildeo heroacuteis vinculados a templos na Beoacutecia Assim como no
caso de Heacuteracles Luciano questiona como eles estatildeo mortos no Hades e fazem prodiacutegios em
ΧΕΙΡΩΝ
Τί οὖν ἂν πάθοι τις ὦ Μένιππε
ΜΕΝΙΠΠΟΣ
Ὅπερ οἶμαι φασί συνετὸν ὄντα ἀρέσκεσθαι καὶ ἀγαπᾶν τοῖς παροῦσι καὶ μηδὲν αὐτῶν ἀφόρητον οἴεσθαιrdquo 178 No diaacutelogo Menipo ou necromancia faz-se outra referecircncia ao Templo desse heroacutei que era considerado uma
das entradas do Hades (Luciano Nec 22)
123
seus templos Aleacutem do questionamento do mito o escritor coloca uma narrativa miacutetica bem
secundaacuteria como forma de encontrar empatia em regiotildees distintas em que esses diaacutelogos
fossem apresentados Mais uma vez os escritos levantam questotildees referentes agrave possibilidade
de homens comuns alccedilarem a condiccedilatildeo de divindades jaacute que o culto imperial vinculava-se ao
pertencimento do Imperador a uma famiacutelia divina o que fornece legitimidade aos herdeiros
Os personagens miacuteticos que compotildeem a memoacuteria cultural greco-romana se completam
com dois reis miacuteticos que satildeo personagens desses diaacutelogos e merecem atenccedilatildeo especial Midas
e Tacircntalo Midas ganhou de presente dos deuses o poder de transformar em ouro tudo que
tocasse Tacircntalo foi condenado por Zeus a sentir sede e fome eternamente mesmo estando no
Hades Ele tenta beber aacutegua ou pegar os frutos de uma aacutervore os quais fogem dele (Luciano
D mort VII) O diaacutelogo eacute exposto assim
Menipo ndash Por que estaacutes chorando Tacircntalo Ou melhor por que estaacutes te
lamentando sobre ti mesmo de peacute no meio do lago
Tacircntalo ndash Porque Menipo estou morrendo de sede
Menipo ndash Eacutes preguiccediloso que natildeo te abaixas nem para beber ou mesmo por
Zeus para pegar a aacutegua na concha das matildeos
Tacircntalo ndash De nada adiantaria se eu me abaixasse porque a aacutegua me foge
quando sente que eu me aproximo E se por acaso eu a pego e a levo ateacute agrave
boca nem chego a molhar os laacutebios ela escorre pelos dedos e natildeo sei como
imediatamente deixa secas minhas matildeos (Luciano D mort VII 406-407)179
Menipo no passo seguinte questiona como um morto pode sentir sede jaacute que seu corpo
estaacute na Liacutedia e afirma que ele natildeo tem o que temer uma vez que natildeo pode morrer uma segunda
vez Luciano questiona as incoerecircncias das narrativas miacuteticas mostrando como diversas
nuanccedilas natildeo compotildeem a narrativa tradicional
O proacuteximo grupo de personagens que temos satildeo os personagens pertencentes agrave memoacuteria
histoacuterica Podemos dividi-los em dois grupos os filoacutesofos e os reis Dentre os filoacutesofos
destacam-se os ciacutenicos e eventualmente algum representante das outras escolas Como ocorre
em outros textos luciacircnicos os ciacutenicos satildeo aqueles que exprimem as criacuteticas mais contundentes
sendo muitas vezes identificados com a voz de Luciano nos textos
179 ldquoΜΕΝΙΠΠΟΣ
Τί κλάεις ὦ Τάνταλε ἢ τί σεαυτὸν ὀδύρῃ ἐπὶ τῇ λίμνῃ ἑστώς
ΤΑΝΤΑΛΟΣ
Ὅτι ὦ Μένιππε ἀπόλωλα ὑπὸ τοῦ δίψους
ΜΕΝΙΠΠΟΣ
Οὕτως ἀργὸς εἶ ὡς μὴ ἐπικύψας πιεῖν ἢ καὶ νὴ Δί ἀρυσάμενος κοίλῃ τῇ χειρί
ΤΑΝΤΑΛΟΣ
Οὐδὲν ὄφελος εἰ ἐπικύψαιμι φεύγει γὰρ τὸ ὕδωρ ἐπειδὰν προσιόντα αἴσθηταί με ἢν δέ ποτε καὶ ἀρύσωμαι καὶ
προσενέγκω τῷ στόματι οὐ φθάνω βρέξας ἄκρον τὸ χεῖλος καὶ διὰ τῶν δακτύλων διαρρυὲν οὐκ οἶδ ὅπως αὖθις
ἀπολείπει ξηρὰν τὴν χεῖρά μοιrdquo
124
Dioacutegenes180 Menipo181 Crates182 e Antiacutestenes183 aparecem em dezesseis diaacutelogos da
coletacircnea Diaacutelogos dos Mortos e suas imagens expressam o desprezo pelas veleidades
humanas e uma postura extremamente controlada diante da morte
Dioacutegenes de Sinope viveu aproximadamente entre os anos de 412 e 323 foi disciacutepulo
de Antiacutestenes Aparece em seis diaacutelogos com uma postura questionadora agrave divindade de
Heacuteracles e de Alexandre como analisamos a seguir Sua presenccedila fornece uma sutil ligaccedilatildeo
entre os diaacutelogos principalmente naqueles em que encontramos a presenccedila de outros ciacutenicos
No primeiro diaacutelogo184 ele pede a Poacutelux que procure Menipo e caso ele tenha zombado
suficientemente das coisas da Terra que o convide agrave morte para que possa zombar dos mortos
No diaacutelogo XXI haacute o encontro de Dioacutegenes com seu disciacutepulo Crates e no diaacutelogo seguinte
uma reuniatildeo destes com Antiacutestenes num coloacutequio sobre a Paideia ciacutenica
O outro ciacutenico que aparece nos diaacutelogos luciacircnicos eacute Menipo de Gadara que teria sido
disciacutepulo de Dioacutegenes Sabemos muito pouco sobre sua vida pois temos uma breve notiacutecia no
Vidas e doutrinas dos filoacutesofos ilustres de Dioacutegenes Laercio que reverbera a monumental obra
de Hemipo de Esmirna Entretanto os escritos de Luciano satildeo fundamentais para a inserccedilatildeo
dessa personagem na memoacuteria ocidental Como afirmou Bompaire (2000 182-183) os
diaacutelogos luciacircnicos satildeo responsaacuteveis por sua fama sendo conhecido principalmente pelas
saacutetiras menipeias Eacute a principal personagem ciacutenica nos diaacutelogos visto que os quatro
personagens ciacutenicos satildeo uma constante nos diaacutelogos expressando sua visatildeo de mundo e
questionando os valores estabelecidos
Luciano apresenta ainda outros filoacutesofos185 questionando sempre que possiacutevel suas
colocaccedilotildees Entretanto esses satildeo personagens secundaacuterias do diaacutelogo VI no qual aparecem a)
Pitaacutegoras criticado por proibir o consumo de favas e pela lenda de ter uma coxa de ouro b)
Empeacutedocles ridicularizado pelo suiciacutedio no vulcatildeo Etna c) Soacutecrates e seu contato com os
jovens atenienses Aleacutem desses haacute Soacutestrato personagem citado por Luciano no texto Vida de
Demonax (4) e no Alexandre ou o falso profeta (6) Esse filoacutesofo do seacuteculo II eacute representado
como ciacutenico tendo sua imagem aproximada agrave de Heacuteracles o heroacutei ciacutenico por excelecircncia186
Neste diaacutelogo Soacutestrato conversa com Minos
180 Dioacutegenes aparece nos diaacutelogos I XI XIII XXI XXII e XXIX 181 Menipo aparece nos diaacutelogos II III IV VVI VII VIII IX X XX e XXX 182 Crates eacute um dos personagens dos diaacutelogos XXI e XXII 183 Antiacutetenes estaacute no diaacutelogo XXII 184 Seguiremos a ordem proposta no VII Volume da LOEB Claacutessical Library 185 Luciano apresenta uma criacutetica mais elaborada aos filoacutesofos (sua conduta e suas ideias) principalmente no
diaacutelogo O leilatildeo dos filoacutesofos Hermoacutetimos e as seitas O Eunuco e O pescador ou os ressuscitados 186 Em nossa Dissertaccedilatildeo de Mestrado analisamos o uso da imagem de Heacuteracles pelos Ciacutenicos (ARANTES
JUNIOR 2008 135-139)
125
Soacutestrato mdash Oacute Minos escuta-me a ver se te parece que eu tenho razatildeo
Minos mdash Escutar-te outra vez agora Mas oacute Soacutestrato natildeo ficou provado
que tu foste um faciacutenora que assassinou tanta gente
Soacutestrato mdash Sim ficou provado mas vecirc laacute se eu fui justamente castigado
Minos mdash Muito justamente se eacute justo pagar pelo que se fez
Soacutestrato mdash Mesmo assim oacute Minos responde-me pois soacute vou fazer-te uma
breve pergunta
Minos mdash Fala na condiccedilatildeo de natildeo te alongares para que ainda possa julgar
outros
Soacutestrato mdash Os atos eu cometi em vida seraacute que os cometi livremente ou
foram-me fiados pela Moira
Minos mdash Foram fiados pela Moira eacute claro
Soacutestrato mdash Nesse caso todos noacutes quer os bons quer os criminosos agimos
ao que parece por ordem dessa divindade natildeo eacute
Minos mdash Sim por ordem de Cloto a qual destinou a cada um ao nascer o
que ele havia de fazer
Soacutestrato mdash Portanto se algueacutem obrigado por outro matasse uma pessoa
sem ter possibilidade de resistir agravequele que o forccedilara como por exemplo um
carrasco ou um mercenaacuterio (um obedecendo ao juiz e o outro ao tirano) a
quem eacute que tu acusarias da morte
Minos mdash Claro que ao juiz ou ao tirano tal como natildeo culparia uma espada
pois esta como instrumento que eacute serve apenas a vontade do primeiro que
age como causa inicial
Soacutestrato mdash Muito bem Minos tanto mais que vens reforccedilar o meu exemplo
Se algueacutem enviado pelo seu senhor vier trazer prata ou ouro a outra pessoa
a quem eacute que se deve agradecer A quem eacute que se deve inscrever no rol dos
benfeitores
Minos mdash Ao que enviou a coisa oacute Soacutestrato pois o portador foi apenas um
criado
Soacutestrato mdash Portanto estaacutes a ver como procedes injustamente ao castigar-nos
a noacutes que fomos apenas servos executantes das ordens de Cloto e ainda por
cima enalteces estes aqui que agiram como simples executantes das boas
acccedilotildees de outros Na verdade ningueacutem poderia dizer que era possiacutevel resistir
a ordens dadas com forccedila obrigatoacuteria
Minos mdash Oacute Soacutestrato se examinasses minuciosamente poderias ver muitas
mais coisas que natildeo estatildeo de acordo com a razatildeo Em todo o caso com a tua
pergunta ganharaacutes o seguinte (pois natildeo pareces ser apenas um salteador mas
tambeacutem um sofista) Oacute Hermes liberta-o e que deixe de ser castigado E tu
Soacutestrato vecirc laacute natildeo ensines os outros mortos a fazerem perguntas semelhantes
(Luciano D Mort XXIV 450-454)187
187 ldquoΣΩΣΤΡΑΤΟΣ
Ἄκουσον ὦ Μίνως εἴ σοι δίκαια δόξω λέγειν
ΜΙΝΩΣ
Νῦν ἀκούσω αὖθις οὐ γὰρ ἐξελήλεγξαι ὦ Σώστρατε πονηρὸς ὢν καὶ τοσούτους ἀπεκτονώς
ΣΩΣΤΡΑΤΟΣ
Ἐλήλεγμαι μέν ἀλλ ὅρα εἰ δικαίως κολασθήσομαι
ΜΙΝΩΣ
Καὶ πάνυ εἴ γε ἀποτίνειν τὴν ἀξίαν δίκαιον
ΣΩΣΤΡΑΤΟΣ
Ὅμως ἀπόκριναί μοι ὦ Μίνως βραχὺ γάρ τι ἐρήσομαί σε
ΜΙΝΩΣ
Λέγε μὴ μακρὰ μόνον ὡς καὶ τοὺς ἄλλους διακρίνωμεν ἤδη
ΣΩΣΤΡΑΤΟΣ
Ὁπόσα ἔπραττον ἐν τῷ βίῳ πότερα ἑκὼν ἔπραττον ἢ ἐπεκέκλωστό μοι ὑπὸ τῆς Μοίρας
126
Esse diaacutelogo evidencia dois pontos fundamentais para compreender a inserccedilatildeo
luciacircnica no mundo greco-romano Por um lado a criacutetica agrave ideia de destino fiado pela Moira o
que impediria a responsabilidade dos homens pelos atos maleacutevolos que viessem a praticar bem
como minimizaria a bondade praticada Trata-se de um tema recorrente em seus escritos por
exemplo no diaacutelogo Zeus Refutado Por outro lado Soacutestrato em sua condiccedilatildeo de questionador
evidencia que a palavra eacute o principal iacutendice diferenciador no Hades luciacircnico pois ensinar os
outros mortos a formular essas interrogaccedilotildees eacute extremamente perigoso
Outros personagens que compotildeem a memoacuteria histoacuterica greco-romana satildeo
principalmente reis tiranos e generais Existem governantes gregos e baacuterbaros generais
gregos romanos e cartagineses Nesse ponto Luciano natildeo coloca nenhum Imperador Romano
no Hades o que evidencia um diaacutelogo cruzado em que ele fala de outro soberano a fim de
salientar suas qualidades ou seus defeitos Acreditamos que esse silecircncio eacute bastante revelador
principalmente por demonstrar conhecimento da Histoacuteria de Roma colocando em questatildeo
personagens fundamentais para a consolidaccedilatildeo do poderio romano no Mediterracircneo como
Cipiatildeo188 e Aniacutebal189
ΜΙΝΩΣ
Ὑπὸ τῆς Μοίρας δηλαδή
ΣΩΣΤΡΑΤΟΣ
Οὐκοῦν καὶ οἱ χρηστοὶ ἅπαντες καὶ οἱ πονηροὶ δοκοῦντες ἡμεῖς ἐκείνῃ ὑπηρετοῦντες ταῦτα ἐδρῶμεν
ΜΙΝΩΣ
Ναί τῇ Κλωθοῖ ἣ ἑκάστῳ ἐπέταξε γεννηθέντι τὰ πρακτέα
ΣΩΣΤΡΑΤΟΣ
Εἰ τοίνυν ἀναγκασθείς τις ὑπ ἄλλου φονεύσειέν τινα οὐ δυνάμενος ἀντιλέγειν ἐκείνῳ βιαζομένῳ οἷον δήμιος ἢ
δορυφόρος ὁ μὲν δικαστῇ πεισθείς ὁ δὲ τυράννῳ τίνα αἰτιάσῃ τοῦ φόνου
ΜΙΝΩΣ
Δῆλον ὡς τὸν δικαστὴν ἢ τὸν τύραννον ἐπεὶ οὐδὲ τὸ ξίφος αὐτό ὑπηρετεῖ γὰρ ὄργανον ὂν τοῦτο πρὸς τὸν θυμὸν
τῷ πρώτῳ παρασχόντι τὴν αἰτίαν
ΣΩΣΤΡΑΤΟΣ
Εὖ γε ὦ Μίνως ὅτι καὶ ἐπιδαψιλεύῃ τῷ παραδείγματι ἢν δέ τις ἀποστείλαντος τοῦ δεσπότου ἥκῃ αὐτὸς χρυσὸν
ἢ ἄργυρον κομίζων τίνι τὴν χάριν ἰστέον ἢ τίνα εὐεργέτην ἀναγραπτέον
ΜΙΝΩΣ
Τὸν πέμψαντα ὦ Σώστρατε διάκονος γὰρ ὁ κομίσας ἦν
ΣΩΣΤΡΑΤΟΣ
Οὐκοῦν ὁρᾷς πῶς ἄδικα ποιεῖς κολάζων ἡμᾶς ὑπηρέτας γενομένους ὧν ἡ Κλωθὼ προσέταττεν καὶ τούτους
τιμήσας τοὺς διακονησαμένους ἀλλοτρίοις ἀγαθοῖς οὐ γὰρ δὴ ἐκεῖνό γε εἰπεῖν ἔχοι τις ὡς ἀντιλέγειν δυνατὸν ἦν
τοῖς μετὰ πάσης ἀνάγκης προστεταγμένοις
ΜΙΝΩΣ
Ὦ Σώστρατε πολλὰ ἴδοις ἂν καὶ ἄλλα οὐ κατὰ λόγον γιγνόμενα εἰ ἀκριβῶς ἐξετάζοις πλὴν ἀλλὰ σὺ τοῦτο
ἀπολαύσεις τῆς ἐπερωτήσεως διότι οὐ λῃστὴς μόνον ἀλλὰ καὶ σοφιστής τις εἶναι δοκεῖς ἀπόλυσον αὐτόν ὦ
Ἑρμῆ καὶ μηκέτι κολαζέσθω ὅρα δὲ μὴ καὶ τοὺς ἄλλους νεκροὺς τὰ ὅμοια ἐρωτᾶν διδάξῃςrdquo 188 General romano (236-183 a C) que derrotou Aniacutebal na batalha de Zama pondo fim agrave Segunda Guerra Puacutenica 189 Comandante cartaginecircs que viveu entre 247-183 aC tornou-se general aos 25 anos Foi vencedor por trecircs anos
na Hispacircnia invadida por seu pai um dos motivos da Segunda Guerra Puacutenica Marchou para a Peniacutensula Itaacutelica
com um grande nuacutemero de soldados e diversos elefantes Perdeu em 202 aC para Cipiatildeo o Africano
127
Creso rei da Liacutedia citado por Heroacutedoto no livro I das Histoacuterias teria vivido no seacuteculo
VI aC Ficou conhecido por seus tesouros juntamente com Sardanaacutepalo rei da Assiacuteria no
seacuteculo VIII aC Lembrados por seu caraacuteter licencioso e pelo fausto pelo uso de um luxo
excessivo bem como pelo haacutebito de usar roupas vistas pelos gregos como femininas eles fazem
parte do terceiro diaacutelogo juntamente com o miacutetico rei Midas e Menipo As memoacuterias miacuteticas e
as histoacutericas satildeo mobilizadas por meio do regime de memoacuteria romano a fim de criticar alguns
exageros dos soberanos Apoacutes a anaacutelise dos personagens detalhamos a criacutetica luciacircnica aos
abusos do poder e agrave construccedilatildeo de mentiras sobre os governantes a fim de serem uacuteteis agraves
necessidades poliacuteticas
Alexandre190 (356-323 aC) rei da Macedocircnia aparece em trecircs diaacutelogos fundamentais
para nossa discussatildeo uma vez que Luciano permite ao leitor que no Hades um espaccedilo miacutetico
ele dialogue com outros generais com seu pai Filipe bem como com o ciacutenico Dioacutegenes Esses
diaacutelogos em nosso entendimento explicitam a criacutetica luciacircnica aos dispositivos de poder
Outro rei que aparece eacute Mausolo (377-353 aC) rei de Halicarnaso famoso por seu
monumental tuacutemulo Os outros personagens satildeo criaccedilotildees luciacircnicas ficcionais e literaacuterias
Como demonstrou a lucianista argentina Maria del Carmem Cabrero em seu livro Elogio de la
mentira (2006) e o professor Jacyntho Lins Brandatildeo no livro A invenccedilatildeo do romance (2005)
existe em Luciano de Samoacutesata uma consciecircncia expressa de produzir um texto verossiacutemil
mas que todos sabem que natildeo aconteceu Conforme o alerta que o proacuteprio Luciano faz no
proacutelogo das Histoacuterias verdadeiras ldquopois ao menos nisso direi a verdade ao afirmar que mintordquo
(Luciano V H I 4)191
Os personagens histoacutericos satildeo ficcionalizados por Luciano o que nos permite indagar
sobre sua visatildeo sociopoliacutetica do mundo em que ele vive Esses personagens ficcionais
(histoacutericos ou natildeo) satildeo resultado da interaccedilatildeo entre a imaginaccedilatildeo greco-romana e a criatividade
luciacircnica Acreditamos que os personagens que natildeo existiram apresentadas por um nome dado
por Luciano satildeo a representaccedilatildeo de valores e atos que se relacionam com a cultura de seu tempo
A criaccedilatildeo literaacuteria natildeo ocorre do nada pois ela eacute fruto de um diaacutelogo com o mundo que cercava
o escritor
O siacuterio inventa alguns personagens que natildeo fazem parte da tradiccedilatildeo miacutetica nem tecircm
sua existecircncia histoacuterica comprovada Eacute o caso de Teacuterpsion Zenofantes Calidecircnides Cnecircmon
Dacircmnipos Siacutemilos Poliacutestratos Lacircmpicos Damaacutesios e Craacuteton que satildeo caricaturas de
personagens cotidianos Ou ainda alguns tipos como o Militar o Filoacutesofo o Orador e o
190 Alexandre eacute personagem dos diaacutelogos XI XII e XIII 191 ldquoκἂν ἓν γὰρ δὴ τοῦτο ἀληθεύσω λέγων ὅτι ψεύδομαιrdquo
128
Charmoso que servem para a criacutetica social e de conduta dos homens mostrando que no aleacutem-
tuacutemulo haacute um completo igualamento
Outra ressalva jaacute elaborada por Jacques Bompaire (2000 184) que gostariacuteamos de
fazer sobre os personagens dos Diaacutelogos dos mortos eacute que natildeo podemos subestimar a criaccedilatildeo
luciacircnica diante das personalidades miacuteticas e histoacutericas que compotildeem a memoacuteria cultural greco-
romana Menipo Alexandre entre outras personalidades retratadas pelo siacuterio mesmo tendo
uma existecircncia historicamente registrada apresenta a marca do escritor O mesmo deve ser dito
do uso que Luciano faz da memoacuteria miacutetica greco-romana que eacute um processo de apropriaccedilatildeo
(CHARTIER 1990) Entretanto todos que trabalham com usos da memoacuteria sabem que ela se
caracteriza sempre por ser bastante seletiva quanto agraves escolhas das mensagens que satildeo
comunicadas assim forma e conteuacutedo satildeo exaustivamente trabalhados para servir agrave
comunicaccedilatildeo de determinadas informaccedilotildees
Essas personalidades satildeo construiacutedas em cenaacuterios com caracteriacutesticas proacuteprias O
Hades luciacircnico eacute o espaccedilo de igualamento material total No diaacutelogo XX Caronte exige que
todos os mortos entrem no barco nus pois segundo ele o barco eacute velho e natildeo aguenta tanto
peso A nudez eacute um sinal de igualamento dos mortos assim quando solicitada pelo barqueiro
natildeo se refere somente agraves roupas mas agraves atitudes que para o escritor pesam na alma
No Diaacutelogo XX travado entre Caronte Hermes Menipo e diversos mortos que satildeo
caricaturas de personagens tiacutepicos de seu tempo o velho barqueiro comeccedila explicando que
ldquopequeno para voacutes como vedes eacute o barquinho e algo roto aleacutem de muito vazarrdquo (Luciano D
mort XX 363)192 Assim a alma deve despir-se para que o barco natildeo afunde ou fique pendendo
para um lado ou girando em ciacuterculos
Menipo eacute o primeiro a entrar Natildeo traz nada visto que jaacute abandonou a sacola e o bastatildeo
bem como a tuacutenica Hermes o psicopompo eacute aquele que se responsabiliza pela nudez das
almas ajudado pelo filoacutesofo ciacutenico Um morto caracterizado por ser charmoso tem de deixar a
enorme peruca e a maquiagem da bochecha ficando apenas uma cintura fina ironicamente
observada por Hermes (Luciano D mort XX 365)
192 ldquoτὸ σκαφίδιον καὶ ὑπόσαθρόν ἐστιν καὶ διαρρεῖ τὰ πολλάrdquo
129
Lacircmpico tirano193 de Gela194 deve despir-se dos atributos materiais de seu cargo do
manto e da diadema das riquezas bem como dos pesos da alma tais como a arrogacircncia o
desdeacutem a crueldade a ignoracircncia insolecircncia e a raiva Hermes corrige-o dizendo ldquoTirano
coisa nenhuma Tu eacutes um mortordquo (Luciano D mort XX 366)195 Luciano constroacutei uma
imagem do Tirano utilizando suas insiacutegnias tradicionais bem como as caracteriacutesticas que
tradicionalmente satildeo vinculadas ao mau governante No Impeacuterio natildeo haacute mais a instituiccedilatildeo do
Tirano enquanto possibilidade de governante Entretanto a tradiccedilatildeo escrita se apropriou muito
cedo dessa noccedilatildeo que deixa de ser uma instituiccedilatildeo especiacutefica da cultura grega para se tornar
um adjetivo atribuiacutedo aos maus governantes inclusive agravequeles imperadores considerados pela
historiograacutefia senatorial como ruins Em outro diaacutelogo supracitado Luciano introduz a entrada
de Soacutestrato com o Juiz do Hades Minos deferindo suas sentenccedilas entre as quais ele condena o
Tirano a ldquoter o fiacutegado devorado por abutresrdquo196 (Luciano D Mort XXIV 450) uma das
condenaccedilotildees mais terriacuteveis aplicadas por exemplo ao Titatilde Prometeu que criou os homens
roubou o fogo dos deuses e enganou o proacuteprio Zeus
O atleta deve se despir das carnes em excesso Craacuteton deve jogar fora as riquezas a
moleza e o luxo
E natildeo deves trazer os enfeites fuacutenebres nem as honrarias dos antepassados
Deixa para traz a estirpe e a gloacuteria e se por acaso a cidade te proclamou heroacutei
joga fora as inscriccedilotildees das estaacutetuas e nem diga que eles te erigiram um grande
tuacutemulo Na verdade essas lembranccedilas satildeo muito pesadas (Luciano D mort
XX 367)197
193 A Tirania eacute uma instituiccedilatildeo grega que segundo Aristoacuteteles em sua Poliacutetica deturpa a monarquia Trata-se de
uma palavra que tem origem na Liacutedia e que significava originariamente apenas chefe priacutencipe Segundo Jean
Beacuteranger essa noccedilatildeo aparece em Arquiacuteloco (frag 19) e Alceu (frag 306) com um sentido pejorativo de adversaacuterios
da monarquia um concorrente que toma o poder de uma famiacutelia tradicional (BEacuteRANGER 1973 51-52) Jaacute em
Simocircnides Piacutendaro Heroacutedoto ainda segundo Beacuteranger tem o significado se Basileus Nos poemas de Soacutelon o
termo eacute carregado com sentidos vinculados agrave violecircncia e agrave injusticcedila Finalmente ele conclui que no seacuteculo IV aC
o sentido desse termo jaacute se vinculasse ao rei com um sentido secundaacuterio de usurpador bom ou mau De acordo
com A Humpers no verbete Tyrannus do Dictionnaire des antiquiteacutes grecques et romaines dirigido por Charlles
Daremberg e Edmund Saglio na trageacutedia esquiliniana Zeus eacute representado como o tirano dos deuses Esquilo viu
a transiccedilatildeo poliacutetica ateniense da Tirania Pisistraacutetica para a Democracia Como Zeus era cultuado por Pisiacutestrato
como deus dos tiranos a inversatildeo esquiliniana eacute possiacutevel (HUMPERS 1900 367) Os versos iniciais do proacutelogo
da trageacutedia Prometeu Agrilhoado jaacute afirmam que o Titatilde deve pagar ldquopara aprender a anuir agrave tirania de Zeus e
abster-se de ser amigo dos humanosrdquo (Esq Pr 10-11) Sian Lewis (2006 13) em seu livro Ancient Tyrrany
afirma que ldquona Antiguidade a tirania natildeo era uma ideia monoliacutetica mas uma ideia criada e adaptada
constantemente pelos historiadores com sentidos e com aplicaccedilotildees muito diversificadasrdquo 194 Cidade situada na costa sul da Siciacutelia 195 ldquoΕΡΜΗΣ
Τύραννον μὲν οὐδαμῶς νεκρὸν δὲ μάλαrdquo 196 ldquo[] ὑπὸ τῶν γυπῶν καὶ αὐτὸς κειρέσθω τὸ ἧπαρ []rdquo 197 ldquo[] μηδὲ τὰ ἐντάφια κόμιζε μηδὲ τὰ τῶν προγόνων ἀξιώματα κατάλιπε δὲ καὶ γένος καὶ δόξαν καὶ εἴ ποτέ σε
ἡ πόλις ἀνεκήρυξεν καὶ τὰς τῶν ἀνδριάντων ἐπιγραφάς μηδὲ ὅτι μέγαν τάφον ἐπί σοι ἔχωσαν λέγε βαρύνει γὰρ
καὶ ταῦτα μνημονευόμεναrdquo
130
Trata-se de insiacutegnias identitaacuterias que demonstram a antiguidade de uma famiacutelia bem
como as praacuteticas de evergetismo social uma vez que todas as benesses puacuteblicas carregavam
inscriccedilotildees de seus benfeitores Esse eacute um aspecto importante da cultura poliacutetica greco-romana
jaacute que expressa a possibilidade de doaccedilotildees particulares financiarem obras puacuteblicas Nesse
sentido observamos a criacutetica justamente a essa praacutetica lembrando sempre que no Hades essas
marcas natildeo fazem nenhuma distinccedilatildeo
O guerreiro deve deitar fora as armas e os trofeacuteus jaacute que no Hades luciacircnico reina a
paz A distinccedilatildeo militar dos homens das famiacutelias mais tradicionais eacute outro elemento cultural
importante e trata de questionar a forma como os vivos distinguem as pessoas e expressam
valores isto eacute criam as identidades Assim a guerra eacute colocada sob suspeita
Na sequecircncia do diaacutelogo Menipo procura um filoacutesofo para poder zombar dele Como
em Os pescadores ou os ressuscitados o alvo da criacutetica luciacircnica natildeo eacute a filosofia mas os
charlatotildees que se passam por filoacutesofos
Hermes ndash Joga no chatildeo primeiro essa armaccedilatildeo em seguida tambeacutem todas
essas coisas oacute Zeus Quanta fanfarronice ele estaacute trazendo Quanta besteira
e quanta discussatildeo E a gloria vatilde as interrogaccedilotildees sem saiacuteda os discursos
picantes e as meditaccedilotildees complicadas Ele traz tambeacutem trabalhos inuacuteteis e
frivolidades natildeo poucas insignificacircncias e mesquinharias e tambeacutem dinheiro
oacute Zeus E aqui a vida faacutecil falta de pudor preguiccedila luxo e moleza Nada disso
me escapa mesmo que tu as escondas Despe tambeacutem a falsidade o orgulho
e a crenccedila de que tu eacutes melhor do que os outros (Luciano D mort XX 368-
370)198
No passo seguinte Hermes reclama da barba do filoacutesofo que eacute muito pesada Caronte
pede que Menipo corte-a com o machado Juntamente com essa o ciacutenico corta as sobrancelhas
e lhe arranca a bajulaccedilatildeo debaixo dos braccedilos O simbolismo da barba alcanccedila dois pontos
importantes Em primeiro lugar critica a moda helecircnica do uso da barba para inspirar sabedoria
Em segundo conjecturamos o questionamento agrave proacutepria elite da cidade de Roma que a partir
de Marco Aureacutelio deixa para traacutes o tradicional haacutebito de se barbear que tanto marcava a
romanidade
198 ldquoΕΡΜΗΣ
Κατάθου σὺ τὸ σχῆμα πρῶτον εἶτα καὶ ταυτὶ πάντα ὦ Ζεῦ ὅσην μὲν τὴν ἀλαζονείαν κομίζει ὅσην δὲ ἀμαθίαν
καὶ ἔριν καὶ κενοδοξίαν καὶ ἐρωτήσεις ἀπόρους καὶ λόγους ἀκανθώδεις καὶ ἐννοίας πολυπλόκους ἀλλὰ καὶ
ματαιοπονίαν μάλα πολλὴν καὶ λῆρον οὐκ ὀλίγον καὶ ὕθλους καὶ μικρολογίαν νὴ Δία καὶ χρυσίον γε τουτὶ καὶ
ἡδυπάθειαν δὲ καὶ ἀναισχυντίαν καὶ ὀργὴν καὶ τρυφὴν καὶ μαλακίαν οὐ λέληθεν γάρ με εἰ καὶ μάλα περικρύπτεις
αὐτά καὶ τὸ ψεῦδος δὲ ἀπόθου καὶ τὸν τῦφον καὶ τὸ οἴεσθαι ἀμείνων εἶναι τῶν ἄλλωνrdquo
131
Cheio de tantos viacutecios o Hermes luciacircnico tambeacutem pede que o orador dispa-se de
ldquoloquacidade das antiacuteteses das frases simeacutetricas dos soliloacutequios dos barbarismos e de todos
esses pesos dos discursosrdquo (Luciano D mort XX 374)199
Os mortos devem se despir de pesos materiais (riquezas e luxo) imateriais
(sentimentos e posturas) bem como da memoacuteria e do viacutenculo que a lembranccedila enseja com as
veleidades materiais a vida e os vivos As homenagens e as gloacuterias terrenas satildeo um peso ndash em
um sentido natildeo metafoacuterico ndash para a construccedilatildeo de um espaccedilo de completa isonomia
Luciano iguala materialmente todos os indiviacuteduos e permite uma seacuterie de criacuteticas
sociais Ressaltemos que o igualamento dar-se-aacute na conjunccedilatildeo especiacutefica do desprovimento dos
bens materiais (conseguidos acumulados ou herdados) como as riquezas ou aqueles que os
indiviacuteduos nascem como a beleza A criacutetica luciacircnica eacute extremamente forte contra o apego aos
bens materiais
Os diaacutelogos dos mortos condenam o fausto em que a elite greco-romana vivia bem
como as praacuteticas que rodeiam a relaccedilatildeo dos ricos com os outros principalmente a bajulaccedilatildeo
Nesse sentido Luciano mobiliza personagens presentes na memoacuteria histoacuterica greco-romana a
fim de expressar suas ideias Brandatildeo defende que
A concepccedilatildeo radicalmente igualitaacuteria de Luciano fundamenta-se num
processo de depauperamento igualmente radical em que o resto dos mortos
se confundem num igualamento absoluto A visatildeo que tem Menipo da planiacutecie
de Aqueruacutesia mostra um espaccedilo em que semideuses heroiacutenas e mortos de
todas as naccedilotildees e tribos misturam sua inconsistecircncia (BRANDAtildeO 19941995
90)
Franccedilois Jouan infere que ldquoa unidade de inspiraccedilatildeo dos Diaacutelogos dos mortos eacute clara
Sua leitura agradaacutevel nos leva agrave conclusatildeo de que se trata somente de abolir em seu Inferno
[Enfers] todas as desigualdades sociais entre os homens e realizar o nivelamento absoluto entre
elesrdquo (JOUAN1994 28)
No diaacutelogo V Menipo questiona Hermes sobre onde encontrar ldquoOs belos e as belasrdquo200
Ao mostrar alguns semideuses que todos os poetas admiram o filoacutesofo ciacutenico responde ldquoEstou
vendo soacute ossos e cracircnios desprovidos de carnes a maioria semelhantesrdquo (Luciano D mort V
405-409)201
199 ldquoκαὶ ὁ ῥήτωρ δὲ σὺ ἀπόθου τῶν ῥημάτων τὴν τοσαύτην ἀπεραντολογίαν καὶ ἀντιθέσεις καὶ παρισώσεις καὶ
περιόδους καὶ βαρβαρισμοὺς καὶ τὰ ἄλλα βάρη τῶν λόγωνrdquo 200 ldquoΠοῦ δαὶ οἱ καλοί εἰσιν ἢ αἱ καλαί Ἑρμῆrdquo 201 ldquoὈστᾶ μόνα ὁρῶ καὶ κρανία τῶν σαρκῶν γυμνά ὅμοια τὰ πολλάrdquo
132
O Diaacutelogo XXX fornece mais um exemplo interessante para esse fenocircmeno do igualamento dos
mortos Nireu202 e Tersites203 solicitam que Menipo seja o aacuterbitro sobre quem seria o mais formoso
Luciano debate aqui a tradiccedilatildeo homeacuterica na qual o primeiro era o segundo mais belo e o segundo que eacute
o mais feio A resposta do Menipo luciacircnico reafirma a isonomia deste espaccedilo pois afirma que ldquoNem
tu eacutes mais formoso nem um outro pois no Hades reina a igualdade e todos satildeo parecidosrdquo (Luciano D
mort XXX 433 ss)204
Luciano enfatiza peremptoriamente esse nivelamento entretanto acreditamos que a perspectiva
defendida por Brandatildeo e Jouan devem ser matizadas No diaacutelogo XX o filoacutesofo que foi despido de tudo
que carregava pede para Menipo tambeacutem se despir de algumas caracteriacutesticas que levava Segue o
diaacutelogo
O filoacutesofo ndash Pois entatildeo Menipo tu tambeacutem despe a liberdade a franqueza a
ausecircncia de tristeza a nobreza e o riso porque tu eacutes o uacutenico que estaacutes rindo
Hermes ndash De forma alguma Ao contraacuterio conserva essas coisas Todas satildeo
faacuteceis de transportar e satildeo uacuteteis para a viagem (Luciano D mort XX 373)205
Natildeo haacute um desprezo agrave vida nos Diaacutelogos dos Mortos como natildeo existe um processo de
idealizaccedilatildeo da morte o que ocorre eacute uma criacutetica agrave cultura poliacutetica e agrave desigualdade social por
meio do riso uma vez que algumas virtudes uacuteteis permanecem com quem as porta Virtudes
essas que natildeo se afastam daquelas herdadas dos ciacutenicos a saber sabedoria (σοφία)
autodomiacutenio (αὐτάρκεια) verdade (ἀλήθεια) franqueza (παρρησία) liberdade (ἐλευθερία)
(Luciano D mort XXI 378) Tais qualidades satildeo o contraponto daqueles atributos dos quais
o tirano se devia despir O siacuterio nuanccedila com matizes ciacutenicas seu Hades no entanto o discurso
eacute possibilitado pela parreacutesia pela franqueza
Haacute outra exceccedilatildeo com o filho de Alcmena Heacuteracles no diaacutelogo XI visto assim por
Dioacutegenes ldquoEsse aiacute natildeo eacute Heacuteracles Natildeo pode ser outro por Heacuteracleacutes O arco o porrete a pele
202 Luciano cita o canto II da Iliacuteada no qual ldquoNireu que era o homem mais belo entre os Dacircnaos que vieram para
debaixo de Iacutelion agrave exceccedilatildeo do irrepreensiacutevel Pelidardquo (ldquoΝιρεύς ὃς κάλλιστος ἀνὴρ ὑπὸ Ἴλιον ἦλθε τῶν ἄλλων
Δαναῶν μετ ἀμύμονα Πηλεΐωναrdquo) (Homero Il II 673-674 grifo nosso) Propositalmente o siacuterio natildeo cita o
trecho sublinhado A memoacuteria eacute seletiva como podemos notar mas a ausecircncia dos trechos diz muito sobre os
objetivos luciacircnicos 203 Personagem da Iliacuteada assim descrito por Homero ldquoEra o homem mais feio que veio para Iacutelion tinha as pernas
tortas e era coxo num peacute os ombroseram encurvados dobrando-se sobre o peito A cabeccedila era pontiaguda donde
despontava uma rara lanugemrdquo (ldquo[]αἴσχιστος δὲ ἀνὴρ ὑπὸ Ἴλιον ἦλθε φολκὸς ἔην χωλὸς δ ἕτερον πόδα τὼ
δέ οἱ ὤμω κυρτὼ ἐπὶ στῆθος συνοχωκότε αὐτὰρ ὕπερθε φοξὸς ἔην κεφαλήν ψεδνὴ δ ἐπενήνοθε λάχνηrdquo)
(Homero Il II 216 217-219 trad Frederico Lourenccedilo) 204 ldquoΜΕΝΙΠΠΟΣ
Οὔτε σὺ οὔτε ἄλλος εὔμορφος ἰσοτιμία γὰρ ἐν ᾅδου καὶ ὅμοιοι ἅπαντεςrdquo 205 ldquoΦΙΛΟΣΟΦΟΣ
Οὐκοῦν καὶ σύ ὦ Μένιππε ἀπόθου τὴν ἐλευθερίαν καὶ παρρησίαν καὶ τὸ ἄλυπον καὶ τὸ γενναῖον καὶ τὸν γέλωτα
μόνος γοῦν τῶν ἄλλων γελᾷς
ΕΡΜΗΣ
Μηδαμῶς ἀλλὰ καὶ ἔχε ταῦτα κοῦφα γὰρ καὶ πάνυ εὔφορα ὄντα καὶ πρὸς τὸν κατάπλουν χρήσιμαrdquo
133
de leatildeo a estatura eacute todinho Heacuteraclesrdquo (Luciano D mort XI 402)206 O igualamento se daacute
nos niacuteveis superficiais de distinccedilatildeo Por traz de todo o debate existe uma loacutegica da essecircncia e
da aparecircncia aquilo que de fato eacute uma distinccedilatildeo essencial e aquilo que eacute uma distinccedilatildeo
superficial
Luciano se preocupa com o fato de os mortos estarem em condiccedilotildees iguais todavia em
cinco diaacutelogos207 ele se preocupa com os bajuladores Os personagens que se envolvem nessas
situaccedilotildees satildeo aqueles inventados pela criatividade luciacircnica que citamos acima geralmente
jovens que cercam algum velho rico que natildeo tenha filhos a fim de ser considerado seu herdeiro
situaccedilatildeo que se aproxima muito da instituiccedilatildeo da adoccedilatildeo Ou seja satildeo os vivos que se
preocupam com a morte daqueles que tecircm muito jaacute que como natildeo levaram nada poderatildeo
herdar desde que sejam adotados como herdeiros dos ricos Nesse sentido haacute colocaccedilotildees sobre
a relaccedilatildeo dos ricos com outras pessoas principalmente com os bajuladores
Ao analisar a cultura poliacutetica romana observamos que Luciano estaacute criticando nos
Diaacutelogos dos mortos uma instituiccedilatildeo importante que eacute uma especificidade do direito romano
a adoptio O processo legal de adoccedilatildeo em Roma somente era permitido aos homens A pessoa
adotada natildeo se distinguia dos filhos naturais daquele que o adotou tendo os mesmos direitos
sucessoacuterios bem como o nome e a posiccedilatildeo social aleacutem da heranccedila
Segundo Veyne a adoccedilatildeo poderia impedir a extinccedilatildeo de uma estirpe bem como adquirir
a condiccedilatildeo de pater famiacutelias que era exigida para o acesso a algumas honras puacuteblicas ou ao
governo das proviacutencias (Veyne 2007 30)
Os analistas do Alto Impeacuterio costumam ressaltar que a sucessatildeo foi um dos pontos fracos
do sistema imperial De acordo com o direito romano o Princeps natildeo podia escolher ou impor
seu sucessor208 Entretanto de Augusto a Cocircmodo dos dezesseis Imperadores nove chegaram
tranquilamente agrave puacuterpura sendo trecircs filhos de um Imperador (Tito Domiciano e Cocircmodo) e
cinco filhos adotados oficialmente (Tibeacuterio Nero Trajano Antonino Pio Marco Aureacutelio) Se
observarmos os Imperadores contemporacircneos ao siacuterio transmitiam o poder diminuindo as
crises poliacuteticas por meio da adoccedilatildeo daquele que eacute considerado o melhor
Esse tema ganha muita forccedila nos Diaacutelogos dos mortos uma vez que em cinco diaacutelogos
o tema principal eacute o caccedilador de heranccedilas Haacute duas criacuteticas uma social ndash agravequeles ricos que se
206 ldquoΔΙΟΓΕΝΗΣ
Οὐχ Ἡρακλῆς οὗτός ἐστιν οὐ μὲν οὖν ἄλλος μὰ τὸν Ἡρακλέα τὸ τόξον τὸ ῥόπαλον ἡ λεοντῆ τὸ μέγεθος ὅλος
Ἡρακλῆς ἐστινrdquo 207 Diaacutelogos XV XVI XVII XVIII e XIX 208 Beacuteranger analisou a transmissatildeo do poder imperial tendo em vista a questatildeo da hereditariedade Ele nos lembra
que essa instituiccedilatildeo natildeo existia formalmente no direito romano mas que na praacutetica haacute a tentativa de constituir uma
domus imperial (BEacuteRANGER 1971137-152)
134
cercavam de bajuladores que estavam em busca de suas heranccedilas ndash e uma sutil criacutetica poliacutetica
a partir do olhar aos mecanismos de sucessatildeo imperial Retomemos o que afirma Demeacutetrio no
seu manual de retoacuterica o orador precisa encontrar meios de falar ao tirano sem colocar sua
vida em risco
A presenccedila de reis tiranos e generais expressa com uma ecircnfase maior a postura que
Luciano tem de alguns mecanismos de poder Jaacute no citado diaacutelogo XX Hermes avisa ao tirano
de Gela que no Hades ele eacute mais um morto e que todo o seu poder ficou na terra O escritor
constroacutei nos Diaacutelogos dos Mortos o encontro entre a histoacuteria e o mito por meio de uma
construccedilatildeo memorialiacutestica que interage com o passado Como afirma Keith Jenkins em seu
recente livro A Histoacuteria Refigurada
O que constitui (conforma) o sujeito humano em qualquer momento no espaccedilo
e no tempo natildeo eacute portanto a expressatildeo de algum nuacutecleo interior ou essecircncia
humana e sim o resultado desse processo dinacircmico denominado
interabilidade (o processo de repeticcedilatildeo e diferenccedila da repeticcedilatildeo do nunca
exatamente igual) que garante que ningueacutem jamais esteja completo estaacutevel
ou fixo de uma vez por todas (JENKINS 2014 12-13)
Conforme dito o uso das narrativas nunca eacute exatamente igual ao repetido uma vez que
as mudanccedilas podem ocorrer em diversas ordens desde a semacircntica das palavras agraves condiccedilotildees
de enunciaccedilatildeo dadas Logo o processo de constituiccedilatildeo identitaacuteria natildeo ocorre a partir de uma
essecircncia mas principalmente no mundo greco-romano num processo de conformaccedilatildeo e
aglutinaccedilatildeo de signos identitaacuterios de culturas diversas
Como nos ensinou Assmann (2011 83-91) a escrita permite a glosa contiacutenua a anaacutelise
principalmente quando pensamos em uma cultura como a helecircnica cujos textos fundadores
natildeo foram alccedilados ao patamar da palavra divina como ocorreu com outras culturas A escrita
natildeo ficou monopolizada por escribas nem as narrativas sobre os deuses confinada aos templos
dessa forma o conjunto de textos literaacuterios gregos desde sua origem nutre-se das diversas
narrativas miacuteticas presentes na tradiccedilatildeo para se reconfigurar
Nesta senda a anaacutelise do texto luciacircnico amplia os horizontes da interpretaccedilatildeo histoacuterica
O espaccedilo do Hades representado nos diaacutelogos permite o encontro ou mesmo o confronto de
personagens histoacutericos questionadores de valores e insiacutegnias da vida sociopoliacutetica como eacute o
caso da representaccedilatildeo dos reis e dos tiranos nesses diaacutelogos
O mais emblemaacutetico caso eacute a representaccedilatildeo de Alexandre Magno Trata-se aqui do
modelo de conquistador na cultura claacutessica Plutarco na Vida de Cesar relata que
na Hispacircnia ocupando o oacutecio com a leitura de uma obra sobre Alexandre
ficou longo tempo a refletir absorto em si mesmo e depois comeccedilou a chorar
135
Espantados os amigos quiseram saber a causa daquelas laacutegrimas Natildeo vos
parece explicou ele ser motivo de afliccedilatildeo pensar que na idade em que estou
Alexandre jaacute possuiacutea um vasto impeacuterio e eu ainda natildeo empreendi nada de
grandioso (Plutarco Caesar 11)209
A imagem desse governante esteve muito presente na Repuacuteblica Romana bem como
entre os Imperadores Trata-se do grande conquistador cujos feitos teriam sido inigualaacuteveis
Haacute trecircs diaacutelogos210 em que esse soberano se faz presente O diaacutelogo XXV travado entre
Alexandre Aniacutebal Cipiatildeo e Minos discorre justamente sobre quem seria o maior general de
todos os tempos Trata-se de um exerciacutecio comum na retoacuterica uma vez que mobiliza a memoacuteria
cultural dos agentes Minos o juiz do Hades teria sido o grande rei da ilha de Creta seu
legislador e a tradiccedilatildeo lhe lega a fama de general exitoso Logo ele teria a autoridade necessaacuteria
para fazer esse julgamento (GRIMAL 2005 313-314)
Nesse caso Luciano mostra seu conhecimento de Histoacuteria Romana aleacutem de explicitar
uma posiccedilatildeo ambiacutegua para Cipiatildeo A disputa dar-se-aacute com o encontro de trecircs grandes generais
conhecidos por conquistas grandiosas e feitos memoraacuteveis Cada um dos heroacuteis representa um
povo Aniacutebal os cartagineses Cipiatildeo os romanos Alexandre os Macedocircnios
Alexandre eacute o grande general por excelecircncia extremamente cultuado entre os proacuteprios
romanos como evidencia a citaccedilatildeo anterior de Plutarco como modelo de conquistador Esse
poder condensador em torno de sua imagem permite que ela seja bastante utilizada pelos
oradores da Segunda Sofiacutestica
No diaacutelogo XXV Luciano mostra seu talento literaacuterio e a ambiguidade que sua condiccedilatildeo
lhe impotildee Retomemos a premissa de Paul Veyne sobre os escritores da Segunda Sofiacutestica
amplamente debatida no primeiro capiacutetulo Os argumentos positivos colocados por Aniacutebal
afirmam (1) que ele fez todas as suas conquistas do nada (2) a conquista de povos ocidentais
(3) o grande nuacutemero de mortos nas batalhas (4) que chegou agraves portas de Roma (5) que assumiu
sua condiccedilatildeo humana (6) que lutou com os soldados mais belicosos
Em seguida ele comeccedila os argumentos negativos atacando Alexandre (1) ele se
autodenominou filho de Amon (2) herdou o poder do pai (3) afastou-se das tradiccedilotildees dos
antepassados (4) assassinou amigos nos banquetes Aniacutebal ainda faz uma seacuterie de comparaccedilotildees
tendo em vista justificar seu exiacutelio
209 ldquoὁμοίως δὲ πάλιν ἐν Ἰβηρίᾳ σχολῆς οὔσης ἀναγινώσκοντά τι τῶν περὶ Ἀλεξάνδρου γεγραμμένων σφόδρα
γενέσθαι πρὸς ἑαυτῷ πολὺν χρόνον εἶτα καὶ δακρῦσαι τῶν δὲ φίλων θαυμασάντων τὴν αἰτίαν εἰπεῖν lsquoοὐ δοκεῖ
ὑμῖν ἄξιον εἶναι λύπης εἰ τηλικοῦτος μὲν ὢν Ἀλέξανδρος ἤδη τοσούτων ἐβασίλευεν ἐμοὶ δὲ λαμπρὸν οὐδὲν οὔπω
πέπρακταιrsquordquo 210 Alexandre eacute personagem dos diaacutelogos XII XIII e XXV
136
Luciano alude a esse governante no iniacutecio do opuacutesculo Alexandre ou o falso profeta Ao
se referir agravequele charlatatildeo que residia em Abonotico ele afirma que a ldquoeste estaacute para a maldade
tanto quanto aquele estaacute para a virtuderdquo (Luciano Alex 1)211 Os personagens satildeo mobilizados
na narrativa luciacircnica a fim de compor um argumento logo seu uso depende do contexto e da
finalidade da remissatildeo Por isso o uso desse personagem pode remeter a aspectos mais
proacuteximos que a anaacutelise superficial deixa entrever
Os argumentos do cartaginecircs voltam-se com precisatildeo para a poliacutetica no Impeacuterio Romano
e principalmente para suas intrigas Nesse sentido a defesa que Alexandre faz de sua primazia
eacute bastante esclarecedora O fundador de Alexandria inicia seu argumento afirmando que (1)
foi um rei enquanto o cartaginecircs foi um salteador (2) chegou ao poder jovem (3) colocou
ordem no reino que estava conturbado (4) vingou o assassinato do pai (5) desejou dominar
todo o mundo conhecido uma vez que seria inseguro se assim natildeo fosse (6) foi um grande
conquistador (7) conquistou o reino de Dario enviando muitas pessoas ao Hades (8) tinha a
ousadia pessoal em combate (9) morreu governando Alexandre ainda menospreza a vitoacuteria
dos itaacutelicos por Aniacutebal jaacute que teria chegado tatildeo longe sem combate Afirma que o mesmo
perdeu a guerra por se dedicar muito a uma vida luxuriosa
Por fim quem decidiu a primazia entre os generais foi Cipiatildeo que afirmou que eacute inferior
a Alexandre e superior a Aniacutebal A fina ironia luciacircnica coloca na boca de um romano que um
general estrangeiro eacute maior que um dos generais vencedores nas guerras puacutenicas Na loacutegica
luciacircnica o maior general eacute um grego seguido por um romano e finalmente pelo cartaginecircs
Entretanto os argumentos usados por gregos e cartagineses satildeo muito mais referentes agrave
sociedade na qual Luciano escreveu que naquela em que viveram os generais A memoacuteria
histoacuterica greco-romana eacute mobilizada como sempre seletivamente no intuito de discorrer
sobresua atualidade poliacutetica uma vez que era um signo importante aos governantes de seu
tempo ser considerado um grande general Assim o imaginaacuterio sobre essas personagens e seu
modelo ideal tecircm grande potencial poliacutetico As criacuteticas ao Impeacuterio e seu governante aparecem
aqui veladas por recursos retoacutericos
Nos diaacutelogos luciacircnicos Alexandre eacute interpelado tanto por Dioacutegenes quanto por seu pai
Filipe pelo uso poliacutetico que faz de sua suposta filiaccedilatildeo divina O anedotaacuterio que envolve a vida
de Dioacutegenes apresenta muitas passagens em que esse teria se encontrado com Alexandre
existindo inclusive uma tradiccedilatildeo pouco provaacutevel na Antiguidade que afirmava que os dois
teriam morrido no mesmo dia (FINLEY 1991 106)
211 ldquoτοσοῦτος εἰς κακίαν οὗτος ὅσος εἰς ἀρετὴν ἐκεῖνοςrdquo
137
O diaacutelogo coloca em duacutevida os profetas de Amom como o fato de as pessoas
acreditarem naquele ocorrido Ou seja Dioacutegenes questiona a bajulaccedilatildeo dos adivinhos mas
tambeacutem a credulidade do povo Por outro lado Alexandre se beneficiou politicamente do medo
que esse boato gerava
No diaacutelogo com seu pai tanto ao ser interpelado por aceitar que as pessoas o
considerassem filho de um deus expotildee-se o uso poliacutetico desse boato
Filipe ndash Agora Alexandre natildeo mais poderias afirmar que natildeo eacutes meu filho
pois se fosses filho de Amon natildeo estarias aqui
Alexandre ndash Nem eu desconhecia meu pai que era filho de Filipe filho de
Amintas Mas eu aceitava o oraacuteculo porque acreditava que aquilo era uacutetil para
meus projetos
Filipe ndash Como eacute isso Parecia-te uacutetil sujeitar-te a ser enganado pelos
adivinhos
Alexandre ndash Natildeo natildeo eacute isso Eacute que os baacuterbaros ficavam estarrecidos na minha
presenccedila e assim nenhum deles me resistiu por acreditar que estavam lutando
com um deus Daiacute eu os dominava mais facilmente (Luciano D mort XII
395)212
Filipe questiona o meacuterito da vitoacuteria conseguida sob esse engodo repetindo uma criacutetica
que estaacute presente no debate sobre a primazia no qual Aniacutebal nos lembra que ele natildeo valorizou
sua condiccedilatildeo humana por menosprezo aos seus adversaacuterios
Filipe ainda lembra que ldquoE o que eacute mais ridiacuteculo de tudo tu copiaste os costumes dos
vencidosrdquo (Luciano D mort XII 396)213 Tais assertivas ecoam a relaccedilatildeo dos dominadores romanos
com os povos helecircnicos Luciano volta-se agrave cultura poliacutetica de seu tempo cheia de intrigas perseguiccedilotildees
e assassinatos assim como Alexandre haveria feito Bem como as ousadias que geraram ferimentos no
conquistador uma vez que esses atos colocavam em descreacutedito a crenccedila de que ele era filho de uma
divindade
Os Diaacutelogos dos Mortos satildeo textos com um profundo questionamento da cultura poliacutetica greco-
romana Natildeo se trata de um texto panfletaacuterio muito menos de um ativista revolucionaacuterio que apresentava
grande apelo pelos oprimidos Partimos do pressuposto de que os Diaacutelogos dos Mortos questionam a
maneira como a elite imperial vivia e a relaccedilatildeo desta com os menos abastados O elemento mobilizado
212 ldquoΦΙΛΙΠΠΟΣ
Νῦν μέν ὦ Ἀλέξανδρε οὐκ ἂν ἔξαρνος γένοιο μὴ οὐκ ἐμὸς υἱὸς εἶναι οὐ γὰρ ἂν τεθνήκεις Ἄμμωνός γε ὤν
ΑΛΕΞΑΝΔΡΟΣ
Οὐδ αὐτὸς ἠγνόουν ὦ πάτερ ὡς Φιλίππου τοῦ Ἀμύντου υἱός εἰμι ἀλλ ἐδεξάμην τὸ μάντευμα χρήσιμον εἰς τὰ
πράγματα εἶναι οἰόμενος
ΦΙΛΙΠΠΟΣ
Πῶς λέγεις χρήσιμον ἐδόκει σοι τὸ παρέχειν σεαυτὸν ἐξαπατηθησόμενον ὑπὸ τῶν προφητῶν
ΑΛΕΞΑΝΔΡΟΣ
Οὐ τοῦτο ἀλλ οἱ βάρβαροι κατεπλάγησάν με καὶ οὐδεὶς ἔτι ἀνθίστατο οἰόμενοι θεῷ μάχεσθαι ὥστε ῥᾷον
ἐκράτουν αὐτῶνrdquo 213 ldquo[] καὶ τὸ πάντων γελοιότατον ἐμιμοῦ τὰ τῶν νενικημένωνrdquo
138
eacute justamente o igualamento proporcionado pela morte que coloca todos nas mesmas condiccedilotildees bem
como elementos da teologia poliacutetica como a divinizaccedilatildeo dos governantes
Os caminhos propostos por Luciano nos Diaacutelogos dos mortos satildeo intrincados e instigadores
Entretanto estamos convencidos que ele natildeo estaacute discorrendo sobre os mortos Esse texto versa sobre
os vivos e a vida natildeo existe sem a poliacutetica com suas normas leis e principalmente a comunidade
Assim Luciano opotildee as caracteriacutesticas do tirano marcadas para aleacutem das insiacutegnias materiais do cargo
(manto e diadema) por defeitos morais arrogacircncia orgulho presunccedilatildeo ignoracircncia insolecircncia
e raiva Trata-se do oposto dos elementos valorizados sabedoria autodomiacutenio verdade franqueza
liberdade Essa oposiccedilatildeo de valores serve-se das referecircncias dadas pelo regime de memoacuteria
romano expressos em uma memoacuteria cultural reatualizada por Luciano de Samoacutesata
33 Narrativas miacuteticas e os dilemas do poder o caso do Prometeu luciacircnico
Neste toacutepico analisamos os usos do poder nos diaacutelogos luciacircnicos tendo em vista
principalmente a presenccedila do titatilde Prometeu que eacute tradicionalmente ligado agraves atitudes
arbitraacuterias de Zeus o deus dos tiranos em oposiccedilatildeo agrave divindade filantroacutepica que tem a
capacidade de antever o futuro Para tal analisamos o diaacutelogo maior Prometeu ou o Caacuteucaso
o diaacutelogo I da coletacircnea Diaacutelogos dos deuses travado entre Zeus e Prometeu e sempre que
necessaacuterio faremos referecircncia ao pequeno opuacutesculo Ao que disse ldquoEacutes um Prometeu em seus
discursosrdquo
As narrativas miacuteticas vinculadas ao titatilde satildeo fundamentais na tradiccedilatildeo literaacuteria helecircnica
e foi o mote para muitas trageacutedias especialmente o Prometeu Agrilhoado de Eacutesquilo Trata-
se de um personagem recorrente nos escritos luciacircnicos sendo que o mesmo fornece o pretexto
para muitos assuntos mas principalmente para pensar os atos abusivos dos detentores do
poder214
As referecircncias luciacircnicas a esse mito satildeo de duas ordens uma referente agrave puniccedilatildeo
recebida pelo criador dos homens no Caacuteucaso e outra agrave comparaccedilatildeo indireta da poeacutetica
luciacircnica com as artes de Prometeu Inicialmente vamos pensar essa apropriaccedilatildeo vinculada agrave
reflexatildeo do proacuteprio ofiacutecio uma vez que permeado a esse debate podemos ver elementos com
os quais Luciano constroacutei seu texto cocircmico numa atitude conhecida para produzir o riso que eacute
sempre retomado como um caminho para o pensamento utilizado pelo siacuterio em seus escritos
214 Prometeu eacute citado por Luciano no J conf 8 J trag 1 Prom verbs 1 2 3 4 5 6 7 14 20 21 Sacr 5 6
Philops 2 Merc Cond 26 Salt 38 Amor 9 36 43 D deor 5 Nessa lista de vinte e uma apariccedilotildees excetuamos
o diaacutelogo maior Prometeu ou o Caacuteucaso
139
Nossa anaacutelise destaca os elementos poliacuteticos e dessa forma mobiliza o debate sobre a postura
luciacircnica frente agraves diferentes formas de poder
Ao falar de sua poeacutetica no opuacutesculo Ao que diz que ldquoEacutes um Prometeu em seus
discursosrdquo Luciano debate a aproximaccedilatildeo dos seus feitos literaacuterios com aqueles atribuiacutedos ao
titatilde colocando-se como um ldquomodelador de argilardquo (πηλοπλάθος) (Luciano Prom Verb 1)
Mais uma vez o siacuterio justifica a uniatildeo conflitante do diaacutelogo filosoacutefico com a comeacutedia O mito
prometeico eacute retomado especialmente pelos benefiacutecios que trouxe agrave humanidade a qual deve
sua existecircncia ao fato de Prometeu ter criado os homens a partir do barro Ele garantiu a
sobrevivecircncia da humanidade roubando o fogo dos deuses e entregando aos homens bem como
estabeleceu uma divisatildeo favoraacutevel aos mortais dos sacrifiacutecios realizados Na narrativa miacutetica
satildeo justamente esses benefiacutecios que levam o titatilde a receber uma puniccedilatildeo extremamente cruel
ser preso no monte Caacuteucaso e ter uma aacuteguia comendo seu fiacutegado todos os dias Ele era
considerado o mais saacutebio dos Titatildes aquele que via com antecedecircncia o desenrolar dos fatos
sendo por isso mesmo considerado um profeta ou seja o personagem miacutetico que encerra a
filantropia em todo o imaginaacuterio que se constroacutei ao redor dele
Luciano ao defender e explicitar sua poeacutetica se indaga sobre a pertinecircncia da alcunha
de Prometeu para seu oficio questiona se seus textos satildeo mesmo prometeicos ou seja
profeacuteticos indicando caminhos para o futuro Aleacutem disso ressalta que a junccedilatildeo do diaacutelogo
filosoacutefico com a comeacutedia pode ensejar o desejo de ldquoenganar os ouvintes e servir-lhes ossos
escondidos sob a gordura o riso cocircmico sob a seriedade filosoacuteficardquo (Luciano Prom Verb 7)215
O engano de que fala o escritor eacute justamente a intenccedilatildeo expliacutecita de seus escritos produzirem o
riso que faz pensar caracteriacutestico do cocircmico seacuterio
Nesse contexto em que o samosatense reflete sobre a novidade dos textos que produz
ele narra uma anedota
Ptolomeu216 filho de Lago duas coisas novas levou ao Egito uma fecircmea de
camelo de Bactres interamente negra e um homem de duas cores de modo
que uma metade ele a tinha acuradamente negra enquanto a outra era
hiperbolicamente branca por igual sendo assim dividido Reunindo entatildeo os
egiacutepcios no teatro mostrou-lhes Ptolomeu muitos e variados espetaacuteculos e
por fim tambeacutem estes a fecircmea de camelo e o homem branco pela metade
julgando haver de deixaacute-los maravilhados com o que viam Pois bem face da
fecircmea de camelo tiveram medo e pouco faltou para que fugissem em pacircnico
ainda que ela estivesse toda enfeitada com ouro coberta de puacutepura e seu freio
215 ldquo[] ἐξαπατῶν ἴσως τοὺς ἀκούοντας καὶ ὀστᾶ παραθεὶς αὐτοῖς κεκαλυμμένα τῇ πιμελῇ γέλωτα κωμικὸν ὑπὸ
σεμνότητι φιλοσόφῳrdquo 216 Ptolomeu I Soter (366 ndash 283 a C) foi o fundador da dinastia dos Laacutegidas no Egito Foi um dos generais
macedocircnicos que acompanhou Alexandre Tomou o tiacutetulo de Rei em 305 a C recusando-se a pagar impostos a
Macedocircnia Filho de um nobre Lago do qual deriva o nome da dinastia Laacutegidas
140
fosse incrustado de pedras preciosas cimeacutelio de um Daacuterio um Cambises ou
um Ciro jaacute em face do homem muitos comeccedilaram a rir outros se encheram
de horror como se diante de um monstro desse modo compreendendo
Ptolomeu que a novidade natildeo era apreciada nem admirada pelos egiacutepcios
mas eles julgavam as coisas pela eurritmia e a formosura mandou levar
embora aquelas coisas e natildeo mais as teve em consideraccedilatildeo A fecircmea de camelo
morreu por falta de cuidado o homem duplo ele deu de presente a Teacuterpis o
flautista que tocou bem durante o banquete (Luciano Prom Verb 4) 217
Colocamos duas indagaccedilotildees uma de ordem esteacutetica e literaacuteria referente agrave poeacutetica
luciacircnica outra de ordem poliacutetica referente a elementos simboacutelicos presentes no texto que
produzem o riso A indagaccedilatildeo esteacutetica pode ser resumida nas colocaccedilotildees de Brandatildeo segundo
o qual a poeacutetica luciacircnica deveria ldquoajuntar o diferente e harmonizaacute-lo () Sem isso teria o
efeito de provocar em vez de prazer e divertimento apenas pavor e riso como as novidades de
Ptolomeurdquo (BRANDAtildeO 2001 79) Essa breve anedota apresenta elementos presentes na
sociedade greco-romana na qual o siacuterio se inseria
Primeiramente haacute o viacutenculo com um soberano helenizado do Egito um sucessor dos
antigos Faraoacutes destacando-se dessa forma a aproximaccedilatildeo com as realezas orientais com a
menccedilatildeo a Ptolomeu e aos monarcas persas Haacute na cultura poliacutetica romana a criacutetica a posturas
orientalizantes dos governantes ndash podemos lembrar os casos de Juacutelio Cesar Marco Antocircnio ou
Nero
O segundo elemento a ser evidenciado eacute a fecircmea de camela enfeitada com insiacutegnias
proacuteprias de um governante manto puacuterpura e joias Haacute um alerta sobre as accedilotildees dos governantes
e a possibilidade de as mesmas gerarem riso e espanto Tudo isso teria ocorrido no Egito cuja
importacircncia estrateacutegica para a poliacutetica imperial jaacute enfatizamos o que se coaduna com as
colocaccedilotildees que avizinham a imagem do titatilde filantropo
Os usos poliacuteticos da imagem de Prometeu satildeo pautados no questionamento agrave tirania de
Zeus e dos elementos que a rodeiam Luciano constroacutei exemplos de como um governante
desatento pode vir a se tornar um mau governante Inicialmente vamos ao desdobramento desse
diaacutelogo e em seguida agrave refutaccedilatildeo dos crimes prometeicos feita pelo proacuteprio Titatilde no diaacutelogo
Prometeu ou o Caacuteucaso Noacutes dialogamos com as remissotildees miacuteticas construiacutedas de maneira
217 ldquoΠτολεμαῖος γοῦν ὁ Λάγου δύο καινὰ ἐς Αἴγυπτον ἄγων κάμηλόν τε Βακτριανὴν παμμέλαιναν καὶ δίχρωμον
ἄνθρωπον ὡς τὸ μὲν ἡμίτομον αὐτοῦ ἀκριβῶς μέλαν εἶναι τὸ δὲ ἕτερον ἐς ὑπερβολὴν λευκόν ἐπ ἴσης δὲ
μεμερισμένον ἐς τὸ θέατρον συναγαγὼν τοὺς Αἰγυπτίους ἐπεδείκνυτο αὐτοῖς ἄλλα τε πολλὰ θεάματα καὶ τὸ
τελευταῖον καὶ ταῦτα τὴν κάμηλον καὶ τὸν ἡμίλευκον ἄνθρωπον καὶ ᾤετο ἐκπλήξειν τῷ θεάματι οἱ δὲ πρὸς μὲν
τὴν κάμηλον ἐφοβήθησαν καὶ ὀλίγου δεῖν ἔφυγον ἀναθορόντες καίτοι χρυσῷ πᾶσα ἐκεκόσμητο καὶ ἁλουργίδι
ἐπέστρωτο καὶ ὁ χαλινὸς ἦν λιθοκόλλητος Δαρείου τινὸς ἢ Καμβύσου ἢ Κύρου αὐτοῦ κειμήλιον πρὸς δὲ τὸν
ἄνθρωπον οἱ μὲν πολλοὶ ἐγέλων οἱ δέ τινες ὡς ἐπὶ τέρατι ἐμυσάττοντο ὥστε ὁ Πτολεμαῖος συνεὶς ὅτι οὐκ
εὐδοκιμεῖ ἐπ αὐτοῖς οὐδὲ θαυμάζεται ὑπὸ τῶν Αἰγυπτίων ἡ καινότης ἀλλὰ πρὸ αὐτῆς τὸ εὔρυθμον καὶ τὸ
εὔμορφον κρίνουσι μετέστησεν αὐτὰ καὶ οὐκέτι διὰ τιμῆς ἦγεν ὡς πρὸ τοῦ ἀλλ ἡ μὲν κάμηλος ἀπέθανεν
ἀμελουμένη τὸν ἄνθρωπον δὲ τὸν διττὸν Θέσπιδι τῷ αὐλητῇ ἐδωρήσατο καλῶς αὐλήσαντι παρὰ τὸν πότονrdquo
141
singular nos diaacutelogos luciacircnicos Haacute uma relaccedilatildeo intriacutenseca aos elementos que tradicionalmente
constroem posturas justas e retas com aquelas sofridas pelo titatilde No caso ele representa algueacutem
que sofreu uma injusticcedila por querer beneficiar a humanidade
No diaacutelogo Prometeu ou o Caacuteucaso travado entre Prometeu Hermes e Hefesto Zeus
permanece como personagem ausente mas que fornece a tocircnica do decorrer do diaacutelogo O
diaacutelogo acontece no iniacutecio da puniccedilatildeo do titatilde que exige ser ouvido e ter o direito de se defender
Apoacutes escutar sua acusaccedilatildeo Prometeu inicia sua defesa apologia construiacuteda seguindo o topos
de uma apresentaccedilatildeo em um tribunal
Maurice Croizet afirma que o ldquoPrometeu ou o Caacuteucaso nos oferece uma vigorosa
reinvindicaccedilatildeo do direito agrave razatildeordquo (CROUZET 1882 217) Tal razatildeo enfatizada por ele
vinculava-se agrave criacutetica ao abuso do poder O primeiro ponto do diaacutelogo eacute a definiccedilatildeo do lugar
em que ele seraacute preso
Hermes ndash Aqui estaacute oacute Hefesto o Caacuteucaso ao qual o pobre do Prometeu iraacute
ser pregado Procuremos desde jaacute uma escarpa adequada se eacute que haacute por aiacute
alguma desimpedida de neve de modo que os grilhotildees fiquem cravados com
firmeza e ele fique pendurado agrave vista de toda gente
Hefesto ndash Procuremos pois oacute Hermes Na verdade natildeo conveacutem que ele seja
crucificado nem muito baixo e rasteiro para que natildeo o socorram as suas
criaturas os humanos nem laacute no cume ndash pois aiacute ficaria invisiacutevel aos que
estivessem laacute em baixo ndash mas se concordas que seja crucificado por aqui
mais ou menos a meio no alto da ravina com os braccedilos estendidos desta
escarpa ateacute agrave da frente (Luciano Prom 1)218
Tal como uma condenaccedilatildeo humana a puniccedilatildeo do titatilde deve servir de exemplo aos
homens que o observam Desta dita o texto segue com a intervenccedilatildeo de Prometeu que clama
por piedade aos seus carrascos entretanto esses natildeo podem desobedecer a Zeus pois isso eacute
muito perigoso Ao clamar suas dores Prometeu incita Hermes agrave recordaccedilatildeo de seus crimes
quais sejam 1) induzir Zeus agrave escolha do monte de gordura e ossos na distribuiccedilatildeo das
oferendas 2) criar os homens a partir do barro 3) roubar o fogo Entretanto Prometeu quer
218 ldquoΕΡΜΗΣ
Ὁ μὲν Καύκασος ὦ Ἥφαιστε οὗτος ᾧ τὸν ἄθλιον τουτονὶ Τιτᾶνα προσηλῶσθαι δεήσει περισκοπῶμεν δὲ ἤδη
κρημνόν τινα ἐπιτήδειον εἴ που τῆς χιόνος τι γυμνόν ἐστιν ὡς βεβαιότερον καταπαγείη τὰ δεσμὰ καὶ οὗτος ἅπασι
περιφανὴς εἴη κρεμάμενος
ΗΦΑΙΣΤΟΣ
Περισκοπῶμεν ὦ Ἑρμῆ οὔτε γὰρ ταπεινὸν καὶ πρόσγειον ἐσταυρῶσθαι χρή ὡς μὴ ἐπαμύνοιεν αὐτῷ τὰ
πλάσματα αὐτοῦ οἱ ἄνθρωποι οὔτε μὴν κατὰ τὸ ἄκρον ndash ἀφανὴς γὰρ ἂν εἴη τοῖς κάτω ndash ἀλλ εἰ δοκεῖ κατὰ μέσον
ἐνταῦθά που ὑπὲρ τῆς φάραγγος ἀνεσταυρώσθω ἐκπετασθεὶς τὼ χεῖρε ἀπὸ τουτουὶ τοῦ κρημνοῦ πρὸς τὸν
ἐναντίονrdquo
142
defender-se e provar que Zeus aplicou-lhe ldquouma sentenccedila injustardquo219 (Luciano Prom 4) e que ele
devia ser ldquocondenado a comer no Pritaneurdquo220 (Luciano Prom 4)
Ser condenado ao Pritaneu eacute o siacutembolo maacuteximo de uma grande injusticcedila na Histoacuteria da Filosofia
Soacutecrates quando estava sendo julgado por negar os deuses e corromper os jovens atenienses afirmou
que deveria comer com os embaixadores estrangeiros ou com pessoas que haviam realizado feitos
grandiosos para a cidade Significa comer agraves custas da polis Como no diaacutelogo o Pescador ou os
ressuscitados o siacuterio retoma esse exemplo para marcar a possibilidade de um julgamento injusto visto
que Prometeu reafirma a condiccedilatildeo injusta de sua puniccedilatildeo aproximando-se de Soacutecrates (FINLEY 1991
70)
Hermes lembra-lhe de que o debate a seguir natildeo teraacute nenhum efeito sob sua pena mas
pode ser complicado ao leitor contemporacircneo imaginar uma sociedade que tinha prazer em
ouvir uma declamaccedilatildeo sofiacutestica Nesse sentido mesmo se tratando de um assunto judicial essa
exposiccedilatildeo subverte uma vez que serve apenas de distraccedilatildeo isso eacute natildeo tem qualquer poder
deliberativo
Hermes e Hefesto satildeo os antagonistas presentes que falam sob a sombra de Zeus o
grande antagonista que natildeo se faz presente Apoacutes a acusaccedilatildeo dos crimes jaacute elencados
anteriormente haacute uma longa defesa (apologia) de Prometeu Sobre os sacrifiacutecios o titatilde acusa
Zeus de ser ldquotatildeo mesquinho e rabugentordquo (Luciano Prom 7)221
O Titatilde lembra que ldquosoacute por ter encontrado um pequenino osso na sua porccedilatildeo mandou
empalar um deus tatildeo antigo sem se lembrar da luta conjuntardquo (Luciano Prom 7)222 O
Prometeu luciacircnico trata o caso como uma brincadeira acontecida em um banquete e que Zeus
devia esquecer o fato como prescreviam as regras desta instituiccedilatildeo223 (Luciano Prom 8) A
puniccedilatildeo sofrida eacute tratada como um abuso de puder
Prometeu traccedila uma imagem interessante de Zeus que aleacutem de mesquinho e rabugento
natildeo eacute grato pelo auxiacutelio militar A fuacuteria do deus eacute ldquoproacutepria de um menino ou seja enfurecer-se
219 ldquoἄδικα ἐγνωκόταrdquo 220 ldquo[] ἐν πρυτανείῳ σιτήσεως εἰ τὰ δίκαια ἐγίγνετο ἐτιμησάμην ἂν ἐμαυτῷrdquo 221 ldquoμικρολόγος καὶ μεμψίμοιρόςrdquo 222 ldquo[] διότι μικρὸν ὀστοῦν ἐν τῇ μερίδι εὗρε ἀνασκολοπισθησόμενον πέμπειν παλαιὸν οὕτω θεόν μήτε τῆς
συμμαχίας μνημονεύσαντα []rdquo 223 O banquete ou simpoacutesio no mundo grego claacutessico era um momento extremamente feacutertil culturalmente Em
primeiro lugar era cheio de simbolismo como entrar com o peacute direito no salatildeo para natildeo desagradar os deuses Era
a uacutenica refeiccedilatildeo importante para os romanos momento de relaxamento e diversatildeo com jogos cantos danccedilas e
declamaccedilotildees sofiacutesticas (ROBERT 1995 121-124) Eacute comum no mundo greco-romano a escrita de textos com
caracteriacutesticas de um banquete cujos modelos satildeo aqueles escritos por Platatildeo e Xenofonte Luciana Romeri (2002)
em seu livro Philosophes entre mots e metsPlutarque Lucien et Atheacuteneacutee autor de la table de Platon analisa os
banquetes escritos por Luciano de Samoacutesata Plutarco de Queroneia e Ateneu de Naucratis buscando entender os
viacutenculos que se produziram nesses escritores entre filosofia e comeacutedia Recentemente Olimar Flores Junior (2014)
analisou a presenccedila do cinismo nos escritos de Luciano a partir do texto O banquete ou os Lapidas
143
e irritar-se por ele natildeo ter recebido a melhor parterdquo (Luciano Prom 7)224 O deus eacute acusado de
natildeo saber se portar em um banquete e de ser um ressentido que guarda maacutegoas dos infortuacutenios
que ocorreram naquele espaccedilo (Luciano Prom 8) As tintas colocadas na imagem traccedilada pelo
Prometeu luciacircnico satildeo fortes uma vez que suas atitudes satildeo dignas de uma ldquopessoa irritada de
mesquinhez de espiacuterito de baixeza de mentalidade e de predisposiccedilatildeo para a irardquo (Luciano
Prom 9)225 O Titatilde considera que recebeu uma pena exagerada para o lsquocrimersquo que cometera
Ele menospreza seu delito (Luciano Prom 10)
A segunda acusaccedilatildeo de ter criado os homens faz com que o Titatilde lembre os dois deuses
que sem os homens os deuses natildeo teriam templos altares muito menos hecatombes (Luciano
Prom 12) Luciano natildeo chega agrave conclusatildeo ateiacutesta de que os deuses existem porque os homens
os criaram sua argumentaccedilatildeo tem como limite a ideia de que os deuses soacute tecircm culto por que os
homens existem ou seja os deuses precisam dos homens vis
Prometeu ndash () Ora existiam no iniacutecio ndash na verdade tornar-se-aacute mais
facilmente evidente se eu cometi um crime quando alterei as coisas e inovei
no que respeita aos homens - existia pois unicamente a raccedila divina e
celestial e a Terra era uma coisa selvagem e informe toda coberta de cerrados
bosques e estes mesmos em estado bravio natildeo existiam altares dos deuses
nem templos ndash e como - nem estaacutetuas ou outras coisas do geacutenero como
atualmente se veem por toda parte veneradas com todo o desvelo (Luciano
Prom 12)226
A reflexatildeo luciacircnica coloca os homens como ldquoobras que tecircm sido uacuteteis aos deusesrdquo
(Luciano Prom 14)227 O Prometeu luciacircnico constroacutei uma imagem para si que o opotildee ao deus
tiracircnico uma vez que ele eacute preocupado com o ldquobem comumrdquo (εἰς τὸ κοινὸν) (Luciano Prom
14)
Prometeu tambeacutem refuta a ideia de que a criaccedilatildeo das mulheres foi um mal afirmando
que ldquoMas aquilo que mais me atormenta eacute o fato de voacutes que me censurais por ter fabricado os
homens vos apaixonardes particularmente pelas mulheres natildeo cessando de descer laacute abaixordquo
(Luciano Prom 17)228
224 ldquo[] καὶ ὡς μειρακίου τὸ τοιοῦτον ὀργίζεσθαι καὶ ἀγανακτεῖν εἰ μὴ τὸ μεῖζον αὐτὸς ήψεταιrdquo 225 ldquoὅρα γὰρ μὴ πολλήν τινα ταῦτα κατηγορῇ τοῦ ἀγανακτοῦντος αὐτοῦ μικροψυχίαν καὶ ἀγένειαν τῆς γνώμης καὶ
πρὸς ὀργὴν εὐχέρειανrdquo 226 ldquoἮν τοίνυν πάλαι ndash ῥᾷον γὰρ οὕτω δῆλον ἂν γένοιτο εἴ τι ἠδίκηκα ἐγὼ μετακοσμήσας καὶ νεωτερίσας τὰ
περὶ τοὺς ἀνθρώπους ndash ἦν οὖν τὸ θεῖον μόνον καὶ τὸ ἐπουράνιον γένος ἡ γῆ δὲ ἄγριόν τι χρῆμα καὶ ἄμορφον
ὕλαις ἅπασα καὶ ταύταις ἀνημέροις λάσιος οὔτε δὲ βωμοὶ θεῶν ἢ νέως ndash πόθεν γάρ ndash ἢ ξόανα ἤ τι ἄλλο τοιοῦτον
οἷα πολλὰ νῦν ἁπανταχόθι φαίνεται μετὰ πάσης ἐπιμελείας τιμώμεναrdquo 227 ldquoὅτι δὲ καὶ χρήσιμα ταῦτα γεγένηται τοῖς θεοῖς []rdquo 228 ldquoὃ δὲ μάλιστά με πνίγει τοῦτ ἐστίν ὅτι μεμφόμενοι τὴν ἀνθρωποποιίαν καὶ μάλιστά γε τὰς γυναῖκας ὅμως
ἐρᾶτε αὐτῶν καὶ οὐ διαλείπετε κατιόντες []rdquo
144
As palavras do Titatilde que por um lado tecircm o fito de defendecirc-lo das acusaccedilotildees por outro
lado colocam um importante indiacutecio para entendermos a construccedilatildeo luciacircnica da imagem de
Zeus como um tirano que se metamorfoseia em diversas formas para vir agrave terra com o intuito
de copular com mortais (Luciano Prom 17) Se a mulher fosse tatildeo danosa assim eles a
evitariam Entretanto eacute comum os deuses se apaixonarem por mulheres mortais (Luciano
Prom 17) Ele lembra inclusive que alguns deuses satildeo frutos dessas relaccedilotildees com as mortais
Haacute nos diaacutelogos a imagem do tirano que viola as mulheres e em alguns casos os homens
tratando-se portanto de mais uma arbitrariedade
Como em um tribunal Prometeu bajula seus ouvintes
Todavia ndash direis talvez ndash os homens deviam ser modelados sim senhor mas
de outra forma e natildeo agrave nossa imagem Mas que outro modelo tomaria eu
melhor do que este que eu jaacute sabia absolutamente belo Ou deveria fabricar
um animal sem inteligecircncia bestial e selvagem E como eles sacrificariam os
deuses e vos prestariam outras homenagens se natildeo fosse feito dessa maneira
(Luciano Prom 17)229
O argumento conclui que a fabricaccedilatildeo dos homens mostrou-se muito mais vantajosa aos
deuses (Luciano Prom 11) jaacute que os deuses se beneficiam bastante com os mesmos por meio
das aventuras com mortais das oferendas e preces das construccedilotildees de templos e santuaacuterios
O terceiro crime ldquoentatildeo agora com vossa licenccedila passo agrave questatildeo do fogo e a esse
censuraacutevel roubordquo230 (Luciano Prom 18) leva-nos ao entendimento de que ao levar o fogo
aos homens o Titatilde natildeo teria privado os deuses de seu benefiacutecio uma vez que o fogo se reparte
em quantas chamas forem produzidas ldquoo fogo natildeo se extingue quando outra chama se acende
nelerdquo (Luciano Prom 18)231 Nesse passo o Prometeu luciacircnico retoma a tradiccedilatildeo greco-
romana expressa pela memoacuteria eacutepica dos poemas homeacutericos e recorda que os deuses satildeo
ldquodispensadores de bensrdquo (δωτῆρας ἑάων) (Luciano Prom 18 Homero Odis VIII 325) assim
natildeo cabe aos deuses serem avarentos O Titatilde ressalta como os deuses natildeo perderam com o fato
de os homens terem o fogo mas ganharam pois agora eles podem usar o mesmo nos
hecatombes (Luciano Prom 19) Portanto a queixa feita pelos deuses ldquoseraacute absolutamente
contraacuteria ao vosso desejordquo (Luciano Prom 19)232
229 ldquoἈλλ ἐχρῆν μέν ἴσως φήσεις ἀναπεπλάσθαι τοὺς ἀνθρώπους ἄλλον δέ τινα τρόπον ἀλλὰ μὴ ἡμῖν ἐοικότας
καὶ τί ἂν ἄλλο παράδειγμα τούτου ἄμεινον προεστησάμην ὃ πάντως καλὸν ἠπιστάμην ἢ ἀσύνετον καὶ θηριῶδες
ἔδει καὶ ἄγριον ἀπεργάσασθαι τὸ ζῷον καὶ πῶς ἂν ἢ θεοῖς ἔθυσαν ἢ τὰς ἄλλας ὑμῖν τιμὰς ἀπένειμαν οὐχὶ τοιοῦτοι
γενόμενοιrdquo 230 Περὶ μὲν οὖν τῶν ἀνθρώπων καὶ ταῦτα ἱκανά ἤδη δὲ καὶ ἐπὶ τὸ πῦρ εἰ δοκεῖ μέτειμι καὶ τὴν ἐπονείδιστον
ταύτην κλοπήν 231 ldquoοὐ γὰρ ἀποσβέννυται ἐναυσαμένου τινόςrdquo 232 ldquoἐναντιωτάτη τοίνυν ἡ μέμψις αὕτη ἂν γένοιτο τῇ ὑμετέρᾳ ἐπιθυμίᾳrdquo
145
Entretanto as palavras que refutam peremptoriamente inflamariam a ira de Zeus como
afirma Hermes
Hermes ndash Oacute Prometeu natildeo eacute faacutecil rivalizar com um sofista tatildeo ardoroso No
entanto tens muita sorte pelo fato de Zeus natildeo ter escutado as suas palavras
pois bem sei que te poria dezesseis abutres a dilacerar-te as entranhas pela
maneira terriacutevel como tu o acusaste parecendo que te defendias Aleacutem disso
fico admirado pelo fato de tu um adivinho natildeo teres previsto que irias ser
punido por esses seus atos (Luciano Prom 20) 233
Por meio do personagem Hermes Luciano apresenta dois elementos que consideramos
fundamentais para a anaacutelise que propomos Primeiramente que o poder estabelecido no mundo
representado pelo escritor bem como naquele em que ele viveu natildeo permitia a contestaccedilatildeo das
decisotildees dos governantes Em segundo lugar o discurso de defesa proposto estava carregado
de denuacutencias O prometeu luciacircnico deixa claro que Zeus natildeo se preocupa com a comunidade
A forma de colocar o debate mimetiza a postura luciacircnica diante do poder estabelecido Nesse
caso observamos que Zeus se comportou como um tirano uma vez que como nos alerta
Aristoacuteteles ldquo[a tirania eacute hostil] contra os notaacuteveis elimina-os de forma oculta ou agraves claras e
exila-os como rivais e empecilhos ao exerciacutecio da autoridaderdquo (Aristoacuteteles Pol1311a 15-
18)234
Todavia Prometeu sabe que Heacuteracles o libertaraacute da aacuteguia e que chegaraacute o momento em
que Zeus o libertaraacute como pagamento de um segredo A conclusatildeo desse diaacutelogo se completaraacute
com o proacuteximo texto que analisamos
Nos Diaacutelogos dos deuses Luciano constroacutei cenas raacutepidas do cotidiano dos deuses e agrave
primeira vista os textos parecem bem superficiais Entretanto pouco a pouco vemos que o siacuterio
apresenta indiacutecios instigantes sobre a cultura poliacutetica de seu tempo sendo que a unidade desses
diaacutelogos pode ser conferida pela imagem de Zeus como analisamos no toacutepico seguinte No
primeiro diaacutelogo da coletacircnea dos Diaacutelogos dos deuses travado entre Zeus e Prometeu o Titatilde
suplica a Zeus a liberdade do castigo que lhe foi infringido no Caacuteucaso
Prometeu ndash Oacute Zeus solta-me que jaacute padeci horrivelmente
Zeus ndash O quecirc Soltar-te a ti que devias ter grilhetas ainda mais pesadas ter
todo o Caacuteucaso sobre tua cabeccedila e dezesseis abutres natildeo soacute a dilacerar-te o
fiacutegado mas tambeacutem a arrancar-te os olhos como castigo por nos teres
233 ldquoΕΡΜΗΣ
Οὐ ῥᾴδιον ὦ Προμηθεῦ πρὸς οὕτω γενναῖον σοφιστὴν ἁμιλλᾶσθαι πλὴν ἀλλὰ ὤνησο διότι μὴ καὶ ὁ Ζεὺς ταῦτα
ἐπήκουσέ σου εὖ γὰρ οἶδα ἑκκαίδεκα γῦπας ἂν ἐπέστησέ σοι τὰ ἔγκατα ἐξαιρήσοντας οὕτω δεινῶς αὐτοῦ
κατηγόρηκας ἀπολογεῖσθαι δοκῶν ἐκεῖνο δέ γε θαυμάζω ὅπως μάντις ὢν οὐ προεγίγνωσκες ἐπὶ τούτοις
κολασθησόμενοςrdquo 234 ldquoἐκ δημοκρατίας δὲ τὸ πολεμεῖν τοῖς γνωρίμοις καὶ διαφθείρειν λάθρᾳ καὶ φανερῶς καὶ φυγαδεύειν ὡς
ἀντιτέχνους καὶ πρὸς τὴν ἀρχὴν ἐμποδίουςrdquo
146
modelado esses seres que satildeo os homens por nos teres roubado o fogo235 e
teres criado as mulheres Seraacute preciso mencionar tambeacutem como me enganaste
na distribuiccedilatildeo da carne servindo-me ossos disfarccedilados nas gorduras e
guardando para ti a melhor das partes (Luciano D deor I1)236
No diaacutelogo Prometeu implora a piedade de Zeus uma vez que jaacute fora punido
Entretanto Zeus se coloca inatingiacutevel agraves suacuteplicas retomando as acusaccedilotildees tradicionais agrave
acusaccedilatildeo ao Titatilde Zeus se coloca como um tirano Diante dessa postura Prometeu propotildee um
acordo Revelaraacute uma informaccedilatildeo importante desde que tenha a liberdade Nesse breve diaacutelogo
como no decorrer dos outros diaacutelogos dos deuses Zeus se prepara em segredo para mais uma
aventura amorosa Prometeu diz ldquoSe eu te disser para onde eacute que tu te encaminhas neste
momento acreditaraacutes em mim e nas minhas restantes profeciasrdquo (Luciano D Deor I2)237
Diante da afirmativa de Zeus o Titatilde revela que o deus iraacute agrave casa de Teacutetis onde teraacute relaccedilotildees
sexuais com ela Diante do acerto ele permite que Prometeu faccedila a profecia que de fato lhe interessa
Assim se expressa Prometeu ldquoOacute Zeus natildeo tenhas relaccedilotildees com a Nereida pois se ela engravidar de ti
a crianccedila far-te-aacute o mesmo que tu fizeste ardquo (Luciano D Deor I 2)238 Diante do jogo literaacuterio o Titatilde
natildeo ousa mencionar que Zeus derrubou seu pai Cronos e se tornou o rei dos deuses pois o cuidado eacute
necessaacuterio diante daqueles que satildeo detentores do poder
No passo seguinte do diaacutelogo apresentado Prometeu utiliza-se de seus dons de prever o
futuro para conseguir a liberdade do Caacuteucaso Zeus que estaria de saiacuteda para ir agrave casa de Teacutetis
e se deitar com ela eacute advertido pelo Titatilde que se ele fizer isso ela teraacute um filho que faraacute o
mesmo que ele fez com Cronos ou seja que iraacute depor o pai e tomar seu lugar Zeus se furta de
manter relaccedilotildees com a divindade feminina e ordena a Hefesto que liberte o Titatilde Segundo
Rodolfo P Buzoacuten e Joseacute P Maksimczuk nesse trecho
Luciano lsquomanipularsquo o episoacutedio miacutetico da queda de Cronos para apresentar a
troca de mando como uma passagem da monarquia agrave tirania () A
comparaccedilatildeo entre a queda de Cronos e o hipoteacutetico rival de Zeus pelo trono eacute
uma falaacutecia as circunstacircncias os personagens e os motivos satildeo
completamente diferentes Mas Luciano muito habilmente o modifica e
235 Luis Seacutechan no livro Le mythe de Promeacutetheacute debate muitos pontos deste mito como o significado do conflito
deste com Zeus as artes do fogo e a metalurgia (SEacuteCHAN 1952 4) 236 ldquoΠΡΟΜΗΘΕΥΣ
Λῦσόν με ὦ Ζεῦ δεινὰ γὰρ ἤδη πέπονθα
ΖΕΥΣ
Λύσω σε φῄς ὃν ἐχρῆν βαρυτέρας πέδας ἔχοντα καὶ τὸν Καύκασον ὅλον ὑπὲρ κεφαλῆς ἐπικείμενον ὑπὸ
ἑκκαίδεκα γυπῶν μὴ μόνον κείρεσθαι τὸ ἧπαρ ἀλλὰ καὶ τοὺς ὀφθαλμοὺς ἐξορύττεσθαι ἀνθ ὧν τοιαῦθ ἡμῖν ζῷα
τοὺς ἀνθρώπους ἔπλασας καὶ τὸ πῦρ ἔκλεψας καὶ γυναῖκας ἐδημιούργησας ἃ μὲν γὰρ ἐμὲ ἐξηπάτησας ἐν τῇ νομῇ
τῶν κρεῶν ὀστᾶ πιμελῇ κεκαλυμμένα παραθεὶς καὶ τὴν ἀμείνω τῶν μοιρῶν σεαυτῷ φυλάττων τί χρὴ λέγεινrdquo 237 ldquoΠΡΟΜΗΘΕΥΣ
Ἢν εἴπω ἐφ ὅ τι βαδίζεις νῦν ἀξιόπιστος ἔσομαί σοι καὶ περὶ τῶν ὑπολοίπων μαντευόμενοςrdquo 238 ldquoΠΡΟΜΗΘΕΥΣ
Μηδέν ὦ Ζεῦ κοινωνήσῃς τῇ Νηρεΐδι ἢν γὰρ αὕτη κυοφορήσῃ ἐκ σοῦ τὸ τεχθὲν ἴσα ἐργάσεταί σε οἷα καὶ σὺ
ἔδρασας - rdquo
147
apresenta um Zeus que destronou seu pai silenciando seus motivos (BUZOacuteN
amp MAKSIMCZUK 201231)
Nosso ponto de vista eacute que Luciano tambeacutem se inspira em seu contexto no qual a
sucessatildeo imperial no periacuteodo dos Antoninos apresenta uma aparecircncia de tranquilidade Havia
um grande problema que era a ausecircncia de um regime juriacutedico para apresentar o nome que
deveria ser o Imperador Luciano viveu em um periacuteodo em que a propaganda imperial garantia
que o poder seria transmitido ao melhor entretanto sempre havia o risco de que esse poder
viesse a ser tomado por um filho de soberano que natildeo tivesse condiccedilotildees para tal Haacute aqui o
cuidado em dizer por meio da narrativa miacutetica retomada que se deve ter cuidado com os filhos
Natildeo acreditamos em uma mensagem direta ao governante pois nosso ponto de vista eacute de que
haacute aqui uma comunidade poliacutetica para a qual o texto luciacircnico se dirige e que essas pessoas satildeo
parte de uma pequena elite que apoia um novo governante Nesse sentido a profecia prometeica
refere-se a uma complexa rede de micropoderes dispersos nas cidades imperiais A narrativa
criada por Luciano reutiliza os mitos tradicionais para expressar sua postura referente ao poder
imperial A noccedilatildeo luciacircnica de que um governo que se comporte de maneira indevida pode ser
um mau governo fornece a tocircnica dos diaacutelogos natildeo se trata de oposiccedilatildeo mas de posiccedilatildeo diante
da realidade principalmente a partir de uma memoacuteria grega vinculada a uma instituiccedilatildeo
especiacutefica que eacute a tirania mas que no Impeacuterio Romano era um adjetivo usado para caracterizar
um mau governante
34 Espaccedilo e Narrativa miacutetica a representaccedilatildeo dos Tiranos entre gregos e
romanos
Nos toacutepicos anteriores vimos como haacute uma confluecircncia dos mitos com a Histoacuteria
nos textos luciacircnicos e que essa serve de mote para uma argumentaccedilatildeo poliacutetica Nesse passo
nos preocupamos em entrelaccedilar as imagens miacuteticas da chegada ao mundo dos mortos e da visita
do barqueiro do Hades Caronte agrave Terra com a apresentaccedilatildeo dos reis e tiranos gregos ou
melhor de homens que detinham o poder concentrado em suas matildeos Para isso nosso foco
recorta dois diaacutelogos maiores Caronte e os contempladores e A travessia para o Hades ou o
Tirano para anaacutelise O primeiro discorre sobre a visita do barqueiro ao mundo dos vivos
ciceroneado por Hermes Essa visita permite que ele observe a existecircncia humana com olhares
distanciados daquela que estaacute acostumado com os homens desesperados com a morte O outro
texto discorre principalmente sobre a chegada de um tirano ao Hades e seu julgamento Nos
148
dois diaacutelogos analisamos a representaccedilatildeo que Luciano cria dos tiranos tendo em vista os
elementos sobre a tirania que expressamos no toacutepico anterior
No mundo grego claacutessico e heleniacutestico ser um tirano significava assumir um cargo
especiacutefico com poderes e caracteriacutesticas proacuteprias Aristoacuteteles em sua Poliacutetica caracteriza a
tirania como um desvio da monarquia (Aristoacuteteles Pol 1311a 15) O filoacutesofo assim a
caracteriza ldquoA tirania () natildeo visa propriamente o bem comum mas tatildeo soacute o proveito pessoal
Enquanto a meta do tirano eacute o prazer a do rei eacute o bem Por essa razatildeo se explica de um lado
que o tirano ambicione a riqueza contrariamente ao rei que ambiciona a honrardquo (Aristoacuteteles
Pol 1311a2)239 Como jaacute vimos com o caso do Titatilde Prometeu Luciano enfatiza justamente
essas caracteriacutesticas nos tiranos poreacutem agora natildeo se trata de uma instituiccedilatildeo especiacutefica mas
de um qualificador do mau governante um alerta sobre a postura que um governante ruim pode
ter Trata-se de uma exegese do poder feita por meio dos diaacutelogos e natildeo de uma denuacutencia a
determinado governante
Como nos ensinou Chaiumlm Perelman em seu Tratado da argumentaccedilatildeo o objetivo
de toda argumentaccedilatildeo consiste em criar nos leitoresouvintes o anseio para a mudanccedila por meio
a incitar ou ampliar a adesatildeo dos homens agraves ideias que as teses defendidas expotildeem A accedilatildeo
manifestar-se-aacute em momento oportuno (PARELMAN 2005 50) As diferentes construccedilotildees
retoacutericas ou literaacuterias luciacircnicas objetivam argumentar por meio da construccedilatildeo e explicitaccedilatildeo
de caracteriacutesticas existentes em um mundo metanarrativo Os viacutenculos da narrativa com a
realidade satildeo intriacutensecos agrave sua existecircncia daiacute a ampliaccedilatildeo das narrativas e espaccedilos miacuteticos a
fim de fornecer estiacutemulo agrave reflexatildeo sobre a sociedade Todo texto vincula-se ao mundo do qual
ele fez parte mesmo quando suas colocaccedilotildees tenham pretensotildees universais As imagens
atendem a demandas de sentidos proacuteprias da conjuntura histoacuterica que lhe deu existecircncia
A argumentaccedilatildeo de Luciano foi eficaz Ele natildeo fez nenhuma revoluccedilatildeo ou
promoveu mudanccedilas socioeconocircmicas pois estas nunca estiveram em seu horizonte de
expectativas Em seu presente talvez esses futuros ainda natildeo eram possiacuteveis Sua narrativa
permite a denuacutencia da fragilidade da existecircncia perante a morte e do igualamento radical que
essa promove O riso mobilizado pela criacutetica luciacircnica faz os leitoresouvintes pensarem tal
como a argumentaccedilatildeo promoveria no momento oportuno a accedilatildeo Nosso objetivo eacute
compreender a construccedilatildeo do tirano luciacircnico tendo em vista a dissoluccedilatildeo do seu lugar de
audiecircncia e natildeo podemos esquecer que o tirano eacute ldquoaquele que em seu poder pessoal natildeo aceita
239 ldquoἡ δὲ τυραννίς ὥσπερ εἴρηται πολλάκις πρὸς οὐδὲν ἀποβλέπει κοινόν εἰ μὴ τῆς ἰδίας ὠφελείας χάριν ἔστι δὲ
σκοπὸς τυραννικὸς μὲν τὸ ἡδύ βασιλικὸς δὲ τὸ καλόν διὸ καὶ τῶν πλεονεκτημάτων τὰ μὲν χρημάτων τυραννικά
τὰ δ εἰς τιμὴν βασιλικὰ μᾶλλονrdquo
149
e natildeo pode aceitar a verdade porque natildeo faz e natildeo quer fazer senatildeo o que lhe aprazrdquo
(FOUCAULT 2011 51-52)
No texto Caronte ou os contempladores o velho barqueiro do Hades vem a Terra
contemplar a vida No diaacutelogo travado entre Caronte e Hermes eles observam de um lugar
alto os seres humanos e a forma despreocupada com que eles lidam com a vida sem se
lembrarem de que morreratildeo a qualquer momento Eles observam os homens com foco
primeiramente no atleta Miacutelon de Crotona que naquele momento eacute aplaudido pelos gregos por
carregar um touro mas sua gloacuteria eacute passageira e Caronte logo lembra
Caronte - Oacute Hermes com que mais justo motivo eles me aplaudiratildeo pelo
fato de eu em breve pegar nele e enfiar no barquinho quando ele vier ateacute noacutes
derrotado pelo mais invenciacutevel dos adversaacuterios ndash a Morte que sem ele disso
se aperceber lhe passaraacute uma rasteira Depois viraacute queixar-se a noacutes
recordando-se dessas coroas e dos aplausos Neste momento estaacute muito
orgulhoso pelo fato de ser muito admirado por ter carregado o touro E entatildeo
Pensamos noacutes porventura que ele encara a expectativa de morrer um dia
(Luciano Char 8)240
Esse trecho eacute importante pois marca o tom que todo o diaacutelogo apresenta Os
homens vivem sem se preocupar com a morte que cambia o discurso de lugar jaacute que as muitas
atitudes superficiais perdem o sentido O deslocamento faz com que toda a vida ganhe outra
significaccedilatildeo permite uma liberdade maior e nesse sentido potencializa as colocaccedilotildees
referentes ao mundo em que ele viveu
Nesse texto as duas divindades observam sujeitos muito especiacuteficos Nesse passo
nos interessamos principalmente pela percepccedilatildeo luciacircnica dos tiranos entendendo que o
escritor mobiliza a memoacuteria cultural helecircnica retomando cenas consagradas presentes em
outros escritores Por exemplo Luciano apresenta uma anedota bastante conhecida que se passa
entre Soacutelon e Creso241
Creso ndash Meu hoacutespede ateniense tu viste a minha riqueza os meus tesouros
todo o meu ouro em barra e toda a minha magnificecircncia Diz-me pois qual
de entre todos os homens consideras mais feliz
()
Soacutelon ndash Oacute Creso satildeo muito poucos os indiviacuteduos felizes Pelo que me diz
respeito de entre os que eu conheccedilo considero como sendo os mais felizes
240 ldquoΧΑΡΩΝ
Καὶ πόσῳ δικαιότερον ἂν ἐμέ ὦ Ἑρμῆ ἐπαινοῖεν ὃς αὐτόν σοι τὸν Μίλωνα μετ ὀλίγοι
συλλαβὼν ἐνθήσομαι ἐς τὸ σκαφίδιον ὁπόται ἥκῃ πρὸς ἡμᾶς ὑπὸ τοῦ ἀμαχωτάτου τῶν ἀνταγωνιστῶν
καταπαλαισθεὶς τοῦ Θανάτου μηδὲ συνεὶς ὅπως αὐτὸν ὑποσκελίζει κᾆτα οἰμώξεται ἡμῖν δηλαδὴ μεμνημένος τῶν
στεφάνων τούτων καὶ τοῦ κρότου νῦν δὲ μέγα φρονεῖ θαυμαζόμενος ἐπὶ τῇ τοῦ ταύρου φορᾷ τί δ οὖν οἰηθῶμεν
ἄρα ἐλπίζειν αὐτὸν καὶ τεθνήξεσθαί ποτεrdquo 241 Haacute no trecho um recurso estiliacutestico no qual o escritor coloca um diaacutelogo no interior do diaacutelogo entre Hermes
e Caronte
150
Cleacuteobis e Biacuteton filhos da sacerdotisa de Argos que morreram ambos
recentemente quando se atrelaram ao carro que levava a matildee ao templo
Creso ndash Seja Que esses dois tenham o primeiro lugar da felicidade E entatildeo
quem seraacute o segundo
Soacutelon ndash O ateniense Telo que viveu com muita dignidade e morreu pela
Paacutetria
Creso ndash Oacute meu malandro entatildeo natildeo te pareccedilo feliz
Soacutelon ndash Ainda natildeo sei oacute Creso uma vez que natildeo chegaste ao fim da tua vida
Realmente a morte eacute que faz um juiacutezo seguro nessa mateacuteria se a pessoa viveu
feliz ateacute o termo (Luciano Char 10)242
Essa estoacuteria foi narrada por Heroacutedoto no livro I das Histoacuterias (Herd Hist I 29-
33) texto bastante conhecido daqueles que haviam se formado segundo a Paideia helecircnica O
legislador ateniense faz parte das listas de saacutebios lendaacuterios do periacuteodo arcaico cuja fama e
sabedoria satildeo expressas por diversas anedotas como essa que foi narrada acima243 e Creso rei
de Liacutedia conhecido por sua magnificecircncia e compulsatildeo por oraacuteculos o que a levaraacute agrave ruiacutena244
O texto luciacircnico natildeo se preocupa com essa agrura isto eacute se Creso eacute um baacuterbaro
Luciano jaacute escrevia desse entre lugar que de certa forma o colocava como um baacuterbaro
helenizado Natildeo se trata de colocar agrave baila a identidade helecircnica neste instante o que seria
facilmente desmentido no decorrer do texto visto que as criacuteticas satildeo feitas indiscriminadamente
a gregos e baacuterbaros
Entretanto a apreciaccedilatildeo eacute direcionada aos governantes jaacute que o mesmo Creso
lamentaraacute nos Diaacutelogos dos mortos na representaccedilatildeo de sua chegada ao Hades como vimos
242 ldquoΚΡΟΙΣΟΣ
Ὦ ξένε Ἀθηναῖε εἶδες γάρ μου τὸν πλοῦτον καὶ τοὺς θησαυροὺς καὶ ὅσος ἄσημος χρυσός ἐστιν ἡμῖν καὶ τὴν
ἄλλην πολυτέλειαν εἰπέ μοι τίνα ἡγῇ τῶν ἁπάντων ἀνθρώπων εὐδαιμονέστατον εἶναι
[]
ΣΟΛΩΝ
Ὦ Κροῖσε ὀλίγοι μὲν οἱ εὐδαίμονες ἐγὼ δὲ ὧν οἶδα Κλέοβιν καὶ Βίτωνα ἡγοῦμαι εὐδαιμονεστάτους γενέσθαι
τοὺς τῆς ἱερείας παῖδας τῆς Ἀργόθεν τοὺς ἅμα πρῴην ἀποθανόντας ἐπεὶ τὴν μητέρα ὑποδύντες εἵλκυσαν ἐπὶ τῆς
ἀπήνης ἄχρι πρὸς τὸ ἱερόν
ΚΡΟΙΣΟΣ
Ἔστω ἐχέτωσαν ἐκεῖνοι τὰ πρῶτα τῆς εὐδαιμονίας ὁ δεύτερος δὲ τίς ἂν εἴη
ΣΟΛΩΝ
Τέλλος ὁ Ἀθηναῖος ὃς εὖ τ ἐβίω καὶ ἀπέθανεν ὑπὲρ τῆς πατρίδος
ΚΡΟΙΣΟΣ
Ἐγὼ δέ ὦ κάθαρμα οὔ σοι δοκῶ εὐδαίμων εἶναι
ΣΟΛΩΝ
Οὐδέπω οἶδα ὦ Κροῖσε ἢν μὴ πρὸς τὸ τέλος ἀφίκῃ τοῦ βίου ὁ γὰρ θάνατος ἀκριβὴς ἔλεγχος τῶν τοιούτων καὶ
τὸ ἄχρι πρὸς τὸ τέρμα εὐδαιμόνως διαβιῶναιrdquo 243 Esses personagens podem variar de acordo com a tradiccedilatildeo No texto A tradiccedilatildeo dos sete saacutebios o sapiens
enquanto paradigma de uma identidade Delfim Ferreira Leatildeo o analisa a partir da tradiccedilatildeo herodoteana e afirma
que o diaacutelogo supracitado eacute ldquoo relato mais significativo de todos a ponto de atingir o estatuto de modelo
paradigmaacutetico da forma como o diaacutelogo entre um saacutebio grego e um monarca oriental poderia ser abordadordquo
(LEAtildeO 2011 53) 244 Delfim Ferreira Leatildeo afirma que Plutarco retoma essa estoacuteria a fim de distinguir as praacuteticas e representaccedilotildees
proacuteprias dos gregos no sentido de opor o saacutebio grego a um soberano baacuterbaro o que distinguiria de Heroacutedoto cuja
narrativa tem caraacuteter universal (LEAtildeO 2011 105-106)
151
anteriormente Sofrendo por causas de seus tesouros Creso eacute o exemplo do governante vaidoso
que natildeo sabe que a morte chegaraacute a todos os viventes Luciano coloca mais uma vez a morte
como o problema seminal da existecircncia Como o proacuteprio Caronte repete diversas vezes
somente julgaremos essas vidas ldquodepois dessa barcardquo (παρὰ τὸ πορθμεῖον) (Luciano Char 10)
em referecircncia clara ao barco que ele comanda
Os governantes apresentados por Luciano expressam uma criacutetica bem contundente
agrave cultura poliacutetica de sua eacutepoca Sempre tendo em vista as premissas de Soacutelon soacute podemos dizer
que a vida de algueacutem eacute feliz com o teacutermino desta
No passo seguinte desse diaacutelogo haacute um debate sobre a relaccedilatildeo de Creso com o
oraacuteculo de Delfos Hermes comenta com Caronte essa postura desvendando uma caracteriacutestica
importante nesse contexto Hermes diz assim
Hermes - Oacute Caronte o Liacutedio natildeo suporta a franqueza e a verdade das
palavras mas pelo contraacuterio pareceu-lhe absurdo um homem pobre natildeo se
humilhar mas dizer livremente o que lhe vem agrave cabeccedila Mas passando algum
tempo haacute de se lembrar de Soacutelon quando for aprisionado e lanccedilado na fogueira
por Ciro Na verdade ouvi ainda recentemente Cloto ler o destino fiado para
cada pessoa onde este caso estava escrito Creso seria capturado por Ciro e
que o proacuteprio Ciro seria morto ali por aquela mulher (Luciano Char 13)245
O poder eacute contraposto agrave sabedoria e as palavras do saacutebio satildeo colocadas em risco
capital Seu conhecimento do futuro que aguarda aqueles personagens permite que Caronte
considere divertida aquela cena jaacute que a sabedoria do saacutebio se afirmaraacute de maneira contundente
Os homens desconhecem o seu futuro por esse motivo vivem sem se preocupar com o fim
Somente quando os homens morrem eacute que haacute um veredito final sobre sua felicidade e permite-
se dizer se algueacutem foi ou natildeo feliz como podemos observar nos comentaacuterios de Hermes e
Caronte do traacutegico destino de Creso e Ciro No entanto se a ruiacutena o aguardaraacute em um futuro
proacuteximo naquele momento ele eacute o governante tiracircnico Por mais que isso seja cocircmico sabe que
adiante teraacute uma vida marcada por desgraccedilas naquele momento ldquoquem ousaria olhaacute-lo de
frente246 esses tipos satildeo tatildeo altivos com as outras pessoasrdquo (Luciano Char 13)247 Como nos
ensinou Michel Foucault as novas assertivas de Soacutelon apresentam traccedilos da parreacutesia ou seja
245 ldquoΕΡΜΗΣ
Οὐ φέρει ὁ Λυδός ὦ Χάρων τὴν παρρησίαν καὶ τὴν ἀλήθειαν τῶν λόγων ἀλλὰ ξένον αὐτῷ δοκεῖ τὸ πρᾶγμα
πένης ἄνθρωπος οὐχ ὑποπτήσσων τὸ δὲ παριστάμενον ἐλευθέρως λέγων μεμνήσεται δ οὖν μικρὸν ὕστερον τοῦ
Σόλωνος ὅταν αὐτὸν δέῃ ἁλόντα ἐπὶ τὴν πυρὰν ὑπὸ τοῦ Κύρου ἀναχθῆναι ἤκουσα γὰρ τῆς Κλωθοῦς πρῴην
ἀναγινωσκούσης τὰ ἑκάστῳ ἐπικεκλωσμένα ἐν οἷς καὶ ταῦτα ἐγέγραπτο Κροῖσον μὲν
ἁλῶναι ὑπὸ Κύρου Κῦρον δὲ αὐτὸν ὑπ ἐκεινησὶ τῆς Μασσαγέτιδος ἀποθανεῖνrdquo 246 A proibiccedilatildeo a olhar no rosto dos governantes eacute uma caracteriacutestica das realezas heleniacutesticas Trata-se de conferir
sacralidade agrave pessoa do soberano 247 ldquoἀλλὰ νῦν τίς ἂν αὐτοὺς προσβλέψειεν οὕτως ὑπερφρονοῦντας τῶν ἄλλωνrdquo
152
ao ser sincero com o governante o legislador algueacutem coloca sua vida em risco (FOUCAULT
2011 65-66) como os tiranos se esquecem da morte nos escritos do samosatense
Outro tirano que Luciano destaca da memoacuteria cultural helecircnica eacute Poliacutecrates tirano
de Samos cuja bem-aventuranccedila era reconhecida por todos Havia uma anedota muito
conhecida referente ao seu anel248 como Poliacutecrates era extremamente beneficiado pela sorte
resolveu jogar no mar um anel valioso para ter uma perda e assim quebrar a sorte que tinha
entretanto alguns dias apoacutes o descarte um criado ao preparar a alimentaccedilatildeo encontra o anel
dentro de um peixe A cena eacute descrita desta maneira
Caronte - () Mas quem eacute aquele tipo oacute Hermes todo acolchetado num
manto puacuterpura com um diadema a quem o cozinheiro estaacute a dar um anel [que
achou] ao abrir o peixe
Numa ilha de ondas cercada
Dir-se-ia que eacute um rei249
Hermes - Mas que excelente paroacutedia oacute Caronte Pois estaacutes vendo Poliacutecrates
Tirano de Samos que se considera um homem totalmente feliz No entanto
traiacutedo e entregue ao Saacutetrapa Orete pelo seu criado Meacircndrio que estaacute ao seu
lado seraacute crucificado oacute infeliz caindo num breve instante do alto da sua
felicidade Este fato tambeacutem ouvi da boca de Cloto
Caronte ndash Como eu admiro esta nobre Cloto Queime-os ela corte lhes as
cabeccedilas crucifique-os para que eles saibam que satildeo homens Que eles sejam
elevados aos piacutencaros pois quanto mais alto caiacuterem mas dolorosa seraacute a
queda Entatildeo eu fartar-me-ei de rir ao reconhecer cada um deles na minha
barca todos nus sem trazerem consigo nem mantos de puacuterpura nem tiaras
nem tronos de ouro (Luciano Char 14)250
A narrativa sobre Poliacutecrates representava um cacircnone sobre a felicidade plena e
assim como os relatos sobre Creso simbolizava a queda a que todos estatildeo sujeitos
principalmente quando gozam da felicidade Por meio da traiccedilatildeo de um criado proacuteximo o
tirano foi entregue aos inimigos Discretamente como tecircm que ser os recados aos poderosos
Luciano lembra a finitude da vida e que essa iguala a todos mas tambeacutem ressalta que os campos
248 Heroacutedoto narrou essa famosa anedota referente ao anel de Poliacutecrates (Her Hist III 39-43) 249 Os dois trechos satildeo da Odisseacuteia (Hom Od I 50 I 80) 250 ldquoΧΑΡΩΝ
[] ἐκεῖνος δὲ τίς ἐστιν ὦ Ἑρμῆ ὁ τὴν πορφυρᾶν ἐφεστρίδα ἐμπεπορπημένος ὁ τὸ διάδημα ᾧ τὸν δακτύλιον ὁ
μάγειρος ἀναδίδωσι τὸν ἰχθὺν ἀνατεμών
νήσῳ ἐν ἀμφιρύτῃ βασιλεὺς δέ τις εὔχεται εἶναι
ΕΡΜΗΣ
Εὖ γε παρῳδεῖς ὦ Χάρων ἀλλὰ Πολυκράτην ὁρᾷς τὸν Σαμίων τύραννον πανευδαίμονα ἡγούμενον εἶναι ἀτὰρ
καὶ οὗτος αὐτὸς ὑπὸ τοῦ παρεστῶτος οἰκέτου Μαιανδρίου προδοθεὶς Ὀροίτῃ τῷ σατράπῃ ἀνασκολοπισθήσεται
ἅθλιος ἐκπεσὼν τῆς εὐδαιμονίας ἐν ἀκαρεῖ τοῦ χρόνου καὶ ταῦτα γὰρ τῆς Κλωθοῦς ἐπήκουσα
ΧΑΡΩΝ
Ἄγαμαι Κλωθοῦς γεννικῆς καῖε αὐτούς ὦ βελτίστη καὶ τὰς κεφαλὰς ἀπότεμνε καὶ ἀνασκολόπιζε ὡς εἰδῶσιν
ἄνθρωποι ὄντες ἐν τοσούτῳ δὲ ἐπαιρέσθων ὡς ἂν ἀφ ὑψηλοτέρου ἀλγεινότερον καταπεσούμενοι ἐγὼ δὲ
γελάσομαι τότε γνωρίσας αὐτῶν ἕκαστον γυμνὸν ἐν τῷ σκαφιδίῳ μήτε τὴν πορφυρίδα μήτε τιάραν ἢ κλίνην
χρυσῆν κομίζονταςrdquo
153
do poder colocam o soberano em condiccedilatildeo propiacutecia agraves traiccedilotildees daqueles que lhes satildeo proacuteximos
jaacute que a felicidade gera a inveja e o castigo das divindades
Caronte que contempla a chegada de todos os mortos faz a seguinte constataccedilatildeo
ao final do diaacutelogo
Caronte - Sim estou vendo tudo isso e agora percebo o que eacute que eles
consideram agradaacutevel durante a vida ou que coisa eacute essa cuja privaccedilatildeo os
enfurece Se considerarmos os seus reis que parecem ser as pessoas mais
felizes do mundo Aleacutem da instabilidade como tu dizes e da incerteza da
sorte verificaremos que no seu caso as situaccedilotildees desagradaacuteveis satildeo em
nuacutemero superior agraves agradaacuteveis temores perturbaccedilotildees inimizades
conspiraccedilotildees rancores e lisonjas De fato eles convivem com tudo isso E
deixo de lado os lutos as doenccedilas e os padecimentos que obviamente os
atacam em peacute de igualdade Ora se os seus males jaacute satildeo tatildeo grandes podeis
imaginar como seratildeo o dos simples particulares (Luciano Char 18)251
Luciano faz um inventaacuterio do que significa assumir o governo de uma cidade ou
de um impeacuterio Observemos o caso de Creso ou de Poliacutecrates um rei e um tirano que compotildeem
a memoacuteria histoacuterica greco-romana e submergem nas agruras da fortuna Luciano natildeo faz uma
distinccedilatildeo entre o rei e o tirano tal como foi feita por Aristoacuteteles Na verdade ele mostra com
sagacidade como os dois exemplos natildeo se distinguem em seus fins Creso eacute um rei que estaria
preocupado com bens materiais e poder enquanto Poliacutecrates natildeo eacute lembrado como tirano por
maldades Entendemos que Luciano nos alerta que qualquer governante pode vir a ser um tirano
no sentido que sua eacutepoca dava a essa palavra como sinocircnimo de mau governante Cloto a
Moira252 que enrola o fio da vida de cada mortal decide como se desenrolaraacute seu destino Logo
as peripeacutecias da existecircncia podem jogar agrave condiccedilatildeo de escravo eou prisioneiro quem estaacute em
tamanho destaque uma vez que as relaccedilotildees que se estabelecem com estes satildeo marcadas pela
bajulaccedilatildeo e pela inveja
As riquezas ou o poder natildeo compensam os infortuacutenios temores perturbaccedilotildees
inimizades conspiraccedilotildees rancores e lisonjas Os governantes do passado mobilizam uma memoacuteria que
se coaduna com a cultura poliacutetica romana Natildeo podemos esquecer que a situaccedilatildeo poliacutetica romana era
marcada pelo assassinato dos Imperadores sendo que poucos morreram em seu leito As conspiraccedilotildees
e traiccedilotildees satildeo a marca dessa forma de governo que natildeo tem a estabilidade em sua transiccedilatildeo para outro
251 ldquoὉρῶ ταῦτα πάντα καὶ πρὸς ἐμαυτόν γε ἐννοῶ ὅ τι τὸ ἡδὺ αὐτοῖς παρὰ τὸν βίον ἢ τί ἐκεῖνό ἐστιν οὗ
στερούμενοι ἀγανακτοῦσιν ἢν γοῦν τοὺς βασιλέας αὐτῶν ἴδῃ τις οἵπερ εὐδαιμονέστατοι εἶναι δοκοῦσιν ἔξω τοῦ
ἀβεβαίου ὡς φὴς καὶ ἀμφιβόλου τῆς τύχης πλείω τῶν ἡδέων τὰ ἀνιαρὰ εὑρήσει προσόντα αὐτοῖς φόβους καὶ
ταραχὰς καὶ μίση καὶ ἐπιβουλὰς καὶ ὀργὰς καὶ κολακείας τούτοις γὰρ ἅπαντες σύνεισιν ἐῶ πένθη καὶ νόσους καὶ
πάθη ἐξ ἰσοτιμίας δηλαδὴ ἄρχοντα αὐτῶν ὅπου δὲ τὰ τούτων πονηρά λογίζεσθαι καιρὸς οἷα τὰ τῶν ἰδιωτῶν ἂν
εἴηrdquo 252 As trecircs Moiras satildeo irmatildes que representam o destino humano Atroacutepo fiava a vida humana Cloto enrolava o fio
Laacutequesis cortava a vida humana
154
governante Mesmo com tamanhos infortuacutenios os governantes ainda carregam as mesmas desditas que
os meros mortais
O espaccedilo do Palaacutecio eacute representado por Luciano como um ambiente propicio agrave
deslealdade Por exemplo no diaacutelogo maior Icaromenipo ou sobre as nuvens Menipo com asas de uma
aacuteguia e de um abutre sobe aos ceacuteus e observa os homens Sua exposiccedilatildeo da vida nas residecircncias dos
governantes retoma as colocaccedilotildees apresentadas anteriormente Icaromenipo vecirc a seguinte cena
Olhando laacute para baixo para a Terra distinguia nitidamente as cidades as
pessoas e as suas accedilotildees natildeo soacute as que se passavam ao ar livre mas tambeacutem
as que se praticavam dentro das casas onde as pessoas julgavam passar
despercebidas como por exemplo253 Ptolomeu254 a ter relaccedilotildees com a sua
irmatilde o filho de Lisiacutemaco255 a conspirar contra o pai Antiacuteoco256 filho de
Seleuco a fazer agraves escondidas sinais agrave sua madrasta Estratonice o tessaacutelico
Alexandre257 a ser assassinado por sua esposa Antiacutegono a cometer adulteacuterio
com a esposa do seu filho o filho de Aacutetalo258 vertendo veneno para seu pai
noutro local Aacutersaces assassinando a jovem o eunuco Aacuterbaces puxando da
espada contra Aacutersaces Espatino da Meacutedia a ser arrastado para fora da sala do
banquete pelos guardas que lhe pegavam pelos peacutes e com um sobrolho ferido
por uma taccedila de ouro E cenas idecircnticas a estas poderiam ver-se na Liacutebia e nos
palaacutecios dos Citas e Traacutecios pessoas a praticar adulteacuterio a assassinar a
conspirar a raptar a jurar falso aterrorizadas e traiacutedas pelos seus familiares
() as cenas dos reis me proporcionaram um passatempo tatildeo divertido
(Luciano Icar 15-16)259
A imagem vista por Icaromenipo evidencia como o poder estaacute cercado de adulteacuterio
assassinato conspiraccedilatildeo sequestros e falsos juramentos pois natildeo se pode confiar nem mesmo nos
familiares mais proacuteximos O riso dessa imagem enfatiza que haacute muitas agruras no poder bem como
deixa claro que o poder vive em uma constante possibilidade de traiccedilatildeo quadro que serve para as
realezas heleniacutesticas mas natildeo estaacute distante dos palaacutecios romanos
253 Os reis e tiranos a seguir satildeo pouco conhecidos dos historiadores sendo que alguns natildeo podem ser
comprovados Eacute interessante notar como eles estatildeo vinculados ao periacuteodo heleniacutestico posterior a Alexandre
Magno 254 Ver nota 144 255 Lisimaco (c 360-280 aC) eacute um general macedocircnico e rei da Traacutecia Era amigo de infacircncia de Alexandre 256 Antioco I Soter (324-261 a C) foi rei selecircucida filho de Seleuco I 257 Alexandre tirano de Fera cidade da Tessaacutelia 258 Existem trecircs Aacutetalos I Soter II Filadelfo III Filomentor que satildeo governantes de Peacutergamo O terceiro deixou
seu reino em testamento para Roma 259 ldquoκατακύψας γοῦν ἐς τὴν γῆν ἑώρων σαφῶς τὰς πόλεις τοὺς ἀνθρώπους τὰ γιγνόμενα καὶ οὐ τὰ ἐν ὑπαίθρῳ
μόνον ἀλλὰ καὶ ὁπόσα οἴκοι ἔπραττον οἰόμενοι λανθάνειν Πτολεμαῖον μὲν συνόντα τῇ ἀδελφῇ Λυσιμάχῳ δὲ
τὸν υἱὸν ἐπιβουλεύοντα τὸν Σελεύκου δὲ Ἀντίοχον Στρατονίκῃ διανεύοντα λάθρα τῇ μητρυιᾷ τὸν δὲ Θετταλὸν
Ἀλέξανδρον ὑπὸ τῆς γυναικὸς ἀναιρούμενον καὶ Ἀντίγονον μοιχεύοντα τοῦ υἱοῦ τὴν γυναῖκα καὶ Ἀττάλῳ τὸν
υἱὸν ἐγχέοντα τὸ φάρμακον ἑτέρωθι δ αὖ Ἀρσάκην φονεύοντα τὸ γύναιον καὶ τὸν εὐνοῦχον Ἀρβάκην ἕλκοντα
τὸ ξίφος ἐπὶ τὸν Ἀρσάκην Σπατῖνος δὲ ὁ Μῆδος ἐκ τοῦ συμποσίου πρὸς τῶν δορυφορούντων εἵλκετο ἔξω τοῦ
ποδὸς σκύφῳ χρυσῷ τὴν ὀφρὺν κατηλοημένος ὅμοια δὲ τούτοις ἔν τε Λιβύῃ καὶ παρὰ Σκύθαις καὶ Θρᾳξὶ γινόμενα
ἐν τοῖς βασιλείοις ἦν ὁρᾶν μοιχεύοντας φονεύοντας ἐπιβουλεύοντας ἁρπάζοντας ἐπιορκοῦντας δεδιότας ὑπὸ
τῶν οἰκειοτάτων προδιδομένους
Καὶ τὰ μὲν τῶν βασιλέων τοιαύτην παρέσχε μοι τὴν διατριβήν []rdquo
155
Luciano movimenta a memoacuteria cultural disponiacutevel transmitida por meio da formaccedilatildeo
escolar que por sua vez orienta a leitura dos textos que satildeo referecircncia em cada gecircnero Nesse sentido
a leitura de Homero e de Heroacutedoto faz parte do curriacuteculo bem como o estudo dessas anedotas que satildeo
amiuacutede entregues aos jovens para que eles treinem sua capacidade argumentativa e expositiva Desse
modo essas recordaccedilotildees tecircm alto poder argumentativo jaacute que as mesmas compotildeem um acervo
disponiacutevel a todos
Entretanto o siacuterio se utiliza de outros recursos a fim de falar sobre os governantes No
diaacutelogo A travessia para o Hades ou O Tirano ele retoma o tema da chegada ao Hades Entretanto ele
completa o debate com o julgamento dos mortos por Radamanto Aleacutem desse juiz outros personagens
miacuteticos fazem parte do diaacutelogo entre Caronte Hermes a Moira Cloto bem como a Eriacutenia260 Tisiacutefone
Haacute um filoacutesofo ciacutenico chamado Ciniacutesco e Micilo (um sapateiro) caracterizado por ser bem pobre e o
tirano Megapentes261
O enredo do diaacutelogo primeiramente coloca Cloto e Caronte discutindo sobre o atraso de
Hermes lembrando que este uacuteltimo tem algumas caracteriacutesticas natildeo tatildeo honestas como ser um exiacutemio
ladratildeo Em um segundo momento chega o condutor de almas cansado jaacute que um dos mortos teria
tentado fugir Trata-se de Megapentes um tirano Em seguida os mortos entram na barca e satildeo
conferidos por Cloto O tirano tenta de todas as formas convencer a Moira de retornar a terra Micilo
um sapateiro comenta sobre a diferenccedila entre a morte de um rico e a de um pobre Haacute finalmente o
julgamento dos mortos A hipoacutetese que levantamos eacute que o documento ora analisado refere-se com muita
proximidade ao poder imperial em um aspecto teoacuterico pois observamos que Luciano natildeo dirige sua
criacutetica agrave pessoa de um Imperador em particular mas traccedila elementos que expotildeem o que levaria um
priacutencipe a ser um mau governante Desse modo trata-se de um texto que reflete sobre o poder natildeo sobre
determinado Imperador
Como jaacute enfatizamos algumas vezes as criacuteticas ao Impeacuterio e a seu governante devem ser
bem veladas assim acreditamos que Luciano retoma as insiacutegnias do poder romano a fim de falar do
poder imperial A estrateacutegia retoacuterica eacute colocar em cena um tirano fictiacutecio cujas praacuteticas e representaccedilotildees
fizessem parte do domiacutenio comum da cultura poliacutetica de sua eacutepoca Dessa forma a criacutetica faz-se com
mais ecircnfase
Analisemos a representaccedilatildeo desse Tirano ele tenta persuadir Hermes e Cloto para
retornar agrave vida e utiliza os argumentos mundanos de que precisa terminar uma obra tem de dar
instruccedilotildees a sua mulher precisa revelar o local secreto em que escondia seu tesouro e precisa vingar-se
de seus inimigos (Luciano Cat 8) No diaacutelogo os bens do Tirano ficam com seus inimigos os mesmos
260 As Eriacutenias tambeacutem chamadas Eumecircnides (benevolentes forma eufemiacutestica que tenta aplacar a fuacuteria destas)
satildeo trecircs divindades pertencentes ao Hades Alecto Megera e Tisiacutefone Satildeo representadas com tochas e serpentes
na cabeccedila e sempre seguram um chicote 261 Etimologicamente esse nome significa cheio de afliccedilotildees
156
que lhe causaram a morte As chantagens e propinas natildeo lhe satildeo uacuteteis Cloto o critica e questiona ldquoAinda
conservas na memoacuteria ridiacutecula criatura o ouro e os talentosrdquo (Luciano Cat 9)262
O tirano mesmo depois de morto deseja se impocircr sobre os inimigos aleacutem do desejo de
construir grandes monumentos para marcar sua memoacuteria Por fim ele inverte a loacutegica da renuacutencia e
propotildee o negoacutecio que mais espanta Cloto Ele oferece o filho em troca dele mesmo no que fica sabendo
que o filho morreraacute em seguida assassinado pelo novo rei A causa da morte do Tirano foi a traiccedilatildeo
daqueles que lhe eram proacuteximos Foi envenenado em um banquete
Em seguida o Tirano pergunta a Cloto o que ocorreraacute apoacutes a sua morte
Cloto ndash Entatildeo vai ouvindo pois ao tomares conhecimento ficaraacutes ainda mais
aflito O teu escravo Midas casaraacute com a tua mulher aliaacutes desde a muito ele
era seu amante
Megapentes - Que grande malandro Eu que persuadido por ela lhe concedi
a liberdade
Cloto ndash A tua filha seraacute inscrita entre as concubinas do atual tirano e os bustos
e as estaacutetuas que a cidade durante muito tempo erigiu em tua honra seratildeo
derrubadas e serviratildeo de risota para os espectadores
Megapentes ndash Diz-me caacute dentre os meus amigos natildeo haveraacute nem um que
fique indignado com esses atos
Cloto ndash Mas quem eacute que era teu amigo E por que motivo se tornara tal
Entatildeo natildeo sabes que aqueles que se ajoelhavam aos teus peacutes elogiando cada
uma das coisas que dizias ou fazias agiam quer por medo quer por esperanccedila
amigos sim mas do teu poder e soacute olhando as oportunidades
Megapentes - E no entanto nos banquetes ao fazerem libaccedilotildees desejavam-
me em altas vozes muitas e grandes felicidades cada um deles afirmando-se
prontos a morrer se fosse preciso no meu lugar enfim soacute juravam em meu
nome (Luciano Cat 11) 263
Essa longa citaccedilatildeo eacute necessaacuteria para observarmos a complexidade da
representaccedilatildeo criada por Luciano sobre os tiranos e seus ldquoamigosrdquo Como afirmou David
262 ldquoΚΛΩΘΩ
Ἔτι γὰρ χρυσόν ὦ γελοῖε καὶ τάλαντα διὰ μνήμης ἔχειςrdquo 263 ldquoΚΛΩΘΩ
Ἄκουε μᾶλλον γὰρ ἀνιάσῃ μαθών τὴν μὲν γυναῖκα Μίδας ὁ δοῦλος ἕξει καὶ πάλαι δὲ αὐτὴν ἐμοίχευεν
ΜΕΓΑΠΕΝΘΗΣ
Ὁ κατάρατος ὃν ἐγὼ πειθόμενος αὐτῇ ἀφῆκα ἐλεύθερον
ΚΛΩΘΩ
Ἡ θυγάτηρ δέ σοι ταῖς παλλακίσι τοῦ νυνὶ τυραννοῦντος ἐγκαταλεγήσεται αἱ εἰκόνες δὲ καὶ ἀνδριάντες οὓς ἡ
πόλις ἀνέστησέ σοι πάλαι πάντες ἀνατετραμμένοι γέλωτα παρέξουσι τοῖς θεωμένοις
ΜΕΓΑΠΕΝΘΗΣ
Εἰπέ μοι τῶν φίλων δὲ οὐδεὶς ἀγανακτήσει τοῖς δρωμένοις
ΚΛΩΘΩ
Τίς γὰρ ἦν σοι φίλος ἢ ἐκ τίνος αἰτίας γενόμενος ἀγνοεῖς ὅτι πάντες οἱ καὶ προσκυνοῦντες καὶ τῶν λεγομένων
καὶ πραττομένων ἕκαστα ἐπαινοῦντες ἢ φόβῳ ἢ ἐλπίσι ταῦτα ἔδρων τῆς ἀρχῆς ὄντες φίλοι καὶ πρὸς τὸν καιρὸν
ἀποβλέποντες
ΜΕΓΑΠΕΝΘΗΣ
Καὶ μὴν σπένδοντες ἐν τοῖς συμποσίοις μεγάλῃ τῇ φωνῇ ἐπηύχοντό μοι πολλὰ καὶ ἀγαθά προαποθανεῖν ἕκαστος
αὐτῶν ἕτοιμος εἰ οἷόν τε εἶναι καὶ ὅλως ὅρκος αὐτοῖς ἦν ἐγώrdquo
157
Konstan ldquoNo meio palaciano o problema da amizade era complicado pela autoridade absoluta
do Imperador e a tradiccedilatildeo orgulhosa da classe senatorialrdquo (KONSTAN 2005 208)
Susana M Lizcano Rejano (2000) no artigo intitulado El Toraxis de Luciano de
Samoacutesata um paradigma de la amistad entre griegos y baacuterbaros ressalta que natildeo houve uma
discussatildeo teoacuterica aprofundada sobre a amizade o que seria uma consequecircncia do contexto
poliacutetico caracterizado pela ausecircncia de condiccedilotildees de liberdade de palavra e atuaccedilatildeo Essa
impossibilidade da sinceridade em espaccedilos puacuteblicos fez com que o debate acerca da amizade
ficasse restrito ao espaccedilo privado da vida dos cidadatildeos o que natildeo implica supor que essas
relaccedilotildees perderam seu espaccedilo social muito pelo contraacuterio ldquoa amizade passou a ser considerada
natildeo somente um espaccedilo de refuacutegio pessoal como um meio de melhorar o status social e apoio
para uma carreira poliacuteticardquo (LIZCANO REJANO 2000 229-230)
O tirano fica no lugar propiacutecio agrave bajulaccedilatildeo e agrave traiccedilatildeo Nesse caso o tirano eacute traiacutedo
tanto pelo escravo que estaacute em uma diferenciaccedilatildeo social vertical quanto pelos amigos que
supostamente encontram-se em uma situaccedilatildeo horizontal Dizemos supostamente por natildeo ser
possiacutevel ter claro que haacute um laccedilo genuiacuteno de amizade em um espaccedilo no qual o poder reina e
aquele que se encontra no topo pode executar a quem lhe aprouver Natildeo haacute qualquer legislaccedilatildeo
que limite os poderes de um soberano romano Paul Veyne afirma que ldquoO priacutencipe na verdade
eacute todo-poderoso Seu poder eacute mais absoluto completo e ilimitado possiacutevel natildeo eacute compartilhado
com ningueacutem assim como a ningueacutem ele tem de prestar contasrdquo (VEYNE 2009 9) Esse poder
somente eacute controlado com a eliminaccedilatildeo capital daquele que veste a puacuterpura
Outro ponto de aproximaccedilatildeo cultural que temos desse texto com a cultura poliacutetica
romana eacute o apagamento da memoacuteria dos feitos do detentor do poder por meio da destruiccedilatildeo de
signos que representam o poder do mau governante Remete-se agrave damnatio memoriae que era
uma ordem senatorial que obrigava o apagamento das imagens do governante considerado ruim
a fim de suprimir da memoacuteria romana os feitos deste Por exemplo dever-se-ia apagar
inscriccedilotildees monumentais moedas com remissotildees agravequele que foi banido ou morto entre outros
expedientes Antes do tempo em que Luciano escreveu os Imperadores Caliacutegula Nero Galba
Viteacutelio Oto e Domiciano haviam sido condenados pelo Senado a terem suas imagens e registros
apagados de todos os documentos monumentos e moedas oficiais
Trata-se de um apagamento de rastros executado oficialmente por uma ordem
institucional ou seja uma forma de punir aquele que trairam Roma com o esquecimento Como
afirma Jacques Le Goff os Imperadores Romanos satildeo presos ao deliacuterio da memoacuteria epigraacutefica
na tentativa de marcar indelevelmente seu nome nos monumentos e construccedilotildees a fim de evitar
o desaparecimento da memoacuteria de seus feitos Sublinhou ainda que
158
o Senado Romano angariado e por vezes dizimado pelos Imperadores
encontra uma arma contra a tirania imperial Eacute a damnatio memoriae que faz
desaparecer o nome do imperador defunto dos documentos de arquivo e das
inscriccedilotildees monumentais Ao poder pela memoacuteria responde a destruiccedilatildeo da
memoacuteria (LE GOFF 1990 442)
Eacute justamente nesses aspectos que Luciano enfatiza sua criacutetica no apagamento das
inscriccedilotildees que remetem agrave memoacuteria daquele que eacute considerado um mau Imperador Megapentes
teraacute todos os seus monumentos derrubados servindo de riso a todos Desde o caso de Tersites
que apanha de Odisseu no canto II da Iliacuteada o riso tem a funccedilatildeo de rebaixar humilhar Trata-
se de um mote famoso o riso do inimigo na tradiccedilatildeo literaacuteria grega principalmente na trageacutedia
grega na qual o riso aparece frequentemente associado agrave agressatildeo natildeo violenta264 (BARBOSA
LAGE 2006 68)
Um detalhe nesse passo remete agrave figura do Tirano ao Imperador Domiciano265
a pretensatildeo de ser uma divindade quando os convidados juravam em seu nome e declaravam
publicamente que o consideravam um Deus ou assim fingiam
O texto deixa muito clara a artificialidade da vida do Tirano a famiacutelia dissolvida
pois sua mulher casa-se com um escravo a filha torna-se concubina do novo Tirano seu filho
seraacute assassinado Todo o ambiente no qual o Tirano se insere estaacute corrompido Luciano natildeo
poupa tintas para construir esse cenaacuterio
Em seguida o Tirano relata a Cloto que assim que foi dado por morto seu escravo
Caacuterion levou uma de suas concubinas para a sala onde seu corpo se encontrava e fechando a
porta transou com a mulher Depois de se satisfazer disse ao corpo inerte ldquoTu homenzinho
repugnante deste-me pancada muitas vezes sem eu ter feito qualquer malrdquo (Luciano Cat
12)266 Em seguida esbofeteou o corpo inerte e lhe cuspiu fortemente no rosto O morto tomado
de oacutedio natildeo pode fazer nada
Quando ouviram barulhos de pessoas se aproximando ele saiu do aposento e a
mulher fingiu sofrer a perda O cenaacuterio do palaacutecio torna-se o palco para a falsidade a mentira
e a bajulaccedilatildeo aleacutem de ensejar uma seacuterie de atitudes estrateacutegicas daqueles que estatildeo em condiccedilatildeo
subalterna politicamente e socialmente Trata-se de posicionamentos astuciosos dos grupos
marginalizados ou como chamou Certeau satildeo as tretas do fraco Uma vez que ldquoo cotidiano se
264 O livro de Orestis Karavaacutes apresenta um levantamento exaustivo da presenccedila de citaccedilotildees dos tragedioacutegrafos
bem como anaacutelise do uso de termos teacutecnicos da trageacutedia nos escritos luciacircnicos (KARAVAS 2005) o que permite
analisar o uso que o siacuterio faz do legado literaacuterio helecircnico em sua criaccedilatildeo literaacuteria 265 Segundo Suetocircnio o Imperador Domiciano exigiu que fosse chamado de ldquoDeus e senhorrdquo esto eacute dominus et
deus noster (Suet Dom 13 4) 266 ldquolsquoΣὺ μέντοιrsquo φησίν lsquoὦ μιαρὸν ἀνθρώπιον πληγάς μοι πολλάκις οὐδὲν ἀδικοῦντι ἐνέτειναςrsquordquo
159
inventa de mil maneiras de caccedila natildeo autorizadardquo (CERTEAU 2007 38) Ou seja existe na
sociedade um poder disciplinador que organiza e que impotildeem regras de conduta entretanto
sempre existem espaccedilos para que os indiviacuteduos burlem o sistema por meio das mais variadas
astuacutecias
No passo seguinte Cloto diz para o Tirano parar com as ameaccedilas e embarcar jaacute
que iraacute ao tribunal do Hades No que o Tirano pergunta ldquoMas quem se atreveraacute a lanccedilar o seu
voto contra um tiranordquo (Luciano Cat 13)267 A moira lembra novamente que contra um tirano
ningueacutem se levantaria mas que ele eacute apenas um morto e a morte iguala a todos ricos e pobres
Agrave maneira do Aquiles homeacuterico que preferia ser um escravo na Terra a reinar
entre os mortos (Homero Od XI 489-491) Megapentes suplica agrave Moira que ele volte como
escravo natildeo se importando em natildeo ser rei Natildeo conseguindo dissuadir a divindade do mundo
inferior tendo de entrar no barco sob vigilacircncia de todos principalmente do ciacutenico ele exige
um lugar de honra
No passo seguinte Luciano faz um contraste interessante que permite que a
denuacutencia venha de quem estaacute em condiccedilatildeo subalterna O sapateiro Micilo assim discorre sobre
sua situaccedilatildeo
A minha situaccedilatildeo natildeo eacute igual agrave dos ricos na verdade as nossas vidas satildeo ()
diametralmente opostas o tirano que enquanto vivo parecia feliz temido e
admirado por toda gente agora ao deixar tanto ouro e tanta prata tanta roupa
e tantos cavalos tantos banquetes belos rapazinhos e formosas mulheres eacute
claro que ficou triste e amargurado ao ver-se privado desses bens (Luciano
Cat 14)268
O olhar do sapateiro vem de fora nesse sentido sua visatildeo eacute harmoniosa e natildeo
consegue ver as muacuteltiplas agruras vividas por quem ocupa tais espaccedilos de poder Em seguida
Luciano relaciona a dificuldade de esquecer os bens terrenos com um visco269 A memoacuteria
marcaria a alma do morto e esse natildeo poderia esconder seus crimes270 As almas dos mortos
267 ldquoΜΕΓΑΠΕΝΘΗΣ
Καὶ τίς ἀξιώσει κατ ἀνδρὸς τυράννου ψῆφον λαβεῖνrdquo 268 ldquoἄλλως τε οὐδ ὅμοια τἀμὰ τοῖς τῶν πλουσίων ἐκ διαμέτρου γὰρ ἡμῶν οἱ βίοι φασίν ὁ μέν γε τύραννος
εὐδαίμων εἶναι δοκῶν παρὰ τὸν βίον φοβερὸς ἅπασι καὶ περίβλεπτος ἀπολιπὼν χρυσὸν τοσοῦτον καὶ ἀργύριον
καὶ ἐσθῆτα καὶ ἵππους καὶ δεῖπνα καὶ παῖδας ὡραίους καὶ γυναῖκας εὐμόρφους εἰκότως ἠνιᾶτο καὶ ἀποσπώμενος
αὐτῶν ἤχθετοrdquo 269 Haacute nesse ponto um elemento bastante interessante que eacute uma teoria da memoacuteria nos escritos de Luciano jaacute que
se trata de uma concepccedilatildeo que entende que os nossos atos ruins ficam marcados em nossa alma ou seja um exame
da alma do morto permite que o Juiz saiba se ele foi ou natildeo uma boa pessoa 270 Eacute interessante notar como em outro diaacutelogo maior Menipo ou a nequiomancia haacute a indicaccedilatildeo de que quem faz
a acusaccedilatildeo do morto eacute a sombra deste que eacute a melhor testemunha ldquouma vez que estatildeo sempre juntinhas aos nossos
corpos e nunca se afastam delesrdquo (Luciano Nec 11)
160
perdem a coragem pois se desmontam agrave medida que chegam proacuteximos aos portotildees do Hades
e os ricos se entregam ao desespero
Para Micilo o Hades funciona muito bem ele natildeo precisa se envergonhar mais
do seu manto que jaacute natildeo se distingue do manto puacuterpura do tirano natildeo tem credores nem passa
frio ou fome natildeo adoece nem eacute surrado pelos poderosos (Luciano Cat 15 22)
Trata-se das insiacutegnias do poder principalmente do poder no periacuteodo em que o
siacuterio viveu Ter um Imperador no sistema poliacutetico em que eles viviam era inevitaacutevel mas esse
natildeo precisava ser um tirano Os indiacutecios que levantamos expressam as dificuldades para o
detentor do poder gozar de amizades verdadeiras e sinceras o Palaacutecio como palco de
veleidades a inveja constante a traiccedilatildeo como vimos em outros momentos O Tirano luciacircnico
usa um manto puacuterpura271 No texto Micilo diz que
Laacute em cima morava perto do tirano pelo que via perfeitamente o que se
passava em sua casa afigurava-se-me entatildeo algueacutem igual aos deuses
considerava-o feliz ao ver o esplendor de sua puacuterpura a multidatildeo de
acompanhantes o ouro as taccedilas cravejadas de pedras preciosas e os leitos com
peacutes de prata (Luciano Cat 16) 272
Aleacutem da puacuterpura que seraacute citada outra vez a seguir quando Micilo fala do ldquosangue
do molusco do mar Lacocircnicordquo273 (Luciano Cat 16) ele se refere ao molusco gastroacutepode usado
na fabricaccedilatildeo da puacuterpura que era usada em Roma para distinguir a ordem na qual cada indiviacuteduo
se inseria sendo que o Impeacuterador utilizava um manto colorido com essa substacircncia
O texto Menipo ou neciomancia apresenta o julgamento de outro tirano Haacute uma
cena interessante que destoa das muitas apariccedilotildees dos tiranos ateacute entatildeo uma vez que ele eacute
condenado e em seguida a atuaccedilatildeo de um retor faz com que ele seja solto Apresentado diante
de Minos segue-se agrave seguinte cena
Finalmente o senhor aparecendo-lhes vestido de puacuterpura coberto de ouro e
todo garrido julgava que tornava felizes e venturosos aqueles que o
saudavam deixando-os beijar-lhe o peito ou oferecendo-lhes a matildeo direita E
eles ao ouvirem-me ficavam muito tristes
271 Custoacutedio Marqueijo tradutor das obras completas de Luciano publicadas em Portugal insere neste passo entre
colchetes a palavra faixa o que eacute um desserviccedilo para o leitor e uma superinterpretaccedilatildeo jaacute que essa pequena palavra
amplia a imagem apresentada por Luciano como os Senadores e cavaleiros usavam faixas puacuterpuras em suas
tuacutenicas Na nota seguinte o tradutor portuguecircs faz uma segunda inferecircncia que a nosso ver se encontra errada pois
ele afirma que mais que ao Imperador Luciano estaacute a pensar nos tiranos orientais Nossa opiniatildeo eacute que o siacuterio usa
os tiranos orientais a fim de falar dos e aos Imperadores Romanos 272 ldquoπαροικῶν ἄνω τῷ τυράννῳ πάνυ ἀκριβῶς ἑώρων τὰ γιγνόμενα παρ αὐτῷ καί μοι ἐδόκει τότε ἰσόθεός τις εἶναι
τῆς τε γὰρ πορφύρας τὸ ἄνθος ὁρῶν ἐμακάριζον καὶ τῶν ἀκολουθούντων τὸ πλῆθος καὶ τὸν χρυσὸν καὶ τὰ
λιθοκόλλητα ἐκπώματα καὶ τὰς κλίνας τὰς ἀργυρόποδαςrdquo 273 ldquo[] καὶ μακαρίζων ἐπὶ τῷ αἵματι τῶν ἐν τῇ Λακωνικῇ θαλάττῃ κοχλίδωνrdquo
161
Todavia Minos pronunciou uma sentenccedila favoraacutevel Foi o caso que tendo
Dioniacutesio da Siciacutelia sido acusado por Diacuteon de muitos e horriacuteveis crimes de
impiedade testemunhados pela sua sombra e estando prestes a ser lanccedilado agrave
Quimera apresentou-se Aristipo de Cirene mdash tido em grande consideraccedilatildeo e
tem enorme influecircncia no reino subterracircneo mdash que o livrou da condenaccedilatildeo
alegando o facto de Dioniacutesio ter sido generoso a dar dinheiro a muitos homens
de letras (Luciano Nec 12-13)274
Observemos que Luciano valoriza o viacutenculo de mecenato entre homens de letras
e os governantes Mesmo em sua arrogacircncia que eacute caracterizada por suas atitudes o siacuterio deixa
claro que no espaccedilo do Hades a fala eacute um dos poucos bens que natildeo satildeo perdidos e que ter ao
seu lado pessoas com essas habilidades pode ser uacutetil mesmo no mundo dos mortos Outro
elemento interessante eacute a sugestatildeo (in)discreta de que ele dava muito dinheiro aos homens de
letras Nesse passo observamos o Luciano escritor amante das letras e membro de um grupo
social bem especiacutefico Essa eacute uma constataccedilatildeo um tanto oacutebvia uma vez que os homens sempre
escrevem de lugares sociais definidos
Portanto haacute uma ampla exegese das relaccedilotildees de poder em que o escritor mostra
a imagem de falta de felicidade na qual vivem os Tiranos jaacute que eles deixam tudo quando
morrem Essas figuras tornam-se cocircmicas e produzem o riso pois natildeo impotildeem mais medo
como enquanto viviam Micilo completa o escaacuternio da seguinte maneira ldquoUma vez morto olhei-
o como um tipo ridiacuteculo despojado daquele fausto e ria sobretudo de mim por ter admirado
uma tal porcariardquo (Luciano Cat 16)275 O siacuterio produz o riso sobre a morte dos poderosos
tiranos que aqui representam um tipo possiacutevel de Imperador Romano que pode ser evitado jaacute
que essa eacute uma condiccedilatildeo inevitaacutevel desse regime poliacutetico
35 O Zeus luciacircnico tirania e a impossibilidade de intervenccedilatildeo na vida humana
Ao pensarmos as relaccedilotildees de poder nos escritos de Luciano de Samoacutesata Zeus destaca-
se como soberano dos deuses sendo referecircncia para diversos assuntos tratados pelo siacuterio O
siacuterio retoma a visatildeo homeacuterica que caracteriza Zeus como pai (Luciano Bis acc 2) mas tambeacutem
como ύς dos deuses e dos homens (Luciano Bis acc 2 D Deor 8 2 10 1 18 2) ldquoEacute
274 ldquo[] ὁ δὲ μόλις ἄν ποτε ἀνατείλας αὐτοῖς πορφυροῦς τις ἢ περίχρυσος ἢ διαποίκιλος εὐδαίμονας ᾤετο καὶ
μακαρίους ἀποφαίνειν τοὺς προσειπόντας εἰ τὸ στῆθος ἢ τὴν δεξιὰν προτείνων δοίη καταφιλεῖν ἐκεῖνοι μὲν οὖν
ἠνιῶντο ἀκούοντες
Τῷ δὲ Μίνῳ μία τις καὶ πρὸς χάριν ἐδικάσθη τὸν γάρ τοι Σικελιώτην Διονύσιον πολλά γε καὶ δεινὰ καὶ ἀνόσια
ὑπό τε Δίωνος κατηγορηθέντα καὶ ὑπὸ τῆς σκιᾶς καταμαρτυρηθέντα παρελθὼν Ἀρίστιππος ὁ Κυρηναῖος ndash ἄγουσι
δ αὐτὸν ἐν τιμῇ καὶ δύναται μέγιστον ἐν τοῖς κάτω ndash μικροῦ δεῖν τῇ Χιμαίρᾳ προσδεθέντα παρέλυσε τῆς καταδίκης
λέγων πολλοῖς αὐτὸν τῶν πεπαιδευμένων πρὸς ἀργύριον γενέσθαι δεξιόνrdquo 275 ldquoἐπεὶ δὲ ἀπέθανεν αὐτός τε παγγέλοιος ὤφθη μοι ἀποδυσάμενος τὴν τρυφήν κἀμαυτοῦ ἔτι μᾶλλον κατεγέλων
οἷον κάθαρμα ἐτεθήπειν []rdquo
162
assim que a concepccedilatildeo de Zeus em Diaacutelogos dos deuses eacute a (subversatildeo) de um rei e por
conseguinte a do Olimpo a (subversatildeo) de um reinordquo (BUZOacuteN amp MAKSIMCZUK 2012 27)
Como enfatizamos no toacutepico anterior Aristoacuteteles identifica a tirania como um desvio
da monarquia (Aristoacuteteles Pol 1279b 9) e nesse sentido os fins do tirano satildeo distintos ou
seja ele visa seu bem individual esquecendo-se da comunidade Por isso ele busca riquezas e
prazeres e se afasta da busca da honra jaacute que a meta do tirano eacute o prazer (Aristoacuteteles Pol
1311a 9) Nessa perspectiva a tirania apresenta cotidianamente abusos de poder
Platatildeo na Repuacuteblica reflete sobre a alma tiracircnica nos seguintes termos
Logo tambeacutem uma alma tiracircnica eacute sempre forccediladamente pobre e por saciar
Eacute isso
Ora bem Acaso natildeo eacute forccediloso que uma cidade dessas e uns homens desses
estejam cheios de temor
Eacute e muito
Achas que encontraraacutes em qualquer outra cidade mais gemidos suspiros
lamentaccedilotildees e sofrimentos
De modo nenhum
E no indiviacuteduo Pensas que em qualquer outro encontraraacutes essa situaccedilatildeo mas
acentuada do que no homem tiracircnico enlouquecido pelas paixotildees e por Eros
(Platatildeo Rep 578a)276
A citaccedilatildeo da Repuacuteblica de Platatildeo e da Poliacutetica de Aristoacuteteles natildeo visa em nenhum
momento estabelecer viacutenculos diretos de inspiraccedilatildeo natildeo se trata aqui de influecircncia entre os
escritores mas de uma noccedilatildeo que estaacute presente na memoacuteria cultural helecircnica Logo essas
remissotildees tratam muito mais de produzir um cenaacuterio que buscar a fonte da proposta luciacircnica
Observando que se trata de uma colocaccedilatildeo sobre uma instituiccedilatildeo no caso grego e que no
Impeacuterio Romano o termo vincula-se agrave adjetivaccedilatildeo depreciativa do governante Os escritos
luciacircnicos utilizavam-se dessa memoacuteria cultural helecircnica para expressar as tensotildees vividas
cotidianamente Natildeo se trata como vimos de uma mensagem voltada diretamente ao
Imperador mas de uma exegese do poder que naquele momento era detido pelo Imperador No
horizonte de expectativas daqueles homens natildeo havia a possibilidade de outra ordem logo era
possiacutevel prevenir Imperador para que esse viesse a se tornar um tirano
276 ldquo- Καὶ ψυχὴν ἄρα τυραννικὴν πενιχρὰν καὶ ἄπληστον ἀνάγκη ἀεὶ εἶναι
- Οὕτως ἦ δ ὅς
- Τί δέ φόβου γέμειν ἆρ οὐκ ἀνάγκη τήν τε τοιαύτην πόλιν τόν τε τοιοῦτον ἄνδρα
- Πολλή γε
- Ὀδυρμούς τε καὶ στεναγμοὺς καὶ θρήνους καὶ ἀλγηδόνας οἴει ἔν τινι ἄλλῃ πλείους εὑρήσειν
- Οὐδαμῶς
- Ἐν ἀνδρὶ δὲ ἡγῇ τὰ τοιαῦτα ἐν ἄλλῳ τινὶ πλείω εἶναι ἢ ἐν τῷ μαινομένῳ ὑπὸ ἐπιθυμιῶν τε καὶ ἐρώτων τούτῳ τῷ
τυραννικῷrdquo
163
No entanto Luciano deixa muito evidente a contradiccedilatildeo entre as narrativas miacuteticas e as
leis Em seu diaacutelogo maior Menipo ou neciomancia Menipo se sente compelido a ir ao Hades
consultar Tireacutesias por natildeo compreender a seguinte situaccedilatildeo
ao ouvir Homero e Hesiacuteodo narrarem guerras e sediccedilotildees natildeo soacute entre
semideuses mas tambeacutem entre os proacuteprios deuses bem como os seus
adulteacuterios violaccedilotildees raptos processos judiciais expulsotildees de pais e
casamentos com irmatildes julgava que todos esses atos eram dignos pelo que
ficava natildeo pouco impressionado com tudo isso Quando poreacutem cheguei agrave
idade adulta verifiquei que as leis diziam o contraacuterio dos poetas proibindo o
adulteacuterio as sediccedilotildees e os raptos pelo que me achei em grande embaraccedilo sem
saber o que devia adoptar para minha orientaccedilatildeo Realmente cuidava eu que
os deuses nunca por nunca cometeriam adulteacuterio e sediccedilotildees uns contra os
outros caso natildeo acreditassem que se tratava de boas accedilotildees e por outro lado
que os legisladores natildeo ordenariam o contraacuterio se natildeo o achassem mais
vantajoso (Luciano Nec 3)277
Como ressaltamos em muitos momentos desta Tese a formaccedilatildeo do homem antigo
estava ancorada sobre a leitura declamaccedilatildeo coacutepia e emulaccedilatildeo de Homero e Hesiacuteodo como
importantes fontes para as narrativas miacuteticas que trazem a representaccedilatildeo de valores e accedilotildees que
satildeo repudiados pelos legisladores Observamos que essas situaccedilotildees satildeo o mote para muitas das
colocaccedilotildees luciacircnicas Notemos por exemplo os deuses em suas apresentaccedilotildees
principalmente a imagem de Zeus o deus supremo do panteatildeo helecircnico
Nos Diaacutelogos dos deuses Zeus busca sua satisfaccedilatildeo pessoal que se resume em
satisfaccedilotildees sexuais O que eacute reprovado por exemplo por Prometeu ao se defender da acusaccedilatildeo
de ter criado as mulheres (Luciano Prom 17) ou ainda aquelas dirigidas por sua esposa a deusa
Hera que diz assim ldquoNatildeo procedes bem nem eacute decoroso para ti que sendo senhor de todos os
deuses me deixas aqui a mim tua legiacutetima esposa e dessas a terra para cometer adulteacuterio
disfarccedilado de ouro de saacutetiros de tourordquo (Luciano D Deor VIII 2)278 A esposa de Zeus
ironiza suas preocupaccedilotildees no diaacutelogo maior Zeus Traacutegico que analisamos no toacutepico anterior
ela afirma ldquoPois eu sei muito bem que o essencial do teu sofrimento eacute de natureza amorosa
E natildeo grito pois jaacute estou habituada jaacute fui muitas vezes ultrajada por ti nessa mateacuteriardquo (Luciano
277 ldquo[] ἀκούων Ὁμήρου καὶ Ἡσιόδου πολέμους καὶ στάσεις διηγουμένων οὐ μόνον τῶν ἡμιθέων ἀλλὰ καὶ αὐτῶν
ἤδη τῶν θεῶν ἔτι δὲ καὶ μοιχείας αὐτῶν καὶ βίας καὶ ἁρπαγὰς καὶ δίκας καὶ πατέρων ἐξελάσεις καὶ ἀδελφῶν
γάμους πάντα ταῦτα ἐνόμιζον εἶναι καλὰ καὶ οὐ παρέργως ἐκινούμην πρὸς αὐτά ἐπεὶ δὲ εἰς ἄνδρας τελεῖν
ἠρξάμην πάλιν αὖ ἐνταῦθα ἤκουον τῶν νόμων τἀναντία τοῖς ποιηταῖς κελευόντων μήτε μοιχεύειν μήτε
στασιάζειν μήτε ἁρπάζειν ἐν μεγάλῃ οὖν καθειστήκειν ἀμφιβολίᾳ οὐκ εἰδὼς ὅ τι χρησαίμην ἐμαυτῷ οὔτε γὰρ
ἄν ποτε τοὺς θεοὺς μοιχεῦσαι καὶ στασιάσαι πρὸς ἀλλήλους ἡγούμην εἰ μὴ ὡς περὶ καλῶν τούτων ἐγίγνωσκον
οὔτ ἂν τοὺς νομοθέτας τἀναντία παραινεῖν εἰ μὴ λυσιτελεῖν ὑπελάμβανονrdquo 278 ldquoΗΡΑ
Οὐδ ἐκεῖνα μὲν εὖ ποιεῖς οὐδὲ πρέποντα σεαυτῷ ὃς ἁπάντων θεῶν δεσπότης ὢν ἀπολιπὼν ἐμὲ τὴν νόμῳ γαμετὴν
ἐπὶ τὴν γῆν κάτει μοιχεύσων χρυσίον ἢ σάτυρος ἢ ταῦρος γενόμενοςrdquo
164
I Trag2)279 Na Assembleia dos deuses Momo em sua parreacutesia habitual mostra como as
relaccedilotildees de Zeus com as mortais ocorridas por meios de diversas metamorfoses aleacutem de serm
um problema eacutetico satildeo um problema poliacutetico jaacute que mudam a correlaccedilatildeo de forccedilas entre as
divindades Momo diz assim
De fato a origem de tais ilegalidades e a causa de a nossa assembleia andar
abastardada foste tu oacute Zeus quem tal coisa provocou por teres relaccedilotildees com
humanas descendo ateacute elas ora uma forma ora sob outra forma de tal modo
que noacutes receamos que algueacutem te apanhasse e te sacrificasse quando te
transformas em touro ou que algum ourives te derreta quando te transformas
em ouro e que entatildeo em vez de Zeus fiques feito um colar um bracelete ou
uns brincos (Luciano Deor Conc 7)280
Observamos por meio desses exemplos que as acusaccedilotildees nos diaacutelogos satildeo constantes
a essa postura No entanto Zeus natildeo se absteacutem de mudar a proacutepria ordem natural das coisas
para ter seus romances com mortais por exemplo no diaacutelogo XXV em que Hermes ordena em
nome de Zeus que Heacutelio o deus sol ldquonatildeo conduza hoje o teu carro nem amanhatilde nem depois
de amanhatilde mas fica em casa para que haja uma soacute noite muito longardquo (Luciano D deor XIV
1) 281
Nos Diaacutelogos dos deuses marinhos haacute outro exemplo da intervenccedilatildeo de Zeus nos
fenocircmenos fiacutesicos
Iacuteris282 mdash Oacute Poseidon aquela ilha errante que se separou da Siciacutelia e ainda
vagueia por sob as aacuteguas essa Zeus ordena-te que a faccedilas parar
imediatamente a tragas agrave superfiacutecie e faccedilas que ela bem visiacutevel em pleno mar
Egeu fique aiacute muito bem firme pois ele tem necessidade dessa ilha
Poseidon mdash Seraacute feita a sua vontade Iacuteris Mas que utilidade lhe proporcionaraacute
ela pelo facto de estar emersa e deixar de navegar
Iacuteris mdash Eacute que Leto283 deve ir dar agrave luz nessa ilha e ateacute jaacute estaacute com terriacuteveis
dores de parto
279 ldquoΗΡΑ
Οἶδα τὸ κεφάλαιον αὐτὸ ὧν πάσχεις ὅτι ἐρωτικόν ἐστιν οὐ μὴν κωκύω γε ὑπὸ ἔθους ἤδη πολλάκις ὑβρισθεῖσα
ὑπὸ σοῦ τὰ τοιαῦταrdquo 280 ldquo[] Τὴν γάρ τοι ἀρχὴν τῶν τοιούτων παρανομημάτων καὶ τὴν αἰτίαν τοῦ νοθευθῆναι ἡμῶν τὸ ξυνέδριον σύ
ὦ Ζεῦ παρέσχες θνηταῖς ἐπιμιγνύμενος καὶ κατιὼν παρ αὐτὰς ἐν ἄλλοτε ἄλλῳ σχήματι ὥστε ἡμᾶς δεδιέναι μή
σε καταθύσῃ τις ξυλλαβών ὁπόταν ταῦρος ᾖς ἢ τῶν χρυσοχόων τις κατεργάσηται χρυσὸν ὄντα καὶ ἀντὶ Διὸς ἢ
ὅρμος ἢ ψέλιον ἢ ἐλλόβιον ἡμῖν γένῃrdquo 281 ldquoΕΡΜΗΣ
Ὦ Ἥλιε μὴ ἐλάσῃς τήμερον ὁ Ζεύς φησι μηδὲ αὔριον μηδὲ εἰς τρίτην ἡμέραν ἀλλὰ ἔνδον μένε καὶ τὸ μεταξὺ
μία τις ἔστω νὺξ μακράrdquo 282 Iris eacute uma divindade mariacutetima simbolizada pelo arco-iacuteris Como Hermes tem a incumbecircncia de levar as
mensagens dos deuses (GRIMAL 2005 253-254) 283 Leto pertence agrave primeira geraccedilatildeo divina Quando estava graacutevida dos dois gecircmeos Hera enciumada havia
proibido que ela desse agrave luz em qualquer lugar do ceacuteu e da Terra Ela vagou por muitos cantos ateacute que deu agrave luz
em Delos uma ilha errante e esteacuteril que natildeo tinha nada a perder com a coacutelera de Hera Como precircmio ela ficou
165
Poseidon mdash O quecirc Entatildeo o ceacuteu natildeo bastante grande para ela aiacute dar agrave luz
Ou agrave falta deste natildeo pode toda a terra receber os filhos de Leto
Iacuteris mdash Natildeo Poseidon Na verdade Hera obrigou a Terra sob juramento
solene a natildeo dar hospitalidade a Leto em trabalhos de parto Ora estaacute ilha
estaacute fora do juramento pois natildeo era visiacutevel
Poseidon mdash Compreendo Oacute ilha emerge novamente do abismo e natildeo te
mexas daiacute mas permanece bem fixa e acolhe oacute bem-aventurada os dois filhos
de meu irmatildeo os mais formosos de entre os deuses E voacutes Tritotildees transportai
Leto a esta ilha e que o mar esteja calmo E quanto agrave serpente que a atormenta
e aterroriza logo que estes seus filhos nascerem atacaacute-la-atildeo e vingaratildeo a matildee
E tu Iacuteris vai anunciar a Zeus que estaacute tudo preparado Delos estaacute fixa Que
venha jaacute Leto e que decirc agrave luz (Luciano D mar X 1-2)284
Leto eacute uma das amantes de Zeus matildee de Apolo e Artecircmis Nesse diaacutelogo Iris leva uma
mensagem a Poseidon para que ele interfira na geografia do mar a fim de organizar um lugar
para que essa decirc a luz a seus filhos uma vez que Hera natildeo permitiria que isso ocorresse no
Olimpo Mais uma vez as relaccedilotildees extraconjugais desse fazem com que ele interfira em
elementos que natildeo poderia fazecirc-lo Tal relacionamento continua a gerar problemas como fica
evidenciado no diaacutelogo XVIII dos Diaacutelogos dos deuses travado entre Hera e Leto Hera a
esposa de Zeus contesta Leto uma amante com a qual ele teve dois importantes filhos Apolo
e Artecircmis
Em um diaacutelogo com Eros Zeus mostra-se bastante autoritaacuterio em suas conquistas
Trata-se de um elemento interessante para compreender essa caracteriacutestica tiracircnica do Zeus
luciacircnico que natildeo se preocupa com nada ao realizar uma conquista
fixa no mar e ganhou o nome de Delos brilhante (GRIMAL 2005 275) A narrativa citada no corpo da Tese natildeo
eacute encontrada em nenhuma outra fonte 284 ldquoΙΡΙΣ
Τὴν νῆσον τὴν πλανωμένην ὦ Πόσειδον ἣν ἀποσπασθεῖσαν τῆς Σικελίας ὕφαλον ἔτι νήχεσθαι συμβέβηκεν
ταύτην φησὶν ὁ Ζεύς στῆσον ἤδη καὶ ἀνάφηνον καὶ ποίησον ἤδη δῆλον ἐν τῷ Αἰγαίῳ μέσῳ βεβαίως μένειν
στηρίξας πάνυ ἀσφαλῶς δεῖται γάρ τι αὐτῆς
ΠΟΣΕΙΔΩΝ
Πεπράξεται ταῦτα ὦ Ἶρι τίνα δ ὅμως παρέξει τὴν χρείαν αὐτῷ ἀναφανεῖσα καὶ μηκέτι πλέουσα
ΙΡΙΣ
Τὴν Λητὼ ἐπ αὐτῆς δεῖ ἀποκυῆσαι ἤδη δὲ πονήρως ὑπὸ τῶν ὠδίνων ἔχει
ΠΟΣΕΙΔΩΝ
Τί οὖν οὐχ ἱκανὸς ὁ οὐρανὸς ἐντεκεῖν εἰ δὲ μὴ οὗτος ἀλλ ἥ γε γῆ πᾶσα οὐκ ἂν ὑποδέξασθαι δύναιτο τὰς γονὰς
αὐτῆς
ΙΡΙΣ
Οὔκ ὦ Πόσειδον ἡ Ἥρα γὰρ ὅρκῳ μεγάλῳ κατέλαβε τὴν γῆν μὴ παρασχεῖν τῇ Λητοῖ τῶν ὠδίνων ὑποδοχήν ἡ
τοίνυν νῆσος αὕτη ἀνώμοτός ἐστιν ἀφανὴς γὰρ ἦν
ΠΟΣΕΙΔΩΝ
Συνίημι στῆθι ὦ νῆσε καὶ ἀνάδυθι αὖθις ἐκ τοῦ βυθοῦ καὶ μηκέτι ὑποφέρου ἀλλὰ βεβαίως μένε καὶ ὑπόδεξαι
ὦ εὐδαιμονεστάτη τοῦ ἀδελφοῦ τὰ τέκνα δύο τοὺς καλλίστους τῶν θεῶν καὶ ὑμεῖς ὦ Τρίτωνες διαπορθμεύσατε
τὴν Λητὼ ἐς αὐτήν καὶ γαληνὰ ἅπαντα ἔστω τὸν δράκοντα δέ ὃς νῦν ἐξοιστρεῖ αὐτὴν φοβῶν τὰ νεογνὰ ἐπειδὰν
τεχθῇ αὐτίκα μέτεισι καὶ τιμωρήσει τῇ μητρί σὺ δὲ ἀπάγγελλε τῷ Διὶ ἅπαντα εἶναι εὐτρεπῆ ἕστηκεν ἡ Δῆλος
ἡκέτω ἡ Λητὼ ἤδη καὶ τικτέτωrdquo
166
Eros mdash Oacute Zeus se eu pequei nalguma coisa perdoa-me pois ainda sou uma
crianccedila insensata
Zeus mdash Tu Eros uma crianccedila Tu que eacutes muito mais velho que Jaacutepeto Laacute
porque natildeo tens barba nem cabelos brancos jaacute te julgas no direito de ser
considerado um bebecirc Tu que natildeo passas de um velho e de um velhaco
Eros mdash Entatildeo que grande mal eacute que eu te fiz eu um velho segundo dizes
para pensares em me pocircr a ferros
Zeus mdash Vecirc laacute bem meu tratante se eacute coisa de pouca monta teres feito pouco
de mim a ponto de natildeo haver figura por que natildeo me tenhas feito passar saacutetiro
touro ouro cisne aacuteguia Ora tu nunca por nunca fizeste que uma mulher se
apaixonasse por mim nem nunca me apercebi de graccedilas a ti ter sido
agradaacutevel a uma mulher mas pelo contraacuterio tive de servir-me de artes
maacutegicas e disfarccedilar-me Elas gostam muito de um touro ou de um cisne mas
se me vissem morreriam de medo
Eros mdash Eacute natural oacute Zeus pois elas mortais como satildeo natildeo suportam o teu
aspecto
Zeus mdash Entatildeo porque eacute que Branco e Jacinto amam Apolo
Eros mdash E no entanto Dafne fugia de Apolo apesar de ele ter uma cabeleira
e ser imberbe Ora se queres ser amado natildeo agites a eacutegide nem empunhes o
raio mas mostra-te o mais simpaacutetico possiacutevel e terno soacute de se ver usa
cabeleira encaracolada presos ao alto com uma mitra veste um manto de
puacuterpura umas sandaacutelias de ouro caminha ritmicamente ao som da flauta e de
pandeiros e veraacutes que vatildeo atraacutes de ti em nuacutemero maior que as Meacutenades de
Dioniso
Zeus mdash Vai-te daqui Natildeo admitiria ser amado agrave custa de me apresentar desta
forma
Eros mdash Nesse caso oacute Zeus natildeo queiras amar eacute mais faacutecil assim
Zeus mdash Oh natildeo Amar sim mas tambeacutem conseguir chegar junto delas sem
problemas Por estes dois favores deixo-te ir em paz (Luciano D deorVI
1-2)285
285 ldquoΕΡΩΣ
Ἀλλ εἰ καί τι ἥμαρτον ὦ Ζεῦ σύγγνωθί μοι παιδίον γάρ εἰμι καὶ ἔτι ἄφρων
ΖΕΥΣ
Σὺ παιδίον ὁ Ἔρως ὃς ἀρχαιότερος εἶ πολὺ Ἰαπετοῦ ἢ διότι μὴ πώγωνα μηδὲ πολιὰς ἔφυσας διὰ ταῦτα καὶ
βρέφος ἀξιοῖς νομίζεσθαι γέρων καὶ πανοῦργος ὤν
ΕΡΩΣ
Τί δαί σε μέγα ἠδίκησα ὁ γέρων ὡς φῂς ἐγώ διότι με καὶ πεδῆσαι διανοῇ
ΖΕΥΣ
Σκόπει ὦ κατάρατε εἰ μικρά ὃς ἐμοὶ μὲν οὕτως ἐντρυφᾷς ὥστε οὐδέν ἐστιν ὃ μὴ πεποίηκάς με σάτυρον ταῦρον
χρυσόν κύκνον ἀετόν ἐμοῦ δὲ ὅλως οὐδεμίαν ἥντινα ἐρασθῆναι πεποίηκας οὐδὲ συνῆκα ἡδὺς γυναικὶ διὰ σὲ
γεγενημένος ἀλλά με δεῖ μαγγανεύειν ἐπ αὐτὰς καὶ κρύπτειν ἐμαυτόν αἱ δὲ τὸν μὲν ταῦρον ἢ κύκνον φιλοῦσιν
ἐμὲ δὲ ἢν ἴδωσι τεθνᾶσιν ὑπὸ τοῦ δέους
ΕΡΩΣ
Εἰκότως οὐ γὰρ φέρουσιν ὦ Ζεῦ θνηταὶ οὖσαι τὴν σὴν πρόσοψιν
ΖΕΥΣ
Πῶς οὖν τὸν Ἀπόλλω ὁ Βράγχος καὶ ὁ Ὑάκινθος φιλοῦσιν
ΕΡΩΣ
Ἀλλὰ ἡ Δάφνη κἀκεῖνον ἔφευγε καίτοι κομήτην καὶ ἀγένειον ὄντα εἰ δ ἐθέλεις ἐπέραστος εἶναι μὴ ἐπίσειε τὴν
αἰγίδα μηδὲ τὸν κεραυνὸν φέρε ἀλλ ὡς ἥδιστον ποίει σεαυτὸν ἁπαλὸν ὀφθῆναι καθειμένος βοστρύχους τῇ
μίτρᾳ τούτους ἀνειλημμένος πορφυρίδα ἔχε ὑποδέου χρυσίδας ὑπ αὐλῷ καὶ τυμπάνοις εὔρυθμα βαῖνε καὶ ὄψει
ὅτι πλείους ἀκολουθήσουσί σοι τῶν Διονύσου Μαινάδων
ΖΕΥΣ
Ἄπαγε οὐκ ἂν δεξαίμην ἐπέραστος εἶναι τοιοῦτος γενόμενος
ΕΡΩΣ
Οὐκοῦν ὦ Ζεῦ μηδὲ ἐρᾶν θέλε ῥᾴδιον γὰρ τοῦτό γε
ΖΕΥΣ
167
Esse diaacutelogo eacute interessante pois completa o debate acerca da postura tiracircnica de Zeus
que natildeo se preocupa com o desejo das mulheres e para conquistaacute-las toma qualquer forma que
for necessaacuteria mas natildeo tem nenhuma preocupaccedilatildeo com a seduccedilatildeo
Em diversos momentos por exemplo com Prometeu ou com Heacutelio o Zeus luciacircnico se
mostra insensiacutevel diante dos sofrimentos como nos diaacutelogos V e XXIV ou ainda no diaacutelogo
entre Ganimedes e Zeus Ganimedes tinha sido sequestrado por Zeus ndash que havia se
metamorfoseado em uma aacuteguia ndash e pede para voltar para seu rebanho Ganimedes afirma que
sua famiacutelia sentira sua falta mas Zeus se mostra impassiacutevel agraves suas suacuteplicas (Luciano D deor
X 3) Ganimedes eacute um dos pouquiacutessimos personagens miacuteticos que transcendem a condiccedilatildeo
humana e vive entre os deuses Dessa forma Luciano faz com que o leitorouvinte ria de mais
um caso em que um humano se transformou em um deus
O Zeus luciacircnico se mostra desinteressado com o exerciacutecio de suas funccedilotildees
principalmente com a de aacuterbitro que lhe eacute atribuiacuteda tradicionalmente Podemos observar a
querela entre Heacuteracles e Ascleacutepio pelo melhor lugar no banquete em que o deus daacute o lugar para
Ascleacutepio simplesmente por ele ter chegado primeiro (Luciano D deor XV) Ou ainda no
Julgamento das deusas286 em que ele pede para Paris decidir qual eacute a deusa mais bela A cena
que antecede o chamado de Paris foi relatada nos Diaacutelogos dos deuses marinhos nos quais duas
nereidas contam
Pacircnope287 mdash Oacute Galene viste o que eacute que Eacuteris fez ontem na Tessaacutelia durante
o jantar pelo facto de natildeo ter sido convidada para o banquete
Galene mdash Natildeo estive presente no vosso banquete na verdade Pacircnope
Poseidon tinha-me ordenado que a essa hora cuidasse da tranquilidade do
mar Mas entatildeo que eacute que fez Eacuteris por natildeo ter sido convidada
Pacircnope mdash Teacutetis e Peleu288 jaacute se haviam retirado para os seus aposentos
acompanhados por Anfitrite e Poseidon quando Eacuteris passando despercebida
de todos (coisa faacutecil pois uns bebiam e outros aplaudiam ou estavam
atentos escutando Apolo a tocar ciacutetara ou as Musas a cantar) arremessou
Οὔκ ἀλλὰ ἐρᾶν μέν ἀπραγμονέστερον δὲ αὐτῶν ἐπιτυγχάνειν ἐπὶ τούτοις αὐτοῖς ἀφίημί σεrdquo 286 Trata-se de um diaacutelogo maior travado entre Zeus Hermes Hera Atena Afrodite e Paacuteris Ele conta uma ceacutelebre
narrativa que antecede a Guerra de Troia em que Paris tem de escolher qual eacute a mais bela das deusas para lhe
ofertar o pomo de Ouro dado por Eris a deusa da discoacuterdia Afrodite Atenas e Hera Cada deusa lhe oferece um
presente que se coaduna com suas funccedilotildees Afrodite lhe oferece o amor da mais bela das mulheres Atenas a
invencibilidade nas batalhas e Hera a soberania do mundo Paris escolhe o amor prometido por Afrodite e essa lhe
encaminha para Helena rainha de Esparta casada com Menelau Paris rouba a bela rainha tradicionalmente esse
eacute o fato que daacute iniacutecio a Guerra de Troia 287 Pacircnope Galene Anfitrite e Tetis satildeo nereidas divindades mariacutetimas filhas de Nereu e Doris netas de Oceano
Geralmente representam as inuacutemeras vagas do mar Anfitrite era a esposa de Poseidon o deus do mar e Tetis a
esposa de Peleu (GRIMAL 2005327-328) 288 Peleu era rei da Ftia na Tessaacutelia casado com a nereida Tetis eacute o pai do heroacutei Aquiles Prometeu em uma
profecia que analisamos no toacutepico anterior dizia que o filho de Tetis seria mais forte que o pai por esse motivo
Zeus decide casaacute-la com um mortal (GRIMAL 2005 360-361)
168
para o meio da sala uma maccedilatilde magniacutefica de oiro maciccedilo na qual estava uma
inscriccedilatildeo que dizia PARA A MAIS BELA A maccedilatilde foi rolando e como se
de propoacutesito foi parar ao siacutetio onde estavam reclinadas Hera Afrodite e
Atena Entatildeo Hermes apanhou a maccedilatilde e leu a inscriccedilatildeo e noacutes Nereidas
ficaacutemos muito caladinhas Sim que outra coisa poderiacuteamos noacutes fazer
perante aquelas grandes senhoras Cada uma delas reclamava que a maccedilatilde
lhe pertencia de direito e a discussatildeo teria chegado a vias de facto se Zeus
natildeo as tivesse apartado Entatildeo ele disse lsquoEu pessoalmente natildeo emitirei
juiacutezo sobre essa demanda (de facto elas queriam que fosse ele a julgar) mas
descei ateacute ao Ida ateacute junto do filho de Priacuteamo o qual apreciador como eacute
da beleza saberaacute sentenciar qual eacute mais bela e certamente natildeo vos julgaraacute
malrsquo (Luciano D mar V 1-2)289
Esse diaacutelogo eacute importante por colocar a passagem aludida no Julgamento das deusas
narrada por Nereidas que satildeo divindades menores com atuaccedilatildeo no mar filhas de Nereu que
colocam a cena da festa na casa de Teacutetis e Atreu em que a deusa Eacuteris da discoacuterdia natildeo foi
convidada Em meio agrave festa ela joga uma maccedilatilde de ouro entre trecircs deusas importantes (Hera
Atena e Afrodite) com a inscriccedilatildeo de que essa pertencia agrave deusa mais bela As Nereidas se
portam convenientemente agrave sua posiccedilatildeo subalterna afastando-se do debate para que Zeus
dirimisse o conflito como era sua funccedilatildeo Entretanto Zeus chama Hermes e ordena-lhe que ele
chame Paacuteris Cena semelhante ocorre no iniacutecio do Julgamento das deusas em que Zeus diz a
Hermes
Zeus - Oacute Hermes toma laacute estaacute maccedilatilde e vai agrave Friacutegia vai ter com o filho de
Priacuteamo o pastor que guarda no pico do Gaacutergaro no monte Ida e diz-lhe o
seguinte laquoPaacuteris Zeus ordena-te que visto seres formoso e entendido em
coisas de amor que julgues de entre as deusas qual delas eacute a mais bela e
que a vencedora receba esta maccedilatilde como preacutemio do concursoraquo Portanto eacute
tempo de vos dirigirdes junto do juiz Por mim nego-me a ser aacuterbitro pois
amo-vos por igual pelo que se fosse possiacutevel dar-me-ia o maior prazer ver-
vos todas vencedoras Aleacutem disso eacute fatal que aquele que atribuir o preacutemio de
beleza a uma fique odiado pelas outras Por isso eu natildeo sou o juiz adequado
289 ldquoΠΑΝΟΠΗ
Εἶδες ὦ Γαλήνη χθὲς οἷα ἐποίησεν ἡ Ἔρις παρὰ τὸ δεῖπνον ἐν Θετταλίᾳ διότι μὴ καὶ αὐτὴ ἐκλήθη εἰς τὸ
συμπόσιον
ΓΑΛΗΝΗ
Οὐ συνειστιώμην ὑμῖν ἔγωγε ὁ γὰρ Ποσειδῶν ἐκέλευσέ μέ ὦ Πανόπη ἀκύμαντον ἐν τοσούτῳ φυλάττειν τὸ
πέλαγος τί δ οὖν ἐποίησεν ἡ Ἔρις μὴ παροῦσα
ΠΑΝΟΠΗ
Ἡ Θέτις μὲν ἤδη καὶ ὁ Πηλεὺς ἀπεληλύθεσαν ἐς τὸν θάλαμον ὑπὸ τῆς Ἀμφιτρίτης καὶ τοῦ Ποσειδῶνος
παραπεμφθέντες ἡ Ἔρις δὲ ἐν τοσούτῳ λαθοῦσα πάντας ndash ἐδυνήθη δὲ ῥᾳδίως τῶν μὲν πινόντων ἐνίων δὲ
κροτούντων ἢ τῷ Ἀπόλλωνι κιθαρίζοντι ἢ ταῖς Μούσαις ᾀδούσαις προσεχόντων τὸν νοῦν ndash ἐνέβαλεν ἐς τὸ
συμπόσιον μῆλόν τι πάγκαλον χρυσοῦν ὅλον ὦ Γαλήνη ἐπεγέγραπτο δὲ ldquoἡ καλὴ λαβέτωrdquo κυλινδούμενον δὲ
τοῦτο ὥσπερ ἐξεπίτηδες ἧκεν ἔνθα Ἥρα τε καὶ Ἀφροδίτη καὶ Ἀθηνᾶ κατεκλίνοντο κἀπειδὴ ὁ Ἑρμῆς ἀνελόμενος
ἐπελέξατο τὰ γεγραμμένα αἱ μὲν Νηρεΐδες ἡμεῖς ἐσιωπήσαμεν τί γὰρ ἔδει ποιεῖν ἐκείνων παρουσῶν αἱ δὲ
ἀντεποιοῦντο ἑκάστη καὶ αὑτῆς εἶναι τὸ μῆλον ἠξίουν καὶ εἰ μή γε ὁ Ζεὺς διέστησεν αὐτάς καὶ ἄχρι χειρῶν ἂν
τὸ πρᾶγμα προὐχώρησεν ἀλλ ἐκεῖνος Αὐτὸς μὲν οὐ κρινῶ φησί περὶ τούτου ndash καίτοι ἐκεῖναι αὐτὸν δικάσαι
ἠξίουν ndash ἄπιτε δὲ ἐς τὴν Ἴδην παρὰ τὸν Πριάμου παῖδα ὃς οἶδέ τε διαγνῶναι τὸ κάλλιον φιλόκαλος ὤν καὶ οὐκ
ἂν ἐκεῖνος κρίναι κακῶςrdquo
169
ao vosso caso mas o jovem friacutegio que voacutes ides procurar eacute de famiacutelia real
parente aqui do Ganimedes e de resto muito simples e ruacutestico ningueacutem o
julgaria indigno de assistir a um tal espetaacuteculo (Luciano Dear jud 1)290
Zeus prefere natildeo ter o desgaste com as outras deusas mesmo sendo uma funccedilatildeo sua ser
dispensador da justiccedila ser o juiz supremo Ele natildeo se preocupa em dirimir os conflitos mas
com seu prazer pessoal Natildeo se volta para o bem comum como jaacute disse Prometeu em outra
passagem analisada anteriormente (Luciano Prom 12)
O deus supremo do panteatildeo helecircnico tambeacutem se mostra inacessiacutevel aos outros deuses
como por exemplo no diaacutelogo travado entre Hermes e Poseidon em que este quer ter uma
audiecircncia com Zeus e Hermes lhe diz que natildeo pode pois ele estaacute adoentado por ter dado agrave luz
Dioniso (Luciano D deor XII1)
Outro ponto importante eacute o medo que os deuses tecircm dele Nos Diaacutelogos dos deuses
podemos observar isso em dois diaacutelogos No diaacutelogo XXI travado entre Ares o deus da guerra
e Hermes temos o seguinte
Ares mdash Oacute Hermes ouviste as ameaccedilas que Zeus nos fez tatildeo arrogantes e tatildeo
disparatadas lsquoSe eu quiser mdash disse ele mdash deito uma corda caacute do ceacuteu e voacutes
todos pendurados nela esforccedilar-vos-eis por me arrastar aiacute para baixo mas
seraacute esforccedilo baldado natildeo me mandareis abaixo E se eu quisesse iccedilar-vos-
ia natildeo soacute a voacutes mas tambeacutem puxaria ao mesmo tempo a terra e o mar e
suspendecirc-los-ia no espaccedilorsquo E muitas outras coisas que tu tambeacutem ouviste
Por mim natildeo posso negar que ele seja superior e mais forte que cada um de
noacutes um por um mas que ele seja superior a todos noacutes juntos a ponto de natildeo o
vergarmos com o nosso peso mesmo que acrescentaacutessemos a terra e o mar
nisso eacute que eu jaacute natildeo posso acreditar
Hermes mdash Estaacute calado Ares pois natildeo eacute prudente falar dessas coisas natildeo se
decirc o caso de sermos castigados pela nossa tagarelice
Ares mdash Cuidas tu que eu tive esta conversa com toda a gente e natildeo apenas
contigo que eu bem sei que tens tento na liacutengua Ora eu natildeo podia deixar de
te contar uma ameaccedila que eu ouvi e que me pareceu sumamente ridiacutecula Na
verdade recordo-me de que natildeo haacute muito tempo quando Poseidon Hera e
Atena se revoltaram e conspiraram contra Zeus no sentido de prendecirc-lo e pocircr
a ferros ele ficou completamente aterrado e eram apenas trecircs e se Teacutetis
com pena dele natildeo tivesse chamado em seu socorro Briareu de cem braccedilos
teria mesmo ficado a ferros juntamente com o seu raio e o seu trovatildeo Ao
pensar neste episoacutedio desatei a rir da fanfarronice de Zeus
290 ldquoΖΕΥΣ
Ἑρμῆ λαβὼν τουτὶ τὸ μῆλον ἄπιθι εἰς τὴν Φρυγίαν παρὰ τὸν Πριάμου παῖδα τὸν βουκόλον ndash νέμει δὲ τῆς Ἴδης
ἐν τῷ Γαργάρῳ ndash καὶ λέγε πρὸς αὐτόν ὅτι ldquoΣέ ὦ Πάρι κελεύει ὁ Ζεύς ἐπειδὴ καλός τε αὐτὸς εἶ καὶ σοφὸς τὰ
ἐρωτικά δικάσαι ταῖς θεαῖς ἥτις αὐτῶν ἡ καλλίστη ἐστίν τοῦ δὲ ἀγῶνος τὸ ἆθλον ἡ νικῶσα λαβέτω τὸ μῆλονrdquo
ὥρα δὲ ἤδη καὶ ὑμῖν αὐταῖς ἀπιέναι παρὰ τὸν δικαστήν ἐγὼ γὰρ ἀπωθοῦμαι τὴν δίαιταν ἐπ ἴσης τε ὑμᾶς ἀγαπῶν
καὶ εἴ γε οἷόν τε ἦν ἡδέως ἂν ἁπάσας νενικηκυίας ἰδών ἄλλως τε καὶ ἀνάγκη μιᾷ τὸ καλλιστεῖον ἀποδόντα
πάντως ἀπεχθάνεσθαι ταῖς πλείοσιν διὰ ταῦτα αὐτὸς μὲν οὐκ ἐπιτήδειος ὑμῖν δικαστής ὁ δὲ νεανίας οὗτος ὁ Φρὺξ
ἐφ ὃν ἄπιτε βασιλικὸς μέν ἐστι καὶ Γανυμήδους τουτουὶ συγγενής τὰ ἄλλα δὲ ἀφελὴς καὶ ὄρειος κοὐκ ἄν τις
αὐτὸν ἀπαξιώσειε τοιαύτης θέαςrdquo
170
Hermes mdash Cala-te repito Natildeo eacute prudente nem para ti dizer tais coisas nem
para mim escutaacute-las (Luciano D deor XXI 1-2)291
Tais preocupaccedilotildees satildeo evidentes em um governo tiracircnico uma vez que o que caracteriza
as formas de governo que natildeo satildeo deturpadas para usar a sutileza aristoteacutelica eacute a possibilidade
da palavra franca da parreacutesia O espaccedilo tiracircnico se caracteriza justamente pela dificuldade em
expressar seus proacuteprios pensamentos pois isso pode lhe custar a vida ou a liberdade
O outro diaacutelogo em que haacute a exposiccedilatildeo de ressalvas ao governo tiracircnico de Zeus eacute
travado entre Hermes e Heacutelio citado anteriormente para falar da interferecircncia de Zeus na ordem
natural das coisas para satisfazer seus desejos Heacutelio afirma assim
Heacutelio mdash Pois entatildeo que ele meta matildeos agrave obra e boa sorte Mas essas accedilotildees
oacute Hermes (agora que ningueacutem nos ouve) natildeo aconteciam no reinado de
Cronos este nunca dormia fora do leito de Reia nem deixaria o ceacuteu para ir
dormir a Tebas mas o dia era o dia e a noite durava segundo a sua medida
de acordo com as estaccedilotildees natildeo acontecia nada de estranho ou de anormal e o
deus natildeo teria nunca tido relaccedilotildees com uma mulher mortal Agora poreacutem por
causa de miseraacutevel mulherzinha haacute que alterar tudo por completo os meus
cavalos satildeo obrigados a ficar presos de movimentos devido agrave inatividade e o
caminho sem ser pisado durante trecircs dias ficaraacute intransitaacutevel e os pobres
homens viveratildeo nas trevas Eacute isso que eles ganharatildeo com os amores de Zeus
esperando sentados e envolvidos em longa escuridatildeo ateacute que ele acabe de
fabricar o tal atleta de que tu falas
Hermes mdash Cala-te Heacutelio ainda assim natildeo te venha algum mal das tuas
palavras292
291 ldquoΑΡΗΣ
Ἤκουσας ὦ Ἑρμῆ οἷα ἠπείλησεν ἡμῖν ὁ Ζεύς ὡς ὑπεροπτικὰ καὶ ὡς ἀπίθανα Ἢν ἐθελήσω φησίν ἐγὼ μὲν ἐκ
τοῦ οὐρανοῦ σειρὰν καθήσω ὑμεῖς δὲ ἀποκρεμασθέντες κατασπᾶν βιάσεσθέ με ἀλλὰ μάτην πονήσετε οὐ γὰρ δὴ
καθελκύσετε εἰ δὲ ἐγὼ θελήσαιμι ἀνελκύσαι οὐ μόνον ὑμᾶς ἀλλὰ καὶ τὴν γῆν ἅμα καὶ τὴν θάλασσαν
συνανασπάσας μετεωριῶ καὶ τἆλλα ὅσα καὶ σὺ ἀκήκοας ἐγὼ δὲ ὅτι μὲν καθ ἕνα πάντων ἀμείνων καὶ ἰσχυρότερός
ἐστιν οὐκ ἂν ἀρνηθείην ὁμοῦ δὲ τῶν τοσούτων ὑπερφέρειν ὡς μὴ καταβαρήσειν αὐτόν ἢν καὶ τὴν γῆν καὶ τὴν
θάλασσαν προσλάβωμεν οὐκ ἂν πεισθείην
ΕΡΜΗΣ
Εὐφήμει ὦ Ἄρες οὐ γὰρ ἀσφαλὲς λέγειν τὰ τοιαῦτα μὴ καί τι κακὸν ἀπολαύσωμεν τῆς φλυαρίας
ΑΡΗΣ
Οἴει γάρ με πρὸς πάντας ἂν ταῦτα εἰπεῖν οὐχὶ δὲ πρὸς μόνον σέ ὃν ἐχεμυθήσειν ἠπιστάμην ὃ γοῦν μάλιστα
γελοῖον ἔδοξέ μοι ἀκούοντι μεταξὺ τῆς ἀπειλῆς οὐκ ἂν δυναίμην σιωπῆσαι πρὸς σέ μέμνημαι γὰρ οὐ πρὸ πολλοῦ
ὁπότε ὁ Ποσειδῶν καὶ ἡ Ἥρα καὶ ἡ Ἀθηνᾶ ἐπαναστάντες ἐπεβούλευον ξυνδῆσαι λαβόντες αὐτόν ὡς παντοῖος ἦν
δεδιώς καὶ ταῦτα τρεῖς ὄντας καὶ εἰ μή γε ἡ Θέτις κατελεήσασα ἐκάλεσεν αὐτῷ σύμμαχον Βριάρεων ἑκατόγχειρα
ὄντα κἂν ἐδέδετο αὐτῷ κεραυνῷ καὶ βροντῇ ταῦτα λογιζομένῳ ἐπῄει μοι γελᾶν ἐπὶ τῇ καλλιρρημοσύνῃ αὐτοῦ
ΕΡΜΗΣ
Σιώπα φημί οὐ γὰρ ἀσφαλὲς οὔτε σοὶ λέγειν οὔτ ἐμοὶ ἀκούειν τὰ τοιαῦταrdquo 292 ldquoΗΛΙΟΣ
Ἀλλὰ τελεσιουργείτω μὲν ἀγαθῇ τύχῃ ταῦτα δ οὖν ὦ Ἑρμῆ οὐκ ἐγίνετο ἐπὶ τοῦ Κρόνου ndash αὐτοὶ γὰρ ἡμεῖς
ἐσμεν ndash οὐδὲ ἀπόκοιτός ποτε ἐκεῖνος παρὰ τῆς Ῥέας ἦν οὐδὲ ἀπολιπὼν ἂν τὸν οὐρανὸν ἐν Θήβαις ἐκοιμᾶτο ἀλλὰ
ἡμέρα μὲν ἦν ἡ ἡμέρα νὺξ δὲ κατὰ μέτρον τὸ αὐτῆς ἀνάλογον ταῖς ὥραις ξένον δὲ ἢ παρηλλαγμένον οὐδέν οὐδ
ἂν ἐκοινώνησέ ποτε ἐκεῖνος θνητῇ γυναικί νῦν δὲ δυστήνου γυναίου ἕνεκα χρὴ ἀνεστράφθαι τὰ πάντα καὶ
ἀκαμπεστέρους μὲν γενέσθαι τοὺς ἵππους ὑπὸ τῆς ἀργίας δύσπορον δὲ τὴν ὁδὸν ἀτριβῆ μένουσαν τριῶν ἑξῆς
ἡμερῶν τοὺς δὲ ἀνθρώπους ἀθλίους ἐν σκοτεινῷ διαβιοῦν τοιαῦτα ἀπολαύσονται τῶν Διὸς ἐρώτων καὶ
καθεδοῦνται περιμένοντες ἔστ ἂν ἐκεῖνος ἀποτελέσῃ τὸν ἀθλητήν ὃν λέγεις ὑπὸ
μακρῷ τῷ ζόφῳ
171
A imagem de tirano se completa com a oposiccedilatildeo ao governante anterior como jaacute foi
enfatizado no toacutepico sobre Prometeu Luciano apresenta a referecircncia agrave monarquia governada
por Cronos que se oporia em essecircncia ao governo tiracircnico de Zeus ndash jaacute que o primeiro era
respeitoso com sua esposa e com a ordem natural ou seja com o bem comum enquanto Zeus
pensa exclusivamente em seus desejos individuais Observe-se que essa comparaccedilatildeo eacute feita
com cuidados visto que Heacutelio espera que ningueacutem os ouccedila pois sabe das puniccedilotildees que pode
sofrer
Em oposiccedilatildeo a Zeus Luciano traccedila uma imagem bastante distinta de Cronos Como
podemos observar no texto As Saturnais que versa justamente sobre essa festa as Saturnais293
Nesse diaacutelogo maior travado entre Cronos e um sacerdote haacute dois assuntos que nos interessam
Em primeiro lugar quando Cronos se diferencia de Zeus ao falar de seu reinado ele afirma que
ldquoeu natildeo te aterrorizarei com a minha eacutegide nem com o meu raiordquo (Luciano Sat 4)294
O outro aspecto que queremos ressaltar que se coaduna com a ideia de que Cronos
representa um poder legiacutetimo eacute a explicaccedilatildeo que esse fornece sobre a tradicional narrativa que
afirma que ele foi destronado por Zeus Mesmo chateado com a pergunta ele responde ao
Sacerdote da seguinte maneira
Sacerdote mdash Entatildeo em primeiro lugar o seguinte se eacute verdade o que
ouvimos dizer a teu respeito ou seja que tu devoraste os filhos de Reia e que
esta tendo surripiado Zeus deu-te dissimuladamente uma pedra em vez do
bebeacute e que este chegado agrave idade adulta depois de te vencer numa guerra te
expulsou do teu reino e em seguida te lanccedilou no Taacutertaro agrilhoando-te a ti e
a todos os aliados que tinham sido arregimentados por ti
Crono mdash Meu caro se natildeo estiveacutessemos em tempo de festa e natildeo fosse
permitido agraves pessoas embriagarem-se e ofenderem agrave vontade os seus senhores
ficarias a saber que eu posso muito bem irritar-me com o facto de tu me fazeres
essa pergunta sem respeito pelas minhas catildes e por uma velha divindade
Sacerdote mdash Mas eu oacute Crono natildeo afirmo isso vindo de mim mesmo mas eacute
Hesiacuteodo e Homero e ateacute receio dizer que quase todas as outras pessoas
acreditam nessa coisa a teu respeito
Crono mdash Entatildeo tu achas que esse pastor esse charlatatildeo sabe alguma coisa
de jeito sobre a minha pessoa Repara nisto Haveraacute algum homem (jaacute natildeo
digo algum deus) que tenha a coragem de devorar conscientemente os seus
ΕΡΜΗΣ
Σιώπα ὦ Ἥλιε μή τι κακὸν ἀπολαύσῃς τῶν λόγωνrdquo 293 Festa romana celebrada no solstiacutecio de inverno entre os dias 17 e 23 de dezembro era caracterizada pela alegria
No decorrer da festa fechavam-se as escolas e os tribunais podia-se jogar nas ruas paralisavam as guerras Os
senhores serviam os escravos em suas casas e trocavam presentes Nesta festa invocava-se a eacutepoca de ouro
governada por Saturno o Cronos dos gregos Bakhtin (2010 147) afirma que essa festa apresenta as caracteriacutesticas
de uma festividade carnavalesca principalmente por causa da inversatildeo da ordem o que eacute refutado por Gonccedilalves
(2009 3) pelo menos na apresentaccedilatildeo feita por Luciano desta festa uma vez que ela natildeo observa que existe uma
inversatildeo da ordem mas a criaccedilatildeo de outra ordem por isso as normatizaccedilotildees tratadas pelo texto luciacircnico 294 ldquoὡς ἐμοῦ πρὸς οὐδὲν δεδιξομένου σε τῇ αἰγίδι καὶ τῷ κεραυνῷrdquo
172
filhos a natildeo ser que qual outro Tiestes desse com um irmatildeo iacutempio E se
estivesse assim tatildeo louco como lhe passaria despercebido o facto de estar a
comer uma pedra em vez do menino a natildeo ser que tivesse os dentes
insensiacuteveis agrave dor Tambeacutem natildeo nos guerreaacutemos nem Zeus tomou o poder pela
forccedila mas pelo contraacuterio fui eu que abdiquei e lhe entreguei voluntariamente
E quanto ao facto de eu natildeo ter sido agrilhoado nem estar no Taacutertaro tu mesmo
o constatas creio eu se natildeo eacutes cego como Homero
Sacerdote mdash Mas entatildeo oacute Crono por que motivo abandonaste o poder
Crono mdash Vou explicar-te Em resumo por ser jaacute velho e sofrer de gota devido
agrave minha idade avanccedilada Por isso eacute que a maioria das pessoas imagina que eu
estou agrilhoado Na verdade jaacute natildeo tinha forccedila para afrontar a injusticcedila dos
tempos atuais pois tinha de estar constantemente a acorrer acima e abaixo de
raio em riste a fim de fulminar os perjuros os ladrotildees de templos os
violentos e entatildeo a coisa tornou-se muito trabalhosa e proacutepria de gente nova
Por isso abdiquei a favor de Zeus e fiz eu muito bem Aleacutem disso tive por
bem dividir o poder pelos meus filhos enquanto eu ando a maior parte das
vezes calmamente em festins sem me preocupar com os suplicantes sem ser
incomodado por pessoas que solicitam graccedilas desencontradas sem trovejar
sem relampejar sem ser algumas vezes obrigado a mandar granizo Pelo
contraacuterio levo esta agradabiliacutessima vida de velho bebendo o neacutectar
tagarelando com Jaacutepeto e os outros da minha idade enquanto Zeus eacute que
governa assoberbado de mil preocupaccedilotildees No entanto decidi tirar para mim
estes poucos dias nas condiccedilotildees que referi e retomar o poder a fim de
recordar aos homens como era a vida durante o meu reinado em que todos os
produtos sem serem semeados nem lavrados nasciam espontaneamente natildeo
na forma de espigas mas como patildees jaacute prontos e a carne jaacute vinha cozinhada
e o vinho corria como autecircnticos rios e as fontes eram de mel e de leite Todos
os homens eram bons e feitos de ouro Eis a razatildeo deste meu efeacutemero reinado
e por isso se assiste por todo o lado a algazarra cantos jogos e igualdade para
todos escravos ou homens livres De facto durante o meu reinado ningueacutem
era escravo (Luciano Sat 5-7)295
295 ldquoΙΕΡΕΥΣ
Τὸ μὲν πρῶτον ἐκεῖνο εἰ ἀληθῆ ταῦτά ἐστιν ἃ περὶ σοῦ ἀκούομεν ὡς κατήσθιες τὰ γεννώμενα ὑπὸ τῆς Ῥέας
ἐκείνη δὲ ὑφελομένη τὸν Δία λίθον ὑποβαλλομένη ἀντὶ τοῦ βρέφους ἔδωκέ σοι καταπιεῖν ὁ δὲ εἰς ἡλικίαν
ἀφικόμενος ἐξήλασέ σε τῆς ἀρχῆς πολέμῳ κρατήσας εἶτα ἐς τὸν Τάρταρον φέρων ἐνέβαλε πεδήσας αὐτόν τε καὶ
τὸ συμμαχικὸν ἅπαν ὁπόσον μετὰ σοῦ παρετάττετο
ΚΡΟΝΟΣ
Εἰ μὴ ἑορτήν ὦ οὗτος ἤγομεν καὶ μεθύειν ἐφεῖτο καὶ λοιδορεῖσθαι τοῖς δεσπόταις ἐπ
ἐξουσίας ἔγνως ἂν ὡς ὀργίζεσθαι γοῦν ἐφεῖταί μοι τοιαῦτα ἐρωτήσας οὐκ αἰδεσθεὶς πολιὸν οὕτω καὶ πρεσβύτην
θεόν
ΙΕΡΕΥΣ
Κἀγὼ ταῦτα ὦ Κρόνε οὐ παρ ἐμαυτοῦ φημι ἀλλ Ἡσίοδος καὶ Ὅμηρος ὀκνῶ γὰρ λέγειν ὅτι καὶ οἱ ἄλλοι
ἅπαντες ἄνθρωποι σχεδὸν ταῦτα πεπιστεύκασι περὶ σοῦ
ΚΡΟΝΟΣ
Οἴει γὰρ τὸν ποιμένα ἐκεῖνον τὸν ἀλαζόνα ὑγιές τι περὶ ἐμοῦ εἰδέναι σκόπει δὲ οὕτως ἔσθ ὅστις ἄνθρωπος (οὐ
γὰρ θεὸν ἐρῶ) ὑπομείνειεν ἂν ἑκὼν αὐτὸς καταφαγεῖν τὰ τέκνα εἰ μή τις Θυέστης ὢν ἀσεβεῖ ἀδελφῷ περιπεσὼν
ἤσθιε καὶ εἰ τοῦτο μανείη πῶς ἀγνοήσει λίθον ἀντὶ βρέφους ἐσθίων εἰ μὴ ἀνάλγητος εἴη τοὺς ὀδόντας ἀλλ οὔτε
ἐπολεμήσαμεν οὔτε ὁ Ζεὺς βίᾳ τὴν ἀρχὴν ἑκόντος δέ μου παραδόντος αὐτῷ καὶ ὑπεκστάντος ἄρχει ὅτι μὲν γὰρ
οὔτε πεπέδημαι οὔτε ἐν τῷ Ταρτάρῳ εἰμί καὶ αὐτὸς ὁρᾷς οἶμαι εἰ μὴ τυφλὸς ὥσπερ Ὅμηρος εἶ
ΙΕΡΕΥΣ
Τί παθὼν δέ ὦ Κρόνε ἀφῆκας τὴν ἀρχήν
ΚΡΟΝΟΣ
Ἐγώ σοι φράσω τὸ μὲν ὅλον γέρων ἤδη καὶ ποδαγρὸς ὑπὸ τοῦ χρόνου ὤν διὸ καὶ πεπεδῆσθαί με οἱ πολλοὶ
εἴκασαν οὐ γὰρ ἠδυνάμην διαρκεῖν πρὸς οὕτω πολλὴν τὴν ἀδικίαν τῶν νῦν ἀλλ ἀεὶ ἀναθεῖν ἔδει ἄνω καὶ κάτω
τὸν κεραυνὸν διηρμένον τοὺς ἐπιόρκους ἢ ἱεροσύλους ἢ βιαίους καταφλέγοντα καὶ τὸ πρᾶγμα πάνυ ἐργῶδες ἦν
καὶ νεανικόν ἐξέστην οὖν εὖ ποιῶν τῷ Διί καὶ ἄλλως δὲ καλῶς ἔχειν ἐδόκει μοι διανείμαντα τοῖς παισὶν οὖσι τὴν
173
Essa longa citaccedilatildeo eacute relevante pois confirma o argumento que se consolidou no decorrer
deste capiacutetulo que eacute da oposiccedilatildeo entre Zeus e Cronos Podemos dizer que Luciano recupera a
imagem de Cronos mas resta-nos indagar qual a intencionalidade que estaacute por traacutes disso A
nosso ver reforccedilar a oposiccedilatildeo entre duas formas distintas de governo uma vez que as Saturnais
jaacute representam uma eacutepoca de ouro de alegria e diversatildeo em que ningueacutem era escravo de
ningueacutem
O Cronos luciacircnico desmente a tradiccedilatildeo que dizia que ele comia os proacuteprios filhos
Cronos abandona o poder pela idade fato que natildeo tem correspondecircncia na vida poliacutetica romana
mas que aparece como uma possibilidade de futuro uma forma utoacutepica de sistema de sucessatildeo
No entanto Cronos deixa evidente suas criacuteticas agrave sociedade atual uma vez que natildeo tinha forccedilas
para enfrentar as injusticcedilas atuais
Tendo em vista as diversas imagens de Zeus presentes nos diaacutelogos luciacircnicos
passamos para mais um assunto que eacute fundamental os limites de atuaccedilatildeo das divindades na
vida dos homens No longo diaacutelogo Timon ou o misantropo ndash que tem como tema principal o
papel da riqueza na vida dos homens e de como essa atrairia diversos ldquoamigosrdquo interessados
nas benesses que os tesouros podem trazer-lhes ndash temos que Timon havia sido muito rico e
perdeu todos os seus bens ao ajudar todos que lhe pediam Ele inicia o diaacutelogo com um longo
discurso em que acusa os deuses de negligecircncia uma vez que ele sempre foi um excelente
devoto atento a todos os seus deveres religiosos enquanto muitas pessoas que cometiam atos
de impiedade contra os deuses natildeo eram punidos por seu raio Quando Hermes narra a Zeus a
trajetoacuteria de Timon esse se compadece e lhe envia o mensageiro dos deuses juntamente com
Pluto296 e seu Tesouro para que ele voltasse a ser rico Novamente abastado Timon jaacute natildeo aceita
a bajulaccedilatildeo daqueles que na desgraccedila lhe haviam virado agraves costas Luciano movimenta sua pena
no intuito de colocar mais uma vez a criacutetica aos ricos de seu tempo mesmo que o tempo do
diaacutelogo seja a Atenas democraacutetica
ἀρχὴν αὐτὸν εὐωχεῖσθαι τὰ πολλὰ ἐφ ἡσυχίας οὔτε τοῖς εὐχομένοις χρηματίζοντα οὔτε ὑπὸ τῶν τἀναντία
αἰτούντων ἐνοχλούμενον οὔτε βροντῶντα ἢ ἀστράπτοντα ἢ χάλαζαν ἐνίοτε βάλλειν ἀναγκαζόμενον ἀλλὰ
πρεσβυτικόν τινα τοῦτον ἥδιστον βίον διάγω ζωρότερον πίνων τὸ νέκταρ τῷ Ἰαπετῷ καὶ τοῖς ἄλλοις τοῖς
ἡλικιώταις προσμυθολογῶν ὁ δὲ ἄρχει μυρία ἔχων πράγματα πλὴν ὀλίγας ταύτας ἡμέρας ἐφ οἷς εἶπον
ὑπεξελέσθαι μοι ἔδοξε καὶ ἀναλαμβάνω τὴν ἀρχήν ὡς ὑπομνήσαιμι τοὺς ἀνθρώπους οἷος ἦν ὁ ἐπ ἐμοῦ βίος
ὁπότε ἄσπορα καὶ ἀνήροτα πάντα ἐφύετο αὐτοῖς οὐ στάχυες ἀλλ ἕτοιμος ἄρτος καὶ κρέα ἐσκευασμένα καὶ ὁ
οἶνος ἔρρει ποταμηδὸν καὶ πηγαὶ μέλιτος καὶ γάλακτος ἀγαθοὶ γὰρ ἦσαν καὶ χρυσοῖ ἅπαντες αὕτη μοι ἡ αἰτία τῆς
ὀλιγοχρονίου ταύτης δυναστείας καὶ διὰ τοῦτο ἁπανταχοῦ κρότος καὶ ᾠδὴ καὶ παιδιὰ καὶ ἰσοτιμία πᾶσι καὶ
δούλοις καὶ ἐλευθέροις οὐδεὶς γὰρ ἐπ ἐμοῦ δοῦλος ἦνrdquo 296 Personificaccedilatildeo da riqueza caracterizada como cega
174
Em nossa anaacutelise natildeo interessa o debate acerca da riqueza e da pobreza que poderaacute ser
retomado agrave medida que esse nos forneccedila elementos para a compreensatildeo da imagem que Zeus
o maior dos deuses oliacutempicos apresenta em alguns diaacutelogos luciacircnicos Timon invoca o deus
de maneira bastante irocircnica
Timon ndash Oacute Zeus protetor dos amigos do hospedes e dos companheiros
lanccedilador de raios guardiatildeo dos juramentos ajuntador de nuvens tonante ou
qualquer outro nome que atribuam os poetas que perderam o juiacutezo com teu
reio ndash principalmente quando se veem em dificuldades meacutetricas pois nesse
caso ao tomares muacuteltiplos nomes sustenta o fecho do metro e preenches o
vazio do ritmo - onde estatildeo agora o teu claratildeo estrondoso o teu trovatildeo
reboante e o teu raio ardente brilhante e aterrador Sim tudo isso se revelou
afinal uma balela e fumo puramente poeacutetico para aleacutem do fragor das palavras
Essa tua arma tatildeo celebrada de tatildeo longo alcance e sempre agrave matildeo natildeo sei laacute
como extinguiu-se por completo ficou fria natildeo conservava sequer uma
centelha de coacutelera contra os malfeitores (Luciano Tim 1)297
Timon ao invocar o pai dos deuses comeccedila da maneira usual elogiando a divindade
com os epiacutetetos que a distinguem Entretanto o siacuterio se coloca em um lugar fora da construccedilatildeo
mimeacutetica e procura em seu texto inverter a colocaccedilatildeo Os famosos epiacutetetos presentes na
tradiccedilatildeo desde os poemas homeacutericos e hesioacutedicos natildeo satildeo nada aleacutem de recursos estiliacutesticos
utilizados pelos escritores a fim de compor o verso exato
Ao desvendar os recursos estiliacutesticos dos poetas o samosatense suspende a sacralidade
desses cujo poder invocatoacuterio passa a ser o instrumento vazio da construccedilatildeo verbal do poeta
Assim os poderes do grande deus satildeo questionados uma vez que a simples observaccedilatildeo
cotidiana tem revelado que os homens piedosos natildeo satildeo olhados pelos deuses e que aqueles que
cometem perjuacuterios natildeo satildeo punidos pela deidade Assim tanto poder natildeo passa de construccedilatildeo
poeacutetica
O raio de Zeus seu principal atributo e arma eacute indagado jaacute que ldquouma pessoa que
preparasse para cometer perjuacuterio mais facilmente temeria um pavio de veacutespera do que a chama
do raio omnipotenterdquo (Luciano Tim 2)298 O ataque do maior dos deuses apenas sujaria de
fuligem aqueles que ele atacasse Nesse tom Timon continua seu discurso
297 ldquoΤΙΜΩΝ
Ὦ Ζεῦ φίλιε καὶ ξένιε καὶ ἑταιρεῖε καὶ ἐφέστιε καὶ ἀστεροπητὰ καὶ ὅρκιε καὶ νεφεληγερέτα καὶ ἐρίγδουπε καὶ εἴ
τί σε ἄλλο οἱ ἐμβρόντητοι ποιηταὶ καλοῦσι ndash καὶ μάλιστα ὅταν ἀπορῶσι πρὸς τὰ μέτρα τότε γὰρ αὐτοῖς
πολυώνυμος γενόμενος ὑπερείδεις τὸ πῖπτον τοῦ μέτρου καὶ ἀναπληροῖς τὸ κεχηνὸς τοῦ ῥυθμοῦ ndash ποῦ σοι νῦν ἡ
ἐρισμάραγος ἀστραπὴ καὶ ἡ βαρύβρομος βροντὴ καὶ ὁ αἰθαλόεις καὶ ἀργήεις καὶ σμερδαλέος κεραυνός ἅπαντα
γὰρ ταῦτα λῆρος ἤδη ἀναπέφηνε καὶ καπνὸς ἀτεχνῶς ποιητικὸς ἔξω τοῦ πατάγου τῶν ὀνομάτων τὸ δὲ ἀοίδιμόν
σοι καὶ ἑκηβόλον ὅπλον καὶ πρόχειρον οὐκ οἶδ ὅπως τελέως ἀπέσβη καὶ ψυχρόν ἐστι μηδὲ ὀλίγον σπινθῆρα
ὀργῆς κατὰ τῶν ἀδικούντων διαφυλάττονrdquo 298 ldquoθᾶττον γοῦν τῶν ἐπιορκεῖν τις ἐπιχειρούντων ἕωλον θρυαλλίδα φοβηθείη ἂν ἢ τὴν τοῦ πανδαμάτορος
κεραυνοῦ φλόγαrdquo
175
Em seguida a personagem se lembra de Salmoneu que tentou imitar o trovatildeo de Zeus
Timon apenas faz alusatildeo agravequele que havia construiacutedo uma estrada pavimentada de bronze ou
de ferro e arrastado correntes atraacutes dele Pretendia se assemelhar a Zeus mimetizando o raio e
o trovatildeo Zeus puniu esse ato de impiedade fulminando-o (GRIMAL 2005 412) Como o mito
eacute de conhecimento da maioria dos possiacuteveis ouvintes eou leitores do diaacutelogo o escritor natildeo
apresenta mais que uma raacutepida alusatildeo agrave ambiccedilatildeo presente no mito No caso o mais importante
para a continuaccedilatildeo desse diaacutelogo eacute que ele foi punido com o raio de Zeus
Timon argumenta que em sua atualidade o deus natildeo punia as pessoas com essa
severidade por isso profanar os templos natildeo era um problema Timon dirige-se a Zeus dizendo
ldquoestaacutes adormecido como sob o efeito da mandraacutegora299rdquo (Luciano Tim 2) 300 O deus jaacute natildeo
ouve nem vecirc bem Estaacute remeloso tem a vista curta e os ouvidos moucos ou seja tem os sentidos
de um velho (Luciano Tim 2)
Suas atitudes se diferenciam daquelas tomadas em sua juventude na qual os crimes de
perjuacuterio eram punidos com severidade uma vez que ldquoquando eras ainda jovem irasciacutevel e no
maacuteximo de tua coacutelera aplicavas grandes castigos agraves pessoas injustas e violentas e nunca lhes
davas treacuteguasrdquo (Luciano Tim 3)301 Timon ainda evoca outra narrativa miacutetica disponiacutevel os
infortuacutenios vividos por Decaliatildeo302 fazendo referecircncia ao diluacutevio que quase destruiu a raccedila
humana
Timon enfatiza a negligecircncia natildeo somente de Zeus mas de todos os deuses em relaccedilatildeo
aos assuntos humanos Timon afirma o seguinte ldquoPortanto estaacutes a colher da parte dos homens
o fruto proveniente de tua negligecircncia pois jaacute ningueacutem te oferece sacrifiacutecios nem te coroardquo
(Luciano Tim 4)303 Segundo Timon seguindo esse caminho Zeus se tornaraacute outro Crono
esquecido e ldquoexcluiacutedo de honrariasrdquo (ldquoπαρωσάμενοι τῆς τιμῆςrdquo) (Luciano Tim 4)
Esses atos colocariam Zeus em uma situaccedilatildeo complicada uma vez que seus templos satildeo
assaltados e ele natildeo faz nada Ele cita o caso do templo de Oliacutempia cuja estaacutetua de Zeus eacute
299 Planta da famiacutelia das solanaceae tem efeitos alucinoacutegenos e analgeacutesica muito utilizada na magia de origem
greco-romana 300 ldquoπῶς γὰρ ltοὐgt ὅπου γε καθάπερ ὑπὸ μανδραγόρᾳ καθεύδεις []rdquo 301 ldquoἐπεὶ νέος γε ἔτι καὶ ὀξύθυμος ὢν καὶ ἀκμαῖος τὴν ὀργὴν πολλὰ κατὰ τῶν ἀδίκων καὶ βιαίων ἐποίεις καὶ
οὐδέποτε ἦγες τότε πρὸς αὐτοὺς ἐκεχειρίαν []rdquo 302 Filho de Prometeu escolhido por Zeus para consevar a raccedila humana quando no periacuteodo do Bronze ele resolve
enviar um grande diluacutevio e matar quase todos os homens e mulheres Aconselhado pelo Titatilde ele teria construiacutedo
uma arca que vagou por nove dias No opuacutesculo Sobre a deusa siacuteria Luciano eacute o uacutenico autor antigo grego que
afirma que Deucaliatildeo levou consigo um casal de cada animal existente (Luciano Syr Dea 12) o que
provavelmente eacute uma reminicecircncia de uma memoacuteria mesopotacircmia muito antiga uma vez que essa ideia tambeacutem
se encontra na narrativa judaica do Gecircnese 303 ldquo Τοιγάρτοι ἀκόλουθα τῆς ῥᾳθυμίας τἀπίχειρα κομίζῃ παρ αὐτῶν οὔτε θύοντος ἔτι σοί τινος οὔτε
στεφανοῦντος []rdquo
176
considerada uma das sete maravilhas do mundo antigo ldquoE jaacute nem falo das muitas vezes em
que saquearam o teu templo alguns puseram mesmo as matildeos sobre ti em Oliacutempia e tu o
lsquoaltitonantersquo nem sequer te dignaste despertar os catildees ou chamar os vizinhosrdquo (Luciano Tim
4)304 Luciano ressalta a imobilidade da divindade que mesmo diante de uma ofensa a ela
mesma natildeo age
Ele continua utilizando-se ironicamente de mais alguns epiacutetetos para falar do roubo
das cabeleiras de ouro de sua estaacutetua em Oliacutempia ldquoTu o valentatildeo o lsquoExterminador de
Gigantesrsquo o lsquoVencedor dos Titatildesrsquo ficaste ali plantado e deixando que te raspassem os cabelos
mesmo segurando tu na matildeo direita um raio de dez cocircvadosrdquo (Luciano Tim 4)305
Essa imagem natildeo representa a estaacutetua de Zeus que estava no templo de Oliacutempia uma
vez que essa trazia na matildeo esquerda a deusa Nike (Vitoacuteria) e na direita uma aacuteguia Logo trata-
se de um recurso retoacuterico que fala mais da representaccedilatildeo luciacircnica de Zeus no que tange ao
seu poder enquanto pai dos deuses Provavelmente Luciano natildeo conhecia o Templo de Zeus
em Oliacutempia
Outro ponto interessante eacute a retomada de epiacutetetos que remetem a vitoacuterias passadas o
que era algo comum entre os governantes de seu tempo Para ilustrar esse aspecto podemos
recorrer a Dion Caacutessio que nos conta que o Imperador Cocircmodo mandava suas mensagens ao
Senado Romano assim
O Imperador Ceacutesar Luacutecio Eacutelio Aureacutelio Cocircmodo Augusto Pio Feliz
Sarmaacutetico Germacircnico Maacuteximo Britacircnico Pacificador de toda a terra
Invenciacutevel o Heacutercules Romano Pontiacutefice Maacuteximo Tribuno por 18 vezes
Imperador por 8 vezes Cocircnsul por 7 vezes Pai da Paacutetria para os cocircnsules
pretores tribunos e para o afortunado Senado de Cocircmodo Saudaccedilotildees (Dion
Caacutessio Histoacuteria romana LXXII 15)306
Essa citaccedilatildeo serve para explanar o uso no periacuteodo de Luciano desses epiacutetetos como siacutembolo de
poder Cocircmodo era o conquistador dos Saacutermatas dos Germacircnicos e da Britacircnia Como Zeus ele era
invenciacutevel Dessa forma a maneira irocircnica com a qual Luciano utiliza os tiacutetulos do pai dos deuses
reinventa a imagem presente na tradiccedilatildeo helecircnica
304 ldquoἐῶ λέγειν ποσάκις ἤδη σου τὸν νεὼν σεσυλήκασιν οἱ δὲ καὶ αὐτῷ σοὶ τὰς χεῖρας Ὀλυμπίασιν ἐπιβεβλήκασι
καὶ σὺ ὁ ὑψιβρεμέτης ὤκνησας ἢ ἀναστῆσαι τοὺς κύνας ἢ τοὺς γείτονας ἐπικαλέσασθαι []rdquo 305 ldquoἀλλ ὁ γενναῖος καὶ Γιγαντολέτωρ καὶ Τιτανοκράτωρ ἐκάθησο τοὺς πλοκάμους περικειρόμενος ὑπ αὐτῶν
δεκάπηχυν κεραυνὸν ἔχων ἐν τῇ δεξιᾷrdquo 306 laquo αὐτοκράτωρ Καῖσαρ Λούκιος Αἴλιος Αὐρήλιος Κόμμοδος Αὔγουστος εὐσεβὴς εὐτυχής Σαρματικὸς
Γερμανικὸς μέγιστος Βρεττανικός εἰρηνοποιὸς τῆς οἰκουμένης εὐτυχὴς ἀνίκητος Ῥωμαῖος Ἡρακλῆς
ἀρχιερεύς δημαρχικῆς ἐξουσίας τὸ ὀκτωκαιδέκατον αὐτοκράτωρ τὸ ὄγδοον ὕπατος τὸ ἕβδομον πατὴρ πατρίδος
ὑπάτοις στρατηγοῖς δημάρχοις γερουσίᾳ Κομμοδιανῇ εὐτυχεῖ χαίρειν raquo
177
Nesse caso Zeus vecirc que Timon sempre justo e generoso estaacute pobre e sozinho reclamando dos
deuses que o esqueceram Envia-lhe Hermes com Pluto e o Tesouro a fim de fazer-lhe um homem rico
No final do diaacutelogo novamente rico Timon natildeo aceita mais os bajuladores e os falsos amigos Nesse
diaacutelogo a criacutetica social se sobressai agrave imagem do deus tiracircnico pois a intenccedilatildeo eacute mostrar as reviravoltas
da vida e o aprendizado que a pobreza fornece daiacute esse Zeus natildeo se contradizer agrave imagem traccedilada por
Luciano mas reafirmar jaacute que se distanciou do mundo dos homens por conta dos infindaacuteveis debates
filosoacuteficos e das muitas accedilotildees de perjuacuterio Como ele mesmo diz ldquoTodavia por falta de vagar e pelo
tumulto que provocam os perjuros os violentos e os ladrotildees e ainda por cima com receio dos
saqueadores de templos () haacute muito tempo que nem sequer olho para a Aacutetica sobretudo desde que a
filosofia e as disputas verbais imperaram entre os ateniensesrdquo (Luciano Tim 9)307
Para concluir essa anaacutelise sobre Zeus gostariacuteamos de retomar o diaacutelogo maior Zeus Refutado
cujo tema eacute a presenccedila do destino na vida humana Zeus eacute questionado pelo filoacutesofo ciacutenico Ciniacutesco sobre
as Parcas que tecem o destino de todos os homens e forjam os oraacuteculos Zeus eacute obrigado a afirmar que
ldquoNatildeo haacute nada que as Parcas natildeo tenham determinado mas pelo contraacuterio tudo quanto acontece eacute
enrolado pela sua roca e cada acontecimento tem o desfecho que lhe foi ficado logo desde o princiacutepio
e natildeo eacute possiacutevel acontecer de outra maneirardquo (Luciano I Conf 1)308
O ardiloso filoacutesofo questiona se os deuses tambeacutem estatildeo sob domiacutenio das Parcas o que eacute
respondido com uma afirmativa (Luciano I Conf 3) Tal argumento chega agrave conclusatildeo que fazer
sacrifiacutecios e cultuar os deuses eacute desnecessaacuterio e natildeo influi na vida das pessoas
A nosso entender o Zeus luciacircnico representa duas criacuteticas importantes agrave realidade que o
escritor vive De um lado ele representa o tirano tal como mostram os manuais poliacuteticos e muito
provavelmente sob a orientaccedilatildeo aristoteacutelica e em segundo lugar os limites de accedilatildeo dessa divindade que
natildeo controla tudo
Haacute uma anaacutelise das instituiccedilotildees poliacuteticas de seu tempo Os homens do seacuteculo II natildeo tinham outro
horizonte poliacutetico natildeo havia qualquer expectativa de mudanccedila Assim era fundamental refletir sobre
como natildeo se tornar um mau governante ndash que relembrasse os tiranos de outrora ndash uma vez que natildeo era
possiacutevel evitar o Imperador
307 ldquoπλὴν ὑπ ἀσχολίας τε καὶ θορύβου πολλοῦ τῶν ἐπιορκούντων καὶ βιαζομένων καὶ ἁρπαζόντων ἔτι δὲ καὶ
φόβου τοῦ παρὰ τῶν ἱεροσυλούντων [] πολὺν ἤδη χρόνον οὐδὲ ἀπέβλεψα ἐς τὴν Ἀττικήν καὶ μάλιστα ἐξ οὗ
φιλοσοφία καὶ λόγων ἔριδες ἐπεπόλασαν αὐτοῖςrdquo 308 ldquo[] οὐδὲν γάρ ἐστιν ὅ τι μὴ αἱ Μοῖραι διατάττουσιν ἀλλὰ πάντα ὁπόσα γίνεται ὑπὸ τῷ τούτων ἀτράκτῳ
στρεφόμενα εὐθὺς ἐξ ἀρχῆς ἕκαστον ἐπικεκλωσμένην ἔχει τὴν ἀπόβασιν καὶ οὐ θέμις ἄλλως γενέσθαιrdquo
178
Consideraccedilotildees finais
Luciano de Samoacutesata foi um dos inteacuterpretes do Impeacuterio Greco-Romano Sua prosa
documenta a postura de um intelectual desde que esse conceito se restrinja agravequele indiviacuteduo
que conhece e se relaciona com a tradiccedilatildeo literaacuteria profundamente ligado agraves atividades
culturais de seu tempo Nossa leitura do texto luciacircnico visou mostrar como esse escritor
expressa a difiacutecil relaccedilatildeo dos povos submetidos com o Impeacuterio Deliberadamente fugimos das
dicotomias empobrecedoras que fixavam uma postura ou contra ou a favor O siacuterio eacute um criacutetico
do Impeacuterio um produtor de sentido que tenta interpretar a realidade em que vive Seus textos
expressam essa realidade na contradiccedilatildeo em que ela se insere Como vimos Luciano natildeo estava
preso agrave sua biblioteca mas foi nessa que ele encontrou o material para pesar sua eacutepoca Da
mesma forma que Luciano natildeo foi um intelectual engajado contra o Impeacuterio romano haacute uma
seacuterie de criacuteticas e alertas agraves relaccedilotildees e aos costumes estabelecidos Entretanto natildeo havia um
projeto para substituir a realidade existente
Contudo ainda existia o problema da dificuldade em entender como se dava esse
uso poliacutetico Nesse sentido foi fundamental retornar aos mecanismos metanarrativos que
ordenavam o uso das narrativas sobre o passado ou seja em qual regime de memoacuteria se
inscrevem esses escritos Tal indagaccedilatildeo foi respondida tendo em vista a formaccedilatildeo retoacuterica sob
os auspiacutecios da Paideia helecircnica O uso da linguagem eacute orientado pelo escritor Os professores
de retoacuterica e seus manuais fornecem exemplos que devem ser utilizados nos diferentes
momentos O proacuteprio discurso obedece a uma organizaccedilatildeo interna e externa sendo que o orador
eacute um personagem poliacutetico importante na relaccedilatildeo das cidades com o poder imperial A Paideia
coloca os indiviacuteduos em contato com textos canocircnicos que fornecem os exemplos necessaacuterios
para a construccedilatildeo retoacuterica
Nesse sentido o gecircnero literaacuterio natildeo eacute escolhido aleatoriamente constituindo-se
um importante indiacutecio para a compreensatildeo do cenaacuterio cultural em que o escritor se insere
Luciano tem a intenccedilatildeo de produzir o riso um riso que mobiliza o pensamento e eacute construiacutedo
por meio da saacutetira Nesse caso a saacutetira menipeia de elementos conhecidos e que em seu arranjo
literaacuterio ganha formas inusitadas Haacute em seus escritos um processo de recriaccedilatildeo que visa
interpretar sua realidade fornecendo niacuteveis distintos de interpretaccedilatildeo Nesta Tese buscamos
entender os usos poliacuteticos que o texto luciacircnico poderia ter tendo em vista a relaccedilatildeo entre as
divindades a representaccedilatildeo de assembleias semelhantes agraves helecircnicas a imagem de Zeus os
espaccedilos miacuteticos (Hades e Olimpo) e o comportamento dos tiranos nesses diaacutelogos Nosso
179
objetivo foi se restringindo no decorrer da Tese ao poder poliacutetico e agrave maneira como esse poder
serviu de suporte para a utilizaccedilatildeo das narrativas miacuteticas nesses textos
Nenhum poder se fundamenta exclusivamente sobre a forccedila bruta Haacute o cimento
constituiacutedo da legitimidade simboacutelica como nos ensinou Balandier (1982) Sua manutenccedilatildeo e
sustentaccedilatildeo necessitam de um grupo de apoio com ideias e crenccedilas sonhos e aspiraccedilotildees
horizontes de expectativa e laccedilos de pertencimento Satildeo necessaacuterios consensos que orientem as
escolhas e estrateacutegias de posicionamento Os mitos satildeo narrativas conhecidas amplamente que
remetem a um passado do grupo uma espeacutecie de memoacuteria fundante Os homens antigos
colocavam em segundo plano o questionamento da realidade empiacuterica da memoacuteria miacutetica mas
natildeo a desconheciam como podemos ver nos escritos de Luciano Independentemente do uso
que se faz da narrativa miacutetica ela eacute continuamente dita e repetida em um intenso processo de
emulaccedilatildeo Esse uso contiacutenuo acontece pela capacidade de significaccedilatildeo que o mito oferece ao
seu ouvinte Nesta Tese natildeo nos preocupamos com a utilizaccedilatildeo religiosoa que o uso desse mito
podia ter para o siacuterio Ao ler os textos luciacircnicos nos deparamos com um uso muito mais
matizado e questionador das narrativas miacuteticas O siacuterio viveu em um periacuteodo de efervescecircncia
religiosa com a ascensatildeo de cultos orientais principalmente do cristianismo Assim seus
textos mostram um inteacuterprete que via as contradiccedilotildees presentes nos mitos entretanto em
nenhum lugar de seus escritos ele os descarta Muito pelo contraacuterio Luciano usa os mitos como
veiacuteculo para suas ideias poliacuteticas
A anaacutelise dos textos luciacircnicos corroborou a assertiva de que os mitos apresentam
usos distintos principalmente usos voltados ao questionamento do poder Dizer que haacute usos
poliacuteticos nos escritos luciacircnicos subentende aceitar um questionamento sobre os poderes Nesse
sentido coube interrogar as narrativas alicerccediladas em inuacutemeros conjuntos de sentido fornecidos
pela tradiccedilatildeo homeacuterica e hesioacutedica principalmente uma vez que no regime de memoacuteria greco-
romano tais textos satildeo tomados como cacircnones
Luciano eacute um leitor dessas narrativas Como a escrita permite a glosa interminaacutevel
a interpretaccedilatildeo dar-se-aacute sob o crivo do riso Rir permite questionar e possibilita fugir dos
mecanismos de censura presentes no Impeacuterio romano Natildeo havia oacutergatildeos institucionalizados que
se voltavam agrave censura dos escritores ficando tal controle do que pode ou natildeo ser dito a cargo
do Imperador ou dos homens mais proacuteximos a ele Os homens fieacuteis ao Princeps estavam
dispersos nos mais distantes lugares do Impeacuterio Romano Uma vez detectada a construccedilatildeo de
discursos que se opunham ao governo imperial esses eram destruiacutedos e seu escritor
assassinado
180
Em um processo dialoacutegico de interaccedilotildees socioculturais que superam as meras
dicotomias que opotildeem dominantes e dominados estrutura e evento engajamento e alienaccedilatildeo
os homens constroem suas relaccedilotildees com o poder Os laccedilos que ligam o poder com os elementos
miacuteticos da sociedade ficam evidentes em um trabalho como o nosso que buscou observar o
poder em sua capilaridade para aleacutem do Estado eou Imperador Nesse acircmbito a noccedilatildeo
foucaltiana de micropoderes dispersos deu um norte para avanccedilar na leitura dos diaacutelogos
luciacircnicos O longo conviacutevio com esses textos remete a um mosaico de possibilidades de
leituras sobre o poder Ressaltamos a pluralidade e a plasticidade das informaccedilotildees pois natildeo se
trata de um tratado contra certas praacuteticas ou favor delas mas da representaccedilatildeo de praacuteticas
cotidianas em outro niacutevel no caso a mitologia Cuida-se aqui de compreender um dos
muacuteltiplos usos que esse texto teve
A narrativa luciacircnica prende o agente que escreve e os ouvintes em uma exegese do
real e da poliacutetica da sociedade e dos grupos que a compotildeem Seus diaacutelogos interagem com a
teologia poliacutetica do Impeacuterio Greco-Romano e evidenciam suas contradiccedilotildees Por meio das
releituras de personagens consagrados na tradiccedilatildeo ou de situaccedilotildees referentes a espaccedilos miacuteticos
aleacutem da nossa existecircncia o samosatense se posiciona diante do poder imperial em toda a sua
capilaridade seja na presenccedila cocircmica dos deuses em sua assembleia no riso de Menipo agrave
cegueira humana diante da morte no sofrimento de Prometeu diante das injusticcedilas do poder de
um tirano no desespero dos tiranos que perderam suas riquezas na representaccedilatildeo luciacircnica de
Zeus visto como o deus dos tiranos ou na sua impossibilidade de agir contraacuterio ao que se
estabelece pelo destino A exegese luciacircnica acontece nesse acircmbito que se sustenta em uma
memoacuteria cultural helecircnica que eacute apreendida por meio da Paideia grega A novidade luciacircnica
expressa essa formaccedilatildeo mas na difiacutecil dimensatildeo daquele que aprendeu a cultura do outro
Os textos luciacircnicos satildeo uma expressatildeo complexa e em muitos momentos
contraditoacuterio da Segunda Sofiacutestica desde o momento que entendemos que essa eacute um fenocircmeno
cultural caracterizado pela utilizaccedilatildeo de uma liacutengua especiacutefica que eacute pensada e repensada por
esse escritor O domiacutenio do grego aacutetico eacute expresso em seus textos mas eacute o proacuteprio Luciano que
critica o exagero de alguns sofistas em seu uso Ou seja o siacuterio compreende a tecircnue fronteira
entre a apropriaccedilatildeo criativa da liacutengua falada pelos atenienses do periacuteodo claacutessico e o exagero
pedante de alguns sofistas
O samosatense em sua formaccedilatildeo apropriou-se dos mecanismos mentais que lhe
permitiram dialogar e enfrentar a realidade em que vivia de maneira criativa mordaz e sagaz
Ele brincou com os gecircneros em um sentido muito proacuteprio Podemos questionar se a poliacutetica ou
o poder eacute uma brincadeira e nossa resposta eacute afirmativa e veemente pois trata-se de uma
181
modalidade especiacutefica do riso o riso que mobiliza o pensamento Rir para pensar Mutatis
mutandis podemos recordar a maacutexima comum no Brasil que toda brincadeira tem um fundo
de verdade Outro aspecto importante do riso eacute que ele se coloca na tecircnue linha que separa a
fuacuteria do escarnecido e seu desarmamento simboacutelico Nesse sentido a formaccedilatildeo retoacuterica devia
munir os homens a situaccedilotildees em que a parreacutesia significasse a morte ou a escravidatildeo
O siacuterio construiu seus discursos sob essa historicidade da verdade que confere um
sentido bem restrito e limites claros agrave praacutetica da parreacutesia Esta Tese retoma Luciano e pensa
seus escritos na loacutegica da identidadealteridade ao falar do lugar do outro do lugar de fronteira
que adveacutem de seu nascimento na siacuteria e do aprendizado fundamentado na Paideia helecircnica O
diaacutelogo luciacircnico eacute construiacutedo na confluecircncia de dois outros gecircneros claacutessicos o diaacutelogo
filosoacutefico e a comeacutedia numa estrateacutegia literaacuteria que lhe permitia fazer com que o puacuteblico ndash seja
ele de leitores ou de ouvintes ndash risse e por meio do riso refletisse sobre as coisas Riso se
mobiliza junto ao pensamento Nesse sentido os textos luciacircnicos satildeo extremamente seacuterios e
seus assuntos satildeo atinentes ao mundo que o cerca O domiacutenio do grego aacutetico e dos saberes
produzidos na tradiccedilatildeo cultural helecircnica permite-lhe o ingresso nessa identidade o que eacute um
fenocircmeno bastante especiacutefico jaacute que a identidade eacute construiacuteda por meio da adesatildeo e da
aglutinaccedilatildeo Mesmo dominando esse intricado manancial fornecido pela Paideia Luciano natildeo
deixou de se chamar de siacuterio muito menos se furtou a utilizar o ldquonoacutesrdquo para se referir ao Impeacuterio
(BRANDAtildeO 2014)
Estamos convencidos de que o siacuterio dominou as teacutecnicas da retoacuterica presentes nos
manuais de seu tempo Nesse sentido a citaccedilatildeo de Demeacutetrio eacute importante para mostrar que
havia uma preocupaccedilatildeo sobre como falar aos tiranos ou agraves pessoas violentas por meio de
subterfuacutegios simboacutelicos Ao aprender a lsquofalar ao tiranordquo Luciano se municia de um leque de
possibilidade de exposiccedilatildeo daquilo que ele desejava
Trata-se de uma ingenuidade pensar que o texto luciacircnico voltar-se-ia ao Imperador
Romano diretamente Como homem de letras pertencente a importantes ciacuterculos sociais ele
tinha acesso a grupos vinculados diretamente ao poder imperial em qualquer lugar que
estivesse Assim sua anaacutelise poliacutetica eacute elaborada com a utilizaccedilatildeo da mitologia e de outros
recursos retoacutericos e estiliacutesticos O deslocamento que propomos nesta pesquisa mostrou-se
deveras salutar respondendo as hipoacuteteses que haviacuteamos colocado
O siacuterio natildeo eacute nem proacute nem contra o Impeacuterio Romano sua escrita o coloca em uma
ambiguidade que eacute muito mais complexa Mesmo dominando os fundamentos da cultura
helecircnica ele natildeo era totalmente um grego mesmo servindo ao Imperador no Egito ele natildeo eacute
um defensor inconteste de sua poliacutetica mesmo se autodenominando siacuterio em diversos
182
momentos natildeo haacute um processo de reivindicaccedilatildeo identitaacuteria excludente Veyne mostrou-se
correto ao afirmar que os intelectuais vinculados agrave Segunda Sofiacutestica orgulham-se de serem
gregos desprezam Roma e colaboram com a ordem estabelecida (VEYNE 2009 80)
Analisamos Luciano como um exegeta de seu mundo inteacuterprete privilegiado e
sagaz que natildeo atacava o Imperador mas enfatizava o que seria um bom governante tendo em
vista os tiranos de outrora A memoacuteria histoacuterica e miacutetica coaduna em sua digressatildeo Nos
Diaacutelogos dos mortos podemos ver Heacuteracles Dioacutegenes Alexandre Minos Caronte e ateacute
mesmo Ceacuterbero em diaacutelogos sobre a vida e os vivos
Os poderosos satildeo expressos a todo momento principalmente os tiranos Se naquele
momento a tirania era apenas um adjetivo que qualificava o mau Imperador o samosatense
podia falar de personagens histoacutericos que ocupavam o cargo de tirano e assim prevenir os
contemporacircneos dos possiacuteveis desvios do poder As interpretaccedilotildees luciacircnicas de seu mundo
usam como pano de fundo a representaccedilatildeo de tempos anteriores ou mesmo de personagens
preteacuteritos mas evidenciam as accedilotildees e as praacuteticas que lhe eram contemporacircneos ao ato da escrita
Nesse sentido a narrativa miacutetica com sua diversidade de personagens e situaccedilotildees
possibilitou a construccedilatildeo desse debate referente agraves relaccedilotildees de poder nos diaacutelogos luciacircnicos
Por definiccedilatildeo o relato miacutetico eacute partilhado culturalmente experimentado como um passado da
comunidade eou do grupo por isso entendido aqui como uma memoacuteria cultural cujos
mecanismos de transmissatildeo satildeo compostos por praacuteticas comuns de ensino coacutepia e declamaccedilatildeo
dos textos canocircnicos A narrativa miacutetica permite em sua plasticidade agregar diversos sentidos
que comuniquem as ideias do escritos Luciano natildeo eacute um mitoacutegrafo natildeo queria reunir as lendas
dos deuses fazer cataacutelogos ou organizar informaccedilotildees como outros eruditos sua intenccedilatildeo era
utilizar os personagens miacuteticos seus ambientes suas confluecircncias com a histoacuteria e com sua
contemporaneidade para inventar uma nova forma de discurso Dessa forma seu uso da tradiccedilatildeo
helecircnica eacute bastante seletivo e sugestivo Trata-se em uma das camadas possiacuteveis de
investigaccedilatildeo de encontrar uma reflexatildeo sobre os usos do poder inclusive quando esse se dava
de maneira abusiva
A complexidade da vida poliacutetica entrelaccedilada agrave construccedilatildeo do texto cujos fins
devem ser respeitados pelo inteacuterprete moderno nos evidenciou um Luciano distinto daquele
construiacutedo e reiterado tradicionalmente Ele natildeo era alheio a seu mundo mas tambeacutem natildeo era
um ativista poliacutetico comportou-se em seus textos como um questionador de sua realidade
Para isso mobilizou os recursos que havia aprendido Sob essa premissa margeamos nossa
leitura dos diaacutelogos luciacircnicos partindo do pressuposto de que havia um grande potencial de
leitura das muacuteltiplas relaccedilotildees de poder Nas nervuras de seu texto vemos uma mitologia que
183
dialoga com sua realidade poliacutetica Assim nossa investigaccedilatildeo se interessou pelas relaccedilotildees entre
escrita e poder tendo em vista os sentidos diversos que os escritos antigos nos possibilitam Em
um mundo cada vez mais marcado por conflitos poliacuteticos os escritos luciacircnicos explificam
como podemos viver em uma sociedade muacuteltipla plaacutestica e nunca nos esquecermos de que haacute
uma tradiccedilatildeo discursiva que deve ser lida relida e recriada a fim de encontrar outras estrateacutegias
de sentido que visem agrave construccedilatildeo de um mundo melhor
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Mapa III A Camogema do periodo romano (BRU 2011 373)
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Mapa IV A dispersatildeo das legiotildees romanas no periacuteodo imperial (GRANT
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Tese defendida pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria niacutevel de Doutorado da
Faculdade de Histoacuteria da Universidade Federal de Goiaacutes aprovada em 9 de outubro de
2014 pela Banca examinadora constituiacuteda pelos seguintes professores
Professora Doutora Ana Teresa Marques Gonccedilalves (UFG)
(Presidente)
Professor Doutor Jacyntho Joseacute Lins Brandatildeo (UFMG)
(Membro externo)
Professora Doutora Andrea Luacutecia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi (UNESP)
(Membro externo)
Professor Doutor Noeacute Freire Sandes (UFG)
(Membro interno)
Professora Doutora Adriana Vidotte (UFG)
(Membro interno)
Professor Doutor Haroldo Reimer (UEG)
(Suplente externo)
Professora Doutora Luciane Munhoz de Omena (UFG)
(Suplente interno)
5
Agrave Vivaldina Arantes (in memoriam) e Geralda Rita da
Silva (in memoriam) que sempre seratildeo meus exemplos
de perseveranccedila e sabedoria
6
Agradecimentos
Ao concluir o percurso tenho muito que agradecer Em primeiro lugar agrave minha
eterna orientadora Professora Doutora Ana Teresa Marques Gonccedilalves que esteve ao meu lado
em todos os momentos difiacuteceis com sua orientaccedilatildeo firme e generosa Devo agradecer sempre
por acreditar no meu projeto de pesquisa e investir para que eu pudesse estudar e me tornar um
especialista que atuasse em Histoacuteria Antiga Seus ensinamentos satildeo um patrimocircnio que levarei
por toda a minha vida
Quero agradecer agrave Universidade Federal de Goiaacutes que por meio de seu programa
proacuteprio concedeu-me uma bolsa que foi fundamental para custear a tecitura desta Tese
principalmente a importaccedilatildeo de importantes textos bibliograacuteficos
Aos professores da UFG que sempre somaram nesse percurso Drordf Luciane Munhoz
de Omena Drordf Dulce Oliveira Amarante dos Santos Drordf Armecircnia Maria de Sousa Dr Joatildeo
Alberto da Costa Pinto e Dr Luiz Seacutergio Duarte da Silva
A banca de qualificaccedilatildeo composta pelos professores doutores Jacyntho Lins
Brandatildeo e Noeacute Freire Sandes que me ajudaram a recriar meu objeto de pesquisa e instigaram
minhas construccedilotildees bem como por aceitarem ler esse trabalho
As professoras Drordf Andreia Dorini e Drordf Adriana Vidotte por aceitarem compor a
banca de avaliaccedilatildeo deste trabalho
Aos amigos historiadores e historiadoras cujas conversas muito somaram a esta
tese Marcelo Ana Paula Thiago Maria Daiacutelza Quero agradecer de forma muito especial agrave
Cleusa por ser uma amiga presente mesmo na distacircncia Ao Manoel pelas eacutebrias discussotildees
benjaminianas Ao amigo e historiador Fernando Teodoro Divino pela constante ajuda para
conseguir textos que se mostravam impossiacuteveis nas bibliotecas brasileiras
Agrave professora Joscelina Borges de Oliveira Santana que foi uma companheira
importante ao me substituir na direccedilatildeo do cacircmpus Ao professor Gilson coordenador do curso
de Histoacuteria que ajudou em tantas ausecircncias Aos amigos Moises Neilson Genilder Claudia
Cleonice Marlene e Joatildeo Erastoacutetenes que me ampararam cada um a seu modo e a seu tempo
Agrave bibliotecaacuteria do cacircmpus professora Sandra cuja eficiecircncia muito contribuiu para o
alinhavado desta Tese Quero expressar meus agradecimentos ao Masinho (vulgo Edemar) que
eacute um amigo verdadeiro nessas estradas Agrave Terla e agrave Valquiacuteria que estiveram comigo todos os
7
dias me dando forccedila e aliviando o peso da gestatildeo e em nome delas agradeccedilo a todos os
funcionaacuterios da UEG-Uruaccedilu
A Universidade Estadual de Goiaacutes na pessoa do professor Doutor Haroldo Reimer
reitor desta universidade que me acolheu e forneceu o apoio institucional necessaacuterio para a
conclusatildeo desta e agraves professoras Meire e Carla por me apoiarem nesse momento
A minha famiacutelia que entendeu minhas ausecircncias Minha matildee Eva que sempre me
apoiou e acreditou em mim Meu avocirc Joaquim tatildeo amado e presente Meu padrinho Marcio
Joseacute que eacute um exemplo de conduta Meu pai tios (Valto Seacutergio Geraldo Branco Aguimar) e
tias (Mariza Nilda Ailza Maria Anizia Osvaldina Vilma Aleida) Voacute Nilza primos (Marco
Aureacutelio Rodrigo Andrei Gabriel e Renato) e primas (Mariele Andreia Leiner Taina e
Luana) agrave Vitoacuteria minha linda ao meu irmatildeo Eduardo Siacutelvia e Luiz Henrique sem a o apoio
deles tudo seria mais difiacutecil
Aos amigos que me acolheram em Uruaccedilu Dona Nair Rozilda Ana Paula e Maria
Luiz Cristiano Claudinei Maria Ceacutelia satildeo tantos que sei que vou esquecer quem natildeo devia
mesmo assim muito obrigado
No percurso final desta tese encontrei dois profissionais que muito me auxiliaram
para diminuir as imperfeiccedilotildees desta tese Devo os mais sinceros agradecimentos ao professor
Douglas e agrave professora Valeacuteria As deficiecircncias que este trabalho contiver satildeo de
responsabilidade do autor
Por estar ao meu lado por me entender por me amar por deixar que eu a ame por
cuidar tatildeo bem de mim muito obrigado Kacya
8
A tecnologia mudou mas a produccedilatildeo de mitos
estaacute mais do que nunca na ordem do dia
(GINZBURG 2001 83)
9
Resumo
Luciano de Samoacutesata foi um importante inteacuterprete do Impeacuterio Romano sua prosa versou sobre
uma infinidade de temas Os estudiosos desse escritor se concentraram em duas possibilidades
de compreensatildeo para sua postura poliacutetica de um lado haacute os autores que consideram o
siacuterio desvinculado de seu tempo e de seu contexto sociopoliacutetico do outro existem os que o
veem como um militante poliacutetico contraacuterio a Roma Nesta Tese consideramos que Luciano
apresenta um posicionamento ambiacuteguo uma vez que ele se identifica como siacuterio ressalta toda
a sua formaccedilatildeo helecircnica e critica aspectos da cultura poliacutetica romana Entretanto acreditamos
que ele estava consciente dos benefiacutecios que o Impeacuterio trazia a todos os povos dominados
Dessa forma podemos dizer que ele era um escritor que colaborava com a manutenccedilatildeo do
sistema imperial Para comprovar essa hipoacutetese deslocamos a indagaccedilatildeo para os famosos
diaacutelogos satiacutericos que costumam ser desconsiderados pelos inteacuterpretes de Luciano Conhecido
por unir o sisudo diaacutelogo filosoacutefico agrave sarcaacutestica comeacutedia entendemos que o escritor tinha a
intenccedilatildeo de produzir o riso que se voltaria para a mobilizaccedilatildeo do pensamento Restringimos
nossa investigaccedilatildeo aos diaacutelogos que utilizam a mitologia como eixo temaacutetico Os mitos foram
pensados como elementos que compotildeem uma memoacuteria cultural e dessa forma satildeo
apresentados nos limites do regime de memoacuteria romano Essa seleccedilatildeo formal foi organizada em
toacutepicos referentes ao poder poliacutetico e a suas manifestaccedilotildees cotidianas Assim preocupamo-nos
com a representaccedilatildeo luciacircnica das assembleias dos tiranos e das relaccedilotildees das divindades entre
si e principalmente com Zeus Entendemos que Luciano fez uma profunda exegese de sua
realidade evidenciando e criticando posturas abusivas Em seus diaacutelogos podemos ver outras
dimensotildees possiacuteveis da interpretaccedilatildeo do poder poliacutetico no impeacuterio romano
Palavras-chave Luciano de Samoacutesata ndash Segunda Sofiacutestica ndash Mitologia ndash Poder Imperial
10
Abstract
Lucian of Samosat was an important interpreter of the Roman Empire his writings were about
a varied of topics People who study about this writer focused on two possibilities for
understanding his political stance on one hand there are authors who consider he is
disconnected from his time and sociopolitical context on the other hand there are those who
see him as a political activist opposed to Rome In this Thesis we consider that Lucian has an
ambiguous position since he identifies himself as Syrian underscores his entire Hellenic
education and criticizes aspects of Roman political culture However we believe that he was
aware of the benefits that the empire brought all dominated peoples Thus we can say that he
was a writer who collaborated with the maintenance of the imperial system To prove this
hypothesis we analyze his famous satirical dialogues which were often disregarded by his
interpreters Known for combining the dour philosophical dialogue with sarcastic comedy we
understand that the writer intended to produce laughter which would turn to the mobilization
of thought We restrict our investigation to the dialogues that use mythology as subject The
myths were thought as components of a cultural memory and thus are presented within the
limits of the Roman memory system This selection was formally organized on topics related
to political power and its everyday manifestations Thus we are concerned with the Lucianic
representation of assemblies tyrants and the relations of the deities among them and especially
with Zeus We understand that Lucian did a thorough exegesis of his reality highlighting and
criticizing abusive postures In his dialogues we can see other possible dimensions of
interpretation of political power in the Roman Empire
Keywords Lucian of Samosat - Second Sophistic - Mythology - Imperial Power
11
Reacutesumeacute
Lucien de Samosate fut un interpregravete important de lrsquoEmpire Romain sa prose a exploreacute une
infiniteacute de theacutemes La compreacutehension de la posture politique de Lucien est envisageacutee quasi
exclusivement par les speacutecialistes de cet auteur de deux maniegraveres drsquoun cocircteacute certains auteurs
consideacuterent le syrien deacutetacheacute de son temps et de son contexte socio-politique de lrsquoautre il est
vu comme un militant politique opposeacute agrave Rome Dans cette thegravese nous consideacuterons que Lucien
se positionne de faccedilon ambigueuml En effet il srsquoaffirme syrien met en avant toute sa formation
heacutelleacutenique et critique des aspects de la culture politique romaine tout en eacutetant nous le croyons
conscient des beacuteneacutefices apporteacutes par lrsquoEmpire agrave tous les peuples domineacutes Ainsi nous pouvons
dire qursquoil eacutetait un eacutecrivain qui collaborait au maintien du systeacuteme impeacuterial Afin de prouver
notre hypotheacutese nous deacuteplaccedilons la question sur les ceacuteleacutebres dialogues qui obtiennent
communeacutement peu de consideacuteration des interpreacutetes de Lucien Connu pour unir lrsquoaride dialogue
philosophique agrave la comeacutedie sarcastique lrsquoeacutecrivain avait selon notre compreacutehension lrsquointention
de provoquer le rire afin de mobiliser la reacuteflexion Nous limitons notre recherche aux dialogues
utilisant la mythologie comme axe de theacutematique Les mythes furent ici penseacutes comme
eacuteleacutements qui composent une meacutemoire culturelle et sont donc preacutesenteacutes dans les limites du
reacutegime de meacutemoire romain Cette seacutelection formelle fut organiseacutee en topiques concernant le
pouvoir politique et ses manifestations quotidiennes Nous nous inteacuteressons ainsi agrave la
repreacutesentation lucienniste des assembleacutees des tyrans et des relations des diviniteacutes entre elles et
principalement avec Zeus Selon notre compreacutehension Lucien a fait une exeacutegegravese profonde de
sa reacutealiteacute mettant en eacutevidence et critiquant les attitudes abusives Nous pouvons voir dans ses
dialogues drsquoautres dimensions possibles de lrsquointerpreacutetation du pouvoir politique dans lrsquoempire
romain
Mots-cleacutes Lucien de Samosate ndash Seconde Sophistiquendash Mythologie ndash Pouvoir Impeacuterial
12
Lista de abreviaturas das obras antigas
Nome do escrito em portuguecircs Nome em latim Abreviatura
Anocircnimo
Retoacuterica agrave Herecircnio Rhetorica ad Herennium Rhet Ad Her
Suda Suda Suda
Aristoacuteteles
Metafiacutesica Metaphysica Metaph
Poeacutetica Poetica Po
Poliacutetica Politica Pol
Augusto
Feitos do divino Augusto Res Gestae Diui Augusti RGDA
Aulo Geacutelio
Noites Aacuteticas Noctes Atticae NA
Dioacutegenes Laeacutercio
Vida e obra dos filoacutesofos ilustres
De vitis et dogmatibus clarorum
philosophorum De vitis
Eacutelio Aristides
Oraccedilatildeo 26 Orationes XXVI Orat 26
Eunaacutepio
Vidas dos sofistas Vitae Sophistarum Vi So
Filostrato
Vidas dos sofistas Vitae Sophistarum VS
Foacutecio
Biblioteca Bibliotheca Biblio
Homero
Iliacuteada Ilias Il
Odisseia Odyssea Odys
Hesiacuteodo
Teogonia Theogonia Theog
Lactacircncio
Instituiccedilotildees Divinas Divinis Institutionibus Inst Div
Luciano
Phalaris I Phalaris prior Phal A
Phalaris II Phalaris alter Phal B
Hiacutepias ou o banho Hippias seu balneum Hipp
Dioniso Bacchus Bacch
Heacuteracles Hercules Herc
Sobre o acircmbar ou sobre os cisnes De electro s cycnis Electr
Nigrino ou a Filosoacutefia de Nigrino Nigrinus Nigr
Elogio da mosca Muscae Encomium Musc Enc
Demonax - A vida de Demonax Demonactis vita Demon
A sala De domo Dom
13
Elogio da paacutetria Patriae Encomium Patr Enc
Macroacutebios Macrobii (longaevi) Macr
Histoacuteria Verdadeira I Verae Historiae I V H I
Histoacuteria Verdadeira II Verae Historiae II V H II
De como natildeo acreditar
facilmente em caluacutenias
Calumniae non
temere credendum Cal
O processo das vogais Judicium vocalium Jud Voc
O banquete ou os lapitas Symposium (convivium) s Lapithae Symp
Pseudosofista ou O solecista Solecista s pseudo-sophista Sol
A decida (ao Hades) ou O Tirano Cataplus s tyrannus Cat
Zeus Refutado Iuppiter confutatus J conf
Zeus Traacutegico Iuppiter Tragoedus J trag
O sonho ou O Galo Gallus s somnium Gall
Prometeu Prometheus Prom
Icaromenipo ou
O sobre as nuvens
Icaromenippus s
Hypernephelus Icar
Tiacutemon ou O Misantropo Timon s misanthropos Tim
Caronte ou Os contempladores Charon s contemplantes Char
Comeacutercio de vidas ou
O leilatildeo dos filoacutesofos
Vitarum
Auctio Vit auct
O pescador ou os Ressuscitados Piscator s Reviviscentes Pisc
Acusado duas vezes ou
sobre os tribunais
Bis Acusatus s
Tribunalia Bis acc
Sobre os sacrifiacutecios De sacrificiis Sacr
Contra um ignorante bibliomaniacuteaco
Adversus Indoctum et
libros multos ementem Adv Ind
O sonho ou a vida de Luciano Somnium s Vita Luciani Somn
O parasita o parasitismo
eacute uma arte
De parasito s artem
esse parasiticam Par
O amigo da mentira ou o increacutedulo Philopseudeis s incredulis Philops
O julgamento da deusas Dearum Iudicium Dear Jud
Sobre os que recebem
salaacuterios dos poderosos De mercede conductis Merc Cond
Arnarcaacutesis ou sobre a ginaacutestica Anarcharsis s de exercitationibus Anarch
Menipo ou a Nequiomancia Necyomantia s Menippus Nec
Luacutecio ou o asno Asinus s Lucius Asin
Sobre o luto De luctu Luct
Mestre da retoacuterica Rhetorum praeceptor Rh Pr
Alexandre ou o falso profeta Alexander s pseudomantis Alex
Imagens Imagines In
Sobre a deusa Siacuteria De Syria Dea Syr Dea
Sobre a danccedila De saltatione Salt
Lexifanes Lexiphanes Lex
O eunuco Eunuchus Eun
14
Sobre a astrologia De astrologia Astr
Os amores Amores Amor
Defesa dos retratos Pro imaginibus Pro In
O pseudologista ou sobre
a palavra apophraacutes Pseudologista s de die nefasto Pseudol
Assembleacuteia dos deuses Deorum Concilium Deor Conc
O tiranicida Tyrannicida Tyr
O filho desesdado Abdicatus Abd
Sobre a morte de Peregrino De mort Peregrini Peregr
Os fugitivos Fugitivi Fug
Toxaacuteris ou sobre a amizade Toxaris s amicitia Tox
Elogio de Demoacutestenes Demosthenis Encomium Dem Enc
Como se deve escrever a Histoacuteria Quomodo historia conscribenda sit Hist Co
As dispisades De Dispsadibus Dips
As festas de Cronos Saturnalias Sat
Heroacutedoto ou Aeacutecio Herodutos s Aetion Herod
Zecircuxis ou Antiacuteocos Zeuxis s Antiochus Zeux
Em defesa de uma gafe na saudaccedilatildeo Pro lapsu inter salutandum Laps
Apologia Apologia Apol
Harmocircnides Harmonides Harm
Diaacutelogo com Hesiacuteodo Disputatio cum Hesiodo Hes
O cita ou o proxena Scytha s Hospes Scyth
Podraga Podraga Podag
Hermoacutetimos ou sobre as seitas Hermotimus s de sectis Hermot
Para aquele que diz
eacutes um Prometeus em suas palavras Prometheus es in verbis Prom Verb
Alcion ou sobre a metamorfose Alcyon s de transformatione Alc
O navio ou os desejos Navigium s vota Nav
Oquipus ou o homem de peacutes ligeiros Ocypus Ocyp
O ciacutenico Cynicus Cyn
Diaacutelogo dos mortos Dialogi mortuorum D Mort
Diaacutelogos dos Marinhos Dialogi marini D Mar
Diaacutelogo dos deuses Dialogi Deorum D Deor
Diaacutelogo das Cortesatildes Dialogi Meretricii D Meretr
Pseudo-Luciano
Sobre os danccedilarinos
(Libaacutenio agrave Aristides)
De saltatoribus
(Libanii ad Aristidem) Liban Salt
Cartas Epistulae Epist
Filoacutepatris ou que se instrui sozinho Philopatris s qui docetur Philopatr
Kharidemos ou sobre o belo Charidemos s de pulchritudine Charid
Nero ou a escavaccedilatildeo do istmo Nero s de fossione Isthmi Ner
Epigramas Epigrammata Epigr
Timaacuterion ou sobre os
sofrimentos por si mesmo Timarion s quae passus sit Timar
15
Platatildeo
Repuacuteblica Res Publica Rep
Suetocircnio
Nero Nero Nero
16
SUacuteMARIO
Introduccedilatildeo 18
Capiacutetulo I 33
Luciano de Samoacutesata a Segunda Sofiacutestica e o Impeacuterio Romano relaccedilotildees ambiacuteguas entre
literatura e poder 33
11 A trajetoacuteria e os escritos de Luciano de Samoacutesata como ser siacuterio escrever em grego e
estar no Impeacuterio Romano 34
12 Algumas consideraccedilotildees sobre as primeiras referecircncias a Luciano na tradiccedilatildeo ocidental
41
13 Histoacuteria e imaginaacuterio de uma eacutepoca de ouro o contexto dos Antoninos 45
14 A construccedilatildeo de uma identidade helecircnica no Impeacuterio Romano 49
16 Narrativas miacuteticas e memoacuteria cultural em um Impeacuterio Greco-romano 64
17 A coragem da verdade em Luciano entre a poliacutetica imperial e a fala franca 69
Capiacutetulo II 82
Mito a narrativa que todos conhecem 82
21 Mitologia e Retoacuterica saberes sobre a Memoacuteria 83
22 O mito a modernidade e o historiador 87
23 Mito e formaccedilatildeo outras pedagogias 91
24 Os mitos entre as memoacuterias naturais e as artificiais 95
25 Luciano e os mitos 98
Capiacutetulo III 104
Apropriaccedilatildeo luciacircnica das narrativas miacuteticas repensando o poder 104
31 As assembleias luciacircnicas poder e riso 106
32 Diaacutelogo dos mortos quando o mito se encontra com a Histoacuteria 116
33 Narrativas miacuteticas e os dilemas do poder o caso do Prometeu luciacircnico 138
34 Espaccedilo e Narrativa miacutetica a representaccedilatildeo dos Tiranos entre gregos e romanos 147
35 O Zeus luciacircnico tirania e a impossibilidade de intervenccedilatildeo na vida humana 161
Consideraccedilotildees finais 178
Bibliografia 184
a) Documentaccedilatildeo Textual 184
b) Obras de referecircncia 188
c) Obras gerais 189
Mapas 216
Mapa I Oriente proacuteximo no periacuteodo romano 216
17
Mapa II As principais rotas de circulaccedilatildeo na Siacuteria do Norte no Impeacuterio Romano 217
Mapa III A Camogema do periodo romano 218
Mapa IV A dispersatildeo das legiotildees romanas no periacuteodo imperial 219
18
Introduccedilatildeo
A investigaccedilatildeo que ora apresentamos dos usos poliacuteticos das narrativas miacuteticas nos
diaacutelogos de Luciano de Samoacutesata representa a culminacircncia de dez anos de leitura desses
escritos O primeiro produto desse trabalho foi uma monografia de conclusatildeo de curso intitulada
Lugares imaginaacuterios na obra de Luciano de Samoacutesata memoacuteria e identidade no contexto
imperial produzida em 2005 Nossa preocupaccedilatildeo era entender o espaccedilo dos vivos (cidade) e
dos mortos (Hades) nos escritos luciacircnicos indagando o significado dos mesmos para a cultura
imperial
Esse trabalho deu origem ao projeto de Mestrado que resultou em uma anaacutelise do
mito de Heacuteracles nos escritos de Luciano Nossa Dissertaccedilatildeo intitulada Regime de memoacuteria
romano as imagens do heroacutei Heacuteracles nos escritos de Luciano de Samoacutesata defendida em
2008 tinha a preocupaccedilatildeo central de analisar um mito especiacutefico nos escritos do samosatense
o que nos permitiu alocar este escritor no seio de uma cultura muito mais complexa e de uma
forma proacutepria de reconstruccedilatildeo do passado Nesse sentido foi fundamental forjar um conceito
adequado ao tema qual seja o de regime de memoacuteria Trata-se dos aspectos metanarrativos
que orientam a construccedilatildeo de relatos memorialiacutesticos
Ao refletir sobre os viacutenculos entre a imagem do heroacutei Heacuteracles construiacuteda nos
escritos luciacircnicos e o poder imperial surgiu paulatinamente a questatildeo que orienta toda a
construccedilatildeo desta Tese de Doutoramento a saber as relaccedilotildees entre Luciano de Samoacutesata e a
cultura poliacutetica1 imperial Para desenvolver esse tema buscamos um caminho que natildeo foi
tentado pelos lucianistas isto eacute questionar a apropriaccedilatildeo que esse autor faz das narrativas
miacuteticas e os laccedilos dessas com as praacuteticas e representaccedilotildees referentes aos poderes constituiacutedos
1 Entendemos por cultura poliacutetica o conjunto de siacutembolos praacuteticas e ideias que exprimem a maneira como uma
comunidade lida com o poder
19
Os relatos miacuteticos satildeo pensados no interior do regime de memoacuteria romano2 tendo
em vista a teologia poliacutetica3 que orientava as relaccedilotildees de poder na Roma dos Antoninos Essas
duas noccedilotildees satildeo fundamentais em nossa empreitada A ideia de regime orienta nossa
perspectiva para as forccedilas metanarrativas que por sua vez orientam a produccedilatildeo dos discursos
memorialiacutesticos Nesta Tese os elementos metanarrativos fundamentais satildeo pensados a partir
da formaccedilatildeo especiacutefica do orador o que coloca seus discursos em uma ordem de criaccedilatildeo Neste
ponto os gecircneros escolhidos a forma de apresentaccedilatildeo e a linguagem satildeo oriundos de um
trabalho consciente Mesmo quando o escritor inventa ele parte de algo que se solidificou na
cultura Assim os recursos fornecidos pela retoacuterica4 satildeo fundamentais para o estabelecimento
na vida puacuteblica Outro elemento especiacutefico eacute a linguagem com a qual os textos satildeo escritos a
partir de um trabalho intenso de construccedilatildeo verbal
2 O termo regime vem do latim regimen e geralmente vincula-se agrave orientaccedilatildeo ou direccedilatildeo de algo (ABBAGNAMO
2003 840) O conceito de regime de memoacuteria aparece em um artigo de Franccedilois Hartog intitulado Tempo e
patrimocircnio especificamente ao analisar a obra de Pierre Nora e observar a mudanccedila de um regime de memoacuteria
(HARTOG 2006 266) Entretanto essa noccedilatildeo se insere ao debate sobre o conceito de regime de historicidade
que se distingue do conceito de eacutepoca por ser muito mais dinacircmico que aquele o qual se caracteriza por ser um
corte temporal na cronologia Ao pensar em regime de historicidade Hartog coaduna em uma mesma reflexatildeo a
maneira com a qual Michel Foucault entende a apropriaccedilatildeo dos discursos em seu livro a Ordem do Discurso
(FOUCAULT 2002 8-9) e as reflexotildees sobre a relaccedilatildeo entre evento mudanccedila e estrutura permanecircncia proposta
por Marshal Shalins no livro Ilhas de Histoacuteria afirma que a ldquorelaccedilatildeo entre estrutura e evento que se inicia com a
proposiccedilatildeo de que a transformaccedilatildeo de uma cultura tambeacutem eacute um modo de sua reproduccedilatildeordquo (SHALINS 1990
174) bem como a proposta de uma semacircntica do tempo presente nas teses de Reinhart Koselleck em que ele
observa que os homens que do passado viviam em um espaccedilo de experiecircncia fruto do passado do indiviacuteduo e da
sociedade e um horizonte de expectativas que observa os sonhos e projetos para o futuro dos homens que viveram
no preteacuterito ou seja abre a possibilidade de pensar a existecircncia de um futuro almejado no passado (KOSELLECK
2006 307) A proposta de Hartog (2003a 26-30) articula essas reflexotildees Nesse sentido nossa proposta do
conceito de regime de memoacuteria restringe a reflexatildeo aos usos que os homens fazem do passado construiacutedo por
meio de narrativas Eacute a narrativa acerca do passado que fornece aos homens subsiacutedios para a construccedilatildeo de sua
identidade e de planejarem sua existecircncia 3 A noccedilatildeo de teologia poliacutetica adveacutem da obra de Ernst H Kantorowicz (1998) em seu livro Os dois corpos do rei
um estudo sobre teologia poliacutetica medieval em que o autor enfatiza as ficccedilotildees elaboradas no plano da miacutestica que
sustentam o poder estabelecido dando-lhe legitimidade o que possibilita a manutenccedilatildeo no poder Em nossa tese
essa noccedilatildeo tem significacircncia restrita aos usos dos elementos miacuteticos e religiosos para a legitimaccedilatildeo do poder no
caso romano a noccedilatildeo de pax deorum os usos poliacuteticos dos mitos e a construccedilatildeo de argumentos que justificam
determinadas praacuteticas a partir dos mitos por exemplo a consecratio cerimocircnia que eleva o Divus do Imperador
morto ao plano das deidades constituiacutedas estabelecendo culto e clero especiacutefico para o mesmo 4 A retoacuterica aristoteacutelica apresenta trecircs gecircneros baacutesicos deliberativo judiciaacuterio e epidiacutetico O primeiro busca
persuadir ou dissuadir o segundo defender ou acusar e o terceiro elogiar ou censurar
20
No seacuteculo II da era cristatilde5 o Impeacuterio Romano6 controlava uma gigantesca aacuterea no
Mediterracircneo Trata-se do Impeacuterio7 estrutura de governo em que um povo governa outro mais
longevo da histoacuteria humana Sua organizaccedilatildeo poliacutetica foi extremamente inteligente uma vez
que o mesmo conviveu de maneira sagaz e seletiva com a heterogeneidade dessa imensa
entidade poliacutetica Como afirma Maurice Duverger ldquopor natureza os impeacuterios satildeo
plurinacionaisrdquo (DUVERGER 2008 25)
Maurice Sartre (1994 7-8) salienta que o domiacutenio romano pode ser pensado a partir
da unicidade de praacuteticas tais como o culto ao Imperador a presenccedila das legiotildees e de um corpo
de funcionaacuterios ligados a Roma e algumas normatizaccedilotildees juriacutedicas e legislativas O poder
simboacutelico do Imperador8 como agente vinculado agrave ordem sobrenatural faz-se presente em
todos os rincotildees do Impeacuterio seja por meio do culto das festividades das moedas dos
monumentos dentre outras possibilidades de presentificaccedilatildeo pois ldquoo poder poliacutetico e a
legitimidade natildeo se apoiam somente em impostos e nos exeacutercitos mas tambeacutem nas concepccedilotildees
e nas crenccedilas dos homensrdquo (HOPKINS 1987 232) O poder imperial eacute um importante fator de
unicidade sentida na vida provincial por uma complexa rede capilar ou como diria Michel
Foucault (2012) por micropoderes9
5 As datas indicadas nesta Tese satildeo predominantemente da era cristatilde salvo aquelas indicadas como anteriores a
Cristo 6 Compreender a complexa Histoacuteria do Impeacuterio Romano a partir da anaacutelise de sua produccedilatildeo cultural eacute um
empreendimento bastante relevante no novo mundo por se tratar de investigar a experiecircncia humana assim como
a maneira com a qual os homens lidaram com seus sentimentos de pertencimento A distacircncia temporal e espacial
permite o afastamento das querelas identitaacuterias que povoam o imaginaacuterio europeu Um exemplo de como as
querelas atuais podem interferir na construccedilatildeo do passado pode ser visto nas anaacutelises que Pedro Paulo Abreu
Funari e Marina Cavichioli fazem no capiacutetulo intitulado ldquoOs usos do passado consideraccedilotildees sobre o papel da
arqueologia na construccedilatildeo da identidade italianardquo (2011 111-122) 7 A unidade do termo Impeacuterio camufla uma grande diversidade de organizaccedilotildees poliacuteticas administrativas e
culturais Neste sentido concordamos com Maurice Duverger quando ele afirma que eacute fundamental analisar o
processo de estabelecimento do Impeacuterio muito mais que o discurso que o mesmo produz sobre si mesmo
(DUVERGER 2008 21) Outro ponto significativo neste debate foi assentado por Renata Senna Garraffoni (2008
138-140) ao enfatizar as contribuiccedilotildees poacutes-coloniais nessa discussatildeo seguindo teoacutericos como Edward W Said
em seu livro Cultura e Imperialismo (1995) pois a partir das premissas teoacutericas desses intelectuais haacute um processo
de valorizaccedilatildeo maior das culturas locais 8 Hadrien Bru em sua Tese de Doutoramento intitulada Le pouvoir imperial dans les provinces syriennes traccedila
um importante panorama do culto imperial na regiatildeo natal de Luciano Bru mostra como os Imperadores satildeo
representados como os mestres do universo os senhores do destino terrestre (BRU 201119) ou ainda as muitas
marcas de seu domiacutenio sobrenatural presentes na paisagem (BRU 2011 30) os viacutenculos dos Imperadores com a
construccedilatildeo de aquedutos obras tipicamente romanas (BRU 2011 41-46) os monumentos e santuaacuterios (BRU
2011 63 83) e ainda a organizaccedilatildeo e promoccedilatildeo do culto imperial por meio de concursos hiacutepicos jogos de
gladiadores entre outros (BRU 2011225-264) 9 Foucault mudou o eixo dos estudos sobre o poder deslocando o olhar do Estado para as praacuteticas evidenciando
que o poder pode se manifestar em uma multiplicidade de relaccedilotildees sociais por isso micropoderes assim devemos
refletir as relaccedilotildees de clientelismo e patronagem do pater famiacutelias o professor ou tutor A coletacircnea intitulada
Microfisica do poder (2012) organizada no Brasil por Roberto Machado apresenta textos fundamentais de
Foucault sobre as relaccedilotildees de poder e sua capilaridade social aleacutem de sua relaccedilatildeo com os saberes
21
O Impeacuterio Romano pode ser contemplado em sua duplicidade jaacute que dois idiomas
se apresentavam como ordenadores poliacuteticos da vida social no Ocidente predominou o latim
e no Oriente o grego O domiacutenio da cidade de Roma natildeo impocircs em nenhum momento o ensino
dessas liacutenguas10 O latim foi utilizado no Ocidente onde natildeo havia uma liacutengua homogenizante
e o grego no Oriente onde nos reinos heleniacutesticos herdeiros das conquistas de Alexandre o
Grande (356 aC ndash 323 aC) jaacute era utilizado haacute muito tempo No governo do Imperador Claacuteudio
(41-54) foi criada uma chancelaria dupla que usava latim e grego em seus documentos fato
que tem o caraacuteter de oficializar o que jaacute ocorria no cotidiano do Impeacuterio no Oriente heleniacutestico11
O romano conviveu muito bem com a heterogeneidade do Impeacuterio permitindo o
uso de idiomas diversos o culto a divindades locais festas tradiccedilotildees e atividades econocircmicas
muacuteltiplas Jean Bayet ressalta a importacircncia para os dirigentes do Impeacuterio os senadores nos
tempos republicanos e os Imperadores durante o Principado de manter a pax deorum12
(BAYET 1984 66-69) Keith Hopkins mostra como o Imperador eacute o responsaacutevel pela ordem
material seguranccedila e condiccedilotildees de existecircncia assim como pelo ordenamento simboacutelico da vida
Evitar os conflitos que alterem a pax deorum eacute uma das suas prerrogativas fundamentais do
governante (HOPKINS 1987 249-255) A loacutegica da cultura imperial coloca o Imperador como
catalizador da unidade do Estado no plano material como condutor em uacuteltima instacircncia das
instituiccedilotildees poliacuteticas e militares Ele tambeacutem eacute o responsaacutevel pela harmonia simboacutelica entre o
mundo divino e o humano O estudo das narrativas miacuteticas na obra de Luciano nos permite
desdobrar as questotildees colocadas inicialmente em trecircs possibilidades de compreensatildeo do
Impeacuterio Romano uno duplo e muacuteltiplo13
Cabe ao historiador questionar cada elemento presente em sua investigaccedilatildeo para
compor uma imagem mais aproximada do que poderia ter sido o Impeacuterio Romano ou como
10 As elites locais que observavam a importacircncia de se comunicar com os dominadores e que aprenderam o latim 11 Erich Stephen Gruen em seu livro Culture and national identity in Republican Rome mostra que desde a eacutepoca
republicana havia um duplo processo de busca por elementos da cultura romana pela elite da cidade de Roma mas
que esse processo era acompanhado por intenso trabalho de diferenciaccedilatildeo dos gregos de seus valores Segundo
Gruen a ambiguidade e a ambivalecircncia formam as principais formas de agir romanas em relaccedilatildeo aos gregos Outro
ponto enfatizado pelo autor eacute que os romanos natildeo se sentiam inferiores aos gregos ficando claro o desejo de
participar de uma cultura admirada e ao mesmo tempo dominada (GRUEN 1994 223-271) 12 Os romanos tinham taacuteticas de controle dos territoacuterios conquistados bastante tolerantes agraves divindades como o
politeiacutesmo natildeo pressupotildee uma unidade dada por nenhum livro Desde as primeiras conquistas havia a praacutetica de
construir na cidade de Roma um altar para os deuses dos povos conquistados a guerra era entre os homens nunca
entre os deuses (GRANT 1987 26-27) 13 Natildeo podemos idealizar e pensar que os romanos eram tolerantes e gentis com os outros por exemplo quando
os hebreus negaram fazer culto ao Imperador eles foram punidos e suas atitudes condenadas O mesmo pode ser
dito dos Cristatildeos entretanto temos que ressaltar o caraacuteter poliacutetico da religiatildeo romana os hebreus e os cristatildeos
Por exemplo ao negar prestar culto ao Imperador Romano cometia crime de lesa-majestade o problema natildeo era
a crenccedila desses grupos mas as consequecircncias poliacuteticas desses atos que atentavam contra a ordem espiritual
estabelecida pela teologia poliacutetica romana
22
diria Paul Veyne (2009) o Impeacuterio Greco-Romano14 Natildeo podemos nos iludir com o
preconceito positivista de uma verdade concreta entretanto como afirma Luis Costa Lima
(2006 147) a verdade continua como aporia para o trabalho do historiador Noacutes sabemos da
impossibilidade de alcanccedilar a verdade histoacuterica entretanto esta continua sendo a meta dos
historiadores
Luciano escreveu no seacuteculo II durante o periacuteodo em que os Antoninos governaram
Roma Seus textos eram escritos predominantemente em grego aacutetico15 como era do gosto da
elite helenoacutefila Como enfatizou Jacyntho Lins Brandatildeo Luciano eacute um poliacutegrafo Natildeo pelo
imenso nuacutemero de textos literaacuterios que produziu16 mas pela diversidade temaacutetica e de gecircnero
que esse autor aborda (BRANDAtildeO 1990 138) A partir dessa premissa calcada na diversidade
do interesse luciacircnico Brandatildeo ressalta que o samosatense eacute um criacutetico da cultura vista como
Paideia17
Nosso objeto visa entender a apropriaccedilatildeo18 luciacircnica de elementos pertencentes agraves
narrativas mitoloacutegicas greco-romanas os quais satildeo utilizados nos escritos de maneira bastante
fragmentaacuteria Luciano natildeo sistematiza a apresentaccedilatildeo ou interpretaccedilatildeo desses elementos jaacute que
ele natildeo eacute um mitoacutegrafo Desse modo os mitos que ele utilizou em seus escritos natildeo satildeo
escolhidos aleatoriamente mas compotildeem uma estrateacutegia de comunicaccedilatildeo e satildeo apresentados a
partir do regime de memoacuteria romano Para que seu uso atinja os efeitos esperados na plateia
audiecircncia um nuacutecleo de sentido deve permanecer visto que eacute esse significado partilhado que
14 Paul Veyne defende que o Impeacuterio Romano deve ser tratado por Impeacuterio Greco-Romano (1) pelo uso do grego
como liacutengua oficial no Oriente (2) pela presenccedila da cultura helecircnica em todo o Impeacuterio por meio da Paideia (3)
pela afirmaccedilatildeo de Veyne de que ldquoa cultura era helecircnica e o poder era romanordquo (VEYNE 2009 VII) O historiador
francecircs ainda destaca que identificaccedilatildeo natildeo pode ser confundida com aculturaccedilatildeo logo os romanos helenizados
natildeo desprezavam a romanidade 15 Os escritores gregos que compuseram suas obras durante o domiacutenio romano utilizavam em sua maioria uma
variante do grego usado na regiatildeo da Aacutetica durante o periacuteodo claacutessico Trata-se de uma tentativa deliberada de
afastamento do grego comum ou melhor o koineacute falado pela maioria da populaccedilatildeo Seria como se um escritor
atual tentasse escrever seguindo os princiacutepios da liacutengua de Luis de Camotildees 16 Satildeo atribuiacutedas oitenta e seis obras a Luciano de Samoacutesata 17 A traduccedilatildeo desse conceito natildeo eacute simples uma vez que em grego antigo esta palavra abrangia um campo
semacircntico bastante extenso se por um lado ela pode ser traduzida por educaccedilatildeo a palavra educaccedilatildeo deve ser
vista no sentido da formaccedilatildeo integral dos indiviacuteduos tanto por meio da formaccedilatildeo intelectual quanto da praacutetica de
exerciacutecios fiacutesicos Em um niacutevel mais avanccedilado esta palavra significa tambeacutem todo o patrimocircnio cultural existente
motivo de orgulho dos homens que falavam grego Para uma Histoacuteria da Paideia grega o livro Paideia a formaccedilatildeo
do homem grego de Werner Jaeger ainda continua sendo um excelente ponto de partida (JAEGER 2010) Esse
texto apresenta uma conotaccedilatildeo bastante idealista da Histoacuteria Grega Para uma visatildeo mais histoacuterica sugerimos o
livro de Henri Marrou Histoacuteria da Educaccedilatildeo na Antiguidade (1975) Haacute uma coletacircnea de artigos importantes
sobre o tema organizada por Barbara E Borg (2004) Esses textos satildeo interessantes por relacionar a formaccedilatildeo do
homem culto com a identidade grega principalmente no artigo de Christopher Jones (2004) que debate como a
Paideia grega convive com diversas identidades 18 O conceito de apropriaccedilatildeo elaborado por esse autor parte do princiacutepio do diaacutelogo cultural Ao usar qualquer
elemento disponiacutevel na cultura os agentes culturais valoram os signos utilizados de acordo com os saberes que
estes possuem Um exemplo claacutessico de apropriaccedilatildeo neste sentido eacute a do leitor que insere a obra literaacuteria em todo
o seu quadro de significaccedilatildeo (CHATIER 1990)
23
permite a intervenccedilatildeo na ordem Por meio das narrativas de mitos conhecidos Luciano pode
inserir outras discussotildees em seus escritos uma vez que as narrativas miacuteticas satildeo elementos
culturais mobilizados por meio da retoacuterica a fim de produzir um efeito gerar sentidos e induzir
agrave accedilatildeo
Luciano foi um escritor que brincou19 em termos estiliacutesticos com a escrita sobre a
realidade uma vez que construiu estoacuterias nas quais ele mesmo avisa ao leitor que natildeo haacute
veracidade em seu escrito indo aleacutem da poeacutetica aristoteacutelica que diferencia a histoacuteria da poesia
por esta narrar o que aconteceu e aquela dizer o que poderia ter acontecido (Aristoacuteteles Poeacutetica
IX 1451b) O siacuterio aponta a possibilidade de construir um relato sobre o que natildeo poderia
acontecer e avisa o leitor disso por exemplo no texto Das Narrativas Verdadeiras20 Ele
tambeacutem produziu textos que relatavam acontecimentos que ele teria presenciado em um estilo
mais croniacutestico ou jornaliacutestico por exemplo em Alexandre ou o falso profeta21 ou Sobre a
morte de Peregrino22 Nos limites de sua escrita usou e abusou23 dos elementos tradicionais
tanto na forma como nos conteuacutedos Ele burlou os gecircneros consagrados e emulou elementos
disponiacuteveis na tradiccedilatildeo principalmente nos escritos atribuiacutedos a Homero e Hesiacuteodo mas
19 Quando falamos em brincar ou brincadeiras estamos entendendo que o riso apresenta elementos argumentativos
que permitem a criacutetica social e poliacutetica Neste sentido ao afirmar que o siacuterio brinca queremos enfatizar os usos
criativos que ele faz da tradiccedilatildeo literaacuteria de que eacute tributaacuterio e principalmente os viacutenculos desses usos com sua
proposta poliacutetica o riso serve como ferramenta para o pensamento 20 No prefaacutecio Das narrativas verdadeiras ele diz que ao falar dos escritores antigos que falavam de coisas
inverossiacutemeis afirma que ldquoEacute por esse motivo que eu proacuteprio dedicando-me pelo desejo da vangloacuteria a deixar
algo para a posteridade a fim de natildeo ser o uacutenico excluiacutedo da liberdade de efabular jaacute que nada de verdadeiro
podia relatar ndash nada digno de menccedilatildeo havia experimentado ndash me voltei para a mentira em muito mais honesta que
a dos demais pois ao menos nisso direi a verdade ao afirmar que minto Assim a mim me parece que tambeacutem
escaparia da acusaccedilatildeo dos outros eu proacuteprio concordando que nada digo de verdadeiro Escrevo portanto sobre
coisas que nem vi nem sofri nem me informei por outros e ainda sobre seres que natildeo existem em absoluto e nem
por princiacutepio podem existir Por isso aqueles que por acaso se depararem com esses escritos natildeo devem de forma
alguma neles acreditarrdquo (ldquoδιόπερ καὶ αὐτὸς ὑπὸ κενοδοξίας ἀπολιπεῖν τι σπουδάσας τοῖς μεθ ἡμᾶς ἵνα μὴ μόνος
ἄμοιρος ὦ τῆς ἐν τῷ μυθολογεῖν ἐλευθερίας ἐπεὶ μηδὲν ἀληθὲς ἱστορεῖν εἶχον ndash οὐδὲν γὰρ ἐπεπόνθειν ἀξιόλογον
ndash ἐπὶ τὸ ψεῦδος ἐτραπόμην πολὺ τῶν ἄλλων εὐγνωμονέστερον κἂν ἓν γὰρ δὴ τοῦτο ἀληθεύσω λέγων ὅτι
ψεύδομαι οὕτω δ ἄν μοι δοκῶ καὶ τὴν παρὰ τῶν ἄλλων κατηγορίαν ἐκφυγεῖν αὐτὸς ὁμολογῶν μηδὲν ἀληθὲς
λέγειν γράφω τοίνυν περὶ ὧν μήτε εἶδον μήτε ἔπαθον μήτε παρ ἄλλων ἐπυθόμην ἔτι δὲ μήτε ὅλως ὄντων μήτε
τὴν ἀρχὴν γενέσθαι δυναμένων διὸ δεῖ τοὺς ἐντυγχάνοντας μηδαμῶς πιστεύειν αὐτοῖςrdquo)(HV I 5) A brincadeira
com os gecircneros apresenta um fundo seacuterio relacionado diretamente com o rir para pensar os procedimentos de
escrita luciacircnicos apresentam profundo conhecimento da tradiccedilatildeo claacutessica como ele insinua nesta passagem mas
ao afirmar que constroacutei seu discurso sob a eacutegide da mentira (pseudos) cria uma proteccedilatildeo estiliacutestica para destilar
sua criacutetica social e intelectual Ainda nesse trecho ele natildeo nega o aprendizado com a Paideia helecircnica apenas
utiliza essa como apoio para propor novas possibilidades discursivas 21 Nesse texto Luciano narra a fundaccedilatildeo de um oraacuteculo por Alexandre que eacute descrito como um charlatatildeo Esse
texto tenta narrar um evento de sua eacutepoca por isso afirmamos que tem um estilo mais ldquocroniacutestico ou jornaliacutesticordquo 22 Esse escrito conta a estoacuteria do suiciacutedio do filoacutesofo ciacutenico Proteu que se atirou em uma fogueira em plenos jogos
oliacutempicos de 165 23 Quando falamos em usos e abusos natildeo questionamos a legitimidade dessa utilizaccedilatildeo apenas apontamos que o
escrito natildeo ficou preso aos limites impostos pelos cacircnones ou gecircneros mas fez um uso bastante criativo dos
mesmos Natildeo se trata tambeacutem de deturpaccedilatildeo uma vez que a mudanccedila eacute normal e salutar trata-se muito mais de
um trabalho de criaccedilatildeo criativa de invenccedilatildeo estiliacutestica ou literaacuteria
24
tambeacutem brincou com os gecircneros vinculados agrave filosofia como os diaacutelogos e deu novas
configuraccedilotildees aos gecircneros que produzem o riso
Mikhail Bakhtin em seu livro Problemas da poeacutetica de Dostoieacutevski publicado
originariamente em 1961 busca na literatura carnavalizada elementos para compreender a
polifonia presente nos textos dostoievisquianos O siacuterio faz parte de uma tradiccedilatildeo literaacuteria que
mobiliza o riso a fim de fazer o leitorouvinte pensar Bakhtin ressalta a atualidade desses
textos muito ligados ao cotidiano dos autores mesmo quando essa literatura evoca heroacuteis e
personagens histoacutericos a funccedilatildeo eacute pensar a realidade que cerca o produtor do escrito
(BAKHTIN 2011 122-123)
O uso da lenda e dos mitos eacute extremamente criacutetico e atualizado tendo inclusive
caraacuteter investigativo Tal gecircnero renuncia agrave unidade estiliacutestica em nome dos estilos hiacutebridos
que unem o sublime e o vulgar o cocircmico e o seacuterio (BAKHTIN 2011 123) Os diaacutelogos dos
mortos de Luciano de Samoacutesata expressa essas caracteriacutesticas Colocando-nos mesmos
diaacutelogos personagens miacuteticas e histoacutericas fazendo o ouvinte rir dos dilemas da morte
mesclando o diaacutelogo socraacutetico com a comeacutedia
Na senda calcada por Bakhtin o diaacutelogo socraacutetico colocaria em debate o caraacuteter
dialoacutegico da verdade Para esse autor ldquoA verdade natildeo nasce nem se encontra na cabeccedila de um
uacutenico homem ela nasce entre os homens que juntos a procuram no processo de comunicaccedilatildeo
dialoacutegicardquo (BAKHTIN 2011125)
A fantasia da saacutetira menipeia permitiraacute a Luciano buscar os marginalizados sociais
em situaccedilotildees extraordinaacuterias Com imensa liberdade inventiva ela se liberta por meio do riso e
experimenta cotidianamente a verdade A menipeia eacute o gecircnero das questotildees finais da vida e da
morte Os autores deslocam a accedilatildeo para espaccedilos que permitam a hipertrofia da criacutetica o Olimpo
o Hades por exemplo Os escacircndalos satildeo fundamentais Como afirma Brandatildeo ldquoA intenccedilatildeo de
divertir natildeo invalida que a obra vise a provocar no leitor lsquoreflexotildees seacuterias dignas das musasrsquordquo
(cf HV I 1) Esse eacute um dos elementos importantes da menipeia que enfatiza que o sarcasmo
eacute terriacutevel pois as criacuteticas satildeo acompanhadas do riso o que eacute bastante propiacutecio para a criacutetica
poliacutetica jaacute que o riso propicia olhar uma outra exegese do real
Nesse espaccedilo heterogecircneo Luciano produziu seus escritos por meio da interaccedilatildeo
entre inovaccedilatildeo literaacuteria e tradiccedilatildeo Sua produccedilatildeo foi tecida sob o ordenamento poliacutetico do
Impeacuterio Ele observou os preceitos helecircnicos aprendidos na Paideia reverberando soacutelida
erudiccedilatildeo literaacuteria e retoacuterica como estudou Jaques Bompaire24 Em vaacuterios momentos de seus
24 Os estudos luciacircnicos tecircm o livro Lucien Eacutecrivain imitation et creacuteation publicado originariamente em 1958
como um divisor de aacuteguas Fruto da tese de doutoramento de Jaques Bompaire o livro trata justamente do conceito
25
escritos ele ressaltou sua origem siacuteria como colocou em baila a diversidade desse Impeacuterio por
exemplo no texto A Deusa Siacuteria25
Luciano usou os mitos em seus diaacutelogos satiacutericos26 por meio da glosa burlesca com
o objetivo de transmitir uma mensagem seacuteria utilizando como principal veiacuteculo o riso No
percurso desta Tese pretendemos deslindar esses mecanismos metanarrativos Acreditamos
que o conteuacutedo mitoloacutegico como apropriado pelo siacuterio permite um novo caminho investigativo
para pensar a postura poliacutetica desse escritor
Discutimos os diaacutelogos luciacircnicos a fim de entender como o mesmo se apropria dos
mitos e qual a relaccedilatildeo desse ato com o uso da narrativa Assim os textos analisados satildeo Os
diaacutelogos dos mortos Os diaacutelogos dos deuses e Diaacutelogos dos deuses marinhos que satildeo as trecircs
coletacircneas de diaacutelogos que ele escreveu27 Trata-se de um conjunto de diaacutelogos mais breves
que envolvem duas ou mais personagens
Analisamos tambeacutem os diaacutelogos maiores que satildeo peccedilas mais densas e longas A
Descida (ao Hades) ou o Tirano Zeus Refutado Zeus Traacutegico Prometeu Icaromenipo ou
sobre as nuvens Tiacutemon ou o misantropo Caronte ou os contempladores Julgamento das
deusas Menipo ou Neciomancia Assembleia dos deuses A festa de Cronos Nesses casos
temos textos mais complexos entretanto respeitando a forma do diaacutelogo Os diaacutelogos
luciacircnicos satildeo analisados tendo em vista as narrativas miacuteticas tomadas como memoacuteria cultural
greco-romana
de miacutemeses disponiacutevel no tempo de Luciano e do uso que ele faz deste tendo em vista todo o legado cultural
helecircnico Toda a criacutetica aos textos luciacircnicos de certa maneira ou comprovam suas teses ou as refutam Ou seja
os lucianistas tecircm esse trabalho em alta conta Jacyntho Lins Brandatildeo afirma que ele eacute o mais completo estudo
sobre a poeacutetica luciacircnica e que o mesmo ainda natildeo foi superado (BRANDAtildeO 2001 19) De um lado esse trabalho
eacute fundamental para mostrar como os procedimentos poeacuteticos luciacircnicos mimeacuteticos satildeo utilizados a favor da
criatividade do escritor indo de encontro agraves teses que observam a literatura grega do periacuteodo imperial como
inferior 25 Trata-se de um texto em que Luciano descreve o culto agrave deusa Siacuteria chamada Dea Syria pelos romanos em
Hieraacutepolis Esse texto confunde os analistas por dois motivos por um lado Luciano utiliza o dialeto Jocircnico sendo
que ele eacute um dos expoentes do aticismo por outro lado o texto apresenta um tom seacuterio diferente que natildeo trata o
culto a essa deidade com comicidade O historiador Franz Cumont (1987 93-119) fornece algumas informaccedilotildees
sobre o culto a Dea Syria em Roma e principalmente as caracteriacutesticas de seu culto J L Linghtfoot (2003)
apresenta no livro Lucian on the Syrian Goddess uma cuidadosa traduccedilatildeo para o inglecircs acompanhada do original
bem como um amplo estudo sobre o culto a Atargatis tendo em vista o estado da arte das informaccedilotildees
arqueoloacutegicas sobre o templo de Hieroacutepolis e o culto a essa divindade Ele tambeacutem faz um minucioso estudo
filoloacutegico do texto e amplo comentaacuterio histoacuterico Robert Turcan faz a seguinte ponderaccedilatildeo sobre esse opuacutesculo
que trata do santuaacuterio de Hieraacutepolis ldquoum texto do seacuteculo II de nossa era uma espeacutecie de resenha publicitaacuteria que
estaacute colocada entre as obras de Luciano e que revela uma credulidade quase fingida () mas totalmente estranha
ao estilo e espiacuterito caacuteustico do escritor de Samoacutesatardquo (TURCAN 2001 132) Francesca Mestre (2007 35-37)
defende que esse texto eacute de Luciano e que o mesmo deve ser entendido como um registro que expressa o retorno
do escritor para sua casa daiacute a escolha de utilizar-se de outro dialeto 26 Luciano mescla em suas obras a flexibilidade do diaacutelogo socraacutetico com o riso da comeacutedia 27 Haacute ainda os Diaacutelogos das cortesatildes mas esses natildeo interessam ao debate que propomos nesta Tese uma vez que
os personagens apresentados por Luciano satildeo cortesatildes o que foge da nossa proposta de pensar as narrativas miacuteticas
nos textos desse escritor
26
Nesse sentido colocamos a primeira questatildeo historiograacutefica que orientou esta
pesquisa como a elite letrada formada a partir da Paideia helenoacutefila relacionou-se com o
ordenamento imperial Para dar mais indiacutecios que corroborem uma resposta a essa pergunta
propomos compreender a trajetoacuteria formadora de Luciano como um ldquointelectualrdquo atiacutepico da
Segunda Sofiacutestica
Existem duas perspectivas baacutesicas sobre a postura poliacutetica de Luciano de Samoacutesata
De um lado existe uma ampla tradiccedilatildeo que vecirc nele um escritor mergulhado no estudo dos textos
canocircnicos gregos e por esse motivo distante da realidade poliacutetica de sua eacutepoca Do outro lado
existe uma corrente que observa o siacuterio como um ativista poliacutetico que escreve contra o Impeacuterio
Romano A hipoacutetese que nos orienta nesta Tese observa que nenhuma das duas respostas estatildeo
inteiramente certas
Paul Veyne afirma que o lugar dos intelectuais gregos evidencia uma profunda
ambiguidade entre o apoio ao Imperador (os laccedilos que legitimam o poder imperial natildeo se datildeo
a uma ordem imaginada mas por meio de relaccedilotildees pessoais entre cidades e figuras
proeminentes com o Imperador) a certeza da superioridade intelectual helecircnica e certa
arrogacircncia em relaccedilatildeo agrave cultura latina (VEYNE 2009 80)
Em seguida analisamos a escrita luciacircnica isto eacute como esse autor produziu textos
literaacuterios que tinham a pretensatildeo de entreter a plateia por meio de uma narrativa que fugisse
dos elementos tradicionais de verossimilhanccedila Seu objetivo seria construir uma peccedila literaacuteria
que comunicasse que o inserisse no mundo tanto por meio de formas inovadoras e criativas
quanto pelo uso dos conteuacutedos presentes na tradiccedilatildeo claacutessica Deslindar a escrita luciacircnica em
sua construccedilatildeo formal permite a compreensatildeo de como tais registros podem dialogar com a
realidade histoacuterica Entender as regras de composiccedilatildeo literaacuteria e a proposta presente em cada
opuacutesculo orienta a interpretaccedilatildeo do texto luciacircnico na cultura imperial
Analisamos elementos da escrita luciacircnica ou seja como ele constroacutei um gecircnero
literaacuterio proacuteprio que mescla o diaacutelogo filosoacutefico agrave moda de Platatildeo e a comeacutedia Nesse sentido
o diaacutelogo satiacuterico age como veiacuteculo de ideias que produzem o riso numa tradiccedilatildeo estudada por
Mikhail Bakthin (2010 121-139) como o ldquococircmico-seacuteriordquo ou seja o riso tem a funccedilatildeo de fazer
o leitor ou ouvinte pensar O riso desarma numa sociedade na qual a criacutetica mordaz podia
significar a morte do escritor e a desaparecimento de seus escritos O riso coloca-se como ponte
privilegiada entre a reflexatildeo de um grupo e a realidade
Refletimos sobre a trajetoacuteria de Luciano de Samoacutesata tendo em vista o cenaacuterio
cultural da Segunda Sofiacutestica e sua presenccedila no Impeacuterio Romano sempre observando as
caracteriacutesticas estiliacutesticas do texto literaacuterio uma vez que estas colocam as fronteiras para a
27
tessitura da prosa artiacutestica O desafio para o historiador que se ocupa desses textos eacute justamente
encontrar os limites para a expressatildeo de ideias e sentimentos do mundo que os cercam
A nosso ver haacute em Luciano um modo de construir seu argumento que se aproxima
da parreacutesia socraacutetica O samosatense se coloca em seus escritos como aquele que deteacutem a
coragem da verdade Orienta-nos a ideia de que ele escreveu sobre essa modalidade de produzir
o dizer verdadeiro tendo em vista a possibilidade de repressatildeo
Um dos toacutepicos comuns no aprendizado da retoacuterica presente por exemplo no
Sobre o estilo28 de Demeacutetrio eacute a maneira de falar ao tirano Essa discussatildeo eacute posta da seguinte
maneira no manual de retoacuterica
Muitas vezes quando dirigimos a palavra a um tirano ou a qualquer outra
pessoa violenta dispostos a censuraacute-los usamos por necessidade o modo
figurado no discurso como fez Demeacutetrio de Faleiro contra Craacutetero da
Macedocircnia A esse que assentado sobre um leito de ouro com ar de
superioridade e envolto em uma manta puacuterpura recebia com soberba as
embaixadas dos gregos disse com censura por meio de modo figurado Noacutes
recebemos outrora como embaixadores natildeo soacute estes como este Craacutetero No
pronome decircitico este haacute uma indicaccedilatildeo de toda soberba de Craacutetero censurada
por meio de um modo figurado () Aleacutem disso muitas vezes tambeacutem
empregam a ambivalecircncia E caso algueacutem queira copiar esses e fazer
reprovaccedilotildees que natildeo sejam se fato reprovaccedilotildees um exemplo eacute a passagem
de Eacutesquines a propoacutesito do Telauges Quase toda a narraccedilatildeo sobre Telauguecircs
fornece uma aporia eacute algo a ser admirado ou eacute uma chacota Esse tipo de
ambiguidade apesar de natildeo ser na verdade uma ironia daacute a impressatildeo de secirc-
lo Mas poder-se-ia ainda empregar o modo figurado de uma maneira
diferente por exemplo assim uma vez que os soberanos e soberanas ouvem
falar de suas faltas com desagrado para aconselhaacute-los a natildeo cometecirc-las natildeo
o diremos diretamente mas reprovaremos outros por terem cometido falhas
semelhantes () E mencionei isso querendo demonstrar sobretudo o caraacuteter
do poder que demanda principalmente um discurso seguro chamado
lsquofiguradorsquo (Demeacutetrio Sobre o estilo289-293)29
28 Demeacutetrio discorre em dois momentos sobre a maneira na qual se deve dirigir a um governante na primeira vez
sua preocupaccedilatildeo eacute a escrita de cartas aos mesmos que essas devem ser elevadas mas natildeo podem perder a graccedila
(DemeacutetrioSobre o estilo234) O outro momento eacute aquele que realmente importa sobre como se deve falar diante
do governante que analisaremos no corpo do texto dada a relevacircncia para essa Tese 29 ldquoΠολλάκις δὲ ἢ πρὸς τύραννον ἢ ἄλλως βίαιόν τινα διαλεγόμενοι καὶ ὀνειδίσαι ὁρμῶντες χρῄζομεν ἐξ ἀνάγκης
σχήματος λόγου ὡς Δημήτριος ὁ Φαληρεὺς πρὸς Κρατερὸν τὸν Μακεδόνα ἐπὶ χρυσῆς κλίνης καθεζόμενον
μετέωρον καὶ ἐν πορφυρᾷ χλανίδι καὶ ὑπερηφάνως ἀποδεχόμενον τὰς πρεσβείας τῶν Ἑλλήνων σχηματίσας εἶπεν
ὀνειδιστικῶς ὅτι ὑπεδεξάμεθά ποτε πρεσβεύοντας ἡμεῖς τούσδε καὶ Κρατερὸν τοῦτον ἐν γὰρ τῷ δεικτικῷ τῷ
τοῦτον ἐμφαίνεται ltἡgt ὑπερηφανία τοῦ Κρατεροῦ πᾶσα ὠνειδισμένη ἐν σχήματι []
Πολλαχῆ μέντοι καὶ ἐπαμφοτερίζουσιν daggerοἷς ἐοικέναι εἴ τις ἐθέλοι καὶ ψόγους [εἰ καὶ ὁ ψόγους εἶναι θέλοι τις]
παράδειγμα τὸ τοῦ Αἰσχίνου τὸ ἐπὶ τοῦ Τηλαύγους πᾶσα γὰρ σχεδὸν ἡ περὶ τὸν Τηλαύγη διήγησις ἀπορίαν
παράσχοι ἄν εἴτε θαυμασμὸς εἴτε χλευασμός ἐστι τὸ δὲ τοιοῦτον εἶδος ἀμφίβολον καίτοι εἰρωνεία οὐκ ὂν ἔχει
τινὰ ὅμως καὶ εἰρωνείας ἔμφασιν
Δύναιτο δ ἄν τις καὶ ἑτέρως σχηματίζειν οἷον οὕτως ἐπειδὴ ἀηδῶς ἀκούουσιν οἱ δυνάσται καὶ δυνάστιδες τὰ
αὑτῶν ἁμαρτήματα παραινοῦντες αὐτοῖς μὴ ἁμαρτάνειν οὐκ ἐξ εὐθείας ἐροῦμεν ἀλλ ἤτοι ἑτέρους ψέξομέν τινας
τὰ ὅμοια πεποιηκότας []ταῦτα δ εἴρηκα ἐμφῆναι βουλόμενος μάλιστα τὸ ἦθος τὸ δυναστευτικόν [ὡς μάλιστα]
χρῇζον λόγου ἀσφαλοῦς ὃς καλεῖται ἐσχηματισμένοςrdquo
28
O topos30 pode ser uacutetil para entender os mecanismos utilizados para falar ao
Imperador No decorrer da nossa anaacutelise vamos observar como Luciano se utiliza desses
mecanismos para apresentar suas contestaccedilotildees agrave ordem ou comentar a realidade em que ele
vive Partimos deste lugar para colocar suas ideias o escritor utilizou recursos figurados para
apresentar suas ideias sobre o poder Haacute no texto luciacircnico os mesmos elementos citados acima
tais como ambivalecircncia e o elogio inverso
Se por um lado Luciano se coloca como o sincero essa palavra franca precisa ser
pensada na especificidade dos mecanismos de poder presentes no ordenamento imperial Diacuteon
Caacutessio senador e historiador romano conta que Ciacutecero teve a liacutengua arrancada e pregada na
porta do Senado Tais puniccedilotildees eram amplamente divulgadas com o intuito de servir de
exemplo Logo os autores tinham consciecircncia dos limites de sua accedilatildeo e de sua franqueza diante
do poder Trata-se portanto de um tema capital
Tal procedimento metodoloacutegico eacute fundamental para avanccedilar nas questotildees que
colocamos sobre a obra de Luciano jaacute que os cacircnones estiliacutesticos e literaacuterios assim como o
gecircnero satildeo elementos que orientam a escrita Como nos ensina Tzvetan Todorov o gecircnero
literaacuterio eacute um elemento histoacuterico que serve de veiacuteculo para determinadas posturas poliacuteticas
(TODOROV 1980 43-58)
Logo para enfrentar a questatildeo da postura poliacutetica do siacuterio investigamos por meio
dos fragmentos miacuteticos apresentados em seus escritos principalmente nos diaacutelogos A escolha
da mitologia justifica-se em primeiro lugar por uma constataccedilatildeo elaborada por Maurizio
Bettini (2011 19-25) em um texto intitulado As Reescritas do Mito Esse autor afirma que na
literatura claacutessica natildeo haacute o gosto pela inovaccedilatildeo mas um contiacutenuo trabalho de reescrita do mito
Ou seja existe um enorme nuacutemero de narrativas disponiacuteveis que podem ser recontadas
infinitamente Como diz o ditado popular ldquoQuem conta um conto aumenta um pontordquo
Luciano ao recontar como o Priacutencipe troiano Paris escolheu a mais bela das deusas
no diaacutelogo o Juiacutezo das deusas natildeo deixa de ser fecundo apenas apresenta sua criaccedilatildeo em um
modelo definido o que facilitava que o leitorouvinte decifrasse outros elementos disponiacuteveis
Certamente seria uma leviandade acusaacute-lo de falta de criatividade Antes de publicar um texto
era costume o autor participar de leituras puacuteblicas como forma de sentir a recepccedilatildeo do mesmo
e verificar a viabilidade de desprender recursos para sua publicaccedilatildeo Acompanhar uma estoacuteria
30 A palavra grega topos cujo plural eacute topoi ldquoNa retoacuterica claacutessica os toacutepicos eram natildeo soacute a mateacuteria dos argumentos
como tambeacutem os lugares-comuns formais (loci communes) empregado pelos oradores na composiccedilatildeo dos seus
discursosrdquo (MOISEacuteS 1992 494) Como Luciano eacute um autor que domina as teacutecnicas da retoacuterica antiga trata-se de
um exemplo de recurso memorialiacutestico utilizado conscientemente por esse escritor
29
conhecida eacute mais faacutecil mesmo quando o autor altera algum elemento tradicional Logo recontar
narrativas populares eacute uma estrateacutegia para desviar o ouvido da estoacuteria em si para outros
componentes como por exemplo a beleza de sua linguagem
Eacute o proacuteprio Bettini quem nos daacute mais um elemento para avanccedilar na anaacutelise que
propomos Ele afirma que ldquoExistem pelo menos dois gecircneros literaacuterios antigos de que o mito
estaacute ausente como lsquotemarsquo como plot a comeacutedia e o romancerdquo (BETTINI 2010 24) Essa
colocaccedilatildeo lanccedila dois elementos que justificam a escolha em analisar os diaacutelogos luciacircnicos
pois eles apresentam uma forma hiacutebrida que une o diaacutelogo filosoacutefico platocircnico com a comeacutedia
Os diaacutelogos satiacutericos estatildeo num entre lugar estiliacutestico no qual o mito aparece com
a funccedilatildeo de comunicar ideias e valores Em seguida analisamos o conceito de mito atualmente
e na tradiccedilatildeo grega como estatildeo expressos nos diaacutelogos de Luciano Para isso temos de
questionar o proacuteprio conceito de mito na tradiccedilatildeo antiga e na obra desse autor Posteriormente
cotejamos essa proposta com os debates encaminhados pela historiografia antiga
Outro elemento importante que analisamos na Tese eacute a concepccedilatildeo que adotamos do
mito como uma memoacuteria coletiva As narrativas miacuteticas gregas satildeo construiacutedas em um terreno
no qual as accedilotildees dos deuses e dos homens se mesclam Como afirma Ken Dowden
a mitologia grega eacute fundamentalmente sobre homens e mulheres eacute uma mitologia
lsquohistoacutericarsquo Em sua maior parte natildeo eacute a participaccedilatildeo dos deuses animais falantes ou
maacutegicos que torna miacutetico o mito grego eacute antes a participaccedilatildeo de homens e mulheres
que viveram em illo tempore (tempos remotos) os tempos anteriores ao iniacutecio do
registro histoacuterico e para aleacutem da tradiccedilatildeo oral confiaacutevel na para-histoacuteria ou proto-
histoacuteria (DOWDEN 1994 34)
A ideia de que os mitos pertencem a um tempo remoto illo tempore foi cunhada
por Mircea Eliade (1981 35) em seu livro O mito do eterno retorno Essa concepccedilatildeo se coaduna
com a forma como entendemos o mito grego Natildeo interessa a sua existecircncia factual pois sua
proposta era de que ele era entendido pelas populaccedilotildees como um passado comum Nesse
caminho as apropriaccedilotildees das narrativas miacuteticas satildeo construccedilotildees memorialiacutesticas
Os usos do passado satildeo instrumentos eficazes para a constituiccedilatildeo do poder Ao
adaptar fragmentos da mitologia grega Luciano estaria manipulando um importante
componente da identidade helenoacutefila Tal trabalho natildeo visa somente ao passado miacutetico mas
constroacutei-se em uma bidimensionalidade isto eacute o passado desejado ou sonhado que reverbera
em um futuro almejado
A proacutepria escrita literaacuteria luciacircnica permite que personalidades de uma histoacuteria
recente transitem nesse entre-lugar com personagens miacuteticos Observe-se que no ateliecirc do
30
escritor mito e passado natildeo se diferenciam Por exemplo Luciano coloca Dioacutegenes31 e
Heacuteracles32 em um mesmo diaacutelogo (LUCIANO D mort XI)
Assim devemos investigar os viacutenculos entre poder e mitologia atentando para os
recortes miacuteticos que tratam justamente de praacuteticas de poder Entendemos poder como accedilatildeo de
fazer com que os outros ajam da maneira como queremos Temos como foco basicamente dois
pontos 1) Zeus e os limites da accedilatildeo do deus supremo do Olimpo explorando nesse sentido a
reflexatildeo sobre o destino exposta por Luciano no diaacutelogo Zeus Refutado e Zeus Traacutegico e
citado rapidamente na Assembleia dos deuses 2) outras situaccedilotildees que entendemos como
apropriadas satildeo as relacionadas com a manutenccedilatildeo do poder ou seja as preocupaccedilotildees dos
personagens sobre a possibilidade de serem pegos em condutas questionaacuteveis ou ainda os
perigos da queda Haacute aqui uma anaacutelise sobre os limites do poder de um soberano Analisamos
nesse ponto as relaccedilotildees entre Zeus e Prometeu e focamos o delicado problema da sucessatildeo
que aparece no relato mitoloacutegico e na praacutetica poliacutetica do Principado romano
No mundo greco-romano os escritores natildeo tinham o status juriacutedico e autoral que
outorgamos aos nossos autores Com o mesmo fito natildeo consideramos que Luciano tenha uma
obra pois entendemos que esse conceito expressa uma organicidade e uma intencionalidade
que natildeo existe nos seus escritos Nossa Tese se constroacutei neste lugar contraditoacuterio que busca
entender os registros luciacircnicos sem pensar os mesmos em uma unicidade Trata-se muito
mais de um trabalho de intertextualidade e de diaacutelogo que permite entender os discursos em
uma formaccedilatildeo discursiva33 Observar que o enunciado compotildee um discurso que soacute eacute permitido
em determinada formaccedilatildeo discursiva natildeo satildeo hipertrofiadas na morte do autor34 como
31 Dioacutegenes de Sinope (412-323 a C) foi um filoacutesofo ciacutenico disciacutepulo de Antiacutestenes Eacute o mais famoso dos
filoacutesofos ciacutenicos Nada do que escreveu chegou ateacute noacutes entretanto sabemos muito do cinismo antigo por meio
das anedotas que envolvem este personagem 32 Filho de Zeus e da mortal Alcmena foi perseguido durante sua vida pela deusa Hera tendo que cumprir os doze
trabalhos Eacute um dos poucos casos da literatura grega de apoteose de um semideus quando o mesmo eacute queimado
no vulcatildeo Oeta Um dos mais populares heroacuteis da Antiguidade era cultuado tanto pela elite quanto pelas camadas
mais baixas da sociedade Jean Bayet ressalta que no seacuteculo II os cultos aos deuses humanos principalmente
Heacuteracles e Escapulaacutepio teria um aumento significativo numa tentativa pagatilde de fazer frente ao nascente
cristianismo (BAYET 1984 276) No Diaacutelogo XI Dioacutegenes questiona o espectro de Heacuteracles sobre sua suposta
divindade (ARANTES JUNIOR 2008b 16) 33 Seguindo Michel Foucault em seu livro a Arqueologia do saber ldquochamaremos de discurso um conjunto de
enunciados na medida em que se apoiem na mesma formaccedilatildeo discursiva () eacute constituiacutedo de um nuacutemero limitado
de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condiccedilotildees de existecircnciardquo (FOUCAULT 2002 135)
Jaacute a noccedilatildeo de formaccedilatildeo discursiva apresenta ordem correlaccedilatildeo funcionamento e transformaccedilatildeo que satildeo ordenadas
por um conjunto de regularidades (FOUCAULT 200235-45) 34 Millocircr Fernandes tem uma frase que diz ldquoTudo o que eu digo acreditem teria mais solidez se em vez de
carioquinha eu fosse um velho chinecircsrdquo (FERNANDES apud GOMES 1994 5) A ironia dessa frase esconde
duas coisas importantes para a nossa anaacutelise Em primeiro lugar a noccedilatildeo de autoridade que instintivamente damos
aos textos antigos como se os mesmos fossem detentores de uma aura mais profunda de um segredo que deve ser
decifrado Assim como o ldquoefeito de autoriardquo uma noccedilatildeo que natildeo existia antes da modernidade Esse enunciado
nos lembra as indagaccedilotildees de Michel Foucault (1992 32) sobre a atribuiccedilatildeo de determinado enunciado a um
31
propotildeem os filoacutesofos Michel de Foucault (1992) e Roland Barthes (2012 57-65) Jaacute que haacute no
processo de escrita intencionalidade por parte de quem escreve sem deixar de mencionar a
criatividade em escolher os elementos disponiacuteveis e inventar algo diferente Defendemos que a
escrita nunca eacute livre de orientaccedilotildees metanarrativas os chamados regimes de escrita mas que
dentro dos limites estabelecidos os autores inventam criam Ressaltemos sempre o texto de
caraacuteter literaacuterio tem o fito de ideais esteacuteticos
Analisamos a relaccedilatildeo dos personagens miacuteticos com os homens com o objetivo de
compreender como Luciano representou relaccedilotildees entre hierarquias existenciais diacutespares no
caso homens heroacuteis e deuses Nesse ponto as barreiras entre a vida e a morte a posse do
proacuteprio corpo ou o controle dos seus desejos e as conturbadas relaccedilotildees amorosas dos deuses
satildeo vistos sempre como relaccedilotildees construiacutedas em situaccedilotildees de poder assim como a inversatildeo
controlada da ordem Nesse passo analisamos os seguintes diaacutelogos O juiacutezo das deusas As
saturnaacutelias Caronte ou os contempladores Diaacutelogos dos deuses marinhos e Os diaacutelogos dos
mortos Tendo em vista esse percurso este trabalho estaacute organizado em trecircs capiacutetulos aleacutem
desta introduccedilatildeo e das consideraccedilotildees finais
No primeiro capiacutetulo apresentamos Luciano de Samoacutesata traccedilando um panorama
de sua trajetoacuteria tendo em vista que ele participa de um fenocircmeno cultural batizado por
personagem especiacutefico pois isso muda o olhar sobre o discurso Como afirma Claude Calame ldquoo autor se revela
por ser o resultado de uma construccedilatildeo que se situa na crenccedila de diferentes paracircmetros da ordem juriacutedica e
institucionalrdquo (CALAME 2004 12) Essa funccedilatildeo permite a atribuiccedilatildeo nominal o reconhecimento social e a
autenticaccedilatildeo dos textos Roger Chartier ao revisitar a reflexatildeo seminal de Foucault afirma que ldquoPodemos dizer
que a funccedilatildeo autor natildeo eacute somente uma funccedilatildeo mas tambeacutem uma ficccedilatildeo e uma ficccedilatildeo semelhante a essas ficccedilotildees
que dominam o direito quando ele constroacutei sujeitos juriacutedicos que estatildeo distantes das existecircncias individuais dos
sujeitos empiacutericosrdquo (CHATIER 2012 29-31) Tendo em vista esses elementos acreditamos que o conceito de
obra tambeacutem deve ser revisto uma vez que esta categoria enseja coerecircncia e projeto de unicidade construiacutedo no
largo das vezes por criacuteticos apoacutes o falecimento do escritor Tais pontos levam-nos a apresentar um cuidado
metodoloacutegico ao analisar os textos luciacircnicos em sua individualidade na tentativa de encontrar as linhas mestras
desta formaccedilatildeo discursiva Alguns pontos podem ser colocados de uma perspectiva mais conservadora de leitura
1) existe um autor definido como escritor destes textos por meio da filologia 2) esses escritos satildeo o produto de
um contexto definido 3) existem alguns elementos de unicidade tais como gecircnero modos de validaccedilatildeo
enunciativa visatildeo de mundo Em primeiro lugar devemos entender a filologia como um saber que responde a
questotildees de uma determinada eacutepoca no caso a Modernidade indagaccedilotildees essas que satildeo distintas daquelas presentes
no momento de confecccedilatildeo do texto Natildeo se trata aqui de denegrir o campo de atuaccedilatildeo dos filoacutelogos mas de
ressaltar que na Antiguidade natildeo havia a necessidade de atribuiccedilatildeo rigorosa como nos dias de hoje Logo a
preocupaccedilatildeo da existecircncia de um indiviacuteduo produtor destes discursos hipertrofia os questionamentos referentes agrave
constituiccedilatildeo desta formaccedilatildeo discursiva que transcende o indiviacuteduo produtor do texto Em segundo lugar a loacutegica
de um contexto que garante esta postura mais tradicional fica comprometida uma vez que os contextos satildeo
pensados pelos historiadores a partir de indiacutecios presentes com todo rigor tendo como suporte elementos criativos
e regras de validaccedilatildeo dos enunciados que produziram efeitos realiacutesticos Os contextos natildeo existem externos ao
trabalho do historiador assim como o passado Construiacutemos o passado por meio dos indiacutecios visto que ele natildeo
existe mais simplesmente passou Assim contextos natildeo podem garantir a unicidade de discursos jaacute que a dialeacutetica
entre documentaccedilatildeo e tessitura dos contextos eacute extremamente complexa Finalmente esses elementos de unicidade
satildeo configuraccedilotildees de aspectos externos de produccedilatildeo escrita modelos gecircneros que concorrem em um espaccedilo
metanarrativo o que natildeo supera os elementos criadores dos indiviacuteduos Ressaltamos que a criatividade eacute
rigorosamente tabulada nestes elementos Os textos satildeo produzidos na dialeacutetica com o real logo o trabalho do
historiador eacute tentar entender esse diaacutelogo entre realidade e discurso numa fraacutegil relaccedilatildeo epistemoloacutegica
32
Filoacutestrato de Segunda Sofiacutestica Neste passo da Tese contextualizamos os textos desse escritor
no periacuteodo dos Antoninos assim com as especificidades de seu regime de memoacuteria Aleacutem disso
indagamos sobre a escrita luciacircnica e as caracteriacutesticas da parreacutesia como forma de dizer elegida
por ele na maioria de seus escritos
No segundo capiacutetulo abordamos o conceito de mito agrave luz da moderna antropologia
e da Histoacuteria Cultural o conceito de mito na tradiccedilatildeo greco-romana e as definiccedilotildees de mito na
obra de Luciano de Samoacutesata Dessa forma compreendemos como esse autor expressou o
conteuacutedo miacutetico e os significados que o mesmo teve em seus escritos
No terceiro capiacutetulo apresentamos os usos poliacuteticos da narrativa miacutetica nos
diaacutelogos luciacircnicos tendo em vista os elementos que configuram o regime de memoacuteria greco-
romano analisamos os usos que os saberes antigos (mitologia retoacuterica e filosofia) propotildeem
para a memoacuteria e indagamos sobre os viacutenculos entre memoacuteria e poder nos escritos de Luciano
de Samoacutesata Nesse uacuteltimo item investigamos as relaccedilotildees de poder entre os personagens
miacuteticos as maneiras de deliberaccedilatildeo os debates acerca da sucessatildeo dos governantes e sobre a
manutenccedilatildeo do poder estabelecido buscando uma analogia com o que ocorria no tempo em que
ele produziu seus escritos
Essa indagaccedilatildeo dos textos luciacircnicos somente eacute possiacutevel pelo deslocamento dos
interesses dos historiadores neste iniacutecio de seacuteculo Seguindo esse roteiro vislumbramos uma
nova possibilidade de analisar a relaccedilatildeo de Luciano e o poder imperial tendo em vista que os
usos que ele faz dos mitos ensejam elementos para uma reflexatildeo sobre o poder que natildeo estaacute
alijada do contexto imperial dos Antoninos
33
Capiacutetulo I
Luciano de Samoacutesata a Segunda Sofiacutestica e o Impeacuterio Romano
relaccedilotildees ambiacuteguas entre literatura e poder
Luciano de Samoacutesata nasceu35 provavelmente entre os anos de 115-120 na cidade de
Samoacutesata antiga capital do reino de Camogema uma regiatildeo estrateacutegica para o Impeacuterio
Romano jaacute que ficava proacuteximo a um conflituoso limes Como colocamos na introduccedilatildeo deste
trabalho o siacuterio produziu um extenso corpus literaacuterio que tem intrigado os estudiosos sobre sua
relaccedilatildeo com o Impeacuterio Romano
O samosatense constroacutei em alguns de seus escritos uma imagem na qual destaca
elementos de sua trajetoacuteria sociopoliacutetica e cultural decisatildeo de se dedicar agrave Paideia formaccedilatildeo
retoacuterica viagens e debates contemporacircneos Como essa imagem eacute desprendida de seus escritos
suas informaccedilotildees e conclusotildees desdobradas estatildeo no campo do provaacutevel Entretanto isso natildeo
nos impede de analisar essa imagem e principalmente compreender algumas intencionalidades
construiacutedas pelo escritor em seus textos
Nesse sentido cabe aqui o confronto dessa imagem com os aspectos historiograacuteficos
referentes agrave atuaccedilatildeo de oradores e escritores helenoacutefilos na Segunda Sofiacutestica conceituaccedilatildeo e
atuaccedilatildeo sociocultural no Impeacuterio Romano Em seguida debatemos a relaccedilatildeo do samosatense
com esse fenocircmeno cultural e neste passo discutimos as teses pertinentes agrave relaccedilatildeo dos
intelectuais helenoacutefilos com a cultura imperial romana Tendo em vista os viacutenculos de Luciano
e o Imperador quando ele assume um cargo em Alexandria na administraccedilatildeo da proviacutencia
imperial do Egito analisamos seus escritos literaacuterios objetivando a apreciaccedilatildeo dos gecircneros
trabalhados pelo autor dando atenccedilatildeo maior ao diaacutelogo satiacuterico uma vez que nosso recorte
centra-se nesse gecircnero especiacutefico Finalmente construiacutemos uma anaacutelise do discurso do siacuterio
tendo como guia a noccedilatildeo de parreacutesia isto eacute franqueza sinceridade que permite ter a coragem
de dizer a verdade
35 A Suda afirma que Luciano nasceu sob o governo de Trajano ou seja posterior a 117 Jacques Schwarts (1965
14) propotildee 119
34
11 A trajetoacuteria e os escritos de Luciano de Samoacutesata como ser siacuterio escrever em
grego e estar no Impeacuterio Romano
Luciano de Samoacutesata escreveu um vasto nuacutemero de textos em grego aacutetico36 Sabemos
muito pouco a respeito de sua trajetoacuteria intelectual e sociopoliacutetica Podemos inferir com certeza
somente as informaccedilotildees fornecidas em seu nome Luciano eacute um nome latinizado37 o que
provavelmente ajudava em sua inserccedilatildeo sociopoliacutetica As outras informaccedilotildees que temos satildeo
desprendidas da anaacutelise de seus escritos
Como mencionado Luciano nasceu em Samoacutesata (Luciano Hist Co 24 11) uma
cidade fortificada capital do reino de Comagena38 (Ver mapa I) situada no norte da Siacuteria agrave
margem direita do Eufrates (hoje Samsacirct) Comagena (Ver mapa III) era um pequeno reino
helenizado dominado inicialmente por Tibeacuterio entretanto Claacuteudio devolveu esse reino aos
antigos soberanos O Imperador Vespasiano reconquistou esse territoacuterio aproximadamente
cinquenta anos antes do nascimento de Luciano
A populaccedilatildeo de Samoacutesata tinha origem iracircnico-semiacutetica e sua helenizaccedilatildeo data do
primeiro seacuteculo aC As principais instituiccedilotildees permaneceram com caraacuteter greco-iraniano
mesmo sob o domiacutenio romano (BRANDAtildeO 2001 328) Infelizmente como afirma
Christopher P Jones (1986 03-23) haacute uma ausecircncia de escavaccedilotildees arqueoloacutegicas na regiatildeo o
que eacute lamentaacutevel uma vez que neste local havia uma encruzilhada fluvial e diversas estradas
que davam acesso por um lado agrave Mesopotacircmia agrave Peacutersia e agrave Iacutendia e de outro agrave Ciliacutecia e agrave
Capadoacutecia e naturalmente agrave Siacuteria (Ver mapa III)
A conquista de Comagena se insere em um movimento histoacuterico maior das rivalidades
intensas com a Paacutertia Pouco a pouco o Impeacuterio Romano absorveu alguns reinos clientes
helenizados como Capadoacutecia (44) Comagena (72) e Araacutebia Nabatea (106) A cidade-estado
de Palmira conhecida no mundo antigo por seu esplendor e riqueza foi incorporada ao Impeacuterio
no seacuteculo II Do mesmo modo o reino de Osroene cuja capital era Edessa foi convertido em
colocircnia por Caracala (211-217) (MILLAR 1970 101-102)
Havia quatro legiotildees estacionadas na Siacuteria (ver mapa IV) Fergus Millar ressalta que ldquoas
fotografias aeacutereas revelaram uma ampla rede de fortalezas romanas no deserto siacuterio e na
36O aticismo eacute uma das principais caracteriacutesticas estiliacutesticas da Segunda Sofiacutestica e consiste na imitaccedilatildeo do grego
escrito na Aacutetica durante o periacuteodo claacutessico da cultura helecircnica basicamente os seacuteculos V e IV a C 37 Lucianus eacute a forma latina que deriva Luciano em Portuguecircs ele utiliza em vaacuterios diaacutelogos a forma Lykinos que
provavelmente eacute uma versatildeo em grego de seu nome 38 Luciano natildeo descreveu sua terra natal natildeo falou das gigantescas esculturas dos reis de Camogema nem de sua
paisagem tanto que Hadrien Bru (2011 94) faz apenas uma citaccedilatildeo da obra de Luciano em seu trabalho sobre o
poder imperial nas proviacutencias siacuterias
35
Mesopotacircmiardquo (MILLAR 1970 102) Paulatinamente essa concentraccedilatildeo de forccedilas foi dispersa
em posiccedilotildees fortificadas pelo limes A presenccedila de legiotildees estacionadas reflete a animosidade
constante que envolve essa regiatildeo do Impeacuterio e dois pontos devem ser ressaltados a presenccedila
dos Partos e algumas rotas comerciais importantes (ver mapas II e III)
A XVI Legiatildeo Flaacutevia estava estacionada proacutexima agrave cidade de Samoacutesata desde 72
(PETTIT 1989 112) denotando o contato dos moradores com o poder romano por meio das
relaccedilotildees socioeconocircmicas e culturais estabelecidas com os soldados oriundos de outras partes
do Impeacuterio o que era fundamental para proteger o limes oriental de uma possiacutevel invasatildeo
paacutertica (GRIMAL 1973 104) Isso representa a presenccedila do poder imperial nessa regiatildeo
Os soldados presentes em uma legiatildeo natildeo ficam ociosos esperando uma batalha Yann
Le Bohec argumenta que os soldados eram matildeo de obra relativamente qualificada que natildeo
apresentava custos ao Estado visto que eles podiam ser responsaacuteveis pelo correio oficial pela
proteccedilatildeo dos cobradores de impostos e ainda trabalhar na construccedilatildeo e na manutenccedilatildeo de obras
puacuteblicas39 O autor ainda enfatiza a interaccedilatildeo econocircmica a partir do gasto dos soldos dos
militares a difusatildeo religiosa de determinados cultos religiosos e a romanizaccedilatildeo do Impeacuterio Haacute
um processo dialoacutegico da interaccedilatildeo de soldados das mais distintas regiotildees imperiais com a
populaccedilatildeo local e a cultura grega e latina faz a ponte entre os costumes locais e aqueles que
chegam para servir na XVI Legiatildeo Flaacutevia (LE BOHEC 2007 21 327) Essa legiatildeo permite o
estabelecimento de relaccedilotildees poliacuteticas (jaacute que a mesma representa a forccedila militar do Impeacuterio)
interaccedilotildees econocircmicas culturais e religiosas travadas entre representantes romanos e moradores
provinciais Nesse contexto nasceu Luciano de Samoacutesata autor que sempre enfatizou em seus
escritos sua origem siacuteria
Para auxiliar os historiadores que desejam construir uma biografia de Luciano restam
apenas as referecircncias impliacutecitas em seus escritos Jacques Schwartz (1965) estabeleceu em sua
Biographie de Lucien de Samosate a mais coerente dataccedilatildeo para as obras de Luciano Alguns
eventos podem ser usados como terminus post quem ou ante quem como as Guerras Paacuterticas40
(161) e a morte de Peregrino (169) No opuacutesculo Alexandre ou o falso profeta Schwartz e
39Por exemplo em fevereiro do ano de 107 foi construiacuteda uma calccedilada em Eilat atraveacutes da Bostra ateacute o limite
com a Siacuteria proacuteximo de Damasco Essa obra foi encaminhada por soldados romanos (MILLAR 1970 110) 40 Ana Teresa Marques Gonccedilalves resume essa Guerra nos seguintes termos ldquoOs partos atacaram ldquoestados-
clientesrdquo romanos em 161-162 dC jaacute no governo colegiado de Marco Aureacutelio e Luacutecio Vero O rei Vologeso III
invadiu a Armecircnia e a Siacuteria procurando expandir os domiacutenios territoriais partos Foi o proacuteprio Luacutecio Vero quem
foi agrave frente das legiotildees romanas enviadas para combater mais uma vez os partos Novamente Ctesifonte foi
invadida pilhada e destruiacuteda mas a regiatildeo permaneceu fora do limes pois os partos aceitaram assinar um acordo
no qual devolviam as regiotildees conquistadas previamente e entregavam aos romanos a cidade de Doura-Europos
(166 dC) A cidade de Carras de tatildeo maacute lembranccedila para os romanos foi reduzida agrave condiccedilatildeo de colocircnia Aleacutem
disso uma peste dizimou boa parte das legiotildees que estavam no Oriente e os Quados e Marcomanos atacaram a
regiatildeo do Reno-Danuacutebio A ameaccedila parta permaneceu assim esporaacutedicardquo (GONCcedilALVES 2005 16)
36
Bompaire apontam mais um indiacutecio importante a referecircncia a Marco Aureacutelio como ldquoΘεograveς
Μάρκοςrdquo (divino Marcos) (Luciano Alex 48) do que inferem que Luciano teria sobrevivido
ao Imperador filoacutesofo Entretanto o siacuterio poderia estar escarnecendo dos poderes do Imperador
por meio de uma fina ironia jaacute que esse foi enganado por um charlatatildeo41 Outro ponto que
enfraquece a argumentaccedilatildeo do lucianista eacute que no Impeacuterio Romano do Oriente o governante
era tratado como Θεograveς (deus) naturalmente assim como tinha o mesmo status de um Faraoacute na
proviacutencia do Egito (PRICE 1984 86 SARTRE 1994 110)
Era comum que o Imperador fosse tratado por Θεograveς logo o uso de Luciano pode apenas
expressar isso pois essa forma era amplamente usada no Oriente Sabemos que
tradicionalmente no Ocidente Imperador vivo natildeo poderia ser cultuado como deus mas seu
genius era divinizado ou seja os elementos miacuteticos que o vinculavam agraves divindades tornavam
a sua famiacutelia divina (BICKERMAN 19729) Natildeo podemos esquecer que apoacutes a morte muitos
Imperadores haviam sido consagrados deuses por meio da consecratio entretanto na traduccedilatildeo
cultural essas sutilezas se perdem com muita facilidade e a compreensatildeo eacute feita a partir dos
padrotildees culturais existentes No caso do Oriente o Imperador tem seu culto influenciado pelos
reis heleniacutesticos que sucederam Alexandre Magno
Christopher P Jones afirma que Luciano esteve na corte de Lucio Vero durante a
campanha militar deste Princeps (JONES 1986 68-77) Tal premissa foi aceita por alguns
autores que reverberam em uacuteltimo grau as consequecircncias desse fato O mais recente caso eacute do
historiador francecircs Alain Billault (2010146-148) que analisou alguns escritos luciacircnicos como
composiccedilotildees de um escritor cortesatildeo feitas para bajular o Imperador Lucio Vero e em seguida
conseguir um cargo na administraccedilatildeo imperial no Egito
Natildeo podemos menosprezar essa nomeaccedilatildeo Essa proviacutencia era uma das mais
importantes do Impeacuterio Romano pois juntamente com a Siciacutelia era considerada um dos
celeiros do mundo antigo Foi anexada ao Impeacuterio por Otaacutevio apoacutes a batalha naval do Actium
(31 aC) que derrotou a esquadra de Marco Antocircnio e Cleoacutepatra Augusto decidiu que a antiga
terra dos faraoacutes seria uma proviacutencia pessoal ou seja ela faria parte do patrimocircnio do Princeps
Todos os tributos recolhidos ali seriam enviados ao patrimonium caesaris ao inveacutes de ir para
o Aerarium Saturni42 Para viajar agraves terras egiacutepcias os membros da ordem senatorial
41 Luciano estaacute falando do ldquohomem divinordquo Alexandre de Abonotico que aos seus olhos eacute um charlatatildeo Neste
passo o siacuterio fala de um oraacuteculo enviado ao Imperador referente agrave guerra contra os germanos Logo a ideia da
presenccedila da ironia luciacircnica aqui se justifica pelo contexto A ediccedilatildeo da Loeb cuja traduccedilatildeo eacute de A M Hamom
natildeo marca em sua versatildeo para o inglecircs esse termo O que ocorre por exemplo na versatildeo espanhola publicada pela
Gredos de Joseacute Luis Navarro Gonzaacutelez e na do brasileiro Daniel Gomes Bretas 42 A ideia eacute que esses recursos sejam gastos com os cidadatildeos romanos em obras puacuteblicas no pagamento de legiotildees
abastecimento de cidades construccedilotildees puacuteblicas e festividades entre outras possibilidades O Imperador poderia se
37
precisavam da autorizaccedilatildeo expressa do Imperador Dada a importacircncia estrateacutegica da
arrecadaccedilatildeo de impostos o cargo de Prefeito do Egito era ocupado sempre por algueacutem muito
proacuteximo agrave corte imperial Os funcionaacuterios da administraccedilatildeo imperial no Egito eram membros
da ordem equestre
Sabemos que Luciano esteve no Egito graccedilas ao opuacutesculo Em defesa dos que
recebem salaacuterios (Luciano Apol 4) As premissas colocadas por Jones satildeo desdobradas de
maneira interessante por alguns eruditos como Billaut Luciano teria participado da corte de
Lucio Vero durante a guerra dos romanos contra os partos assumindo uma postura cortesatilde Ele
teria escrito alguns discursos bajulatoacuterios a Panteia amante do co-Imperador Billaut
conjectura que bajular a amante do Imperador seria uma forma indireta de atingir o governante
e assim abrir caminhos para benesses poliacuteticas como a indicaccedilatildeo a um cargo na administraccedilatildeo
da proviacutencia do Egito Ser nomeado para um cargo no Egito significava proximidade com
grupos que sustentavam diretamente o poder e a legitimidade do Imperador
Ele foi para Alexandria jaacute velho como ele mesmo diz no opuacutesculo Apologia aos que
recebem salaacuterio (Luciano Apol 4) Schwartz (1965 12-14) propotildee as datas de 170-175 Ele
parte de uma hipoacutetese fascinante mas que carece de comprovaccedilatildeo empiacuterica Esse autor afirma
que para ocupar um cargo destinado a um membro da ordem equestre sem experiecircncia Luciano
teria utilizado a influecircncia que tinha com o Prefeito do Egito Essa dataccedilatildeo eacute indicada pela
ocupaccedilatildeo do cargo por C Calvisius Statianus que seria proacuteximo dos ciacuterculos letrados fato que
sabemos por meio da correspondecircncia de Frontatildeo Mesmo sem haver quaisquer referecircncias nas
correspondecircncias de Frontatildeo (o autor tinha muita influecircncia jaacute que foi preceptor de Marco
Aureacutelio e trocou com ele inuacutemeras missivas) a hipoacutetese de um viacutenculo entre o Imperador
Frontatildeo Calvisius Statianus e Luciano eacute estabelecida O fasciacutenio dessa hipoacutetese natildeo suporta o
exame da documentaccedilatildeo
O siacuterio descreve assim sua estada e suas funccedilotildees nas antigas terras dos faraoacutes
() na vida privada tenho igualdade de direitos e em puacuteblico participo do mais
alto niacutevel de comando e colaboro no que me diz respeito E se olhares
pensaraacutes que natildeo eacute muito pequena minha parte no governo do Egito iniciar
processos ordenaacute-los devidamente escrever memoacuterias do que se fez e disse
moderar as intervenccedilotildees dos litigantes manter com maior clareza e o maior
detalhe com maior fidelidade os decretos do governador e publicaacute-los para
que se conservem para sempre E o salaacuterio natildeo vem de um particular mas sim
do Imperador tampouco eacute pequeno mas muitos talentos Para o futuro as
utilizar desses recursos das mais variadas formas e propagandear tudo que fez Por exemplo os capiacutetulos XX-
XXIII das Res Gestae Diui Augusti indicam as mais diversas formas de investir os recursos egiacutepcios (Augusto
RGDA XX-XXIII)
38
esperanccedilas natildeo satildeo pequenas se acontecer o normal supervisar uma proviacutencia
ou algumas outras questotildees imperiais (Luciano Apol 14) 43
Por meio dessa descriccedilatildeo e do cotejo com outras fontes44 os especialistas debatem
o cargo que Luciano ocupou M H-G Pflaum (1959 282) eminente especialista na epigrafia
referente a carreiras de membros da ordem equestre propocircs em 1959 a partir de anaacutelises da
epigrafia de um cursus equestre que ele teria sido Archistator Praefecti Aegypti
Jaacute Hans Vander Lest (1985 79-82) egiptoacutelogo especialista em papirologia do
periacuteodo romano propotildee o cargo de εigraveσαγωγεύς Eacute interessante notar que Luciano usa a palavra
εigraveσάγειν Trata-se de um trabalho infrutiacutefero cujas conclusotildees satildeo por demais hipoteacuteticas Alain
Martin defende que archistator seria um cargo mais apropriado a um membro da ordem
equestre (MARTIN 2010 194-195) Tais palavras poderiam inclusive designar a mesma
funccedilatildeo dado que uma estaacute em latim e a outra em grego
Esse debate sobre a presenccedila de Luciano na corte de Lucio Vero e sua ida ao Egito
foi hipertrofiado na anaacutelise de alguns textos Alain Billault investiga esses opuacutesculos a partir da
premissa de serem textos que Luciano teria escrito com o intuito de agradar ao co-Imperador
O que mais nos causa estranheza eacute que ao ler os textos Sobre a Danccedila Os retratos Em defesa
dos retratos e Como se deve escrever a Histoacuteria natildeo encontramos nenhuma alusatildeo agrave presenccedila
de Luciano na corte do Imperador
O primeiro texto eacute uma defesa da pantomima45 Billault traccedila a seguinte hipoacutetese
tendo em vista que o escritor da Histoacuteria Augusta nos informa que Lucio Vero gostava desses
espetaacuteculos o exerciacutecio retoacuterico luciacircnico de defesa desta arte teria o intuito de bajular
indiretamente o Princeps (BILLAULT 2010 148) Tal hipoacutetese natildeo se sustenta jaacute que
ldquodefender o indefensaacutevelrdquo era o mote para diversos autores tendo em vista aprimorar a teacutecnica
retoacuterica e explorar os recursos argumentativos Natildeo se trata de uma anormalidade luciacircnica
43 ldquo[] τὰ μὲν οἴκοι ἰσότιμα ἡμῖν δημοσίᾳ δὲ τῆς μεγίστης ἀρχῆς κοινωνοῦμεν καὶ τὸ μέρος συνδιαπράττομεν
ἔγωγ οὖν εἰ σκέψαιο δόξαιμ ἄν σοι οὐ τὸ σμικρότατον τῆς Αἰγυπτίας ταύτης ἀρχῆς ἐγκεχει ρίσθαι τὰς δίκας
εἰσάγειν καὶ τάξιν αὐταῖς τὴν προσήκουσαν ἐπιτιθέναι καὶ τῶν πραττομένων καὶ λεγομένων ἁπαξαπάντων
ὑπομνήματα γράφεσθαι καὶ τάς τε ῥητορείας τῶν δικαιολογούντων ῥυθμίζειν καὶ τὰς τοῦ ἄρχοντος γνώσεις πρὸς
τὸ σαφέστατον ἅμα καὶ ἀκριβέστατον σὺν πίστει τῇ μεγίστῃ διαφυλάττειν καὶ παραδιδόναι δημοσίᾳ πρὸς τὸν ἀεὶ
χρόνον ἀποκεισομένας καὶ ὁ μισθὸς οὐκ ἰδιωτικός ἀλλὰ παρὰ τοῦ βασιλέως οὐ σμικρὸς οὐδὲ οὗτος ἀλλὰ
πολυτάλαντος καὶ τὰ μετὰ ταῦτα δὲ οὐ φαῦλαι ἐλπίδες εἰ τὰ εἰκότα γίγνοιτο ἀλλὰ ἔθνος ἐπιτραπῆναι ἤ τινας
ἄλλας πράξεις βασιλικάςrdquo 44 Por exemplo as inscriccedilotildees paleograacuteficas contendo o cursus honorum de funcionaacuterios que estavam no Egito
assim como em papiros do periacuteodo romano 45 Pantomima era uma forma de entretenimento dramaacutetico no qual um tema (geralmente mitoloacutegico) era
apresentado Um ator danccedilava em silecircncio acompanhado por instrumentos musicais e um coro O ator usava
diferentes maacutescaras para mudar os papeis aleacutem de roupas luxuosas Nesta performance ligavam-se representaccedilatildeo
teatral e danccedila Os gregos marginalizavam esse tipo de arte e por esse motivo viam com maus olhos a inscriccedilatildeo
nos concursos Entretanto a mesma tinha muito prestiacutegio entre os romanos que a conheciam desde o ano 22 aC
39
mesmo na Segunda Sofiacutestica a construccedilatildeo deste tipo de discurso Muito pelo contraacuterio era uma
praacutetica recorrente mesmo na obra de Luciano Lembremos que ele constroacutei um Elogio agrave mosca
por exemplo
Os outros dois opuacutesculos Os retratos e Em defesa dos retratos seriam direcionados
agrave descriccedilatildeo de retratos de Panteia a amante de Luacutecio Vero o que tambeacutem eacute bastante conjectural
Por fim o tratado sobre a escrita da Histoacuteria pode inclusive ser visto como um texto contra o
Impeacuterio como defende Brandatildeo (2009 145) Retornaremos a esse aspecto quando falarmos da
presenccedila de Luciano no Egito ainda neste capiacutetulo
Luciano teria permanecido em Antioquia e visitou Abonotico e Samoacutesata Em sua
visita agrave cidade natal pronuncia o discurso O sonho ou sobre a vida de Luciano A partir de 165
teria vivido em Alexandria no Egito local em que teria ocupado um cargo na administraccedilatildeo
imperial Em 175 retorna mais uma vez a Atenas Sua morte deve ter ocorrido apoacutes 181
Ao interrogar o corpus luciacircnico sobre a vida desse escritor natildeo podemos esquecer que
Luciano natildeo era comprometido com a factualidade dos eventos observe-se que isso natildeo o torna
algueacutem que escreve desvinculado de sua realidade como Jacques Bompaire (2000) sugere
Segundo tese defendida por esse autor o siacuterio escreveria imerso em sua biblioteca em seus
livros e a realidade externa natildeo seria um elemento relevante Nessa perspectiva o trabalho de
criaccedilatildeo luciacircnica deveria ser analisado por meio dos desdobramentos do conceito de miacutemesis
tanto na tradiccedilatildeo antiga quanto nos escritos luciacircnicos Nesta Tese objetivamos dar outro
formato agraves anaacutelises dos escritos luciacircnicos Uma vez que o imenso conhecimento advindo do
estudo dos textos canocircnicos da tradiccedilatildeo cultural helecircnica natildeo impede que esse patrimocircnio seja
pensado como forma de refletir sua realidade devemos questionar se a dedicaccedilatildeo ao estudo
desses seria um indicativo de desvinculaccedilatildeo literaacuteria com seu mundo
Luciano escolhe contar ldquomentiras variadas de maneira convincente e verossiacutemilrdquo
(LUCIANO V H I 2)46 47 assim as informaccedilotildees biograacuteficas ficam em uma zona obscura
entre as condiccedilotildees materiais de existecircncia e os eventos vividos pelo autor que os escreve a
partir de criteacuterios de ficcionalidade valorizando as relaccedilotildees entre a forma e o conteuacutedo
apresentado Nesse sentido nossas questotildees natildeo estatildeo voltadas simplesmente para a
determinaccedilatildeo de lugares e datas na curta duraccedilatildeo mas para a compreensatildeo de elementos
conjunturais (o papel deste escritor e o diaacutelogo de seus discursos com seu tempo) e estruturais
(a identidade helecircnica no seio do Impeacuterio Romano) Assim a vida de Luciano soacute nos interessa
46 Optamos por citar o texto luciacircnico pelos tiacutetulos abreviados de sua versatildeo latina Nesse caso usamos a traduccedilatildeo
Das Narrativas Verdadeiras de Lucia Sano (2008) 47 ldquoψεύσματα ποικίλα πιθανῶς τε καὶ ἐναλήθωςrdquo
40
se ela puder contribuir para a compreensatildeo desses elementos bem como sublinhar os valores
por ele apresentados
Mesmo com essas ressalvas necessaacuterias eacute importante sublinhar que a imagem presente
em seus escritos permite analisar alguns valores que ele provavelmente gostaria de enfatizar
como tambeacutem temos acesso a alguns indiacutecios sobre o lugar que ocupava na sociedade
Outro fato relevante eacute que sua liacutengua materna natildeo era o grego como afirma no opuacutesculo
Dupla Acusaccedilatildeo Falava uma liacutengua baacuterbara que natildeo sabemos qual seria Nesse diaacutelogo a
Retoacuterica personificada48 afirma ldquotecirc-lo encontrado quando era muito jovenzinho ainda baacuterbaro
de liacutengua e vestido em uma capa siacuteria vagando pela Jocircnia sem saber ainda o que fazer de sirsquo ndash
e ldquotendo-o entatildeo desposado na minha tribo o inscrevi fraudulentamente e tornei-o cidadatildeordquo49
(Luciano Bis acc 27)
No processo formativo desse autor devemos ressaltar as inuacutemeras viagens que ele fez
Jocircnia (Bis acc 27) Macedocircnia (Scyth) Traacutecia (Fug) Itaacutelia (Bis acc Fug Electr) Gaacutelia (Bis
acc Herc) Antioquia (Im Pro im) Samoacutesata (Somn) Abonotico (Alex) Egito (Apol)50
Como podemos observar Luciano conheceu muitas localidades diferentes Nessas diferentes
cidades ele exerceu a profissatildeo de advogado e fez declamaccedilotildees puacuteblicas
Cada vez que o siacuterio ia a uma localidade diferente ele reconstruiacutea sua imagem do
mundo Como afirma Franccedilois Hartog em seu livro Memoacuteria de Ulisses ldquoa Greacutecia estaacute em
toda parterdquo (HARTOG 2004225) ou seja um viajante grego acaba ensinando mais que
aprendendo ao viajar pois entende que reencontra sua cultura por onde ande Essa identidade
viajante eacute um elemento muito interessante que precisa ser ressaltado
Entretanto a imagem mais completa que Luciano deixou aos seus leitores estaacute expressa
no opuacutesculo O sonho ou sobre a vida de Luciano em que ele conta como seguiu os caminhos
da Paideia Natildeo se trata de uma biografia no estilo plutarquiano pois temos aqui um texto
alegoacuterico no qual o siacuterio nos conta que seus pais preocupados com seu destino encaminharam-
lhe para o ateliecirc de escultura do seu tio o que natildeo foi uma boa experiecircncia jaacute que destruiu um
bloco de maacutermore e foi surrado pelo tio Em casa ele teve um sonho com a Escultura e a Paideia
personificadas no qual elas disputavam quem poderia lhe dar um futuro melhor O siacuterio entatildeo
48 Trata-se de uma caracteriacutestica importante nos diaacutelogos luciacircnicos a personificaccedilatildeo de sentimentos 49 ldquoἘγὼ γάρ ὦ ἄνδρες δικασταί τουτονὶ κομιδῇ μειράκιον ὄντα βάρβαρον ἔτι τὴν φωνὴν καὶ μονονουχὶ κάνδυν
ἐνδεδυκότα εἰς τὸν Ἀσσύριον τρόπον περὶ τὴν Ἰωνίαν εὑροῦσα πλαζόμενον ἔτι καὶ ὅ τι χρήσαιτο ἑαυτῷ οὐκ
εἰδότα παραλαβοῦσα ἐπαίδευσα []εἶτα ἀγαγοῦσα αὐτὸν εἰς τοὺς φυλέτας τοὺς ἐμοὺς παρενέγραψα καὶ ἀστὸν
ἀπέφηνα []rdquo 50 As inuacutemeras viagens natildeo satildeo apresentadas diretamente em sua obra Assim ele natildeo escreveu um relato de
viagem com exceccedilatildeo das Narrativas verdadeiras Poreacutem esse texto natildeo tem a menor pretensatildeo de ser um relato
verdadeiro visto que haacute um pacto colocado no iniacutecio em que o leitor sabe que tudo que estaacute escrito adiante eacute
mentiroso
41
escolheu o caminho das Letras que o fez conhecido pelo Impeacuterio
A seguir analisamos as menccedilotildees posteriores agrave vida e agrave obra de Luciano com ecircnfase
principalmente naquelas produzidas no mundo bizantino Temos o objetivo de evidenciar como
essas leituras criam alguns topoi que permanecem entre os leitores de Luciano
12 Algumas consideraccedilotildees sobre as primeiras referecircncias a Luciano na tradiccedilatildeo
ocidental
No toacutepico anterior refletimos sobre a regiatildeo na qual Luciano nasceu e viveu seus
primeiros anos O proacuteximo passo em nossa anaacutelise eacute pensar as mais antigas referecircncias que
temos acerca da biografia de Luciano de Samoacutesata e de seus escritos Tal investigaccedilatildeo tem o
fito de evidenciar linhas interpretativas referentes aos discursos desse escritor presentes na
tradiccedilatildeo ocidental
Entre os contemporacircneos do siacuterio temos apenas uma referecircncia a ele em um escrito de
Galeno51 justamente no texto em que trata do tema das epidemias em Hipoacutecrates Trata-se de
um texto de que a criacutetica especializada cuida com cautela jaacute que sua existecircncia deve-se a uma
traduccedilatildeo aacuterabe (BOMPAIRE 2003 XIV MOREIRA 201111)
Filoacutestrato de Lemos que escreveu A vida dos sofistas natildeo cita o samosatense o que
constitui uma questatildeo complexa uma vez que foi nesse livro que ele cunhou a expressatildeo
segunda sofiacutestica a qual foi largamente utilizada para tratar da cultura literaacuteria grega produzida
no Impeacuterio Romano O silecircncio sobre Luciano eacute quebrado muito sutilmente por autores do IV
seacuteculo como Eunaacutepio de Sardes52 que afirma ldquoLuciano um homem que levava o rir a seacuterio
escreveu a vida de Democircnax um filoacutesofo daquele tempo e neste livro e em outros poucos foi
seacuterio do comeccedilo ao fimrdquo (Eunaacutepio Vi So 454)53
Trata-se de apenas uma frase mas eacute interessante observar como Eunaacutepio ao construir
um panorama dos filoacutesofos e sofistas tal como havia feito Filoacutestrato de Lemmos tem a
necessidade de justificar que Luciano era seacuterio ao produzir o riso e que havia escrito uma vida
de Demonax54 Um ponto eacute importante Luciano provavelmente era conhecido mas seus
51 Galeno de Peacutergamo foi um meacutedico grego que viveu entre 129- 204 dC e foi meacutedico dos Imperadores Marco
Aureacutelio Cocircmodo e Septiacutemio Severo (BOWERSOCK 1969 135) 52 Para uma contextualizaccedilatildeo mais elaborada do livro A vida dos Filoacutesofos e dos Sofistas ver a Dissertaccedilatildeo de
Mestrado de Joseacute Petruacutecio de Farias Juacutenior intitulada Sofistas e Filoacutesofos na administraccedilatildeo imperial o olhar de
Eunaacutepio sobre a unidade poliacutetica do Impeacuterio Romano no seacuteculo IV D C (2007) 53ldquoΛουκιανὸς δὲ ὁ ἐκ Σαμοσάτων ἀνὴρ σπουδαῖος ἐς τὸ γελασθῆναι Δημώνακτος φιλοσόφου κατ ἐκείνους τοὺς
χρόνους βίον ἀνέγραψεν ἐν ἐκείνῳ τε τῷ βιβλίῳ καὶ ἄλλοις ἐλαχίστοις δι ὅλου σπουδάσαςrdquo 54Esse texto luciacircnico eacute a uacutenica fonte que temos sobre esse filoacutesofo pois natildeo sabemos se ele existiu ou se eacute produto
da idealizaccedilatildeo do siacuterio
42
escritos dificultavam sua inclusatildeo nos modelos estabelecidos Esse problema de inserccedilatildeo em
um paradigma do que deveria ser um sofista ou um filoacutesofo explicaria a exclusatildeo filostratiana
Nesse sentido tanto Eunaacutepio quanto Filoacutestrato tinham duacutevidas se o poliacutegrafo Luciano encaixar-
se-ia em um modelo de sofista pois sua obra o faz transcender tanto na temaacutetica quanto no
gecircnero a essa categoria
Lactacircncio cita rapidamente o nome de Luciano no IX livro de suas Instituiccedilotildees Divinas
justamente aquele que trata do heroacutei Heacuteracles55 O autor cristatildeo analisa como esse heroacutei
apresenta uma conduta perniciosa e cita o samosatense a fim de fornecer autoridade ao seu
discurso jaacute que ldquoele natildeo poupou nem homens nem deuses56rdquo (Lactacircncio Inst Div I 9)
Lactacircncio termina dizendo de maneira irocircnica que ele teve os louvores dos deuses57 Assim a
citaccedilatildeo do siacuterio tem o intuito de desqualificar as accedilotildees dos deuses pagatildeos e de mostrar como
essas estoacuterias poderiam ser narradas por diversos autores Em uma sociedade na qual a oralidade
predomina sobre a escrita o discurso oral ainda tem a aura que lhe fornece autoridade
Sabemos que Isidoro de Peluacutesia faz referecircncias a Luciano colocando-o ldquodentre os
filoacutesofos ciacutenicosrdquo (Apud BRANDAtildeO sd 6) Entretanto nenhum dos escritores antigos
citados anteriormente fazem referecircncia agrave vida do siacuterio com elementos diferentes daqueles
encontrados em seus escritos (BRANDAtildeO 200116)
Existem dois verbetes do periacuteodo bizantino que fazem referecircncia aos seus escritos O
primeiro encontra-se na Biblioteca de Foacutecio58 No coacutedice 128 o Patriarca de Constantinopla
faz uma anaacutelise da obra do siacuterio nos seguintes termos
Lido de Luciano o texto sobre Falaacuteris e diferentes diaacutelogos dos mortos e das
prostitutas aleacutem de outros livros sobre diferentes assuntos nos quais em
quase todos faz comeacutedia dos costumes dos gregos tanto do erro e da loucura
de sua fabricaccedilatildeo dos deuses quanto de sua irresistiacutevel tendecircncia para a
intemperanccedila e a impudecircncia as estranhas opiniotildees e ficccedilotildees de seus poetas
a decorrente erracircncia de sua organizaccedilatildeo poliacutetica o curso anocircmalo e as
vicissitudes do resto de suas vidas o caraacuteter jactancioso de seus filoacutesofos
pleno nada mais que de hipocrisia e vatildes opiniotildees Em suma como dissemos
sua ocupaccedilatildeo eacute fazer em prosa comeacutedia dos gregos
Parece ser dos que natildeo respeitam absolutamente nada pois fazendo comeacutedia
55 Em nossa Dissertaccedilatildeo de Mestrado analisamos a presenccedila do mito do heroacutei Heacuteracles em alguns escritos de
Luciano (ARANTES JUNIOR 2008)
56 ldquoqui diis et hominibus non pepercitrdquo 57 A ironia nesses textos eacute muito sutil Trata-se de um topos literaacuterio dizer que Luciano natildeo acreditava em nada
ou seja era um ceacutetico Dioacutegenes Laeacutercio nos permite sugerir uma ironia mais sutil na vida de Pirron de Elis
fundador da escola ceacutetica Ele conta que em uma ocasiatildeo o filoacutesofo ficou agitado porque um catildeo lhe investiu
respondeu aos que o criticaram que era difiacutecil abandonar inteiramente a debilidade humana (Diogenes Laercio De
vitis IX 66) A tradiccedilatildeo registra o viacutenculo entre ceacuteticos e catildees assim confundir posturas filosoacuteficas natildeo era difiacutecil
em meio agrave tradiccedilatildeo grega recuperada no Impeacuterio Bizantino por esse enciclopedista 58Patriarca de Constantinopla entre 858 e 886 ldquoSeu livro eacute constituiacutedo por anotaccedilotildees de leitura incluindo resumos
e comentaacuterios de obras Luciano eacute referido em mais de um pontordquo (MOREIRA 2011 12)
43
e brincando com as crenccedilas alheias ele proacuteprio natildeo define a que honra a natildeo
ser que algueacutem diga que sua crenccedila eacute em nada crer
Todavia sua expressatildeo eacute excelente faz ele uso de um estilo distinto corrente
e enfaticamente brilhante mais que nenhum outro ele ama a claridade e a
pureza associadas a brilho e grandeza proporcionada Sua composiccedilatildeo eacute tatildeo
harmoniosa que parece ao que o lecirc que ele natildeo diz palavras ndash mas uma certa
melodia agradaacutevel sem canto aparente para os ouvidos saboreiam os
ouvintes
Em resumo como dissemos seu discurso eacute excelente mas natildeo conveacutem aos
argumentos com os quais ele mesmo sabe que brinca ridicularizando-os Que
ele proacuteprio eacute dos que natildeo creem em absolutamente nada a epiacutegrafe de seu
livro daacute a entender pois diz assim
Eu Luciano isto escrevi coisas antigas e estuacutepidas sabendo pois estuacutepido eacute
tudo para os homens ateacute o que parece saacutebio
Entre os homens natildeo haacute em absoluto nenhuma inteligecircncia mas o que
admiras isso para outros eacute risiacutevel (FOacuteCIO Biblio 128)59
O Patriarca marca nesse pequeno texto dois elementos que seratildeo recorrentes em toda
a fortuna criacutetica do corpus luciacircnico O primeiro deles diz respeito ao fato de que Luciano teria
sido um criacutetico mordaz da religiatildeo Nesse documento ecoa a anguacutestia de um escritor cristatildeo
cuja ambiguidade fica latente jaacute que de um lado ele concordaria com os golpes desferidos por
Luciano agrave religiosidade dos gregos e por outro lado ele compreende que o cristianismo natildeo
moveria a atenccedilatildeo do autor de Falaacuteris Ele eacute daqueles que ldquonatildeo respeitam absolutamente nadardquo
O siacuterio natildeo crecirc em nada Imagens como essa seratildeo recorrentes por exemplo em Marcel Caster
cujo trabalho marcou profundamente os estudos luciacircnicos (CASTER 1937)
O outro elemento que Foacutecio apresenta eacute o grego limpo de Luciano Sabemos que desde
o seacuteculo XV seus textos foram transcritos em manuais para o aprendizado da liacutengua helecircnica
Certamente essa qualidade estiliacutestica tem grande meacuterito na conservaccedilatildeo de tantos textos ligados
a esse escritor
59 ldquoἈνεγνώσθη ltΛουκιανοῦgt ὑπὲρ Φαλάριδος καὶ νεκρικοὶ καὶ ἑταιρικοὶ διάλογοι διάφοροι καὶ ἕτεροι διαφόρων
ὑποθέσεων λόγοι ἐν οἷς σχεδὸν ἅπασι τὰ τῶν Ἑλλήνων κωμῳδεῖ τήν τε τῆς θεοπλαστίας αὐτῶν πλάνην καὶ
μωρίαν καὶ τὴν εἰς ἀσέλγειαν ἄσχετον ὁρμὴν καὶ ἀκρασίαν καὶ τῶν ποιητῶν αὐτῶν τὰς τερατώδεις δόξας καὶ
ἀναπλάσεις καὶ τὸν ἐντεῦθεν πλάνον τῆς πολιτείας καὶ τοῦ ἄλλου βίου τὴν ἀνώμαλον περιφορὰν καὶ τὰς
περιπτώσεις καὶ τῶν φιλοσόφων αὐτῶν τὸ φιλόκομπον ἦθος καὶ μηδὲν ἄλλο πλὴν ὑποκρίσεως καὶ κενῶν
δοξασμάτων μεστόν καὶ ἁπλῶς ὡς ἔφημεν κωμῳδία τῶν Ἑλλήνων ἐστὶν αὐτῷ ἡ σπουδὴ ἐν λόγῳ πεζῷ
Ἔοικε δὲ αὐτὸς τῶν μηδὲν ὅλως πρεςβευόντων εἶναι τὰς γὰρ ἄλλων κωμῳδῶν καὶ διαπαίζων δόξας αὐτὸς ἣν
θειάζει οὐ τίθησι πλὴν εἴ τις αὐτοῦ δόξαν ἐρεῖ τὸ μηδὲν δοξάζειν
Τὴν μέντοι φράσιν ἐστὶν ἄριστος λέξει εὐσήμῳ τε καὶ κυρίᾳ καὶ τῷ ἐμφατικῷ διαπρεπούσῃ κεχρημένος
εὐκρινείας τε καὶ καθαρότητος μετά γε τοῦ λαμπροῦ καὶ συμμέτρου μεγέθους εἴ τις ἄλλος ἐραστής Συνθήκη τε
αὐτῷ οὕτως ἥρμοσται ὥστε δοκεῖν τὸν ἀναγινώσκοντα μὴ λόγους λέγειν ἀλλὰ μέλος τι τερπνὸν χωρὶς ἐμφανοῦς
ᾠδῆς τοῖς ὠσὶν ἐναποστάζειν τῶν ἀκροατῶν Καὶ ὅλως ὥσπερ ἔφημεν ἄριστος ὁ λόγος αὐτῷ καὶ οὐ πρέπων
ὑποθέσεσιν ἃς αὐτὸς ἔγνω σὺν τῷ γελοίῳ διαπαῖξαι
Ὅτι δὲ αὐτὸς τῶν μηδὲν ἦν ὅλως δοξαζόντων καὶ τὸ τῆς βίβλου ἐπίγραμμα δίδωσιν ὑπολαμβάνειν Ἔχει γὰρ
ὧδε Λουκιανὸς τάδ ἔγραψα παλαιά τε μωρά τε εἰδώς μωρὰ γὰρ ἀνθρώποις καὶ τὰ δοκοῦντα σοφά κοὐδὲν ἐν
ἀνθρώποισι διακριδόν ἐστι νόημα ἀλλ ὃ σὺ θαυμάζεις τοῦθ ἑτέροισι γέλωςrdquo
44
O outro documento que temos eacute o verbete anocircnimo da Suda60 uma grande enciclopeacutedia
No verbete Λ de nuacutemero 683 resume-se a vida de Luciano da seguinte maneira
Luciano samosatense o chamado blasfemo ou difamador ndash ou ateu para dizer
mais ndash porque em seus diaacutelogos atribuiu ser risiacutevel ateacute o que se diz sobre as
divindades Era de iniacutecio advogado em Antioquia na Siacuteria mas natildeo tendo
tido sucesso voltou-se para a logografia e escreveu infindaacuteveis obras Diz-se
ter sido morto por catildees posto que foi contaminado pela raiva contra a verdade
pois na vida de Peregrino o infame atacou o cristianismo e blasfemou contra
o proacuteprio Cristo Por isso tambeacutem pagou com a raiva a pena devida neste
mundo e no futuro sua heranccedila seraacute o fogo eterno na companhia de Satanaacutes
(SUDA Λ 683)61
Novamente o problema da religiosidade de Luciano aparece haja vista a imagem de
increacutedulo que paira sobre esse escritor Observamos que essa permanecircncia biograacutefica estaacute
presente desde a Antiguidade O siacuterio eacute aquele que ri das coisas da divindade Outro topos
literaacuterio eacute a morte pelo ataque de catildees62
A trajetoacuteria de Luciano eacute contada com o intuito de servir de exemplo o que se justifica
pelo ambiente de produccedilatildeo literaacuteria bizantina marcado profundamente pela influecircncia da
cristandade Assim morreu dilacerado por catildees por ser inimigo da verdade Observe-se que
vaacuterios dos personagens luciacircnicos satildeo representantes da filosofia ciacutenica e podemos ver
inclusive que Luciano tem retratos bem positivos de personalidades ciacutenicas (Demonax
Dioacutegenes Menipo por exemplo) Morrer dessa forma era ironizar sua existecircncia Aquele que
escarneceu as coisas sagradas morre de uma maneira que produz o riso Um catildeo morto por catildees
(MOREIRA 2011 15) Observe-se que natildeo haacute nesses comentadores bizantinos o desejo de
serem precisos em incluir Luciano em uma determinada escola filosoacutefica haacute inclusive certa
confusatildeo
A cada dia novos pesquisadores investigam a presenccedila de Luciano na tradiccedilatildeo ocidental
Como afirma Brandatildeo trata-se de um (des)conhecido autor jaacute que ele foi lido e influenciou
60 Essa enciclopeacutedia faz o levantamento de autores e de obras em ordem alfabeacutetica o que eacute uma importante
inovaccedilatildeo Datada provavelmente do seacuteculo X foi escrita por muitas matildeos tratando-se de uma obra coletiva de
escritores anocircnimos 61 ldquoltΛουκιανόςgt Σαμοσατεύς ὁ ἐπικληθεὶς βλάσφημος ἢ δύσφημος ἢ ἄθεος εἰπεῖν μᾶλλον ὅτι ἐν τοῖς διαλόγοις
αὐτοῦ γελοῖα εἶναι καὶ τὰ περὶ τῶν θείων εἰρημένα παρατίθεται γέγονε δὲ ἐπὶ τοῦ Καίσαρος Τραιανοῦ καὶ
ἐπέκεινα ἦν δὲ οὗτος τοπρὶν δικηγόρος ἐν Ἀντιοχείᾳ τῆς Συρίας δυσπραγήσας δ ἐν τούτῳ ἐπὶ τὸ λογογραφεῖν
ἐτράπη καὶ γέγραπται αὐτῷ ἄπειρα τελευτῆσαι δὲ αὐτὸν λόγος ὑπὸ κυνῶν ἐπεὶ κατὰ τῆς ἀληθείας ἐλύττησεν εἰς
γὰρ τὸν Περεγρίνου βίον καθάπτεται τοῦ Χριστιανισμοῦ καὶ αὐτὸν βλασφημεῖ τὸν Χριστὸν ὁ παμμίαρος διὸ καὶ
τῆς λύττης ποινὰς ἀρκούσας ἐν τῷ παρόντι δέδωκεν ἐν δὲ τῷ μέλλοντι κληρονόμος τοῦ αἰωνίου πυρὸς μετὰ τοῦ
Σατανᾶ γενήσεταιrdquo 62Segundo Aulo Geacutelio o tragedioacutegrafo ateniense Euriacutepedes ldquofoi dilacerado por catildees lanccedilados por algum ecircmulo e
dessas feridas seguiu-se a morterdquo (ldquoIs cum in Macedonia apud Archelaum regem esset utereturque eo rex familiariter rediens nocte ab eius cena canibus a quodam aemulo inmissis dilaceratus est et ex his uulneribus mors secuta estrdquo) (Aulo Geacutelio N A XV 20 9)
45
autores bem diferentes63 mesmo que natildeo seja um dos autores mais lembrados pelo grande
puacuteblico ou mesmo pelos classicistas Destarte temos que destacar que a construccedilatildeo de uma
operaccedilatildeo historiograacutefica voltada para a compreensatildeo cultural da sociedade tem mostrado o
quanto seus escritos podem dizer aos interessados em entender o passado
Como podemos notar esses textos pouco ajudam na compreensatildeo da trajetoacuteria de
Luciano Satildeo documentos muito interessantes para a recepccedilatildeo de seus escritos uma vez que a
opiniatildeo presente nesses textos antigos iraacute reverberar em toda a criacutetica luciacircnica o que justifica
deter-nos nesses discursos neste passo da Tese
As dificuldades em estabelecer a trajetoacuteria sociopoliacutetica do siacuterio natildeo podem inviabilizar
a anaacutelise de seus escritos no horizonte histoacuterico do Impeacuterio Romano dos Antoninos Uma vez
estabelecidos os preconceitos presentes nos escritos que comentaram o corpus luciacircnico na
Antiguidade e no Medievo Bizantino podemos indagar de que sociedade fala Luciano ou seja
como o samosatense pode servir de fonte ao historiador
13 Histoacuteria e imaginaacuterio de uma eacutepoca de ouro o contexto dos Antoninos
Em linhas gerais o seacuteculo II depois de Cristo caracteriza-se pela estabilidade do
Impeacuterio Romano em seu domiacutenio mediterracircneo Esse equiliacutebrio eacute fruto de diversos fatores A
historiografia acostumou a ver esse periacuteodo como o da pax romana O historiador inglecircs
Edward Gibbon64 afirmou que ldquose fosse mister determinar o periacuteodo da Histoacuteria do mundo no
qual a condiccedilatildeo da raccedila humana foi mais ditosa e proacutespera ter-se-ia sem hesitaccedilatildeo que apontar
a que se estende da morte de Domiciano ateacute a elevaccedilatildeo de Cocircmodordquo (GIBBON 2005 104)
Como afirma Aldo Schiavone Gibbon eacute o criador de uma imagem forte de anaacutelise
deste periacuteodo (SCHIAVONE 2007 36) Sua narrativa prende o leitor com representaccedilotildees
densas da Histoacuteria Romana Ele inicia seu monumental livro com o esplendor do periacuteodo dos
Antoninos e prepara o enredo de uma grande cataacutestrofe cuja causa ele encontra em grande
medida no nascente Cristianismo (GUARINELLO 201320) uma imagem muito forte que
prende a narrativa sobre a Histoacuteria Romana nesse ponto alto que em seguida se desmoronaria
63 Sem a pretensatildeo de fornecer um mapa exaustivo desses trabalhos podemos citar o texto de Roberto Romano O
silecircncio de o ruiacutedo (1996) que trata da influecircncia de Luciano em Diderot O livro O calundu e a panaceacuteia de Elton
de Saacute Rego (1989) que investiga a presenccedila da tradiccedilatildeo luciacircnica em Machado de Assis Eduardo Sinkevisque
(2010 2011) tem pesquisado as traduccedilotildees portuguesas do Como se deve escrever a Histoacuteria e sua repercussatildeo na
historiografia setecentista 64 Para uma anaacutelise do estilo desse Historiador sugerimos o texto Gibbon um ciacutenico moderno entre os poliacuteticos
antigos (GAY 1990 33-62) Neste texto o autor elucida a maneira como o estilo irocircnico desse erudito serve de
arma argumentativa para a construccedilatildeo de sua anaacutelise
46
Essa opiniatildeo do glorioso passado dos Antoninos estaacute presente por exemplo no historiador
Herodiano que comeccedilou sua Histoacuteria do Impeacuterio Romano narrando o Principado de Marco
Aureacutelio por ser o uacuteltimo governo bom (Herodiano I 101-5) O proacuteprio Dion Caacutessio entende
que o governo de Cocircmodo representava uma passagem de uma idade do ouro para um tempo
do ferro (Dion Caacutessio Histoacuteria LXXVII 94) Esses autores antigos expressavam a forma
mentis de parcela da aristocracia senatorial e equestre da cidade de Roma que naquele
momento foi alijada dos centros de decisatildeo pelos Imperadores severianos (GONCcedilALVES
2006 179)
Essa concepccedilatildeo retoma a imagem do orador Eacutelio Aristides em seu Discurso a
Roma65 sobre a integraccedilatildeo do mundo mediterracircnico Ele vecirc a conquista do mundo pelos
romanos como o desenvolvimento e a expansatildeo que transforma o gecircnero humano Para ele os
romanos ldquotransformaram o mundo inteiro em um prazeroso jardim66rdquo (Eacutelio Aristides Orat 26
99) Em contraposiccedilatildeo agrave selvageria que existia em muitas regiotildees conquistadas pelo Impeacuterio
Romano o orador destaca a implantaccedilatildeo de uma cultura civilizada representada pelo grande
nuacutemero de templos e cidades que enchem o mediterracircneo e pela facilidade do comeacutercio ou seja
a abertura de estradas e rotas que permitem o comeacutercio de produtos e o tracircnsito de pessoas Ele
ainda destaca as novas condiccedilotildees sociais e poliacuteticas implementadas pelos romanos que
espalharam um modo de governar uniforme permitindo aos melhores compor a elite Ele
afirma
Voacutes dividistes a comunidade de todos os povos do Impeacuterio e com esta
palavra estou indicando todo o mundo habitado em dois grupos distintos e
por toda a parte transformastes em cidadatildeos os mais cultos haacutebeis e capazes
enquanto os demais permaneceram suacuteditos do governo67 (Eacutelio Aristides Orat
26 59)
Esse documento eacute extremamente significativo para traccedilarmos elementos para a
composiccedilatildeo do contexto em que produziu Luciano de Samoacutesata uma vez que tanto as anaacutelises
historiograacuteficas quanto um Panegiacuterico do seacuteculo II como podemos caracterizar a narrativa de
Eacutelio Aristides sugerem esse mundo civilizado e integrado que o Impeacuterio propiciou
Alguns aspectos poliacuteticos satildeo relevantes para essa imagem Em primeiro lugar
temos um periacuteodo em que haacute uma grande estabilidade na sucessatildeo imperial Como nos lembra
Paul Veyne no texto ldquoO que eacute um Imperador romanordquo o cargo de Imperador implicava um
65 O famoso Discurso a Roma eacute a Oraccedilatildeo 26 dos discursos de Eacutelio Aristides 66 ldquoκαὶ ἡ γῆ πᾶσα οἷον παράδεισος ἐγκεκόσμηταιrdquo 67 ldquoδιελόντες γὰρ δύο μέρη πάντας τοὺς ἐπὶ τῆς ἀρχῆς τοῦτο δ εἰπὼν ἅπασαν εἴρηκα τὴν οἰκουμένην τὸ μὲν
χαριέστερόν τε καὶ γενναιότερον καὶ δυνατώτερον πανταχοῦ πολιτικὸν ἢ καὶ ὁμόφυλον πᾶν ἀπεδώκατε τὸ δὲ
λοιπὸν ὑπήκοόν τε καὶ ἀρχόμενονrdquo
47
risco muito grande uma vez que a grande maioria dos que ocuparam esse cargo foram
assassinados por opositores e um pequeno nuacutemero deles morreram de causas naturais Nunca
houve regras claras para a sucessatildeo assim ldquoum dos deveres dos Imperadores era preparar a
transmissatildeo paciacutefica do poderrdquo (VEYNE 2009 3)
Entre os governos de Nerva (96-98) Trajano (98-117) Adriano (117-138) Pio
(138-161) Marco Aureacutelio e Lucio Vero (161-169) Marco Aureacutelio (169-180) e Cocircmodo (180-
192) a transmissatildeo do governo ocorreu de forma paciacutefica uma vez que o criteacuterio proposto foi
a adoccedilatildeo daquele que era considerado o melhor dos romanos
Para catalisar essa imagem de bons governantes Trajano exerce um papel central
uma vez que entrou para a memoacuteria puacuteblica romana como um bom Imperador Temos o
Panegiacuterico de Pliacutenio que evidencia as virtudes desse Priacutencipe e mostra como deveria ser um
bom governante Trajano inclusive tem algumas conquistas militares na Daacutecia e na Armecircnia
que satildeo anexadas ao Impeacuterio como proviacutencias Ele foi o uacuteltimo governante de Roma que
expandiu os limites imperiais
Essa capacidade de lidar com a sucessatildeo promove uma grande estabilidade poliacutetica
uma vez que a puacuterpura natildeo ficava disponiacutevel para qualquer aventureiro Para termos uma ideia
Aviacutedio Caacutessio (175) general romano que tentou usurpar o cargo de Marco Aureacutelio foi
rapidamente suprimido Esse contexto favoraacutevel permite a expansatildeo do modo de vida romano
e principalmente a estabilidade econocircmica
Outro fato significativo desse periacuteodo eacute o deslocamento do centro de poder da
peniacutensula itaacutelica para as proviacutencias Quando Nerva adota Trajano escolhe um cidadatildeo romano
oriundo da Baetica no sul da Hispacircnia Ele era de uma famiacutelia romana estabelecida nessa
proviacutencia Entretanto esse fato mostra como os grupos que influenciavam na sucessatildeo natildeo
estavam restritos agrave peniacutensula itaacutelica Havia nesse momento forccedilas poliacuteticas significativas em
outros lugares Adriano e Marco Aureacutelio tambeacutem eram de famiacutelias da Baetica
O poder do Imperador baseava-se em trecircs fatores o comando militar o prestiacutegio e
a riqueza A soma do poder e do prestiacutegio conferem ao governante a auctoritas Como disse o
Imperador Augusto em seu testamento ele natildeo se diferenciava dos outros Senadores em poder
(potestas) mas em auctoritas (AUGUSTO RGDA 34) Como afirma Geza Alfoumlldy ldquoo
Imperador era a encarnaccedilatildeo ideal de todas as antigas virtudes romanas sendo as principais a
virtus a clementia a iustitia e a pietasrdquo (ALFOumlLDY 1989 116)
A dominaccedilatildeo romana eacute beneacutefica para a populaccedilatildeo jaacute que garantia a manutenccedilatildeo
das estradas e o policiamento do Mediterracircneo o que permitia o estabelecimento de rendosas
rotas comerciais Para termos uma ideia das distacircncias que os produtos percorriam no Impeacuterio
48
podemos evocar as pesquisas de Pedro Paulo Funari sobre os selos nas acircnforas romanas (Dressel
20) presentes na regiatildeo da Beacutetica atual sul da Espanha Tais estudos tecircm se mostrado
interessantes uma vez que as informaccedilotildees presentes nestes selos permitem aos pesquisadores
mapear a circulaccedilatildeo de alimentos e produtos da Bretanha agrave Siacuteria (FUNARI 1987 230)
Ao contraacuterio do que poderiacuteamos pensar as populaccedilotildees dominadas eram
beneficiadas com essa seguranccedila Outro ponto significativo era a permanecircncia das estruturas
locais de poder pois o romano conquistador dialogava diretamente com a elite dominante que
continuava no poder mediante o controle do restante da populaccedilatildeo Obviamente o domiacutenio
poliacutetico natildeo levou agrave descaracterizaccedilatildeo das culturas locais O processo de romanizaccedilatildeo ocorreu
de uma forma extremamente complexa em uma via de matildeo dupla Por exemplo os idiomas
locais continuaram sendo usados Eram as proacuteprias elites provinciais que viam a necessidade
de aprender grego ou latim a fim de se comunicarem com o conquistador
Como nos lembra Sartre (1994 7-10) a dominaccedilatildeo romana estabeleceu uma seacuterie
de normatizaccedilotildees juriacutedicas em toda a extensatildeo imperial Essas regulamentaccedilotildees vinculam-se agraves
hierarquizaccedilotildees sociais que se estabeleciam no acircmbito juriacutedico definindo o estatuto de cada
pessoa diante das instituiccedilotildees Como afirma o reacutetor Eacutelio Aristides as pessoas se dividem em
todo o Impeacuterio em duas categorias distintas os cidadatildeos e os outros podendo os cidadatildeos
pertencerem a uma das trecircs ordens senatorial equestre e decuriotildees (Eacutelio Aristides Orat 26
59)
Geza Alfoumlldy sustenta que a sociedade romana eacute extremamente conservadora uma
vez que o seu desenvolvimento social e poliacutetico natildeo significou a alteraccedilatildeo da estrutura agriacutecola
do Impeacuterio o que limitava a mobilidade social pois o prestiacutegio estava ligado agrave posse da terra
Logo as ideias dominantes tambeacutem se associavam a esses grupos que monopolizavam a
produccedilatildeo textual e a sua divulgaccedilatildeo (ALFOumlLDY 1989 114-115) Essa caracteriacutestica natildeo
impedia a diversidade de ideias uma vez que as elites natildeo eram homogecircneas mas compostas
por grupos distintos que estavam em busca do domiacutenio poliacutetico
Com a ascensatildeo do Principado com Augusto o topo da piracircmide social mudou
seu aacutepice era ocupado pelo Imperador e por sua domus (famiacutelia extensa) Assim as relaccedilotildees
sociais estavam vincadas pela amizade (amicitia) com as grandes famiacutelias especialmente com
a famiacutelia do Ceacutesar Ser amicus Caesaris elevava um indiviacuteduo na sociedade romana como sua
perda significava a queda social
Como jaacute dissemos anteriormente o caso de Luciano na administraccedilatildeo imperial no
Egito sugere a proximidade com a casa imperial Tais relaccedilotildees satildeo fundamentais para entender
o lugar de escrita de Luciano e sua relaccedilatildeo com seu tempo
49
O quadro histoacuterico desse periacuteodo se matiza com a compreensatildeo da construccedilatildeo da
identidade grega no Impeacuterio Romano Trata-se de imaginar como Luciano se compreendia em
uma conjuntura que envolve entender como os intelectuais de liacutengua grega interagiam com o
Impeacuterio Romano
14 A construccedilatildeo de uma identidade helecircnica no Impeacuterio Romano
O processo de helenizaccedilatildeo ocorreu por meio de uma complexa rede de negociaccedilotildees
simboacutelicas e materiais Como enfatiza Simom Swain (1996 87) no livro intitulado Hellenisme
and Empire esse processo dar-se-ia por meio da Paideia O sentimento de pertencimento perde
paulatinamente seu caraacuteter eacutetnico e assume as caracteriacutesticas de uma identidade franca cuja
adesatildeo eacute possiacutevel a qualquer indiviacuteduo Suas estrateacutegias ainda segundo esse autor estatildeo em
uma constante polifonia Cada (des)encontro cultural pode propiciar os mais diferentes
elementos sociais e reaccedilotildees culturais
Susan Alcock em uma anaacutelise que congrega o debate acerca da paisagem memoacuteria
espaccedilo sagrado e imperialismo repensa natildeo mais a influecircncia grega sobre a cultura romana
mas o caminho inverso a presenccedila de Roma nas cidades gregas durante o periacuteodo imperial Ela
ressalta as permanecircncias de memoacuterias gregas durante a dominaccedilatildeo romana Entretanto a autora
identifica como essas reminiscecircncias satildeo relidas das mais distintas formas em um diaacutelogo
altamente seletivo construiacutedo por meio de apropriaccedilotildees e ressignificaccedilotildees (ALCOCK 2001
332)
Alcock critica os autores que apresentam o caraacuteter estaacutevel das atividades mnemocircnicas
ressaltando que a memoacuteria eacute muacuteltipla dinacircmica e tem um grande poder de persuasatildeo O que
nos interessa em sua conceituaccedilatildeo eacute justamente o elo profundo entre memoacuteria e poder A autora
tambeacutem ressalta a existecircncia da multiplicidade das memoacuterias que muitas vezes satildeo conflitantes
concorrentes A memoacuteria social eacute um espaccedilo privilegiado para que os diferentes agentes
histoacutericos contestem o que estaacute estabelecido (ALCOCK 2001 324) Cada agente social usa a
memoacuteria a favor de seus interesses tudo que eacute lembrado depende do oposto que eacute o
esquecimento
Dois pontos satildeo fundamentais para compreender o conceito de memoacuteria De um lado
haacute uma atividade mnemocircnica involuntaacuteria que ocorre ao indiviacuteduo ou seja traccedilos que satildeo
recuperados involuntariamente e compotildeem uma narrativa marcada pela maacutegica da presenccedila do
passado ausente Por outro lado existe uma atividade mnemocircnica voluntaacuteria na qual a memoacuteria
50
eacute treinada e trabalhada e o uso das reminiscecircncias compotildee um quadro de teacutecnicas retoacutericas que
recuam a Simocircnides (YATES 2007 17) Observe-se que natildeo afirmamos que Simocircnides foi o
primeiro a utilizar teacutecnicas mnemocircnicas (essas satildeo atestadas por exemplo nos poemas
homeacutericos) o que esse autor fez foi sistematizar estrateacutegias cognitivas que possibilitassem a
um orador o uso maximizado de sua memoacuteria Tais construccedilotildees fundavam-se em elementos
espaciais a lugares de memoacuteria
No caso de Luciano de Samoacutesata e de grande parte dos autores da chamada Segunda
Sofiacutestica podemos elencar o uso de uma variante do grego que imita os padrotildees linguiacutesticos de
um momento cultural anterior o que indica traccedilos das estrateacutegias de afirmaccedilatildeo social Orestes
Karavas em sua Tese de doutoramento intitulada Lucien e La Trageacutedie defende que a obra de
Luciano eacute tributaacuteria de um passado helecircnico e para demonstrar essa prerrogativa ele faz uma
inquiriccedilatildeo detalhada sobre a presenccedila da trageacutedia nestes textos (KARAVAS 2005) O uso do
aticismo compotildee o quadro cultural descrito por Swain como polifocircnico (SWAIN 2003 40)
As praacuteticas culturais natildeo necessitam de coerecircncia nem de ter a nossa loacutegica A cultura
colonizada natildeo eacute nem coerente nem homogecircnea As respostas agrave presenccedila de outra cultura
variam tanto no tempo quanto no espaccedilo68
Gostariacuteamos de relembrar que Luciano coloca-se em uma encruzilhada cultural que
serve como pequeno microcosmo de interpretaccedilatildeo do ser e estar no Impeacuterio Romano Andrew
Wallace-Handrill (2008 38) em seu recente livro Romersquos Cultural Revolution busca nos
versos do poeta latino Ecircnio uma imagem que acreditamos retratar bem o lugar em que Luciano
se insere Trata-se da imagem do tria cordia ou seja dos trecircs coraccedilotildees Esse poeta afirmava
possuir trecircs coraccedilotildees um latino um grego e um osco69 Observemos a existecircncia do processo
de triangulaccedilatildeo da identidade Trata-se de uma forma de se encontrar no mundo que mescla as
diferentes formas de experiecircncia Assim o indiviacuteduo natildeo precisa abandonar uma identidade
pois ele acumula diferentes sentimentos de pertencimento
Nesse ponto a conceituaccedilatildeo de identidade no mundo antigo se complexifica Os
historiadores buscam respostas nos distintos ramos do conhecimento Por exemplo Peter Burke
68 Richard Hingley (201035) ao estudar a colonizaccedilatildeo da Bretanha Romana a partir de uma concepccedilatildeo teoacuterica poacutes
colonial afirma que ldquonatildeo haacute uma cultura colonial uacutenica e coerenterdquo que englobaria todos os dominados As
colocircnias satildeo muacuteltiplas e apresentam loacutegicas distintas Ele complementa que sob o olhar poacutes-colonial as pesquisas
seguem trecircs premissas inter-relacionadas ldquoa) as tentativas dos estudiosos poacutes-coloniais para descentrar as
pesquisas b) relatos recentes que mostram uma gama complexa e variada de respostas ao contato colonial c)
trabalhos que sugerem oposiccedilotildees tanto manifestas quanto escondidas agrave dominaccedilatildeo dos poderes coloniaisrdquo
(HINGLEY 2010 35) 69 Aulo Geacutelio em suas Noites Aacuteticas afirma que ldquoQuinto Ecircnio dizia possuir trecircs coraccedilotildees porque soubesse falar
grego osco e latimrdquo (ldquoQuintus Ennius tria corda habere sese dicebat quod loqui Graece et Osce et Latine sciretrdquo) (AULO GEacuteLIO N A XVII 17)
51
propotildee a existecircncia de um processo de hibridizaccedilatildeo (BURKE 2003 43) Tal termo vem da
biologia e classifica como hiacutebrido o animal que eacute filho de duas espeacutecies distintas poreacutem o
animal que nasce eacute infeacutertil Logo a transposiccedilatildeo desse conceito agrave dinacircmica do (des)encontro
cultural eacute preconceituosa jaacute que o contato cultural gera uma experiecircncia distinta que natildeo pode
ser hierarquizada O processo de encontro cultural promove uma nova cultura cuja riqueza e
fertilidade podem ser comprovadas em diversos niacuteveis de anaacutelise da cultura material e da
produccedilatildeo literaacuteria
Janet Huskinson (2000 25) enfatiza que haacute frequentemente a sobreposiccedilatildeo de signos
e valores os quais satildeo corroborados por meio de achados arqueoloacutegicos especialmente nos
monumentos erigidos por importantes membros das elites provinciais Destacamos o uso de um
vocabulaacuterio mais preciso para conceituar a dinacircmica do (des)encontro cultural por isso
propomos o termo traduccedilatildeo que tem sua origem nas ciecircncias da linguagem Tal conceito se
coaduna com a apreciaccedilatildeo de cultura pelos caminhos da semioacutetica tal como foi proposto por
Clifford Geertz (2012 4) e permite atentar aos processos de negociaccedilatildeo Richard Hingley
afirma que
Indiviacuteduos no interior de uma sociedade negociam e resistem a certas
representaccedilotildees de inferioridade superioridade e erigem contra-argumentos
Assim dentro de um conjunto limitado de ideias e de experiecircncias eles
definem parcialmente seus proacuteprios conceitos de superioridade ao mesmo
tempo em que se relacionam com itens tais que como a forma e a funccedilatildeo de
um determinado pote ou a imagem de um tipo particular de construccedilatildeo
(HINGLEY 2010 37-38)
Nesse sentido devemos retomar a imagem dos trecircs coraccedilotildees e questionar em que
medida tal imagem expressa a posiccedilatildeo sociocultural de Luciano de Samoacutesata no seio do
ordenamento imperial Em primeiro lugar satildeo diversos os momentos em que esse escritor se
nomeia como siacuterio Como ressaltamos anteriormente o samosatense foi educado de acordo com
os paracircmetros da Paideia helecircnica ou ainda sua escrita refletia um purismo esteacutetico vinculado
diretamente aos autores aacuteticos do V seacuteculo aC outro traccedilo que eacute marcante em seus escritos
Em Lexiacutefanes que versa sobre o mau uso da liacutengua grega pelos sofistas contemporacircneos
eacute dito que
Se realmente desejas que te elogiem por teu estilo bem como ser famoso entre
as massas foge e evita essa classe de expressotildees comeccedila pelos melhores
poetas e os lecirc com a tutela de mestres passa logo aos oradores e quando
estejas familiarizado com a sua dicccedilatildeo muda oportunamente para Tuciacutedides
e Platatildeo mas depois de ter-te exercitado muito na formosa comeacutedia e na
52
majestosa trageacutedia Porque uma vez que tenhas libado todas as suas belezas
seraacutes algueacutem nas letras Pois agora sem te dares conta pareces com os
fabricantes de bonecas da aacutegora as quais estatildeo pintadas por fora de vermelho
e azul mas por dentro satildeo de barro e fraacutegeis (Luciano Lex 22-23)70
Esse eacute o caminho tradicional para o aprendizado nas letras e para a formaccedilatildeo da elite
letrada greco-romana A poesia tem papel de destaque principalmente os poemas homeacutericos
Esse aprendizado marcaraacute todos os discursos literaacuterios produzidos em liacutengua grega por meio
da constante recorrecircncia a esses textos indelevelmente marcados pela visatildeo de mundo de cada
contexto histoacuterico Escrever narrar discursar satildeo formas humanas de se inscrever na realidade
de dar sentido a nossa participaccedilatildeo na existecircncia Escrevemos para nos inscrever no real para
criar sentido ao viver A memoacuteria tem esse papel de marcar as recorrecircncias de construir uma
transcendecircncia que permite ao indiviacuteduo afirmar mesmo que seja de uma maneira natildeo
consciente seu lugar no mundo
Nos escritos de Luciano esses elementos satildeo evidenciados pelo uso de determinados
gecircneros citaccedilotildees determinada variaccedilatildeo linguiacutestica recorrecircncia a personagens miacuteticas ou
histoacutericas meacutetodos partilhados de validaccedilatildeo enunciativa Tais elementos marcam a construccedilatildeo
da identidade grega no Impeacuterio romano principalmente entre os oradores helenos do II seacuteculo
Um discurso excelente eacute aquele que faz com que o leitor eou ouvinte consiga ver o que
foi narrado (WEBB 1997 231) Nesse sentido temos dois pontos fundamentais para
compreender elementos metanarrativos que compotildeem a escrita Primeiro a constante citaccedilatildeo
das autoridades claacutessicas (DARBO-PESCHANSKI 200416) e em segundo lugar o uso da
representaccedilatildeo pictoacuterica por meio da construccedilatildeo de ecfrases como elemento validativo para o
discurso no mundo antigo (DUBEL 1997 250) Tal inscriccedilatildeo na realidade como nos ensinou
Michel Foucault (2002 8-9) depende de instacircncias que ordenam quem pode dizer e o que pode
ser dito As autoridades distribuiacutedas em micropoderes (FOUCAULT 2012 35-54) estabelecem
limites do que eacute real ou fantasioso para o grupo A constituiccedilatildeo de sentido natildeo se daacute de maneira
individual isso seria loucura pois o sentido eacute partilhado inclusive com suas fronteiras que
definem quem o que e como se pode dizer O discurso produzido agrave margem desse regime de
verdade natildeo encontra eco por isso devemos ressaltar o viacutenculo profundo entre discurso e poder
O uso que Luciano faz de autores mais antigos reforccedila uma identidade helenoacutefila
70 ldquoεἴπερ ἄρ ἐθέλεις ὡς ἀληθῶς ἐπαινεῖσθαι ἐπὶ λόγοις κἀν τοῖς πλήθεσιν εὐδοκιμεῖν τὰ μὲν τοιαῦτα πάντα φεῦγε
καὶ ἀποτρέπου ἀρξάμενος δὲ ἀπὸ τῶν ἀρίστων ποιητῶν καὶ ὑπὸ διδασκάλοις αὐτοὺς ἀναγνοὺς μέτιθι ἐπὶ τοὺς
ῥήτορας καὶ τῇ ἐκείνων φωνῇ συντραφεὶς ἐπὶ τὰ Θουκυδίδου καὶ Πλάτωνος ἐν καιρῷ μέτιθι πολλὰ καὶ τῇ καλῇ
κωμῳδίᾳ καὶ τῇ σεμνῇ τραγῳδίᾳ ἐγγεγυμνασμένος παρὰ γὰρ τούτων ἅπαντα τὰ κάλλιστα ἀπανθισάμενος ἔσῃ τις
ἐν λόγοις ὡς νῦν γε ἐλελήθεις σαυτὸν τοῖς ὑπὸ τῶν κοροπλάθων εἰς τὴν ἀγορὰν πλαττομένοις ἐοικώς
κεχρωσμένος μὲν τῇ μίλτῳ καὶ τῷ κυανῷ τὸ δ ἔνδοθεν πήλινός τε καὶ εὔθρυπτος ὤνrdquo
53
adquirida por isso era possiacutevel escrever um texto sobre A deusa siacuteria imitando o estilo literaacuterio
de Heroacutedoto Ser grego no Impeacuterio Romano natildeo dependia do local de nascimento Para ter a
identificaccedilatildeo helecircnica era necessaacuterio fazer parte de um processo de aprendizado (Paideia71)
que dotava o indiviacuteduo de recursos que lhe permitiam fazer parte dessa ordem
Concordamos com Jacques Bompaire (19946 6) ao afirmar que havia bem mais que um
aticismo linguiacutestico o qual deve ser definido por seu caraacuteter cultural e intelectual A citaccedilatildeo no
mundo greco-romano natildeo era feita como as referecircncias contemporacircneas A remissatildeo dependia
da memoacuteria Havia exerciacutecios para treinar a memoacuteria como por exemplo a coacutepia dos mais
variados textos Em seguida os alunos eram treinados a emular os textos claacutessicos O contato
com esses era muito intenso mesmo assim quando cotejamos uma menccedilatildeo e a origem das
mesmas nos decepcionamos jaacute que na maioria das vezes natildeo corresponde ao texto que temos
disponiacutevel
Natildeo podemos esquecer que ateacute o advento da imprensa os textos eram copiados em
manuscritos que geralmente natildeo tinham fonte e coacutepia idecircnticas considerando que o copista
muitas vezes acrescentava frases suprimia outras fazia anotaccedilotildees ao lado do texto A relaccedilatildeo
com o texto escrito era diferente da que se tem atualmente assim conveacutem pensar como a
oralidade consegue fixar e reter memoacuterias canonizadas e como a escrita permite a variaccedilatildeo
tanto com a coacutepia como com a glossa compulsiva O texto escrito permite a anaacutelise incessante
de si principalmente quando ganha status canocircnico guardando as devidas ressalvas os textos
homeacutericos entre os helecircnicos e os textos biacuteblicos entre os hebreus sofrem com esse processo
(ASSMANN 2011 88-97)
Como explica Carlo Ginzburg ldquoo criteacuterio definitivo de verdade natildeo coincidia com as
reaccedilotildees do puacuteblico E antes de tudo a verdade era considerada uma questatildeo de persuasatildeo
ligada soacute marginalmente ao controle objetivo dos fatosrdquo (GINZBURG 2007 24) As
referecircncias cumpriam outras funccedilotildees como marcar um pertencimento ornamentar o texto
gerar autoridade
A citaccedilatildeo eacute a recorrecircncia a um passado seu uso eacute fruto de um trabalho de memoacuteria ora
extremamente ativo em sua consecuccedilatildeo ora involuntaacuterio Entretanto sempre haacute um significado
poliacutetico em seu uso pois vincula o orador a determinada identidade e ao mesmo tempo a uma
visatildeo de mundo e de poliacutetica Ao narrar seus diaacutelogos o escritor de Comagena buscou inserir-
se no mundo e com isso emitir sua opiniatildeo sobre a realidade que o cercava
71 Reiteradamente devemos dizer que a palavra educaccedilatildeo natildeo traduz esse termo grego em sua inteireza uma vez
que o grego pensava na formaccedilatildeo integral do homem tanto fiacutesica quanto intelectualmente A arte da palavra era
apenas um dos acircngulos da Paideia antiga
54
Luciano deve ser pensado dentro do contexto maior da presenccedila dos sofistas
helenoacutefilos no Impeacuterio Romano Logo acreditamos que esse debate deve ser complementado
por uma indagaccedilatildeo sobre a Segunda Sofiacutestica fenocircmeno cultural arcaizante que predominou
no Impeacuterio Romano nos ambientes helecircnicos Trata-se de um fenocircmeno de releitura da retoacuterica
antiga elaborado principalmente por oradores e retores Em termos estiliacutesticos os textos
produzidos nesse momento se caracterizam pela imitaccedilatildeo do grego do V aC tendecircncia
chamada pelos historiadores da literatura de aticismo (LESKY 1995)
Como afirma B P Readon o grego usado por escritores diferencia-se do koineacute e o
que se busca eacute o grego de Eacutesquines (READON 1988 80ss) Tais sofistas atuavam muitas
vezes em suas cidades como embaixadores que faziam a ponte com o governador da proviacutencia
ou com o proacuteprio Imperador (BOWERSOCK 196917-58) Nesse contexto o que predomina
eacute o discurso do gecircnero epidiacutetico72 que se vincula com o encocircmio louvando determinado valor
ou ato Eacute o gecircnero das festas puacuteblicas e dos auditoacuterios por isso se aproxima do elogio
O gecircnero encomiaacutestico natildeo estaacute simplesmente vinculado ao prazer do ouvinte Para
uma anaacutelise mais aprofundada eacute necessaacuterio considerar o mundo que o cerca e as possiacuteveis
mensagens poliacuteticas que o mesmo enseja Tal preconceito obnubilaria a anaacutelise do lugar que o
encocircmio assumiu entre os romanos no periacuteodo imperial Essa simplificaccedilatildeo fica patente quando
analisamos os discursos de alguns autores Natildeo vamos nos aprofundar nesse assunto mas por
exemplo Paul Veyne em seu texto Identidade grega contra e a favor ao analisar a atitude dos
gregos diante da dominaccedilatildeo romana afirma ldquoEra possiacutevel ao mesmo tempo desprezar Roma
orgulhar-se de ser grego e apoiar a ordem imperial Ser xenoacutefobo helecircnico patriota e
lsquocolaboradorrsquo De fato essa era a posiccedilatildeo majoritaacuteriardquo (VEYNE 2009 80) Noacutes entendemos
que esse periacuteodo marcou a escrita de diversos intelectuais que podem ser agregados sob a
insiacutegnia da Segunda Sofiacutestica
O termo Segunda Sofiacutestica foi criado por Filoacutestrato de Lemos no proacutelogo do seu
livro Vida dos Sofistas na tentativa de resumir com esse nome a atividade de muitos sofistas
helenizados espalhados pelo Impeacuterio Romano (Filoacutestrato V S I 475) Nesse sentido
Filoacutestrato constroacutei um panorama do contexto intelectual grego em face ao Impeacuterio Romano
Entretanto ele natildeo inclui Luciano como um orador ligado agrave Segunda Sofiacutestica fato que estranha
72 Eacute importante fugir de consideraccedilotildees simplistas sobre a retoacuterica epidiacutetica como o faz Carlo Ginzburg que ao
diferenciar o gecircnero epidiacutetico do deliberativo e do judiciaacuterio afirma que ldquoO exemplo e o entimema se consagram
respectivamente agrave oratoacuteria deliberativa e agrave judiciaacuteria o encocircmio agrave oratoacuteria epidiacuteticardquo (GINZBURG 2002 49)
Tais consideraccedilotildees natildeo observam o uso que esse tipo de discurso tem no Impeacuterio Romano principalmente os usos
poliacuteticos dos mesmos a fim de apresentar demandas locais camufladas em encocircmio (PERNOT 1993 230-238
PARELMAN 2005 53-57)
55
os investigadores modernos quais seriam os motivos dessa exclusatildeo filostratiana Neste
capiacutetulo debatemos essa ausecircncia tendo em vista o conceito filostratiano de sofista para tentar
observar os pontos de aproximaccedilatildeo e de afastamento de Luciano desse ideal
Entendemos que a Segunda Sofiacutestica eacute um fenocircmeno cultural no qual a prosa se
coloca como forma predominante elaborada a partir de construccedilotildees retoacutericas Seus autores
nunca se autodenominaram dessa forma Entretanto aleacutem do uso da prosa existem outras
caracteriacutesticas comuns O uso da retoacuterica epidiacutetica que natildeo pode ser menosprezada haja vista
que por meio do elogio ou da censura o retoacuterico poderia inserir pedidos criacuteticas e denuacutencias de
maneira sutil observando assim elementos de uma etiqueta social necessaacuteria que evitaria a
execuccedilatildeo fiacutesica do orador e poderia favorecer a comunidade Tais especialistas da palavra eram
fundamentais para que os moradores das cidades dialogassem com o poder imperial
O constructo histoacuterico filostratiano da Segunda Sofiacutestica reverberou em parte da
historiografia contemporacircnea que tentou entender o espaccedilo grego de leitura e de escrita no
Impeacuterio Romano Desse modo faz-se mister refletir sobre as caracteriacutesticas baacutesicas dessa
historiografia Para seguir esse percurso devemos observar os seguintes pontos como os
autores contemporacircneos compreenderam a Segunda Sofiacutestica qual o estatuto que eles datildeo a
esse periacuteodo da histoacuteria da cultura antiga e finalmente como esses autores estariam vinculados
ao poder imperial
Como enfatizou G Anderson (1993 13-47) em seu livro The second Sophistic A
cultural Phenomenon in the Roman Empire a Segunda Sofiacutestica natildeo eacute apenas um fenocircmeno
literaacuterio mas cultural Sua ecircnfase recai sobre a contiacutenua reapropriaccedilatildeo por meio da retoacuterica do
passado helecircnico o que geraria fortes laccedilos identitaacuterios entre os intelectuais Francesca Mestre
ressalta que a literatura grega do Periacuteodo Imperial se caracteriza ldquopor dois aspectos
fundamentais de um lado o uso da prosa como veiacuteculo exclusivo de comunicaccedilatildeo e criaccedilatildeo e
por outro a impregnaccedilatildeo da retoacuterica em todas as suas manifestaccedilotildees em perfeita consonacircncia
com a Paideia ()rdquo (MESTRE 2000 p 61)
Para Simon Goldhill (200114-15) um ponto de difiacutecil entendimento eacute a
periodizaccedilatildeo desse movimento uma vez que dependendo dos elementos destacados ele pode
ser recuado ateacute a obra de Poliacutebio No entanto haacute uma preferecircncia em marcar tal fenocircmeno como
caracteriacutestico do Alto Impeacuterio com o auge no periacuteodo dos Antoninos
Vito A Sirago coloca o fenocircmeno como uma expressatildeo cultural das elites imperiais
Esse autor enfatiza que os problemas para a sua compreensatildeo estatildeo na dificuldade em demarcar
o seu alcance espacial e temporal Em primeiro lugar Sirago questiona a generalizaccedilatildeo
filostratiana como um empecilho Como a Segunda Sofiacutestica apresenta posturas muito distintas
56
nos aspectos estiliacutesticos os pesquisadores apresentam dificuldade em sua caracterizaccedilatildeo Como
um fenocircmeno cultural sua accedilatildeo se daacute por meio da apropriaccedilatildeo contiacutenua de praacuteticas culturais
tradicionais tal accedilatildeo tem a funccedilatildeo de fazer convergir as elites como expressatildeo cultural da
aristocracia imperial (SIRAGO 1989 36-37) Natildeo se trata de um movimento contraacuterio agrave ordem
imperial mas que ressalta determinados grupos que jaacute estatildeo vinculados ao poder do Imperador
Tal reflexatildeo se aproxima de E L Bowie que analisa a maneira como essa elite
cultural ganhou sustentaccedilatildeo a partir da busca de uma identidade cujo principal signo era o uso
do passado grego A declamaccedilatildeo puacuteblica ganha ecircnfase e na segunda metade do primeiro seacuteculo
chegou a um lugar de destaque entre as atividades culturais Como afirma Bowie ldquoadquiriu
uma popularidade sem precedente e quase incompreensiacutevelrdquo (BOWIE 1981 188) Os oradores
multiplicam-se e suas obras apresentam um traccedilo importante o uso constante do passado grego
como elemento central ou como suporte para outras mensagens Os discursos versam sobre a
batalha de Maratona sobre os atenienses os espartanos os sistemas poliacuteticos que os dirigem
ou ainda a personalidade de Peacutericles Os temas do presente ficam camuflados nesses textos
(MESTRE 2000 62)
Ruth Weeb afirma que o desempenho retoacuterico proveu um foacuterum importante para os
cidadatildeos gregos do Impeacuterio afirmarem sua identidade e atingirem um status social entre seus
pares contemporacircneos Aleacutem disso foi um dos principais meios no qual o relacionamento de
Roma com os representantes das cidades e das proviacutencias foi construiacutedo (WEEB 2009 16-17)
Alcock considera que a ausecircncia de poder e gloacuteria fazem com que esses intelectuais
retomem o passado em um movimento nostaacutelgico Os escritos da Segunda Sofiacutestica
documentam a decepccedilatildeo pelo passado dominado e representam a regiatildeo com caracteriacutesticas de
resistecircncia (ALCOCK 2001 329) Eacute evidente que a dominaccedilatildeo eacute mascarada pela ascensatildeo das
famiacutelias bem nascidas na administraccedilatildeo do Impeacuterio e na participaccedilatildeo nas ordens equestre e
senatorial A busca do passado grego foi um canal ativo de comunicaccedilatildeo com o presente pois
permitia por meio de elementos culturais recorrentes dialogar com o poder estabelecido e
promover a legitimidade dos grupos A autora ressalta que essa literatura eacute somente um
epifenocircmeno de um processo muito mais complexo cujas reaccedilotildees de resistecircncia e os processos
de negociaccedilatildeo ocorrem das mais distintas formas (ALCOCK 2001 329-331)
Segundo Lukas de Blois podemos dividir os escritores gregos vinculados agrave Segunda
Sofiacutestica em dois grupos o primeiro os inseridos no sistema imperial seria o caso de Diacuteon
Caacutessio Herodiano e Filoacutestrato entre outros o segundo os demais autores cujo escopo temaacutetico
voltar-se-ia com mais frequecircncia a problemas locais relativos agraves suas respectivas cidades seria
o caso de Dion de Prusa Eacutelio Aristides e Luciano entre outros (DE BLOIS 1998 3441) Essa
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dicotomia mostra-se falha quando a operacionalizamos na anaacutelise dos autores por exemplo
Luciano teve um cargo no Egito e Eacutelio Aristides se encontra com Pio e Marco Aureacutelio para
levar ateacute eles demandas da cidade de Peacutergamo
O que coloca uma questatildeo muito importante para a compreensatildeo do Impeacuterio
Romano eacute a relaccedilatildeo estabelecida com as cidades do Impeacuterio e os povos que viviam nelas Um
pedido mal encaminhado aleacutem de receber a negativa como resposta poderia causar prejuiacutezos
agraves cidades Outro ponto importante na atuaccedilatildeo desses intelectuais tem relaccedilatildeo com a identidade
grega no segundo e no terceiro seacuteculos Como um povo que tem um passado cultural glorioso
pode conviver com o domiacutenio poliacutetico e a perda de soberania Esse passado foi mobilizado no
nosso ponto de vista como forma de resistir ao domiacutenio imperial
Toda essa renovaccedilatildeo historiograacutefica ressalta a busca de um novo olhar sobre a
literatura grega no Impeacuterio Romano Tim Whitmarsch em seu livro Greek literature and
Roman Empire discorre sobre um revisionismo historiograacutefico jaacute que a literatura grega dos
seacuteculos II e III foi vista como inferior agravequela produzida no periacuteodo claacutessico postura que eacute
defendida por exemplo por Bernard Van Groningen (apud WHITMARSCH 2001 41)
Whitmarsch entende que o termo Segunda Sofiacutestica foi apropriado pela academia moderna para
facilitar a periodizaccedilatildeo e a aproximaccedilatildeo da Paideia helecircnica e do poder romano Essa visatildeo
depreciativa eacute extremamente superficial
Havia fortes visotildees romacircnticas estabelecidas sobre a literatura grega Ateacute a deacutecada
de 1960 os criacuteticos e historiadores da literatura tinham tendecircncia a considerar os textos do
periacuteodo arcaico e claacutessico como cacircnones e os escritos produzidos sob domiacutenio romano como
literatura menor pouco criativa e voltada ao entretenimento Ao romper com essas visotildees os
criacuteticos literaacuterios e historiadores da literatura grega podem analisar essas obras como um
momento singular do contexto literaacuterio com a sofisticaccedilatildeo da linguagem e das teacutecnicas de
escrita com a incorporaccedilatildeo de outros modos de composiccedilatildeo (WHITMARSCH 2001 41-47)
Haacute vaacuterios aspectos interessantes relativos aos viacutenculos socioculturais desses autores
com os grupos hegemocircnicos do Impeacuterio Romano Sempre os conhecemos com o nome de sua
cidade de origem ao lado mas notamos que era uma praacutetica comum a obtenccedilatildeo da cidadania de
outras cidades O caso de Diacuteon de Prusa eacute emblemaacutetico uma vez que ele obteacutem a cidadania de
Apaea-Mirlea (vizinha de Prusa) e Nicomeacutedia Eacute importante ressaltar a mobilidade desses
homens tanto em viagens particulares (por exemplo Eacutelio Aristides) quanto agravequelas vinculadas
agraves embaixadas das cidades aos Imperadores (SARTRE 1994 132-133)
A relaccedilatildeo dos sofistas com o Impeacuterio era marcada por complexos viacutenculos
socioculturais havendo uma incisiva recusa em assumir cargos e obrigaccedilotildees religiosas pois
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tais ldquohonrariasrdquo eram muito custosas Por exemplo o avocirc e o pai de Dion de Prusa faliram ao
assumir cargos administrativos ou religiosos De fato muitas pessoas tentavam escapar das
magistraturas e das liturgias como por exemplo Eacutelio Aristides que recusou ser o grande
sacerdote em Esmirna (147) cobrador de impostos (151) e irenarca73 (152) utilizando o
argumento de falta de sauacutede e de recursos (CORTES COPETE 1995 156) Esses dados satildeo
fundamentais para pensarmos a complexidade da relaccedilatildeo desses intelectuais com o Impeacuterio ou
mesmo com os poderes locais
Esse quadro que traccedilamos possibilita-nos refletir sobre o lugar de Luciano de
Samoacutesata no Impeacuterio Romano Devemos concordar com a premissa defendida por Paul Veyne
de que intelectuais que natildeo gostam da cultura latina se sentem gregos entretanto colaboram
com a ordem e mantecircm lealdade ao Imperador (VEYNE 2009 80) Cabe-nos analisar no
entanto o lugar que o siacuterio ocupa nesse cenaacuterio
Temos basicamente duas teses levantadas entre os criacuteticos de Luciano sobre sua
relaccedilatildeo com o Impeacuterio Romano De um lado temos Maurice Croiset (1882) que ressalta as
qualidades estiliacutesticas de Luciano Para ele o que o siacuterio teria de inovador seria justamente suas
qualidades esteacuteticas no entanto os conteuacutedos de seus escritos estavam completamente alheios
ao mundo que o cercava Essa postura tambeacutem eacute defendida por Bompaire em seu claacutessico livro
Lucien Eacutecrivain imitation et creacuteation originariamente publicado em 1958 em que o autor
segue uma sugestatildeo de Croiset e trata a questatildeo luciacircnica a partir da desvalorizaccedilatildeo da oposiccedilatildeo
entre criaccedilatildeo e imitaccedilatildeo como processos antagocircnicos O objetivo de Bompaire eacute muito ousado
ele pretendia ldquover se possiacutevel o escritor em seu trabalho e captar a maneira como se elabora a
obra em seu espiacuteritordquo (BOMPAIRE 2000 5) O lucianista tentou compreender o conceito de
miacutemesis74 a partir dos significados dados pelos autores antigos tomando a imitaccedilatildeo como
73 Aquele que zela por Eireacutene a paz 74 Esse conceito eacute fundamental para a compreensatildeo da produccedilatildeo literaacuteria Para a historicizaccedilatildeo dos procedimentos
literaacuterios para a construccedilatildeo da mimeses na literatura ocidental reporte-se para o livro de Erich Auerbach Miacutemesis
a representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental (2011) Jean Pierre Vernant no texto O nascimento de
imagens (2010) se deteacutem principalmente na obra de Platatildeo para mostrar como o conceito de miacutemesis eacute construiacutedo
na filosofia antiga O helenista ainda ressalta seguindo os passos de Eric Havelock (1996) que as imagens no
mundo antigo vinculam-se estritamente a uma cultura oral A obra seminal para esse debate no periacuteodo romano da
literatura grega foi a Tese de Doutorado de Jacques Bompaire em seu livro Lucien Eacutecrivain imitation et creacuteation
(2000) que faz uma interssante investigaccedilatildeo da miacutemesis na obra de Luciano Entretanto esse autor natildeo ficou
restrito ao corpus luciacircnico sendo que a primeira parte de sua obra faz um levantamento rigoroso deste problema
nos autores do perioacutedo imperial A anaacutelise de Bompaire extremante rigorosa em sentido filoloacutegico carece de uma
percepccedilatildeo deste problema nas relaccedilotildees de poder O que pode ser encontrado no livro Greek literature and roman
Empire The politics of imitation (WEBB 2001 89) no qual retoma as colocaccedilotildees platocircnicas que desqualificam
a miacutemesis Retomando principalmente Plutarco Logino e Dioniso sua intensatildeo eacute compreender os aspectos
poliacuteticos dessa literatura e evideciar o caraacuteter subversivo da mesma A nosso ver a obra exagera ao colocar no
mesmo grupo autores tatildeo distintos como Plutarco e Logino como se ambos fossem caracterizados pela oposiccedilatildeo
ao Impeacuterio
59
atividade ativa para a criaccedilatildeo retoacuterica
Apesar dos avanccedilos que essa perspectiva fornece uma vez que valoriza os
mecanismos de criaccedilatildeo literaacuteria e as estrateacutegias de leitura usadas pelo autor prende o inteacuterprete
em uma anaacutelise dos textos luciacircnicos muito subserviente agrave biblioteca disponiacutevel ao escritor de
Samoacutesata (BRANDAtildeO 200119) Dito de outra forma os textos do siacuterio natildeo se vinculariam ao
seu tempo mas seriam fruto de um intelectual preso ao passado ou seja sua obra seria devedora
de sua biblioteca o que corrobora a colocaccedilatildeo de Cruiset (1882) de que o siacuterio natildeo se importava
com a realidade sociopoliacutetica de seu tempo
Por outro lado temos uma postura historiograacutefica que vecirc em Luciano um criacutetico do
Impeacuterio Romano Essa vertente foi apontada inicialmente por Aurelio Peretti (1946) em seu
livro Luciano un intellettuale greco contro Roma em que a partir da anaacutelise do diaacutelogo
Nigrino ou A Filosofia de Nigrino ele apresenta alguns pontos interessantes sobre a questatildeo
luciacircnica caracterizando Nigrino como um texto contra o Impeacuterio Romano Dessa forma
Peretti se coloca contra a tendecircncia geral que vecirc em Luciano um intelectual desligado das
questotildees atuais e submisso ao poder imperial
Entre essas posturas encontra-se a de C P Jones (1986 83-87) que em seu livro
Culture and Society in Lucian afirma que Luciano teria sido perseguido pelo Imperador
Adriano devido a suas caacuteusticas criacuteticas ao Impeacuterio Romano e soacute foi reabilitado por Cocircmodo
que o teria designado para um importante cargo na proviacutencia do Egito Esse autor descarta a
existecircncia de qualquer interesse poliacutetico em Luciano limitando-se a colocar os viacutenculos entre
Luciano e seu tempo juntamente com algumas figuras menores e problemas pontuais No
entanto natildeo aceita a imagem proposta por Bompaire de ldquoum artista absorvido em si mesmordquo
(JONES 1986 4-5) que natildeo se preocuparia com sua atualidade
Entendemos que podem ser mapeados nos escritos de Luciano elementos que
marcam essa intrincada identidade uma vez que ele ressalta em toda a sua obra seu lugar de
alteridade Como salienta Brandatildeo (1990 139) toda alteridade se daacute na relaccedilatildeo e sua construccedilatildeo
se daacute na Histoacuteria e na vida social Nesse contexto vemos a sobreposiccedilatildeo de signos e siacutembolos
de diferentes culturas
A anaacutelise de Brandatildeo coloca como eixo organizador do corpus Lucianeum a
alteridade Ela se encontra de diferentes maneiras por meio dos personagens marginalizados
(prostitutas eunucos escravos pobres) personagens marginalizados por opccedilatildeo (filoacutesofos
ciacutenicos) o diferente em relaccedilatildeo ao grego (o estrangeiro e baacuterbaro sendo que os romanos satildeo a
antiacutetese do que conforma a Paideia grega) em relaccedilatildeo aos vivos (mortos) os que escapam agrave
esfera da terra (habitantes da lua das estrelas do sol e os deuses) entre os deuses os deuses
60
baacuterbaros que satildeo um contraponto daqueles (BRANDAtildeO 1990 140-141) Luciano ainda
enfatiza os lugares da alteridade por exemplo o Hades confins da terra lugares estrangeiros
Uma anedota presente no opuacutesculo Hermoacutetimo pode nos ajudar a compreender o
problema da alteridade para Luciano
Conta-se que Gelatildeo de Siracusa tinha boca malcheirosa ― e tal fato foi
escondido dele durante muito tempo pois ningueacutem ousava advertir um tirano
ateacute uma mulher estrangeira tendo dormido com ele ousar dizer o que se
passava Ele voltando para junto da sua proacutepria mulher encolerizou-se por
ela natildeo tecirc-lo advertido sendo conhecedora mais do que ningueacutem do mau
cheiro Ela suplicou-lhe que a perdoasse pois natildeo tendo nunca dormido com
outro homem nem falado de perto acreditava que todos os homens exalavam
da boca o mesmo haacutelito75 (Luciano Hermot 34)
Essa estoacuteria eacute muito interessante uma vez que a mulher do tirano erra por ignoracircncia
os demais suacuteditos por medo Somente uma personagem que se move na completa alteridade
(mulher prostituta e estrangeira) lhe revela a verdade (BRANDAtildeO 1990 142)
Brandatildeo ainda ressalta que nos textos em que Luciano defende sua poeacutetica ele faz
alusatildeo ao incocircmodo papel de estrangeiro ldquoA questatildeo da alteridade em Luciano passa pelo
estatuto pouco definido do aculturado que deixando de lado o que lhe eacute proacuteprio adota uma
outra cultura mas natildeo se sente nunca totalmente adotado por elardquo (BRANDAtildeO 1990 144)
No texto O pescador ou os ressuscitados defendendo-se diante da Filosofia Luciano afirma
Sou siacuterio filosofia nas margens do Eufrates Mas para quecirc tudo isso Na
verdade sei de muitos desses meus adversaacuterios que natildeo satildeo menos baacuterbaros
de nascimento que eu mas apesar disso a sua iacutendole e a sua cultura natildeo
condizem com as Solenes dos Cipriotas dos Babilocircnios ou dos Estagiristas
Todavia para ti natildeo faz qualquer diferenccedila que um homem tenha uma
pronuacutencia baacuterbara desde que sua maneira de pensar se revele reta e justa76
(LUCIANO Pisc 19)
Se em um plano ideal a identidade grega eacute franca e aberta sendo o resultado da
formaccedilatildeo helecircnica (GOLDHILL2001 SWAIN 2003 GUARINELLO 2009) passiacutevel de
adesatildeo em seu Elogio agrave Paacutetria Luciano afirma que ldquoeacute ultrajante viver no
estrangeirordquo(LUCIANO Patr Enc 8)77
75 ldquoτῷ γὰρ Συρακουσίῳ Γέλωνί φασι δυσῶδες εἶναι τὸ στόμα καὶ τοῦτο ἐπὶ πολὺ διαλαθεῖν αὐτὸν οὐδενὸς
τολμῶντος ἐλέγχειν τύραννον ἄνδρα μέχρι δή τινα γυναῖκα ξένην συνενεχθεῖσαν αὐτῷ τολμῆσαι καὶ εἰπεῖν ὅπως
ἔχοι τὸν δὲ παρὰ τὴν γυναῖκα ἐλθόντα τὴν ἑαυτοῦ ὀργίζεσθαι ὅτι οὐκ ἐμήνυσε πρὸς αὐτὸν εἰδυῖα μάλιστα τὴν
δυσωδίαν τὴν δὲ παραιτεῖσθαι συγγνώμην ἔχειν αὐτῇ ὑπὲρ γὰρ τοῦ μὴ πεπειρᾶσθαι ἄλλου ἀνδρὸς μηδὲ ὁμιλῆσαι
πλησίον οἰηθῆναι ἅπασι τοῖς ἀνδράσι τοιοῦτό τι ἀποπνεῖν τοῦ στόματοςrdquo 76 ldquoΣύρος ὦ Φιλοσοφία τῶν Ἐπευφρατιδίων ἀλλὰ τί τοῦτο καὶ γὰρ τούτων τινὰς οἶδα τῶν ἀντιδίκων μου οὐχ
ἧττον ἐμοῦ βαρβάρους τὸ γένος ὁ τρόπος δὲ καὶ ἡ παιδεία οὐ κατὰ Σολέας ἢ Κυπρίους ἢ Βαβυλωνίους ἢ
Σταγειρίτας καίτοι πρός γε σὲ οὐδὲν ἂν ἔλαττον γένοιτο οὐδ εἰ τὴν φωνὴν βάρβαρος εἴη τις εἴπερ ἡ γνώμη ὀρθὴ
καὶ δικαία φαίνοιτο οὖσαrdquo 77 ldquoὄνειδος γὰρ τὸ τῆς ξενιτείαςrdquo
61
No opuacutesculo Hermoacutetimo ou sobre as seitas o autor discute os caminhos para se
encontrar a cidade ideal entendendo cidade como metaacutefora para a vida Qual escola filosoacutefica
poderia levar o indiviacuteduo a uma vida boa Observemos que na cidade a que se chega natildeo haacute
indiviacuteduos autoacutectones Luciano afirma que nela nesta cidade ldquotodos eram adventiacutecios
estrangeiros natildeo havendo um autoacutectone sequer pelo contraacuterio eram todos baacuterbaros escravos
aleijados pessoas humildes e pobres numa palavra qualquer um podia fazer parte daquela
cidaderdquo (LUCIANO Herm 24)78
A verdade natildeo eacute natural mas adquirida Observemos que no texto colocam-se em
causa somente os sistemas helecircnicos de formaccedilatildeo uma vez que a identidade eacute construiacuteda na
relaccedilatildeo com o outro em uma complexa rede de negociaccedilatildeo simboacutelica Cada indiviacuteduo assume
no decorrer de sua existecircncia diversas identidades em alguns momentos esses sentimentos de
pertenccedila se sobrepondo A caracteriacutestica mais evidente da identidade grega eacute o seu poder de
adesatildeo natildeo se trata de uma identidade assumida por meio do nascimento mas do aprendizado
de signos e sinais pertencentes agravequela forma de vida No caso especiacutefico de Luciano
observamos que ele fica em uma encruzilhada cultural onde o eu e o outro se (con)fundem Se
eacute ultrajante viver no estrangeiro (como citamos anteriormente) outro momento em que o caraacuteter
do estrangeiro eacute ressaltado eacute no panfleto Como se deve escrever a Histoacuteria no qual ele afirma
que
Assim pois para mim deve ser o historiador sem medo insubornaacutevel livre
e amigo da franqueza e da verdade mdash como diz o poeta cocircmico algueacutem que
chame figos de figos e gamela de gamela algueacutem que natildeo admita nem omita
nada por oacutedio ou por amizade que a ningueacutem poupe nem respeite nem
humilhe que seja juiz equacircnime benevolente com todos ateacute o ponto de natildeo
dar a um mais do que o devido estrangeiro nos livros sem cidade autocircnomo
sem rei natildeo se preocupando com o que acharaacute este ou aquele mas dizendo o
que se passou (LUCIANO Hist conscr 41)79
Para o siacuterio soacute eacute livre aquele que ao escrever natildeo tem paacutetria natildeo tem cidade que
cuida da regulamentaccedilatildeo da proacutepria vida que natildeo tem rei Aqui temos espaccedilo para natildeo ser
corrupto para ser franco para ser verdadeiro Observemos como essas mesmas caracteriacutesticas
aparecem na imagem que Luciano faz de Dioacutegenes no diaacutelogo O leilatildeo dos filoacutesofos
78 ldquoὡς ξύμπαντες μὲν ἐπήλυδες καὶ ξένοι εἶεν αὐθιγενὴς δὲ οὐδὲ εἷς ἀλλὰ καὶ βαρβάρους ἐμπολιτεύεσθαι πολλοὺς
καὶ δούλους καὶ ἀμόρφους καὶ μικροὺς καὶ πένητας καὶ ὅλως μετέχειν τῆς πόλεως τὸν βουλόμενονrdquo 79 ldquoΤοιοῦτος οὖν μοι ὁ συγγραφεὺς ἔστω ndash ἄφοβος ἀδέκαστος ἐλεύθερος παρρησίας καὶ ἀληθείας φίλος ὡς ὁ
κωμικός φησι τὰ σῦκα σῦκα τὴν σκάφην δὲ σκάφην ὀνομάσων οὐ μίσει οὐδὲ φιλίᾳ τι νέμων οὐδὲ φειδόμενος ἢ
ἐλεῶν ἢ αἰσχυνόμενος ἢ δυσωπούμενος ἴσος δικαστής εὔνους ἅπασιν ἄχρι τοῦ μὴ θατέρῳ τι ἀπονεῖμαι πλεῖον
τοῦ δέοντος ξένος ἐν τοῖς βιβλίοις καὶ ἄπολις αὐτόνομος ἀβασίλευτος οὐ τί τῷδε ἢ τῷδε δόξει λογιζόμενος
ἀλλὰ τί πέπρακται λέγωνrdquo
62
Comprador ― Primeiro oacute belo de onde eacutes
Dioacutegenes80― De todo lugar
Comprador ― Como dizes
Dioacutegenes ― Vecircs um cidadatildeo do mundo
Comprador ― E imitas algueacutem
Dioacutegenes ― Heacuteracles
Comprador ― E por que natildeo levas tu tambeacutem a pele de leatildeo Pois no bastatildeo
estaacutes parecido com ele
Dioacutegenes ― Esta eacute minha pele de leatildeo este meu manto e luto como ele
[Heacuteracles] contra os prazeres ndash sem que ningueacutem me obrigue mas por vontade
proacutepria propondo-me uma vida limpa de imundiacutecies
(LUCIANO Vit Auct 8)81
A liberdade do filoacutesofo ciacutenico eacute dada justamente pelo fato de natildeo ter cidade e eacute
justamente por ser um cidadatildeo do mundo que o filoacutesofo pode ensinar a liberdade Luciano leva
ao extremo o estatuto do estrangeiro em sua obra jaacute que ele mesmo eacute um estrangeiro em seus
livros
Ateacute aqui ressaltamos os viacutenculos ambiacuteguos de Luciano com a cultura helecircnica e a
cultura romana Preocupa-nos a atuaccedilatildeo da intelectualidade helenoacutefona no seio do Impeacuterio
Observamos que tal accedilatildeo dava-se de acordo com a proposta de Veyne ser patriota xenoacutefobo agrave
romanidade e colaborador da ordem imperial
Luciano foi acusado de uma contradiccedilatildeo performaacutetica ndash ou seja de dizer uma coisa e
fazer outra ndash pela elaboraccedilatildeo da obra Em defesa dos que recebem salaacuterio escrita em defesa das
criacuteticas de hipocrisia que Luciano recebeu ao assumir um cargo na administraccedilatildeo da proviacutencia
imperial do Egito uma vez que ele havia escrito um texto Sobre os que recebem salaacuterio no
qual criticava os gregos que aceitavam trabalhar nas casas dos romanos para receber um
80 Brandatildeo ressalta que natildeo podemos esquecer que os nomes presentes em Leilatildeo dos Filoacutesofos devem-se aos
escoliastas e aos copistas e que nenhum nome proacuteprio eacute citado o que dificulta a identificaccedilatildeo (BRANDAtildeO 2001
310) 81 ldquoΑΓΟΡΑΣΤΗΣ
Τὸ πρῶτον ὦ βέλτιστε ποδαπὸς εἶ
ΔΙΟΓΕΝΗΣ
Παντοδαπός
ΑΓΟΡΑΣΤΗΣ
Πῶς λέγεις
ΔΙΟΓΕΝΗΣ
Τοῦ κόσμου πολίτην ὁρᾷς
ΑΓΟΡΑΣΤΗΣ
Ζηλοῖς δὲ δὴ τίνα
ΔΙΟΓΕΝΗΣ
Τὸν Ἡρακλέα
ΑΓΟΡΑΣΤΗΣ
Τί οὖν οὐχὶ καὶ λεοντῆν ἀμπέχῃ τὸ μὲν γὰρ ξύλον ἔοικας αὐτῷ
ΔΙΟΓΕΝΗΣ
Τουτί μοι λεοντῆ τὸ τριβώνιον στρατεύομαι δὲ ὥσπερ ἐκεῖνος ἐπὶ τὰς ἡδονάς οὐ κελευστός ἀλλὰ ἑκούσιος
ἐκκαθᾶραι τὸν βίον προαιρούμενοςrdquo
63
ordenado
Observemos os argumentos usados por Luciano para defender-se
() como eacute muitiacutessimo diferente algueacutem que tendo ingressado na casa de
algum rico serve e suporta quantas coisas eu disse no meu livro de quem na
esfera puacuteblica realiza algum dos serviccedilos da comunidade administrando os
negoacutecios puacuteblicos de acordo com suas capacidades e recebendo do
Imperador por isso um salaacuterio () os que tecircm em suas matildeos negoacutecios
puacuteblicos e se fazem uacuteteis para cidades e povos inteiros natildeo poderiam ser
razoavelmente caluniados apenas em razatildeo do salaacuterio () E o soldo natildeo
procede de um particular e sim do Imperador tampouco eacute pequeno trata-se
de muitos talentos As esperanccedilas futuras natildeo satildeo pequenas se acontecer o
normal talvez a supervisatildeo da proviacutencia ou outro serviccedilo imperial
(LUCIANO Apol 11-12)82
Luciano evidencia uma dicotomia muito interessante entre casa e Estado
estabelecendo uma diferenccedila qualitativa entre trabalhar para um particular e servir ao Impeacuterio
Se o trabalho na casa de um particular rico coloca no horizonte a servidatildeo e a subserviecircncia a
esperanccedila de trabalhar para o Imperador possibilita o enriquecimento e o espaccedilo propiacutecio para
fazer o bom uso de suas capacidades intelectuais Se a casa de um rico eacute o espaccedilo da vergonha
o Impeacuterio eacute o da gloacuteria A lealdade eacute dada por um viacutenculo direto com o Imperador
Faz-se mister retomar as ideias que marcaram a confecccedilatildeo deste item no qual buscou-
se entender o lugar de Luciano de Samoacutesata em consonacircncia com o que a Segunda Sofiacutestica
tinha no Impeacuterio Romano As especificidades dos escritos luciacircnicos sugerem que as hipoacuteteses
de Wallace-Hadrill sobre os trecircs coraccedilotildees devem ser suavizadas e que os aspectos ambiacuteguos
indicados por Paul Veyne merecem ser investigados em um panorama mais complexo Em um
conjunto de discursos como os que Luciano escreveu a pergunta sobre o que seria pertinente a
essa ou agravequela identidade mostra-se em sua leitura um falso questionamento jaacute que os
elementos identitaacuterios satildeo apresentados a partir de uma rede de negociaccedilotildees ressignificaccedilotildees
transgressotildees que transformam ou reforccedilam signos e significados dependendo da necessidade
do discurso A partir desse ponto o processo de descriccedilatildeo densa permite compreender a
dialeacutetica entre o eu (Luciano) e o outro (cultura imperial)
Entretanto temos claro que um poliacutegrafo como Luciano era profundamente atingido
pela realidade assim nosso desafio eacute encontrar as pistas sutis que ele deixou A seguir
82 ldquo[] ὡς πάμπολυ διαφέρει ἐς οἰκίαν τινὸς πλουσίου ὑπόμισθον παρελθόντα δουλεύειν καὶ ἀνέχεσθαι ὅσα μοί
φησιν τὸ βιβλίον ἢ δημοσίᾳ πράττοντά τι τῶν κοινῶν καὶ ἐς δύναμιν πολιτευόμενον ἐπὶ τούτῳ παρὰ βασιλέως
μισθοφορεῖν [] οἱ δὲ τὰ κοινὰ διὰ χειρὸς ἔχοντες καὶ πόλεσι καὶ ἔθνεσιν ὅλοις σφᾶς αὐτοὺς χρησίμους
παρέχοντες οὐκ ἂν εἰκότως ἐκ μόνου τοῦ μισθοῦ διαβάλλοιντο [] καὶ ὁ μισθὸς οὐκ ἰδιωτικός ἀλλὰ παρὰ τοῦ
βασιλέως οὐ σμικρὸς οὐδὲ οὗτος ἀλλὰ πολυτάλαντος καὶ τὰ μετὰ ταῦτα δὲ οὐ φαῦλαι ἐλπίδες εἰ τὰ εἰκότα
γίγνοιτο ἀλλὰ ἔθνος ἐπιτραπῆναι ἤ τινας ἄλλας πράξεις βασιλικάςrdquo
64
completamos esse quadro que constroacutei os elementos metanarrativos que ordenam a elaboraccedilatildeo
do discurso memorialiacutestico assim continuamos nossa anaacutelise observando como os usos das
narrativas miacuteticas referem-se agrave construccedilatildeo de um discurso memorialiacutestico pois se ligam a um
preteacuterito comum
16 Narrativas miacuteticas e memoacuteria cultural em um Impeacuterio Greco-romano
Roger Chatier afirmou recentemente que os historiadores se surpreenderam ao notar
que seu trabalho natildeo lhes garante o monopoacutelio sobre as formas de representaccedilatildeo do passado e
que outras formas de narrativas satildeo muito mais eficientes do que aquelas elaboradas apoacutes a
pesquisa cientiacutefica Nesse domiacutenio puacuteblico dos usos do passado temos os relatos
memorialiacutesticos a mitologia os romances histoacutericos os textos eacutepicos as hagiografias
medievais as telenovelas os filmes os documentaacuterios entre outras possibilidades de narrar
aspectos do passado (CHARTIER 2009 30)
O primeiro meio de aproximaccedilatildeo com o passado que temos eacute a memoacuteria trabalho
individual que coloca o homem no mundo e o aproxima dos outros ldquoO sujeito mesmo antes
de ser um eu jaacute estaacute a um certo niacutevel imerso na placenta de uma memoacuteria que o socializa e agrave
luz da qual ele iraacute definir quer sua estrateacutegia de vida quer os seus sentimentos de pertenccedila e
de adesatildeo ao coletivordquo (CATROGA 2009 13 grifo do autor) Natildeo se trata de entender a
memoacuteria como externa aos indiviacuteduos mas de ter claro que soacute eacute possiacutevel lembrar em sociedade
pois cada um precisa das memoacuterias dos outros para representar o mundo em que habita Nesse
sentido os mitos fazem parte desse passado compartilhado
O livro de Paul Ricoer A memoacuteria a Histoacuteria e o Esquecimento diferencia
memoacuteria e Histoacuteria83 nos seguintes termos Em primeiro lugar ele coloca a distinccedilatildeo entre
testemunho e documento sendo o primeiro ligado agrave memoacuteria e o segundo agrave Histoacuteria
No testemunho a realidade factual eacute construiacuteda a partir da confiabilidade presumida
de seu autor uma vez que este pode reivindicar a veracidade daquilo que disse jaacute que vivenciou
o que foi relatado84 (RICOEUR 2007 172) sempre apresentando a foacutermula eu estava laacute O
testemunho ldquoproporciona uma sequecircncia narrativa agrave memoacuteria declarativardquo (RICOEUR 2007
83 Usamos o termo Histoacuteria com letra maiuacutescula para distinguir a ciecircncia da Histoacuteria do objeto do conhecimento
dessa a histoacuteria 84 Paul Ricoeur deixa claro que essa argumentaccedilatildeo surge a partir de ldquocertas formas contemporacircneas de depoimento
sucitadas pelas atrocidades em massa do seacuteculo XXrdquo (RICOEUR 2007 170)
65
176) e eacute acreditado ou natildeo dependendo do ouvinteleitor eacute imediatista produzido no momento
presente e finalmente permite o reconhecimento do passado
Os documentos reunidos organizados catalogados selecionados e guardados no
arquivo satildeo acessados por especialistas que podem extrair dos mesmos uma narrativa histoacuterica
que se distinguiria do testemunho O arquivo permite que o historiador tenha uma postura
indiciaacuteria A narrativa histoacuterica eacute construiacuteda com elementos que a inserem em um regime de
verdade sendo possiacutevel a refutaccedilatildeo ou verificaccedilatildeo do que foi dito claramente Ricoeur estaacute
influenciado por Michel de Certeau85 (2011 45-111) Os documentos permitem a construccedilatildeo
lenta da explicaccedilatildeo histoacuterica a partir da construccedilatildeo das argumentaccedilotildees por fim eles permitem
a representaccedilatildeo do passado (RICOEUR 2007 170-192)
Essa argumentaccedilatildeo dificultaria muito o estudo dos usos da memoacuteria no mundo
antigo uma vez que tais conceitos natildeo podem ser aplicados a essa realidade Franccedilois Hartog
no livro A evidecircncia da Histoacuteria analisa a relaccedilatildeo entre a testemunha e o historiador e constata
que no mundo antigo havia dois conceitos de testemunho o grego e o judaico-cristatildeo
O conceito grego que se vincula aos historiadores mas tambeacutem aos meacutedicos
antigos salienta a investigaccedilatildeo e a visatildeo como caracteriacutesticas para a produccedilatildeo do conhecimento
Por outro lado haacute a postura judaico-cristatilde das religiotildees reveladas em que
aqueles que viram com os proacuteprios olhos tornaram-se servidores ou para dizer
de outro modo eles viram e acreditaram e aqueles que desde o iniacutecio se
tornaram servidores satildeo aqueles que viram Ver e servir satildeo indissociaacuteveis De
tal modo que aqueles que viram sem se tornarem servidores no fundo natildeo
chegaram a ver realmente E aqueles que se tornaram servidores viram ndash
poderiacuteamos acrescentar- com os olhos da feacute (HARTOG 2011 220)
Assim o conceito moderno de documento e de testemunha que Ricoeur (2007
170-192) desdobra das indagaccedilotildees de Certeau (2011 45-111) natildeo eacute universal mas depende de
um regime de historicidade e de memoacuteria que eacute especiacutefico da modernidade e da
profissionalizaccedilatildeo do historiador Nem os historiadores gregos nem os latinos se preocupavam
com as fontes a fim de validar seu discurso Como discorre Carlo Ginzburg (2007 17-19) no
livro O fio e os rastros os historiadores antigos precisavam expressar com vivacidade
(enargeia) seu relato natildeo sendo necessaacuterio mostrar as fontes Essas poderiam aparecer mas
estavam muito mais no espaccedilo dos elementos acessoacuterios do texto do que daquilo que era
fundamental diferentemente do historiador moderno cujas fontes satildeo elementos essenciais
85 Michel de Certeau cunha o conceito de operaccedilatildeo historiograacutefica para definir o trabalho do historiador e a
distinccedilatildeo deste com outras narrativas que evocam o passado Para ele o trabalho desse sujeito tem trecircs etapas o
estabelecimento da prova documental a construccedilatildeo da explicaccedilatildeo e a narrativizaccedilatildeo (CERTEAU 2011 45-111)
66
para a elaboraccedilatildeo de sua narrativa Os criteacuterios de validaccedilatildeo enunciativa satildeo outros haacute outro
regime de memoacuteria em accedilatildeo
Outro ponto importante eacute a compreensatildeo de que o conceito antigo de Histoacuteria eacute
diferente do moderno Hanna Arendt afirma que o tema da Histoacuteria eacute o extraordinaacuterio aquilo
que pretende vencer a mortalidade da vida e se inscrever em uma ordem eterna (ARENDT
2002 72) O homem antigo desconhecia a noccedilatildeo de processo logo os eventos estudados natildeo
eram encaminhados em uma ordem causal que permitisse uma explicaccedilatildeo estrutural Nesse
sentido as guerras satildeo momentos fundamentais para esses historiadores
Seguindo esses elementos o historiador do mundo antigo que deseja operar com as
distinccedilotildees de Paul Ricoeur coloca-se em uma situaccedilatildeo difiacutecil Entretanto antes de decretar a
impossibilidade do estudo da memoacuteria em sociedades diferentes devemos ressaltar que a
distinccedilatildeo proposta pelo filoacutesofo francecircs responde aos interesses contemporacircneos sobre os usos
e abusos do passado na sociedade hodierna
A fim de ampliar o debate afirmamos que a memoacuteria vincula-se agraves repeticcedilotildees e agraves
atualizaccedilotildees culturais natildeo se restringindo agraves elaboraccedilotildees conscientes dos indiviacuteduos pois as
sociedades apresentam um rico acervo que eacute transmitido de acordo com os regimes de memoacuteria
em que se inscrevem
Jan Assmann86 afirma que ldquoo princiacutepio fundamental de todas as estruturas
conectivas eacute a repeticcedilatildeo que garante que as linhas de accedilatildeo natildeo se percam no infinito mas
tambeacutem que se ordenem em modelos reconheciacuteveis e possam identificar-se como elementos de
uma cultura comumrdquo (ASSMANN 2011 19) Esse princiacutepio de conectividade eacute a base da
cultura humana visto que os homens tecircm acima de tudo a capacidade de se comunicar
(THEML 2002 12)
Entendemos que memoacuteria eacute a capacidade que o indiviacuteduo tem de expressar
conteuacutedos adquiridos em um tempo anterior agravequele em que ele vive permitindo a troca de
experiecircncias passadas por mecanismos extremamente variados
Para Assmann (2011) existe a memoacuteria comunicativa e a memoacuteria cultural A
memoacuteria comunicativa refere-se agraves lembranccedilas relacionadas ao passado recente aquelas que os
indiviacuteduos dividem com seus contemporacircneos e podem reivindicar sua veracidade trata-se da
86 Jan Assmann eacute um egiptoacutelogo alematildeo que juntamente com sua esposa Aleida Assmann tem desenvolvido e
aplicado o conceito de memoacuteria cultural Os dois livros de Jan Assmann que citamos na bibliografia satildeo traduccedilotildees
em espanhol e francecircs do livro Das kulturelle Gedaumlchtnis Schrift Erinnerung und politische publicado
originariamente em 2002 Sua esposa eacute especialista em Renascimento sendo que seu livro Espaccedilos da recordaccedilatildeo
formas e transformaccedilotildees da memoacuteria cultural (ASSMANN 2011) foi publicado recentemente pela Editora da
UNICAMP
67
memoacuteria de uma geraccedilatildeo (ASSMANN 2011 49) Por outro lado a memoacuteria cultural orienta-
se
mediante pontos fixos do passado Tampouco nela se pode perpetuar o
passado enquanto tal Neste caso o passado se coagula em figuras simboacutelicas
que se aderem a recordaccedilatildeo () os mitos satildeo figuras da recordaccedilatildeo natildeo tem
sentido distinguir aqui entre mito e histoacuteria Para a memoacuteria cultural a histoacuteria
factual natildeo conta mas a histoacuteria como eacute lembrada Tambeacutem se poderia dizer
que na memoacuteria cultural a histoacuteria factual se converte em recordaccedilatildeo e
portanto se transforma em mito O mito eacute uma histoacuteria fundante uma histoacuteria
contada para esclarecer o presente ao iluminar as origens () Na lembranccedila
a Histoacuteria faz-se mito Deste modo natildeo se torna irreal muito pelo contrario se
transforma em realidade entendida como uma forccedila normativa e formativa
permanente (ASSMANN 2011 51)
Os elementos que compotildeem o regime de memoacuteria estatildeo relacionados justamente
com os pontos fixos que estatildeo fora dos discursos por isso metadiscursivos Trata-se daquilo
que antecede a escrita e lhe fornece limites e argumentos proacuteprios agrave sua confecccedilatildeo Esses pontos
fixos satildeo pensados a partir da loacutegica de que memoacuteria eacute aquilo que os homens repetem suas
histoacuterias de vida as narrativas de seus antepassados proacuteximos ou distantes ou ainda as
narrativas miacuteticas
O regime de memoacuteria romano no qual Luciano se inscreve apresenta um contexto
em que a formaccedilatildeo dos homens passa por treinamentos muito especiacuteficos A historiadora
Frances A Yates (2007 17-26) estudou a construccedilatildeo da arte da memoacuteria87 o que permite
entender o que Assmann chama de cultura da recordaccedilatildeo jaacute que a arte da memoacuteria treinamento
de uma memoacuteria artificial a fim de elaborar discursos complexos eacute bastante desenvolvida88
Esse treinamento orienta para a construccedilatildeo discursiva a partir de outras formas de
validaccedilatildeo enunciativa que ganha contornos diferentes no contexto histoacuterico romanizado Nesse
sentido os trabalhos de Ruth Webb (1997229-232) sobre a ecfrase antiga nos ajudam a
entender como a ideia de vivacidade (enargeia) eacute mais importante para dar credibilidade ao
texto dos historiadores do que a remissatildeo aos arquivos e agraves fontes consultadas
Esses elementos fornecem aos oradores escritores e retores elementos para
desenvolver teacutecnicas de uso da memoacuteria artificial Joumlrn Ruumlsen complementa esse debate ao
87 Yates inicia sua investigaccedilatildeo pelo estudo dos textos de Ciacutecero Quintiliano e um tratado Anocircnimo a Retoacuterica
Ad Herennium Ela mostra como a Antiguidade greco-romana produziu sofisticadas teacutecnicas memorialiacutesticas
vinculadas agrave disposiccedilatildeo precisa dos discursos em lugares de memoacuteria e em imagens 88 Mary Carruthers (2011) escreveu A teacutecnica do pensamento meditaccedilatildeo retoacuterica e a construccedilatildeo de imagens
(400-1200) que trata do mesmo tema na Idade Meacutedia Harald Weinrich estudou o oposto em seu Lete arte e criacutetica
do esquecimento (2001) se debruccedilou sobre o estudo da ars oblivionis (arte do esquecimento)
68
afirmar que as narrativas referentes ao passado satildeo uma constante antropoloacutegica fundamental agrave
existecircncia humana (RUumlSEN 2001 149-174)
Maurice Halbwaschs (2004) socioacutelogo francecircs no livro poacutestumo Memoacuteria
Coletiva enfatiza que os indiviacuteduos necessitam da coletividade para lembrar Sua conclusatildeo
chega a enfatizar que soacute existe memoacuteria coletiva que o indiviacuteduo natildeo teria existecircncia enquanto
tal se natildeo fosse o grupo A memoacuteria coletiva refere-se agrave maneira pela qual os indiviacuteduos se
aproximam das narrativas que constroem as identidades sociais Haacute um passado comum que
orienta discursos sobre como determinadas entidades devem agir ou seja as memoacuterias
construiacutedas na coletividade e que extravasam os paracircmetros da vida permitem refletir os
conceitos apresentados Nesse sentido a indagaccedilatildeo do teoacuterico portuguecircs Fernando Catroga
sobre a memoacuteria coletiva faz muito sentido ldquoNatildeo seraacute este conceito filho de uma ilusatildeo
holiacutestica de cariz antropomoacuterfico e antropopaacutetico Incompatiacutevel com a atual reivindicaccedilatildeo da
subjetividade e com a contestaccedilatildeo da autossuficiecircncia e autonomia das totalidades sociaisrdquo
(CATROGA 2009 12)
A resposta a essa pergunta deve observar que haacute na sociedade ritos monumentos
manuais e diversas miacutedias que orientam as lembranccedilas das pessoas Assim devemos superar o
positivismo metodoloacutegico de Halbwaschs e aprender com sua leitura que haacute elementos
externos a balizar nos quais os homens encontram as referecircncias para construir suas narrativas
E ainda como lembra a historiadora Jacy Seixas para o socioacutelogo francecircs a memoacuteria se daacute no
grupo (SEIXAS 2001 107)
Observando que o termo coletivo89 apresenta consideraccedilotildees holiacutesticas como
indagado anteriormente por Catroga (2009 12) salientamos que a proposta de Jan Assmann
(2011 51) de uma memoacuteria cultural nos permite avanccedilar no debate acerca das construccedilotildees
memorialiacutesticas no mundo antigo
O mito foi pensado enquanto uma narrativa fundante que representa em alguma
medida o passado de uma comunidade Nesse caminho os mitos satildeo elementos que constituem
as identidades culturais Para entender a maneira como o preteacuterito eacute reapresentado buscamos a
compreensatildeo do regime de memoacuteria romano Devemos compreender como os homens
89 Wulf Kansteiner afirma que ldquoA maioria dos estudos sobre memoacuteria se concentra na representaccedilatildeo de eventos
especiacuteficos dentro de configuraccedilotildees cronoloacutegicas geograacuteficas e de miacutedia especiacuteficas sem refletir sobre os puacuteblicos
das representaccedilotildees em questatildeo Como resultado a riqueza de novas visotildees agraves culturas histoacutericas passadas e
presentes natildeo podem ser ligadas conclusivamente aos coletivos sociais especiacuteficos e sua consciecircncia histoacutericardquo
(KANSTEINER 2002 179) Logo faz-se necessaacuterio observar a quais grupos os textos luciacircnicos atingem no
caso uma pequena elite letrada entretanto como esses textos eram apresentados em seccedilotildees puacuteblicas haacute uma
grande possibilidade de ampliaccedilatildeo desta audiecircncia obtendo com isso um alcance maior do puacuteblico Entretanto
essas afirmaccedilotildees satildeo bastante conjecturais
69
lembram assim como o uso que fazem dessa lembranccedila ou seja de como eles gerem a
memoacuteria
O regime de memoacuteria depende de um conjunto de elementos que natildeo satildeo
individuais mas externos aos indiviacuteduos No caso que estudamos devemos ressaltar que estava
disponiacutevel aos homens os saberes da retoacuterica principalmente a mnemoteacutecnica ou a arte da
memoacuteria O domiacutenio desses elementos era importante para a inserccedilatildeo poliacutetica e cultural das
comunidades A formaccedilatildeo de bons oradores era a ponte entre as cidades e o poder imperial
uma vez que somente esses especialistas das palavras poderiam fazer reivindicaccedilotildees junto aos
Imperadores eou autoridades romanas sem correr o risco de ofender o dominador Em outras
palavras os perigos de uma comunicaccedilatildeo desastrosa poderiam custar muito caro agraves
comunidades desse modo a formaccedilatildeo de bons oradores era um dado significativo
Outro elemento importante para a compreensatildeo do regime de memoacuteria romano eacute o
modo de validaccedilatildeo discursivo que predominava No mundo em que viveu Luciano a verdade
era dada pela possibilidade de o discurso produzir a sensaccedilatildeo de ser visto
As questotildees referentes ao regime de memoacuteria romano pouco a pouco se afunilam
nos escritos luciacircnicos No intuito de deslindar os mecanismos metanarrativos que satildeo
mobilizados por Luciano colocamos sua relaccedilatildeo com o dizer verdadeiro Com a produccedilatildeo de
enunciados a partir da parreacutesia franqueza Luciano tece sua argumentaccedilatildeo recorrendo
peremptoriamente a essa modalidade do dizer verdadeiro como vemos no proacuteximo toacutepico
17 A coragem da verdade em Luciano entre a poliacutetica imperial e a fala franca
Em seus dois uacuteltimos cursos no Collegravege de France o filoacutesofo francecircs Michel Foucault
ministrou uma seacuterie de conferecircncias sobre uma modalidade especiacutefica do dizer verdadeiro que
se aglutinava a partir da palavra grega Παρρησία (parreacutesia)90 cujo significado tem campo
semacircntico entre sinceridade coragem da verdade fala franca
90 Παρρησία ας significa liberdade de expressatildeo franqueza sinceridade (MALHADAS et alli 2009d 42)
Segundo o dicionaacuterio Liddell-Scott-Jones do ponto de vista etimoloacutegico essa palavra faz a combinaccedilatildeo de πᾶς e
ῥῆσις capacidade plena e inteira de dizer Esse termo foi analisado por Michel Foucault nos dois uacuteltimos cursos
que ele ministrou no Collegravege de France ao analisar esse termo em um sentido mais amplo sobre um modo
especiacutefico de dizer a verdade (FOUCAULT 2012 4) Trata-se de uma forma que coloca o produtor de discursos
em uma situaccedilatildeo especiacutefica ou seja a do parresiasta um indiviacuteduo que se coloca de maneira ousada diante do
mundo e que por este mesmo motivo pode sofrer com as consequecircncias do que diz Ele eacute capaz de usar a parreacutesia
para se comunicar com aquele que estaacute no poder (FOUCAULT 2012 9) o que eacute uma noccedilatildeo primordialmente
poliacutetica Mais adiante analisamos essa ideia em alguns textos luciacircnicos Em portuguecircs existe o temo parreacutesia
registrado no dicionaacuterio Houaiss como ldquoliberdade oratoacuteria afirmaccedilatildeo jocosardquo desdobrando o sentido etimoloacutegico
grego ldquoliberdade de linguagem franquezardquo e a etimologia latina ldquoconfissatildeo espeacutecie de concessatildeordquo registrando
ainda o adjetivo parreacutesico
70
A leitura do corpus luciacircnico nos permite encontrar essa palavra em momentos
bastante especiacuteficos que se relacionam agrave sua postura como escritor e em alguma medida como
cidadatildeo Como forma de compreender o regime de memoacuteria romano no qual o siacuterio se insere
buscamos compreender essa noccedilatildeo em seus mecanismos internos de validaccedilatildeo discursiva
Nesse sentido tal anaacutelise se insere tambeacutem no campo de uma Histoacuteria do dizer verdadeiro
como foi proposto por Foucault Entretanto apartamo-nos da anaacutelise desse filoacutesofo uma vez
que entendemos o papel das formaccedilotildees discursivas na escrita dos textos mas natildeo descartamos
a intencionalidade que o autor confere a seus escritos Haacute no texto literaacuterio elementos criadores
que expressam habilidades e processos criativos (COMPAGNON 2012 94)
Trata-se de uma modalidade do dizer verdadeiro de uma forma na qual o indiviacuteduo
manifesta a verdade e a mesma eacute reconhecida pelo grupo (FOUCAULT 2011 4) A parreacutesia
que aqui traduzimos por fala franca natildeo pode ser confundida em sua verdade com outras
formaccedilotildees discursivas
() o parresiasta natildeo eacute o profeta que diz a verdade desvelando em nome de
outro e enigmaticamente o destino O parresiasta natildeo eacute um saacutebio que em
nome da sabedoria diz quando quer e sobre o fundo de seu proacuteprio silecircncio
o ser e a natureza (a phyacutesis) O parresiasta natildeo eacute o professor o instrutor o
homem do know-how que diz em nome de uma tradiccedilatildeo a teacutekhne
(FOUCAULT 2011 24-25)
Em seu curso o autor da Histoacuteria da Loucura analisa algumas passagens dos escritos
de Luciano sem a intenccedilatildeo de compreendecirc-los Seu intento eacute deslindar a parreacutesia ciacutenica em
algumas imagens construiacutedas no corpus luciacircnico Destarte o uso que Foucault faz desses
escritos estaacute no encontro das reflexotildees sobre o dizer verdadeiro e a maneira pela qual Luciano
se construiu enquanto escritor
Em 1964 Giuseppe Scarpat publicou Parrhesia Storia del termine e delle sue
traduzioni in latino em que ele traccedila um panorama do uso dessa palavra nas assembleias
atenienses ou seja seu uso poliacutetico fundamental para a existecircncia da democracia claacutessica Ele
investiga principalmente seu uso na comeacutedia claacutessica e entre os filoacutesofos Nessa investigaccedilatildeo
o autor cita Luciano em apenas duas passagens quando fala da parreacutesia ciacutenica (SCARPAT
1964 125-148)
Recentemente foi publicado o livro Free speech in classical antiquity organizado por
Ineke Sluiter e Ralph M Rosen que apresenta capiacutetulos bastante ricos sobre a temaacutetica
novamente sobre seu uso na comeacutedia e na vida poliacutetica ateniense Entretanto seu recorte
temaacutetico prioriza o periacuteodo grego claacutessico (SLUITER amp ROSEN 2004)
Especificamente sobre os escritos de Luciano de Samoacutesata temos o artigo intitulado
71
La notion de parrheacutesia chez Lucien de Valeacuterie Visa-Ondaccediluhu que objetiva analisar como a
literatura grega do periacuteodo imperial utiliza elementos que fazem parte da tradiccedilatildeo grega
claacutessica Dessa forma o termo parreacutesia eacute pensado como componente dessa heranccedila ldquoem um
movimento de mimeacutesis vista natildeo como simples imitaccedilatildeo mas como recriaccedilatildeordquo (VISA-
ONDACcedilUHU 2006 262)
Tais reflexotildees nos ajudam a analisar os escritos luciacircnicos uma vez que esse termo
aparece em momentos significativos A hipoacutetese que levantamos eacute que o autor siacuterio se coloca
como um produtor de discursos que busca na fala franca sua construccedilatildeo literaacuteria ou seja ele se
coloca nos textos com o horizonte de construccedilatildeo textual a partir da parreacutesia No corpus
luciacircnico aparecem quarenta e seis termos da famiacutelia de παρρησία παρρησία (Phal A 9 Nigr
15 3 Demon 3 15 Demon 11 6 Demon 50 10 J conf 5 4 J trag 19 2 J trag 32 28
Tim 36 9 Char 13 1 Vict auct8 15 Pisc 17 8 Merc Cond 416 Alex 47 18 Syr Dea
22 9 Peregr 18 16 Fug 12 16 Lex 17 11 Pseudol 1 12 Pseudol 4 3 Pseudol 4 20
Deor Conc 2 6 Deor Conc 4 2 Deor Conc 6 10 Deor Conc 14 1 Abd 7 14 Hist Co
41 2 Hist Co 44 2 Hist Co 61 8 Apol 13 1 Hermot 51 10 D mort 20 9 22 D mort
21 3 14 D mort21 4 8) παρρησιάξομαι (J Trag 19 5 J Trag 41 21 J Trag 44 12 Tim
11 4 Adv Ind 30 8 Pseudol 3 2) παρρησιάαστής (Deor Conc 3 12) παρρησιαστκός
(Cal 23 7) ἀπαρρησίατος (Cal 9 1) Geralmente essa noccedilatildeo aparece secundada de outras
duas importantes noccedilotildees gregas ἐλευθερία (Nigr 15 3 Demom 3 15 Demon 11 6 Cal 23
7 Char 13 1 Vict Auct 8 15 Pisc 17 8 Peregr 18 16 Lex 17 11 Pseudol 1 12 Deor
Conc 2 6 Abd 7 14 Hist Co 41 2 Hist Co 61 8 D Mort 20 9 22 D Mort 21 3 14)
e ἀλήθεια (Nigr 15 3 Demom 3 15 Cal 9 1 J Conf 5 4 Tim 36 9 Char 13 1 Vict
Auct 8 15 Merc Cond 4 16 Alex 47 18 Lex 17 11 Pseudol 4 3 Pseudol 4 20 Abd
7 14 Hist co 41 2 Hist co 44 2 Hist co 61 8 Hermot 51 10 D mort 21 3 14 D mort
21 4 8) respectivamente Liberdade e Verdade
Foucault identificou na parreacutesia uma caracteriacutestica da forma ciacutenica de dizer a verdade
O que estaacute em conformidade por exemplo com o Ciacutenico presente no Leilatildeo dos Filoacutesofos O
comprador pergunta ao filoacutesofo ciacutenico a que ele se dedica e ele responde ldquo Sou libertador de
homens e meacutedicos de afliccedilotildees Em uma palavra quero ser profeta da verdade e da franqueza
(παρρησίας)rdquo (Luciano Vit Auct 8) Nesse passo o personagem Ciacutenico eacute o porta-voz da
verdade parreacutesica
O termo profeta natildeo pode ter a conotaccedilatildeo judaica daquele que conhece o futuro graccedilas
72
agrave divindade mas deve aproximar-se da figura de Tireacutesias91 que conhece a verdade no presente
no futuro e no passado enquanto ela estaacute oculta aos homens Por exemplo natildeo basta ter a
verdade visto que eacute necessaacuterio que o filoacutesofo apresente um mecanismo de enunciaccedilatildeo que
permite que ela seja dita mesmo em condiccedilotildees desfavoraacuteveis (HADOT 2008 52-53)
Trata-se de uma caracteriacutestica da parreacutesia colocar o dono do discurso em condiccedilotildees
perigosas No caso do diaacutelogo trata-se de um filoacutesofo vendido como escravo que jaacute adianta ao
comprador que iraacute dizer a verdade O opuacutesculo O leilatildeo dos filoacutesofos serve de mote para o texto
O pescador ou os ressuscitados no qual o siacuterio eacute acusado pelos filoacutesofos ilustres de tecirc-los
desmoralizado ao fazer com que fossem vendidos em praccedila puacuteblica como se fossem escravos
o que era uma afronta contra os filoacutesofos e a filosofia Ele eacute julgado em um tribunal onde estatildeo
presentes diversas personificaccedilotildees como a Filosofia a Virtude a Verdade entre outras Em um
longo trecho ele explica que natildeo tinha a intenccedilatildeo de criticar a Filosofia ou os grandes mestres
mas seus seguidores que soacute se interessavam por riquezas e fama Na conclusatildeo do livro Luciano
faz uma ordaacutelia para distinguir os verdadeiros filoacutesofos dos falsos Ele convida todos os ditos
filoacutesofos para receber presentes e nesse momento uma multidatildeo se apresenta Entretanto ele
afirma que os verdadeiros filoacutesofos encontrariam a felicidade e a Filosofia personificada
afugentou os falsos Como os maus fogem da puniccedilatildeo Luciano coloca ouro em um anzol o
que os atrai por isso o nome do opuacutesculo
A anaacutelise detida desse texto ajuda em dois sentidos 1) compreender como Luciano
percebe sua atitude diante da escrita 2) entender os laccedilos construiacutedos entre o dizer verdadeiro
e os mecanismos de poder O mote do texto eacute justamente a defesa de Luciano ao ataque dos
filoacutesofos que satildeo satirizados em seu escrito Nele o escritor satiriza os filoacutesofos de seu tempo
aos quais a filosofia natildeo ensinou uma maneira melhor de viver Trata-se de um registro que
exemplifica a tese de Pierre Hadot na qual ele defende que a filosofia no mundo antigo eacute uma
forma de viver e natildeo um trabalho de especulaccedilatildeo abstrato (HADOT 2008 65)
A atitude dos pensadores diante de Luciano pressupotildee a hierarquizaccedilatildeo do discurso
Soacutecrates ndash () Mas de que modo iremos castigaacute-lo Imaginemos contra ele
uma morte variada capaz de agradar a todos noacutes Sim ele merece sofrer sete
mortes por cada um de noacutes
Um filosoacutefo mdash A minha opiniatildeo eacute que o tipo deve ser empalado
Segundo filosoacutefo mdash Mas por Zeus Primeiro deve ser flagelado
91 Adivinho presente nas narrativas miacuteticas do ciclo tebano Teria sido mulher por sete anos de sua juventude Um
dia foi inquirido por Zeus e Hera para saber quem tinha mais prazer sexual o homem ou a mulher Sem hesitar
ele afirmou que era a mulher pois tinha um gozo nove vezes mais prazeroso que o do homem Por esse motivo
Hera encoleirou-se e puniu-o com a cegueira Zeus para compensar permitiu que ele vivesse e enxergasse mais
que os outros homens Em vaacuterios momentos eacute procurado no Hades por heroacuteis vivos como eacute o caso do Odisseus
no canto XI da Odisseia (GRIMAL 2005 450-451)
73
Terceiro filoacutesofo mdash E antes disso devem arrancar-lhe os olhos
Quarto filoacutesofo mdash E ainda antes devem cortar-lhe a liacutengua
Soacutescrates mdash Que eacute que te parece oacute Empeacutedocles
Empeacutedocles mdash Que deve ser lanccedilado nas crateras para aprender a natildeo
insultar os melhores que ele (LucianoPisc 2)92
O primeiro ponto que nos interessa satildeo as penas propostas pelos filoacutesofos sem o devido
processo legal jaacute que o narrador iraacute reivindicar um julgamento justo Os filoacutesofos sugerem que
o personagem seja empalado uma pena comum no Impeacuterio mas considerada a mais ultrajante
sendo que essa deveria ser precedida pelo supliacutecio do corpo a perda da visatildeo e da liacutengua A
morte do personagem infrator deveria ser precedida pelo sofrimento fiacutesico e moral assim como
pela incapacitaccedilatildeo do exerciacutecio da fala A infraccedilatildeo cometida no discurso (insulto) natildeo pode ser
tolerada por quem estaacute hierarquicamente em uma condiccedilatildeo superior O crime cometido pelo
escritor eacute a praacutetica do insulto contido na ordem do discurso
Aprendemos com Foucault que o discurso precisa ser controlado selecionado e
redistribuiacutedo por meio de mecanismos que tecircm a funccedilatildeo de dar a medida de eficaacutecia enunciativa
em cada situaccedilatildeo (FOUCAULT 1996 8-9) O proacuteximo passo do texto coloca um elemento
importante Luciano (auto)nomeia o escritor de Parresiacuteades (Παρρησίαδης) palavra derivada
de parreacutesia com o sufixo ndashδης que significa ldquofilho derdquo tendo como traduccedilatildeo possiacutevel o
Sincero o Franco
No passo seguinte esse personagem traccedila um diaacutelogo com o filoacutesofo Platatildeo por meio
de citaccedilotildees de Homero e de Euriacutepedes Como afirma Catherine Darbo-Peschanski a citaccedilatildeo eacute
feita em um sistema de negociaccedilatildeo (DARBO-PESCHANSKI 2004 10) entre o agente que
produz o enunciado e o ouvinte que compartilha a referecircncia usar versos homeacutericos cria entre
o escritor acusado e o filoacutesofo acusador uma empatia por compartilharem de elementos
culturais presentes na Paideia
O uso desses elementos evidencia a estrateacutegia discursiva de trazer o oponente para o
92 ldquoΣΩΚΡΑΤΗΣ
[] τῷ τρόπῳ δέ τις αὐτὸν καὶ μετέλθῃ ποικίλον γάρ τινα θάνατον ἐπινοῶμεν κατ αὐτοῦ πᾶσιν ἡμῖν ἐξαρκέσαι
δυνάμενον καθ ἕκαστον γοῦν ἑπτάκις δίκαιός ἐστιν ἀπολωλέναι
ΦΙΛΟΣΟΦΟΣ
Ἐμοὶ μὲν ἀνασκολοπισθῆναι δοκεῖ αὐτόν
ΑΛΛΟΣ
Νὴ Δία μαστιγωθέντα γε πρότερον
ΑΛΛΟΣ
Πολὺ πρότερον τοὺς ὀφθαλμοὺς ἐκκεκολάφθω
ΑΛΛΟΣ
Τὴν γλῶτταν αὐτὴν ἔτι πολὺ πρότερον ἀποτετμήσθω
ΣΩΚΡΑΤΗΣ
Σοὶ δὲ τί Ἐμπεδόκλεις δοκεῖ
ΕΜΠΕΔΟΚΛΗΣ
Εἰς τοὺς κρατῆρας ἐμπεσεῖν αὐτόν ὡς μάθῃ μὴ λοιδορεῖσθαι τοῖς κρείττοσινrdquo
74
mesmo campo e mostrar a ele habilidade no uso daqueles utensiacutelios culturais Entre palavras
duras que exigem o supliacutecio do escritor Parresiacuteades afirma ldquosoacute por causa de palavras agora
ides me matarrdquo (Luciano Pisc 3)93
Notemos os laccedilos que aproximam o discurso parresiaacutestico do perigo da aniquilaccedilatildeo
daquele que profere essa modalidade de discurso verdadeiro Esse discurso se funda na ousadia
de dizer principalmente de se confrontar com o poder estabelecido Quando falamos em poder
expressamos uma ideia capilar de suas relaccedilotildees Natildeo se trata de uma investigaccedilatildeo somente da
relaccedilatildeo de Luciano com o Imperador e com as instituiccedilotildees imperiais mesmo que isso nos
interesse Tambeacutem se cuida nesta Tese de investigar o poder do discurso justamente do ponto
de vista em que Luciano se coloca e discrimina os perigos da franqueza
Observem-se os passos do texto uma vez que o escritor eacute acusado pelos grandes
filoacutesofos de escarnecer dos mesmos Luciano mais uma vez mobiliza seu conhecimento da
tradiccedilatildeo grega no momento em que os filoacutesofos desejam puni-lo O personagem clama por um
julgamento justo A contradiccedilatildeo eacute colocada agrave prova
Luciano usa a memoacuteria cultural helecircnica ao retomar os diversos filoacutesofos
principalmente a figura ceacutelebre de Soacutecrates cujo nome vincula-se diretamente a um julgamento
injusto Na memoacuteria dos gregos o julgamento desse filoacutesofo representa uma inflexatildeo que
colocou natildeo um homem como reacuteu mas toda a indagaccedilatildeo filosoacutefica Trata-se de um topos caro
para representar a injusticcedila contra o pensamento Nesse sentido Luciano potencializa a ironia
presente nos descaminhos que a filosofia tomou em seu tempo ao colocar na boca de um
personagem que representava Soacutecrates a seguinte censura ldquoSim que isso de [condenar] antes
do julgamento natildeo eacute proacuteprio de noacutes mas de gente terrivelmente vulgar de certas pessoas
irasciacuteveis que acham que a justiccedila consiste na violecircnciardquo (Luciano Pisc 10)94 Nessa
declaraccedilatildeo o escritor mobiliza a tradiccedilatildeo do julgamento e condenaccedilatildeo de Soacutecrates e
consequentemente a sua injusticcedila No mais ele ainda coloca nos laacutebios do filoacutesofo ateniense a
caracterizaccedilatildeo das pessoas que natildeo se controlam que satildeo vulgares e que fazem justiccedila com as
proacuteprias matildeos
Essa contestaccedilatildeo faz com que o leitorouvinte tenha maior empatia com a trama do
diaacutelogo Nesse enredo Parresiacuteades eacute conduzido para o julgamento diante da Filosofia
personificada Entretanto essa personagem natildeo se mostra satisfeita com a conduta dos ldquograndes
93 ΠΑΡΡΗΣΙΑΔΗΣ
Νῦν οὖν ἕκατι ῥημάτων κτενεῖτέ με 94 ldquoΣΩΚΡΑΤΗΣ
[] τὸ πρὸ δίκης γὰρ οὐχ ἡμέτερον ἀλλὰ δεινῶς ἰδιωτικόν ὀργίλων τινῶν ἀνθρώπων καὶ τὸ δίκαιον ἐν τῇ χειρὶ
τιθεμένωνrdquo
75
filoacutesofosrdquo
Nesse passo a Filosofia ganha formas humanas sendo personificada juntamente com
a Virtude (Ἀρετλή) a Prudecircncia (Σωφροσύνη) a Justiccedila (Δικαιοσύνη) a Educaccedilatildeo (Παιδεία)
e a Verdade (Ἀλήθεια) A Verdade eacute descrita como desarrumada querendo sempre escapulir eacute
vista com dificuldade (LucianoPisc 16) Ela natildeo vecirc necessidade de participar do julgamento
jaacute que sabe de tudo Entretanto em face dos pedidos da Filosofia e de Parreacutesiades para que ela
os acompanhe exige a presenccedila da Liberdade (Ἐλευθερία) da Sinceridade (Παρρησία) e da
Comprovaccedilatildeo (Ἔλεγχος) e sabe que Parresiacuteades natildeo eacute culpado de nada que lhe imputam A
Comprovaccedilatildeo sugere a presenccedila da Demonstraccedilatildeo (Απόδειξις) (LucianoPisc 17) todas
personificadas a fim de participarem do julgamento
Dois pontos se destacam na confecccedilatildeo do diaacutelogo 1) o conhecimento luciacircnico das
ferramentas usadas pela filosofia para embasar seus argumentos 2) a estrateacutegia de vencer o
debate com os recursos que satildeo proacuteprios do inimigo O discurso que Luciano constroacutei conteacutem
elementos do fazer filosoacutefico mas natildeo se confunde com ele Trata-se de recursos retoacutericos para
a fundamentaccedilatildeo de uma argumentaccedilatildeo
Os filoacutesofos ficam incomodados com a presenccedila da Verdade A Filosofia interroga se
eles temem que ela diga mentiras ao que eles respondem em coro ldquoNatildeo se trata disso mas o
tipo eacute terrivelmente manhoso e adulador pelo que acabaraacute por convencecirc-lardquo (Luciano Pisc
18)95 A Filosofia se lembra da presenccedila da Justiccedila entre eles Nesse ponto ela indaga
Parresiacuteades sobre sua origem
Sou siacuterio filosofia nas margens do Eufrates Mas para quecirc tudo isso Na
verdade sei de muitos desses meus adversaacuterios que natildeo satildeo menos baacuterbaros
de nascimento que eu mas apesar disso a sua iacutendole e a sua cultura natildeo
condizem com as Solenes dos Cipriotas dos Babilocircnios ou dos Estagiristas
Todavia para ti natildeo faz qualquer diferenccedila que um homem tenha uma
pronuacutencia baacuterbara desde que sua maneira de pensar se revele reta e justa96
(LUCIANO Pisc 19)
Repetimos essa citaccedilatildeo pois como ressaltamos anteriormente as identidades no
mundo antigo se caracterizam pelo processo de aprendizado do complexo cultural existente O
95 ldquoΠΛΑΤΩΝ
Οὐ τοῦτο ἀλλὰ δεινῶς πανοῦργός ἐστιν καὶ κολακικός ὥστε παραπείσει αὐτήνrdquo 96 ldquoΦΙΛΟΣΟΦΙΑ
Πατρὶς δέ
ΠΑΡΡΗΣΙΑΔΗΣ
Σύρος ὦ Φιλοσοφία τῶν Ἐπευφρατιδίων ἀλλὰ τί τοῦτο καὶ γὰρ τούτων τινὰς οἶδα τῶν ἀντιδίκων μου οὐχ ἧττον
ἐμοῦ βαρβάρους τὸ γένος ὁ τρόπος δὲ καὶ ἡ παιδεία οὐ κατὰ Σολέας ἢ Κυπρίους ἢ Βαβυλωνίους ἢ Σταγειρίτας
καίτοι πρός γε σὲ οὐδὲν ἂν ἔλαττον γένοιτο οὐδ εἰ τὴν φωνὴν βάρβαρος εἴη τις εἴπερ ἡ γνώμη ὀρθὴ καὶ δικαία
φαίνοιτο οὖσαrdquo
76
escritor deixa claro que eacute siacuterio mas isso natildeo o torna menos grego jaacute que os filoacutesofos que o
acusam tambeacutem natildeo satildeo nascidos em cidades gregas ao lembrar a cidade de Soles na Ciliacutecia
cidade natal de Criacutesipo Estagira paacutetria de Aristoacuteteles Chipre que eacute terra natal de Zenatildeo
Babiloacutenia na Aacutesia Menor terra de Dioacutegenes o estoico Ou seja o sotaque baacuterbaro natildeo invalida
sua fala se ela estiver de acordo com as exigecircncias culturais helecircnicas A identidade luciacircnica
natildeo se constroacutei a partir da liacutengua mas de um modo de dizer que eacute possiacutevel de ser partilhado a
partir da Paideia Tornar-se grego era um processo demorado que para os homens de letras
significava tecer sua autorrepresentaccedilatildeo a partir do diaacutelogo criativo com os textos canocircnicos
principalmente Homero e Hesiacuteodo (WHITMARSH 2004 23-27)
A proacutexima pergunta que a Filosofia faz ao escritor coincide com uma das perguntas
que os compradores fizeram aos filoacutesofos no Leilatildeo dos Filoacutesofos ldquoQual a sua tekhne97rdquo
(Luciano Pisc 20) A resposta eacute dada em um jogo de palavras em que o escritor afirmava odiar
a fanfarronice a impertinecircncia e a mentira ou seja tudo que eacute proacuteprio de homens miseraacuteveis
A Filosofia lhe pergunta se tudo que ele faz estaacute contaminado de oacutedio e ele afirma que ama a
verdade a beleza a simplicidade o que pode ser resumido assim ldquoTu Filosofia conheces
essas coisas melhor que eu Mas eu sou desta conformidade odeio os maus e elogio e amo os
bonsrdquo98 (LucianoPisc 20)
Aqui estaacute outro aspecto interessante que permeia os textos luciacircnicos principalmente
os diaacutelogos Como afirmou Brandatildeo (2001 25-27) Luciano faz uma criacutetica agrave Paideia como um
todo ou seja agrave proacutepria cultura No diaacutelogo Parresiacuteades lanccedila as premissas para a conclusatildeo a
que chegaraacute Entretanto natildeo conveacutem adiantar o texto devemos seguir a sua loacutegica a fim de
compreender como a parreacutesia torna-se significativa para a construccedilatildeo do discurso desse
escritor Como afirma Platatildeo ldquoParresiacuteades eacute um oradorrdquo99 (Luciano Pisc 23) em
contraposiccedilatildeo aos filoacutesofos
O siacuterio opotildee como a tradiccedilatildeo jaacute o faz filosofia e retoacuterica O acusado natildeo eacute um
pensador autecircntico mas um orador aquele que domina a linguagem a fim de convencer a
plateia de qualquer tese Natildeo se trata de um problema de conteuacutedo e sim de forma Dizer que
Parresiacuteades eacute um orador enfatiza que ele usaraacute de todos os artifiacutecios da linguagem para
convencer os ouvintes
No texto Acerca do parasita ou que o parasitismo eacute uma arte o escritor constroacutei uma
97 ldquoἡ τέχνη δέ σοι τίςrdquo 98 ldquoΠΑΡΡΗΣΙΑΔΗΣ
Ἄμεινον σὺ ταῦτα οἶσθα ὦ Φιλοσοφία τὸ μέντοι ἐμὸν τοιοῦτόν ἐστιν οἷον τοὺς μὲν πονηροὺς μισεῖν ἐπαινεῖν
δὲ τοὺς χρηστοὺς καὶ φιλεῖνrdquo 99 ldquoῥήτωρ δὲ ὁ Παρρησιάδης ἐστίνrdquo
77
imagem irocircnica dos oradores caracterizando-os como inuacuteteis nos momentos de guerra ou seja
ora ficam dentro das cidades fazendo discursos sem conhecer o campo de batalha ou entatildeo
quando vatildeo para o combate satildeo grandes covardes que abandonam seu posto facilmente O
personagem Simon afirma que
Simon - Dentre os oradores Isoacutecrates natildeo soacute natildeo saiu jamais para a guerra
como por covardia creio nem sequer subiu diante de um tribunal entendo
que este tinha apenas a voz Por acaso Demades Eacutesquines e Filoacutecrates na
repentina declaraccedilatildeo de guerra contra Filipe natildeo entregaram por temor a
cidade e seus proacuteprios habitantes a Filipe e continuaram exercendo a poliacutetica
em Atenas segundo os interesses dele100 (Luciano Par 42)
O escritor continua fazendo a comparaccedilatildeo entre as palavras dos oradores e sua atuaccedilatildeo
diante dos perigos da guerra contra um inimigo tatildeo opressor Em uma frase bastante irocircnica o
personagem luciacircnico afirma ldquotodos eles estavam exercendo a palavra e natildeo a virtuderdquo101
(Luciano Par 43) Observamos que na formaccedilatildeo discursiva na qual o siacuterio inseria seus textos
o discurso que se prendia somente ao como era dito deveria ser questionado uma vez que seria
sinocircnimo de covardia Aquele que tinha palavras prontas seria incapaz de exercer a virtude
com todos os riscos que ela apresenta Suas palavras natildeo poderiam ser francas como o siacuterio
propunha
Observemos que se trata de uma questatildeo de linguagem de construccedilatildeo textual (beleza
e eficaacutecia) e de ordem moral (equidade entre o que se diz e o que se pratica ou coerecircncia entre
os modelos assumidos e sua accedilatildeo diaacuteria) Coloca-se em xeque o poder do discurso cuja
tentativa de monopoacutelio estaacute presente na cultura grega desde o debate entre os filoacutesofos e os
sofistas do seacuteculo V aC Assim poderiacuteamos dizer que se cuida nesse opuacutesculo de renovar
esse debate sob o signo da parreacutesia
Essa modalidade do dizer verdadeiro como bem mostrou Foucault vincula-se ao
poder
Parresiasta assume o risco Ele arrisca a relaccedilatildeo que tem com aquele a quem
se dirige E dizendo a verdade longe de estabelecer um viacutenculo positivo de
saber comum de heranccedila de filiaccedilatildeo de reconhecimento de amizade pode
ao contraacuterio provocar sua coacutelera indispor-se com o inimigo suscitar a
hostilidade da cidade acarretar a vinganccedila ou a puniccedilatildeo por parte do rei se
for um mau soberano ou se for tiracircnico E nesse risco pode expor sua proacutepria
100 ldquoΣΙΜΩΝ
Τῶν μὲν τοίνυν ῥητόρων Ἰσοκράτης οὐχ ὅπως εἰς πόλεμον ἐξῆλθέν ποτε ἀλλ οὐδ ἐπὶ δικαστήριον ἀνέβη διὰ
δειλίαν οἶμαι ὅτι οὐδὲ τὴν φωνὴν διὰ τοῦτο εἶχεν ἔτι τί δ οὐχὶ Δημάδης μὲν καὶ Αἰσχίνης καὶ Φιλοκράτης ὑπὸ
δέους εὐθὺς τῇ καταγγελίᾳ τοῦ Φιλίππου πολέμου τὴν πόλιν προὔδοσαν καὶ σφᾶς αὐτοὺς τῷ Φιλίππῳ καὶ
διετέλεσαν Ἀθήνησιν ἀεὶ τὰ ἐκείνου πολιτευόμενοι []rdquo 101 ldquoΤΥΧΙΑΔΗΣ
Ἐπίσταμαι ταῦτα ἀλλ οὗτοι μὲν ῥήτορες καὶ λόγους λέγειν ἠσκηκότες ἀρετὴν δὲ οὔrdquo
78
vida pois ele pode pagar com a existecircncia a verdade que disse (FOUCAULT
2011 130)
Ter a coragem de dizer certas verdades abre a possibilidade do oacutedio e da dilaceraccedilatildeo
Eacute esse caminho que o texto que analisamos no momento mostra com a implicaccedilatildeo de que a
verdade dita em sua modalidade parresiaacutestica pode causar a morte daquele que a diz
O siacuterio eacute acusado de fazer a populaccedilatildeo rir dos filoacutesofos como os comediantes fizeram
outrora No entanto as comeacutedias eram apresentadas durante os festivais dionisiacuteacos eram parte
de um culto especial a uma divindade importante Logo protegiam-se da censura velada pela
aura de sacralidade do culto a Dioniacuteso Os textos luciacircnicos no entanto apresentam-se em outro
contexto
Esse clima de sacralidade natildeo faz parte do texto luciacircnico pois em seu regime de
manifestaccedilatildeo artiacutestica natildeo estatildeo presentes os elementos sagrados do culto a Dioniacutesio assim
natildeo havia tais proteccedilotildees em um texto como o Leilatildeo dos Filoacutesofos Ele eacute culpado por aliciar o
Diaacutelogo gecircnero caracteriacutestico da escrita filosoacutefica e ainda o filoacutesofo Menipo de Gandara
Realmente o caso seria de algum modo desculpaacutevel se ele agisse em sua
defesa e natildeo por sua iniciativa pessoal Mas o pior de tudo eacute o fato de ele ao
proceder desse modo se abrigar sob o teu nome Filosofia de se insinuar no
Diaacutelogo nosso servidor utilizando-o contra noacutes como seu auxiliar e ator e a
juntar a tudo isto persuadiu Menipo um nosso companheiro a participar
frequentemente nas suas graccedilas de comeacutedia este eacute o uacutenico que natildeo estaacute aqui
presente nem participa conosco na acusaccedilatildeo deste modo traindo a nossa
comunidade102 (LucianoPisc 26)
Luciano lembra sempre ao leitor que o orador apresenta um discurso no qual a forma
eacute essencial para sua compreensatildeo desprestigiando dessa maneira o conteuacutedo do mesmo
Assim a defesa de Parresiacuteades move-se sob uma velha questatildeo da filosofia a dicotomia entre
essecircncia e aparecircncia Colocada no tribunal pela aproximaccedilatildeo com o teatro toda a accedilatildeo eacute ligada
aos palcos agrave atuaccedilatildeo dos atores Parresiacuteades natildeo fugiraacute desse campo
Sigamos o argumento da defesa no qual ele resguarda que natildeo acusou a Filosofia ou
os grandes filoacutesofos do passado helecircnico mas aqueles que se apropriavam dela
Na verdade logo que constatei quantas qualidades repugnantes precisavam de
possuir os advogados mdash falsidade mentira descaramento gritaria
altercaccedilotildees e mil outras manhas mdash abandonei como era natural essa
atividade e tendo-me entregado oacute Filosofia aos teus altos ideais decidi
dedicar o resto dos meus dias a viver sob a tua proteccedilatildeo como se apoacutes passar
102 ldquoεἶχε γὰρ ἄν τινα συγγνώμην αὐτῷ τὸ πρᾶγμα εἰ ἀμυνόμενος ἀλλὰ μὴ ἄρχων αὐτὸς ἔδρα Ὃ δὲ πάντων
δεινότατον ὅτι τοιαῦτα ποιῶν καὶ τὸ σὸν ὄνομα ὦ Φιλοσοφία ὑποδύεται καὶ ὑπελθὼν τὸν Διάλογον ἡμέτερον
οἰκέτην ὄντα τούτῳ συναγωνιστῇ καὶ ὑποκριτῇ χρῆται καθ ἡμῶν ἔτι καὶ Μένιππον ἀναπείσας ἑταῖρον ἡμῶν
ἄνδρα συγκωμῳδεῖν αὐτῷ τὰ πολλά ὃς μόνος οὐ πάρεστιν οὐδὲ κατηγορεῖ μεθ ἡμῶν προδοὺς τὸ κοινόνrdquo
79
por vagas e tormentas tivesse arribado a um porto tranquilo 103(Luciano
Pisc 29)104
O personagem identifica uma mudanccedila no estatuto do filoacutesofo que jaacute natildeo observa os
modos de ser necessaacuterios para abraccedilar o conhecimento e construir uma forma de viver coerente
Jaacute nos Diaacutelogos dos mortos Luciano questiona a contradiccedilatildeo entre a forma apresentada pelos
filoacutesofos e seu modo de viver Em muitos momentos o leitor ri da conduta dos filoacutesofos pelo
fato de ela ser distorcida do ideal de harmonia entre o que se diz e o que se faz Os filoacutesofos
criticados por Luciano satildeo bajuladores licenciosos e gananciosos ou seja satildeo charlatotildees
Parresiacuteades escolhe o lado da Filosofia jaacute que a oratoacuteria coloca o sujeito na posiccedilatildeo
de produtor de discursos que se preocupam com a beleza e a eficaacutecia da argumentaccedilatildeo em
detrimento da verdade Luciano teatraliza o debate levando-o para o campo da miacutemesis Os
filoacutesofos poderiam ser imitados vestimentas barbas entre outras caracteriacutesticas Seria como
se um ator efeminado tentasse representar Heacuteracles105 sendo motivo de chacota dos
espectadores (Luciano Pisc 31) Parreacutesiades se envergonhou pelos filoacutesofos Ser motivo de
riso natildeo eacute o uacutenico problema ldquoSempre que as pessoas viam um destes cometer algum ato
perverso vergonhoso ou indecente natildeo faltava quem acusasse a proacutepria Filosofiardquo (Luciano
Pisc 32)106
O escritor enfatiza que sua criacutetica natildeo eacute agrave Filosofia que ele ama mas agravequeles que a
utilizam apenas para benefiacutecio proacuteprio sem o devido conhecimento sem vivecirc-la em sua
inteireza e harmonia Esses falsos filoacutesofos ensinam por dinheiro uma filosofia que natildeo vivem
(LucianoPisc 32) Lembremos que desde o periacuteodo claacutessico grego107 existem inuacutemeras
querelas entre filoacutesofos e sofistas sobre ensinar de graccedila ou receber por isso Logo para o
personagem eacute uma contradiccedilatildeo performaacutetica um filoacutesofo que recebe para ensinar Aleacutem disso
103 Neste passo a sugestatildeo de um fato muito debatido pela criacutetica luciacircnica que eacute sua pretensa conversatildeo agrave
filosofia Tal assunto natildeo nos interessa neste momento uma vez que natildeo se cuida aqui de definir os passos ldquoreaisrdquo
da vida de Luciano mas de compreender o regime de historicidades presente em seus textos 104 ldquoἘγὼ γὰρ ἐπειδὴ τάχιστα συνεῖδον ὁπόσα τοῖς ῥητορεύουσιν ἀναγκαῖον τὰ δυσχερῆ προσεῖναι ἀπάτην καὶ
ψεῦδος καὶ θρασύτητα καὶ βοὴν καὶ ὠθισμοὺς καὶ μυρία ἄλλα ταῦτα μέν ὥσπερ εἰκὸς ἦν ἀπέφυγον ἐπὶ δὲ τὰ
σά ὦ Φιλοσοφία καλὰ ὁρμήσας ἠξίουν ὁπόσον ἔτι μοι λοιπὸν τοῦ βίου καθάπερ ἐκ ζάλης καὶ κλύδωνος εἰς εὔδιόν
τινα λιμένα ἐσπλεύσας ὑπὸ σοὶ σκεπόμενος καταβιῶναιrdquo 105 Luciano apresenta a imagem do Heacuteracles travestido no texto Como se escreve a Histoacuteria Da mesma maneira
essa imagem representa a contradiccedilatildeo o erro o absurdo que gera o riso e impede a construccedilatildeo de um discurso ou
cena coerente (Luciano Hist Co 10) 106 ldquoοἱ γὰρ ἄνθρωποι εἴ τινα τούτων ἑώρων πονηρὸν ἢ ἄσχημον ἢ ἀσελγές τι ἐπιτηδεύοντα οὐκ ἔστιν ὅστις οὐ
Φιλοσοφίαν αὐτὴν ᾐτιᾶτο []rdquo 107 Eacute interessante notar como um apologista cristatildeo do tempo de Luciano Justino de Roma em seu Diaacutelogo com
Trifatildeo tambeacutem faz criacuteticas aos filoacutesofos de seu tempo Antes de conhecer a doutrina cristatilde ele buscou o
conhecimento filosoacutefico entretanto abandonou os filoacutesofos por diversos motivos por exemplo ele abandona o
filoacutesofo parapiteacutetico por ele cobrar para ensinar (Justino Diaacutelogo com Trifatildeo 2 3) Esse caso exemplifica como
ainda no tempo de Luciano natildeo se viam com bons olhos os filoacutesofos que cobravam para ensinar
80
esses filoacutesofos satildeo covardes preguiccedilosos ou seja cheios de viacutecios nunca viveram a verdadeira
filosofia e ainda por cima satildeo bajuladores dos ricos Esse mau filoacutesofo condensaria o oposto do
que os grandes filoacutesofos pregaram
Para consumar essa anaacutelise citamos mais uma passagem na qual a Filosofia chama
Parreacutesiades e diz ldquoMuito bem Avanccedila Parresiacuteades Absolvemos-te da acusaccedilatildeo ganhaste por
unanimidade e fica sabendo que de hoje em diante eacutes caacute dos nossosrdquo (LucianoPis 39)108
Parreacutesiades personificaccedilatildeo da Sinceridade deveria sentar-se com a Filosofia a Verdade a
Virtude e todas as personificaccedilotildees presentes Natildeo podemos confundi-las Parresiacuteades natildeo eacute a
verdade em si nem a virtude
Vejamos agora outros momentos em que a palavra parreacutesia ocorre no corpus luciacircnico
Acreditamos que seu uso atesta o que exemplificamos com a anaacutelise do opuacutesculo O pescador
ou os ressuscitados isto eacute que a maneira como Luciano se porta diante do Impeacuterio Romano ou
dos poderes espalhados na sociedade parte de uma tentativa de usar a parreacutesia
A hipoacutetese eacute que essa palavra permeia o texto luciacircnico nos momentos em que ele
precisa afirmar o que faz ou como tal gecircnero deve ser composto No panfleto Como se deve
escrever a Histoacuteria ao definir a funccedilatildeo do historiador ele afirma que
Portanto assim seja para mim o historiador sem medo incorruptiacutevel livre
amigo da franqueza (παρρησίας ) e da verdade como diz o poeta cocircmico que
chame figos de figos e gamela de gamela algueacutem que natildeo admita nem omita
nada por oacutedio ou por amizade que a ningueacutem poupe nem respeite nem
humilhe que seja juiz equacircnime benevolente com todos a ponto de natildeo dar a
um mais que o devido estrangeiro nos livros e apaacutetrida autocircnomo sem rei
natildeo se preocupando com o que achara esse ou aquele mas dizendo o que se
passou (Luciano Hist conscr 41)109
Ser franco eacute uma caracteriacutestica que deve acompanhar a verdade Aquele que se
expressa por essa modalidade discursiva natildeo garante ser verdadeiro em si mas mostra que tem
coragem Aleacutem disso seraacute algueacutem que se coloca em uma posiccedilatildeo de alteridade diante da
sociedade jaacute que deve ser estrangeiro nos livros e sem paacutetria o que para o homem antigo
representaria um paradoxo jaacute que a identidade era construiacuteda em forte consonacircncia com a
108 ldquoΦΙΛΟΣΟΦΙΑ
Εὖ ἔχει πρόσιθι Παρρησιάδη ἀφίεμέν σε τῆς αἰτίας καὶ ἁπάσαις κρατεῖς καὶ τὸ λοιπὸν ἴσθι ἡμέτερος ὤνrdquo 109 ldquoΤοιοῦτος οὖν μοι ὁ συγγραφεὺς ἔστω ndash ἄφοβος ἀδέκαστος ἐλεύθερος παρρησίας καὶ ἀληθείας φίλος ὡς ὁ
κωμικός φησι τὰ σῦκα σῦκα τὴν σκάφην δὲ σκάφην ὀνομάσων οὐ μίσει οὐδὲ φιλίᾳ τι νέμων οὐδὲ φειδόμενος ἢ
ἐλεῶν ἢ αἰσχυνόμενος ἢ δυσωπούμενος ἴσος δικαστής εὔνους ἅπασιν ἄχρι τοῦ μὴ θατέρῳ τι ἀπονεῖμαι πλεῖον
τοῦ δέοντος ξένος ἐν τοῖς βιβλίοις καὶ ἄπολις αὐτόνομος ἀβασίλευτος οὐ τί τῷδε ἢ τῷδε δόξει λογιζόμενος
ἀλλὰ τί πέπρακται λέγωνrdquo
81
cidade de origem110 Sobre a expressatildeo ldquoξένος ἐν τοῖς βιβλίοις καὶ ἄπολιςrdquo (estrangeiro nos
livros e apaacutetrida) ldquomais que uma bela expressatildeo parece-me um lema que define a postura
intelectual do proacuteprio Lucianordquo (BRANDAtildeO 2009 267)
Moses Finley ao discorrer sobre Dioacutegenes ressalta que o cinismo eacute um fenocircmeno
urbano uma vez que esse personagem soacute atinge seus objetivos se puder importunar e exercer a
franqueza necessaacuteria para viver Natildeo faz sentido viver isolado da cidade (FINLEY 1991 112)
A parreacutesia exige do escritor autonomia para dizer a verdade e enfrentar o poder
estabelecido O historiador deve construir seu discurso agrave margem do poder do Imperador pois
natildeo escreve para o presente e sim para o futuro Ainda citando Brandatildeo ldquoOu seja quem teme
e espera jamais poderaacute ser livre verdadeiro e francordquo (BRANDAtildeO 2009 263)
As caracteriacutesticas exaltadas por Luciano nesse panfleto se coadunam com as
caracteriacutesticas apresentadas pelo filoacutesofo Ciacutenico no Leilatildeo dos Filoacutesofos Eacute nesse espaccedilo fora
dos muros da cidade que se movem os historiadores e os filoacutesofos ciacutenicos Trata-se aqui da
dificuldade ciacutenica por ser ἄπολις ou melhor como diz o Dioacutegenes luciacircnico ldquovocecirc vecirc um
cidadatildeo do mundordquo111 (Luciano Vit Auct 8)
Os textos luciacircnicos satildeo construiacutedos sob essa postura intelectual que retoma a tradiccedilatildeo
ateniense das assembleias No decorrer desta Tese retornamos a esse debate uma vez que
entendemos que Luciano ao escrever seus diaacutelogos utilizou-se de modos de validaccedilatildeo de seu
enunciado que natildeo satildeo os nossos Nesse sentido para pensarmos a presenccedila dos mitos gregos
devemos entender os mecanismos de construccedilatildeo dos discursos vinculados a estrateacutegias que satildeo
historicamente aceitas ou assentadas culturalmente Natildeo importa se Luciano acreditava ou natildeo
nos mitos mas o significado que atribuiacutea a eles nos diferentes usos poliacuteticos Cabe-nos agora
refletir sobre o alcance dos mitos e da mitologia para os homens antigos especificamente para
os intelectuais helenoacutefilos da Segunda Sofiacutestica
110 Ao dizer isso natildeo negamos as caracteriacutesticas de sobreposiccedilatildeo das identidades no mundo antigo apenas
enfatizamos a cidade como um espaccedilo importante para a construccedilatildeo dos sentimentos de identidade 111 ldquoΤοῦ κόσμου πολίτην ὁρᾷςrdquo
82
Capiacutetulo II
Mito a narrativa que todos conhecem
O primeiro ponto que pensamos foi justamente o ordenamento discursivo no qual
Luciano de Samoacutesata estava inserido No capiacutetulo anterior cuidamos de compreender como
onde e quando esse escritor produziu seus textos ou seja as condiccedilotildees materiais de sua
produccedilatildeo Levantamos as diferentes perspectivas historiograacuteficas referentes agrave sua trajetoacuteria sua
accedilatildeo poliacutetica e o fenocircmeno cultural no qual se inseria a saber a Segunda Sofiacutestica Por fim
analisamos como ele escrevia sob um modo especiacutefico de dizer a verdade um regime de
validaccedilatildeo enunciativa proacuteprio que eacute uma das manifestaccedilotildees da parreacutesia antiga Com esse
contexto traccedilado podemos explorar as principais categorias teoacutericas que orientaram esta Tese
mito e memoacuteria observando a maneira como Luciano utiliza recursos mitoloacutegicos em seus
textos
O primeiro aspecto dos mitos que devemos evidenciar a fim de construir uma
categoria que seja uacutetil para nossa pesquisa dos diaacutelogos de Luciano de Samoacutesata eacute o seu caraacuteter
narrativo Os mitos satildeo narrativas estoacuterias que apresentam personagens e um enredo que
fornecem sentido para as pessoas e as comunidades Como afirma Everaldo Rocha ldquo[s]e o mito
fosse uma narrativa ou uma fala qualquer estaria diluiacutedo completamente O mito eacute entatildeo uma
narrativa especial particular capaz de ser distinguida das demais narrativas humanasrdquo
(ROCHA 1986 8) No quadro simboacutelico de determinada cultura os mitos satildeo facilmente
diferenciados de outras narrativas o que os coloca em um lugar especial para as comunidades
Um erro comum agravequeles que se dedicam ao estudo dos mitos eacute consideraacute-los uma
categoria fechada que apresentaria as mesmas caracteriacutesticas nas mais distintas culturas
(KIRK 2006 48) Contrariamente a essa visatildeo entendemos que cada povo apresentaraacute suas
estoacuterias com padrotildees muito peculiares
Esse saber explica o mundo e sua aproximaccedilatildeo dele Por esse motivo faz-se mister
investigar a densa cadeia de narrativas mitoloacutegicas sobre a memoacuteria uma vez que esses
conhecimentos estavam disponiacuteveis por meio da tradiccedilatildeo na qual Luciano se inseria
83
21 Mitologia e Retoacuterica saberes sobre a Memoacuteria
Em um texto claacutessico Jean Pierre Vernant analisou a sofisticada rede de narrativas
mitoloacutegicas referentes agrave mnemosyne Esse autor conjecturou que a produccedilatildeo desses discursos
vinculava-se diretamente agrave Histoacuteria da faculdade humana da memoacuteria Essa hipoacutetese permanece
no campo das conjecturas por carecircncia de comprovaccedilatildeo empiacuterica Entretanto a anaacutelise desse
conjunto de estoacuterias que dizem respeito agrave faculdade de reter informaccedilotildees de um tempo preteacuterito
no presente conta com uma personagem que personifica essas virtudes Mnemosyacutene que eacute uma
deusa imortal112 Seguimos essa narrativa a partir da Teogonia113 de Hesiacuteodo uma das mais
antigas referentes a tal divindade e principalmente aquela que serve de ponto de inflexatildeo para
qualquer fala sobre o tema desde a Antiguidade
Na Pieacuteria gerou-as da uniatildeo do Pai Cronida
Memoacuteria rainha nas colinas de Eleutera
para obliacutevio de males e pausa de afliccedilotildees 55
Nove noites teve uniotildees com ela o saacutebio Zeus
longe dos imortais subindo ao sagrado leito
Quando girou o ano e retornaram as estaccedilotildees
com as miacutenguas das luas e muitos dias findaram
ela pariu nove moccedilas concordes que dos cantares 60
Tecircm o desvelo no peito e natildeo triste animo
perto do aacutepice altiacutessimo do nervoso Olimpo
aiacute os seus coros luzentes e belo palaacutecio114
(Hesiacuteodo Theog VV 53-63)
Esse documento se insere em um quadro de divinizaccedilatildeo da memoacuteria personificada
como uma das filhas de Urano e Gaia irmatilde de Tea Reia Tecircmis Febe e Teacutetis Ter o nome de
112 Observemos que Luciano de Samoacutesata em vaacuterios momentos de sua obra personifica virtudes e faculdades
humanas Entretanto ele natildeo as diviniza Podemos exemplificar isso com o texto Dupla Acusaccedilatildeo em que virtudes
como a Justiccedila a Verdade e a Prudecircncia tomam forma humana 113 Para essa anaacutelise usamos a traduccedilatildeo de Jaa Torrano 114 τὰς ἐν Πιερίῃ Κρονίδῃ τέκε πατρὶ μιγεῖσα
Μνημοσύνη γουνοῖσιν Ἐλευθῆρος μεδέουσα
λησμοσύνην τε κακῶν ἄμπαυμά τε μερμηράων 55
ἐννέα γάρ οἱ νύκτας ἐμίσγετο μητίετα Ζεὺς
νόσφιν ἀπ ἀθανάτων ἱερὸν λέχος εἰσαναβαίνων
ἀλλ ὅτε δή ῥ ἐνιαυτὸς ἔην περὶ δ ἔτραπον ὧραι
μηνῶν φθινόντων περὶ δ ἤματα πόλλ ἐτελέσθη
ἡ δ ἔτεκ ἐννέα κούρας ὁμόφρονας ᾗσιν ἀοιδὴ 60
μέμβλεται ἐν στήθεσσιν ἀκηδέα θυμὸν ἐχούσαις
τυτθὸν ἀπ ἀκροτάτης κορυφῆς νιφόεντος Ὀλύμπου
ἔνθά σφιν λιπαροί τε χοροὶ καὶ δώματα καλά
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uma funccedilatildeo psicoloacutegica natildeo eacute um caso uacutenico na mitologia grega poderiacuteamos citar vaacuterias
ocorrecircncias para exemplificar esse enunciado por exemplo Eros Fobos Hebe entre outros
Mnemoacutesine ou a Memoacuteria eacute a progenitora das Musas nove divindades que velam pelas
artes e pelos artistas A accedilatildeo dessa deidade liga-se ao esquecimento dos males e ao cessar das
dores Hesiacuteodo por sua vez vecirc nessa funccedilatildeo psicoloacutegica elementos profilaacuteticos que
possibilitam que ela cure os homens e os deuses Nesse registro antigo temos o esquecimento
como um fator importante para a cultura
Ela preside as artes juntamente com as Musas ligando-se aos poetas e aedos cuja
competecircncia permite que digam algo sobre o passado Como nos lembra Vernant a atividade
poeacutetica era vista no mundo grego arcaico como uma atividade ldquoentusiaacutesticardquo no sentido
etimoloacutegico desse termo ou seja no sentido de ter deus em si Nas palavras do autor ldquoO poeta
tem uma experiecircncia imediata dessas eacutepocas passadas Ele conhece o passado porque tem o
poder de estar presente no passado Lembrar-se saber ver tantos termos que se equivalemrdquo
(VERNANT 1990 138)
Outro elemento fundante que aparece nesse contexto eacute a supremacia da visatildeo sobre os
outros sentidos As Musas filhas de Mnemoacutesyne permitem que o aedo veja o que ocorreu e
assim conte isso aos homens Existe aqui um jogo com a temporalidade no presente do cantor
ele vecirc o passado
Aristoacuteteles expressou uma importante constataccedilatildeo sobre a sensibilidade antiga Em sua
Metafiacutesica ele afirma que a visatildeo eacute o principal sentido para o conhecimento (Aristoacuteteles
Metaph 980 a 25) Desse modo a frase que Plutarco atribui a Simocircnides de que a ldquopoesia eacute
pintura falada e a pintura poesia pintadardquo (Plutarco apud GINZBURG 2007 23) liga esse
contexto mitoloacutegico expresso pela atuaccedilatildeo de Mnemoacutesyne e de suas filhas agrave retoacuterica do periacuteodo
imperial Nesse sentido um importante conceito eacute o de eacutecfrase ldquoum discurso que mostra o
assunto tratado vivamente diante do puacuteblicordquo (Eacutelio Teatildeo apud WEBB 2009 16) Esses satildeo
aspectos vinculados diretamente agrave formaccedilatildeo do orador
Ruth Webb argumenta que manejar bem os recursos da retoacuterica era fundamental para a
formaccedilatildeo dos homens que falavam grego na parte oriental do Impeacuterio Eles teriam de dominar
bem o grego aacutetico nos seus discursos e em sua execuccedilatildeo Era uma garantia de ascensatildeo social
sendo usado em muitos momentos (casamentos mortes funerais defesa de interesses) em que
as autoridades estivessem presentes para adulaacute-las ou pedir alguma benesse (WEBB 2009 16-
17)
O domiacutenio da memoacuteria artificial era fundamental para a inserccedilatildeo social no Impeacuterio
Romano Luciano se inseria de maneira criacutetica nesse espaccedilo uma vez que seus textos estatildeo
85
permeados de questionamentos sobre a) o uso da linguagem como em Lexiacutefanes b) as
caracteriacutesticas do bom orador como no Mestre da Retoacuterica c) a construccedilatildeo do texto
historiograacutefico em Como se deve escrever a Histoacuteria entre outros momentos O que
ressaltamos eacute que Luciano faz o uso do grego aacutetico como era a moda em sua eacutepoca mas se
coloca como um criacutetico do exagero performaacutetico de muitos oradores
Nossa hipoacutetese eacute que Luciano traccedila um diaacutelogo consciente com a tradiccedilatildeo Por exemplo
em seu Diaacutelogo com Hesiacuteodo denuncia que este poeta prometera no iniacutecio de suas obras contar
o passado e o futuro mas que somente cumpriu a primeira parte da promessa justamente aquela
que era dada por Mnemoacutesyne eou as Musas Caso essas tenham lhe dito o que aconteceria ele
natildeo cantou em seus versos Hesiacuteodo agiu de maacute-feacute (Luciano Hes 1-3) O diaacutelogo do
samosatense com a tradiccedilatildeo homeacuterica e hesioacutedica nos leva a crer que para compreender os usos
poliacuteticos que o escritor faz com relaccedilatildeo aos mitos eacute fundamental inseri-los em uma tradiccedilatildeo
transmitida por meio da formaccedilatildeo desses homens Entretanto a leitura de seus escritos permite
o questionamento e o desdobramento das ideias O siacuterio se insere nessa dialeacutetica com a tradiccedilatildeo
o que permite um uso bastante criativo dos mitos disponiacuteveis em sua narrativa
No poema de Hesiacuteodo a memoacuteria assume um papel importantiacutessimo para os homens
curando-os das mazelas e unindo os desgarrados A seguinte afirmaccedilatildeo de Jaa Torano nos
auxilia na compreensatildeo dos mitos e de sua funccedilatildeo social de explicaccedilatildeo idealizada das relaccedilotildees
sociais
O poeta portanto tem na palavra cantada o poder de ultrapassar e superar
todos os bloqueios e distacircncias espaciais e temporais um poder que soacute lhe eacute
conferido pela Memoacuteria (Mnemosyne) atraveacutes das palavras cantadas (Musas)
Fecundada por Zeus Pai que no panteatildeo hesioacutedico encarna a Justiccedila e a
Soberania supremas a Memoacuteria gera e daacute a luz a Palavras Cantadas que na
liacutengua de Hesiacuteodo se diz Musas Portanto o Canto (as Musas) eacute nascido da
Memoacuteria (num sentido psicoloacutegico inclusive) e do mais alto exerciacutecio do
poder (num sentido poliacutetico inclusive) (TORRANO 1986 15)
Nesse contexto o aedo eacute o mestre da verdade115 para usar a terminologia de Marcel
Detienne Eacute aquele que sabe porque viu por meio de uma vivecircncia sagrada do que aconteceu
Poderiacuteamos evocar a imagem de Odisseu chorando ao ouvir o Aedo cantar a estoacuteria do cavalo
de madeira na corte dos Feaacutecios116 O que aprendemos dessa cena eacute que para a tradiccedilatildeo
115 Marcel Detienne em seu livro Les maicirctres de veacuteriteacute em gregravece archaiumlque enfatiza que trecircs personagens da
Greacutecia Arcaica ndash o adivinho o Aedo e o rei justiceiro ndash tinham o papel de dispensadores da verdade por qualidades
presentes em seu discurso Trata-se de uma anaacutelise foucaultiana sobre a histoacuteria da verdade o que evidencia que
nesse momento histoacuterico a verdade eacute um atributo de determinados discursos (DETIENNE 2013 1-7) 116 Hanna Arendt (2002 81) considera esse momento como a primeira vez que no ocidente se enuncia um discurso
historiograacutefico Seria o nascimento da Histoacuteria uma vez que Odisseus se depara com o Aedo que conta fatos que
ele mesmo viveu por isso o choro Franccedilois Hartog (2003 21) jaacute contestou essa postura e enfatiza muito mais os
86
homeacuterica o canto do aedo tem a funccedilatildeo de conjurar os espectros do passado O discurso contado
pelo Aedo descola-se dos agentes natildeo precisa ter vivido para narraacute-los pois eles compotildeem
uma memoacuteria cultural que dispensa a validaccedilatildeo daqueles que viram ou vivenciaram os fatos
narrados daiacute o espanto de Odisseu
Na mitologia da memoacuteria vemos entatildeo Mnemoacutesyne ligada diretamente a Zeus gerando
as Musas que inspirariam os aedos Torrano (1986 15) sugeriu uma premissa que pretendemos
levar agraves uacuteltimas consequecircncias o viacutenculo entre memoacuteria e poder que jaacute estaacute presente na
tradiccedilatildeo hesioacutedica e com menor ecircnfase nos textos homeacutericos Como afirma Jan Assmann
(2011 52) todo poder precisa de uma origem
As narrativas miacuteticas foram por muito tempo relegadas ao campo das coisas
supeacuterfluas Os historiadores acreditavam que o poder era baseado apenas nos atos dos
governantes nas instituiccedilotildees nos eventos poliacuteticos deixando agrave margem todo um campo de
reflexatildeo sobre a legitimaccedilatildeo dos poderes estabelecidos
Diante disso dois pontos satildeo fundamentais Em primeiro lugar o poder natildeo se
estabelece simplesmente no Estado e em suas ramificaccedilotildees ele estaacute disperso socialmente e eacute
legitimado pela nossa linguagem Existem assim micropoderes que se espalham na sociedade
em uma rede capilar (FOUCAULT 2012)
Outro ponto significativo eacute que natildeo existe nenhum governo que se sustente
simplesmente pela forccedila fiacutesica (BALANDIER 1980 07) Natildeo negamos a importacircncia dos
exeacutercitos para garantir a puacuterpura ao Imperador no caso romano mas queremos deixar claro que
os governos necessitam de um miacutenimo de consenso para estabelecerem suas determinaccedilotildees As
formas com as quais os governantes buscavam legitimidade variavam muito no Impeacuterio
Romano Quando um novo Imperador ascendia ao poder ele precisava reconstruir os laccedilos de
legitimidade com as grandes famiacutelias e com as cidades a cada governo Aleacutem disso o
Imperador deveria garantir a pax deorum a fim de sustentar o Estado em seu plano metafiacutesico
Nesse contexto o discurso literaacuterio dialoga diretamente com a ordem estabelecida jaacute que ele
pode questionar ou reafirmar determinada situaccedilatildeo Essa eacute a chave que usamos para analisar os
textos luciacircnicos com foco na compreensatildeo do uso que esse escritor faz da mitologia helecircnica
elementos discursivos presentes nessa cena da Odisseia e principalmente sua funccedilatildeo para a construccedilatildeo do gecircnero
eacutepico homeacuterico
87
22 O mito a modernidade e o historiador
Ateacute o aparecimento da antropologia moderna no final do seacuteculo XIX os mitos eram
analisados principalmente por sua variante helecircnica eou romana cuja transmissatildeo foi expressa
nos mais diversos suportes por meio por exemplo de representaccedilatildeo pictoacuterica Com o advento
da escrita suas narrativas foram fixadas Entretanto natildeo podemos esquecer que eles foram
compartilhados inicialmente por meio da oralidade logo natildeo satildeo narrativas lineares e isentas
de contradiccedilotildees Podemos inclusive afirmar que uma caracteriacutestica do mito eacute a subversatildeo das
leis naturais e a ampliaccedilatildeo da possibilidade do agir no mundo Como disse Carlo Ginzburg ldquoO
mito eacute por definiccedilatildeo um conto que jaacute foi contado um conto que jaacute se conhecerdquo (GINZBURG
2001 84) o que eacute importante uma vez que ressalta a partilha de sentidos que o mito carrega
fato que lhe fornece seu maior potencial de comunicar e de servir aos poderes
O caso grego eacute muito interessante uma vez que de Homero ao colapso do Impeacuterio
Romano esse conjunto de narrativas foi evidenciado comentado e glosado Poderiacuteamos recuar
a anaacutelise dos mitos ateacute Teaacutegenes de Regio (seacuteculo V aC) Metrodoro de Lacircmpsaco (seacuteculo IV-
III aC) e Evecircmero (seacuteculo IV aC) Eacute uma laacutestima que seu livro Histoacuteria Sagrada somente nos
tenha chegado por meio de resumos Para essa corrente interpretativa os mitos vinculavam-se
a personagens histoacutericos antigos que com os seacuteculos tiveram suas estoacuterias cobertas pelas lendas
e fantasias Esse tipo de interpretaccedilatildeo teve grande fortuna criacutetica Para citar apenas um exemplo
Voltaire escreveu um Diaacutelogo com Evecircmero Ou ainda podemos falar das interpretaccedilotildees
neoplatocircnicas que buscavam nos mitos alegorias de verdades ocultas (KIRK 2006 17-18)
O que importa aqui eacute mostrar como a escrita permite o comentaacuterio e a interpretaccedilatildeo
que procura ligar a narrativa com o contexto ou com as duacutevidas daquele momento (neste caso
a veracidade da explicaccedilatildeo maravilhosa) A praacutetica das tessituras do texto permite que a
narrativa seja maturada decomposta reinventada num infinito processo de releitura por isso
temos de nos atentar para a maneira como o mito eacute representado em cada contexto
A relaccedilatildeo da memoacuteria com a escrita eacute extremamente ambiacutegua Se por um lado a
escrita permite a exteriorizaccedilatildeo da memoacuteria e a recuperaccedilatildeo de informaccedilotildees e comunicaccedilotildees
armazenadas por outro lado ela determina a atrofia da capacidade de memoacuteria natural
(ASSMANN 2011 25)
As manifestaccedilotildees culturais do mito natildeo satildeo uniformes logo suas fronteiras com
outras narrativas natildeo satildeo precisas117 O mito se relaciona muito intimamente com o sagrado ele
117 GS Kirk (2006 55) faz uma interessante anaacutelise do mito de Perseu para mostrar como este porta uma seacuterie de
elementos que deveriam em uma anaacutelise de gecircnero associar-se aos contos populares
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possibilita a explicaccedilatildeo da origem dos homens das comunidades do fogo do ferro dos ritos
numa constante que poderiacuteamos estender ilimitadamente Entretanto ele transborda essas raias
pois como dissemos haacute narrativas aceitas como mitos que natildeo respondem a esses criteacuterios
Neste trabalho entendemos mitos como narrativas recorrentes na cultura que
evidenciam valores e que muito comumente satildeo cercadas com a aura do maravilhoso sendo
conhecidos de todos os membros da comunidade Outra caracteriacutestica dos mitos eacute a sua
vinculaccedilatildeo a uma regiatildeo especiacutefica o que pode variar dependendo da fonte na qual eacute recolhido
mas haacute um sentimento de que o mito pertence agrave histoacuteria daquele lugar Sobre esse aspecto G
S Kirk afirma que
Os personagens em particular o heroacutei satildeo especiacuteficos e suas relaccedilotildees
familiares cuidadosamente assinaladas estatildeo ligadas a determinada regiatildeo
ainda que essa regiatildeo possa variar de acordo com quem relata o mito () Os
mitos por mais especiacuteficos no que se refere a personagens e localizaccedilotildees
espaciais parecem desenvolver-se em um passado temporal (KIRK 2006 61-
62)
Essa observaccedilatildeo eacute muito importante para nossa anaacutelise uma vez que tais narrativas
vinculam-se diretamente agrave formaccedilatildeo de identidades locais Sua expressatildeo coloca a
bidimensionalidade da construccedilatildeo identitaacuteria uma vez que fornece aos indiviacuteduos discursos
condensados de significados referentes a um passado e permite a essa comunidade mirar um
futuro Para usar as expressotildees de Reinhart Koselleck os mitos interferem na construccedilatildeo do
campo de experiecircncia e no horizonte de expectativas de uma comunidade (KOSELLECK
2006) Nesse sentido natildeo podemos esquecer que o passado natildeo eacute algo natural e sim uma
criaccedilatildeo cultural cuja manifestaccedilatildeo pode ser expressa de diferentes maneiras (ASSMANN 2011
47 RUumlSEN 2007b)
Como afirma Assman o poder precisa de uma origem que por sua vez forma a
alianccedila entre poder e recordaccedilatildeo e mira um futuro (ASSMANN 2011 68) Ele ainda continua
O passado interiorizado ndash que eacute exatamente o lembrado ndash encontra sua forma
na narraccedilatildeo A narraccedilatildeo tem uma funccedilatildeo Ou eacute o lsquomotor do desenvolvimentorsquo
ou eacute o fundamento da continuidade em nenhum caso se lembra do passado
por si mesmo Designamos as histoacuterias fundantes de lsquomitosrsquo Normalmente se
contrapotildee este conceito a lsquohistoacuteriarsquo e se associa esta contraposiccedilatildeo a duas
oposiccedilotildees ficccedilatildeo (mito) contra realidade (histoacuteria) e funcionalidade
axiologicamente condicionada (mito)contra a objetividade sem finalidade
determinada (histoacuteria) (ASSMANN 2011 72-73)
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Hoje sabemos que natildeo eacute possiacutevel produzir um relato sobre o passado sem a
imaginaccedilatildeo criadora ou mesmo elementos de ficcionalidade Assmann vai mais longe e afirma
que ldquoo passado que se consolida e interioriza na histoacuteria fundante eacute mito independente se eacute
fictiacutecio ou fantaacutesticordquo (ASSMANN 2011 73) Para o teoacuterico alematildeo o mito informa sobre si
e sobre uma ordem superior pensada como verdadeira cuja forccedila tem potencial normativo e
grande forccedila formativa ldquoO mito eacute o passado condensado em histoacuteria fundanterdquo (ASSMAN
2011 73-74)
Como dissemos anteriormente os mitos satildeo elementos constitutivos das
identidades sociais Eles satildeo formas de apropriaccedilatildeo do passado e como afirma Assman o mito
pertence agravequela histoacuteria fundante da comunidade Ele fornece sentido responde agrave pergunta de
onde viemos e carrega em si as respostas ou possibilidades interpretativas que respondem a
uma segunda pergunta qual seraacute o nosso futuro Esses elementos compotildeem uma constante
antropoloacutegica que se adapta agraves mais diversas sociedades sendo dessa forma uma caracteriacutestica
das narrativas miacuteticas na Antiguidade
O caso da Iliacuteada eacute significativo Ela expressa assuntos humanos se natildeo fosse a
presenccedila do maravilhoso natildeo haveria nenhum empecilho para sua veracidade Nessa narrativa
os deuses intervecircm para o desenvolvimento da accedilatildeo Aleacutem disso outros subsiacutedios maravilhosos
a rodeiam como as muralhas impermeaacuteveis de Troia e a armadura de Aquiles Afrodite e Ares
no campo de batalha que satildeo elementos que colocam a narrativa no que consideramos seu plano
miacutetico Elevam a narrativa da Guerra de Troia a um espaccedilo sagrado que tem como funccedilatildeo
costurar a existecircncia presente com o passado Daiacute a necessidade das listas de navios e mulheres
ou mesmo a suposta interpolaccedilatildeo no canto II da Iliacuteada que apresenta as naus enviadas pelos
atenienses ao campo de batalha Vincular as poleis a esses eventos funda a realidade como os
homens a conhecem Mesmo que seja no sentido de mudar o mundo ou de lutar pela
permanecircncia haacute um espaccedilo de luta simboacutelica que ocorre no plano do imaginaacuterio e da memoacuteria
coletiva
Os gregos contavam e recontavam essas histoacuterias muitas vezes em versotildees
contraditoacuterias Entretanto um elemento eacute fundamental os personagens miacuteticos apresentam
caracteriacutesticas que se repetem e permitem que eles sejam reconhecidos em qualquer situaccedilatildeo
Heacuteracles sempre levaraacute sua clava e a pele do Leatildeo de Nemeia por exemplo os deuses ou heroacuteis
condensam em si tanto caracteriacutesticas abstratas Afrodite o amor Hefesto a engenhosidade
humana quanto fiacutesicas Heacuteracles forte Hermes tem asas nos peacutes A articulaccedilatildeo dessas
estoacuterias eacute elaborada tendo em vista uma loacutegica interna Como afirma Jean Pierre Vernant
90
a ficccedilatildeo narrativa opera segundo um coacutedigo cujas regras para uma
determinada cultura satildeo rigorosas Esse coacutedigo comanda e orienta o jogo da
imaginaccedilatildeo miacutetica delimita e organiza o campo no qual ela pode se produzir
modificar os velhos esquemas elaborar novas versotildees (VERNANT 2009
232)
O que nos interessa nesse tipo de narrativa eacute sua funccedilatildeo Cuida-se nesse caso de
saber quais os aspectos da vida social satildeo influenciados por essa narrativa Como afirma Werner
Jaeger
O mito conteacutem em si este significado normativo mesmo quando natildeo eacute
empregado como modelo ou exemplo Ele natildeo eacute educativo pela comparaccedilatildeo
de um acontecimento da vida corrente com o acontecimento exemplar que lhe
corresponde no mito mas sim pela proacutepria natureza A tradiccedilatildeo do passado
celebra a gloacuteria o conhecimento do que eacute magniacutefico e nobre e natildeo um
acontecimento qualquer () O mito serve de instacircncia normativa para a qual
apela o orador Haacute no seu acircmago alguma coisa que tem validade universal
Natildeo tem um caraacuteter meramente fictiacutecio embora originariamente seja sem
duacutevida alguma o sedimento de acontecimentos histoacutericos que alcanccedilaram a
imortalidade atraveacutes de uma longa tradiccedilatildeo e da interpretaccedilatildeo enaltecedora da
fantasia criadora da posteridade (JAEGER 2010 67-68)
Essa longa citaccedilatildeo evidencia um caraacuteter significativo para esta pesquisa do mito
que eacute seu viacutenculo com a formaccedilatildeo dos indiviacuteduos ou seja os mitos orientam a sedimentaccedilatildeo
de valores e perspectivas de mundo nos jovens No caso grego o papel de Homero eacute basilar jaacute
Platatildeo na Repuacuteblica reconhecia que Homero era o educador dos gregos (Platatildeo Rep 606e)
A historiadora portuguesa Maria Helena Rocha Pereira eacute mais enfaacutetica ao afirmar que para se
conhecer a cultura helecircnica deve-se de alguma forma conhecer um pouco dos poemas
homeacutericos (PEREIRA 2003)
O que permanece durante o domiacutenio romano eacute que a formaccedilatildeo dos homens cultos
partia do estudo da poesia homeacuterica Henri Marrou em seu livro a Histoacuteria da Educaccedilatildeo no
mundo antigo descreve esse processo em que o jovem copiava e decorava textos canocircnicos
em constantes exerciacutecios (MARROU 19875 246-247) Nesse contexto o ensino dos textos em
que as narrativas miacuteticas apareciam era seminal Trata-se de um processo de construccedilatildeo de uma
memoacuteria cultural em que a narrativa miacutetica permite a imitaccedilatildeo a alusatildeo e a citaccedilatildeo
(CAMEROTTO 1998 141)
91
Como afirma Anne Gangloff118 no Alto Impeacuterio a Iliacuteada e a Odisseia satildeo os
grandes textos basilares para a formaccedilatildeo dos jovens na escola de gramaacutetica e de retoacuterica sendo
que ldquoos mitos ocupam um lugar importante nos progymnasmata ou exerciacutecios escolaresrdquo
(GANGLOFF 2008 153) Os grandes mitos satildeo essenciais para a formaccedilatildeo dos indiviacuteduos
satildeo os fundamentos tradicionais da paideia A historiadora acrescenta que ldquoos pensadores
gregos do Alto Impeacuterio usaram as grandes figuras miacuteticas em seus discursos e em sua
trajetoacuteriardquo (GANGLOFF 2008 153)
A presenccedila dos mitos no cotidiano formativo coloca a necessidade de investigarmos
com mais acuidade as relaccedilotildees entre mito e educaccedilatildeo e a consequente presenccedila de uma
pedagogia que se faz nesse jogo logo essa memoacuteria eacute fundamental para a formaccedilatildeo dos
intelectuais gregos
23 Mito e formaccedilatildeo outras pedagogias
Jaeger (2010 67-68) apresenta um aspecto do mito que nos interessa ele natildeo se
forma pela comparaccedilatildeo com os temas triviais do cotidiano mas com o que eacute elevado Nesse
ponto a leitura produzida por autores que estavam sob o Impeacuterio Romano desloca a temaacutetica
Observemos por exemplo o primeiro Diaacutelogo dos Deuses Marinhos entre Galateia119 e
Doacuteris120
Doacuteris se refere de maneira irocircnica ao Ciclope que estaacute interessado em Galateia A
ironia eacute feita no momento em que ela enfatiza que o Ciclope eacute um bonito pastor siciliano121 e a
filha de Nereu lembra que ele eacute filho de Poseidon o deus dos mares No entanto ela retruca
que natildeo importa sua linhagem jaacute que ele eacute um selvagem122 No diaacutelogo que se segue Galateia
afirma que gosta de Polifermo como ele eacute que o uacutenico olho lhe cai bem e que ela estaacute com
inveja pois ele natildeo olhou para ela
Nesse simples diaacutelogo temos duas divindades secundaacuterias do tradicional panteatildeo
helecircnico todavia essas deidades vinculam-se agraves populaccedilotildees que vivem agrave beira do mar ajudando
118 Anne Gangloff eacute uma importante especialista nos escritos de Dion Crisoacutestomo (40-115) intelectual da segunda
sofiacutestica Em seus trabalhos ela enfatiza principalmente a apropriaccedilatildeo dos mitos por esses escritos a partir das
formulaccedilotildees platocircnicas sobre o papel dos mitos na formaccedilatildeo humana (GANGLOFF 2006 2008 2002 26-38) 119 Existem dois personagens miacuteticos com esse nome entretanto Luciano fala especificamente da filha de Nereu
Seu nome remete agrave brancura de sua pele Suas estoacuterias satildeo conhecidas principalmente por seu envolvimento com
o ciclope Polifemo 120 Uma das filhas de Oceano esposa de Nereu 121 As narrativas mais antigas sobre os ciclopes os localizavam nos confins da terra Posteriormente a ilha da
Siciacutelia foi identificada como esse lugar 122 A representaccedilatildeo dos ciclopes como selvagens eacute bem antiga A primeira menccedilatildeo que temos estaacute na Odisseia no
encontro de Odisseus e Polifemo (Homero Odys IX 105-115)
92
na pesca e nas viagens ou seja trata-se de personagens do cotidiano o que facilita que o mesmo
seja compreendido Com isso Luciano insere um debate sobre o casamento ou os
relacionamentos afetivos entre esses seres Nota-se que a transposiccedilatildeo para um plano
inacessiacutevel no caso os deuses permite que as questotildees mundanas sejam debatidas sem meios
termos (BAKHTIN 2010 132) Assim temos principalmente a temaacutetica das relaccedilotildees por
motivos esteacuteticos eou interesse por poder Ele eacute filho de um deus muito poderoso e ela filha
de Nereu um antigo deus marinho Trata-se de um casamento politicamente interessante uma
vez que une duas geraccedilotildees de divindades bastante semelhante aos casamentos comuns entre as
importantes famiacutelias de seu tempo
Para Galateia e Doacuteris que satildeo deidades ligadas ao mar viacutenculos com o sacudidor
das terras colocar-lhes-iam em uma situaccedilatildeo bastante vantajosa Por traacutes da futilidade do tema
do encontro amoroso temos a profunda questatildeo das relaccedilotildees de poder seus viacutenculos com o
mundo privado e puacuteblico Tais relaccedilotildees geram inveja e desconfianccedila Observemos como
Luciano utiliza essa narrativa miacutetica que eacute uma estoacuteria que se vincula a personagens conhecidos
e maravilhosos localizada territorialmente (fala-se na Siciacutelia) ou seja a escolha luciacircnica
permite a vinculaccedilatildeo de um debate que poderia incomodar determinados ciacuterculos sociais
O desfecho do diaacutelogo condensa os pontos da anaacutelise que propomos Doacuteris diz ldquoEu
natildeo tenho nenhum namorado nem sou convencida por ser atrativa Mas um amante como o
Ciclope que fede a bode que come carne crua segundo dizem e come os hoacutespedes que o
visitamrdquo123 (Luciano D mar 1 5)
A personagem fecha ironicamente o diaacutelogo retomando as imagens dos ciclopes
presentes na tradiccedilatildeo homeacuterica mas insere o debate sobre os relacionamentos e os motivos que
os mesmos devem ter Nos textos luciacircnicos os mitos servem a outras pedagogias eles satildeo o
veiacuteculo perfeito para ideias e debates que natildeo poderiam ser forjados noutro contexto
O lugar da tradiccedilatildeo representada pelos textos homeacutericos na formaccedilatildeo do homem
grego era garantido em todo o sistema educacional Seus cantos eram copiados ditados
decorados exaustivamente para que o jovem dominasse a liacutengua grega Diferente do moderno
pesquisador cujo trabalho estaacute moldado por normas de citaccedilatildeo e referecircncia os homens antigos
citavam os cacircnones em seus discursos por meio de sua memoacuteria treinada o que confunde o
pesquisador contemporacircneo quando lecirc o documento e tenta fazer a anaacutelise do uso da citaccedilatildeo
pois ela muitas vezes eacute deslocada reinventada para servir a determinado propoacutesito
123 ldquoΔΩΡΙΣ
Ἀλλὰ ἐραστὴς μὲν οὐδεὶς ἔστι μοι οὐδὲ σεμνύνομαι ἐπέραστος εἶναι τοιοῦτος δὲ οἷος ὁ Κύκλωψ ἐστί κινάβρας
ἀπόζων ὥσπερ ὁ τράγος ὠμοβόρος ὥς φασι καὶ σιτούμενος τοὺς ἐπιδημοῦντας τῶν ξένων []rdquo
93
Como afirma Catherine Darbo-Peschanski (2004 11) a remissatildeo ao enunciado
escrito por outra pessoa satildeo feitos em uma economia do que se pode dizer e o que natildeo pode ser
dito Haacute um espaccedilo de negociaccedilatildeo entre o discurso originaacuterio e o discurso atual processo esse
que no mundo antigo tem uma loacutegica bem diferente da nossa Entendemos que esse espaccedilo
opaco pode superar as teses que clamam por uma unicidade discursiva e compreender como
existe uma polifonia de vozes que se expressam nos textos
Retomando os aspectos gerais da cultura e da formaccedilatildeo do homem antigo temos de
ressaltar que esse mergulho na tradiccedilatildeo homeacuterica natildeo era uma especificidade helecircnica mas
como afirma Pierre Grimal o homem romano lia Homero antes de Virgiacutelio (GRIMAL 1993
106) A presenccedila de pedagogos e filoacutesofos gregos marcou profundamente a aristocracia romana
Assentando estas duas importantes funccedilotildees do mito produzir sentimento de pertencimento e
seu caraacuteter pedagoacutegico podemos analisar sua transmissatildeo
Neste ponto devemos retomar um elemento que foi debatido por Paul Veyne
(1983110) o processo de helenizaccedilatildeo Ele foi extremamente seletivo com o que o romano
adota da cultura grega Poderiacuteamos dizer que eles se apropriam absorvem adaptam aprendem
aquilo que lhes foi uacutetil e os fortalece Por exemplo Roma sempre foi uma cidade aristocraacutetica
logo as celeumas sobre a democracia nunca fizeram parte do cotidiano da cidade eterna Ao
fazer citaccedilotildees miacuteticas embasadas na tradiccedilatildeo homeacuterica e hesioacutedica Luciano dialoga de muito
proacuteximo com os romanos Como dissemos o grego era uma liacutengua dominada pela elite Tal
polifonia era uacutetil para a partilha das mensagens para abrir a possibilidade do diaacutelogo
Existem diversas maneiras pelas quais os mitos podem ser expressos por meio da
escrita no mundo helecircnico Haacute o registro na poesia eacutepica e liacuterica nas trageacutedias e em outros
suportes aleacutem da representaccedilatildeo dos mitos na cultura material Todavia natildeo podemos esquecer
que a oralidade eacute a fonte para a conservaccedilatildeo dessas narrativas Ao lidar com os mitos
aprendemos o quanto a oralidade pode conservar e como a escrita pode cambiar O exemplo da
poesia eacutepica homeacuterica permite observar os elementos de oralidade tanto na Iliacuteada quanto na
Odisseia Outro elemento importante eacute que se sua narrativa principal jaacute eacute um tema mitoloacutegico
esses poemas permitem narrativas secundaacuterias124 Textualizar mitos natildeo eacute uma tarefa simples
Temos os poemas que contam justamente as origens dos deuses O mais ceacutelebre de
todos eacute atribuiacutedo a Hesiacuteodo trata-se da Teogonia Poderiacuteamos ampliar essa lista com os poemas
de Piacutendaro e outros poetas do periacuteodo arcaico Com os tragedioacutegrafos do periacuteodo claacutessico essas
narrativas foram adaptadas ao teatro Cada vez que o mito foi recontado ele atendia agraves
124 Um exemplo claacutessico satildeo os amores de Afrodite narrados pelo Aedo na corte dos Feaacutecios (Homero Odys
VIII 270-365)
94
especificidades dos gecircneros125 Geralmente quando temos acesso aos mitos satildeo versotildees
presentes nessas fontes
Uma fonte importante para os mitos satildeo os mitoacutegrafos O mais conhecido eacute
Apolodoro de Atenas que escreveu a Biblioteca Mitoloacutegica datada do seacuteculo I ou II aC
Existem trecircs textos nomeados de Histoacuterias Incriacuteveis Paleacutefato que a criacutetica filoloacutegica data da
segunda metade do seacuteculo IV aC Heraacuteclito autor do seacuteculo I dC e o Anocircnimo do Vaticano
cuja data eacute desconhecida mas pode ser datado como posterior ao seacuteculo V dC Existe ainda o
texto de Erastoacutetenes de Cirene chamado Catasterismos datado do seacuteculo III aC que eacute um
relato sobre personagens mitoloacutegicos que se transformaram em estrelas Um importante
testemunho eacute o de Lucio Aneo Cornuto que em seu Epitome das tradiccedilotildees mitoloacutegicas dos
gregos faz uma interpretaccedilatildeo etimoloacutegica de fundo estoico dos mitos gregos
Tais textos satildeo importantes para a anaacutelise mitoloacutegica pois condensam informaccedilotildees
que muitas vezes estatildeo dispersas em uma multiplicidade e diversidade gigantesca de escritos
Satildeo textos de cunho escolar que estabelecem cacircnones fixam tradiccedilotildees Era importante para os
homens mais cultos terem esse conhecimento o que os marcava com uma distinccedilatildeo social Satildeo
textos muito semelhantes aos breviaacuterios do quarto seacuteculo cuja funccedilatildeo era apresentar a Histoacuteria
do Impeacuterio aos novos senhores de Roma
Uma vez que os mitos apresentam narrativas que concentram significados das mais
distintas ordens socioculturais esses sentidos satildeo bastante flexiacuteveis logo sua apropriaccedilatildeo pode
fornecer embasamento para posiccedilotildees sociais por vezes contraditoacuterias126
Tal trabalho depende de elementos metanarrativos que organizam a seleccedilatildeo e a
transmissatildeo dos enunciados Trata-se do processo de releitura dos mitos uma vez que como
bem nos explica Luis Costa Lima a narrativa natildeo eacute anterior ao ato da escrita mas concomitante
a ele (LIMA 1989 23) O ato de escrita natildeo eacute ingecircnuo Escreve-se para se inscrever no mundo
narra-se tambeacutem com o intuito de marcar-se na vida transpor a barreira da mortalidade para
adentrar a utopia (vista como real possiacutevel) da imortalidade
Como enfatizamos anteriormente os mitoacutegrafos (autores antigos que compilaram
os mitos) constroem seus escritos a partir de criteacuterios que satildeo das mais variadas ordens e
exteriores agrave narrativa Temos aspectos poliacuteticos que evidenciam determinados mitos Filoacutestrato
125 Um caso claacutessico para exemplificar essa caracteriacutestica foi analisado por Jean Pierre Vernant no texto Eacutedipo sem
complexo em que ele mostra a diversidade de narrativas presentes no mito de Eacutedipo A narrativa sofocleana mais
conhecida do puacuteblico erudito foi apenas uma entre muitas versotildees do mito (VERNANT 1986 80) 126 Por exemplo o mito de Heacuteracles cuja narrativa atendia aos mais diferentes interesses sociais tanto da plebe
romana quanto da aristocracia senatorial Discutimos largamente o mito de Heacuteracles em nossa Dissertaccedilatildeo de
Mestrado (ARANTES JUNIOR 2008)
95
fornece um exemplo interessante de como o mito pode ser o veiacuteculo ou melhor a estrateacutegia
para posicionar-se diante do poder Em um grafite da cidade de Roma estaria a seguinte frase
ldquoNero Orestes Alcmeacuteon matricidasrdquo127 (Filostrato V S I 481)128 Essa frase expressa com
precisatildeo a ambiguidade presente nos enunciados miacuteticos Tal grafite pode expressar valores que
revelariam o apoio ao Imperador Nero uma vez que tanto Orestes como Alcmeacuteon assassinam
suas progenitoras em contextos tradicionalmente justificados Ou ainda poderiacuteamos acusar o
Princeps de cometer um crime de sangue Satildeo essas sutilezas que motivam nossa pesquisa
Para entender o contexto de produccedilatildeo desses discursos partimos de algumas
premissas Inicialmente tomamos os mitos como narrativas construiacutedas socialmente que
expressam significados referentes a um suposto passado comum A expressatildeo cultural vincula
essa narrativa a um preteacuterito pois ela eacute sentida socialmente como parte de um passado Nessa
acepccedilatildeo especiacutefica os discursos miacuteticos satildeo tambeacutem relatos de memoacuteria jaacute que satildeo aceitos
como expressatildeo de outra temporalidade
Seguindo por essa trilha os mitos fornecem suportes para a manutenccedilatildeo de
identidades assim como satildeo a expressatildeo de expectativas para o futuro Podemos observar em
suas distintas releituras apropriaccedilotildees desse passado compartilhado e a representaccedilatildeo de uma
imagem de futuro desejada naquele momento histoacuterico
O uso da mitologia nos escritos de Luciano natildeo atende aos tracircmites comuns do uso
de outros autores Nos escritos do siacuterio temos um processo de releitura da tradiccedilatildeo miacutetica Para
avanccedilar neste debate o primeiro ponto que queremos enfatizar eacute que os mitos gregos satildeo
aspectos de uma memoacuteria social Por ter essa caracteriacutestica esse tipo especiacutefico de narrativa
apresenta um forte elemento aglutinante
24 Os mitos entre as memoacuterias naturais e as artificiais
Muitos satildeo os caminhos que devemos trilhar para ter os elementos necessaacuterios agrave
compreensatildeo de como Luciano de Samoacutesata utilizou fragmentos das narrativas miacuteticas em seus
textos principalmente os personagens Para tal entendimento acreditamos ser relevante
aprofundar a anaacutelise dos mitos enquanto memoacuteria social ou histoacuteria fundante
Temos a preocupaccedilatildeo de entender esses conceitos em duas circunstacircncias como esses
conceitos foram pensados pelos saberes sociais disponiacuteveis naquele contexto (mitologia
127 Essa inscriccedilatildeo tambeacutem aparece citada em Suetocircnio (Nero 39) 128 ldquoΝέρων Ὀρέστης Ἀλκμαίων μετροκτόνοιrdquo
96
retoacuterica e filosofia) e a relaccedilatildeo desses saberes e os escritos luciacircnicos assim como cumpre
integrarmos nossa Tese nas reflexotildees das ciecircncias humanas contemporacircneas
A mitologia (conjunto de mitos de uma determinada cultura) eacute um corpo de narrativas
que propotildee uma explicaccedilatildeo sociocultural para as comunidades Por esse motivo pode ser
pensada enquanto um veiacuteculo para compreender o presente Os significados que os mitos
portam satildeo polivalentes (GANGLOFF 2006 20) permitindo diversos tipos de indagaccedilotildees e
reflexotildees
No contexto que estudamos as anaacutelises que buscam os sentidos profundos dos mitos
tendo em vista sua relaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas natildeo respondem aos usos que os mesmos
apresentaram Luciano enfatiza muito mais o fato de o mito ser uma estoacuteria conhecida ndash o que
facilitava que o mesmo transmitisse informaccedilotildees valores e desejos ndash do que seus viacutenculos com
a religiosidade Em muitos momentos o escritor de Samoacutesata evidencia as incongruecircncias do
mito Haacute o desejo de produzir o riso mas o riso precisa ser pensado em uma loacutegica proacutepria
O riso relaciona-se diretamente com o gecircnero escolhido entretanto desarma a audiecircncia
e permite que a criacutetica sociocultural seja elaborada diante dos poderes estabelecidos O efeito
cocircmico faz com que a imagem tenha uma durabilidade maior na memoacuteria daquele que ouve E
esse conhecimento estava disponiacutevel nos manuais de retoacuterica do periacuteodo imperial Por exemplo
um dos mais importantes manuais que nos restaram o Retoacuterica ad Herennium ao falar da
criaccedilatildeo de imagens e da fixaccedilatildeo de ideias lembra-nos que as mesmas para terem um efeito
mnemocircnico mais contundente atribuem ldquoum efeito cocircmico agraves nossas imagens o que tambeacutem
nos garantiraacute que lembremos delas mais prontamenterdquo129 (Anocircnimo Rhet Ad Her III XXII)
Esse ato favorece a memoacuteria uma vez que estimula reaccedilotildees emocionais
Alberto Camerotto em seu livro La metamorfosi della parola studi sulla parodia in
Luciano de Samosata ressalta o uso da memoacuteria como recurso literaacuterio usado na paroacutedia
luciacircnica A memoacuteria permite ao escritor criar por meio da imitaccedilatildeo da alusatildeo ou da citaccedilatildeo
no diaacutelogo com a tradiccedilatildeo literaacuteria que estava disponiacutevel (CAMERROTTO 1998 141) A
formaccedilatildeo do πεπαιδευμένος conceito antigo que se refere agravequele que domina os elementos
da Paideia completa-se com esse tipo de conhecimento e era fundamental para que o orador se
estabelecesse no meio poliacutetico (WHITMARSH 2001 5)
Como Camerrotto observou Luciano mescla em sua escrita poesia e prosa numa
estrateacutegia de escrita vinculada diretamente aos saberes sociais ligados agrave arte da memoacuteria A
129 ldquo[] aut ridiculas res aliquas imaginibus adtribuamus nam ea res quoque faciet ut facilius meminisse valeamusrdquo
97
partir de uma tradiccedilatildeo originaacuteria da reflexatildeo presente na obra de Mikhail Bakthin Camerrotto
tenta compreender a loacutegica do cocircmico seacuterio (BAKHTIN 2010 121-122)
Os recursos estiliacutesticos de Luciano partem do que Camerrotto chamou de ldquomixisrdquo a
mistura de gecircnero como caracteriacutestica essencial desse escritor Outro recurso presente nos seus
escritos eacute a mescla de prosa e verso ndash lembremos que o mito era transmitido pela tradiccedilatildeo
homeacuterica e hesioacutedica por meio dos versos Camerrotto ressalta ainda que a criaccedilatildeo luciacircnica
natildeo eacute totalmente livre pois estaacute na interaccedilatildeo constante do novo com a tradiccedilatildeo
(CAMERROTTO 1998 75)
Lembrar e esquecer satildeo elementos fundamentais para a construccedilatildeo cultural dos
indiviacuteduos Como ressaltamos anteriormente a construccedilatildeo de narrativas de que o passado seja
o principal referente pode ser uma constante antropoloacutegica mas natildeo eacute um ato natural e o modo
como as sociedades tecem esses discursos varia de maneiras muito diversas130 A anaacutelise dos
textos luciacircnicos necessita da clareza desses conhecimentos que estavam disponiacuteveis aos
homens cultos de sua eacutepoca Luciano deve ser visto como antes de tudo um orador o que eacute
documentado pelos exerciacutecios retoacutericos presentes em sua obra como nos textos sobre o uso do
discurso Mesmo natildeo se referindo aos manuais de retoacuterica de seu tempo podemos supor que o
siacuterio conhecia a arte da memoacuteria de Simocircnides
Frances Amelie Yates relembra uma importante estoacuteria sobre o poeta grego Simocircnides
citando o orador romano Ciacutecero que conta como o poeta foi chamado a um banquete a fim de
fazer o elogio do anfitriatildeo Entretanto metade do seu discurso foi dedicada para enaltecer os
gecircmeos Dioacutescoros131 Ao fim da alocuccedilatildeo o dono da festa resolve pagar somente a metade do
combinado o restante ele deveria cobrar dos gecircmeos A festa transcorria quando Simocircnides
foi avisado que dois homens o chamavam no portatildeo da casa Ele vai ateacute a porta e nesse instante
o teto do salatildeo desaba sobre os convivas e todos satildeo mortos ficando com seus corpos
desfigurados e por isso natildeo sendo possiacutevel reconhececirc-los Contudo o poeta mostra com
precisatildeo onde cada um dos convidados estava sentado o que possibilitou o reconhecimento dos
corpos (YATES 2007 17-18)
Essa anedota apenas configura a imagem desse personagem como o inventor da
mnemoteacutecnica Trata-se de um saber cujo principal ensinamento seria que o orador deveria
130 O teoacuterico alematildeo Jorg Rusen (2001) propocircs uma tipologia das maneiras com as quais os homens produzem
narrativas sobre o passado Postura criticada no texto do teoacuterico japonecircs Masayuki Sato (2006) Obviamente a
construccedilatildeo desses modelos natildeo eacute uma tarefa faacutecil e nossa postura eacute de duacutevida radical da capacidade de construccedilatildeo
de modelos que consigam dar conta dessa multiplicidade 131 Trata-se de dois filhos de Zeus com a mortal Leda Castor e Poacutelux Satildeo irmatildeos de Helene e Clistemenestra O
pai dos deuses se uniu com sua matildee na forma de um cisne Seu culto eacute bastante popular entre os homens do tempo
de Luciano especialmente entre os romanos (GRIMAL 2005 123)
98
treinar sua memoacuteria ligando palavras ou coisas a lugares de tal maneira que a disposiccedilatildeo dos
lugares permita ao orador lembrar os elementos necessaacuterios ao fazer um discurso
Os manuais de retoacuterica latinos foram os que melhor analisaram esse saber Podemos
citar principalmente Ciacutecero Quintiliano e o anocircnimo autor da Rhetorica ad Herennium A arte
da memoacuteria se vincula diretamente ao uso controlado da memoacuteria artificial como uma
realizaccedilatildeo do esforccedilo individual Sobre esse tema o trabalho de Yates continua mesmo depois
de 50 anos de sua publicaccedilatildeo original em inglecircs uma obra incontornaacutevel para aqueles que
estudam a cultura da memoacuteria no mundo ocidental (YATES 2007 17-38)
Ainda que a autora natildeo fosse especialista no mundo antigo sua especialidade era o
Renascimento principalmente o livro de Giordano Bruno em que os dois primeiros capiacutetulos
mapeiam os elementos constituidores da arte da memoacuteria no mundo antigo e principalmente
evidenciam como esse conhecimento era fundamental para a formaccedilatildeo do homem antigo
Trata-se de uma estrateacutegia individual na qual o orador soacute conseguia a eficaacutecia almejada
em seu discurso caso ele conseguisse manipular as informaccedilotildees disponiacuteveis e transformaacute-las
de forma a mobilizar os sentimentos do seu ouvinte a fim de convencecirc-lo Luciano de Samoacutesata
tinha conhecimento desses manuais uma vez que ele foi advogado e usou as teacutecnicas da retoacuterica
grega em seus escritos Os laccedilos entre arte da memoacuteria e retoacuterica satildeo elemento chave para
compreender porque a produccedilatildeo de Luciano vincula-se agrave cultura poliacutetica do Impeacuterio Romano
Sabe-se da presenccedila de oradores em muitos ambientes sociais pois eles declamavam em
banquetes antes de algum espetaacuteculo e nas praccedilas puacuteblicas
Dadas as condiccedilotildees poliacuteticas das sociedades dominadas pelo Impeacuterio Romano a retoacuterica
deliberativa foi paulatinamente perdendo espaccedilo e suas formas judiciais e epidiacuteticas ganhando
destaque no cenaacuterio imperial
25 Luciano e os mitos
O historiador deve desconfiar das permanecircncias de termos uma vez que os mesmos
podem camuflar profundas transformaccedilotildees por exemplo democracia132 Com o termo mito natildeo
eacute diferente visto que seu significado mudou desde Homero Como apontamos anteriormente
nos textos homeacutericos essa palavra significa apenas relato narrativa sem nenhuma conotaccedilatildeo
132 Essa palavra eacute interessante como nos mostrou Nicole Louraux pois mesmo na Greacutecia claacutessica seu significado
vacilou entre uma noccedilatildeo positiva e um termo pejorativo para a organizaccedilatildeo poliacutetica grega (LORAUX 2009197)
aleacutem da diferenccedila intriacutenseca que o termo comporta com as democracias ocidentais contemporacircneas e a ateniense
99
pejorativa Em Luciano ela aparece quarenta vezes com oito significados diferentes conforme
nossa investigaccedilatildeo
1 O mito aparece vinculado agrave narrativa de aventuras tradicionais das divindades heroacuteis e
seres maravilhosos expressando estoacuterias que satildeo interessantes mas carentes de
veracidade (Luciano Bacch 12 Syr Dea 125 Dom 192 Dom 1912 Anarch
3518 Salt 194 Salt 1911 Salt 1919 Astr 195 Hermot 2013)
2 Narrativas vinculadas agrave explicaccedilatildeo sobre algum acontecimento ou sobre a origem de
alguma coisa Luciano apresenta no texto Sobre o acircmbar ou dos cisnes (Electr 11
Electr 27) essa palavra identificada com a proacutepria narrativa que explica o surgimento
do acircmbar No Encocircmio agrave mosca ele elucida o significado da picada do inseto (Musc
Enc 101) Esse termo tambeacutem serve para explicar a toponiacutemia de uma regiatildeo (Tox
322)
3 No Encocircmio agrave mosca Luciano usa o termo mito em um contexto vinculado agrave filosofia
platocircnica da imortalidade da alma Ele afirma que a mosca eacute um dos animais que
ressuscitam e vincula isso agrave narrativa (μῦθον) sobre Hermoacutetimo de Clazoacutemenas
conhecido personagem ao qual era atribuiacuteda a transmigraccedilatildeo da alma (Torx 710-20)
4 Ele usa o termo mythos para se referir agraves histoacuterias de outros povos ou cidades num
sentido de construccedilatildeo identitaacuteria ou de tentativa de colocar em duacutevida tais narrativas
(Torx 1112 Hist Co 2811 Adv Ind 113 Apol 325 Icar 1917 Salt 211) Haacute
aqui a construccedilatildeo de uma narrativa etnograacutefica ao estilo de Heroacutedoto de Halicarnaso
5 Em alguns momentos esse termo liga-se agraves narrativas que natildeo apresentam comprovaccedilatildeo
empiacuterica ou veracidade sendo dessa forma desprovidas de racionalidade opostas agraves
ldquonarrativas verdadeirasrdquo Nesses casos os tradutores utilizam os termos faacutebula estoacuteria
lendas fable leged story (Torx 5616 Macr 104 Alex 78 Im 47) No caso de
Alexandre ou o falso profeta a palavra aparece em um contexto que catalisa seu aspecto
negativo
6 Nos textos homeacutericos a palavra mito tem o sentido de relato natildeo se opondo a logos
Luciano utiliza a palavra com esse sentido em alguns momentos (Cal 816 Somn
18189 Tim 3522 Im 121133 Sat 346) No texto Por que natildeo acreditar em caluacutenias
haacute uma citaccedilatildeo de um poeta arcaico cujo nome natildeo sabemos em que a palavra manteacutem
o sentido original
133 Nessa linha existem duas apariccedilotildees
100
7 Em alguns momentos Luciano enfatiza a proximidade entre mito e poesia ou que o
mito eacute narrado por Homero e Hesiacuteodo esses ldquofazedores de mitosrdquo (J Trag 3911)
Nesses casos o samosatense enfatiza as alegaccedilotildees platocircnicas de que o mito eacute prejudicial
para a formaccedilatildeo dos cidadatildeos jaacute que sua narrativa traz o encanto e obscurece o
raciociacutenio (Philops 919 Philops 43) O mito eacute tema de um gecircnero literaacuterio especiacutefico
o que explica sua apariccedilatildeo no opuacutesculo Como se deve escrever a Histoacuteria (Hist Co
820 Hist Co 1027) Ele ensina ainda que o historiador caso se depare com um mito
em uma investigaccedilatildeo (Hist Co 601) deve deixar ao leitor o parecer sobre a fiabilidade
do mesmo ao modo de Heroacutedoto
8 No texto Hermotimo ou sobre as seitas o termo refere-se agraves faacutebulas esoacutepicas134
(Hermot 842)
Desse modo o termo mito eacute apropriado pelo siacuterio com conteuacutedos semacircnticos
distintos Para a compreensatildeo da maneira como Luciano lida com os mitos podemos usar como
exemplo esclarecedor o texto Sobre o acircmbar ou os cisnes no qual o narrador propotildee investigar
a narrativa sobre o acircmbar Segundo essa estoacuteria ele seria originaacuterio de aacutelamos proacuteximos ao rio
Eridamo135 que choram laacutegrimas de acircmbar por causa de Faetonte136 Como o acircmbar eacute muito
valioso o narrador manifesta o desejo de ir ao rio sentar embaixo de uma dessas aacutervores e
pegar as ldquolaacutegrimasrdquo
Indo em direccedilatildeo ao Ocidente o narrador natildeo encontra os tais aacutelamos e pergunta aos
marinheiros onde eles os encontravam Como natildeo sabem do que ele fala eacute necessaacuterio narrar o
mito Essa narrativa se coloca na encruzilhada de sua polissemia pois por um lado lembra que
o termo vincula-se agrave narrativa sobre a origem de outro como estoacuteria fantasiosa Logo os
marinheiros entenderam o engano em que o viajante caiacutera pensando que encontraria os aacutelamos
que choram acircmbar Os navegantes perguntam-lhe ldquoQue indiviacuteduo enganador e mentiroso te
contou issordquo137 (Electr 315) Em seguida afirmam que nunca tinham visto nada tatildeo valioso
134 A faacutebula eacute um pequeno conto moralizador ateacute o seacuteculo XVIII era escrita em verso (MASSAUD 1992 226)
protagonizado por animais irracionais que sugerem semelhanccedilas com os homens Desde o seacuteculo V aC a faacutebula
grega se associou a seu principal copilador Esopo (SPEAKE 1999 159) Segundo a tradiccedilatildeo ele foi um escravo
traacutecio que trabalhou em Samos onde foi liberto (SPEAKE 199 148-149) 135 Trata-se de um dos cinco rios miacuteticos que cruzariam o Hades tido como um dos filhos de Oceanos e Tetis 136 Filho do deus Helio que teve a permissatildeo de dirigir o carro solar por um dia entretanto saiu da rota quase
queimando a Terra ou afastando o sol em demasia Para evitar um problema maior Zeus o fulminou com um raio
e seu corpo caiu perto do rio Eridamo o que Luciano conta no texto Astrologia (Astrol 1911) Suas irmatildes teriam
sido transformadas em aacutervores chamadas de aacutelamos por causa do desesperado pranto 137 ldquoΤίς ταῦτά σοι ἔφασκον διηγήσατο ἀπατεὼν καὶ ψευδολόγος ἄνθρωποςrdquo
101
mesmo navegando em terras distantes Caso houvesse algo tatildeo raro eles mesmos
comercializariam o produto
Em outra passagem o siacuterio questiona inicialmente as autoridades que expressam
os mitos fala tanto dos poetas tradicionais quanto das tradiccedilotildees orais que permanecem na
memoacuteria (Electr 6) O mito eacute enfrentado questionado investigado O que se fazia distante do
outro eacute buscado com a vista Eacute justamente pelo sentido da visatildeo que os marinheiros rebatem as
afirmativas do narrador logo completadas por argumentos de ordem praacutetica e comercial Os
olhos desmentem o que foi dito Assim uma investigaccedilatildeo que busca ver os locais presentes nas
narrativas contesta a veracidade dos mitos
Sendo abordado dessa forma o personagem luciacircnico desabafa agrave moda de Platatildeo
ldquo() fiquei envergonhado porque realmente me havia ocorrido algo comum agraves crianccedilas confiar
nas fantasias inverossiacutemeis dos poetas o que natildeo eacute saudaacutevel admitirrdquo138 (Electr 319-21) Haacute
nesse momento uma alegaccedilatildeo que remonta agraves elucubraccedilotildees presentes na Repuacuteblica Entretanto
Luciano natildeo aproxima as ldquofantasias do mitordquo da educaccedilatildeo do cidadatildeo ideal como o filoacutesofo
De maneira indireta eacute isto que do passo se desdobra o homem inteligente natildeo deve acreditar
em estoacuterias que natildeo satildeo fiaacuteveis deve sempre manter uma postura de duacutevida
Os marinheiros completam ldquoeacute vocecirc bom homem que natildeo se cansa de inventar
mentiras sobre nosso paiacutes e o riordquo139 (Electr 59) Luciano aponta o problema principal a
distacircncia que inviabiliza a verificaccedilatildeo das estoacuterias Obviamente ele fornece uma maneira de
lidar bem com tais narrativas alertando que eacute preciso tomar cuidado com os relatos exagerados
ou insuficientes Ele termina com um pacto de leitura afirmando ldquoem lugar algum me ouviram
vangloriar-me desta forma em meus discursos e nunca ouviratildeordquo140 (Electr 65-6)
A relaccedilatildeo de Luciano com os mitos eacute muito complexa uma vez que ele estaacute
preocupado com seu potencial educativo (preocupaccedilatildeo com as narrativas que natildeo satildeo criacuteveis)
suas relaccedilotildees com a existecircncia material (procura de produtos comercializaacuteveis) e as balizas de
uma teoria dos tipos de discursos Histoacuteria e Poesia O que notamos eacute a riqueza que o termo
mito agrega aos escritos de Luciano Como ele observa os mitos por essa ordem podemos
analisar a maneira como utiliza os elementos da narrativa miacutetica na construccedilatildeo de seus
discursos O siacuterio tinha como um de seus temas prediletos as contradiccedilotildees por exemplo o fato
de Zeus ter um tuacutemulo em Creta (Luciano Tim 611)
138 ldquo[] καὶ ἐσιώπησα αἰσχυνθείς ὅτι παιδίου τινος ὡς ἀληθῶς ἔργον ἐπεπόνθειν πιστεύσας τοῖς ποιηταῖς ἀπίθανα
οὕτως ψευδομένοις ὡς μηδὲν ὑγιὲς ἀρέσκεσθαι αὐτοῖςrdquo 139 ldquo[] Σύ ἔφησαν ὦ ἄνθρωπε οὐ παύσῃ τήμερον καταψευδόμενος τῆς χώρας ἡμῶν καὶ τοῦ ποταμοῦrdquo 140 ldquo[] ἀλλὰ μαρτύρομαι ὡς ἐμοῦ τοιαῦτα μεγαλαυχουμένου περὶ τῶν ἐμῶν οὔτε ὑμεῖς οὔτε ἄλλος πω ἀκήκοεν
οὐδ ἂν ἀκούσειέν ποτεrdquo
102
Esse uso nunca eacute ingecircnuo uma vez que quando analisamos o texto Dupla
Acusaccedilatildeo fica evidente que Luciano domina os gecircneros poeacuteticos o que lhe permite transgredi-
los estendendo-os para a mitologia Por isso em suas narrativas personagens mitoloacutegicos e
histoacutericos dialogam e se questionam Os Diaacutelogos dos mortos satildeo um excelente exemplo dessa
praacutetica
Luciano conhecia a explicaccedilatildeo evemerista141 utilizando-a para a confecccedilatildeo de seus
textos Por exemplo o mito de Proteu ganha uma explicaccedilatildeo evemerista no texto Sobre a danccedila
Nesse opuacutesculo Proteu era um danccedilarino excelente que se expressava em suas danccedilas e imitava
as qualidades dos fenocircmenos naturais (aacutegua fogo vento) dos animais (leatildeo leopardo) e das
aacutervores Por esse motivo os mesmos foram lembrados pela metaacutefora da transformaccedilatildeo que
pouco a pouco teria sido esquecida No texto Astrologia o mito de Faetonte142 ganha uma
explicaccedilatildeo nesse sentido ele eacute um astroacutelogo que estudou os misteacuterios do sol mas morreu sem
completar suas investigaccedilotildees (Astrol 18-191) Nesse mesmo texto Luciano fornece narrativas
que apresentam explicaccedilotildees semelhantes para os mitos de Beloferonte Iacutecaro e Deacutedalo entre
outros
No texto Anaacutecarsis ou sobre a ginaacutestica Soacutelon personagem histoacuterico retomado por
Luciano expressa elementos que nos ajudam a entender como o πεπαιδευμένος se formaria
Educamos para que seu espiacuterito vibre primeiro com a muacutesica e com a
aritmeacutetica e os ensinamos a escrever as letras e diferenciaacute-las sem
dificuldade A medida que vatildeo avanccedilando lhes recitamos as maacuteximas
dos homens saacutebios gestas do passado e pensamentos uacuteteis adornados
em verso para que sejam recordados mais facilmente Eles escutam
essas gestas faccedilanhas destacadas pouco a pouco se sentem inclinados
para elas e se afanam em imitaacute-las para agrave sua vez tambeacutem serem
cantados e admirados na posteridade tanto Hesiacuteodo quanto Homero
compuseram muitos poemas dessa iacutendole143 (Luciano Anarc 21 grifo
nosso)
141 Explicaccedilatildeo dos mitos que afirma que eles satildeo feitos de homens do passado divinizados pelo medo ou pela
admiraccedilatildeo dos homens 142 Trata-se do mesmo mito debatido na seccedilatildeo anterior no texto Sobre o acircmbar ou os cisnes entretanto nesse
momento Luciano encontra outra chave interpretativa para a mesma estoacuteria Natildeo podemos esquecer que a escolha
dos mitos narrados servem muitas vezes aos gecircneros escolhidos 143 ldquoΤὴν μὲν τοίνυν ψυχὴν μουσικῇ τὸ πρῶτον καὶ ἀριθμητικῇ ἀναρριπίζομεν καὶ γράμματα γράψασθαι καὶ τορῶς
αὐτὰ ἐπιλέξασθαι διδάσκομεν προϊοῦσιν δὲ ἤδη σοφῶν ἀνδρῶν γνώμας καὶ ἔργα παλαιὰ καὶ λόγους ὠφελίμους
ἐν μέτροις κατακοσμήσαντες ὡς μᾶλλον μνημονεύοιεν ῥαψῳδοῦμεν αὐτοῖς οἱ δὲ καὶ ἀκούοντες ἀριστείας τινὰς
καὶ πράξεις ἀοιδίμους ὀρέγονται κατὰ μικρὸν καὶ πρὸς μίμησιν ἐπεγείρονται ὡς καὶ αὐτοὶ ᾄδοιντο καὶ
θαυμάζοιντο ὑπὸ τῶν ὕστερον οἷα πολλὰ Ἡσίοδός τε ἡμῖν καὶ Ὅμηρος ἐποίησανrdquo
103
A proposta de anaacutelise dos diaacutelogos luciacircnicos envereda nesse sentido buscando
compreender o discurso em sua complexidade uma vez que Luciano questiona e reinventa os
mitos Sua escrita se apropria da tradiccedilatildeo de uma maneira peculiar ora questionando a tradiccedilatildeo
ora enfatizando seu caraacuteter formador
Observamos em todos os toacutepicos do segundo capiacutetulo desta Tese que Luciano de
Samoacutesata se coloca em um regime de memoacuteria especiacutefico em que os homens satildeo formados
dentro de premissas comuns As narrativas miacuteticas expressam uma face importante desse
regime especiacutefico Frente a esse contexto colocamos a indagaccedilatildeo relativa aos usos poliacuteticos
que essas narrativas tecircm nos escritos do escritor de Samoacutesata
104
Capiacutetulo III
Apropriaccedilatildeo luciacircnica das narrativas miacuteticas repensando o
poder
Os usos da mitologia nos escritos de Luciano de Samoacutesata dialogam com a cultura
poliacutetica144 greco-romana e com sua teologia poliacutetica145 Por se relacionarem a partir de uma
encruzilhada cultural que se evidencia em trecircs pontas romanos gregos e siacuterios os textos
luciacircnicos dialogam com os alicerces da teia cultural dominante a partir do olhar do dominado
sem colocar essa dicotomia em uma letra radical jaacute que estar em lugares diferentes natildeo impede
o diaacutelogo o que implica em acordos e negociaccedilotildees simboacutelicas constantes
Luciano eacute um intelectual helenizado que escreveu em uma placenta cultural
(CATROGA 200913) cuja interaccedilatildeo se torna profiacutecua e reveladora de novas possibilidades
de compreensatildeo social A resistecircncia cultural natildeo necessita do conflito aberto visto que ela
pode ocorrer das mais diversas formas Nesta pesquisa evidenciamos sua ocorrecircncia a partir
dos aspectos questionadores presentes no tratamento que o siacuterio daacute aos mitos gregos
Partimos das premissas de que as mensagens luciacircnicas discorrem sobre assuntos
poliacuteticos que precisavam de cuidados esteacuteticos eou retoacutericos substanciais para que a sua
apresentaccedilatildeo subvertesse ou questionasse a ordem estabelecida Como jaacute estava expresso no
manual de retoacuterica Sobre o Estilo de Demeacutetrio o escritor e o orador deviam ter cuidados para
falar ao tirano uma vez que a sobrevivecircncia do texto dependia disso Como afirmou Paul
Veyne ldquonaquele governo em que a defrontaccedilatildeo fiacutesica contava muito saber controlar a
fisionomia podia ser de importacircncia capital nos dois sentidos da palavrardquo (VEYNE 2009 15)
O historiador francecircs se refere especificamente ao Senado Romano entretanto essas
colocaccedilotildees se estendem a todos os espaccedilos de poder poliacutetico no Impeacuterio
No caso dos escritos de Luciano natildeo acreditamos em uma oposiccedilatildeo sistemaacutetica
feita pelo samosatense aos governos romanos mas no fato de esses documentos expressarem
as colocaccedilotildees de um intelectual que apresenta suas convicccedilotildees e opiniotildees referentes agraves coisas
que o cercam Ele usa para isso os recursos que aprendeu por meio da Paideia Os historiadores
apontam para a impossibilidade de atingir as intenccedilotildees originaacuterias do texto o que natildeo eacute possiacutevel
144 Entendemos por cultura poliacutetica o conjunto de siacutembolos praacuteticas e ideias que exprimem a maneira como uma
comunidade lida com o poder 145 Sobre a noccedilatildeo de teologia poliacutetica ver a nota 2
105
nem para autores contemporacircneos quanto mais para um escritor que viveu haacute mais de dezoito
seacuteculos Todavia existem pistas que nos permitem encontrar elementos para discutir sua
postura poliacutetica frente ao seu contexto
Haacute nesse escritor um sistemaacutetico questionamento dos elementos constituidores do
que chamamos de teologia poliacutetica romana principalmente daquela influenciada pelo
estoicismo Essa doutrina filosoacutefica defendia uma ldquovida contemplativa acima das ocupaccedilotildees
das preocupaccedilotildees e das emoccedilotildees da vida comum Seu ideal portanto eacute de ataraxia ou apatiardquo
(ABBAGNANO 2003 375 grifos do autor) No decorrer deste capiacutetulo expressamos o debate
luciacircnico sobre a ideia de providecircncia ou de uma razatildeo subjacente a todas as coisas jaacute que os
personagens miacuteticos satildeo confrontados diante dessa loacutegica
Para criticar a cultura e com isso as praacuteticas poliacuteticas de sua eacutepoca Luciano utilizou
elementos das narrativas miacuteticas helecircnicas que satildeo mobilizados no intuito de inquirir elementos
miacuteticos que sustentam a ordem simboacutelica do poder poliacutetico imperial Como ressaltamos os
elementos miacuteticos satildeo a expressatildeo de uma memoacuteria cultural Haacute um regime de memoacuteria
entendido como ordenamento metanarrativo que organiza os usos das memoacuterias e assim dos
mitos Esse trabalho natildeo eacute aleatoacuterio e como toda narrativa memorialiacutestica eacute extremamente
seletivo Aleacutem disso seus usos satildeo feitos em uma loacutegica proacutepria Os diaacutelogos questionam
justamente os usos da memoacuteria miacutetica Por meio do riso haacute a possibilidade da indagaccedilatildeo Em
termos formais existem dois tipos de diaacutelogos nos escritos de Luciano de Samoacutesata 1) os
diaacutelogos maiores que apresentam a mesma estrutura formal mas que satildeo muito mais longos
2) as coletacircneas de diaacutelogos menores distribuiacutedas por seus espaccedilos o mundo dos mortos o
Olimpo os mares e os prostiacutebulos
Este capiacutetulo estaacute distribuiacutedo por temas que se relacionam a distintas facetas do
poder No primeiro toacutepico analisamos o espaccedilo da trageacutedia e as especificidades da fala nesse
ambiente tendo em vista as reuniotildees dos deuses representadas por Luciano usamos Momo
como personagem catalisador da anaacutelise uma vez que esse reivindicava a parreacutesia como
maneira de dizer Em seguida nos detemos ao mundo dos mortos e diversas formas de pensar
a vida poliacutetica Aqui se inicia a preocupaccedilatildeo com alguns mortos ilustres por serem governantes
e especialmente a criacutetica agrave apoteose ou agrave pretensatildeo de se considerarem deuses No terceiro
passo discorremos sobre a presenccedila do titatilde Prometeu e os dilemas do poder poliacutetico em que
mencionamos a existecircncia de uma seacuterie de abusos do poder sendo cometidos e de estrateacutegias
de sobrevivecircncia no mundo da poliacutetica No quarto momento investigamos a imagem do tirano
nos textos luciacircnicos Essa anaacutelise se condensa no argumento do uacuteltimo toacutepico que eacute a imagem
de um Zeus tiracircnico construiacuteda nos escritos de Luciano
106
Dessa forma questionamos como essa memoacuteria cultural serve de contraponto agrave
interpretaccedilatildeo luciacircnica do mundo no qual ele escreve Trata-se aqui da exegese elaborada por
um inteacuterprete do Impeacuterio Greco-Romano que por muitos motivos inclusive pela sua
sobrevivecircncia e a de seus textos escolhe o riso como principal estrateacutegia para transmitir suas
mensagens O passado eacute retomado natildeo para refletir o preteacuterito mas sim o presente e apresentar
dessa forma um futuro almejado
31 As assembleias luciacircnicas poder e riso
A imagem de Luciano como um escritor alheio ao seu tempo expressa com mais forccedila
na obra de Bompaire comeccedilou a ser questionada com a ampliaccedilatildeo das informaccedilotildees
arqueoloacutegicas e epigraacuteficas Natildeo se pode questionar o profundo conhecimento que esse escritor
deteve da tradiccedilatildeo helecircnica que se expressa em seus textos pois ele conhecia os principais
textos de diferentes gecircneros
A informaccedilatildeo dada pela paleografia e pela arqueologia amplia o horizonte de
interpretaccedilatildeo dos discursos entretanto cabe ao leitor a atenccedilatildeo aos aspectos retoacutericos eou
estiliacutesticos que orientam a construccedilatildeo de determinado texto Outro fator relevante eacute a
observacircncia das lacunas que impedem objetivar empiricamente as conjecturas
Tanto a anaacutelise do texto natildeo pode ficar subordinada agraves descobertas da cultura material
bem como essa natildeo pode simplesmente servir para confirmar ou refutar uma informaccedilatildeo Um
exemplo interessante para ilustrar essas armadilhas foi exposto por Elisabeth Smadja que no
texto intitulado Image et culte de lrsquoEmpereur en Afrique (1995) conta-nos que vaacuterios
arqueoacutelogos encontram placas com inscriccedilotildees comemorativas da visita de determinado
Imperador nas cidades No caso ela trata dos Severos na Aacutefrica entretanto a anaacutelise da
documentaccedilatildeo textual natildeo corrobora essa informaccedilatildeo A autora explica que as visitas dos
governantes eram planejadas com antecedecircncia sendo que as cidades e proviacutencias eram
informadas para se prepararem para recepcionar o Princeps Logo as cidades preparavam
diversas accedilotildees para recepcionaacute-lo entre elas grandes placas comemorativas da visita Todavia
se por algum imprevisto ele natildeo fosse as placas continuariam nas cidades sendo inclusive
exibidas como forma de mostrar sua lealdade ao Impeacuterio e a seu governo (SMADJA 1995
283-285)
A proacutepria interpretaccedilatildeo dos textos luciacircnicos foi muito enriquecida com esses achados
principalmente em textos que falam sobre religiosidade como o caso de Alexandre e o falso
107
profeta Em 1980 Louis Robert publicou o livro A Travers lrsquoAsie Mineure poeacutetes et
prosateurs monnaies grecques voyageurs et geacuteographie com um capiacutetulo sobre Luciano de
Samoacutesata e seu tempo no qual o autor trabalha com a anaacutelise do Alexandre e as descobertas
arqueoloacutegicas em torno do templo de Gliacutecon no qual Alexandre estabeleceu o oraacuteculo dessa
serpente Robert apresenta moedas cunhadas em Abonotico durante os governos de Antonino
Pio Luacutecio Vero Geta (com nome de Gliacutecon) e Severo Alexandre com a representaccedilatildeo da cobra
de Glicon o novo Ascleacutepio em seu anverso O autor ainda apresenta moedas de outras cidades
naquela regiatildeo o que para o autor documentaria um culto bastante difundido (ROBERT 1980
395)
Esse processo de cotejamento do texto luciacircnico com as descobertas arqueoloacutegicas
tambeacutem alcanccedila escritos mais ficcionais tais como o diaacutelogo maior A assembleia dos deuses
J H OLIVER (1980) no artigo intitulado The actuality of Lucianrsquos ldquoAssembly of the Godsrdquo
apresenta um novo olhar sobre esse pequeno texto luciacircnico tendo em vista a carta do
Imperador Marco Aureacutelio recuperada em dois fragmentos epigraacuteficos sobre a importacircncia de
se verificar as trecircs geraccedilotildees (trigonia) para os componentes do Areoacutepago ateniense (FOLLET
apud OLIVER 1980 307-308)
Partindo da dataccedilatildeo proposta por Simone Follet Oliver acredita que a carta teria sido
enviada aos atenienses no ano de 174175 Natildeo existem duacutevidas do viacutenculo do texto com esse
registro epigraacutefico com o texto luciacircnico (FOLLET apud OLIVER 1980 310)
Noacutes partimos do pressuposto de que o opuacutesculo luciacircnico escrito nos paracircmetros do
gecircnero que ele mesmo teria inventado o diaacutelogo satiacuterico apresenta limites vinculados ao tipo
de riso que o escritor deseja produzir Ele quer gerar uma inquietaccedilatildeo um questionamento
logo haacute uma proximidade plausiacutevel entre os dois contextos a carta do Imperador e a
Assembleia dos deuses
Entretanto acreditamos que a anaacutelise desse opuacutesculo e diaacutelogo Zeus Traacutegico pode
ampliar nossa visatildeo clareando viacutenculos com a realidade histoacuterica do escritor todavia natildeo
objetivamos provar nenhum viacutenculo necessaacuterio Tal posicionamento observa a construccedilatildeo do
enredo dos diaacutelogos e as possiacuteveis metaacuteforas existentes Zeus inicia o diaacutelogo com o seguinte
problema
Zeus mdash Deixai de murmurar oacute deuses e de vos juntardes pelos cantos falando
ao ouvido uns dos outros escandalizados com o fato de muitos tomarem lugar
no nosso banquete sem o merecerem E jaacute que foi convocada uma assembleia
(ἐκκλησία) para tratar desse assunto que cada um emita abertamente a sua
108
opiniatildeo e proceda agrave acusaccedilatildeo E tu Hermes faz a proclamaccedilatildeo segundo a lei
(Luciano Deor Conc 1)146
O problema colocado eacute a presenccedila de deuses novos nos banquetes celestiais Para
resolver essa dificuldade ele convoca uma assembleia com os deuses sendo que essa eacute
convocada com foacutermulas similares agravequelas usadas nas assembleias claacutessicas Por exemplo
Hermes convoca os deuses a falar utilizando a foacutermula ldquodeuses de pleno direitordquo147 (Luciano
Deor Conc 1) para debaterem sobre os ldquometecos e os estrangeirosrdquo148 (Luciano Deor Conc
1)
Momo149 solicita a palavra e inicia cuidadosamente seu discurso observando dois
pontos 1) a ascensatildeo de mortais agrave condiccedilatildeo de divindade 2) a ascensatildeo de acompanhantes
desses novos deuses Como afirma Momo as novas divindades teriam direito a
participarem conosco das nossas assembleias (ξυνέδριον) e de se
banquetearem em peacute de igualdade conosco () trouxeram caacute para o ceacuteu
os seus criados () os registraram fraudulentamente e agora recebem
as distribuiccedilotildees em peacute de igualdade conosco participam tambeacutem nos
sacrifiacutecios sem nos terem pago a taxa de residecircncia150 (Luciano Deor
Conc 3)
Observemos que os problemas apontados por Momo pertencem agrave materialidade da existecircncia
alimentaccedilatildeo honrarias e pagamento de impostos
Momo acusa principalmente Dioniso que nascido da coxa de Zeus natildeo teria origem grega jaacute
que teria sido neto de Cadmo um comerciante siacuterio-feniacutecio Utilizando-se de recursos retoacutericos ele
evidencia a disparidade do comportamento dessa divindade que eacute descrita assim ldquoenfim natildeo falo
propriamente da sua pessoa nem da mitra nem da embriaguez nem da maneira de andar pois todos
julgo eu veem como ele eacute de sua natureza amaricado e efeminado meio louco tresandando a vinho
logo desde a manhatilderdquo151 (Luciano Deor Conc 4) Momo usa uma estrateacutegia retoacuterica ao dizer
146 ldquoΖΕΥΣ
Μηκέτι τονθορύζετε ὦ θεοί μηδὲ κατὰ γωνίας συστρεφόμενοι πρὸς οὖς ἀλλήλοις κοινολογεῖσθε ἀγανακτοῦντες
εἰ πολλοὶ ἀνάξιοι μετέχουσιν ἡμῖν τοῦ συμποσίου ἀλλ ἐπείπερ ἀποδέδοται περὶ τούτων ἐκκλησία λεγέτω ἕκαστος
ἐς τὸ φανερὸν τὰ δοκοῦντά οἱ καὶ κατηγορείτω σὺ δὲ κήρυττε ὦ Ἑρμῆ τὸ κήρυγμα τὸ ἐκ τοῦ νόμουrdquo 147 ldquoτίς ἀγορεύειν βούλεται τῶν τελείων θεῶν οἷς ἔξεστινrdquo 148 ldquoἡ δὲ σκέψις περὶ τῶν μετοίκων καὶ ξένωνrdquo 149 Momo eacute o filho da noite que aparece pela primeira vez na tradiccedilatildeo escrita ocidental na Teogonia de Hesiacuteodo
no verso 214A palavra microῶmicroος ου (ὁ) significa 1) censura reprovaccedilatildeo criacutetica 2) zombaria defeito maacutecula
mancha Nosso personagem ὁ Μῶmicroος aparece em mais duas importantes obras luciacircnicas que abrem o debate
acerca da vinculaccedilatildeo do texto deste escritor com a sociedade em que ele viveu a saber diaacutelogos maiores Zeus
Traacutegico e Assembleia dos deuses Dois textos que apresentam a assembleia dos deuses reunida 150 ldquo[] αὐτοὶ μετέχουσι τῶν αὐτῶν ἡμῖν ξυνεδρίων καὶ εὐωχοῦνται ἐπ ἴσης καὶ ταῦτα θνητοὶ ἐξ ἡμισείας ὄντες
ἔτι καὶ τοὺς ὑπηρέτας καὶ θιασώτας τοὺς αὐτῶν ἀνήγαγον ἐς τὸν οὐρανὸν καὶ παρενέγραψαν καὶ νῦν ἐπ ἴσης
διανομάς τε νέμονται καὶ θυσιῶν μετέχουσιν οὐδὲ καταβαλόντες ἡμῖν τὸ μετοίκιονrdquo 151 ldquo[] οἷος μὲν αὐτός ἐστινοὐ λέγω οὔτε τὴν μίτραν οὔτε τὴν μέθην οὔτε τὸ βάδισμα πάντες γάρ οἶμαι ὁρᾶτε
ὡς θῆλυς καὶ γυναικεῖος τὴν φύσιν ἡμιμανής ἀκράτου ἕωθεν ἀποπνέωνrdquo
109
que ele natildeo fala da conduta dele mas coloca todos os elementos considerados estranhos
Dioniso eacute descrito como outro uma alteridade da legiacutetima divindade helecircnica Observemos que
satildeo colocados em evidecircncia a maneira como essa divindade age e logo em seguida Momo
questiona a presenccedila das divindades que fazem parte dos rituais dionisiacuteacos principalmente os
saacutetiros
O riso luciacircnico coloca em questionamento o proacuteprio Zeus uma vez que esse brinca
com a multiplicidade de narrativas referentes a divindades Momo lembra que os cretenses
apresentam um tuacutemulo dessa divindade e que os habitantes de Eacutegio afirmam que ele foi ldquouma
crianccedila trocada por outrardquo152 (Luciano Deor Conc 6) Luciano tem consciecircncia da
multiplicidade e plasticidade das narrativas mitoloacutegicas Satildeo duas acusaccedilotildees 1) ele natildeo eacute
imortal pois tem um tuacutemulo em Creta 2) ele foi trocado quando era uma crianccedila A nosso
entender esses questionamentos tecircm alcances criacuteticos agrave teologia poliacutetica romana Trata-se de
uma narrativa miacutetica que questiona a consecratio ou apotheosis ou seja a transformaccedilatildeo de
um homem em Deus (BICKERMAN 1972 18) Luciano questiona como uma divindade pode
ter um tuacutemulo assim podemos inferir a duacutevida sobre a divinizaccedilatildeo dos Imperadores Romanos
O segundo elemento ainda coloca duacutevidas quanto agrave origem de um governante o que eacute comum
nos regimes de governo em que a transmissatildeo daacute-se pela consanguinidade
Entretanto Momo prefere acusar Zeus de estar na origem desse problema de sua
ilegalidade uma vez que essa divindade teve diversos filhos com mortais Satildeo filhos de Zeus
alguns humanos que se tornaram deuses por exemplo Heacuteracles e Dioniacutesio Zeus intercede no
diaacutelogo para que Momo natildeo acuse Ganimedes o jovem da Friacutegia capturado por Zeus que vive
entre os imortais Os casos de apoteose entre os helenos satildeo rariacutessimos sendo casos datados
no periacuteodo heroico Natildeo sabemos de nenhum rito de divinizaccedilatildeo entre os gregos em nenhuma
eacutepoca histoacuterica casos como os supracitados distanciam-se das praacuteticas romanas de consecratio
Entretanto tais narrativas eram utilizadas por romanos para justificar as ascensotildees dos
Imperadores O que queremos ressaltar eacute que natildeo era uma praacutetica helecircnica a divinizaccedilatildeo de
humanos em periacuteodos histoacutericos mas que essas narrativas foram utilizadas para justificar
simbolicamente a divinizaccedilatildeo dos imperadores mortos A primeira indagaccedilatildeo luciacircnica refere-
se agrave divinizaccedilatildeo de um mortal
O segundo ponto questionado pelo siacuterio por meio das indagaccedilotildees de Momo eacute a
presenccedila de deuses estrangeiros Observemos que essa divindade jaacute havia descrito
pejorativamente Dioniso por seus modos estrangeiros Momo afirma que
152 ldquoἐγὼ δὲ οὔτε ἐκείνοις πείθομαι οὔτε Ἀχαιῶν Αἰγιεῦσιν ὑποβολιμαῖόν σε εἶναι φάσκουσινrdquo
110
Mas oacute Zeus o Aacutetis153 o Coribante154 e o Sabaacutezio donde eacute que eles nos
chegaram aqui aos trambolhotildees Ou o famoso Mitra da Meacutedia com o seu
kandus155 e a sua tiara que nem sequer fala grego pelo que natildeo compreende
quando algueacutem bebe agrave sua sauacutede Entatildeo os Citas e entre eles os Getas ao
verem isto mandam-nos passear e eles proacuteprios conferem a imortalidade e
aclamam como deuses a quem muito bem entendem e foi desse modo que
Zamoacutelxis156 um escravo foi natildeo sei laacute como inscrito sem noacutes darmos por
isso E no entanto oacute deuses isto ainda natildeo eacute nada Tu aiacute oacute cabeccedila-de-catildeo157
egiacutepcio vestido com faixas de linho quem eacutes tu meu caro Como eacute que
pretendes ser um deus assim a ladrar E aqui este boi de Mecircnfis158 com a pele
agraves listas por que carga de aacutegua eacute adorado emite oraacuteculos e tem os seus
profetas Sinto pejo de nomear iacutebis macacos bodes e outros animais ainda
mais ridiacuteculos vindos do Egipto e natildeo sei laacute como introduzidos no ceacuteu
Como eacute que voacutes oacute deuses suportais vecirc-los em peacute de igualdade ou mesmo
mais venerados E tu oacute Zeus como admites que te faccedilam nascer cornos de
carneiro159 (Luciano Deor Conc 9-10)
Nesse passo podemos observar a presenccedila de divindades estrangeiras na assembleia dos
deuses Noacutes partimos da premissa de que Luciano constroacutei uma metaacutefora das assembleias de
seu tempo principalmente do Senado Romano cujas funccedilotildees haviam se transformado durante
o Principado sendo que no primeiro e segundo seacuteculo haacute uma progressiva aceitaccedilatildeo de
representantes das elites provinciais entre os senadores
Recentemente a professora Issabelle Gassino analisou detalhadamente A assembleia
dos Deuses observando que Luciano tem um cuidado muito grande na utilizaccedilatildeo dos termos
que vinculam o diaacutelogo agrave tradiccedilatildeo democraacutetica ateniense (GASSINO 20122013 93-95)
Gassino observa que o uso do termo assembleia em grego ἐκκλησία refere-se agrave assembleia dos
atenienses mas que o termo tambeacutem foi utilizado para referir-se a assembleias de outras
153 Atis e Sabaacutezio satildeo deuses Friacutegios que apresentam cultos orgiaacutesticos 154 Divindade asiaacutetica vinculada a Cibele geralmente os textos referem-se a essas divindades em grupo 155 Veste persa 156 Zalmoacutelxis tem sua lenda recolhida por Heroacutedoto (Hist IV 95) Trata-se de um escravo libertado que acumula
grande riqueza Como havia sido educado pela filosofia pitagoacuterica desprezava os costumes baacuterbaros Segundo
Heroacutedoto ele teria construiacutedo um abrigo subterracircneo em sua casa onde teria passado trecircs anos escondido Haacute
muito considerado morto pela populaccedilatildeo de Samos ele reaparece o que lhe deu a fama de ser uma divindade 157 Deus egiacutepcio Anuacutebis que tem cabeccedila de chacal natildeo de catildeo como afirma Luciano 158 Boi Apis cultuado no Egito 159 ldquoἈλλ ὁ Ἄττης γε ὦ Ζεῦ καὶ ὁ Κορύβας καὶὁ Σαβάζιος πόθεν ἡμῖν ἐπεισεκυκλήθησαν οὗτοι ἢ ὁ Μίθρης
ἐκεῖνος ὁ Μῆδος ὁ τὸν κάνδυν καὶ τὴν τιάραν οὐδὲ ἑλληνίζων τῇ φωνῇ ὥστε οὐδ ἢν προπίῃ τις ξυνίησι
τοιγαροῦν οἱ Σκύθαι ταῦτα ὁρῶντες οἱ Γέται αὐτῶν μακρὰ ἡμῖν χαίρειν εἰπόντες αὐτοὶ ἀπαθανατίζουσι καὶ θεοὺς
χειροτονοῦσιν οὓς ἂν ἐθελήσωσι τὸν αὐτὸν τρόπον ὅνπερ καὶ Ζάμολξις δοῦλος ὢν παρενεγράφη οὐκ οἶδ ὅπως
διαλαθών
Καίτοι πάντα ταῦτα ὦ θεοί μέτρια σὺ δέ ὦ κυνοπρόσωπε καὶ σινδόσιν ἐσταλμένε Αἰγύπτιε τίς εἶ ὦ βέλτιστε
ἢ πῶς ἀξιοῖς θεὸς εἶναι ὑλακτῶν τί δὲ βουλόμενος καὶ ὁ ποικίλος οὗτος ταῦρος ὁ Μεμφίτης προσκυνεῖται καὶ χρᾷ
καὶ προφήτας ἔχει αἰσχύνομαι γὰρ ἴβιδας καὶ πιθήκους εἰπεῖν καὶ τράγους καὶ ἄλλα πολλῷ γελοιότερα οὐκ οἶδ
ὅπως ἐξ Αἰγύπτου παραβυσθέντα ἐς τὸν οὐρανόν ἃ ὑμεῖς ὦ θεοί πῶς ἀνέχεσθε ὁρῶντες ἐπ ἴσης ἢ καὶ μᾶλλον
ὑμῶν προσκυνούμενα ἢ σύ ὦ Ζεῦ πῶς φέρεις ἐπειδὰν κριοῦ κέρατα φύσωσί σοιrdquo
111
cidades160 ldquoE jaacute que foi convocada uma assembleia (ἐκκλησία) para tratar desse assunto que
cada um emita abertamente a sua opiniatildeo e proceda agrave acusaccedilatildeordquo (Luciano Deor Conc 1) ldquoEm
sessatildeo (Ἐκκλησίας) convocada nos termos legais no seacutetimo dia do mecircs Metagiacutetnion sendo
Zeus ldquopresidenterdquo Posiacutedon ldquovice-presidenterdquo Apolo ldquovogalrdquo e Momo filho de Noite
secretaacuterio Hipno emitiu a seguinte propostardquo (Luciano Deor Conc 14)
Que seja convocada uma Assembleia (ἐκκλησίαν) [a ter lugar] no
Olimpo no [dia do] solstiacutecio de Inverno e que sejam eleitos como
juiacutezes sete deuses de pleno direito sendo trecircs da antiga Assembleia do
tempo de Crono e quatro de entre os doze [deuses] entre os quais Zeus
(Luciano Deor Conc 15)
Outro termo utilizado por Luciano eacute ξυνέδριον161 que designa a assembleia de cidades
gregas e natildeo gregas por exemplo para o Senado Romano (Poliacutebio I 11 1 apud GASSINO
20122013 94) ldquoRealmente mdash afirmo eu mdash muitos natildeo contentes com o facto de
comparticiparem connosco das nossas assembleias (ξυνεδρίων) e de se banquetearem em peacute de
igualdade connosco []rdquo (Luciano Deor Conc 3) ldquoDe facto a origem de tais ilegalidades e
a causa de a nossa assembleia (ξυνέδριον) andar abastardada foste tu oacute Zeus []rdquo (Luciano
Deor Conc 7) ldquoQue Hermes convoque a reunirem-se todos quantos reclamem pertencer agrave
nossa Assembleia (ξυνέδριον) e que esses se apresentem trazendo consigo testemunhas
ajuramentadas e certidotildees de nascimentordquo (Luciano Deor Conc 15)
Aleacutem desses dois termos Luciano usa o termo βουλή ldquoAprouve ao Senado (βουλῇ) e
ao Povordquo (Luciano Deor Conc 15)
Noacutes entendemos que duas anaacutelises satildeo possiacuteveis desse contexto Uma restrita que veja
esse texto em consonacircncia com a carta de Marco Aureacutelio como Oliver coloca uma vez que
nesse documento epigraacutefico haacute elementos para pensar a inclusatildeo de novos membros nas listas
do Areoacutepago ateniense Nesse periacuteodo a cidadania ateniense conserva aspectos nostaacutelgicos do
periacuteodo democraacutetico mas natildeo tem as mesmas funccedilotildees poliacuteticas de quando a cidade era
independente (OLIVER 1980 303-313) Luciano ainda fala de outro fato contemporacircneo que
eacute o pagamento de taxas dos metecos (Luciano Deor Conc 3) Observemos que Luciano natildeo
fala dessa instituiccedilatildeo especiacutefica mas em termos mais geneacutericos Como observa Gassino se
Luciano quisesse se referir agrave reforma do Areoacutepago proposta por Marco Aureacutelio teria usado um
160 Basicamente a autora cita Aristoacuteteles em sua Poliacutetica Tucidides que usa esse termo para as assembleias
homeacutericas e para a Apella espartana (apud GASSINO 20122013 93) 161 Segundo Gassino ldquoσυνέδριον ξυνέδριον eacute geralmente utilizada para designar uma assembleia poliacutetica em
situaccedilotildees variadasrdquo (GASSINO 20122013 94)
112
vocabulaacuterio mais especiacutefico (GASSINO 20122013 98) Entretanto nos apartamos da anaacutelise
dessa autora quando ela enfatiza que esse documento trata muito mais dos deuses e suas
contradiccedilotildees que da poliacutetica de seu tempo Acreditamos que ela usa um conceito bastante
restrito de poliacutetica que natildeo consegue observar os liames de uma teologia poliacutetica
Esse dado nos leva a crer que sua assembleia deve ser analisada com elementos
contextuais mais amplos jaacute que a mesma pode se referir como propomos ao Senado No
Principado segundo Hammond (1957 74-81) haacute a crescente participaccedilatildeo de membros das
elites provinciais no Senado o que eacute um desconforto semelhante agravequele expresso por Momo
sobre Dioniso repetido no diaacutelogo final
Considerando que muitos estrangeiros () jaacute encheram o ceacuteu a ponto de a
nossa sala de banquetes estar a abarrotar com uma multidatildeo de tipos
barulhentos que falam muitas liacutenguas de uns fulanos juntos aos magotes
(Luciano Deor Conc 14)162
O desconforto com a liacutengua incompreensiacutevel coloca outros mecanismos de poder em
evidecircncia uma vez que esses deuses tecircm dificuldade em se comunicar com os outros Assim a
capacidade de convencimento fica obliterada Essa participaccedilatildeo desloca o eixo do poder
estabelecido uma vez que as importantes decisotildees natildeo dependem mais das elites da peniacutensula
itaacutelica Soma-se a isso o fato de os Antoninos estarem vinculados agraves elites romanas radicadas
na Hispacircnia
Outro elemento de aproximaccedilatildeo que se expressa no final do decreto de Momo ressalta
o poderio econocircmico das divindades ao dizer que
Quanto agravequeles aos quais jaacute foram dedicados templos ou altares sacrificiais
que lhes sejam retiradas as suas imagens e que estas sejam substituiacutedas pelas
de Zeus ou de Hera ou de Apolo ou de um qualquer dos outros mas a cidade
pode erigir-lhes um tuacutemulo e erguer-lhes uma coluna em vez de um altar
(Luciano Deor Conc 18)163
O procedimento comum em uma assembleia eacute que a decisatildeo seja votada Nesse caso o
decreto de Momo destituiria a maioria dos seus componentes logo Zeus natildeo coloca a decisatildeo
para ser votada Observemos a conclusatildeo de sua fala ldquoJustiacutessimo oacute Momo Entatildeo quem eacute a
162 ldquoἘπειδὴ πολλοὶ τῶν ξένων οὐ μόνον Ἕλληνες ἀλλὰ καὶ βάρβαροι οὐδαμῶς ἄξιοι ὄντες κοινωνεῖν ἡμῖν τῆς
πολιτείας παρεγγραφέντες οὐκ οἶδα ὅπως καὶ θεοὶ δόξαντες ἐμπεπλήκασι μὲν τὸν οὐρανὸν ὡς μεστὸν εἶναι τὸ
συμπόσιον ὄχλου ταραχώδους πολυγλώσσων τινῶν καὶ ξυγκλύδων ἀνθρώπων []rdquo 163 ldquoὁπόσοι δὲ ἤδη ναῶν ἢ θυσιῶν ἠξιώθησαν ἐκείνων μὲν καθαιρεθῆναι τὰ ἀγάλματα ἐντεθῆναι δὲ ἢ Διὸς ἢ
Ἥρας ἢ Ἀπόλλωνος ἢ τῶν ἄλλων τινός ἐκείνοις δὲ τάφον χῶσαι τὴν πόλιν καὶ στήλην ἐπιστῆσαι ἀντὶ βωμοῦrdquo
113
favor que levante o braccedilo ou melhor fica assim mesmo pois apercebo-me de que haveraacute
muitos que natildeo iriam aprovarrdquo164 (Luciano Deor Conc 19)
No diaacutelogo Zeus traacutegico que iremos analisar a seguir Zeus estaacute perturbado pelo debate
filosoacutefico acerca da natureza das divindades e expotildee o problema a Hera da seguinte maneira
Eacute que oacute Hera ainda ontem o estoico Timocles e o epicurista Damis natildeo sei a
que propoacutesito iniciaram um diaacutelogo em que discutiam a respeito da
Providecircncia na presenccedila de grande nuacutemero de pessoas distintas fato este que
ainda mais me afligiu Afirmava Damis que os deuses natildeo existem e que
muito menos vigiam e governam as coisas humanas enquanto o bom do
Timocles tentava falar em nossa defesa Depois juntou-se uma grande
multidatildeo mas a discussatildeo natildeo ficou por aqui De facto separaram-se tendo
no entanto combinado analisar a questatildeo num outro dia e agora estaacute toda a
gente na expectativa de saber qual dos dois vencera e parecera mais verdadeiro
na sua argumentaccedilatildeo Estais a ver o perigo como os nossos interesses estatildeo
numa situaccedilatildeo criacutetica dependentes de um soacute homem E das duas
necessariamente uma ou somos rejeitados caso as pessoas entendam que noacutes
natildeo passamos de meros nomes ou continuamos a ser homenageados como
dantes se Timocles vencer o pleito (Luciano J trag 4) 165
Zeus se preocupa com esse fato e solicita o conselho de algumas divindades que estatildeo
proacuteximas Hermes sugere a Zeus que esse convoque uma assembleia dos deuses para debater o
caso o que eacute apoiado por Hera e tem a reprovaccedilatildeo de Atena que acha que o tema natildeo deve ser
divulgado
Entretanto Hermes lembra a Zeus que qualquer atitude que ele tomar sozinho diante
desse problema ldquovatildeo considerar que tu agiste como um tirano pelo fato de natildeo convocares as
pessoas para um assunto de maior gravidade e interesse de todosrdquo (Luciano I Trag 5)166
Apoacutes a proclamaccedilatildeo que convoca a assembleia comeccedila o problema que de fato nos
interessa a disposiccedilatildeo dos deuses na assembleia conforme Zeus
Zeus ndash Fizeste uma beliacutessima proclamaccedilatildeo oacute Hermes e eis que jaacute estatildeo vindo
em chusma Portanto vai os recebendo e colocando segundo o valor de cada
um ou seja conforme o material e a arte de cada um nos lugares da frente
164 ldquoΖΕΥΣ
Δικαιότατον ὦ Μῶμε καὶ ὅτῳ δοκεῖ ἀνατεινάτω τὴν χεῖρα μᾶλλον δέ οὕτω ιγνέσθω
πλείους γὰρ οἶδ ὅτι ἔσονται οἱ μὴ χειροτονήσοντεςrdquo 165 ldquoΖΕΥΣ
Τιμοκλῆς ὦ Ἥρα ὁ Στωϊκὸς καὶ Δᾶμις ὁ Ἐπικούρειος χθές οὐκ οἶδα ὅθεν σφίσιν ἀρξαμένου τοῦ λόγου προνοίας
πέρι διελεγέσθην παρόντων μάλα συχνῶν καὶ δοκίμων ἀνθρώπων ὅπερ μάλιστα ἠνίασέ με καὶ ὁ μὲν Δᾶμις οὐδ
εἶναι θεοὺς ἔφασκεν οὐχ ὅπως τὰ γινόμενα ἐπισκοπεῖν ἢ διατάττειν ὁ Τιμοκλῆς δὲ ὁ βέλτιστος ἐπειρᾶτο
συναγωνίζεσθαι ἡμῖν εἶτα ὄχλου πολλοῦ ἐπιρρυέντος οὐδὲν πέρας ἐγένετο τῆς συνουσίας διελύθησαν γὰρ
εἰσαῦθις ἐπισκέψεσθαι τὰ λοιπὰ συνθέμενοι καὶ νῦν μετέωροι πάντες εἰσίν ὁπότερος κρατήσει καὶ ἀληθέστερα
δόξει λέγειν ὁρᾶτε τὸν κίνδυνον ὡς ἐν στενῷ παντάπασι τὰ ἡμέτερα ἐν ἑνὶ ἀνδρὶ κινδυνευόμενα καὶ δυοῖν
θάτερον ἢ παρεῶσθαι ἀνάγκη ὀνόματα μόνον εἶναι δόξαντας ἢ τιμᾶσθαι ὥσπερ πρὸ τοῦ ἢν ὁ Τιμοκλῆς ὑπέρσχῃ
λέγωνrdquo 166 ldquo[] καὶ δόξεις τυραννικὸς εἶναι μὴ κοινούμενος περὶ τῶν οὕτω μεγάλων καὶ κοινῶν ἅπασινrdquo
114
os de ouro a seguir estes os de prata depois os de marfim depois os de
bronze ou de maacutermore e entre estes os que satildeo de Fiacutedias de Alcacircmenes de
Miron de Eufranor ou de outros artistas prestigiados Quanto aqui a esses os
da raleacute e feitos sem arte amontoa-os para aiacute a parte e em silecircncio soacute para
fazerem nuacutemero na assembleia (Luciano I Trag 7) 167
Essa disposiccedilatildeo das divindades eacute interessante pois coloca pontos importantes como o
conceito de imagem antigo que entende a imagem como a presenccedila do ser representado ou
seja a estaacutetua da deusa Nike no Senado romano significava a presenccedila da proacutepria deusa entre
os senadores No caso Luciano brinca com isso e questiona por meio de Hermes como
selecionar as divindades enfatizando o artista que realizou aquele trabalho ou o material que ele
continha
Uma visatildeo superficial do funcionamento das assembleias entende que cada membro
tenha isonomia entretanto como nos ensinou Richard Talbert (1984) sobre o Senado Romano
cada Senador tem uma presenccedila diferenciada por sua autoridade prestiacutegio e posiccedilatildeo econocircmica
No Principado o Senado paulatinamente deixa de ser uma instituiccedilatildeo composta por uma elite
tradicional para acolher diferentes membros sejam eles estrangeiros ou por ter a quantia de um
milhatildeo de sesteacutercios Muitas vezes o Imperador dava essa quantia agravequeles que ele desejava no
Senado satildeo as adlectio Na anaacutelise que fazemos a metaacutefora luciacircnica opotildee antiguidade da
famiacutelia e sua autoridade moral ao dinheiro que muitos tecircm Ou seja ter uma estaacutetua de ouro
puro significa mais do que ser uma deusa helecircnica antiga
Como o Zeus luciacircnico eacute tratado com ares de tirano ele privilegia o valor intriacutenseco da
estaacutetua e natildeo a arte que essa possa ter Em uma frase raacutepida ele responde que ldquoo ouro eacute mais
estimaacutevelrdquo (Luciano I Trag 7)168 A ironia luciacircnica aproxima-se mais uma vez da realidade
histoacuterica em que ele vive
Hermes- Compreendo mandas-me sentaacute-los segundo o seu valor
pecuniaacuterio e natildeo segundo sua excelecircncia artiacutestica e os seus meacuteritos
Nesse caso voacutes os de ouro vinde ocupar os lugares da frente Estaacutes a
me parecer oacute Zeus que somente os deuses baacuterbaros iratildeo ocupar os
lugares da frente pois quanto aos deuses gregos () feitos segundo as
regras da arte (Luciano I Trag 7-8)169
167 ldquoΖΕΥΣ
Εὖ γε ὦ Ἑρμῆ ἄριστα κεκήρυκταί σοι καὶ συνίασι γὰρ ἤδη ὥστε παραλαμβάνων κάθιζεαὐτοὺς κατὰ τὴν ἀξίαν
ἕκαστον ὡς ἂν ὕλης ἢ τέχνης ἔχῃ ἐν προεδρίᾳ μὲν τοὺς χρυσοῦς εἶτα ἐπὶ τούτοις τοὺς ἀργυροῦς εἶτα ἑξῆς ὁπόσοι
ἐλεφάντινοι εἶτα τοὺς χαλκοῦς ἢ λιθίνους καὶ ἐν αὐτοῖς τούτοις οἱ Φειδίου μὲν ἢ Ἀλκαμένους ἢ Μύρωνος ἢ
Εὐφράνορος ἢ τῶν ὁμοίων τεχνιτῶν προτετιμήσθων οἱ συρφετώδεις δὲ οὗτοι καὶ ἄτεχνοι πόρρω που
συνωσθέντες σιωπῇ ἀναπληρούντων μόνον τὴν ἐκκλησίανrdquo 168 ldquoἀλλ ὁ χρυσὸς ὅμως προτιμητέοςrdquo 169 ldquoΕΡΜΗΣ
115
A oposiccedilatildeo entre gregos e baacuterbaros refere-se mais a uma colocaccedilatildeo referente ao poder
que tais homens tecircm que agraves suas escolhas identitaacuterias Deve-se ver aqui uma criacutetica agrave postura
de valorizaccedilatildeo das riquezas em detrimento da formaccedilatildeo soacutelida dos indiviacuteduos formados de
acordo com a Paideia helecircnica ou a tradicionalidade de algumas famiacutelias A seleccedilatildeo coloca
Poseidon o deus tradicional helecircnico atraacutes de Anuacutebis que tem uma estaacutetua de ouro maciccedilo o
que ao nosso entendimento eacute uma metaacutefora das assembleias de seu tempo principalmente do
Senado
Assim como na Assembleia dos deuses Luciano nos lembra da multiplicidade de
idiomas e dos constrangimentos que essa traz Uma vez que as dificuldades em comeccedilar a
reuniatildeo satildeo diversas nem todos entendem o idioma grego Podemos imaginar a presenccedila dos
primeiros gauleses no Senado Romano inseridos por Juacutelio Ceacutesar a sensaccedilatildeo eacute similar
Membros importantes da assembleia que natildeo falam o idioma utilizado na reuniatildeo (Luciano I
Trag 13)
Entendemos que os dois textos apresentam um debate sobre a religiatildeo luciacircnica mas
que sua interpretaccedilatildeo precisa observar a articulaccedilatildeo poliacutetica no interior das assembleias
representadas nos dois textos uma vez que ela se configura no interior da cultura poliacutetica
romana
Noacutes entendemos que a presenccedila de Momo nesse texto expressa a postura luciacircnica da
necessidade de se expressar francamente por meio da Parreacutesia atributo necessaacuterio para as
assembleias mas que tem seu lugar diminuiacutedo no Impeacuterio Romano Jaacute que exercer a parreacutesia
coloca o orador em riscos o riso que Momo causa deve ser entendido como possibilidade
perigosa do falar mesmo que seja necessaacuterio Quando o debate busca um culpado entre os
homens ele volta-se contra as contradiccedilotildees existenciais humanas as muacuteltiplas narrativas
mitoloacutegicas em suas contradiccedilotildees os oraacuteculos confusos as estoacuterias fantaacutesticas Zeus responde
assim aos seus inuacutemeros argumentos
Zeus mdash Deixemos oh deuses este fulano asnear pois ele eacute sempre truculento
e amigo de criticar Na verdade como disse o admiraacutevel Demoacutestenes acusar
censurar e criticar e muito faacutecil e estaacute ao alcance de todos ao passo que dar
sugestotildees no sentido de melhorar a presente situaccedilatildeo e coisa proacutepria de um
conselheiro verdadeiramente sensato e eacute isso mesmo tenho a certeza que vos
outros ireis fazer agora que este tipo jaacute estaacute calado (Luciano I Trag 23)170
Μανθάνω πλουτίνδην κελεύεις ἀλλὰ μὴ ἀριστίνδην καθίζειν καὶ ἀπὸ τιμημάτων ἥκετ οὖν εἰς τὴν προεδρίαν
ὑμεῖς οἱ χρυσοῖ ἐοίκασι δ οὖν ὦ Ζεῦ οἱ βαρβαρικοὶ προεδρεύσειν μόνοι ὡς τούς γε Ἕλληνας ὁρᾷς ὁποῖοί εἰσι
χαρίεντες μὲν καὶ εὐπρόσωποι καὶ κατὰ τέχνην ἐσχηματισμένοι []rdquo 170 ldquoΖΕΥΣ
116
Zeus abusando do poder que lhe eacute conferido ao presidir a assembleia desqualifica a postura da
divindade e evita debater os pontos constrangedores que esse evidencia Tal atitude apresenta uma
imagem com traccedilos autoritaacuterios de Zeus como vemos mais vezes nesta Tese A anaacutelise dos textos mostra
o diaacutelogo luciacircnico com a cultura poliacutetica de seu tempo principalmente nesse caso com o
funcionamento de uma assembleia que nos dois casos pode ser a metaacutefora do Senado e das assembleias
locais diante das mudanccedilas experimentadas no Principado
32 Diaacutelogo dos mortos quando o mito se encontra com a Histoacuteria
Os Diaacutelogos dos Mortos171 de Luciano de Samoacutesata foram bastante divulgados no
Brasil Por exemplo existem pelo menos quatro traduccedilotildees cuidadosas no mercado editorial
brasileiro172 Essa ampla divulgaccedilatildeo refere-se agrave atualidade desse texto que consegue apresentar
debates profundos em breves diaacutelogos Partimos do pressuposto de que esses diaacutelogos
apresentam questotildees atuais e inquietantes para os leitores contemporacircneos e principalmente
questionam o proacuteprio tempo em que seu autor escreveu Os textos luciacircnicos satildeo a expressatildeo
de uma profunda criacutetica social principalmente a partir da oposiccedilatildeo entre pobres e ricos como
afirma Rostovtzeff (apud BRANDAtildeO 19941995 84) Nosso ponto de vista vai aleacutem pois
afirmamos que existe nos escritos luciacircnicos uma seacuterie de colocaccedilotildees que transcendem a mera
criacutetica social e reverberam em uma apreciaccedilatildeo da cultura poliacutetica do Impeacuterio Greco-romano
Franccedilois Jouan no texto Mythe histoire et philosophie dans les ldquoDialogues des Mortsrdquo
compara Luciano a um jornalista iconoclasta dada a intenccedilatildeo em questionar os dogmas sociais
(JOUAN 1994 27) Haacute no texto luciacircnico um formato aacutegil que permite maior alcance de sua
mensagem Como ressaltamos anteriormente provavelmente esses textos eram lidos em voz
alta para uma audiecircncia antes de peccedilas maiores
Natildeo podemos esquecer que o Impeacuterio Romano destarte a ampla divulgaccedilatildeo da escrita
ainda era uma sociedade basicamente oral Nesse sentido os textos eram lidos antes de sua
publicaccedilatildeo O uso de personagens presentes na memoacuteria cultural facilitava a construccedilatildeo dos
argumentos em um procedimento simples e eficaz
Τοῦτον μέν ὦ θεοί ληρεῖν ἐάσωμεν ἀεὶ τραχὺν ὄντα καὶ ἐπιτιμητικόν ὡς γὰρ ὁ θαυμαστὸς Δημοσθένης ἔφη τὸ
μὲν ἐγκαλέσαι καὶ μέμψασθαι καὶ ἐπιτιμῆσαι ῥᾴδιον καὶ παντός τὸ δὲ ὅπως τὰ παρόντα βελτίω γενήσεται
συμβουλεῦσαι τοῦτ ἔμφρονος ὡς ἀληθῶς συμβούλου ὅπερ οἱ ἄλλοι εὖ οἶδ ὅτι ποιήσετε καὶ τούτου σιωπῶντοςrdquo 171 Nas citaccedilotildees dos Diaacutelogos dos mortos usamos a disposiccedilatildeo proposta no VII volume da Loeb Classical Library
editada por M D Macleod (2002) 172 Custoacutedio Maqueijo (2012) Henrique G Murachco (2007) Ameacuterico da Costa Ramalho (1998) Maria Celeste
Consolin Dezotti (1996)
117
Como o mito eacute uma narrativa conhecida por todos seus personagens povoam o
imaginaacuterio social e permitem ser o veiacuteculo para propagar determinadas concepccedilotildees de mundo
Luciano usa desse expediente nos seus diaacutelogos expressando suas ideias por meio da memoacuteria
cultural disponiacutevel em um profundo e criativo trabalho literaacuterio no qual interagem memoacuteria
miacutetica e personagens histoacutericos mesmo que estejam envoltos em uma motricidade miacutetica
latente Como afirma Mikhail Bakhtin ldquoos heroacuteis miacuteticos e as personalidades histoacutericas do
passado satildeo deliberada e acentuadamente atualizados falam e atuam na zona de um contato
familiar com a atualidade inacabadardquo (BAKHTIN 2010 123)
Os Diaacutelogos dos mortos satildeo compostos por trinta diaacutelogos curtos muito distantes
daqueles produzidos por Platatildeo Entretanto como colocou Bakhtin o diaacutelogo socraacutetico eacute
tambeacutem um gecircnero muito ligado agrave oralidade (BAKHTIN 2010 124) Luciano combina a
estrutura deste com o riso da comeacutedia Esse novo gecircnero apresenta uma forma hiacutebrida diaacutelogo
filosoacutefico e comeacutedia O escritor tinha clara a mescla de gecircneros como coloca no opuacutesculo
Dupla Acusaccedilatildeo173 ou Agravequele que diz que eacutes um Prometeu em seus discursos174
A tradiccedilatildeo filosoacutefica de origem socraacutetica estaacute na gecircnese drsquoOs diaacutelogos dos mortos tanto
pelo platonismo presente por meio da forma dialogal quanto pelo cinismo evidenciado na
presenccedila de alguns de seus principais expoentes e na criacutetica social impiedosa
O platonismo conservou um corpus documental gigantesco substanciado pelos diaacutelogos
platocircnicos e por diversos autores que lhe sucederam na Academia o que o diferencia bastante
do cinismo cuja tradiccedilatildeo escrita eacute bastante lacunar Como ressalta Olimar Flores Junior (1999
32) o conhecimento moderno do cinismo antigo deve muito ao anedotaacuterio que se construiu
sobre esses personagens
A anedota ciacutenica foi o principal veiacuteculo para conservar as premissas dessa escola
filosoacutefica o que dificulta seu estudo uma vez que as breves narrativas estatildeo presentes em
autores que criticam ou exaltam a praacutetica filosofia ciacutenica ou em escritores semelhantes a
Luciano que se utilizam desses personagens com o intuito de expressar suas proacuteprias criacuteticas
ou mesmo tendo sua atuaccedilatildeo subserviente aos desiacutegnios da narrativa literaacuteria Poucos textos satildeo
provenientes das penas dos ciacutenicos pois na maioria dos casos suas ideias satildeo encontradas em
escritores que natildeo fazem parte do movimento sendo simpatizantes ou criacuteticos
Nos Diaacutelogos dos Mortos aparecem personagens que satildeo de trecircs ordens histoacutericos
miacuteticos e literaacuterios Nossa hipoacutetese eacute que esses diaacutelogos satildeo textos profundamente
173 Escrito em que Luciano eacute acusado por abandonar a Retoacuterica e por deformar o Diaacutelogo Filosoacutefico 174 Texto luciacircnico em que ele comenta a alcunha de Prometeu dada por um amigo e sugere que essa ocorreu por
que ele harmonizou o diaacutelogo e a comeacutedia
118
questionadores da cultura poliacutetica romana principalmente naquilo que se convencionou chamar
de teologia poliacutetica Nesse sentido o Hades luciacircnico possibilita o cenaacuterio ideal para o
questionamento da vida e das reaccedilotildees diante da morte Pensar a vida dos homens permite a
reflexatildeo sobre a vida em comunidade suas leis a ordem estabelecida e assim a cultura poliacutetica
Toda a construccedilatildeo textual eacute elaborada nesse espaccedilo miacutetico que coaduna as diversas memoacuterias
permitindo o encontro de diversas temporalidades Os mais diferentes encontros satildeo possiacuteveis
o que fornece o mote para diversas conversas e questionamentos
Bakhtin (2010 132) jaacute havia observado que uma das caracteriacutesticas da saacutetira menipeia
era o deslocamento espacial Ao produzir a narrativa em um espaccedilo em que os personagens
representam mortos o escritor constroacutei o diaacutelogo em um ambiente de franqueza e liberdade
diante dos constrangimentos da vida social O tema central desses diaacutelogos gira em torno dos
viacutecios humanos e da cultura poliacutetica Nossa perspectiva sobre os Diaacutelogos dos Mortos dilata a
percepccedilatildeo da maioria dos criacuteticos que observam as criacuteticas sociais impliacutecitas no texto Noacutes
acreditamos que a criacutetica luciacircnica tem contornos poliacuteticos claros
Os personagens natildeo representam indiviacuteduos determinados mas satildeo elaboraccedilotildees
caricaturais dos mais diferentes viacutecios e posturas poliacuteticas Logo a intenccedilatildeo de encontrar os
agentes atacados por Luciano coloca uma falsa questatildeo jaacute que ele natildeo escreve sobre um
indiviacuteduo especiacutefico mas sobre tipos sociais caricaturados que estatildeo presentes em seu contexto
sociopoliacutetico Ele manipula esses tipos a fim de construir sua narrativa e criar empatia com o
leitor eou ouvinte
Seus personagens satildeo representaccedilotildees de tipos existentes em sua eacutepoca visto que o
viacutenculo da prosa luciacircnica com a vida eacute muito forte Por ser de qualidade esteacutetica e textual
inegaacutevel o uso desses recursos natildeo eacute obvio pois Luciano natildeo construiu um texto panfletaacuterio
mas escritos com inestimaacutevel valor literaacuterio que expressam sentidos sobre o mundo que o cerca
O gecircnero textual fornece os elementos baacutesicos para a compreensatildeo de como o escritor dispotildee
de diversos personagens que analisamos a fim de decompor os acordes histoacutericos dedilhados
para a construccedilatildeo deste registro discursivo
Em primeiro lugar temos os personagens claacutessicos que compotildeem a corte de Hades Satildeo
os moradores do mundo inferior Caronte o velho barqueiro que desde sempre faz a travessia
do rio Aqueronte Ceacuterbero catildeo miacutetico de trecircs cabeccedilas que vigia a entrada do Hades para
impedir que algum vivo adentre aquele mundo Pluto epiacuteteto de Hades que evidencia a riqueza
que este encerra debaixo da terra Minos proverbial rei de Creta cujas narrativas miacuteticas
alccedilaram-no agrave condiccedilatildeo de juiz no mundo dos mortos jaacute que sua sabedoria e justiccedila seriam
incontestaacuteveis Eacuteaco outro juiz do Hades Perseacutefone esposa de Plutatildeo
119
Aos deuses e gecircnios do mundo inferior devemos somar dois personagens Hermes e
Poacutelux O primeiro eacute o senhor dos caminhos mensageiro dos deuses cujas atribuiccedilotildees podemos
resumir em um trecho dos Diaacutelogos dos Deuses no qual o mesmo reclama de suas funccedilotildees
E porque natildeo hei-de dizer se tenho tantas ocupaccedilotildees a trabalhar sozinho e
disperso por tantos serviccedilos Realmente logo de madrugada tenho de me
levantar para varrer a sala de jantar estender a toalha de mesa deixar tudo
arrumado apresentar-me diante de Zeus levar as sua mensagens fazendo de
correio para cima e para baixo e mal regresso todo coberto de poacute tenho de
lhe servir a ambroacutesia e antes de ele ter arranjado este novo escanccedilatildeo era eu
proacuteprio que lhe servia o neacutectar Mas o mais terriacutevel de tudo eacute que sou o uacutenico
de entre todos os deuses que natildeo durmo de noite pois mesmo entatildeo tenho
de levar as almas a Plutatildeo de servir de condutor de mortos e de estar presente
no tribunal E como natildeo me bastassem as funccedilotildees diurnas mdash assistir agraves
competiccedilotildees de luta ser arauto nas assembleias e orientar os oradores mdash
ainda por cima sou muito solicitado para participar em cerimoacutenias fuacutenebres
No entanto os filhos de Leda passam dia sim dia natildeo um no ceacuteu e o outro
no Hades ao passo que eu sou obrigado a fazer todos os dias o mesmo que
eles E os filhos de Alcmena e de Seacutemele nascidos de miacuteseras mulheres
passam a vida tranquilamente em banquetes enquanto eu filho da filha de
Atlas Maia sou criado deles Ainda agora acabo de chegar de Siacutedon de casa
da filha de Cadmo aonde Zeus me enviou a fim de observar como estava a
jovem e ainda eu natildeo tinha retomado focirclego acaba de me mandar ir a Argos
visitar Daacutenae laquoe depois mdash disse ele mdash vai daiacute para a Beoacutecia e de caminho
daacute uma olhadela a Antiacuteoperaquo Numa palavra estou esgotado Se pudesse
pedia com todo o gosto que me vendessem como os pobres escravos laacute da
terra (Luciano D Deor 4 276)175
O mensageiro dos deuses Hermes faz a importante funccedilatildeo de ser o psicopompo
ou seja aquele que encaminha a alma dos mortos ao mundo inferior Ele leva os mortos e os
entrega ao barqueiro Assim os primeiros diaacutelogos tratam justamente de suas relaccedilotildees com o
barqueiro e com os outros mortos
Hermes eacute o deus oliacutempico vinculado ao logos o que remete aos epiacutetetos
disponiacuteveis por exemplo no Hino Homeacuterico a Hermes Ao analisar esta deidade Vernant
afirma que ldquoNatildeo haacute nele nada fixo estaacutevel permanente circunscrito nem fechado Ele
175 ldquoΕΡΜΗΣ
Τί μὴ λέγω ὃς τοσαῦτα πράγματα ἔχω μόνος κάμνων καὶ πρὸς τοσαύτας ὑπηρεσίας διασπώμενος ἕωθεν μὲν γὰρ
ἐξαναστάντα σαίρειν τὸ συμπόσιον δεῖ καὶ διαστρώσαντα τὴν κλισίαν εὐθετίσαντά τε ἕκαστα παρεστάναι τῷ Διὶ
καὶ διαφέρειν τὰς ἀγγελίας τὰς παρ αὐτοῦ ἄνω καὶ κάτω ἡμεροδρομοῦντα καὶ ἐπανελθόντα ἔτι κεκονιμένον
παρατιθέναι τὴν ἀμβροσίαν πρὶν δὲ τὸν νεώνητον τοῦτον οἰνοχόον ἥκειν καὶ τὸ νέκταρ ἐγὼ ἐνέχεον τὸ δὲ πάντων
δεινότατον ὅτι μηδὲ νυκτὸς καθεύδω μόνος τῶν ἄλλων ἀλλὰ δεῖ με καὶ τότε τῷ Πλούτωνι ψυχαγωγεῖν καὶ
νεκροπομπὸν εἶναι καὶ παρεστάναι τῷ δικαστηρίῳ οὐ γὰρ ἱκανά μοι τὰ τῆς ἡμέρας ἔργα ἐν παλαίστραις εἶναι καὶ
ταῖς ἐκκλησίαις κηρύττειν καὶ ῥήτορας ἐκδιδάσκειν ἀλλ ἔτι καὶ νεκρικὰ συνδιαπράττειν μεμερισμένον
καίτοι τὰ μὲν τῆς Λήδας τέκνα παρ ἡμέραν ἑκάτερος ἐν οὐρανῷ ἢ ἐν ᾅδου εἰσίν ἐμοὶ δὲ καθ ἑκάστην
ἡμέραν κἀκεῖνα καὶ ταῦτα ποιεῖν ἀναγκαῖον καὶ οἱ μὲν Ἀλκμήνης καὶ Σεμέλης ἐκ γυναικῶν δυστήνων γενόμενοι
εὐωχοῦνται ἀφρόντιδες ὁ δὲ Μαίας τῆς Ἀτλαντίδος διακονοῦμαι αὐτοῖς καὶ νῦν ἄρτι ἥκοντά με ἀπὸ Σιδῶνος
παρὰ τῆς Κάδμου θυγατρός ἐφ ἣν πέπομφέ με ὀψόμενον ὅ τι πράττει ἡ παῖς μηδὲ ἀναπνεύσαντα πέπομφεν αὖθις
εἰς τὸ Ἄργος ἐπισκεψόμενον τὴν Δανάην εἶτ ἐκεῖθεν εἰς Βοιωτίαν φησίν ἐλθὼν ἐν παρόδῳ τὴν Ἀντιόπην ἰδέ
καὶ ὅλως ἀπηγόρευκα ἤδη εἰ γοῦν δυνατὸν ἦν ἡδέως ἂν ἠξίωσα πεπρᾶσθαι ὥσπερ οἱ ἐν γῇ κακῶς δουλεύοντεςrdquo
120
representa no espaccedilo e no mundo humano o movimento a passagem a mudanccedila de estado as
transiccedilotildees o contato com elementos estranhosrdquo (VERNANT 1990 192) Seus epiacutetetos ligam-
no aos assaltos por atravessar muros e portas fechadas Ele reside nas encruzilhadas nos
caminhos sobre os tuacutemulos Aleacutem disso ele eacute mensageiro dos deuses e estaacute presente nas trocas
comerciais nos debates da aacutegora e nas competiccedilotildees Eacute testemunha dos acordos treacuteguas e
juramentos bem como mediador entre os homens e os deuses Quando um diaacutelogo caiacutea no
silecircncio era costume dos gregos dizerem Hermes passa (VERNANT 1990 192-193) Nos
diaacutelogos luciacircnicos Hermes representa a encruzilhada das possibilidades existenciais uma vez
que estaacute presente entre os vivos os mortos e os imortais
Poacutelux um dos Dioacutescoros tem a permissatildeo de permanecer um dia entre os mortos e
um com os vivos Tambeacutem apresenta caraacuteter hiacutebrido o que permite que o filoacutesofo ciacutenico
Dioacutegenes lhe peccedila favores entre os vivos e especialmente que convide Menipo para zombar
da forma como os mortos agem diante da finitude A vinda de Menipo permite a tessitura de
uma fraacutegil narrativa com a conexatildeo de alguns diaacutelogos
Os outros personagens miacuteticos satildeo heroacuteis presentes na tradiccedilatildeo homeacuterica Aacutejax
Agamenon Aquiles Antiacuteloco Protesilau Menelau Paris Nireu e Tersites A presenccedila desses
heroacuteis evidencia o diaacutelogo luciacircnico com a tradiccedilatildeo homeacuterica e principalmente o desejo de
questionar os padrotildees culturais presentes nela com o desdobramento de intrigas anteriores ou
posteriores agraves epopeias homeacutericas Nesse sentido o texto luciacircnico encontra-se em uma
encruzilhada entre a inovaccedilatildeo e a permanecircncia dos recursos tradicionais Ele inova ao salientar
as contradiccedilotildees miacuteticas de cada heroacutei apresentando-o como exemplo de que o fausto terreno
serve para muito pouco ou ainda questionando o desejo de perenidade na memoacuteria humana
Nos Diaacutelogos dos Mortos natildeo adianta ter ouro riquezas ou a vaidade humana uma vez que a
morte significa o igualamento total de todas as caracteriacutesticas materiais dos seres humanos Os
mortos satildeo despidos de tudo satildeo apenas ldquocracircnios nus e sem belezardquo176 (Luciano D mort I 334)
Outros personagens miacuteticos aparecem nos diaacutelogos Existem aqueles que desafiam as
fronteiras da mortalidade e (con)fundem as narrativas miacuteticas Ressaltamos principalmente
Poacutelux que jaacute foi citado anteriormente bem como Quiacuteron Heacuteracles Trofocircnio Anfiacuteloco assim
como o ceacutelebre adivinho tebano Tireacutesias
O centauro Quiacuteron eacute indagado por seu desprezo agrave imortalidade
Menipo ndash Oacute Quiacuteron ouvi dizer que tu apesar de seres deus quiseste morrer
Quiacuteron ndash Eacute verdade o que ouviste Menipo e como vecircs estou morto
podendo ser imortal
176 ldquoΘελήσεις δὲ οὕτως κρανίον γυμνὸν ὢν καὶ ἄμορφον τῇ καλῇ σου ἐκείνῃ νύμφῃ φανῆναιrdquo
121
Menipo ndash Mas entatildeo que paixatildeo pela morte se apoderou de ti uma coisa que
a generalidade das pessoas abomina
Quiacuteron ndash Vou dizer-te mas soacute a ti que natildeo eacutes tolo eacute que deixou de me ser
agradaacutevel gozar da imortalidade
Menipo ndash Natildeo te era agradaacutevel viver e ver a luz do dia
Quiacuteron ndash Natildeo Menipo De fato eu pelo menos considero que o que eacute
agradaacutevel eacute algo de variado e natildeo simples pelo que ao viver perpetuamente
e a gozar sempre das mesmas coisas como o sol a luz a comida (e ateacute as
estaccedilotildees eram sempre as mesmas e os acontecimentos surgiam todos de
enfiada como seguindo-se uns aos outros) fartei-me de tudo isso Na
verdade o prazer consiste natildeo na constante repeticcedilatildeo do mesmo mas na
mudanccedila
Menipo ndash Diz bem Quiacuteron Mas agora como suportar as coisas aqui do
Hades jaacute que foi por opccedilatildeo tua que vieste para caacute
Quiacuteron ndash Natildeo desagradavelmente Menipo De fato a igualdade de direitos eacute
muito democraacutetica e natildeo haacute diferenccedila nesta coisa de estar agrave luz do dia ou na
escuridatildeo De resto natildeo haacute que ter sede ou fome como laacute em cima mas
estamos livres de tudo isso
Menipo - Vecirc laacute bem Quiacuteron natildeo te contradigas e que teu argumento caiacutea nos
termos anteriores
Quiacuteron ndash Por que dizes isso
Menipo - Porque se a monotomia das coisas da vida constante e sempre a
mesma acabou por te saturar entatildeo tambeacutem as coisas daqui monoacutetonas como
satildeo te hatildeo-de igualmente saturar e precisaraacutes de procurar uma qualquer
mudanccedila daqui para outra vida ndash coisa que considero impossiacutevel
Quiacuteron ndash Entatildeo que havemos de fazer Menipo
Menipo ndash Aquilo ndash creio eu ndash que soacutei dizer-se que eacute um ato de bom senso
contentarmo-nos com aquelas coisas que temos estimaacute-las e natildeo considero
nenhuma delas insuportaacutevel (Luciano D mort VIII 434-444)177
177 ldquoΜΕΝΙΠΠΟΣ
Ἤκουσα ὦ Χείρων ὡς θεὸς ὢν ἐπεθύμησας ἀποθανεῖν
ΧΕΙΡΩΝ
Ἀληθῆ ταῦτα ἤκουσας ὦ Μένιππε καὶ τέθνηκα ὡς ὁρᾷς ἀθάνατος εἶναι δυνάμενος
ΜΕΝΙΠΠΟΣ
Τίς δαί σε ἔρως τοῦ θανάτου ἔσχεν ἀνεράστου τοῖς πολλοῖς χρήματος
ΧΕΙΡΩΝ
Ἐρῶ πρὸς σὲ οὐκ ἀσύνετον ὄντα οὐκ ἦν ἔτι ἡδὺ ἀπολαύειν τῆς ἀθανασίας
ΜΕΝΙΠΠΟΣ
Οὐχ ἡδὺ ἦν ζῶντα ὁρᾶν τὸ φῶς
ΧΕΙΡΩΝ
Οὔκ ὦ Μένιππε τὸ γὰρ ἡδὺ ἔγωγε ποικίλον τι καὶ οὐχ ἁπλοῦν ἡγοῦμαι εἶναι ἐγὼ δὲ ἔζων ἀεὶ καὶ ἀπέλαυον τῶν
ὁμοίων ἡλίου φωτός τροφῆς αἱ ὧραι δὲ αἱ αὐταὶ καὶ τὰ γινόμενα ἅπαντα ἑξῆς ἕκαστον ὥσπερ ἀκολουθοῦντα
θάτερον θατέρῳ ἐνεπλήσθην οὖν αὐτῶν οὐ γὰρ ἐν τῷ αὐτῷ ἀεὶ ἀλλὰ καὶ ἐν τῷ ltμὴgt μετασχεῖν ὅλως τὸ τερπνὸν
ἦν
ΜΕΝΙΠΠΟΣ
Εὖ λέγεις ὦ Χείρων τὰ ἐν ᾅδου δὲ πῶς φέρεις ἀφ οὗ προελόμενος αὐτὰ ἥκεις
ΧΕΙΡΩΝ
Οὐκ ἀηδῶς ὦ Μένιππε ἡ γὰρ ἰσοτιμία πάνυ δημοτικὴ καὶ τὸ πρᾶγμα οὐδὲν ἔχει τὸ διάφορον ἐν φωτὶ εἶναι ἢ ἐν
σκότῳ ἄλλως τε οὔτε διψῆν ὥσπερ ἄνω οὔτε πεινῆν δεῖ ἀλλ ἀνεπιδεεῖς τούτων ἁπάντων ἐσμέν
ΜΕΝΙΠΠΟΣ
Ὅρα ὦ Χείρων μὴ περιπίπτῃς σεαυτῷ καὶ ἐς τὸ αὐτό σοι ὁ λόγος περιστῇ
ΧΕΙΡΩΝ
Πῶς τοῦτο φῄς
ΜΕΝΙΠΠΟΣ
Ὅτι εἰ τῶν ἐν τῷ βίῳ τὸ ὅμοιον ἀεὶ καὶ ταὐτὸν ἐγένετό σοι προσκορές καὶ τἀνταῦθα ὅμοια ὄντα προσκορῆ ὁμοίως
ἂν γένοιτο καὶ δεήσει μεταβολήν σε ζητεῖν τινα καὶ ἐντεῦθεν εἰς ἄλλον βίον ὅπερ οἶμαι ἀδύνατον
122
Nesse diaacutelogo haacute um desvio motivacional uma vez que nas narrativas miacuteticas
claacutessicas o centauro havia abandonado a imortalidade para se livrar dos sofrimentos causados
pela flecha envenenada de Heacuteracles O Quiacuteron luciacircnico despreza a mesmice contiacutenua da eterna
existecircncia numa contradiccedilatildeo plena jaacute que a morte natildeo lhe apresentaria nada aleacutem de um repetir
contiacutenuo Quiacuteron representa um hiacutebrido bastante complexo pois eacute um centauro e teve a
possibilidade de escolher entre a mortalidade e a imortalidade representando assim um mito
fronteira tatildeo uacutetil agraves inovaccedilotildees literaacuterias de Luciano
A imagem de Heacuteracles se manifesta no Hades o que evidencia uma contradiccedilatildeo entre
a sua divinizaccedilatildeo ndash que deveria estar no Olimpo juntamente com os outros deuses ndash e a imagem
do heroacutei que se encontra no Hades A ascensatildeo do filho de Alcmena como deus eacute uma
importante narrativa miacutetica uma vez que a mesma foi usada como justificativa para a
divinizaccedilatildeo dos Imperadores romanos O Heacuteracles luciacircnico questiona a ascensatildeo de um
homem agrave condiccedilatildeo de deus independentemente de suas qualidades origens ou posiccedilatildeo topos
que eacute retomado durante a construccedilatildeo da imagem do Alexandre luciacircnico Como vimos na
anaacutelise da Assembleia dos Deuses este eacute um tema recorrente no debate luciacircnico as
incoerecircncias trazidas pela apoteose de um mortal
Tireacutesias natildeo poderia faltar nesse conjunto de mortos hiacutebridos pois tambeacutem eacute um
personagem da fronteira uma vez que viveu como homem e como mulher O siacuterio brinca com
essa dupla condiccedilatildeo de gecircnero inclusive indagando a assertiva miacutetica que afirmava que Tireacutesias
havia afirmado que ser mulher era melhor O Menipo luciacircnico questiona esse mito a partir de
outro cacircnone da poesia antiga Ele cita a Medeia euripediana que reclamava da condiccedilatildeo
feminina (Euriacutepedes Medeia II 230-231 II 250-251) Em seus diaacutelogos o samosatense
recorre agrave memoacuteria helecircnica calcada sobre as narrativas miacuteticas tradicionais para atribuir-lhe
novo devir A disputa pela hegemonia das memoacuterias coloca em evidecircncias as disputas e
contradiccedilotildees que ela expressa Nesse caso especiacutefico Luciano recorre agrave memoacuteria miacutetica acerca
da condiccedilatildeo feminina a fim de colocar argumentos diversos questionar as fontes e
principalmente seus usos no presente
Trofocircnio e Anfiacuteloco178 satildeo heroacuteis vinculados a templos na Beoacutecia Assim como no
caso de Heacuteracles Luciano questiona como eles estatildeo mortos no Hades e fazem prodiacutegios em
ΧΕΙΡΩΝ
Τί οὖν ἂν πάθοι τις ὦ Μένιππε
ΜΕΝΙΠΠΟΣ
Ὅπερ οἶμαι φασί συνετὸν ὄντα ἀρέσκεσθαι καὶ ἀγαπᾶν τοῖς παροῦσι καὶ μηδὲν αὐτῶν ἀφόρητον οἴεσθαιrdquo 178 No diaacutelogo Menipo ou necromancia faz-se outra referecircncia ao Templo desse heroacutei que era considerado uma
das entradas do Hades (Luciano Nec 22)
123
seus templos Aleacutem do questionamento do mito o escritor coloca uma narrativa miacutetica bem
secundaacuteria como forma de encontrar empatia em regiotildees distintas em que esses diaacutelogos
fossem apresentados Mais uma vez os escritos levantam questotildees referentes agrave possibilidade
de homens comuns alccedilarem a condiccedilatildeo de divindades jaacute que o culto imperial vinculava-se ao
pertencimento do Imperador a uma famiacutelia divina o que fornece legitimidade aos herdeiros
Os personagens miacuteticos que compotildeem a memoacuteria cultural greco-romana se completam
com dois reis miacuteticos que satildeo personagens desses diaacutelogos e merecem atenccedilatildeo especial Midas
e Tacircntalo Midas ganhou de presente dos deuses o poder de transformar em ouro tudo que
tocasse Tacircntalo foi condenado por Zeus a sentir sede e fome eternamente mesmo estando no
Hades Ele tenta beber aacutegua ou pegar os frutos de uma aacutervore os quais fogem dele (Luciano
D mort VII) O diaacutelogo eacute exposto assim
Menipo ndash Por que estaacutes chorando Tacircntalo Ou melhor por que estaacutes te
lamentando sobre ti mesmo de peacute no meio do lago
Tacircntalo ndash Porque Menipo estou morrendo de sede
Menipo ndash Eacutes preguiccediloso que natildeo te abaixas nem para beber ou mesmo por
Zeus para pegar a aacutegua na concha das matildeos
Tacircntalo ndash De nada adiantaria se eu me abaixasse porque a aacutegua me foge
quando sente que eu me aproximo E se por acaso eu a pego e a levo ateacute agrave
boca nem chego a molhar os laacutebios ela escorre pelos dedos e natildeo sei como
imediatamente deixa secas minhas matildeos (Luciano D mort VII 406-407)179
Menipo no passo seguinte questiona como um morto pode sentir sede jaacute que seu corpo
estaacute na Liacutedia e afirma que ele natildeo tem o que temer uma vez que natildeo pode morrer uma segunda
vez Luciano questiona as incoerecircncias das narrativas miacuteticas mostrando como diversas
nuanccedilas natildeo compotildeem a narrativa tradicional
O proacuteximo grupo de personagens que temos satildeo os personagens pertencentes agrave memoacuteria
histoacuterica Podemos dividi-los em dois grupos os filoacutesofos e os reis Dentre os filoacutesofos
destacam-se os ciacutenicos e eventualmente algum representante das outras escolas Como ocorre
em outros textos luciacircnicos os ciacutenicos satildeo aqueles que exprimem as criacuteticas mais contundentes
sendo muitas vezes identificados com a voz de Luciano nos textos
179 ldquoΜΕΝΙΠΠΟΣ
Τί κλάεις ὦ Τάνταλε ἢ τί σεαυτὸν ὀδύρῃ ἐπὶ τῇ λίμνῃ ἑστώς
ΤΑΝΤΑΛΟΣ
Ὅτι ὦ Μένιππε ἀπόλωλα ὑπὸ τοῦ δίψους
ΜΕΝΙΠΠΟΣ
Οὕτως ἀργὸς εἶ ὡς μὴ ἐπικύψας πιεῖν ἢ καὶ νὴ Δί ἀρυσάμενος κοίλῃ τῇ χειρί
ΤΑΝΤΑΛΟΣ
Οὐδὲν ὄφελος εἰ ἐπικύψαιμι φεύγει γὰρ τὸ ὕδωρ ἐπειδὰν προσιόντα αἴσθηταί με ἢν δέ ποτε καὶ ἀρύσωμαι καὶ
προσενέγκω τῷ στόματι οὐ φθάνω βρέξας ἄκρον τὸ χεῖλος καὶ διὰ τῶν δακτύλων διαρρυὲν οὐκ οἶδ ὅπως αὖθις
ἀπολείπει ξηρὰν τὴν χεῖρά μοιrdquo
124
Dioacutegenes180 Menipo181 Crates182 e Antiacutestenes183 aparecem em dezesseis diaacutelogos da
coletacircnea Diaacutelogos dos Mortos e suas imagens expressam o desprezo pelas veleidades
humanas e uma postura extremamente controlada diante da morte
Dioacutegenes de Sinope viveu aproximadamente entre os anos de 412 e 323 foi disciacutepulo
de Antiacutestenes Aparece em seis diaacutelogos com uma postura questionadora agrave divindade de
Heacuteracles e de Alexandre como analisamos a seguir Sua presenccedila fornece uma sutil ligaccedilatildeo
entre os diaacutelogos principalmente naqueles em que encontramos a presenccedila de outros ciacutenicos
No primeiro diaacutelogo184 ele pede a Poacutelux que procure Menipo e caso ele tenha zombado
suficientemente das coisas da Terra que o convide agrave morte para que possa zombar dos mortos
No diaacutelogo XXI haacute o encontro de Dioacutegenes com seu disciacutepulo Crates e no diaacutelogo seguinte
uma reuniatildeo destes com Antiacutestenes num coloacutequio sobre a Paideia ciacutenica
O outro ciacutenico que aparece nos diaacutelogos luciacircnicos eacute Menipo de Gadara que teria sido
disciacutepulo de Dioacutegenes Sabemos muito pouco sobre sua vida pois temos uma breve notiacutecia no
Vidas e doutrinas dos filoacutesofos ilustres de Dioacutegenes Laercio que reverbera a monumental obra
de Hemipo de Esmirna Entretanto os escritos de Luciano satildeo fundamentais para a inserccedilatildeo
dessa personagem na memoacuteria ocidental Como afirmou Bompaire (2000 182-183) os
diaacutelogos luciacircnicos satildeo responsaacuteveis por sua fama sendo conhecido principalmente pelas
saacutetiras menipeias Eacute a principal personagem ciacutenica nos diaacutelogos visto que os quatro
personagens ciacutenicos satildeo uma constante nos diaacutelogos expressando sua visatildeo de mundo e
questionando os valores estabelecidos
Luciano apresenta ainda outros filoacutesofos185 questionando sempre que possiacutevel suas
colocaccedilotildees Entretanto esses satildeo personagens secundaacuterias do diaacutelogo VI no qual aparecem a)
Pitaacutegoras criticado por proibir o consumo de favas e pela lenda de ter uma coxa de ouro b)
Empeacutedocles ridicularizado pelo suiciacutedio no vulcatildeo Etna c) Soacutecrates e seu contato com os
jovens atenienses Aleacutem desses haacute Soacutestrato personagem citado por Luciano no texto Vida de
Demonax (4) e no Alexandre ou o falso profeta (6) Esse filoacutesofo do seacuteculo II eacute representado
como ciacutenico tendo sua imagem aproximada agrave de Heacuteracles o heroacutei ciacutenico por excelecircncia186
Neste diaacutelogo Soacutestrato conversa com Minos
180 Dioacutegenes aparece nos diaacutelogos I XI XIII XXI XXII e XXIX 181 Menipo aparece nos diaacutelogos II III IV VVI VII VIII IX X XX e XXX 182 Crates eacute um dos personagens dos diaacutelogos XXI e XXII 183 Antiacutetenes estaacute no diaacutelogo XXII 184 Seguiremos a ordem proposta no VII Volume da LOEB Claacutessical Library 185 Luciano apresenta uma criacutetica mais elaborada aos filoacutesofos (sua conduta e suas ideias) principalmente no
diaacutelogo O leilatildeo dos filoacutesofos Hermoacutetimos e as seitas O Eunuco e O pescador ou os ressuscitados 186 Em nossa Dissertaccedilatildeo de Mestrado analisamos o uso da imagem de Heacuteracles pelos Ciacutenicos (ARANTES
JUNIOR 2008 135-139)
125
Soacutestrato mdash Oacute Minos escuta-me a ver se te parece que eu tenho razatildeo
Minos mdash Escutar-te outra vez agora Mas oacute Soacutestrato natildeo ficou provado
que tu foste um faciacutenora que assassinou tanta gente
Soacutestrato mdash Sim ficou provado mas vecirc laacute se eu fui justamente castigado
Minos mdash Muito justamente se eacute justo pagar pelo que se fez
Soacutestrato mdash Mesmo assim oacute Minos responde-me pois soacute vou fazer-te uma
breve pergunta
Minos mdash Fala na condiccedilatildeo de natildeo te alongares para que ainda possa julgar
outros
Soacutestrato mdash Os atos eu cometi em vida seraacute que os cometi livremente ou
foram-me fiados pela Moira
Minos mdash Foram fiados pela Moira eacute claro
Soacutestrato mdash Nesse caso todos noacutes quer os bons quer os criminosos agimos
ao que parece por ordem dessa divindade natildeo eacute
Minos mdash Sim por ordem de Cloto a qual destinou a cada um ao nascer o
que ele havia de fazer
Soacutestrato mdash Portanto se algueacutem obrigado por outro matasse uma pessoa
sem ter possibilidade de resistir agravequele que o forccedilara como por exemplo um
carrasco ou um mercenaacuterio (um obedecendo ao juiz e o outro ao tirano) a
quem eacute que tu acusarias da morte
Minos mdash Claro que ao juiz ou ao tirano tal como natildeo culparia uma espada
pois esta como instrumento que eacute serve apenas a vontade do primeiro que
age como causa inicial
Soacutestrato mdash Muito bem Minos tanto mais que vens reforccedilar o meu exemplo
Se algueacutem enviado pelo seu senhor vier trazer prata ou ouro a outra pessoa
a quem eacute que se deve agradecer A quem eacute que se deve inscrever no rol dos
benfeitores
Minos mdash Ao que enviou a coisa oacute Soacutestrato pois o portador foi apenas um
criado
Soacutestrato mdash Portanto estaacutes a ver como procedes injustamente ao castigar-nos
a noacutes que fomos apenas servos executantes das ordens de Cloto e ainda por
cima enalteces estes aqui que agiram como simples executantes das boas
acccedilotildees de outros Na verdade ningueacutem poderia dizer que era possiacutevel resistir
a ordens dadas com forccedila obrigatoacuteria
Minos mdash Oacute Soacutestrato se examinasses minuciosamente poderias ver muitas
mais coisas que natildeo estatildeo de acordo com a razatildeo Em todo o caso com a tua
pergunta ganharaacutes o seguinte (pois natildeo pareces ser apenas um salteador mas
tambeacutem um sofista) Oacute Hermes liberta-o e que deixe de ser castigado E tu
Soacutestrato vecirc laacute natildeo ensines os outros mortos a fazerem perguntas semelhantes
(Luciano D Mort XXIV 450-454)187
187 ldquoΣΩΣΤΡΑΤΟΣ
Ἄκουσον ὦ Μίνως εἴ σοι δίκαια δόξω λέγειν
ΜΙΝΩΣ
Νῦν ἀκούσω αὖθις οὐ γὰρ ἐξελήλεγξαι ὦ Σώστρατε πονηρὸς ὢν καὶ τοσούτους ἀπεκτονώς
ΣΩΣΤΡΑΤΟΣ
Ἐλήλεγμαι μέν ἀλλ ὅρα εἰ δικαίως κολασθήσομαι
ΜΙΝΩΣ
Καὶ πάνυ εἴ γε ἀποτίνειν τὴν ἀξίαν δίκαιον
ΣΩΣΤΡΑΤΟΣ
Ὅμως ἀπόκριναί μοι ὦ Μίνως βραχὺ γάρ τι ἐρήσομαί σε
ΜΙΝΩΣ
Λέγε μὴ μακρὰ μόνον ὡς καὶ τοὺς ἄλλους διακρίνωμεν ἤδη
ΣΩΣΤΡΑΤΟΣ
Ὁπόσα ἔπραττον ἐν τῷ βίῳ πότερα ἑκὼν ἔπραττον ἢ ἐπεκέκλωστό μοι ὑπὸ τῆς Μοίρας
126
Esse diaacutelogo evidencia dois pontos fundamentais para compreender a inserccedilatildeo
luciacircnica no mundo greco-romano Por um lado a criacutetica agrave ideia de destino fiado pela Moira o
que impediria a responsabilidade dos homens pelos atos maleacutevolos que viessem a praticar bem
como minimizaria a bondade praticada Trata-se de um tema recorrente em seus escritos por
exemplo no diaacutelogo Zeus Refutado Por outro lado Soacutestrato em sua condiccedilatildeo de questionador
evidencia que a palavra eacute o principal iacutendice diferenciador no Hades luciacircnico pois ensinar os
outros mortos a formular essas interrogaccedilotildees eacute extremamente perigoso
Outros personagens que compotildeem a memoacuteria histoacuterica greco-romana satildeo
principalmente reis tiranos e generais Existem governantes gregos e baacuterbaros generais
gregos romanos e cartagineses Nesse ponto Luciano natildeo coloca nenhum Imperador Romano
no Hades o que evidencia um diaacutelogo cruzado em que ele fala de outro soberano a fim de
salientar suas qualidades ou seus defeitos Acreditamos que esse silecircncio eacute bastante revelador
principalmente por demonstrar conhecimento da Histoacuteria de Roma colocando em questatildeo
personagens fundamentais para a consolidaccedilatildeo do poderio romano no Mediterracircneo como
Cipiatildeo188 e Aniacutebal189
ΜΙΝΩΣ
Ὑπὸ τῆς Μοίρας δηλαδή
ΣΩΣΤΡΑΤΟΣ
Οὐκοῦν καὶ οἱ χρηστοὶ ἅπαντες καὶ οἱ πονηροὶ δοκοῦντες ἡμεῖς ἐκείνῃ ὑπηρετοῦντες ταῦτα ἐδρῶμεν
ΜΙΝΩΣ
Ναί τῇ Κλωθοῖ ἣ ἑκάστῳ ἐπέταξε γεννηθέντι τὰ πρακτέα
ΣΩΣΤΡΑΤΟΣ
Εἰ τοίνυν ἀναγκασθείς τις ὑπ ἄλλου φονεύσειέν τινα οὐ δυνάμενος ἀντιλέγειν ἐκείνῳ βιαζομένῳ οἷον δήμιος ἢ
δορυφόρος ὁ μὲν δικαστῇ πεισθείς ὁ δὲ τυράννῳ τίνα αἰτιάσῃ τοῦ φόνου
ΜΙΝΩΣ
Δῆλον ὡς τὸν δικαστὴν ἢ τὸν τύραννον ἐπεὶ οὐδὲ τὸ ξίφος αὐτό ὑπηρετεῖ γὰρ ὄργανον ὂν τοῦτο πρὸς τὸν θυμὸν
τῷ πρώτῳ παρασχόντι τὴν αἰτίαν
ΣΩΣΤΡΑΤΟΣ
Εὖ γε ὦ Μίνως ὅτι καὶ ἐπιδαψιλεύῃ τῷ παραδείγματι ἢν δέ τις ἀποστείλαντος τοῦ δεσπότου ἥκῃ αὐτὸς χρυσὸν
ἢ ἄργυρον κομίζων τίνι τὴν χάριν ἰστέον ἢ τίνα εὐεργέτην ἀναγραπτέον
ΜΙΝΩΣ
Τὸν πέμψαντα ὦ Σώστρατε διάκονος γὰρ ὁ κομίσας ἦν
ΣΩΣΤΡΑΤΟΣ
Οὐκοῦν ὁρᾷς πῶς ἄδικα ποιεῖς κολάζων ἡμᾶς ὑπηρέτας γενομένους ὧν ἡ Κλωθὼ προσέταττεν καὶ τούτους
τιμήσας τοὺς διακονησαμένους ἀλλοτρίοις ἀγαθοῖς οὐ γὰρ δὴ ἐκεῖνό γε εἰπεῖν ἔχοι τις ὡς ἀντιλέγειν δυνατὸν ἦν
τοῖς μετὰ πάσης ἀνάγκης προστεταγμένοις
ΜΙΝΩΣ
Ὦ Σώστρατε πολλὰ ἴδοις ἂν καὶ ἄλλα οὐ κατὰ λόγον γιγνόμενα εἰ ἀκριβῶς ἐξετάζοις πλὴν ἀλλὰ σὺ τοῦτο
ἀπολαύσεις τῆς ἐπερωτήσεως διότι οὐ λῃστὴς μόνον ἀλλὰ καὶ σοφιστής τις εἶναι δοκεῖς ἀπόλυσον αὐτόν ὦ
Ἑρμῆ καὶ μηκέτι κολαζέσθω ὅρα δὲ μὴ καὶ τοὺς ἄλλους νεκροὺς τὰ ὅμοια ἐρωτᾶν διδάξῃςrdquo 188 General romano (236-183 a C) que derrotou Aniacutebal na batalha de Zama pondo fim agrave Segunda Guerra Puacutenica 189 Comandante cartaginecircs que viveu entre 247-183 aC tornou-se general aos 25 anos Foi vencedor por trecircs anos
na Hispacircnia invadida por seu pai um dos motivos da Segunda Guerra Puacutenica Marchou para a Peniacutensula Itaacutelica
com um grande nuacutemero de soldados e diversos elefantes Perdeu em 202 aC para Cipiatildeo o Africano
127
Creso rei da Liacutedia citado por Heroacutedoto no livro I das Histoacuterias teria vivido no seacuteculo
VI aC Ficou conhecido por seus tesouros juntamente com Sardanaacutepalo rei da Assiacuteria no
seacuteculo VIII aC Lembrados por seu caraacuteter licencioso e pelo fausto pelo uso de um luxo
excessivo bem como pelo haacutebito de usar roupas vistas pelos gregos como femininas eles fazem
parte do terceiro diaacutelogo juntamente com o miacutetico rei Midas e Menipo As memoacuterias miacuteticas e
as histoacutericas satildeo mobilizadas por meio do regime de memoacuteria romano a fim de criticar alguns
exageros dos soberanos Apoacutes a anaacutelise dos personagens detalhamos a criacutetica luciacircnica aos
abusos do poder e agrave construccedilatildeo de mentiras sobre os governantes a fim de serem uacuteteis agraves
necessidades poliacuteticas
Alexandre190 (356-323 aC) rei da Macedocircnia aparece em trecircs diaacutelogos fundamentais
para nossa discussatildeo uma vez que Luciano permite ao leitor que no Hades um espaccedilo miacutetico
ele dialogue com outros generais com seu pai Filipe bem como com o ciacutenico Dioacutegenes Esses
diaacutelogos em nosso entendimento explicitam a criacutetica luciacircnica aos dispositivos de poder
Outro rei que aparece eacute Mausolo (377-353 aC) rei de Halicarnaso famoso por seu
monumental tuacutemulo Os outros personagens satildeo criaccedilotildees luciacircnicas ficcionais e literaacuterias
Como demonstrou a lucianista argentina Maria del Carmem Cabrero em seu livro Elogio de la
mentira (2006) e o professor Jacyntho Lins Brandatildeo no livro A invenccedilatildeo do romance (2005)
existe em Luciano de Samoacutesata uma consciecircncia expressa de produzir um texto verossiacutemil
mas que todos sabem que natildeo aconteceu Conforme o alerta que o proacuteprio Luciano faz no
proacutelogo das Histoacuterias verdadeiras ldquopois ao menos nisso direi a verdade ao afirmar que mintordquo
(Luciano V H I 4)191
Os personagens histoacutericos satildeo ficcionalizados por Luciano o que nos permite indagar
sobre sua visatildeo sociopoliacutetica do mundo em que ele vive Esses personagens ficcionais
(histoacutericos ou natildeo) satildeo resultado da interaccedilatildeo entre a imaginaccedilatildeo greco-romana e a criatividade
luciacircnica Acreditamos que os personagens que natildeo existiram apresentadas por um nome dado
por Luciano satildeo a representaccedilatildeo de valores e atos que se relacionam com a cultura de seu tempo
A criaccedilatildeo literaacuteria natildeo ocorre do nada pois ela eacute fruto de um diaacutelogo com o mundo que cercava
o escritor
O siacuterio inventa alguns personagens que natildeo fazem parte da tradiccedilatildeo miacutetica nem tecircm
sua existecircncia histoacuterica comprovada Eacute o caso de Teacuterpsion Zenofantes Calidecircnides Cnecircmon
Dacircmnipos Siacutemilos Poliacutestratos Lacircmpicos Damaacutesios e Craacuteton que satildeo caricaturas de
personagens cotidianos Ou ainda alguns tipos como o Militar o Filoacutesofo o Orador e o
190 Alexandre eacute personagem dos diaacutelogos XI XII e XIII 191 ldquoκἂν ἓν γὰρ δὴ τοῦτο ἀληθεύσω λέγων ὅτι ψεύδομαιrdquo
128
Charmoso que servem para a criacutetica social e de conduta dos homens mostrando que no aleacutem-
tuacutemulo haacute um completo igualamento
Outra ressalva jaacute elaborada por Jacques Bompaire (2000 184) que gostariacuteamos de
fazer sobre os personagens dos Diaacutelogos dos mortos eacute que natildeo podemos subestimar a criaccedilatildeo
luciacircnica diante das personalidades miacuteticas e histoacutericas que compotildeem a memoacuteria cultural greco-
romana Menipo Alexandre entre outras personalidades retratadas pelo siacuterio mesmo tendo
uma existecircncia historicamente registrada apresenta a marca do escritor O mesmo deve ser dito
do uso que Luciano faz da memoacuteria miacutetica greco-romana que eacute um processo de apropriaccedilatildeo
(CHARTIER 1990) Entretanto todos que trabalham com usos da memoacuteria sabem que ela se
caracteriza sempre por ser bastante seletiva quanto agraves escolhas das mensagens que satildeo
comunicadas assim forma e conteuacutedo satildeo exaustivamente trabalhados para servir agrave
comunicaccedilatildeo de determinadas informaccedilotildees
Essas personalidades satildeo construiacutedas em cenaacuterios com caracteriacutesticas proacuteprias O
Hades luciacircnico eacute o espaccedilo de igualamento material total No diaacutelogo XX Caronte exige que
todos os mortos entrem no barco nus pois segundo ele o barco eacute velho e natildeo aguenta tanto
peso A nudez eacute um sinal de igualamento dos mortos assim quando solicitada pelo barqueiro
natildeo se refere somente agraves roupas mas agraves atitudes que para o escritor pesam na alma
No Diaacutelogo XX travado entre Caronte Hermes Menipo e diversos mortos que satildeo
caricaturas de personagens tiacutepicos de seu tempo o velho barqueiro comeccedila explicando que
ldquopequeno para voacutes como vedes eacute o barquinho e algo roto aleacutem de muito vazarrdquo (Luciano D
mort XX 363)192 Assim a alma deve despir-se para que o barco natildeo afunde ou fique pendendo
para um lado ou girando em ciacuterculos
Menipo eacute o primeiro a entrar Natildeo traz nada visto que jaacute abandonou a sacola e o bastatildeo
bem como a tuacutenica Hermes o psicopompo eacute aquele que se responsabiliza pela nudez das
almas ajudado pelo filoacutesofo ciacutenico Um morto caracterizado por ser charmoso tem de deixar a
enorme peruca e a maquiagem da bochecha ficando apenas uma cintura fina ironicamente
observada por Hermes (Luciano D mort XX 365)
192 ldquoτὸ σκαφίδιον καὶ ὑπόσαθρόν ἐστιν καὶ διαρρεῖ τὰ πολλάrdquo
129
Lacircmpico tirano193 de Gela194 deve despir-se dos atributos materiais de seu cargo do
manto e da diadema das riquezas bem como dos pesos da alma tais como a arrogacircncia o
desdeacutem a crueldade a ignoracircncia insolecircncia e a raiva Hermes corrige-o dizendo ldquoTirano
coisa nenhuma Tu eacutes um mortordquo (Luciano D mort XX 366)195 Luciano constroacutei uma
imagem do Tirano utilizando suas insiacutegnias tradicionais bem como as caracteriacutesticas que
tradicionalmente satildeo vinculadas ao mau governante No Impeacuterio natildeo haacute mais a instituiccedilatildeo do
Tirano enquanto possibilidade de governante Entretanto a tradiccedilatildeo escrita se apropriou muito
cedo dessa noccedilatildeo que deixa de ser uma instituiccedilatildeo especiacutefica da cultura grega para se tornar
um adjetivo atribuiacutedo aos maus governantes inclusive agravequeles imperadores considerados pela
historiograacutefia senatorial como ruins Em outro diaacutelogo supracitado Luciano introduz a entrada
de Soacutestrato com o Juiz do Hades Minos deferindo suas sentenccedilas entre as quais ele condena o
Tirano a ldquoter o fiacutegado devorado por abutresrdquo196 (Luciano D Mort XXIV 450) uma das
condenaccedilotildees mais terriacuteveis aplicadas por exemplo ao Titatilde Prometeu que criou os homens
roubou o fogo dos deuses e enganou o proacuteprio Zeus
O atleta deve se despir das carnes em excesso Craacuteton deve jogar fora as riquezas a
moleza e o luxo
E natildeo deves trazer os enfeites fuacutenebres nem as honrarias dos antepassados
Deixa para traz a estirpe e a gloacuteria e se por acaso a cidade te proclamou heroacutei
joga fora as inscriccedilotildees das estaacutetuas e nem diga que eles te erigiram um grande
tuacutemulo Na verdade essas lembranccedilas satildeo muito pesadas (Luciano D mort
XX 367)197
193 A Tirania eacute uma instituiccedilatildeo grega que segundo Aristoacuteteles em sua Poliacutetica deturpa a monarquia Trata-se de
uma palavra que tem origem na Liacutedia e que significava originariamente apenas chefe priacutencipe Segundo Jean
Beacuteranger essa noccedilatildeo aparece em Arquiacuteloco (frag 19) e Alceu (frag 306) com um sentido pejorativo de adversaacuterios
da monarquia um concorrente que toma o poder de uma famiacutelia tradicional (BEacuteRANGER 1973 51-52) Jaacute em
Simocircnides Piacutendaro Heroacutedoto ainda segundo Beacuteranger tem o significado se Basileus Nos poemas de Soacutelon o
termo eacute carregado com sentidos vinculados agrave violecircncia e agrave injusticcedila Finalmente ele conclui que no seacuteculo IV aC
o sentido desse termo jaacute se vinculasse ao rei com um sentido secundaacuterio de usurpador bom ou mau De acordo
com A Humpers no verbete Tyrannus do Dictionnaire des antiquiteacutes grecques et romaines dirigido por Charlles
Daremberg e Edmund Saglio na trageacutedia esquiliniana Zeus eacute representado como o tirano dos deuses Esquilo viu
a transiccedilatildeo poliacutetica ateniense da Tirania Pisistraacutetica para a Democracia Como Zeus era cultuado por Pisiacutestrato
como deus dos tiranos a inversatildeo esquiliniana eacute possiacutevel (HUMPERS 1900 367) Os versos iniciais do proacutelogo
da trageacutedia Prometeu Agrilhoado jaacute afirmam que o Titatilde deve pagar ldquopara aprender a anuir agrave tirania de Zeus e
abster-se de ser amigo dos humanosrdquo (Esq Pr 10-11) Sian Lewis (2006 13) em seu livro Ancient Tyrrany
afirma que ldquona Antiguidade a tirania natildeo era uma ideia monoliacutetica mas uma ideia criada e adaptada
constantemente pelos historiadores com sentidos e com aplicaccedilotildees muito diversificadasrdquo 194 Cidade situada na costa sul da Siciacutelia 195 ldquoΕΡΜΗΣ
Τύραννον μὲν οὐδαμῶς νεκρὸν δὲ μάλαrdquo 196 ldquo[] ὑπὸ τῶν γυπῶν καὶ αὐτὸς κειρέσθω τὸ ἧπαρ []rdquo 197 ldquo[] μηδὲ τὰ ἐντάφια κόμιζε μηδὲ τὰ τῶν προγόνων ἀξιώματα κατάλιπε δὲ καὶ γένος καὶ δόξαν καὶ εἴ ποτέ σε
ἡ πόλις ἀνεκήρυξεν καὶ τὰς τῶν ἀνδριάντων ἐπιγραφάς μηδὲ ὅτι μέγαν τάφον ἐπί σοι ἔχωσαν λέγε βαρύνει γὰρ
καὶ ταῦτα μνημονευόμεναrdquo
130
Trata-se de insiacutegnias identitaacuterias que demonstram a antiguidade de uma famiacutelia bem
como as praacuteticas de evergetismo social uma vez que todas as benesses puacuteblicas carregavam
inscriccedilotildees de seus benfeitores Esse eacute um aspecto importante da cultura poliacutetica greco-romana
jaacute que expressa a possibilidade de doaccedilotildees particulares financiarem obras puacuteblicas Nesse
sentido observamos a criacutetica justamente a essa praacutetica lembrando sempre que no Hades essas
marcas natildeo fazem nenhuma distinccedilatildeo
O guerreiro deve deitar fora as armas e os trofeacuteus jaacute que no Hades luciacircnico reina a
paz A distinccedilatildeo militar dos homens das famiacutelias mais tradicionais eacute outro elemento cultural
importante e trata de questionar a forma como os vivos distinguem as pessoas e expressam
valores isto eacute criam as identidades Assim a guerra eacute colocada sob suspeita
Na sequecircncia do diaacutelogo Menipo procura um filoacutesofo para poder zombar dele Como
em Os pescadores ou os ressuscitados o alvo da criacutetica luciacircnica natildeo eacute a filosofia mas os
charlatotildees que se passam por filoacutesofos
Hermes ndash Joga no chatildeo primeiro essa armaccedilatildeo em seguida tambeacutem todas
essas coisas oacute Zeus Quanta fanfarronice ele estaacute trazendo Quanta besteira
e quanta discussatildeo E a gloria vatilde as interrogaccedilotildees sem saiacuteda os discursos
picantes e as meditaccedilotildees complicadas Ele traz tambeacutem trabalhos inuacuteteis e
frivolidades natildeo poucas insignificacircncias e mesquinharias e tambeacutem dinheiro
oacute Zeus E aqui a vida faacutecil falta de pudor preguiccedila luxo e moleza Nada disso
me escapa mesmo que tu as escondas Despe tambeacutem a falsidade o orgulho
e a crenccedila de que tu eacutes melhor do que os outros (Luciano D mort XX 368-
370)198
No passo seguinte Hermes reclama da barba do filoacutesofo que eacute muito pesada Caronte
pede que Menipo corte-a com o machado Juntamente com essa o ciacutenico corta as sobrancelhas
e lhe arranca a bajulaccedilatildeo debaixo dos braccedilos O simbolismo da barba alcanccedila dois pontos
importantes Em primeiro lugar critica a moda helecircnica do uso da barba para inspirar sabedoria
Em segundo conjecturamos o questionamento agrave proacutepria elite da cidade de Roma que a partir
de Marco Aureacutelio deixa para traacutes o tradicional haacutebito de se barbear que tanto marcava a
romanidade
198 ldquoΕΡΜΗΣ
Κατάθου σὺ τὸ σχῆμα πρῶτον εἶτα καὶ ταυτὶ πάντα ὦ Ζεῦ ὅσην μὲν τὴν ἀλαζονείαν κομίζει ὅσην δὲ ἀμαθίαν
καὶ ἔριν καὶ κενοδοξίαν καὶ ἐρωτήσεις ἀπόρους καὶ λόγους ἀκανθώδεις καὶ ἐννοίας πολυπλόκους ἀλλὰ καὶ
ματαιοπονίαν μάλα πολλὴν καὶ λῆρον οὐκ ὀλίγον καὶ ὕθλους καὶ μικρολογίαν νὴ Δία καὶ χρυσίον γε τουτὶ καὶ
ἡδυπάθειαν δὲ καὶ ἀναισχυντίαν καὶ ὀργὴν καὶ τρυφὴν καὶ μαλακίαν οὐ λέληθεν γάρ με εἰ καὶ μάλα περικρύπτεις
αὐτά καὶ τὸ ψεῦδος δὲ ἀπόθου καὶ τὸν τῦφον καὶ τὸ οἴεσθαι ἀμείνων εἶναι τῶν ἄλλωνrdquo
131
Cheio de tantos viacutecios o Hermes luciacircnico tambeacutem pede que o orador dispa-se de
ldquoloquacidade das antiacuteteses das frases simeacutetricas dos soliloacutequios dos barbarismos e de todos
esses pesos dos discursosrdquo (Luciano D mort XX 374)199
Os mortos devem se despir de pesos materiais (riquezas e luxo) imateriais
(sentimentos e posturas) bem como da memoacuteria e do viacutenculo que a lembranccedila enseja com as
veleidades materiais a vida e os vivos As homenagens e as gloacuterias terrenas satildeo um peso ndash em
um sentido natildeo metafoacuterico ndash para a construccedilatildeo de um espaccedilo de completa isonomia
Luciano iguala materialmente todos os indiviacuteduos e permite uma seacuterie de criacuteticas
sociais Ressaltemos que o igualamento dar-se-aacute na conjunccedilatildeo especiacutefica do desprovimento dos
bens materiais (conseguidos acumulados ou herdados) como as riquezas ou aqueles que os
indiviacuteduos nascem como a beleza A criacutetica luciacircnica eacute extremamente forte contra o apego aos
bens materiais
Os diaacutelogos dos mortos condenam o fausto em que a elite greco-romana vivia bem
como as praacuteticas que rodeiam a relaccedilatildeo dos ricos com os outros principalmente a bajulaccedilatildeo
Nesse sentido Luciano mobiliza personagens presentes na memoacuteria histoacuterica greco-romana a
fim de expressar suas ideias Brandatildeo defende que
A concepccedilatildeo radicalmente igualitaacuteria de Luciano fundamenta-se num
processo de depauperamento igualmente radical em que o resto dos mortos
se confundem num igualamento absoluto A visatildeo que tem Menipo da planiacutecie
de Aqueruacutesia mostra um espaccedilo em que semideuses heroiacutenas e mortos de
todas as naccedilotildees e tribos misturam sua inconsistecircncia (BRANDAtildeO 19941995
90)
Franccedilois Jouan infere que ldquoa unidade de inspiraccedilatildeo dos Diaacutelogos dos mortos eacute clara
Sua leitura agradaacutevel nos leva agrave conclusatildeo de que se trata somente de abolir em seu Inferno
[Enfers] todas as desigualdades sociais entre os homens e realizar o nivelamento absoluto entre
elesrdquo (JOUAN1994 28)
No diaacutelogo V Menipo questiona Hermes sobre onde encontrar ldquoOs belos e as belasrdquo200
Ao mostrar alguns semideuses que todos os poetas admiram o filoacutesofo ciacutenico responde ldquoEstou
vendo soacute ossos e cracircnios desprovidos de carnes a maioria semelhantesrdquo (Luciano D mort V
405-409)201
199 ldquoκαὶ ὁ ῥήτωρ δὲ σὺ ἀπόθου τῶν ῥημάτων τὴν τοσαύτην ἀπεραντολογίαν καὶ ἀντιθέσεις καὶ παρισώσεις καὶ
περιόδους καὶ βαρβαρισμοὺς καὶ τὰ ἄλλα βάρη τῶν λόγωνrdquo 200 ldquoΠοῦ δαὶ οἱ καλοί εἰσιν ἢ αἱ καλαί Ἑρμῆrdquo 201 ldquoὈστᾶ μόνα ὁρῶ καὶ κρανία τῶν σαρκῶν γυμνά ὅμοια τὰ πολλάrdquo
132
O Diaacutelogo XXX fornece mais um exemplo interessante para esse fenocircmeno do igualamento dos
mortos Nireu202 e Tersites203 solicitam que Menipo seja o aacuterbitro sobre quem seria o mais formoso
Luciano debate aqui a tradiccedilatildeo homeacuterica na qual o primeiro era o segundo mais belo e o segundo que eacute
o mais feio A resposta do Menipo luciacircnico reafirma a isonomia deste espaccedilo pois afirma que ldquoNem
tu eacutes mais formoso nem um outro pois no Hades reina a igualdade e todos satildeo parecidosrdquo (Luciano D
mort XXX 433 ss)204
Luciano enfatiza peremptoriamente esse nivelamento entretanto acreditamos que a perspectiva
defendida por Brandatildeo e Jouan devem ser matizadas No diaacutelogo XX o filoacutesofo que foi despido de tudo
que carregava pede para Menipo tambeacutem se despir de algumas caracteriacutesticas que levava Segue o
diaacutelogo
O filoacutesofo ndash Pois entatildeo Menipo tu tambeacutem despe a liberdade a franqueza a
ausecircncia de tristeza a nobreza e o riso porque tu eacutes o uacutenico que estaacutes rindo
Hermes ndash De forma alguma Ao contraacuterio conserva essas coisas Todas satildeo
faacuteceis de transportar e satildeo uacuteteis para a viagem (Luciano D mort XX 373)205
Natildeo haacute um desprezo agrave vida nos Diaacutelogos dos Mortos como natildeo existe um processo de
idealizaccedilatildeo da morte o que ocorre eacute uma criacutetica agrave cultura poliacutetica e agrave desigualdade social por
meio do riso uma vez que algumas virtudes uacuteteis permanecem com quem as porta Virtudes
essas que natildeo se afastam daquelas herdadas dos ciacutenicos a saber sabedoria (σοφία)
autodomiacutenio (αὐτάρκεια) verdade (ἀλήθεια) franqueza (παρρησία) liberdade (ἐλευθερία)
(Luciano D mort XXI 378) Tais qualidades satildeo o contraponto daqueles atributos dos quais
o tirano se devia despir O siacuterio nuanccedila com matizes ciacutenicas seu Hades no entanto o discurso
eacute possibilitado pela parreacutesia pela franqueza
Haacute outra exceccedilatildeo com o filho de Alcmena Heacuteracles no diaacutelogo XI visto assim por
Dioacutegenes ldquoEsse aiacute natildeo eacute Heacuteracles Natildeo pode ser outro por Heacuteracleacutes O arco o porrete a pele
202 Luciano cita o canto II da Iliacuteada no qual ldquoNireu que era o homem mais belo entre os Dacircnaos que vieram para
debaixo de Iacutelion agrave exceccedilatildeo do irrepreensiacutevel Pelidardquo (ldquoΝιρεύς ὃς κάλλιστος ἀνὴρ ὑπὸ Ἴλιον ἦλθε τῶν ἄλλων
Δαναῶν μετ ἀμύμονα Πηλεΐωναrdquo) (Homero Il II 673-674 grifo nosso) Propositalmente o siacuterio natildeo cita o
trecho sublinhado A memoacuteria eacute seletiva como podemos notar mas a ausecircncia dos trechos diz muito sobre os
objetivos luciacircnicos 203 Personagem da Iliacuteada assim descrito por Homero ldquoEra o homem mais feio que veio para Iacutelion tinha as pernas
tortas e era coxo num peacute os ombroseram encurvados dobrando-se sobre o peito A cabeccedila era pontiaguda donde
despontava uma rara lanugemrdquo (ldquo[]αἴσχιστος δὲ ἀνὴρ ὑπὸ Ἴλιον ἦλθε φολκὸς ἔην χωλὸς δ ἕτερον πόδα τὼ
δέ οἱ ὤμω κυρτὼ ἐπὶ στῆθος συνοχωκότε αὐτὰρ ὕπερθε φοξὸς ἔην κεφαλήν ψεδνὴ δ ἐπενήνοθε λάχνηrdquo)
(Homero Il II 216 217-219 trad Frederico Lourenccedilo) 204 ldquoΜΕΝΙΠΠΟΣ
Οὔτε σὺ οὔτε ἄλλος εὔμορφος ἰσοτιμία γὰρ ἐν ᾅδου καὶ ὅμοιοι ἅπαντεςrdquo 205 ldquoΦΙΛΟΣΟΦΟΣ
Οὐκοῦν καὶ σύ ὦ Μένιππε ἀπόθου τὴν ἐλευθερίαν καὶ παρρησίαν καὶ τὸ ἄλυπον καὶ τὸ γενναῖον καὶ τὸν γέλωτα
μόνος γοῦν τῶν ἄλλων γελᾷς
ΕΡΜΗΣ
Μηδαμῶς ἀλλὰ καὶ ἔχε ταῦτα κοῦφα γὰρ καὶ πάνυ εὔφορα ὄντα καὶ πρὸς τὸν κατάπλουν χρήσιμαrdquo
133
de leatildeo a estatura eacute todinho Heacuteraclesrdquo (Luciano D mort XI 402)206 O igualamento se daacute
nos niacuteveis superficiais de distinccedilatildeo Por traz de todo o debate existe uma loacutegica da essecircncia e
da aparecircncia aquilo que de fato eacute uma distinccedilatildeo essencial e aquilo que eacute uma distinccedilatildeo
superficial
Luciano se preocupa com o fato de os mortos estarem em condiccedilotildees iguais todavia em
cinco diaacutelogos207 ele se preocupa com os bajuladores Os personagens que se envolvem nessas
situaccedilotildees satildeo aqueles inventados pela criatividade luciacircnica que citamos acima geralmente
jovens que cercam algum velho rico que natildeo tenha filhos a fim de ser considerado seu herdeiro
situaccedilatildeo que se aproxima muito da instituiccedilatildeo da adoccedilatildeo Ou seja satildeo os vivos que se
preocupam com a morte daqueles que tecircm muito jaacute que como natildeo levaram nada poderatildeo
herdar desde que sejam adotados como herdeiros dos ricos Nesse sentido haacute colocaccedilotildees sobre
a relaccedilatildeo dos ricos com outras pessoas principalmente com os bajuladores
Ao analisar a cultura poliacutetica romana observamos que Luciano estaacute criticando nos
Diaacutelogos dos mortos uma instituiccedilatildeo importante que eacute uma especificidade do direito romano
a adoptio O processo legal de adoccedilatildeo em Roma somente era permitido aos homens A pessoa
adotada natildeo se distinguia dos filhos naturais daquele que o adotou tendo os mesmos direitos
sucessoacuterios bem como o nome e a posiccedilatildeo social aleacutem da heranccedila
Segundo Veyne a adoccedilatildeo poderia impedir a extinccedilatildeo de uma estirpe bem como adquirir
a condiccedilatildeo de pater famiacutelias que era exigida para o acesso a algumas honras puacuteblicas ou ao
governo das proviacutencias (Veyne 2007 30)
Os analistas do Alto Impeacuterio costumam ressaltar que a sucessatildeo foi um dos pontos fracos
do sistema imperial De acordo com o direito romano o Princeps natildeo podia escolher ou impor
seu sucessor208 Entretanto de Augusto a Cocircmodo dos dezesseis Imperadores nove chegaram
tranquilamente agrave puacuterpura sendo trecircs filhos de um Imperador (Tito Domiciano e Cocircmodo) e
cinco filhos adotados oficialmente (Tibeacuterio Nero Trajano Antonino Pio Marco Aureacutelio) Se
observarmos os Imperadores contemporacircneos ao siacuterio transmitiam o poder diminuindo as
crises poliacuteticas por meio da adoccedilatildeo daquele que eacute considerado o melhor
Esse tema ganha muita forccedila nos Diaacutelogos dos mortos uma vez que em cinco diaacutelogos
o tema principal eacute o caccedilador de heranccedilas Haacute duas criacuteticas uma social ndash agravequeles ricos que se
206 ldquoΔΙΟΓΕΝΗΣ
Οὐχ Ἡρακλῆς οὗτός ἐστιν οὐ μὲν οὖν ἄλλος μὰ τὸν Ἡρακλέα τὸ τόξον τὸ ῥόπαλον ἡ λεοντῆ τὸ μέγεθος ὅλος
Ἡρακλῆς ἐστινrdquo 207 Diaacutelogos XV XVI XVII XVIII e XIX 208 Beacuteranger analisou a transmissatildeo do poder imperial tendo em vista a questatildeo da hereditariedade Ele nos lembra
que essa instituiccedilatildeo natildeo existia formalmente no direito romano mas que na praacutetica haacute a tentativa de constituir uma
domus imperial (BEacuteRANGER 1971137-152)
134
cercavam de bajuladores que estavam em busca de suas heranccedilas ndash e uma sutil criacutetica poliacutetica
a partir do olhar aos mecanismos de sucessatildeo imperial Retomemos o que afirma Demeacutetrio no
seu manual de retoacuterica o orador precisa encontrar meios de falar ao tirano sem colocar sua
vida em risco
A presenccedila de reis tiranos e generais expressa com uma ecircnfase maior a postura que
Luciano tem de alguns mecanismos de poder Jaacute no citado diaacutelogo XX Hermes avisa ao tirano
de Gela que no Hades ele eacute mais um morto e que todo o seu poder ficou na terra O escritor
constroacutei nos Diaacutelogos dos Mortos o encontro entre a histoacuteria e o mito por meio de uma
construccedilatildeo memorialiacutestica que interage com o passado Como afirma Keith Jenkins em seu
recente livro A Histoacuteria Refigurada
O que constitui (conforma) o sujeito humano em qualquer momento no espaccedilo
e no tempo natildeo eacute portanto a expressatildeo de algum nuacutecleo interior ou essecircncia
humana e sim o resultado desse processo dinacircmico denominado
interabilidade (o processo de repeticcedilatildeo e diferenccedila da repeticcedilatildeo do nunca
exatamente igual) que garante que ningueacutem jamais esteja completo estaacutevel
ou fixo de uma vez por todas (JENKINS 2014 12-13)
Conforme dito o uso das narrativas nunca eacute exatamente igual ao repetido uma vez que
as mudanccedilas podem ocorrer em diversas ordens desde a semacircntica das palavras agraves condiccedilotildees
de enunciaccedilatildeo dadas Logo o processo de constituiccedilatildeo identitaacuteria natildeo ocorre a partir de uma
essecircncia mas principalmente no mundo greco-romano num processo de conformaccedilatildeo e
aglutinaccedilatildeo de signos identitaacuterios de culturas diversas
Como nos ensinou Assmann (2011 83-91) a escrita permite a glosa contiacutenua a anaacutelise
principalmente quando pensamos em uma cultura como a helecircnica cujos textos fundadores
natildeo foram alccedilados ao patamar da palavra divina como ocorreu com outras culturas A escrita
natildeo ficou monopolizada por escribas nem as narrativas sobre os deuses confinada aos templos
dessa forma o conjunto de textos literaacuterios gregos desde sua origem nutre-se das diversas
narrativas miacuteticas presentes na tradiccedilatildeo para se reconfigurar
Nesta senda a anaacutelise do texto luciacircnico amplia os horizontes da interpretaccedilatildeo histoacuterica
O espaccedilo do Hades representado nos diaacutelogos permite o encontro ou mesmo o confronto de
personagens histoacutericos questionadores de valores e insiacutegnias da vida sociopoliacutetica como eacute o
caso da representaccedilatildeo dos reis e dos tiranos nesses diaacutelogos
O mais emblemaacutetico caso eacute a representaccedilatildeo de Alexandre Magno Trata-se aqui do
modelo de conquistador na cultura claacutessica Plutarco na Vida de Cesar relata que
na Hispacircnia ocupando o oacutecio com a leitura de uma obra sobre Alexandre
ficou longo tempo a refletir absorto em si mesmo e depois comeccedilou a chorar
135
Espantados os amigos quiseram saber a causa daquelas laacutegrimas Natildeo vos
parece explicou ele ser motivo de afliccedilatildeo pensar que na idade em que estou
Alexandre jaacute possuiacutea um vasto impeacuterio e eu ainda natildeo empreendi nada de
grandioso (Plutarco Caesar 11)209
A imagem desse governante esteve muito presente na Repuacuteblica Romana bem como
entre os Imperadores Trata-se do grande conquistador cujos feitos teriam sido inigualaacuteveis
Haacute trecircs diaacutelogos210 em que esse soberano se faz presente O diaacutelogo XXV travado entre
Alexandre Aniacutebal Cipiatildeo e Minos discorre justamente sobre quem seria o maior general de
todos os tempos Trata-se de um exerciacutecio comum na retoacuterica uma vez que mobiliza a memoacuteria
cultural dos agentes Minos o juiz do Hades teria sido o grande rei da ilha de Creta seu
legislador e a tradiccedilatildeo lhe lega a fama de general exitoso Logo ele teria a autoridade necessaacuteria
para fazer esse julgamento (GRIMAL 2005 313-314)
Nesse caso Luciano mostra seu conhecimento de Histoacuteria Romana aleacutem de explicitar
uma posiccedilatildeo ambiacutegua para Cipiatildeo A disputa dar-se-aacute com o encontro de trecircs grandes generais
conhecidos por conquistas grandiosas e feitos memoraacuteveis Cada um dos heroacuteis representa um
povo Aniacutebal os cartagineses Cipiatildeo os romanos Alexandre os Macedocircnios
Alexandre eacute o grande general por excelecircncia extremamente cultuado entre os proacuteprios
romanos como evidencia a citaccedilatildeo anterior de Plutarco como modelo de conquistador Esse
poder condensador em torno de sua imagem permite que ela seja bastante utilizada pelos
oradores da Segunda Sofiacutestica
No diaacutelogo XXV Luciano mostra seu talento literaacuterio e a ambiguidade que sua condiccedilatildeo
lhe impotildee Retomemos a premissa de Paul Veyne sobre os escritores da Segunda Sofiacutestica
amplamente debatida no primeiro capiacutetulo Os argumentos positivos colocados por Aniacutebal
afirmam (1) que ele fez todas as suas conquistas do nada (2) a conquista de povos ocidentais
(3) o grande nuacutemero de mortos nas batalhas (4) que chegou agraves portas de Roma (5) que assumiu
sua condiccedilatildeo humana (6) que lutou com os soldados mais belicosos
Em seguida ele comeccedila os argumentos negativos atacando Alexandre (1) ele se
autodenominou filho de Amon (2) herdou o poder do pai (3) afastou-se das tradiccedilotildees dos
antepassados (4) assassinou amigos nos banquetes Aniacutebal ainda faz uma seacuterie de comparaccedilotildees
tendo em vista justificar seu exiacutelio
209 ldquoὁμοίως δὲ πάλιν ἐν Ἰβηρίᾳ σχολῆς οὔσης ἀναγινώσκοντά τι τῶν περὶ Ἀλεξάνδρου γεγραμμένων σφόδρα
γενέσθαι πρὸς ἑαυτῷ πολὺν χρόνον εἶτα καὶ δακρῦσαι τῶν δὲ φίλων θαυμασάντων τὴν αἰτίαν εἰπεῖν lsquoοὐ δοκεῖ
ὑμῖν ἄξιον εἶναι λύπης εἰ τηλικοῦτος μὲν ὢν Ἀλέξανδρος ἤδη τοσούτων ἐβασίλευεν ἐμοὶ δὲ λαμπρὸν οὐδὲν οὔπω
πέπρακταιrsquordquo 210 Alexandre eacute personagem dos diaacutelogos XII XIII e XXV
136
Luciano alude a esse governante no iniacutecio do opuacutesculo Alexandre ou o falso profeta Ao
se referir agravequele charlatatildeo que residia em Abonotico ele afirma que a ldquoeste estaacute para a maldade
tanto quanto aquele estaacute para a virtuderdquo (Luciano Alex 1)211 Os personagens satildeo mobilizados
na narrativa luciacircnica a fim de compor um argumento logo seu uso depende do contexto e da
finalidade da remissatildeo Por isso o uso desse personagem pode remeter a aspectos mais
proacuteximos que a anaacutelise superficial deixa entrever
Os argumentos do cartaginecircs voltam-se com precisatildeo para a poliacutetica no Impeacuterio Romano
e principalmente para suas intrigas Nesse sentido a defesa que Alexandre faz de sua primazia
eacute bastante esclarecedora O fundador de Alexandria inicia seu argumento afirmando que (1)
foi um rei enquanto o cartaginecircs foi um salteador (2) chegou ao poder jovem (3) colocou
ordem no reino que estava conturbado (4) vingou o assassinato do pai (5) desejou dominar
todo o mundo conhecido uma vez que seria inseguro se assim natildeo fosse (6) foi um grande
conquistador (7) conquistou o reino de Dario enviando muitas pessoas ao Hades (8) tinha a
ousadia pessoal em combate (9) morreu governando Alexandre ainda menospreza a vitoacuteria
dos itaacutelicos por Aniacutebal jaacute que teria chegado tatildeo longe sem combate Afirma que o mesmo
perdeu a guerra por se dedicar muito a uma vida luxuriosa
Por fim quem decidiu a primazia entre os generais foi Cipiatildeo que afirmou que eacute inferior
a Alexandre e superior a Aniacutebal A fina ironia luciacircnica coloca na boca de um romano que um
general estrangeiro eacute maior que um dos generais vencedores nas guerras puacutenicas Na loacutegica
luciacircnica o maior general eacute um grego seguido por um romano e finalmente pelo cartaginecircs
Entretanto os argumentos usados por gregos e cartagineses satildeo muito mais referentes agrave
sociedade na qual Luciano escreveu que naquela em que viveram os generais A memoacuteria
histoacuterica greco-romana eacute mobilizada como sempre seletivamente no intuito de discorrer
sobresua atualidade poliacutetica uma vez que era um signo importante aos governantes de seu
tempo ser considerado um grande general Assim o imaginaacuterio sobre essas personagens e seu
modelo ideal tecircm grande potencial poliacutetico As criacuteticas ao Impeacuterio e seu governante aparecem
aqui veladas por recursos retoacutericos
Nos diaacutelogos luciacircnicos Alexandre eacute interpelado tanto por Dioacutegenes quanto por seu pai
Filipe pelo uso poliacutetico que faz de sua suposta filiaccedilatildeo divina O anedotaacuterio que envolve a vida
de Dioacutegenes apresenta muitas passagens em que esse teria se encontrado com Alexandre
existindo inclusive uma tradiccedilatildeo pouco provaacutevel na Antiguidade que afirmava que os dois
teriam morrido no mesmo dia (FINLEY 1991 106)
211 ldquoτοσοῦτος εἰς κακίαν οὗτος ὅσος εἰς ἀρετὴν ἐκεῖνοςrdquo
137
O diaacutelogo coloca em duacutevida os profetas de Amom como o fato de as pessoas
acreditarem naquele ocorrido Ou seja Dioacutegenes questiona a bajulaccedilatildeo dos adivinhos mas
tambeacutem a credulidade do povo Por outro lado Alexandre se beneficiou politicamente do medo
que esse boato gerava
No diaacutelogo com seu pai tanto ao ser interpelado por aceitar que as pessoas o
considerassem filho de um deus expotildee-se o uso poliacutetico desse boato
Filipe ndash Agora Alexandre natildeo mais poderias afirmar que natildeo eacutes meu filho
pois se fosses filho de Amon natildeo estarias aqui
Alexandre ndash Nem eu desconhecia meu pai que era filho de Filipe filho de
Amintas Mas eu aceitava o oraacuteculo porque acreditava que aquilo era uacutetil para
meus projetos
Filipe ndash Como eacute isso Parecia-te uacutetil sujeitar-te a ser enganado pelos
adivinhos
Alexandre ndash Natildeo natildeo eacute isso Eacute que os baacuterbaros ficavam estarrecidos na minha
presenccedila e assim nenhum deles me resistiu por acreditar que estavam lutando
com um deus Daiacute eu os dominava mais facilmente (Luciano D mort XII
395)212
Filipe questiona o meacuterito da vitoacuteria conseguida sob esse engodo repetindo uma criacutetica
que estaacute presente no debate sobre a primazia no qual Aniacutebal nos lembra que ele natildeo valorizou
sua condiccedilatildeo humana por menosprezo aos seus adversaacuterios
Filipe ainda lembra que ldquoE o que eacute mais ridiacuteculo de tudo tu copiaste os costumes dos
vencidosrdquo (Luciano D mort XII 396)213 Tais assertivas ecoam a relaccedilatildeo dos dominadores romanos
com os povos helecircnicos Luciano volta-se agrave cultura poliacutetica de seu tempo cheia de intrigas perseguiccedilotildees
e assassinatos assim como Alexandre haveria feito Bem como as ousadias que geraram ferimentos no
conquistador uma vez que esses atos colocavam em descreacutedito a crenccedila de que ele era filho de uma
divindade
Os Diaacutelogos dos Mortos satildeo textos com um profundo questionamento da cultura poliacutetica greco-
romana Natildeo se trata de um texto panfletaacuterio muito menos de um ativista revolucionaacuterio que apresentava
grande apelo pelos oprimidos Partimos do pressuposto de que os Diaacutelogos dos Mortos questionam a
maneira como a elite imperial vivia e a relaccedilatildeo desta com os menos abastados O elemento mobilizado
212 ldquoΦΙΛΙΠΠΟΣ
Νῦν μέν ὦ Ἀλέξανδρε οὐκ ἂν ἔξαρνος γένοιο μὴ οὐκ ἐμὸς υἱὸς εἶναι οὐ γὰρ ἂν τεθνήκεις Ἄμμωνός γε ὤν
ΑΛΕΞΑΝΔΡΟΣ
Οὐδ αὐτὸς ἠγνόουν ὦ πάτερ ὡς Φιλίππου τοῦ Ἀμύντου υἱός εἰμι ἀλλ ἐδεξάμην τὸ μάντευμα χρήσιμον εἰς τὰ
πράγματα εἶναι οἰόμενος
ΦΙΛΙΠΠΟΣ
Πῶς λέγεις χρήσιμον ἐδόκει σοι τὸ παρέχειν σεαυτὸν ἐξαπατηθησόμενον ὑπὸ τῶν προφητῶν
ΑΛΕΞΑΝΔΡΟΣ
Οὐ τοῦτο ἀλλ οἱ βάρβαροι κατεπλάγησάν με καὶ οὐδεὶς ἔτι ἀνθίστατο οἰόμενοι θεῷ μάχεσθαι ὥστε ῥᾷον
ἐκράτουν αὐτῶνrdquo 213 ldquo[] καὶ τὸ πάντων γελοιότατον ἐμιμοῦ τὰ τῶν νενικημένωνrdquo
138
eacute justamente o igualamento proporcionado pela morte que coloca todos nas mesmas condiccedilotildees bem
como elementos da teologia poliacutetica como a divinizaccedilatildeo dos governantes
Os caminhos propostos por Luciano nos Diaacutelogos dos mortos satildeo intrincados e instigadores
Entretanto estamos convencidos que ele natildeo estaacute discorrendo sobre os mortos Esse texto versa sobre
os vivos e a vida natildeo existe sem a poliacutetica com suas normas leis e principalmente a comunidade
Assim Luciano opotildee as caracteriacutesticas do tirano marcadas para aleacutem das insiacutegnias materiais do cargo
(manto e diadema) por defeitos morais arrogacircncia orgulho presunccedilatildeo ignoracircncia insolecircncia
e raiva Trata-se do oposto dos elementos valorizados sabedoria autodomiacutenio verdade franqueza
liberdade Essa oposiccedilatildeo de valores serve-se das referecircncias dadas pelo regime de memoacuteria
romano expressos em uma memoacuteria cultural reatualizada por Luciano de Samoacutesata
33 Narrativas miacuteticas e os dilemas do poder o caso do Prometeu luciacircnico
Neste toacutepico analisamos os usos do poder nos diaacutelogos luciacircnicos tendo em vista
principalmente a presenccedila do titatilde Prometeu que eacute tradicionalmente ligado agraves atitudes
arbitraacuterias de Zeus o deus dos tiranos em oposiccedilatildeo agrave divindade filantroacutepica que tem a
capacidade de antever o futuro Para tal analisamos o diaacutelogo maior Prometeu ou o Caacuteucaso
o diaacutelogo I da coletacircnea Diaacutelogos dos deuses travado entre Zeus e Prometeu e sempre que
necessaacuterio faremos referecircncia ao pequeno opuacutesculo Ao que disse ldquoEacutes um Prometeu em seus
discursosrdquo
As narrativas miacuteticas vinculadas ao titatilde satildeo fundamentais na tradiccedilatildeo literaacuteria helecircnica
e foi o mote para muitas trageacutedias especialmente o Prometeu Agrilhoado de Eacutesquilo Trata-
se de um personagem recorrente nos escritos luciacircnicos sendo que o mesmo fornece o pretexto
para muitos assuntos mas principalmente para pensar os atos abusivos dos detentores do
poder214
As referecircncias luciacircnicas a esse mito satildeo de duas ordens uma referente agrave puniccedilatildeo
recebida pelo criador dos homens no Caacuteucaso e outra agrave comparaccedilatildeo indireta da poeacutetica
luciacircnica com as artes de Prometeu Inicialmente vamos pensar essa apropriaccedilatildeo vinculada agrave
reflexatildeo do proacuteprio ofiacutecio uma vez que permeado a esse debate podemos ver elementos com
os quais Luciano constroacutei seu texto cocircmico numa atitude conhecida para produzir o riso que eacute
sempre retomado como um caminho para o pensamento utilizado pelo siacuterio em seus escritos
214 Prometeu eacute citado por Luciano no J conf 8 J trag 1 Prom verbs 1 2 3 4 5 6 7 14 20 21 Sacr 5 6
Philops 2 Merc Cond 26 Salt 38 Amor 9 36 43 D deor 5 Nessa lista de vinte e uma apariccedilotildees excetuamos
o diaacutelogo maior Prometeu ou o Caacuteucaso
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Nossa anaacutelise destaca os elementos poliacuteticos e dessa forma mobiliza o debate sobre a postura
luciacircnica frente agraves diferentes formas de poder
Ao falar de sua poeacutetica no opuacutesculo Ao que diz que ldquoEacutes um Prometeu em seus
discursosrdquo Luciano debate a aproximaccedilatildeo dos seus feitos literaacuterios com aqueles atribuiacutedos ao
titatilde colocando-se como um ldquomodelador de argilardquo (πηλοπλάθος) (Luciano Prom Verb 1)
Mais uma vez o siacuterio justifica a uniatildeo conflitante do diaacutelogo filosoacutefico com a comeacutedia O mito
prometeico eacute retomado especialmente pelos benefiacutecios que trouxe agrave humanidade a qual deve
sua existecircncia ao fato de Prometeu ter criado os homens a partir do barro Ele garantiu a
sobrevivecircncia da humanidade roubando o fogo dos deuses e entregando aos homens bem como
estabeleceu uma divisatildeo favoraacutevel aos mortais dos sacrifiacutecios realizados Na narrativa miacutetica
satildeo justamente esses benefiacutecios que levam o titatilde a receber uma puniccedilatildeo extremamente cruel
ser preso no monte Caacuteucaso e ter uma aacuteguia comendo seu fiacutegado todos os dias Ele era
considerado o mais saacutebio dos Titatildes aquele que via com antecedecircncia o desenrolar dos fatos
sendo por isso mesmo considerado um profeta ou seja o personagem miacutetico que encerra a
filantropia em todo o imaginaacuterio que se constroacutei ao redor dele
Luciano ao defender e explicitar sua poeacutetica se indaga sobre a pertinecircncia da alcunha
de Prometeu para seu oficio questiona se seus textos satildeo mesmo prometeicos ou seja
profeacuteticos indicando caminhos para o futuro Aleacutem disso ressalta que a junccedilatildeo do diaacutelogo
filosoacutefico com a comeacutedia pode ensejar o desejo de ldquoenganar os ouvintes e servir-lhes ossos
escondidos sob a gordura o riso cocircmico sob a seriedade filosoacuteficardquo (Luciano Prom Verb 7)215
O engano de que fala o escritor eacute justamente a intenccedilatildeo expliacutecita de seus escritos produzirem o
riso que faz pensar caracteriacutestico do cocircmico seacuterio
Nesse contexto em que o samosatense reflete sobre a novidade dos textos que produz
ele narra uma anedota
Ptolomeu216 filho de Lago duas coisas novas levou ao Egito uma fecircmea de
camelo de Bactres interamente negra e um homem de duas cores de modo
que uma metade ele a tinha acuradamente negra enquanto a outra era
hiperbolicamente branca por igual sendo assim dividido Reunindo entatildeo os
egiacutepcios no teatro mostrou-lhes Ptolomeu muitos e variados espetaacuteculos e
por fim tambeacutem estes a fecircmea de camelo e o homem branco pela metade
julgando haver de deixaacute-los maravilhados com o que viam Pois bem face da
fecircmea de camelo tiveram medo e pouco faltou para que fugissem em pacircnico
ainda que ela estivesse toda enfeitada com ouro coberta de puacutepura e seu freio
215 ldquo[] ἐξαπατῶν ἴσως τοὺς ἀκούοντας καὶ ὀστᾶ παραθεὶς αὐτοῖς κεκαλυμμένα τῇ πιμελῇ γέλωτα κωμικὸν ὑπὸ
σεμνότητι φιλοσόφῳrdquo 216 Ptolomeu I Soter (366 ndash 283 a C) foi o fundador da dinastia dos Laacutegidas no Egito Foi um dos generais
macedocircnicos que acompanhou Alexandre Tomou o tiacutetulo de Rei em 305 a C recusando-se a pagar impostos a
Macedocircnia Filho de um nobre Lago do qual deriva o nome da dinastia Laacutegidas
140
fosse incrustado de pedras preciosas cimeacutelio de um Daacuterio um Cambises ou
um Ciro jaacute em face do homem muitos comeccedilaram a rir outros se encheram
de horror como se diante de um monstro desse modo compreendendo
Ptolomeu que a novidade natildeo era apreciada nem admirada pelos egiacutepcios
mas eles julgavam as coisas pela eurritmia e a formosura mandou levar
embora aquelas coisas e natildeo mais as teve em consideraccedilatildeo A fecircmea de camelo
morreu por falta de cuidado o homem duplo ele deu de presente a Teacuterpis o
flautista que tocou bem durante o banquete (Luciano Prom Verb 4) 217
Colocamos duas indagaccedilotildees uma de ordem esteacutetica e literaacuteria referente agrave poeacutetica
luciacircnica outra de ordem poliacutetica referente a elementos simboacutelicos presentes no texto que
produzem o riso A indagaccedilatildeo esteacutetica pode ser resumida nas colocaccedilotildees de Brandatildeo segundo
o qual a poeacutetica luciacircnica deveria ldquoajuntar o diferente e harmonizaacute-lo () Sem isso teria o
efeito de provocar em vez de prazer e divertimento apenas pavor e riso como as novidades de
Ptolomeurdquo (BRANDAtildeO 2001 79) Essa breve anedota apresenta elementos presentes na
sociedade greco-romana na qual o siacuterio se inseria
Primeiramente haacute o viacutenculo com um soberano helenizado do Egito um sucessor dos
antigos Faraoacutes destacando-se dessa forma a aproximaccedilatildeo com as realezas orientais com a
menccedilatildeo a Ptolomeu e aos monarcas persas Haacute na cultura poliacutetica romana a criacutetica a posturas
orientalizantes dos governantes ndash podemos lembrar os casos de Juacutelio Cesar Marco Antocircnio ou
Nero
O segundo elemento a ser evidenciado eacute a fecircmea de camela enfeitada com insiacutegnias
proacuteprias de um governante manto puacuterpura e joias Haacute um alerta sobre as accedilotildees dos governantes
e a possibilidade de as mesmas gerarem riso e espanto Tudo isso teria ocorrido no Egito cuja
importacircncia estrateacutegica para a poliacutetica imperial jaacute enfatizamos o que se coaduna com as
colocaccedilotildees que avizinham a imagem do titatilde filantropo
Os usos poliacuteticos da imagem de Prometeu satildeo pautados no questionamento agrave tirania de
Zeus e dos elementos que a rodeiam Luciano constroacutei exemplos de como um governante
desatento pode vir a se tornar um mau governante Inicialmente vamos ao desdobramento desse
diaacutelogo e em seguida agrave refutaccedilatildeo dos crimes prometeicos feita pelo proacuteprio Titatilde no diaacutelogo
Prometeu ou o Caacuteucaso Noacutes dialogamos com as remissotildees miacuteticas construiacutedas de maneira
217 ldquoΠτολεμαῖος γοῦν ὁ Λάγου δύο καινὰ ἐς Αἴγυπτον ἄγων κάμηλόν τε Βακτριανὴν παμμέλαιναν καὶ δίχρωμον
ἄνθρωπον ὡς τὸ μὲν ἡμίτομον αὐτοῦ ἀκριβῶς μέλαν εἶναι τὸ δὲ ἕτερον ἐς ὑπερβολὴν λευκόν ἐπ ἴσης δὲ
μεμερισμένον ἐς τὸ θέατρον συναγαγὼν τοὺς Αἰγυπτίους ἐπεδείκνυτο αὐτοῖς ἄλλα τε πολλὰ θεάματα καὶ τὸ
τελευταῖον καὶ ταῦτα τὴν κάμηλον καὶ τὸν ἡμίλευκον ἄνθρωπον καὶ ᾤετο ἐκπλήξειν τῷ θεάματι οἱ δὲ πρὸς μὲν
τὴν κάμηλον ἐφοβήθησαν καὶ ὀλίγου δεῖν ἔφυγον ἀναθορόντες καίτοι χρυσῷ πᾶσα ἐκεκόσμητο καὶ ἁλουργίδι
ἐπέστρωτο καὶ ὁ χαλινὸς ἦν λιθοκόλλητος Δαρείου τινὸς ἢ Καμβύσου ἢ Κύρου αὐτοῦ κειμήλιον πρὸς δὲ τὸν
ἄνθρωπον οἱ μὲν πολλοὶ ἐγέλων οἱ δέ τινες ὡς ἐπὶ τέρατι ἐμυσάττοντο ὥστε ὁ Πτολεμαῖος συνεὶς ὅτι οὐκ
εὐδοκιμεῖ ἐπ αὐτοῖς οὐδὲ θαυμάζεται ὑπὸ τῶν Αἰγυπτίων ἡ καινότης ἀλλὰ πρὸ αὐτῆς τὸ εὔρυθμον καὶ τὸ
εὔμορφον κρίνουσι μετέστησεν αὐτὰ καὶ οὐκέτι διὰ τιμῆς ἦγεν ὡς πρὸ τοῦ ἀλλ ἡ μὲν κάμηλος ἀπέθανεν
ἀμελουμένη τὸν ἄνθρωπον δὲ τὸν διττὸν Θέσπιδι τῷ αὐλητῇ ἐδωρήσατο καλῶς αὐλήσαντι παρὰ τὸν πότονrdquo
141
singular nos diaacutelogos luciacircnicos Haacute uma relaccedilatildeo intriacutenseca aos elementos que tradicionalmente
constroem posturas justas e retas com aquelas sofridas pelo titatilde No caso ele representa algueacutem
que sofreu uma injusticcedila por querer beneficiar a humanidade
No diaacutelogo Prometeu ou o Caacuteucaso travado entre Prometeu Hermes e Hefesto Zeus
permanece como personagem ausente mas que fornece a tocircnica do decorrer do diaacutelogo O
diaacutelogo acontece no iniacutecio da puniccedilatildeo do titatilde que exige ser ouvido e ter o direito de se defender
Apoacutes escutar sua acusaccedilatildeo Prometeu inicia sua defesa apologia construiacuteda seguindo o topos
de uma apresentaccedilatildeo em um tribunal
Maurice Croizet afirma que o ldquoPrometeu ou o Caacuteucaso nos oferece uma vigorosa
reinvindicaccedilatildeo do direito agrave razatildeordquo (CROUZET 1882 217) Tal razatildeo enfatizada por ele
vinculava-se agrave criacutetica ao abuso do poder O primeiro ponto do diaacutelogo eacute a definiccedilatildeo do lugar
em que ele seraacute preso
Hermes ndash Aqui estaacute oacute Hefesto o Caacuteucaso ao qual o pobre do Prometeu iraacute
ser pregado Procuremos desde jaacute uma escarpa adequada se eacute que haacute por aiacute
alguma desimpedida de neve de modo que os grilhotildees fiquem cravados com
firmeza e ele fique pendurado agrave vista de toda gente
Hefesto ndash Procuremos pois oacute Hermes Na verdade natildeo conveacutem que ele seja
crucificado nem muito baixo e rasteiro para que natildeo o socorram as suas
criaturas os humanos nem laacute no cume ndash pois aiacute ficaria invisiacutevel aos que
estivessem laacute em baixo ndash mas se concordas que seja crucificado por aqui
mais ou menos a meio no alto da ravina com os braccedilos estendidos desta
escarpa ateacute agrave da frente (Luciano Prom 1)218
Tal como uma condenaccedilatildeo humana a puniccedilatildeo do titatilde deve servir de exemplo aos
homens que o observam Desta dita o texto segue com a intervenccedilatildeo de Prometeu que clama
por piedade aos seus carrascos entretanto esses natildeo podem desobedecer a Zeus pois isso eacute
muito perigoso Ao clamar suas dores Prometeu incita Hermes agrave recordaccedilatildeo de seus crimes
quais sejam 1) induzir Zeus agrave escolha do monte de gordura e ossos na distribuiccedilatildeo das
oferendas 2) criar os homens a partir do barro 3) roubar o fogo Entretanto Prometeu quer
218 ldquoΕΡΜΗΣ
Ὁ μὲν Καύκασος ὦ Ἥφαιστε οὗτος ᾧ τὸν ἄθλιον τουτονὶ Τιτᾶνα προσηλῶσθαι δεήσει περισκοπῶμεν δὲ ἤδη
κρημνόν τινα ἐπιτήδειον εἴ που τῆς χιόνος τι γυμνόν ἐστιν ὡς βεβαιότερον καταπαγείη τὰ δεσμὰ καὶ οὗτος ἅπασι
περιφανὴς εἴη κρεμάμενος
ΗΦΑΙΣΤΟΣ
Περισκοπῶμεν ὦ Ἑρμῆ οὔτε γὰρ ταπεινὸν καὶ πρόσγειον ἐσταυρῶσθαι χρή ὡς μὴ ἐπαμύνοιεν αὐτῷ τὰ
πλάσματα αὐτοῦ οἱ ἄνθρωποι οὔτε μὴν κατὰ τὸ ἄκρον ndash ἀφανὴς γὰρ ἂν εἴη τοῖς κάτω ndash ἀλλ εἰ δοκεῖ κατὰ μέσον
ἐνταῦθά που ὑπὲρ τῆς φάραγγος ἀνεσταυρώσθω ἐκπετασθεὶς τὼ χεῖρε ἀπὸ τουτουὶ τοῦ κρημνοῦ πρὸς τὸν
ἐναντίονrdquo
142
defender-se e provar que Zeus aplicou-lhe ldquouma sentenccedila injustardquo219 (Luciano Prom 4) e que ele
devia ser ldquocondenado a comer no Pritaneurdquo220 (Luciano Prom 4)
Ser condenado ao Pritaneu eacute o siacutembolo maacuteximo de uma grande injusticcedila na Histoacuteria da Filosofia
Soacutecrates quando estava sendo julgado por negar os deuses e corromper os jovens atenienses afirmou
que deveria comer com os embaixadores estrangeiros ou com pessoas que haviam realizado feitos
grandiosos para a cidade Significa comer agraves custas da polis Como no diaacutelogo o Pescador ou os
ressuscitados o siacuterio retoma esse exemplo para marcar a possibilidade de um julgamento injusto visto
que Prometeu reafirma a condiccedilatildeo injusta de sua puniccedilatildeo aproximando-se de Soacutecrates (FINLEY 1991
70)
Hermes lembra-lhe de que o debate a seguir natildeo teraacute nenhum efeito sob sua pena mas
pode ser complicado ao leitor contemporacircneo imaginar uma sociedade que tinha prazer em
ouvir uma declamaccedilatildeo sofiacutestica Nesse sentido mesmo se tratando de um assunto judicial essa
exposiccedilatildeo subverte uma vez que serve apenas de distraccedilatildeo isso eacute natildeo tem qualquer poder
deliberativo
Hermes e Hefesto satildeo os antagonistas presentes que falam sob a sombra de Zeus o
grande antagonista que natildeo se faz presente Apoacutes a acusaccedilatildeo dos crimes jaacute elencados
anteriormente haacute uma longa defesa (apologia) de Prometeu Sobre os sacrifiacutecios o titatilde acusa
Zeus de ser ldquotatildeo mesquinho e rabugentordquo (Luciano Prom 7)221
O Titatilde lembra que ldquosoacute por ter encontrado um pequenino osso na sua porccedilatildeo mandou
empalar um deus tatildeo antigo sem se lembrar da luta conjuntardquo (Luciano Prom 7)222 O
Prometeu luciacircnico trata o caso como uma brincadeira acontecida em um banquete e que Zeus
devia esquecer o fato como prescreviam as regras desta instituiccedilatildeo223 (Luciano Prom 8) A
puniccedilatildeo sofrida eacute tratada como um abuso de puder
Prometeu traccedila uma imagem interessante de Zeus que aleacutem de mesquinho e rabugento
natildeo eacute grato pelo auxiacutelio militar A fuacuteria do deus eacute ldquoproacutepria de um menino ou seja enfurecer-se
219 ldquoἄδικα ἐγνωκόταrdquo 220 ldquo[] ἐν πρυτανείῳ σιτήσεως εἰ τὰ δίκαια ἐγίγνετο ἐτιμησάμην ἂν ἐμαυτῷrdquo 221 ldquoμικρολόγος καὶ μεμψίμοιρόςrdquo 222 ldquo[] διότι μικρὸν ὀστοῦν ἐν τῇ μερίδι εὗρε ἀνασκολοπισθησόμενον πέμπειν παλαιὸν οὕτω θεόν μήτε τῆς
συμμαχίας μνημονεύσαντα []rdquo 223 O banquete ou simpoacutesio no mundo grego claacutessico era um momento extremamente feacutertil culturalmente Em
primeiro lugar era cheio de simbolismo como entrar com o peacute direito no salatildeo para natildeo desagradar os deuses Era
a uacutenica refeiccedilatildeo importante para os romanos momento de relaxamento e diversatildeo com jogos cantos danccedilas e
declamaccedilotildees sofiacutesticas (ROBERT 1995 121-124) Eacute comum no mundo greco-romano a escrita de textos com
caracteriacutesticas de um banquete cujos modelos satildeo aqueles escritos por Platatildeo e Xenofonte Luciana Romeri (2002)
em seu livro Philosophes entre mots e metsPlutarque Lucien et Atheacuteneacutee autor de la table de Platon analisa os
banquetes escritos por Luciano de Samoacutesata Plutarco de Queroneia e Ateneu de Naucratis buscando entender os
viacutenculos que se produziram nesses escritores entre filosofia e comeacutedia Recentemente Olimar Flores Junior (2014)
analisou a presenccedila do cinismo nos escritos de Luciano a partir do texto O banquete ou os Lapidas
143
e irritar-se por ele natildeo ter recebido a melhor parterdquo (Luciano Prom 7)224 O deus eacute acusado de
natildeo saber se portar em um banquete e de ser um ressentido que guarda maacutegoas dos infortuacutenios
que ocorreram naquele espaccedilo (Luciano Prom 8) As tintas colocadas na imagem traccedilada pelo
Prometeu luciacircnico satildeo fortes uma vez que suas atitudes satildeo dignas de uma ldquopessoa irritada de
mesquinhez de espiacuterito de baixeza de mentalidade e de predisposiccedilatildeo para a irardquo (Luciano
Prom 9)225 O Titatilde considera que recebeu uma pena exagerada para o lsquocrimersquo que cometera
Ele menospreza seu delito (Luciano Prom 10)
A segunda acusaccedilatildeo de ter criado os homens faz com que o Titatilde lembre os dois deuses
que sem os homens os deuses natildeo teriam templos altares muito menos hecatombes (Luciano
Prom 12) Luciano natildeo chega agrave conclusatildeo ateiacutesta de que os deuses existem porque os homens
os criaram sua argumentaccedilatildeo tem como limite a ideia de que os deuses soacute tecircm culto por que os
homens existem ou seja os deuses precisam dos homens vis
Prometeu ndash () Ora existiam no iniacutecio ndash na verdade tornar-se-aacute mais
facilmente evidente se eu cometi um crime quando alterei as coisas e inovei
no que respeita aos homens - existia pois unicamente a raccedila divina e
celestial e a Terra era uma coisa selvagem e informe toda coberta de cerrados
bosques e estes mesmos em estado bravio natildeo existiam altares dos deuses
nem templos ndash e como - nem estaacutetuas ou outras coisas do geacutenero como
atualmente se veem por toda parte veneradas com todo o desvelo (Luciano
Prom 12)226
A reflexatildeo luciacircnica coloca os homens como ldquoobras que tecircm sido uacuteteis aos deusesrdquo
(Luciano Prom 14)227 O Prometeu luciacircnico constroacutei uma imagem para si que o opotildee ao deus
tiracircnico uma vez que ele eacute preocupado com o ldquobem comumrdquo (εἰς τὸ κοινὸν) (Luciano Prom
14)
Prometeu tambeacutem refuta a ideia de que a criaccedilatildeo das mulheres foi um mal afirmando
que ldquoMas aquilo que mais me atormenta eacute o fato de voacutes que me censurais por ter fabricado os
homens vos apaixonardes particularmente pelas mulheres natildeo cessando de descer laacute abaixordquo
(Luciano Prom 17)228
224 ldquo[] καὶ ὡς μειρακίου τὸ τοιοῦτον ὀργίζεσθαι καὶ ἀγανακτεῖν εἰ μὴ τὸ μεῖζον αὐτὸς ήψεταιrdquo 225 ldquoὅρα γὰρ μὴ πολλήν τινα ταῦτα κατηγορῇ τοῦ ἀγανακτοῦντος αὐτοῦ μικροψυχίαν καὶ ἀγένειαν τῆς γνώμης καὶ
πρὸς ὀργὴν εὐχέρειανrdquo 226 ldquoἮν τοίνυν πάλαι ndash ῥᾷον γὰρ οὕτω δῆλον ἂν γένοιτο εἴ τι ἠδίκηκα ἐγὼ μετακοσμήσας καὶ νεωτερίσας τὰ
περὶ τοὺς ἀνθρώπους ndash ἦν οὖν τὸ θεῖον μόνον καὶ τὸ ἐπουράνιον γένος ἡ γῆ δὲ ἄγριόν τι χρῆμα καὶ ἄμορφον
ὕλαις ἅπασα καὶ ταύταις ἀνημέροις λάσιος οὔτε δὲ βωμοὶ θεῶν ἢ νέως ndash πόθεν γάρ ndash ἢ ξόανα ἤ τι ἄλλο τοιοῦτον
οἷα πολλὰ νῦν ἁπανταχόθι φαίνεται μετὰ πάσης ἐπιμελείας τιμώμεναrdquo 227 ldquoὅτι δὲ καὶ χρήσιμα ταῦτα γεγένηται τοῖς θεοῖς []rdquo 228 ldquoὃ δὲ μάλιστά με πνίγει τοῦτ ἐστίν ὅτι μεμφόμενοι τὴν ἀνθρωποποιίαν καὶ μάλιστά γε τὰς γυναῖκας ὅμως
ἐρᾶτε αὐτῶν καὶ οὐ διαλείπετε κατιόντες []rdquo
144
As palavras do Titatilde que por um lado tecircm o fito de defendecirc-lo das acusaccedilotildees por outro
lado colocam um importante indiacutecio para entendermos a construccedilatildeo luciacircnica da imagem de
Zeus como um tirano que se metamorfoseia em diversas formas para vir agrave terra com o intuito
de copular com mortais (Luciano Prom 17) Se a mulher fosse tatildeo danosa assim eles a
evitariam Entretanto eacute comum os deuses se apaixonarem por mulheres mortais (Luciano
Prom 17) Ele lembra inclusive que alguns deuses satildeo frutos dessas relaccedilotildees com as mortais
Haacute nos diaacutelogos a imagem do tirano que viola as mulheres e em alguns casos os homens
tratando-se portanto de mais uma arbitrariedade
Como em um tribunal Prometeu bajula seus ouvintes
Todavia ndash direis talvez ndash os homens deviam ser modelados sim senhor mas
de outra forma e natildeo agrave nossa imagem Mas que outro modelo tomaria eu
melhor do que este que eu jaacute sabia absolutamente belo Ou deveria fabricar
um animal sem inteligecircncia bestial e selvagem E como eles sacrificariam os
deuses e vos prestariam outras homenagens se natildeo fosse feito dessa maneira
(Luciano Prom 17)229
O argumento conclui que a fabricaccedilatildeo dos homens mostrou-se muito mais vantajosa aos
deuses (Luciano Prom 11) jaacute que os deuses se beneficiam bastante com os mesmos por meio
das aventuras com mortais das oferendas e preces das construccedilotildees de templos e santuaacuterios
O terceiro crime ldquoentatildeo agora com vossa licenccedila passo agrave questatildeo do fogo e a esse
censuraacutevel roubordquo230 (Luciano Prom 18) leva-nos ao entendimento de que ao levar o fogo
aos homens o Titatilde natildeo teria privado os deuses de seu benefiacutecio uma vez que o fogo se reparte
em quantas chamas forem produzidas ldquoo fogo natildeo se extingue quando outra chama se acende
nelerdquo (Luciano Prom 18)231 Nesse passo o Prometeu luciacircnico retoma a tradiccedilatildeo greco-
romana expressa pela memoacuteria eacutepica dos poemas homeacutericos e recorda que os deuses satildeo
ldquodispensadores de bensrdquo (δωτῆρας ἑάων) (Luciano Prom 18 Homero Odis VIII 325) assim
natildeo cabe aos deuses serem avarentos O Titatilde ressalta como os deuses natildeo perderam com o fato
de os homens terem o fogo mas ganharam pois agora eles podem usar o mesmo nos
hecatombes (Luciano Prom 19) Portanto a queixa feita pelos deuses ldquoseraacute absolutamente
contraacuteria ao vosso desejordquo (Luciano Prom 19)232
229 ldquoἈλλ ἐχρῆν μέν ἴσως φήσεις ἀναπεπλάσθαι τοὺς ἀνθρώπους ἄλλον δέ τινα τρόπον ἀλλὰ μὴ ἡμῖν ἐοικότας
καὶ τί ἂν ἄλλο παράδειγμα τούτου ἄμεινον προεστησάμην ὃ πάντως καλὸν ἠπιστάμην ἢ ἀσύνετον καὶ θηριῶδες
ἔδει καὶ ἄγριον ἀπεργάσασθαι τὸ ζῷον καὶ πῶς ἂν ἢ θεοῖς ἔθυσαν ἢ τὰς ἄλλας ὑμῖν τιμὰς ἀπένειμαν οὐχὶ τοιοῦτοι
γενόμενοιrdquo 230 Περὶ μὲν οὖν τῶν ἀνθρώπων καὶ ταῦτα ἱκανά ἤδη δὲ καὶ ἐπὶ τὸ πῦρ εἰ δοκεῖ μέτειμι καὶ τὴν ἐπονείδιστον
ταύτην κλοπήν 231 ldquoοὐ γὰρ ἀποσβέννυται ἐναυσαμένου τινόςrdquo 232 ldquoἐναντιωτάτη τοίνυν ἡ μέμψις αὕτη ἂν γένοιτο τῇ ὑμετέρᾳ ἐπιθυμίᾳrdquo
145
Entretanto as palavras que refutam peremptoriamente inflamariam a ira de Zeus como
afirma Hermes
Hermes ndash Oacute Prometeu natildeo eacute faacutecil rivalizar com um sofista tatildeo ardoroso No
entanto tens muita sorte pelo fato de Zeus natildeo ter escutado as suas palavras
pois bem sei que te poria dezesseis abutres a dilacerar-te as entranhas pela
maneira terriacutevel como tu o acusaste parecendo que te defendias Aleacutem disso
fico admirado pelo fato de tu um adivinho natildeo teres previsto que irias ser
punido por esses seus atos (Luciano Prom 20) 233
Por meio do personagem Hermes Luciano apresenta dois elementos que consideramos
fundamentais para a anaacutelise que propomos Primeiramente que o poder estabelecido no mundo
representado pelo escritor bem como naquele em que ele viveu natildeo permitia a contestaccedilatildeo das
decisotildees dos governantes Em segundo lugar o discurso de defesa proposto estava carregado
de denuacutencias O prometeu luciacircnico deixa claro que Zeus natildeo se preocupa com a comunidade
A forma de colocar o debate mimetiza a postura luciacircnica diante do poder estabelecido Nesse
caso observamos que Zeus se comportou como um tirano uma vez que como nos alerta
Aristoacuteteles ldquo[a tirania eacute hostil] contra os notaacuteveis elimina-os de forma oculta ou agraves claras e
exila-os como rivais e empecilhos ao exerciacutecio da autoridaderdquo (Aristoacuteteles Pol1311a 15-
18)234
Todavia Prometeu sabe que Heacuteracles o libertaraacute da aacuteguia e que chegaraacute o momento em
que Zeus o libertaraacute como pagamento de um segredo A conclusatildeo desse diaacutelogo se completaraacute
com o proacuteximo texto que analisamos
Nos Diaacutelogos dos deuses Luciano constroacutei cenas raacutepidas do cotidiano dos deuses e agrave
primeira vista os textos parecem bem superficiais Entretanto pouco a pouco vemos que o siacuterio
apresenta indiacutecios instigantes sobre a cultura poliacutetica de seu tempo sendo que a unidade desses
diaacutelogos pode ser conferida pela imagem de Zeus como analisamos no toacutepico seguinte No
primeiro diaacutelogo da coletacircnea dos Diaacutelogos dos deuses travado entre Zeus e Prometeu o Titatilde
suplica a Zeus a liberdade do castigo que lhe foi infringido no Caacuteucaso
Prometeu ndash Oacute Zeus solta-me que jaacute padeci horrivelmente
Zeus ndash O quecirc Soltar-te a ti que devias ter grilhetas ainda mais pesadas ter
todo o Caacuteucaso sobre tua cabeccedila e dezesseis abutres natildeo soacute a dilacerar-te o
fiacutegado mas tambeacutem a arrancar-te os olhos como castigo por nos teres
233 ldquoΕΡΜΗΣ
Οὐ ῥᾴδιον ὦ Προμηθεῦ πρὸς οὕτω γενναῖον σοφιστὴν ἁμιλλᾶσθαι πλὴν ἀλλὰ ὤνησο διότι μὴ καὶ ὁ Ζεὺς ταῦτα
ἐπήκουσέ σου εὖ γὰρ οἶδα ἑκκαίδεκα γῦπας ἂν ἐπέστησέ σοι τὰ ἔγκατα ἐξαιρήσοντας οὕτω δεινῶς αὐτοῦ
κατηγόρηκας ἀπολογεῖσθαι δοκῶν ἐκεῖνο δέ γε θαυμάζω ὅπως μάντις ὢν οὐ προεγίγνωσκες ἐπὶ τούτοις
κολασθησόμενοςrdquo 234 ldquoἐκ δημοκρατίας δὲ τὸ πολεμεῖν τοῖς γνωρίμοις καὶ διαφθείρειν λάθρᾳ καὶ φανερῶς καὶ φυγαδεύειν ὡς
ἀντιτέχνους καὶ πρὸς τὴν ἀρχὴν ἐμποδίουςrdquo
146
modelado esses seres que satildeo os homens por nos teres roubado o fogo235 e
teres criado as mulheres Seraacute preciso mencionar tambeacutem como me enganaste
na distribuiccedilatildeo da carne servindo-me ossos disfarccedilados nas gorduras e
guardando para ti a melhor das partes (Luciano D deor I1)236
No diaacutelogo Prometeu implora a piedade de Zeus uma vez que jaacute fora punido
Entretanto Zeus se coloca inatingiacutevel agraves suacuteplicas retomando as acusaccedilotildees tradicionais agrave
acusaccedilatildeo ao Titatilde Zeus se coloca como um tirano Diante dessa postura Prometeu propotildee um
acordo Revelaraacute uma informaccedilatildeo importante desde que tenha a liberdade Nesse breve diaacutelogo
como no decorrer dos outros diaacutelogos dos deuses Zeus se prepara em segredo para mais uma
aventura amorosa Prometeu diz ldquoSe eu te disser para onde eacute que tu te encaminhas neste
momento acreditaraacutes em mim e nas minhas restantes profeciasrdquo (Luciano D Deor I2)237
Diante da afirmativa de Zeus o Titatilde revela que o deus iraacute agrave casa de Teacutetis onde teraacute relaccedilotildees
sexuais com ela Diante do acerto ele permite que Prometeu faccedila a profecia que de fato lhe interessa
Assim se expressa Prometeu ldquoOacute Zeus natildeo tenhas relaccedilotildees com a Nereida pois se ela engravidar de ti
a crianccedila far-te-aacute o mesmo que tu fizeste ardquo (Luciano D Deor I 2)238 Diante do jogo literaacuterio o Titatilde
natildeo ousa mencionar que Zeus derrubou seu pai Cronos e se tornou o rei dos deuses pois o cuidado eacute
necessaacuterio diante daqueles que satildeo detentores do poder
No passo seguinte do diaacutelogo apresentado Prometeu utiliza-se de seus dons de prever o
futuro para conseguir a liberdade do Caacuteucaso Zeus que estaria de saiacuteda para ir agrave casa de Teacutetis
e se deitar com ela eacute advertido pelo Titatilde que se ele fizer isso ela teraacute um filho que faraacute o
mesmo que ele fez com Cronos ou seja que iraacute depor o pai e tomar seu lugar Zeus se furta de
manter relaccedilotildees com a divindade feminina e ordena a Hefesto que liberte o Titatilde Segundo
Rodolfo P Buzoacuten e Joseacute P Maksimczuk nesse trecho
Luciano lsquomanipularsquo o episoacutedio miacutetico da queda de Cronos para apresentar a
troca de mando como uma passagem da monarquia agrave tirania () A
comparaccedilatildeo entre a queda de Cronos e o hipoteacutetico rival de Zeus pelo trono eacute
uma falaacutecia as circunstacircncias os personagens e os motivos satildeo
completamente diferentes Mas Luciano muito habilmente o modifica e
235 Luis Seacutechan no livro Le mythe de Promeacutetheacute debate muitos pontos deste mito como o significado do conflito
deste com Zeus as artes do fogo e a metalurgia (SEacuteCHAN 1952 4) 236 ldquoΠΡΟΜΗΘΕΥΣ
Λῦσόν με ὦ Ζεῦ δεινὰ γὰρ ἤδη πέπονθα
ΖΕΥΣ
Λύσω σε φῄς ὃν ἐχρῆν βαρυτέρας πέδας ἔχοντα καὶ τὸν Καύκασον ὅλον ὑπὲρ κεφαλῆς ἐπικείμενον ὑπὸ
ἑκκαίδεκα γυπῶν μὴ μόνον κείρεσθαι τὸ ἧπαρ ἀλλὰ καὶ τοὺς ὀφθαλμοὺς ἐξορύττεσθαι ἀνθ ὧν τοιαῦθ ἡμῖν ζῷα
τοὺς ἀνθρώπους ἔπλασας καὶ τὸ πῦρ ἔκλεψας καὶ γυναῖκας ἐδημιούργησας ἃ μὲν γὰρ ἐμὲ ἐξηπάτησας ἐν τῇ νομῇ
τῶν κρεῶν ὀστᾶ πιμελῇ κεκαλυμμένα παραθεὶς καὶ τὴν ἀμείνω τῶν μοιρῶν σεαυτῷ φυλάττων τί χρὴ λέγεινrdquo 237 ldquoΠΡΟΜΗΘΕΥΣ
Ἢν εἴπω ἐφ ὅ τι βαδίζεις νῦν ἀξιόπιστος ἔσομαί σοι καὶ περὶ τῶν ὑπολοίπων μαντευόμενοςrdquo 238 ldquoΠΡΟΜΗΘΕΥΣ
Μηδέν ὦ Ζεῦ κοινωνήσῃς τῇ Νηρεΐδι ἢν γὰρ αὕτη κυοφορήσῃ ἐκ σοῦ τὸ τεχθὲν ἴσα ἐργάσεταί σε οἷα καὶ σὺ
ἔδρασας - rdquo
147
apresenta um Zeus que destronou seu pai silenciando seus motivos (BUZOacuteN
amp MAKSIMCZUK 201231)
Nosso ponto de vista eacute que Luciano tambeacutem se inspira em seu contexto no qual a
sucessatildeo imperial no periacuteodo dos Antoninos apresenta uma aparecircncia de tranquilidade Havia
um grande problema que era a ausecircncia de um regime juriacutedico para apresentar o nome que
deveria ser o Imperador Luciano viveu em um periacuteodo em que a propaganda imperial garantia
que o poder seria transmitido ao melhor entretanto sempre havia o risco de que esse poder
viesse a ser tomado por um filho de soberano que natildeo tivesse condiccedilotildees para tal Haacute aqui o
cuidado em dizer por meio da narrativa miacutetica retomada que se deve ter cuidado com os filhos
Natildeo acreditamos em uma mensagem direta ao governante pois nosso ponto de vista eacute de que
haacute aqui uma comunidade poliacutetica para a qual o texto luciacircnico se dirige e que essas pessoas satildeo
parte de uma pequena elite que apoia um novo governante Nesse sentido a profecia prometeica
refere-se a uma complexa rede de micropoderes dispersos nas cidades imperiais A narrativa
criada por Luciano reutiliza os mitos tradicionais para expressar sua postura referente ao poder
imperial A noccedilatildeo luciacircnica de que um governo que se comporte de maneira indevida pode ser
um mau governo fornece a tocircnica dos diaacutelogos natildeo se trata de oposiccedilatildeo mas de posiccedilatildeo diante
da realidade principalmente a partir de uma memoacuteria grega vinculada a uma instituiccedilatildeo
especiacutefica que eacute a tirania mas que no Impeacuterio Romano era um adjetivo usado para caracterizar
um mau governante
34 Espaccedilo e Narrativa miacutetica a representaccedilatildeo dos Tiranos entre gregos e
romanos
Nos toacutepicos anteriores vimos como haacute uma confluecircncia dos mitos com a Histoacuteria
nos textos luciacircnicos e que essa serve de mote para uma argumentaccedilatildeo poliacutetica Nesse passo
nos preocupamos em entrelaccedilar as imagens miacuteticas da chegada ao mundo dos mortos e da visita
do barqueiro do Hades Caronte agrave Terra com a apresentaccedilatildeo dos reis e tiranos gregos ou
melhor de homens que detinham o poder concentrado em suas matildeos Para isso nosso foco
recorta dois diaacutelogos maiores Caronte e os contempladores e A travessia para o Hades ou o
Tirano para anaacutelise O primeiro discorre sobre a visita do barqueiro ao mundo dos vivos
ciceroneado por Hermes Essa visita permite que ele observe a existecircncia humana com olhares
distanciados daquela que estaacute acostumado com os homens desesperados com a morte O outro
texto discorre principalmente sobre a chegada de um tirano ao Hades e seu julgamento Nos
148
dois diaacutelogos analisamos a representaccedilatildeo que Luciano cria dos tiranos tendo em vista os
elementos sobre a tirania que expressamos no toacutepico anterior
No mundo grego claacutessico e heleniacutestico ser um tirano significava assumir um cargo
especiacutefico com poderes e caracteriacutesticas proacuteprias Aristoacuteteles em sua Poliacutetica caracteriza a
tirania como um desvio da monarquia (Aristoacuteteles Pol 1311a 15) O filoacutesofo assim a
caracteriza ldquoA tirania () natildeo visa propriamente o bem comum mas tatildeo soacute o proveito pessoal
Enquanto a meta do tirano eacute o prazer a do rei eacute o bem Por essa razatildeo se explica de um lado
que o tirano ambicione a riqueza contrariamente ao rei que ambiciona a honrardquo (Aristoacuteteles
Pol 1311a2)239 Como jaacute vimos com o caso do Titatilde Prometeu Luciano enfatiza justamente
essas caracteriacutesticas nos tiranos poreacutem agora natildeo se trata de uma instituiccedilatildeo especiacutefica mas
de um qualificador do mau governante um alerta sobre a postura que um governante ruim pode
ter Trata-se de uma exegese do poder feita por meio dos diaacutelogos e natildeo de uma denuacutencia a
determinado governante
Como nos ensinou Chaiumlm Perelman em seu Tratado da argumentaccedilatildeo o objetivo
de toda argumentaccedilatildeo consiste em criar nos leitoresouvintes o anseio para a mudanccedila por meio
a incitar ou ampliar a adesatildeo dos homens agraves ideias que as teses defendidas expotildeem A accedilatildeo
manifestar-se-aacute em momento oportuno (PARELMAN 2005 50) As diferentes construccedilotildees
retoacutericas ou literaacuterias luciacircnicas objetivam argumentar por meio da construccedilatildeo e explicitaccedilatildeo
de caracteriacutesticas existentes em um mundo metanarrativo Os viacutenculos da narrativa com a
realidade satildeo intriacutensecos agrave sua existecircncia daiacute a ampliaccedilatildeo das narrativas e espaccedilos miacuteticos a
fim de fornecer estiacutemulo agrave reflexatildeo sobre a sociedade Todo texto vincula-se ao mundo do qual
ele fez parte mesmo quando suas colocaccedilotildees tenham pretensotildees universais As imagens
atendem a demandas de sentidos proacuteprias da conjuntura histoacuterica que lhe deu existecircncia
A argumentaccedilatildeo de Luciano foi eficaz Ele natildeo fez nenhuma revoluccedilatildeo ou
promoveu mudanccedilas socioeconocircmicas pois estas nunca estiveram em seu horizonte de
expectativas Em seu presente talvez esses futuros ainda natildeo eram possiacuteveis Sua narrativa
permite a denuacutencia da fragilidade da existecircncia perante a morte e do igualamento radical que
essa promove O riso mobilizado pela criacutetica luciacircnica faz os leitoresouvintes pensarem tal
como a argumentaccedilatildeo promoveria no momento oportuno a accedilatildeo Nosso objetivo eacute
compreender a construccedilatildeo do tirano luciacircnico tendo em vista a dissoluccedilatildeo do seu lugar de
audiecircncia e natildeo podemos esquecer que o tirano eacute ldquoaquele que em seu poder pessoal natildeo aceita
239 ldquoἡ δὲ τυραννίς ὥσπερ εἴρηται πολλάκις πρὸς οὐδὲν ἀποβλέπει κοινόν εἰ μὴ τῆς ἰδίας ὠφελείας χάριν ἔστι δὲ
σκοπὸς τυραννικὸς μὲν τὸ ἡδύ βασιλικὸς δὲ τὸ καλόν διὸ καὶ τῶν πλεονεκτημάτων τὰ μὲν χρημάτων τυραννικά
τὰ δ εἰς τιμὴν βασιλικὰ μᾶλλονrdquo
149
e natildeo pode aceitar a verdade porque natildeo faz e natildeo quer fazer senatildeo o que lhe aprazrdquo
(FOUCAULT 2011 51-52)
No texto Caronte ou os contempladores o velho barqueiro do Hades vem a Terra
contemplar a vida No diaacutelogo travado entre Caronte e Hermes eles observam de um lugar
alto os seres humanos e a forma despreocupada com que eles lidam com a vida sem se
lembrarem de que morreratildeo a qualquer momento Eles observam os homens com foco
primeiramente no atleta Miacutelon de Crotona que naquele momento eacute aplaudido pelos gregos por
carregar um touro mas sua gloacuteria eacute passageira e Caronte logo lembra
Caronte - Oacute Hermes com que mais justo motivo eles me aplaudiratildeo pelo
fato de eu em breve pegar nele e enfiar no barquinho quando ele vier ateacute noacutes
derrotado pelo mais invenciacutevel dos adversaacuterios ndash a Morte que sem ele disso
se aperceber lhe passaraacute uma rasteira Depois viraacute queixar-se a noacutes
recordando-se dessas coroas e dos aplausos Neste momento estaacute muito
orgulhoso pelo fato de ser muito admirado por ter carregado o touro E entatildeo
Pensamos noacutes porventura que ele encara a expectativa de morrer um dia
(Luciano Char 8)240
Esse trecho eacute importante pois marca o tom que todo o diaacutelogo apresenta Os
homens vivem sem se preocupar com a morte que cambia o discurso de lugar jaacute que as muitas
atitudes superficiais perdem o sentido O deslocamento faz com que toda a vida ganhe outra
significaccedilatildeo permite uma liberdade maior e nesse sentido potencializa as colocaccedilotildees
referentes ao mundo em que ele viveu
Nesse texto as duas divindades observam sujeitos muito especiacuteficos Nesse passo
nos interessamos principalmente pela percepccedilatildeo luciacircnica dos tiranos entendendo que o
escritor mobiliza a memoacuteria cultural helecircnica retomando cenas consagradas presentes em
outros escritores Por exemplo Luciano apresenta uma anedota bastante conhecida que se passa
entre Soacutelon e Creso241
Creso ndash Meu hoacutespede ateniense tu viste a minha riqueza os meus tesouros
todo o meu ouro em barra e toda a minha magnificecircncia Diz-me pois qual
de entre todos os homens consideras mais feliz
()
Soacutelon ndash Oacute Creso satildeo muito poucos os indiviacuteduos felizes Pelo que me diz
respeito de entre os que eu conheccedilo considero como sendo os mais felizes
240 ldquoΧΑΡΩΝ
Καὶ πόσῳ δικαιότερον ἂν ἐμέ ὦ Ἑρμῆ ἐπαινοῖεν ὃς αὐτόν σοι τὸν Μίλωνα μετ ὀλίγοι
συλλαβὼν ἐνθήσομαι ἐς τὸ σκαφίδιον ὁπόται ἥκῃ πρὸς ἡμᾶς ὑπὸ τοῦ ἀμαχωτάτου τῶν ἀνταγωνιστῶν
καταπαλαισθεὶς τοῦ Θανάτου μηδὲ συνεὶς ὅπως αὐτὸν ὑποσκελίζει κᾆτα οἰμώξεται ἡμῖν δηλαδὴ μεμνημένος τῶν
στεφάνων τούτων καὶ τοῦ κρότου νῦν δὲ μέγα φρονεῖ θαυμαζόμενος ἐπὶ τῇ τοῦ ταύρου φορᾷ τί δ οὖν οἰηθῶμεν
ἄρα ἐλπίζειν αὐτὸν καὶ τεθνήξεσθαί ποτεrdquo 241 Haacute no trecho um recurso estiliacutestico no qual o escritor coloca um diaacutelogo no interior do diaacutelogo entre Hermes
e Caronte
150
Cleacuteobis e Biacuteton filhos da sacerdotisa de Argos que morreram ambos
recentemente quando se atrelaram ao carro que levava a matildee ao templo
Creso ndash Seja Que esses dois tenham o primeiro lugar da felicidade E entatildeo
quem seraacute o segundo
Soacutelon ndash O ateniense Telo que viveu com muita dignidade e morreu pela
Paacutetria
Creso ndash Oacute meu malandro entatildeo natildeo te pareccedilo feliz
Soacutelon ndash Ainda natildeo sei oacute Creso uma vez que natildeo chegaste ao fim da tua vida
Realmente a morte eacute que faz um juiacutezo seguro nessa mateacuteria se a pessoa viveu
feliz ateacute o termo (Luciano Char 10)242
Essa estoacuteria foi narrada por Heroacutedoto no livro I das Histoacuterias (Herd Hist I 29-
33) texto bastante conhecido daqueles que haviam se formado segundo a Paideia helecircnica O
legislador ateniense faz parte das listas de saacutebios lendaacuterios do periacuteodo arcaico cuja fama e
sabedoria satildeo expressas por diversas anedotas como essa que foi narrada acima243 e Creso rei
de Liacutedia conhecido por sua magnificecircncia e compulsatildeo por oraacuteculos o que a levaraacute agrave ruiacutena244
O texto luciacircnico natildeo se preocupa com essa agrura isto eacute se Creso eacute um baacuterbaro
Luciano jaacute escrevia desse entre lugar que de certa forma o colocava como um baacuterbaro
helenizado Natildeo se trata de colocar agrave baila a identidade helecircnica neste instante o que seria
facilmente desmentido no decorrer do texto visto que as criacuteticas satildeo feitas indiscriminadamente
a gregos e baacuterbaros
Entretanto a apreciaccedilatildeo eacute direcionada aos governantes jaacute que o mesmo Creso
lamentaraacute nos Diaacutelogos dos mortos na representaccedilatildeo de sua chegada ao Hades como vimos
242 ldquoΚΡΟΙΣΟΣ
Ὦ ξένε Ἀθηναῖε εἶδες γάρ μου τὸν πλοῦτον καὶ τοὺς θησαυροὺς καὶ ὅσος ἄσημος χρυσός ἐστιν ἡμῖν καὶ τὴν
ἄλλην πολυτέλειαν εἰπέ μοι τίνα ἡγῇ τῶν ἁπάντων ἀνθρώπων εὐδαιμονέστατον εἶναι
[]
ΣΟΛΩΝ
Ὦ Κροῖσε ὀλίγοι μὲν οἱ εὐδαίμονες ἐγὼ δὲ ὧν οἶδα Κλέοβιν καὶ Βίτωνα ἡγοῦμαι εὐδαιμονεστάτους γενέσθαι
τοὺς τῆς ἱερείας παῖδας τῆς Ἀργόθεν τοὺς ἅμα πρῴην ἀποθανόντας ἐπεὶ τὴν μητέρα ὑποδύντες εἵλκυσαν ἐπὶ τῆς
ἀπήνης ἄχρι πρὸς τὸ ἱερόν
ΚΡΟΙΣΟΣ
Ἔστω ἐχέτωσαν ἐκεῖνοι τὰ πρῶτα τῆς εὐδαιμονίας ὁ δεύτερος δὲ τίς ἂν εἴη
ΣΟΛΩΝ
Τέλλος ὁ Ἀθηναῖος ὃς εὖ τ ἐβίω καὶ ἀπέθανεν ὑπὲρ τῆς πατρίδος
ΚΡΟΙΣΟΣ
Ἐγὼ δέ ὦ κάθαρμα οὔ σοι δοκῶ εὐδαίμων εἶναι
ΣΟΛΩΝ
Οὐδέπω οἶδα ὦ Κροῖσε ἢν μὴ πρὸς τὸ τέλος ἀφίκῃ τοῦ βίου ὁ γὰρ θάνατος ἀκριβὴς ἔλεγχος τῶν τοιούτων καὶ
τὸ ἄχρι πρὸς τὸ τέρμα εὐδαιμόνως διαβιῶναιrdquo 243 Esses personagens podem variar de acordo com a tradiccedilatildeo No texto A tradiccedilatildeo dos sete saacutebios o sapiens
enquanto paradigma de uma identidade Delfim Ferreira Leatildeo o analisa a partir da tradiccedilatildeo herodoteana e afirma
que o diaacutelogo supracitado eacute ldquoo relato mais significativo de todos a ponto de atingir o estatuto de modelo
paradigmaacutetico da forma como o diaacutelogo entre um saacutebio grego e um monarca oriental poderia ser abordadordquo
(LEAtildeO 2011 53) 244 Delfim Ferreira Leatildeo afirma que Plutarco retoma essa estoacuteria a fim de distinguir as praacuteticas e representaccedilotildees
proacuteprias dos gregos no sentido de opor o saacutebio grego a um soberano baacuterbaro o que distinguiria de Heroacutedoto cuja
narrativa tem caraacuteter universal (LEAtildeO 2011 105-106)
151
anteriormente Sofrendo por causas de seus tesouros Creso eacute o exemplo do governante vaidoso
que natildeo sabe que a morte chegaraacute a todos os viventes Luciano coloca mais uma vez a morte
como o problema seminal da existecircncia Como o proacuteprio Caronte repete diversas vezes
somente julgaremos essas vidas ldquodepois dessa barcardquo (παρὰ τὸ πορθμεῖον) (Luciano Char 10)
em referecircncia clara ao barco que ele comanda
Os governantes apresentados por Luciano expressam uma criacutetica bem contundente
agrave cultura poliacutetica de sua eacutepoca Sempre tendo em vista as premissas de Soacutelon soacute podemos dizer
que a vida de algueacutem eacute feliz com o teacutermino desta
No passo seguinte desse diaacutelogo haacute um debate sobre a relaccedilatildeo de Creso com o
oraacuteculo de Delfos Hermes comenta com Caronte essa postura desvendando uma caracteriacutestica
importante nesse contexto Hermes diz assim
Hermes - Oacute Caronte o Liacutedio natildeo suporta a franqueza e a verdade das
palavras mas pelo contraacuterio pareceu-lhe absurdo um homem pobre natildeo se
humilhar mas dizer livremente o que lhe vem agrave cabeccedila Mas passando algum
tempo haacute de se lembrar de Soacutelon quando for aprisionado e lanccedilado na fogueira
por Ciro Na verdade ouvi ainda recentemente Cloto ler o destino fiado para
cada pessoa onde este caso estava escrito Creso seria capturado por Ciro e
que o proacuteprio Ciro seria morto ali por aquela mulher (Luciano Char 13)245
O poder eacute contraposto agrave sabedoria e as palavras do saacutebio satildeo colocadas em risco
capital Seu conhecimento do futuro que aguarda aqueles personagens permite que Caronte
considere divertida aquela cena jaacute que a sabedoria do saacutebio se afirmaraacute de maneira contundente
Os homens desconhecem o seu futuro por esse motivo vivem sem se preocupar com o fim
Somente quando os homens morrem eacute que haacute um veredito final sobre sua felicidade e permite-
se dizer se algueacutem foi ou natildeo feliz como podemos observar nos comentaacuterios de Hermes e
Caronte do traacutegico destino de Creso e Ciro No entanto se a ruiacutena o aguardaraacute em um futuro
proacuteximo naquele momento ele eacute o governante tiracircnico Por mais que isso seja cocircmico sabe que
adiante teraacute uma vida marcada por desgraccedilas naquele momento ldquoquem ousaria olhaacute-lo de
frente246 esses tipos satildeo tatildeo altivos com as outras pessoasrdquo (Luciano Char 13)247 Como nos
ensinou Michel Foucault as novas assertivas de Soacutelon apresentam traccedilos da parreacutesia ou seja
245 ldquoΕΡΜΗΣ
Οὐ φέρει ὁ Λυδός ὦ Χάρων τὴν παρρησίαν καὶ τὴν ἀλήθειαν τῶν λόγων ἀλλὰ ξένον αὐτῷ δοκεῖ τὸ πρᾶγμα
πένης ἄνθρωπος οὐχ ὑποπτήσσων τὸ δὲ παριστάμενον ἐλευθέρως λέγων μεμνήσεται δ οὖν μικρὸν ὕστερον τοῦ
Σόλωνος ὅταν αὐτὸν δέῃ ἁλόντα ἐπὶ τὴν πυρὰν ὑπὸ τοῦ Κύρου ἀναχθῆναι ἤκουσα γὰρ τῆς Κλωθοῦς πρῴην
ἀναγινωσκούσης τὰ ἑκάστῳ ἐπικεκλωσμένα ἐν οἷς καὶ ταῦτα ἐγέγραπτο Κροῖσον μὲν
ἁλῶναι ὑπὸ Κύρου Κῦρον δὲ αὐτὸν ὑπ ἐκεινησὶ τῆς Μασσαγέτιδος ἀποθανεῖνrdquo 246 A proibiccedilatildeo a olhar no rosto dos governantes eacute uma caracteriacutestica das realezas heleniacutesticas Trata-se de conferir
sacralidade agrave pessoa do soberano 247 ldquoἀλλὰ νῦν τίς ἂν αὐτοὺς προσβλέψειεν οὕτως ὑπερφρονοῦντας τῶν ἄλλωνrdquo
152
ao ser sincero com o governante o legislador algueacutem coloca sua vida em risco (FOUCAULT
2011 65-66) como os tiranos se esquecem da morte nos escritos do samosatense
Outro tirano que Luciano destaca da memoacuteria cultural helecircnica eacute Poliacutecrates tirano
de Samos cuja bem-aventuranccedila era reconhecida por todos Havia uma anedota muito
conhecida referente ao seu anel248 como Poliacutecrates era extremamente beneficiado pela sorte
resolveu jogar no mar um anel valioso para ter uma perda e assim quebrar a sorte que tinha
entretanto alguns dias apoacutes o descarte um criado ao preparar a alimentaccedilatildeo encontra o anel
dentro de um peixe A cena eacute descrita desta maneira
Caronte - () Mas quem eacute aquele tipo oacute Hermes todo acolchetado num
manto puacuterpura com um diadema a quem o cozinheiro estaacute a dar um anel [que
achou] ao abrir o peixe
Numa ilha de ondas cercada
Dir-se-ia que eacute um rei249
Hermes - Mas que excelente paroacutedia oacute Caronte Pois estaacutes vendo Poliacutecrates
Tirano de Samos que se considera um homem totalmente feliz No entanto
traiacutedo e entregue ao Saacutetrapa Orete pelo seu criado Meacircndrio que estaacute ao seu
lado seraacute crucificado oacute infeliz caindo num breve instante do alto da sua
felicidade Este fato tambeacutem ouvi da boca de Cloto
Caronte ndash Como eu admiro esta nobre Cloto Queime-os ela corte lhes as
cabeccedilas crucifique-os para que eles saibam que satildeo homens Que eles sejam
elevados aos piacutencaros pois quanto mais alto caiacuterem mas dolorosa seraacute a
queda Entatildeo eu fartar-me-ei de rir ao reconhecer cada um deles na minha
barca todos nus sem trazerem consigo nem mantos de puacuterpura nem tiaras
nem tronos de ouro (Luciano Char 14)250
A narrativa sobre Poliacutecrates representava um cacircnone sobre a felicidade plena e
assim como os relatos sobre Creso simbolizava a queda a que todos estatildeo sujeitos
principalmente quando gozam da felicidade Por meio da traiccedilatildeo de um criado proacuteximo o
tirano foi entregue aos inimigos Discretamente como tecircm que ser os recados aos poderosos
Luciano lembra a finitude da vida e que essa iguala a todos mas tambeacutem ressalta que os campos
248 Heroacutedoto narrou essa famosa anedota referente ao anel de Poliacutecrates (Her Hist III 39-43) 249 Os dois trechos satildeo da Odisseacuteia (Hom Od I 50 I 80) 250 ldquoΧΑΡΩΝ
[] ἐκεῖνος δὲ τίς ἐστιν ὦ Ἑρμῆ ὁ τὴν πορφυρᾶν ἐφεστρίδα ἐμπεπορπημένος ὁ τὸ διάδημα ᾧ τὸν δακτύλιον ὁ
μάγειρος ἀναδίδωσι τὸν ἰχθὺν ἀνατεμών
νήσῳ ἐν ἀμφιρύτῃ βασιλεὺς δέ τις εὔχεται εἶναι
ΕΡΜΗΣ
Εὖ γε παρῳδεῖς ὦ Χάρων ἀλλὰ Πολυκράτην ὁρᾷς τὸν Σαμίων τύραννον πανευδαίμονα ἡγούμενον εἶναι ἀτὰρ
καὶ οὗτος αὐτὸς ὑπὸ τοῦ παρεστῶτος οἰκέτου Μαιανδρίου προδοθεὶς Ὀροίτῃ τῷ σατράπῃ ἀνασκολοπισθήσεται
ἅθλιος ἐκπεσὼν τῆς εὐδαιμονίας ἐν ἀκαρεῖ τοῦ χρόνου καὶ ταῦτα γὰρ τῆς Κλωθοῦς ἐπήκουσα
ΧΑΡΩΝ
Ἄγαμαι Κλωθοῦς γεννικῆς καῖε αὐτούς ὦ βελτίστη καὶ τὰς κεφαλὰς ἀπότεμνε καὶ ἀνασκολόπιζε ὡς εἰδῶσιν
ἄνθρωποι ὄντες ἐν τοσούτῳ δὲ ἐπαιρέσθων ὡς ἂν ἀφ ὑψηλοτέρου ἀλγεινότερον καταπεσούμενοι ἐγὼ δὲ
γελάσομαι τότε γνωρίσας αὐτῶν ἕκαστον γυμνὸν ἐν τῷ σκαφιδίῳ μήτε τὴν πορφυρίδα μήτε τιάραν ἢ κλίνην
χρυσῆν κομίζονταςrdquo
153
do poder colocam o soberano em condiccedilatildeo propiacutecia agraves traiccedilotildees daqueles que lhes satildeo proacuteximos
jaacute que a felicidade gera a inveja e o castigo das divindades
Caronte que contempla a chegada de todos os mortos faz a seguinte constataccedilatildeo
ao final do diaacutelogo
Caronte - Sim estou vendo tudo isso e agora percebo o que eacute que eles
consideram agradaacutevel durante a vida ou que coisa eacute essa cuja privaccedilatildeo os
enfurece Se considerarmos os seus reis que parecem ser as pessoas mais
felizes do mundo Aleacutem da instabilidade como tu dizes e da incerteza da
sorte verificaremos que no seu caso as situaccedilotildees desagradaacuteveis satildeo em
nuacutemero superior agraves agradaacuteveis temores perturbaccedilotildees inimizades
conspiraccedilotildees rancores e lisonjas De fato eles convivem com tudo isso E
deixo de lado os lutos as doenccedilas e os padecimentos que obviamente os
atacam em peacute de igualdade Ora se os seus males jaacute satildeo tatildeo grandes podeis
imaginar como seratildeo o dos simples particulares (Luciano Char 18)251
Luciano faz um inventaacuterio do que significa assumir o governo de uma cidade ou
de um impeacuterio Observemos o caso de Creso ou de Poliacutecrates um rei e um tirano que compotildeem
a memoacuteria histoacuterica greco-romana e submergem nas agruras da fortuna Luciano natildeo faz uma
distinccedilatildeo entre o rei e o tirano tal como foi feita por Aristoacuteteles Na verdade ele mostra com
sagacidade como os dois exemplos natildeo se distinguem em seus fins Creso eacute um rei que estaria
preocupado com bens materiais e poder enquanto Poliacutecrates natildeo eacute lembrado como tirano por
maldades Entendemos que Luciano nos alerta que qualquer governante pode vir a ser um tirano
no sentido que sua eacutepoca dava a essa palavra como sinocircnimo de mau governante Cloto a
Moira252 que enrola o fio da vida de cada mortal decide como se desenrolaraacute seu destino Logo
as peripeacutecias da existecircncia podem jogar agrave condiccedilatildeo de escravo eou prisioneiro quem estaacute em
tamanho destaque uma vez que as relaccedilotildees que se estabelecem com estes satildeo marcadas pela
bajulaccedilatildeo e pela inveja
As riquezas ou o poder natildeo compensam os infortuacutenios temores perturbaccedilotildees
inimizades conspiraccedilotildees rancores e lisonjas Os governantes do passado mobilizam uma memoacuteria que
se coaduna com a cultura poliacutetica romana Natildeo podemos esquecer que a situaccedilatildeo poliacutetica romana era
marcada pelo assassinato dos Imperadores sendo que poucos morreram em seu leito As conspiraccedilotildees
e traiccedilotildees satildeo a marca dessa forma de governo que natildeo tem a estabilidade em sua transiccedilatildeo para outro
251 ldquoὉρῶ ταῦτα πάντα καὶ πρὸς ἐμαυτόν γε ἐννοῶ ὅ τι τὸ ἡδὺ αὐτοῖς παρὰ τὸν βίον ἢ τί ἐκεῖνό ἐστιν οὗ
στερούμενοι ἀγανακτοῦσιν ἢν γοῦν τοὺς βασιλέας αὐτῶν ἴδῃ τις οἵπερ εὐδαιμονέστατοι εἶναι δοκοῦσιν ἔξω τοῦ
ἀβεβαίου ὡς φὴς καὶ ἀμφιβόλου τῆς τύχης πλείω τῶν ἡδέων τὰ ἀνιαρὰ εὑρήσει προσόντα αὐτοῖς φόβους καὶ
ταραχὰς καὶ μίση καὶ ἐπιβουλὰς καὶ ὀργὰς καὶ κολακείας τούτοις γὰρ ἅπαντες σύνεισιν ἐῶ πένθη καὶ νόσους καὶ
πάθη ἐξ ἰσοτιμίας δηλαδὴ ἄρχοντα αὐτῶν ὅπου δὲ τὰ τούτων πονηρά λογίζεσθαι καιρὸς οἷα τὰ τῶν ἰδιωτῶν ἂν
εἴηrdquo 252 As trecircs Moiras satildeo irmatildes que representam o destino humano Atroacutepo fiava a vida humana Cloto enrolava o fio
Laacutequesis cortava a vida humana
154
governante Mesmo com tamanhos infortuacutenios os governantes ainda carregam as mesmas desditas que
os meros mortais
O espaccedilo do Palaacutecio eacute representado por Luciano como um ambiente propicio agrave
deslealdade Por exemplo no diaacutelogo maior Icaromenipo ou sobre as nuvens Menipo com asas de uma
aacuteguia e de um abutre sobe aos ceacuteus e observa os homens Sua exposiccedilatildeo da vida nas residecircncias dos
governantes retoma as colocaccedilotildees apresentadas anteriormente Icaromenipo vecirc a seguinte cena
Olhando laacute para baixo para a Terra distinguia nitidamente as cidades as
pessoas e as suas accedilotildees natildeo soacute as que se passavam ao ar livre mas tambeacutem
as que se praticavam dentro das casas onde as pessoas julgavam passar
despercebidas como por exemplo253 Ptolomeu254 a ter relaccedilotildees com a sua
irmatilde o filho de Lisiacutemaco255 a conspirar contra o pai Antiacuteoco256 filho de
Seleuco a fazer agraves escondidas sinais agrave sua madrasta Estratonice o tessaacutelico
Alexandre257 a ser assassinado por sua esposa Antiacutegono a cometer adulteacuterio
com a esposa do seu filho o filho de Aacutetalo258 vertendo veneno para seu pai
noutro local Aacutersaces assassinando a jovem o eunuco Aacuterbaces puxando da
espada contra Aacutersaces Espatino da Meacutedia a ser arrastado para fora da sala do
banquete pelos guardas que lhe pegavam pelos peacutes e com um sobrolho ferido
por uma taccedila de ouro E cenas idecircnticas a estas poderiam ver-se na Liacutebia e nos
palaacutecios dos Citas e Traacutecios pessoas a praticar adulteacuterio a assassinar a
conspirar a raptar a jurar falso aterrorizadas e traiacutedas pelos seus familiares
() as cenas dos reis me proporcionaram um passatempo tatildeo divertido
(Luciano Icar 15-16)259
A imagem vista por Icaromenipo evidencia como o poder estaacute cercado de adulteacuterio
assassinato conspiraccedilatildeo sequestros e falsos juramentos pois natildeo se pode confiar nem mesmo nos
familiares mais proacuteximos O riso dessa imagem enfatiza que haacute muitas agruras no poder bem como
deixa claro que o poder vive em uma constante possibilidade de traiccedilatildeo quadro que serve para as
realezas heleniacutesticas mas natildeo estaacute distante dos palaacutecios romanos
253 Os reis e tiranos a seguir satildeo pouco conhecidos dos historiadores sendo que alguns natildeo podem ser
comprovados Eacute interessante notar como eles estatildeo vinculados ao periacuteodo heleniacutestico posterior a Alexandre
Magno 254 Ver nota 144 255 Lisimaco (c 360-280 aC) eacute um general macedocircnico e rei da Traacutecia Era amigo de infacircncia de Alexandre 256 Antioco I Soter (324-261 a C) foi rei selecircucida filho de Seleuco I 257 Alexandre tirano de Fera cidade da Tessaacutelia 258 Existem trecircs Aacutetalos I Soter II Filadelfo III Filomentor que satildeo governantes de Peacutergamo O terceiro deixou
seu reino em testamento para Roma 259 ldquoκατακύψας γοῦν ἐς τὴν γῆν ἑώρων σαφῶς τὰς πόλεις τοὺς ἀνθρώπους τὰ γιγνόμενα καὶ οὐ τὰ ἐν ὑπαίθρῳ
μόνον ἀλλὰ καὶ ὁπόσα οἴκοι ἔπραττον οἰόμενοι λανθάνειν Πτολεμαῖον μὲν συνόντα τῇ ἀδελφῇ Λυσιμάχῳ δὲ
τὸν υἱὸν ἐπιβουλεύοντα τὸν Σελεύκου δὲ Ἀντίοχον Στρατονίκῃ διανεύοντα λάθρα τῇ μητρυιᾷ τὸν δὲ Θετταλὸν
Ἀλέξανδρον ὑπὸ τῆς γυναικὸς ἀναιρούμενον καὶ Ἀντίγονον μοιχεύοντα τοῦ υἱοῦ τὴν γυναῖκα καὶ Ἀττάλῳ τὸν
υἱὸν ἐγχέοντα τὸ φάρμακον ἑτέρωθι δ αὖ Ἀρσάκην φονεύοντα τὸ γύναιον καὶ τὸν εὐνοῦχον Ἀρβάκην ἕλκοντα
τὸ ξίφος ἐπὶ τὸν Ἀρσάκην Σπατῖνος δὲ ὁ Μῆδος ἐκ τοῦ συμποσίου πρὸς τῶν δορυφορούντων εἵλκετο ἔξω τοῦ
ποδὸς σκύφῳ χρυσῷ τὴν ὀφρὺν κατηλοημένος ὅμοια δὲ τούτοις ἔν τε Λιβύῃ καὶ παρὰ Σκύθαις καὶ Θρᾳξὶ γινόμενα
ἐν τοῖς βασιλείοις ἦν ὁρᾶν μοιχεύοντας φονεύοντας ἐπιβουλεύοντας ἁρπάζοντας ἐπιορκοῦντας δεδιότας ὑπὸ
τῶν οἰκειοτάτων προδιδομένους
Καὶ τὰ μὲν τῶν βασιλέων τοιαύτην παρέσχε μοι τὴν διατριβήν []rdquo
155
Luciano movimenta a memoacuteria cultural disponiacutevel transmitida por meio da formaccedilatildeo
escolar que por sua vez orienta a leitura dos textos que satildeo referecircncia em cada gecircnero Nesse sentido
a leitura de Homero e de Heroacutedoto faz parte do curriacuteculo bem como o estudo dessas anedotas que satildeo
amiuacutede entregues aos jovens para que eles treinem sua capacidade argumentativa e expositiva Desse
modo essas recordaccedilotildees tecircm alto poder argumentativo jaacute que as mesmas compotildeem um acervo
disponiacutevel a todos
Entretanto o siacuterio se utiliza de outros recursos a fim de falar sobre os governantes No
diaacutelogo A travessia para o Hades ou O Tirano ele retoma o tema da chegada ao Hades Entretanto ele
completa o debate com o julgamento dos mortos por Radamanto Aleacutem desse juiz outros personagens
miacuteticos fazem parte do diaacutelogo entre Caronte Hermes a Moira Cloto bem como a Eriacutenia260 Tisiacutefone
Haacute um filoacutesofo ciacutenico chamado Ciniacutesco e Micilo (um sapateiro) caracterizado por ser bem pobre e o
tirano Megapentes261
O enredo do diaacutelogo primeiramente coloca Cloto e Caronte discutindo sobre o atraso de
Hermes lembrando que este uacuteltimo tem algumas caracteriacutesticas natildeo tatildeo honestas como ser um exiacutemio
ladratildeo Em um segundo momento chega o condutor de almas cansado jaacute que um dos mortos teria
tentado fugir Trata-se de Megapentes um tirano Em seguida os mortos entram na barca e satildeo
conferidos por Cloto O tirano tenta de todas as formas convencer a Moira de retornar a terra Micilo
um sapateiro comenta sobre a diferenccedila entre a morte de um rico e a de um pobre Haacute finalmente o
julgamento dos mortos A hipoacutetese que levantamos eacute que o documento ora analisado refere-se com muita
proximidade ao poder imperial em um aspecto teoacuterico pois observamos que Luciano natildeo dirige sua
criacutetica agrave pessoa de um Imperador em particular mas traccedila elementos que expotildeem o que levaria um
priacutencipe a ser um mau governante Desse modo trata-se de um texto que reflete sobre o poder natildeo sobre
determinado Imperador
Como jaacute enfatizamos algumas vezes as criacuteticas ao Impeacuterio e a seu governante devem ser
bem veladas assim acreditamos que Luciano retoma as insiacutegnias do poder romano a fim de falar do
poder imperial A estrateacutegia retoacuterica eacute colocar em cena um tirano fictiacutecio cujas praacuteticas e representaccedilotildees
fizessem parte do domiacutenio comum da cultura poliacutetica de sua eacutepoca Dessa forma a criacutetica faz-se com
mais ecircnfase
Analisemos a representaccedilatildeo desse Tirano ele tenta persuadir Hermes e Cloto para
retornar agrave vida e utiliza os argumentos mundanos de que precisa terminar uma obra tem de dar
instruccedilotildees a sua mulher precisa revelar o local secreto em que escondia seu tesouro e precisa vingar-se
de seus inimigos (Luciano Cat 8) No diaacutelogo os bens do Tirano ficam com seus inimigos os mesmos
260 As Eriacutenias tambeacutem chamadas Eumecircnides (benevolentes forma eufemiacutestica que tenta aplacar a fuacuteria destas)
satildeo trecircs divindades pertencentes ao Hades Alecto Megera e Tisiacutefone Satildeo representadas com tochas e serpentes
na cabeccedila e sempre seguram um chicote 261 Etimologicamente esse nome significa cheio de afliccedilotildees
156
que lhe causaram a morte As chantagens e propinas natildeo lhe satildeo uacuteteis Cloto o critica e questiona ldquoAinda
conservas na memoacuteria ridiacutecula criatura o ouro e os talentosrdquo (Luciano Cat 9)262
O tirano mesmo depois de morto deseja se impocircr sobre os inimigos aleacutem do desejo de
construir grandes monumentos para marcar sua memoacuteria Por fim ele inverte a loacutegica da renuacutencia e
propotildee o negoacutecio que mais espanta Cloto Ele oferece o filho em troca dele mesmo no que fica sabendo
que o filho morreraacute em seguida assassinado pelo novo rei A causa da morte do Tirano foi a traiccedilatildeo
daqueles que lhe eram proacuteximos Foi envenenado em um banquete
Em seguida o Tirano pergunta a Cloto o que ocorreraacute apoacutes a sua morte
Cloto ndash Entatildeo vai ouvindo pois ao tomares conhecimento ficaraacutes ainda mais
aflito O teu escravo Midas casaraacute com a tua mulher aliaacutes desde a muito ele
era seu amante
Megapentes - Que grande malandro Eu que persuadido por ela lhe concedi
a liberdade
Cloto ndash A tua filha seraacute inscrita entre as concubinas do atual tirano e os bustos
e as estaacutetuas que a cidade durante muito tempo erigiu em tua honra seratildeo
derrubadas e serviratildeo de risota para os espectadores
Megapentes ndash Diz-me caacute dentre os meus amigos natildeo haveraacute nem um que
fique indignado com esses atos
Cloto ndash Mas quem eacute que era teu amigo E por que motivo se tornara tal
Entatildeo natildeo sabes que aqueles que se ajoelhavam aos teus peacutes elogiando cada
uma das coisas que dizias ou fazias agiam quer por medo quer por esperanccedila
amigos sim mas do teu poder e soacute olhando as oportunidades
Megapentes - E no entanto nos banquetes ao fazerem libaccedilotildees desejavam-
me em altas vozes muitas e grandes felicidades cada um deles afirmando-se
prontos a morrer se fosse preciso no meu lugar enfim soacute juravam em meu
nome (Luciano Cat 11) 263
Essa longa citaccedilatildeo eacute necessaacuteria para observarmos a complexidade da
representaccedilatildeo criada por Luciano sobre os tiranos e seus ldquoamigosrdquo Como afirmou David
262 ldquoΚΛΩΘΩ
Ἔτι γὰρ χρυσόν ὦ γελοῖε καὶ τάλαντα διὰ μνήμης ἔχειςrdquo 263 ldquoΚΛΩΘΩ
Ἄκουε μᾶλλον γὰρ ἀνιάσῃ μαθών τὴν μὲν γυναῖκα Μίδας ὁ δοῦλος ἕξει καὶ πάλαι δὲ αὐτὴν ἐμοίχευεν
ΜΕΓΑΠΕΝΘΗΣ
Ὁ κατάρατος ὃν ἐγὼ πειθόμενος αὐτῇ ἀφῆκα ἐλεύθερον
ΚΛΩΘΩ
Ἡ θυγάτηρ δέ σοι ταῖς παλλακίσι τοῦ νυνὶ τυραννοῦντος ἐγκαταλεγήσεται αἱ εἰκόνες δὲ καὶ ἀνδριάντες οὓς ἡ
πόλις ἀνέστησέ σοι πάλαι πάντες ἀνατετραμμένοι γέλωτα παρέξουσι τοῖς θεωμένοις
ΜΕΓΑΠΕΝΘΗΣ
Εἰπέ μοι τῶν φίλων δὲ οὐδεὶς ἀγανακτήσει τοῖς δρωμένοις
ΚΛΩΘΩ
Τίς γὰρ ἦν σοι φίλος ἢ ἐκ τίνος αἰτίας γενόμενος ἀγνοεῖς ὅτι πάντες οἱ καὶ προσκυνοῦντες καὶ τῶν λεγομένων
καὶ πραττομένων ἕκαστα ἐπαινοῦντες ἢ φόβῳ ἢ ἐλπίσι ταῦτα ἔδρων τῆς ἀρχῆς ὄντες φίλοι καὶ πρὸς τὸν καιρὸν
ἀποβλέποντες
ΜΕΓΑΠΕΝΘΗΣ
Καὶ μὴν σπένδοντες ἐν τοῖς συμποσίοις μεγάλῃ τῇ φωνῇ ἐπηύχοντό μοι πολλὰ καὶ ἀγαθά προαποθανεῖν ἕκαστος
αὐτῶν ἕτοιμος εἰ οἷόν τε εἶναι καὶ ὅλως ὅρκος αὐτοῖς ἦν ἐγώrdquo
157
Konstan ldquoNo meio palaciano o problema da amizade era complicado pela autoridade absoluta
do Imperador e a tradiccedilatildeo orgulhosa da classe senatorialrdquo (KONSTAN 2005 208)
Susana M Lizcano Rejano (2000) no artigo intitulado El Toraxis de Luciano de
Samoacutesata um paradigma de la amistad entre griegos y baacuterbaros ressalta que natildeo houve uma
discussatildeo teoacuterica aprofundada sobre a amizade o que seria uma consequecircncia do contexto
poliacutetico caracterizado pela ausecircncia de condiccedilotildees de liberdade de palavra e atuaccedilatildeo Essa
impossibilidade da sinceridade em espaccedilos puacuteblicos fez com que o debate acerca da amizade
ficasse restrito ao espaccedilo privado da vida dos cidadatildeos o que natildeo implica supor que essas
relaccedilotildees perderam seu espaccedilo social muito pelo contraacuterio ldquoa amizade passou a ser considerada
natildeo somente um espaccedilo de refuacutegio pessoal como um meio de melhorar o status social e apoio
para uma carreira poliacuteticardquo (LIZCANO REJANO 2000 229-230)
O tirano fica no lugar propiacutecio agrave bajulaccedilatildeo e agrave traiccedilatildeo Nesse caso o tirano eacute traiacutedo
tanto pelo escravo que estaacute em uma diferenciaccedilatildeo social vertical quanto pelos amigos que
supostamente encontram-se em uma situaccedilatildeo horizontal Dizemos supostamente por natildeo ser
possiacutevel ter claro que haacute um laccedilo genuiacuteno de amizade em um espaccedilo no qual o poder reina e
aquele que se encontra no topo pode executar a quem lhe aprouver Natildeo haacute qualquer legislaccedilatildeo
que limite os poderes de um soberano romano Paul Veyne afirma que ldquoO priacutencipe na verdade
eacute todo-poderoso Seu poder eacute mais absoluto completo e ilimitado possiacutevel natildeo eacute compartilhado
com ningueacutem assim como a ningueacutem ele tem de prestar contasrdquo (VEYNE 2009 9) Esse poder
somente eacute controlado com a eliminaccedilatildeo capital daquele que veste a puacuterpura
Outro ponto de aproximaccedilatildeo cultural que temos desse texto com a cultura poliacutetica
romana eacute o apagamento da memoacuteria dos feitos do detentor do poder por meio da destruiccedilatildeo de
signos que representam o poder do mau governante Remete-se agrave damnatio memoriae que era
uma ordem senatorial que obrigava o apagamento das imagens do governante considerado ruim
a fim de suprimir da memoacuteria romana os feitos deste Por exemplo dever-se-ia apagar
inscriccedilotildees monumentais moedas com remissotildees agravequele que foi banido ou morto entre outros
expedientes Antes do tempo em que Luciano escreveu os Imperadores Caliacutegula Nero Galba
Viteacutelio Oto e Domiciano haviam sido condenados pelo Senado a terem suas imagens e registros
apagados de todos os documentos monumentos e moedas oficiais
Trata-se de um apagamento de rastros executado oficialmente por uma ordem
institucional ou seja uma forma de punir aquele que trairam Roma com o esquecimento Como
afirma Jacques Le Goff os Imperadores Romanos satildeo presos ao deliacuterio da memoacuteria epigraacutefica
na tentativa de marcar indelevelmente seu nome nos monumentos e construccedilotildees a fim de evitar
o desaparecimento da memoacuteria de seus feitos Sublinhou ainda que
158
o Senado Romano angariado e por vezes dizimado pelos Imperadores
encontra uma arma contra a tirania imperial Eacute a damnatio memoriae que faz
desaparecer o nome do imperador defunto dos documentos de arquivo e das
inscriccedilotildees monumentais Ao poder pela memoacuteria responde a destruiccedilatildeo da
memoacuteria (LE GOFF 1990 442)
Eacute justamente nesses aspectos que Luciano enfatiza sua criacutetica no apagamento das
inscriccedilotildees que remetem agrave memoacuteria daquele que eacute considerado um mau Imperador Megapentes
teraacute todos os seus monumentos derrubados servindo de riso a todos Desde o caso de Tersites
que apanha de Odisseu no canto II da Iliacuteada o riso tem a funccedilatildeo de rebaixar humilhar Trata-
se de um mote famoso o riso do inimigo na tradiccedilatildeo literaacuteria grega principalmente na trageacutedia
grega na qual o riso aparece frequentemente associado agrave agressatildeo natildeo violenta264 (BARBOSA
LAGE 2006 68)
Um detalhe nesse passo remete agrave figura do Tirano ao Imperador Domiciano265
a pretensatildeo de ser uma divindade quando os convidados juravam em seu nome e declaravam
publicamente que o consideravam um Deus ou assim fingiam
O texto deixa muito clara a artificialidade da vida do Tirano a famiacutelia dissolvida
pois sua mulher casa-se com um escravo a filha torna-se concubina do novo Tirano seu filho
seraacute assassinado Todo o ambiente no qual o Tirano se insere estaacute corrompido Luciano natildeo
poupa tintas para construir esse cenaacuterio
Em seguida o Tirano relata a Cloto que assim que foi dado por morto seu escravo
Caacuterion levou uma de suas concubinas para a sala onde seu corpo se encontrava e fechando a
porta transou com a mulher Depois de se satisfazer disse ao corpo inerte ldquoTu homenzinho
repugnante deste-me pancada muitas vezes sem eu ter feito qualquer malrdquo (Luciano Cat
12)266 Em seguida esbofeteou o corpo inerte e lhe cuspiu fortemente no rosto O morto tomado
de oacutedio natildeo pode fazer nada
Quando ouviram barulhos de pessoas se aproximando ele saiu do aposento e a
mulher fingiu sofrer a perda O cenaacuterio do palaacutecio torna-se o palco para a falsidade a mentira
e a bajulaccedilatildeo aleacutem de ensejar uma seacuterie de atitudes estrateacutegicas daqueles que estatildeo em condiccedilatildeo
subalterna politicamente e socialmente Trata-se de posicionamentos astuciosos dos grupos
marginalizados ou como chamou Certeau satildeo as tretas do fraco Uma vez que ldquoo cotidiano se
264 O livro de Orestis Karavaacutes apresenta um levantamento exaustivo da presenccedila de citaccedilotildees dos tragedioacutegrafos
bem como anaacutelise do uso de termos teacutecnicos da trageacutedia nos escritos luciacircnicos (KARAVAS 2005) o que permite
analisar o uso que o siacuterio faz do legado literaacuterio helecircnico em sua criaccedilatildeo literaacuteria 265 Segundo Suetocircnio o Imperador Domiciano exigiu que fosse chamado de ldquoDeus e senhorrdquo esto eacute dominus et
deus noster (Suet Dom 13 4) 266 ldquolsquoΣὺ μέντοιrsquo φησίν lsquoὦ μιαρὸν ἀνθρώπιον πληγάς μοι πολλάκις οὐδὲν ἀδικοῦντι ἐνέτειναςrsquordquo
159
inventa de mil maneiras de caccedila natildeo autorizadardquo (CERTEAU 2007 38) Ou seja existe na
sociedade um poder disciplinador que organiza e que impotildeem regras de conduta entretanto
sempre existem espaccedilos para que os indiviacuteduos burlem o sistema por meio das mais variadas
astuacutecias
No passo seguinte Cloto diz para o Tirano parar com as ameaccedilas e embarcar jaacute
que iraacute ao tribunal do Hades No que o Tirano pergunta ldquoMas quem se atreveraacute a lanccedilar o seu
voto contra um tiranordquo (Luciano Cat 13)267 A moira lembra novamente que contra um tirano
ningueacutem se levantaria mas que ele eacute apenas um morto e a morte iguala a todos ricos e pobres
Agrave maneira do Aquiles homeacuterico que preferia ser um escravo na Terra a reinar
entre os mortos (Homero Od XI 489-491) Megapentes suplica agrave Moira que ele volte como
escravo natildeo se importando em natildeo ser rei Natildeo conseguindo dissuadir a divindade do mundo
inferior tendo de entrar no barco sob vigilacircncia de todos principalmente do ciacutenico ele exige
um lugar de honra
No passo seguinte Luciano faz um contraste interessante que permite que a
denuacutencia venha de quem estaacute em condiccedilatildeo subalterna O sapateiro Micilo assim discorre sobre
sua situaccedilatildeo
A minha situaccedilatildeo natildeo eacute igual agrave dos ricos na verdade as nossas vidas satildeo ()
diametralmente opostas o tirano que enquanto vivo parecia feliz temido e
admirado por toda gente agora ao deixar tanto ouro e tanta prata tanta roupa
e tantos cavalos tantos banquetes belos rapazinhos e formosas mulheres eacute
claro que ficou triste e amargurado ao ver-se privado desses bens (Luciano
Cat 14)268
O olhar do sapateiro vem de fora nesse sentido sua visatildeo eacute harmoniosa e natildeo
consegue ver as muacuteltiplas agruras vividas por quem ocupa tais espaccedilos de poder Em seguida
Luciano relaciona a dificuldade de esquecer os bens terrenos com um visco269 A memoacuteria
marcaria a alma do morto e esse natildeo poderia esconder seus crimes270 As almas dos mortos
267 ldquoΜΕΓΑΠΕΝΘΗΣ
Καὶ τίς ἀξιώσει κατ ἀνδρὸς τυράννου ψῆφον λαβεῖνrdquo 268 ldquoἄλλως τε οὐδ ὅμοια τἀμὰ τοῖς τῶν πλουσίων ἐκ διαμέτρου γὰρ ἡμῶν οἱ βίοι φασίν ὁ μέν γε τύραννος
εὐδαίμων εἶναι δοκῶν παρὰ τὸν βίον φοβερὸς ἅπασι καὶ περίβλεπτος ἀπολιπὼν χρυσὸν τοσοῦτον καὶ ἀργύριον
καὶ ἐσθῆτα καὶ ἵππους καὶ δεῖπνα καὶ παῖδας ὡραίους καὶ γυναῖκας εὐμόρφους εἰκότως ἠνιᾶτο καὶ ἀποσπώμενος
αὐτῶν ἤχθετοrdquo 269 Haacute nesse ponto um elemento bastante interessante que eacute uma teoria da memoacuteria nos escritos de Luciano jaacute que
se trata de uma concepccedilatildeo que entende que os nossos atos ruins ficam marcados em nossa alma ou seja um exame
da alma do morto permite que o Juiz saiba se ele foi ou natildeo uma boa pessoa 270 Eacute interessante notar como em outro diaacutelogo maior Menipo ou a nequiomancia haacute a indicaccedilatildeo de que quem faz
a acusaccedilatildeo do morto eacute a sombra deste que eacute a melhor testemunha ldquouma vez que estatildeo sempre juntinhas aos nossos
corpos e nunca se afastam delesrdquo (Luciano Nec 11)
160
perdem a coragem pois se desmontam agrave medida que chegam proacuteximos aos portotildees do Hades
e os ricos se entregam ao desespero
Para Micilo o Hades funciona muito bem ele natildeo precisa se envergonhar mais
do seu manto que jaacute natildeo se distingue do manto puacuterpura do tirano natildeo tem credores nem passa
frio ou fome natildeo adoece nem eacute surrado pelos poderosos (Luciano Cat 15 22)
Trata-se das insiacutegnias do poder principalmente do poder no periacuteodo em que o
siacuterio viveu Ter um Imperador no sistema poliacutetico em que eles viviam era inevitaacutevel mas esse
natildeo precisava ser um tirano Os indiacutecios que levantamos expressam as dificuldades para o
detentor do poder gozar de amizades verdadeiras e sinceras o Palaacutecio como palco de
veleidades a inveja constante a traiccedilatildeo como vimos em outros momentos O Tirano luciacircnico
usa um manto puacuterpura271 No texto Micilo diz que
Laacute em cima morava perto do tirano pelo que via perfeitamente o que se
passava em sua casa afigurava-se-me entatildeo algueacutem igual aos deuses
considerava-o feliz ao ver o esplendor de sua puacuterpura a multidatildeo de
acompanhantes o ouro as taccedilas cravejadas de pedras preciosas e os leitos com
peacutes de prata (Luciano Cat 16) 272
Aleacutem da puacuterpura que seraacute citada outra vez a seguir quando Micilo fala do ldquosangue
do molusco do mar Lacocircnicordquo273 (Luciano Cat 16) ele se refere ao molusco gastroacutepode usado
na fabricaccedilatildeo da puacuterpura que era usada em Roma para distinguir a ordem na qual cada indiviacuteduo
se inseria sendo que o Impeacuterador utilizava um manto colorido com essa substacircncia
O texto Menipo ou neciomancia apresenta o julgamento de outro tirano Haacute uma
cena interessante que destoa das muitas apariccedilotildees dos tiranos ateacute entatildeo uma vez que ele eacute
condenado e em seguida a atuaccedilatildeo de um retor faz com que ele seja solto Apresentado diante
de Minos segue-se agrave seguinte cena
Finalmente o senhor aparecendo-lhes vestido de puacuterpura coberto de ouro e
todo garrido julgava que tornava felizes e venturosos aqueles que o
saudavam deixando-os beijar-lhe o peito ou oferecendo-lhes a matildeo direita E
eles ao ouvirem-me ficavam muito tristes
271 Custoacutedio Marqueijo tradutor das obras completas de Luciano publicadas em Portugal insere neste passo entre
colchetes a palavra faixa o que eacute um desserviccedilo para o leitor e uma superinterpretaccedilatildeo jaacute que essa pequena palavra
amplia a imagem apresentada por Luciano como os Senadores e cavaleiros usavam faixas puacuterpuras em suas
tuacutenicas Na nota seguinte o tradutor portuguecircs faz uma segunda inferecircncia que a nosso ver se encontra errada pois
ele afirma que mais que ao Imperador Luciano estaacute a pensar nos tiranos orientais Nossa opiniatildeo eacute que o siacuterio usa
os tiranos orientais a fim de falar dos e aos Imperadores Romanos 272 ldquoπαροικῶν ἄνω τῷ τυράννῳ πάνυ ἀκριβῶς ἑώρων τὰ γιγνόμενα παρ αὐτῷ καί μοι ἐδόκει τότε ἰσόθεός τις εἶναι
τῆς τε γὰρ πορφύρας τὸ ἄνθος ὁρῶν ἐμακάριζον καὶ τῶν ἀκολουθούντων τὸ πλῆθος καὶ τὸν χρυσὸν καὶ τὰ
λιθοκόλλητα ἐκπώματα καὶ τὰς κλίνας τὰς ἀργυρόποδαςrdquo 273 ldquo[] καὶ μακαρίζων ἐπὶ τῷ αἵματι τῶν ἐν τῇ Λακωνικῇ θαλάττῃ κοχλίδωνrdquo
161
Todavia Minos pronunciou uma sentenccedila favoraacutevel Foi o caso que tendo
Dioniacutesio da Siciacutelia sido acusado por Diacuteon de muitos e horriacuteveis crimes de
impiedade testemunhados pela sua sombra e estando prestes a ser lanccedilado agrave
Quimera apresentou-se Aristipo de Cirene mdash tido em grande consideraccedilatildeo e
tem enorme influecircncia no reino subterracircneo mdash que o livrou da condenaccedilatildeo
alegando o facto de Dioniacutesio ter sido generoso a dar dinheiro a muitos homens
de letras (Luciano Nec 12-13)274
Observemos que Luciano valoriza o viacutenculo de mecenato entre homens de letras
e os governantes Mesmo em sua arrogacircncia que eacute caracterizada por suas atitudes o siacuterio deixa
claro que no espaccedilo do Hades a fala eacute um dos poucos bens que natildeo satildeo perdidos e que ter ao
seu lado pessoas com essas habilidades pode ser uacutetil mesmo no mundo dos mortos Outro
elemento interessante eacute a sugestatildeo (in)discreta de que ele dava muito dinheiro aos homens de
letras Nesse passo observamos o Luciano escritor amante das letras e membro de um grupo
social bem especiacutefico Essa eacute uma constataccedilatildeo um tanto oacutebvia uma vez que os homens sempre
escrevem de lugares sociais definidos
Portanto haacute uma ampla exegese das relaccedilotildees de poder em que o escritor mostra
a imagem de falta de felicidade na qual vivem os Tiranos jaacute que eles deixam tudo quando
morrem Essas figuras tornam-se cocircmicas e produzem o riso pois natildeo impotildeem mais medo
como enquanto viviam Micilo completa o escaacuternio da seguinte maneira ldquoUma vez morto olhei-
o como um tipo ridiacuteculo despojado daquele fausto e ria sobretudo de mim por ter admirado
uma tal porcariardquo (Luciano Cat 16)275 O siacuterio produz o riso sobre a morte dos poderosos
tiranos que aqui representam um tipo possiacutevel de Imperador Romano que pode ser evitado jaacute
que essa eacute uma condiccedilatildeo inevitaacutevel desse regime poliacutetico
35 O Zeus luciacircnico tirania e a impossibilidade de intervenccedilatildeo na vida humana
Ao pensarmos as relaccedilotildees de poder nos escritos de Luciano de Samoacutesata Zeus destaca-
se como soberano dos deuses sendo referecircncia para diversos assuntos tratados pelo siacuterio O
siacuterio retoma a visatildeo homeacuterica que caracteriza Zeus como pai (Luciano Bis acc 2) mas tambeacutem
como ύς dos deuses e dos homens (Luciano Bis acc 2 D Deor 8 2 10 1 18 2) ldquoEacute
274 ldquo[] ὁ δὲ μόλις ἄν ποτε ἀνατείλας αὐτοῖς πορφυροῦς τις ἢ περίχρυσος ἢ διαποίκιλος εὐδαίμονας ᾤετο καὶ
μακαρίους ἀποφαίνειν τοὺς προσειπόντας εἰ τὸ στῆθος ἢ τὴν δεξιὰν προτείνων δοίη καταφιλεῖν ἐκεῖνοι μὲν οὖν
ἠνιῶντο ἀκούοντες
Τῷ δὲ Μίνῳ μία τις καὶ πρὸς χάριν ἐδικάσθη τὸν γάρ τοι Σικελιώτην Διονύσιον πολλά γε καὶ δεινὰ καὶ ἀνόσια
ὑπό τε Δίωνος κατηγορηθέντα καὶ ὑπὸ τῆς σκιᾶς καταμαρτυρηθέντα παρελθὼν Ἀρίστιππος ὁ Κυρηναῖος ndash ἄγουσι
δ αὐτὸν ἐν τιμῇ καὶ δύναται μέγιστον ἐν τοῖς κάτω ndash μικροῦ δεῖν τῇ Χιμαίρᾳ προσδεθέντα παρέλυσε τῆς καταδίκης
λέγων πολλοῖς αὐτὸν τῶν πεπαιδευμένων πρὸς ἀργύριον γενέσθαι δεξιόνrdquo 275 ldquoἐπεὶ δὲ ἀπέθανεν αὐτός τε παγγέλοιος ὤφθη μοι ἀποδυσάμενος τὴν τρυφήν κἀμαυτοῦ ἔτι μᾶλλον κατεγέλων
οἷον κάθαρμα ἐτεθήπειν []rdquo
162
assim que a concepccedilatildeo de Zeus em Diaacutelogos dos deuses eacute a (subversatildeo) de um rei e por
conseguinte a do Olimpo a (subversatildeo) de um reinordquo (BUZOacuteN amp MAKSIMCZUK 2012 27)
Como enfatizamos no toacutepico anterior Aristoacuteteles identifica a tirania como um desvio
da monarquia (Aristoacuteteles Pol 1279b 9) e nesse sentido os fins do tirano satildeo distintos ou
seja ele visa seu bem individual esquecendo-se da comunidade Por isso ele busca riquezas e
prazeres e se afasta da busca da honra jaacute que a meta do tirano eacute o prazer (Aristoacuteteles Pol
1311a 9) Nessa perspectiva a tirania apresenta cotidianamente abusos de poder
Platatildeo na Repuacuteblica reflete sobre a alma tiracircnica nos seguintes termos
Logo tambeacutem uma alma tiracircnica eacute sempre forccediladamente pobre e por saciar
Eacute isso
Ora bem Acaso natildeo eacute forccediloso que uma cidade dessas e uns homens desses
estejam cheios de temor
Eacute e muito
Achas que encontraraacutes em qualquer outra cidade mais gemidos suspiros
lamentaccedilotildees e sofrimentos
De modo nenhum
E no indiviacuteduo Pensas que em qualquer outro encontraraacutes essa situaccedilatildeo mas
acentuada do que no homem tiracircnico enlouquecido pelas paixotildees e por Eros
(Platatildeo Rep 578a)276
A citaccedilatildeo da Repuacuteblica de Platatildeo e da Poliacutetica de Aristoacuteteles natildeo visa em nenhum
momento estabelecer viacutenculos diretos de inspiraccedilatildeo natildeo se trata aqui de influecircncia entre os
escritores mas de uma noccedilatildeo que estaacute presente na memoacuteria cultural helecircnica Logo essas
remissotildees tratam muito mais de produzir um cenaacuterio que buscar a fonte da proposta luciacircnica
Observando que se trata de uma colocaccedilatildeo sobre uma instituiccedilatildeo no caso grego e que no
Impeacuterio Romano o termo vincula-se agrave adjetivaccedilatildeo depreciativa do governante Os escritos
luciacircnicos utilizavam-se dessa memoacuteria cultural helecircnica para expressar as tensotildees vividas
cotidianamente Natildeo se trata como vimos de uma mensagem voltada diretamente ao
Imperador mas de uma exegese do poder que naquele momento era detido pelo Imperador No
horizonte de expectativas daqueles homens natildeo havia a possibilidade de outra ordem logo era
possiacutevel prevenir Imperador para que esse viesse a se tornar um tirano
276 ldquo- Καὶ ψυχὴν ἄρα τυραννικὴν πενιχρὰν καὶ ἄπληστον ἀνάγκη ἀεὶ εἶναι
- Οὕτως ἦ δ ὅς
- Τί δέ φόβου γέμειν ἆρ οὐκ ἀνάγκη τήν τε τοιαύτην πόλιν τόν τε τοιοῦτον ἄνδρα
- Πολλή γε
- Ὀδυρμούς τε καὶ στεναγμοὺς καὶ θρήνους καὶ ἀλγηδόνας οἴει ἔν τινι ἄλλῃ πλείους εὑρήσειν
- Οὐδαμῶς
- Ἐν ἀνδρὶ δὲ ἡγῇ τὰ τοιαῦτα ἐν ἄλλῳ τινὶ πλείω εἶναι ἢ ἐν τῷ μαινομένῳ ὑπὸ ἐπιθυμιῶν τε καὶ ἐρώτων τούτῳ τῷ
τυραννικῷrdquo
163
No entanto Luciano deixa muito evidente a contradiccedilatildeo entre as narrativas miacuteticas e as
leis Em seu diaacutelogo maior Menipo ou neciomancia Menipo se sente compelido a ir ao Hades
consultar Tireacutesias por natildeo compreender a seguinte situaccedilatildeo
ao ouvir Homero e Hesiacuteodo narrarem guerras e sediccedilotildees natildeo soacute entre
semideuses mas tambeacutem entre os proacuteprios deuses bem como os seus
adulteacuterios violaccedilotildees raptos processos judiciais expulsotildees de pais e
casamentos com irmatildes julgava que todos esses atos eram dignos pelo que
ficava natildeo pouco impressionado com tudo isso Quando poreacutem cheguei agrave
idade adulta verifiquei que as leis diziam o contraacuterio dos poetas proibindo o
adulteacuterio as sediccedilotildees e os raptos pelo que me achei em grande embaraccedilo sem
saber o que devia adoptar para minha orientaccedilatildeo Realmente cuidava eu que
os deuses nunca por nunca cometeriam adulteacuterio e sediccedilotildees uns contra os
outros caso natildeo acreditassem que se tratava de boas accedilotildees e por outro lado
que os legisladores natildeo ordenariam o contraacuterio se natildeo o achassem mais
vantajoso (Luciano Nec 3)277
Como ressaltamos em muitos momentos desta Tese a formaccedilatildeo do homem antigo
estava ancorada sobre a leitura declamaccedilatildeo coacutepia e emulaccedilatildeo de Homero e Hesiacuteodo como
importantes fontes para as narrativas miacuteticas que trazem a representaccedilatildeo de valores e accedilotildees que
satildeo repudiados pelos legisladores Observamos que essas situaccedilotildees satildeo o mote para muitas das
colocaccedilotildees luciacircnicas Notemos por exemplo os deuses em suas apresentaccedilotildees
principalmente a imagem de Zeus o deus supremo do panteatildeo helecircnico
Nos Diaacutelogos dos deuses Zeus busca sua satisfaccedilatildeo pessoal que se resume em
satisfaccedilotildees sexuais O que eacute reprovado por exemplo por Prometeu ao se defender da acusaccedilatildeo
de ter criado as mulheres (Luciano Prom 17) ou ainda aquelas dirigidas por sua esposa a deusa
Hera que diz assim ldquoNatildeo procedes bem nem eacute decoroso para ti que sendo senhor de todos os
deuses me deixas aqui a mim tua legiacutetima esposa e dessas a terra para cometer adulteacuterio
disfarccedilado de ouro de saacutetiros de tourordquo (Luciano D Deor VIII 2)278 A esposa de Zeus
ironiza suas preocupaccedilotildees no diaacutelogo maior Zeus Traacutegico que analisamos no toacutepico anterior
ela afirma ldquoPois eu sei muito bem que o essencial do teu sofrimento eacute de natureza amorosa
E natildeo grito pois jaacute estou habituada jaacute fui muitas vezes ultrajada por ti nessa mateacuteriardquo (Luciano
277 ldquo[] ἀκούων Ὁμήρου καὶ Ἡσιόδου πολέμους καὶ στάσεις διηγουμένων οὐ μόνον τῶν ἡμιθέων ἀλλὰ καὶ αὐτῶν
ἤδη τῶν θεῶν ἔτι δὲ καὶ μοιχείας αὐτῶν καὶ βίας καὶ ἁρπαγὰς καὶ δίκας καὶ πατέρων ἐξελάσεις καὶ ἀδελφῶν
γάμους πάντα ταῦτα ἐνόμιζον εἶναι καλὰ καὶ οὐ παρέργως ἐκινούμην πρὸς αὐτά ἐπεὶ δὲ εἰς ἄνδρας τελεῖν
ἠρξάμην πάλιν αὖ ἐνταῦθα ἤκουον τῶν νόμων τἀναντία τοῖς ποιηταῖς κελευόντων μήτε μοιχεύειν μήτε
στασιάζειν μήτε ἁρπάζειν ἐν μεγάλῃ οὖν καθειστήκειν ἀμφιβολίᾳ οὐκ εἰδὼς ὅ τι χρησαίμην ἐμαυτῷ οὔτε γὰρ
ἄν ποτε τοὺς θεοὺς μοιχεῦσαι καὶ στασιάσαι πρὸς ἀλλήλους ἡγούμην εἰ μὴ ὡς περὶ καλῶν τούτων ἐγίγνωσκον
οὔτ ἂν τοὺς νομοθέτας τἀναντία παραινεῖν εἰ μὴ λυσιτελεῖν ὑπελάμβανονrdquo 278 ldquoΗΡΑ
Οὐδ ἐκεῖνα μὲν εὖ ποιεῖς οὐδὲ πρέποντα σεαυτῷ ὃς ἁπάντων θεῶν δεσπότης ὢν ἀπολιπὼν ἐμὲ τὴν νόμῳ γαμετὴν
ἐπὶ τὴν γῆν κάτει μοιχεύσων χρυσίον ἢ σάτυρος ἢ ταῦρος γενόμενοςrdquo
164
I Trag2)279 Na Assembleia dos deuses Momo em sua parreacutesia habitual mostra como as
relaccedilotildees de Zeus com as mortais ocorridas por meios de diversas metamorfoses aleacutem de serm
um problema eacutetico satildeo um problema poliacutetico jaacute que mudam a correlaccedilatildeo de forccedilas entre as
divindades Momo diz assim
De fato a origem de tais ilegalidades e a causa de a nossa assembleia andar
abastardada foste tu oacute Zeus quem tal coisa provocou por teres relaccedilotildees com
humanas descendo ateacute elas ora uma forma ora sob outra forma de tal modo
que noacutes receamos que algueacutem te apanhasse e te sacrificasse quando te
transformas em touro ou que algum ourives te derreta quando te transformas
em ouro e que entatildeo em vez de Zeus fiques feito um colar um bracelete ou
uns brincos (Luciano Deor Conc 7)280
Observamos por meio desses exemplos que as acusaccedilotildees nos diaacutelogos satildeo constantes
a essa postura No entanto Zeus natildeo se absteacutem de mudar a proacutepria ordem natural das coisas
para ter seus romances com mortais por exemplo no diaacutelogo XXV em que Hermes ordena em
nome de Zeus que Heacutelio o deus sol ldquonatildeo conduza hoje o teu carro nem amanhatilde nem depois
de amanhatilde mas fica em casa para que haja uma soacute noite muito longardquo (Luciano D deor XIV
1) 281
Nos Diaacutelogos dos deuses marinhos haacute outro exemplo da intervenccedilatildeo de Zeus nos
fenocircmenos fiacutesicos
Iacuteris282 mdash Oacute Poseidon aquela ilha errante que se separou da Siciacutelia e ainda
vagueia por sob as aacuteguas essa Zeus ordena-te que a faccedilas parar
imediatamente a tragas agrave superfiacutecie e faccedilas que ela bem visiacutevel em pleno mar
Egeu fique aiacute muito bem firme pois ele tem necessidade dessa ilha
Poseidon mdash Seraacute feita a sua vontade Iacuteris Mas que utilidade lhe proporcionaraacute
ela pelo facto de estar emersa e deixar de navegar
Iacuteris mdash Eacute que Leto283 deve ir dar agrave luz nessa ilha e ateacute jaacute estaacute com terriacuteveis
dores de parto
279 ldquoΗΡΑ
Οἶδα τὸ κεφάλαιον αὐτὸ ὧν πάσχεις ὅτι ἐρωτικόν ἐστιν οὐ μὴν κωκύω γε ὑπὸ ἔθους ἤδη πολλάκις ὑβρισθεῖσα
ὑπὸ σοῦ τὰ τοιαῦταrdquo 280 ldquo[] Τὴν γάρ τοι ἀρχὴν τῶν τοιούτων παρανομημάτων καὶ τὴν αἰτίαν τοῦ νοθευθῆναι ἡμῶν τὸ ξυνέδριον σύ
ὦ Ζεῦ παρέσχες θνηταῖς ἐπιμιγνύμενος καὶ κατιὼν παρ αὐτὰς ἐν ἄλλοτε ἄλλῳ σχήματι ὥστε ἡμᾶς δεδιέναι μή
σε καταθύσῃ τις ξυλλαβών ὁπόταν ταῦρος ᾖς ἢ τῶν χρυσοχόων τις κατεργάσηται χρυσὸν ὄντα καὶ ἀντὶ Διὸς ἢ
ὅρμος ἢ ψέλιον ἢ ἐλλόβιον ἡμῖν γένῃrdquo 281 ldquoΕΡΜΗΣ
Ὦ Ἥλιε μὴ ἐλάσῃς τήμερον ὁ Ζεύς φησι μηδὲ αὔριον μηδὲ εἰς τρίτην ἡμέραν ἀλλὰ ἔνδον μένε καὶ τὸ μεταξὺ
μία τις ἔστω νὺξ μακράrdquo 282 Iris eacute uma divindade mariacutetima simbolizada pelo arco-iacuteris Como Hermes tem a incumbecircncia de levar as
mensagens dos deuses (GRIMAL 2005 253-254) 283 Leto pertence agrave primeira geraccedilatildeo divina Quando estava graacutevida dos dois gecircmeos Hera enciumada havia
proibido que ela desse agrave luz em qualquer lugar do ceacuteu e da Terra Ela vagou por muitos cantos ateacute que deu agrave luz
em Delos uma ilha errante e esteacuteril que natildeo tinha nada a perder com a coacutelera de Hera Como precircmio ela ficou
165
Poseidon mdash O quecirc Entatildeo o ceacuteu natildeo bastante grande para ela aiacute dar agrave luz
Ou agrave falta deste natildeo pode toda a terra receber os filhos de Leto
Iacuteris mdash Natildeo Poseidon Na verdade Hera obrigou a Terra sob juramento
solene a natildeo dar hospitalidade a Leto em trabalhos de parto Ora estaacute ilha
estaacute fora do juramento pois natildeo era visiacutevel
Poseidon mdash Compreendo Oacute ilha emerge novamente do abismo e natildeo te
mexas daiacute mas permanece bem fixa e acolhe oacute bem-aventurada os dois filhos
de meu irmatildeo os mais formosos de entre os deuses E voacutes Tritotildees transportai
Leto a esta ilha e que o mar esteja calmo E quanto agrave serpente que a atormenta
e aterroriza logo que estes seus filhos nascerem atacaacute-la-atildeo e vingaratildeo a matildee
E tu Iacuteris vai anunciar a Zeus que estaacute tudo preparado Delos estaacute fixa Que
venha jaacute Leto e que decirc agrave luz (Luciano D mar X 1-2)284
Leto eacute uma das amantes de Zeus matildee de Apolo e Artecircmis Nesse diaacutelogo Iris leva uma
mensagem a Poseidon para que ele interfira na geografia do mar a fim de organizar um lugar
para que essa decirc a luz a seus filhos uma vez que Hera natildeo permitiria que isso ocorresse no
Olimpo Mais uma vez as relaccedilotildees extraconjugais desse fazem com que ele interfira em
elementos que natildeo poderia fazecirc-lo Tal relacionamento continua a gerar problemas como fica
evidenciado no diaacutelogo XVIII dos Diaacutelogos dos deuses travado entre Hera e Leto Hera a
esposa de Zeus contesta Leto uma amante com a qual ele teve dois importantes filhos Apolo
e Artecircmis
Em um diaacutelogo com Eros Zeus mostra-se bastante autoritaacuterio em suas conquistas
Trata-se de um elemento interessante para compreender essa caracteriacutestica tiracircnica do Zeus
luciacircnico que natildeo se preocupa com nada ao realizar uma conquista
fixa no mar e ganhou o nome de Delos brilhante (GRIMAL 2005 275) A narrativa citada no corpo da Tese natildeo
eacute encontrada em nenhuma outra fonte 284 ldquoΙΡΙΣ
Τὴν νῆσον τὴν πλανωμένην ὦ Πόσειδον ἣν ἀποσπασθεῖσαν τῆς Σικελίας ὕφαλον ἔτι νήχεσθαι συμβέβηκεν
ταύτην φησὶν ὁ Ζεύς στῆσον ἤδη καὶ ἀνάφηνον καὶ ποίησον ἤδη δῆλον ἐν τῷ Αἰγαίῳ μέσῳ βεβαίως μένειν
στηρίξας πάνυ ἀσφαλῶς δεῖται γάρ τι αὐτῆς
ΠΟΣΕΙΔΩΝ
Πεπράξεται ταῦτα ὦ Ἶρι τίνα δ ὅμως παρέξει τὴν χρείαν αὐτῷ ἀναφανεῖσα καὶ μηκέτι πλέουσα
ΙΡΙΣ
Τὴν Λητὼ ἐπ αὐτῆς δεῖ ἀποκυῆσαι ἤδη δὲ πονήρως ὑπὸ τῶν ὠδίνων ἔχει
ΠΟΣΕΙΔΩΝ
Τί οὖν οὐχ ἱκανὸς ὁ οὐρανὸς ἐντεκεῖν εἰ δὲ μὴ οὗτος ἀλλ ἥ γε γῆ πᾶσα οὐκ ἂν ὑποδέξασθαι δύναιτο τὰς γονὰς
αὐτῆς
ΙΡΙΣ
Οὔκ ὦ Πόσειδον ἡ Ἥρα γὰρ ὅρκῳ μεγάλῳ κατέλαβε τὴν γῆν μὴ παρασχεῖν τῇ Λητοῖ τῶν ὠδίνων ὑποδοχήν ἡ
τοίνυν νῆσος αὕτη ἀνώμοτός ἐστιν ἀφανὴς γὰρ ἦν
ΠΟΣΕΙΔΩΝ
Συνίημι στῆθι ὦ νῆσε καὶ ἀνάδυθι αὖθις ἐκ τοῦ βυθοῦ καὶ μηκέτι ὑποφέρου ἀλλὰ βεβαίως μένε καὶ ὑπόδεξαι
ὦ εὐδαιμονεστάτη τοῦ ἀδελφοῦ τὰ τέκνα δύο τοὺς καλλίστους τῶν θεῶν καὶ ὑμεῖς ὦ Τρίτωνες διαπορθμεύσατε
τὴν Λητὼ ἐς αὐτήν καὶ γαληνὰ ἅπαντα ἔστω τὸν δράκοντα δέ ὃς νῦν ἐξοιστρεῖ αὐτὴν φοβῶν τὰ νεογνὰ ἐπειδὰν
τεχθῇ αὐτίκα μέτεισι καὶ τιμωρήσει τῇ μητρί σὺ δὲ ἀπάγγελλε τῷ Διὶ ἅπαντα εἶναι εὐτρεπῆ ἕστηκεν ἡ Δῆλος
ἡκέτω ἡ Λητὼ ἤδη καὶ τικτέτωrdquo
166
Eros mdash Oacute Zeus se eu pequei nalguma coisa perdoa-me pois ainda sou uma
crianccedila insensata
Zeus mdash Tu Eros uma crianccedila Tu que eacutes muito mais velho que Jaacutepeto Laacute
porque natildeo tens barba nem cabelos brancos jaacute te julgas no direito de ser
considerado um bebecirc Tu que natildeo passas de um velho e de um velhaco
Eros mdash Entatildeo que grande mal eacute que eu te fiz eu um velho segundo dizes
para pensares em me pocircr a ferros
Zeus mdash Vecirc laacute bem meu tratante se eacute coisa de pouca monta teres feito pouco
de mim a ponto de natildeo haver figura por que natildeo me tenhas feito passar saacutetiro
touro ouro cisne aacuteguia Ora tu nunca por nunca fizeste que uma mulher se
apaixonasse por mim nem nunca me apercebi de graccedilas a ti ter sido
agradaacutevel a uma mulher mas pelo contraacuterio tive de servir-me de artes
maacutegicas e disfarccedilar-me Elas gostam muito de um touro ou de um cisne mas
se me vissem morreriam de medo
Eros mdash Eacute natural oacute Zeus pois elas mortais como satildeo natildeo suportam o teu
aspecto
Zeus mdash Entatildeo porque eacute que Branco e Jacinto amam Apolo
Eros mdash E no entanto Dafne fugia de Apolo apesar de ele ter uma cabeleira
e ser imberbe Ora se queres ser amado natildeo agites a eacutegide nem empunhes o
raio mas mostra-te o mais simpaacutetico possiacutevel e terno soacute de se ver usa
cabeleira encaracolada presos ao alto com uma mitra veste um manto de
puacuterpura umas sandaacutelias de ouro caminha ritmicamente ao som da flauta e de
pandeiros e veraacutes que vatildeo atraacutes de ti em nuacutemero maior que as Meacutenades de
Dioniso
Zeus mdash Vai-te daqui Natildeo admitiria ser amado agrave custa de me apresentar desta
forma
Eros mdash Nesse caso oacute Zeus natildeo queiras amar eacute mais faacutecil assim
Zeus mdash Oh natildeo Amar sim mas tambeacutem conseguir chegar junto delas sem
problemas Por estes dois favores deixo-te ir em paz (Luciano D deorVI
1-2)285
285 ldquoΕΡΩΣ
Ἀλλ εἰ καί τι ἥμαρτον ὦ Ζεῦ σύγγνωθί μοι παιδίον γάρ εἰμι καὶ ἔτι ἄφρων
ΖΕΥΣ
Σὺ παιδίον ὁ Ἔρως ὃς ἀρχαιότερος εἶ πολὺ Ἰαπετοῦ ἢ διότι μὴ πώγωνα μηδὲ πολιὰς ἔφυσας διὰ ταῦτα καὶ
βρέφος ἀξιοῖς νομίζεσθαι γέρων καὶ πανοῦργος ὤν
ΕΡΩΣ
Τί δαί σε μέγα ἠδίκησα ὁ γέρων ὡς φῂς ἐγώ διότι με καὶ πεδῆσαι διανοῇ
ΖΕΥΣ
Σκόπει ὦ κατάρατε εἰ μικρά ὃς ἐμοὶ μὲν οὕτως ἐντρυφᾷς ὥστε οὐδέν ἐστιν ὃ μὴ πεποίηκάς με σάτυρον ταῦρον
χρυσόν κύκνον ἀετόν ἐμοῦ δὲ ὅλως οὐδεμίαν ἥντινα ἐρασθῆναι πεποίηκας οὐδὲ συνῆκα ἡδὺς γυναικὶ διὰ σὲ
γεγενημένος ἀλλά με δεῖ μαγγανεύειν ἐπ αὐτὰς καὶ κρύπτειν ἐμαυτόν αἱ δὲ τὸν μὲν ταῦρον ἢ κύκνον φιλοῦσιν
ἐμὲ δὲ ἢν ἴδωσι τεθνᾶσιν ὑπὸ τοῦ δέους
ΕΡΩΣ
Εἰκότως οὐ γὰρ φέρουσιν ὦ Ζεῦ θνηταὶ οὖσαι τὴν σὴν πρόσοψιν
ΖΕΥΣ
Πῶς οὖν τὸν Ἀπόλλω ὁ Βράγχος καὶ ὁ Ὑάκινθος φιλοῦσιν
ΕΡΩΣ
Ἀλλὰ ἡ Δάφνη κἀκεῖνον ἔφευγε καίτοι κομήτην καὶ ἀγένειον ὄντα εἰ δ ἐθέλεις ἐπέραστος εἶναι μὴ ἐπίσειε τὴν
αἰγίδα μηδὲ τὸν κεραυνὸν φέρε ἀλλ ὡς ἥδιστον ποίει σεαυτὸν ἁπαλὸν ὀφθῆναι καθειμένος βοστρύχους τῇ
μίτρᾳ τούτους ἀνειλημμένος πορφυρίδα ἔχε ὑποδέου χρυσίδας ὑπ αὐλῷ καὶ τυμπάνοις εὔρυθμα βαῖνε καὶ ὄψει
ὅτι πλείους ἀκολουθήσουσί σοι τῶν Διονύσου Μαινάδων
ΖΕΥΣ
Ἄπαγε οὐκ ἂν δεξαίμην ἐπέραστος εἶναι τοιοῦτος γενόμενος
ΕΡΩΣ
Οὐκοῦν ὦ Ζεῦ μηδὲ ἐρᾶν θέλε ῥᾴδιον γὰρ τοῦτό γε
ΖΕΥΣ
167
Esse diaacutelogo eacute interessante pois completa o debate acerca da postura tiracircnica de Zeus
que natildeo se preocupa com o desejo das mulheres e para conquistaacute-las toma qualquer forma que
for necessaacuteria mas natildeo tem nenhuma preocupaccedilatildeo com a seduccedilatildeo
Em diversos momentos por exemplo com Prometeu ou com Heacutelio o Zeus luciacircnico se
mostra insensiacutevel diante dos sofrimentos como nos diaacutelogos V e XXIV ou ainda no diaacutelogo
entre Ganimedes e Zeus Ganimedes tinha sido sequestrado por Zeus ndash que havia se
metamorfoseado em uma aacuteguia ndash e pede para voltar para seu rebanho Ganimedes afirma que
sua famiacutelia sentira sua falta mas Zeus se mostra impassiacutevel agraves suas suacuteplicas (Luciano D deor
X 3) Ganimedes eacute um dos pouquiacutessimos personagens miacuteticos que transcendem a condiccedilatildeo
humana e vive entre os deuses Dessa forma Luciano faz com que o leitorouvinte ria de mais
um caso em que um humano se transformou em um deus
O Zeus luciacircnico se mostra desinteressado com o exerciacutecio de suas funccedilotildees
principalmente com a de aacuterbitro que lhe eacute atribuiacuteda tradicionalmente Podemos observar a
querela entre Heacuteracles e Ascleacutepio pelo melhor lugar no banquete em que o deus daacute o lugar para
Ascleacutepio simplesmente por ele ter chegado primeiro (Luciano D deor XV) Ou ainda no
Julgamento das deusas286 em que ele pede para Paris decidir qual eacute a deusa mais bela A cena
que antecede o chamado de Paris foi relatada nos Diaacutelogos dos deuses marinhos nos quais duas
nereidas contam
Pacircnope287 mdash Oacute Galene viste o que eacute que Eacuteris fez ontem na Tessaacutelia durante
o jantar pelo facto de natildeo ter sido convidada para o banquete
Galene mdash Natildeo estive presente no vosso banquete na verdade Pacircnope
Poseidon tinha-me ordenado que a essa hora cuidasse da tranquilidade do
mar Mas entatildeo que eacute que fez Eacuteris por natildeo ter sido convidada
Pacircnope mdash Teacutetis e Peleu288 jaacute se haviam retirado para os seus aposentos
acompanhados por Anfitrite e Poseidon quando Eacuteris passando despercebida
de todos (coisa faacutecil pois uns bebiam e outros aplaudiam ou estavam
atentos escutando Apolo a tocar ciacutetara ou as Musas a cantar) arremessou
Οὔκ ἀλλὰ ἐρᾶν μέν ἀπραγμονέστερον δὲ αὐτῶν ἐπιτυγχάνειν ἐπὶ τούτοις αὐτοῖς ἀφίημί σεrdquo 286 Trata-se de um diaacutelogo maior travado entre Zeus Hermes Hera Atena Afrodite e Paacuteris Ele conta uma ceacutelebre
narrativa que antecede a Guerra de Troia em que Paris tem de escolher qual eacute a mais bela das deusas para lhe
ofertar o pomo de Ouro dado por Eris a deusa da discoacuterdia Afrodite Atenas e Hera Cada deusa lhe oferece um
presente que se coaduna com suas funccedilotildees Afrodite lhe oferece o amor da mais bela das mulheres Atenas a
invencibilidade nas batalhas e Hera a soberania do mundo Paris escolhe o amor prometido por Afrodite e essa lhe
encaminha para Helena rainha de Esparta casada com Menelau Paris rouba a bela rainha tradicionalmente esse
eacute o fato que daacute iniacutecio a Guerra de Troia 287 Pacircnope Galene Anfitrite e Tetis satildeo nereidas divindades mariacutetimas filhas de Nereu e Doris netas de Oceano
Geralmente representam as inuacutemeras vagas do mar Anfitrite era a esposa de Poseidon o deus do mar e Tetis a
esposa de Peleu (GRIMAL 2005327-328) 288 Peleu era rei da Ftia na Tessaacutelia casado com a nereida Tetis eacute o pai do heroacutei Aquiles Prometeu em uma
profecia que analisamos no toacutepico anterior dizia que o filho de Tetis seria mais forte que o pai por esse motivo
Zeus decide casaacute-la com um mortal (GRIMAL 2005 360-361)
168
para o meio da sala uma maccedilatilde magniacutefica de oiro maciccedilo na qual estava uma
inscriccedilatildeo que dizia PARA A MAIS BELA A maccedilatilde foi rolando e como se
de propoacutesito foi parar ao siacutetio onde estavam reclinadas Hera Afrodite e
Atena Entatildeo Hermes apanhou a maccedilatilde e leu a inscriccedilatildeo e noacutes Nereidas
ficaacutemos muito caladinhas Sim que outra coisa poderiacuteamos noacutes fazer
perante aquelas grandes senhoras Cada uma delas reclamava que a maccedilatilde
lhe pertencia de direito e a discussatildeo teria chegado a vias de facto se Zeus
natildeo as tivesse apartado Entatildeo ele disse lsquoEu pessoalmente natildeo emitirei
juiacutezo sobre essa demanda (de facto elas queriam que fosse ele a julgar) mas
descei ateacute ao Ida ateacute junto do filho de Priacuteamo o qual apreciador como eacute
da beleza saberaacute sentenciar qual eacute mais bela e certamente natildeo vos julgaraacute
malrsquo (Luciano D mar V 1-2)289
Esse diaacutelogo eacute importante por colocar a passagem aludida no Julgamento das deusas
narrada por Nereidas que satildeo divindades menores com atuaccedilatildeo no mar filhas de Nereu que
colocam a cena da festa na casa de Teacutetis e Atreu em que a deusa Eacuteris da discoacuterdia natildeo foi
convidada Em meio agrave festa ela joga uma maccedilatilde de ouro entre trecircs deusas importantes (Hera
Atena e Afrodite) com a inscriccedilatildeo de que essa pertencia agrave deusa mais bela As Nereidas se
portam convenientemente agrave sua posiccedilatildeo subalterna afastando-se do debate para que Zeus
dirimisse o conflito como era sua funccedilatildeo Entretanto Zeus chama Hermes e ordena-lhe que ele
chame Paacuteris Cena semelhante ocorre no iniacutecio do Julgamento das deusas em que Zeus diz a
Hermes
Zeus - Oacute Hermes toma laacute estaacute maccedilatilde e vai agrave Friacutegia vai ter com o filho de
Priacuteamo o pastor que guarda no pico do Gaacutergaro no monte Ida e diz-lhe o
seguinte laquoPaacuteris Zeus ordena-te que visto seres formoso e entendido em
coisas de amor que julgues de entre as deusas qual delas eacute a mais bela e
que a vencedora receba esta maccedilatilde como preacutemio do concursoraquo Portanto eacute
tempo de vos dirigirdes junto do juiz Por mim nego-me a ser aacuterbitro pois
amo-vos por igual pelo que se fosse possiacutevel dar-me-ia o maior prazer ver-
vos todas vencedoras Aleacutem disso eacute fatal que aquele que atribuir o preacutemio de
beleza a uma fique odiado pelas outras Por isso eu natildeo sou o juiz adequado
289 ldquoΠΑΝΟΠΗ
Εἶδες ὦ Γαλήνη χθὲς οἷα ἐποίησεν ἡ Ἔρις παρὰ τὸ δεῖπνον ἐν Θετταλίᾳ διότι μὴ καὶ αὐτὴ ἐκλήθη εἰς τὸ
συμπόσιον
ΓΑΛΗΝΗ
Οὐ συνειστιώμην ὑμῖν ἔγωγε ὁ γὰρ Ποσειδῶν ἐκέλευσέ μέ ὦ Πανόπη ἀκύμαντον ἐν τοσούτῳ φυλάττειν τὸ
πέλαγος τί δ οὖν ἐποίησεν ἡ Ἔρις μὴ παροῦσα
ΠΑΝΟΠΗ
Ἡ Θέτις μὲν ἤδη καὶ ὁ Πηλεὺς ἀπεληλύθεσαν ἐς τὸν θάλαμον ὑπὸ τῆς Ἀμφιτρίτης καὶ τοῦ Ποσειδῶνος
παραπεμφθέντες ἡ Ἔρις δὲ ἐν τοσούτῳ λαθοῦσα πάντας ndash ἐδυνήθη δὲ ῥᾳδίως τῶν μὲν πινόντων ἐνίων δὲ
κροτούντων ἢ τῷ Ἀπόλλωνι κιθαρίζοντι ἢ ταῖς Μούσαις ᾀδούσαις προσεχόντων τὸν νοῦν ndash ἐνέβαλεν ἐς τὸ
συμπόσιον μῆλόν τι πάγκαλον χρυσοῦν ὅλον ὦ Γαλήνη ἐπεγέγραπτο δὲ ldquoἡ καλὴ λαβέτωrdquo κυλινδούμενον δὲ
τοῦτο ὥσπερ ἐξεπίτηδες ἧκεν ἔνθα Ἥρα τε καὶ Ἀφροδίτη καὶ Ἀθηνᾶ κατεκλίνοντο κἀπειδὴ ὁ Ἑρμῆς ἀνελόμενος
ἐπελέξατο τὰ γεγραμμένα αἱ μὲν Νηρεΐδες ἡμεῖς ἐσιωπήσαμεν τί γὰρ ἔδει ποιεῖν ἐκείνων παρουσῶν αἱ δὲ
ἀντεποιοῦντο ἑκάστη καὶ αὑτῆς εἶναι τὸ μῆλον ἠξίουν καὶ εἰ μή γε ὁ Ζεὺς διέστησεν αὐτάς καὶ ἄχρι χειρῶν ἂν
τὸ πρᾶγμα προὐχώρησεν ἀλλ ἐκεῖνος Αὐτὸς μὲν οὐ κρινῶ φησί περὶ τούτου ndash καίτοι ἐκεῖναι αὐτὸν δικάσαι
ἠξίουν ndash ἄπιτε δὲ ἐς τὴν Ἴδην παρὰ τὸν Πριάμου παῖδα ὃς οἶδέ τε διαγνῶναι τὸ κάλλιον φιλόκαλος ὤν καὶ οὐκ
ἂν ἐκεῖνος κρίναι κακῶςrdquo
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ao vosso caso mas o jovem friacutegio que voacutes ides procurar eacute de famiacutelia real
parente aqui do Ganimedes e de resto muito simples e ruacutestico ningueacutem o
julgaria indigno de assistir a um tal espetaacuteculo (Luciano Dear jud 1)290
Zeus prefere natildeo ter o desgaste com as outras deusas mesmo sendo uma funccedilatildeo sua ser
dispensador da justiccedila ser o juiz supremo Ele natildeo se preocupa em dirimir os conflitos mas
com seu prazer pessoal Natildeo se volta para o bem comum como jaacute disse Prometeu em outra
passagem analisada anteriormente (Luciano Prom 12)
O deus supremo do panteatildeo helecircnico tambeacutem se mostra inacessiacutevel aos outros deuses
como por exemplo no diaacutelogo travado entre Hermes e Poseidon em que este quer ter uma
audiecircncia com Zeus e Hermes lhe diz que natildeo pode pois ele estaacute adoentado por ter dado agrave luz
Dioniso (Luciano D deor XII1)
Outro ponto importante eacute o medo que os deuses tecircm dele Nos Diaacutelogos dos deuses
podemos observar isso em dois diaacutelogos No diaacutelogo XXI travado entre Ares o deus da guerra
e Hermes temos o seguinte
Ares mdash Oacute Hermes ouviste as ameaccedilas que Zeus nos fez tatildeo arrogantes e tatildeo
disparatadas lsquoSe eu quiser mdash disse ele mdash deito uma corda caacute do ceacuteu e voacutes
todos pendurados nela esforccedilar-vos-eis por me arrastar aiacute para baixo mas
seraacute esforccedilo baldado natildeo me mandareis abaixo E se eu quisesse iccedilar-vos-
ia natildeo soacute a voacutes mas tambeacutem puxaria ao mesmo tempo a terra e o mar e
suspendecirc-los-ia no espaccedilorsquo E muitas outras coisas que tu tambeacutem ouviste
Por mim natildeo posso negar que ele seja superior e mais forte que cada um de
noacutes um por um mas que ele seja superior a todos noacutes juntos a ponto de natildeo o
vergarmos com o nosso peso mesmo que acrescentaacutessemos a terra e o mar
nisso eacute que eu jaacute natildeo posso acreditar
Hermes mdash Estaacute calado Ares pois natildeo eacute prudente falar dessas coisas natildeo se
decirc o caso de sermos castigados pela nossa tagarelice
Ares mdash Cuidas tu que eu tive esta conversa com toda a gente e natildeo apenas
contigo que eu bem sei que tens tento na liacutengua Ora eu natildeo podia deixar de
te contar uma ameaccedila que eu ouvi e que me pareceu sumamente ridiacutecula Na
verdade recordo-me de que natildeo haacute muito tempo quando Poseidon Hera e
Atena se revoltaram e conspiraram contra Zeus no sentido de prendecirc-lo e pocircr
a ferros ele ficou completamente aterrado e eram apenas trecircs e se Teacutetis
com pena dele natildeo tivesse chamado em seu socorro Briareu de cem braccedilos
teria mesmo ficado a ferros juntamente com o seu raio e o seu trovatildeo Ao
pensar neste episoacutedio desatei a rir da fanfarronice de Zeus
290 ldquoΖΕΥΣ
Ἑρμῆ λαβὼν τουτὶ τὸ μῆλον ἄπιθι εἰς τὴν Φρυγίαν παρὰ τὸν Πριάμου παῖδα τὸν βουκόλον ndash νέμει δὲ τῆς Ἴδης
ἐν τῷ Γαργάρῳ ndash καὶ λέγε πρὸς αὐτόν ὅτι ldquoΣέ ὦ Πάρι κελεύει ὁ Ζεύς ἐπειδὴ καλός τε αὐτὸς εἶ καὶ σοφὸς τὰ
ἐρωτικά δικάσαι ταῖς θεαῖς ἥτις αὐτῶν ἡ καλλίστη ἐστίν τοῦ δὲ ἀγῶνος τὸ ἆθλον ἡ νικῶσα λαβέτω τὸ μῆλονrdquo
ὥρα δὲ ἤδη καὶ ὑμῖν αὐταῖς ἀπιέναι παρὰ τὸν δικαστήν ἐγὼ γὰρ ἀπωθοῦμαι τὴν δίαιταν ἐπ ἴσης τε ὑμᾶς ἀγαπῶν
καὶ εἴ γε οἷόν τε ἦν ἡδέως ἂν ἁπάσας νενικηκυίας ἰδών ἄλλως τε καὶ ἀνάγκη μιᾷ τὸ καλλιστεῖον ἀποδόντα
πάντως ἀπεχθάνεσθαι ταῖς πλείοσιν διὰ ταῦτα αὐτὸς μὲν οὐκ ἐπιτήδειος ὑμῖν δικαστής ὁ δὲ νεανίας οὗτος ὁ Φρὺξ
ἐφ ὃν ἄπιτε βασιλικὸς μέν ἐστι καὶ Γανυμήδους τουτουὶ συγγενής τὰ ἄλλα δὲ ἀφελὴς καὶ ὄρειος κοὐκ ἄν τις
αὐτὸν ἀπαξιώσειε τοιαύτης θέαςrdquo
170
Hermes mdash Cala-te repito Natildeo eacute prudente nem para ti dizer tais coisas nem
para mim escutaacute-las (Luciano D deor XXI 1-2)291
Tais preocupaccedilotildees satildeo evidentes em um governo tiracircnico uma vez que o que caracteriza
as formas de governo que natildeo satildeo deturpadas para usar a sutileza aristoteacutelica eacute a possibilidade
da palavra franca da parreacutesia O espaccedilo tiracircnico se caracteriza justamente pela dificuldade em
expressar seus proacuteprios pensamentos pois isso pode lhe custar a vida ou a liberdade
O outro diaacutelogo em que haacute a exposiccedilatildeo de ressalvas ao governo tiracircnico de Zeus eacute
travado entre Hermes e Heacutelio citado anteriormente para falar da interferecircncia de Zeus na ordem
natural das coisas para satisfazer seus desejos Heacutelio afirma assim
Heacutelio mdash Pois entatildeo que ele meta matildeos agrave obra e boa sorte Mas essas accedilotildees
oacute Hermes (agora que ningueacutem nos ouve) natildeo aconteciam no reinado de
Cronos este nunca dormia fora do leito de Reia nem deixaria o ceacuteu para ir
dormir a Tebas mas o dia era o dia e a noite durava segundo a sua medida
de acordo com as estaccedilotildees natildeo acontecia nada de estranho ou de anormal e o
deus natildeo teria nunca tido relaccedilotildees com uma mulher mortal Agora poreacutem por
causa de miseraacutevel mulherzinha haacute que alterar tudo por completo os meus
cavalos satildeo obrigados a ficar presos de movimentos devido agrave inatividade e o
caminho sem ser pisado durante trecircs dias ficaraacute intransitaacutevel e os pobres
homens viveratildeo nas trevas Eacute isso que eles ganharatildeo com os amores de Zeus
esperando sentados e envolvidos em longa escuridatildeo ateacute que ele acabe de
fabricar o tal atleta de que tu falas
Hermes mdash Cala-te Heacutelio ainda assim natildeo te venha algum mal das tuas
palavras292
291 ldquoΑΡΗΣ
Ἤκουσας ὦ Ἑρμῆ οἷα ἠπείλησεν ἡμῖν ὁ Ζεύς ὡς ὑπεροπτικὰ καὶ ὡς ἀπίθανα Ἢν ἐθελήσω φησίν ἐγὼ μὲν ἐκ
τοῦ οὐρανοῦ σειρὰν καθήσω ὑμεῖς δὲ ἀποκρεμασθέντες κατασπᾶν βιάσεσθέ με ἀλλὰ μάτην πονήσετε οὐ γὰρ δὴ
καθελκύσετε εἰ δὲ ἐγὼ θελήσαιμι ἀνελκύσαι οὐ μόνον ὑμᾶς ἀλλὰ καὶ τὴν γῆν ἅμα καὶ τὴν θάλασσαν
συνανασπάσας μετεωριῶ καὶ τἆλλα ὅσα καὶ σὺ ἀκήκοας ἐγὼ δὲ ὅτι μὲν καθ ἕνα πάντων ἀμείνων καὶ ἰσχυρότερός
ἐστιν οὐκ ἂν ἀρνηθείην ὁμοῦ δὲ τῶν τοσούτων ὑπερφέρειν ὡς μὴ καταβαρήσειν αὐτόν ἢν καὶ τὴν γῆν καὶ τὴν
θάλασσαν προσλάβωμεν οὐκ ἂν πεισθείην
ΕΡΜΗΣ
Εὐφήμει ὦ Ἄρες οὐ γὰρ ἀσφαλὲς λέγειν τὰ τοιαῦτα μὴ καί τι κακὸν ἀπολαύσωμεν τῆς φλυαρίας
ΑΡΗΣ
Οἴει γάρ με πρὸς πάντας ἂν ταῦτα εἰπεῖν οὐχὶ δὲ πρὸς μόνον σέ ὃν ἐχεμυθήσειν ἠπιστάμην ὃ γοῦν μάλιστα
γελοῖον ἔδοξέ μοι ἀκούοντι μεταξὺ τῆς ἀπειλῆς οὐκ ἂν δυναίμην σιωπῆσαι πρὸς σέ μέμνημαι γὰρ οὐ πρὸ πολλοῦ
ὁπότε ὁ Ποσειδῶν καὶ ἡ Ἥρα καὶ ἡ Ἀθηνᾶ ἐπαναστάντες ἐπεβούλευον ξυνδῆσαι λαβόντες αὐτόν ὡς παντοῖος ἦν
δεδιώς καὶ ταῦτα τρεῖς ὄντας καὶ εἰ μή γε ἡ Θέτις κατελεήσασα ἐκάλεσεν αὐτῷ σύμμαχον Βριάρεων ἑκατόγχειρα
ὄντα κἂν ἐδέδετο αὐτῷ κεραυνῷ καὶ βροντῇ ταῦτα λογιζομένῳ ἐπῄει μοι γελᾶν ἐπὶ τῇ καλλιρρημοσύνῃ αὐτοῦ
ΕΡΜΗΣ
Σιώπα φημί οὐ γὰρ ἀσφαλὲς οὔτε σοὶ λέγειν οὔτ ἐμοὶ ἀκούειν τὰ τοιαῦταrdquo 292 ldquoΗΛΙΟΣ
Ἀλλὰ τελεσιουργείτω μὲν ἀγαθῇ τύχῃ ταῦτα δ οὖν ὦ Ἑρμῆ οὐκ ἐγίνετο ἐπὶ τοῦ Κρόνου ndash αὐτοὶ γὰρ ἡμεῖς
ἐσμεν ndash οὐδὲ ἀπόκοιτός ποτε ἐκεῖνος παρὰ τῆς Ῥέας ἦν οὐδὲ ἀπολιπὼν ἂν τὸν οὐρανὸν ἐν Θήβαις ἐκοιμᾶτο ἀλλὰ
ἡμέρα μὲν ἦν ἡ ἡμέρα νὺξ δὲ κατὰ μέτρον τὸ αὐτῆς ἀνάλογον ταῖς ὥραις ξένον δὲ ἢ παρηλλαγμένον οὐδέν οὐδ
ἂν ἐκοινώνησέ ποτε ἐκεῖνος θνητῇ γυναικί νῦν δὲ δυστήνου γυναίου ἕνεκα χρὴ ἀνεστράφθαι τὰ πάντα καὶ
ἀκαμπεστέρους μὲν γενέσθαι τοὺς ἵππους ὑπὸ τῆς ἀργίας δύσπορον δὲ τὴν ὁδὸν ἀτριβῆ μένουσαν τριῶν ἑξῆς
ἡμερῶν τοὺς δὲ ἀνθρώπους ἀθλίους ἐν σκοτεινῷ διαβιοῦν τοιαῦτα ἀπολαύσονται τῶν Διὸς ἐρώτων καὶ
καθεδοῦνται περιμένοντες ἔστ ἂν ἐκεῖνος ἀποτελέσῃ τὸν ἀθλητήν ὃν λέγεις ὑπὸ
μακρῷ τῷ ζόφῳ
171
A imagem de tirano se completa com a oposiccedilatildeo ao governante anterior como jaacute foi
enfatizado no toacutepico sobre Prometeu Luciano apresenta a referecircncia agrave monarquia governada
por Cronos que se oporia em essecircncia ao governo tiracircnico de Zeus ndash jaacute que o primeiro era
respeitoso com sua esposa e com a ordem natural ou seja com o bem comum enquanto Zeus
pensa exclusivamente em seus desejos individuais Observe-se que essa comparaccedilatildeo eacute feita
com cuidados visto que Heacutelio espera que ningueacutem os ouccedila pois sabe das puniccedilotildees que pode
sofrer
Em oposiccedilatildeo a Zeus Luciano traccedila uma imagem bastante distinta de Cronos Como
podemos observar no texto As Saturnais que versa justamente sobre essa festa as Saturnais293
Nesse diaacutelogo maior travado entre Cronos e um sacerdote haacute dois assuntos que nos interessam
Em primeiro lugar quando Cronos se diferencia de Zeus ao falar de seu reinado ele afirma que
ldquoeu natildeo te aterrorizarei com a minha eacutegide nem com o meu raiordquo (Luciano Sat 4)294
O outro aspecto que queremos ressaltar que se coaduna com a ideia de que Cronos
representa um poder legiacutetimo eacute a explicaccedilatildeo que esse fornece sobre a tradicional narrativa que
afirma que ele foi destronado por Zeus Mesmo chateado com a pergunta ele responde ao
Sacerdote da seguinte maneira
Sacerdote mdash Entatildeo em primeiro lugar o seguinte se eacute verdade o que
ouvimos dizer a teu respeito ou seja que tu devoraste os filhos de Reia e que
esta tendo surripiado Zeus deu-te dissimuladamente uma pedra em vez do
bebeacute e que este chegado agrave idade adulta depois de te vencer numa guerra te
expulsou do teu reino e em seguida te lanccedilou no Taacutertaro agrilhoando-te a ti e
a todos os aliados que tinham sido arregimentados por ti
Crono mdash Meu caro se natildeo estiveacutessemos em tempo de festa e natildeo fosse
permitido agraves pessoas embriagarem-se e ofenderem agrave vontade os seus senhores
ficarias a saber que eu posso muito bem irritar-me com o facto de tu me fazeres
essa pergunta sem respeito pelas minhas catildes e por uma velha divindade
Sacerdote mdash Mas eu oacute Crono natildeo afirmo isso vindo de mim mesmo mas eacute
Hesiacuteodo e Homero e ateacute receio dizer que quase todas as outras pessoas
acreditam nessa coisa a teu respeito
Crono mdash Entatildeo tu achas que esse pastor esse charlatatildeo sabe alguma coisa
de jeito sobre a minha pessoa Repara nisto Haveraacute algum homem (jaacute natildeo
digo algum deus) que tenha a coragem de devorar conscientemente os seus
ΕΡΜΗΣ
Σιώπα ὦ Ἥλιε μή τι κακὸν ἀπολαύσῃς τῶν λόγωνrdquo 293 Festa romana celebrada no solstiacutecio de inverno entre os dias 17 e 23 de dezembro era caracterizada pela alegria
No decorrer da festa fechavam-se as escolas e os tribunais podia-se jogar nas ruas paralisavam as guerras Os
senhores serviam os escravos em suas casas e trocavam presentes Nesta festa invocava-se a eacutepoca de ouro
governada por Saturno o Cronos dos gregos Bakhtin (2010 147) afirma que essa festa apresenta as caracteriacutesticas
de uma festividade carnavalesca principalmente por causa da inversatildeo da ordem o que eacute refutado por Gonccedilalves
(2009 3) pelo menos na apresentaccedilatildeo feita por Luciano desta festa uma vez que ela natildeo observa que existe uma
inversatildeo da ordem mas a criaccedilatildeo de outra ordem por isso as normatizaccedilotildees tratadas pelo texto luciacircnico 294 ldquoὡς ἐμοῦ πρὸς οὐδὲν δεδιξομένου σε τῇ αἰγίδι καὶ τῷ κεραυνῷrdquo
172
filhos a natildeo ser que qual outro Tiestes desse com um irmatildeo iacutempio E se
estivesse assim tatildeo louco como lhe passaria despercebido o facto de estar a
comer uma pedra em vez do menino a natildeo ser que tivesse os dentes
insensiacuteveis agrave dor Tambeacutem natildeo nos guerreaacutemos nem Zeus tomou o poder pela
forccedila mas pelo contraacuterio fui eu que abdiquei e lhe entreguei voluntariamente
E quanto ao facto de eu natildeo ter sido agrilhoado nem estar no Taacutertaro tu mesmo
o constatas creio eu se natildeo eacutes cego como Homero
Sacerdote mdash Mas entatildeo oacute Crono por que motivo abandonaste o poder
Crono mdash Vou explicar-te Em resumo por ser jaacute velho e sofrer de gota devido
agrave minha idade avanccedilada Por isso eacute que a maioria das pessoas imagina que eu
estou agrilhoado Na verdade jaacute natildeo tinha forccedila para afrontar a injusticcedila dos
tempos atuais pois tinha de estar constantemente a acorrer acima e abaixo de
raio em riste a fim de fulminar os perjuros os ladrotildees de templos os
violentos e entatildeo a coisa tornou-se muito trabalhosa e proacutepria de gente nova
Por isso abdiquei a favor de Zeus e fiz eu muito bem Aleacutem disso tive por
bem dividir o poder pelos meus filhos enquanto eu ando a maior parte das
vezes calmamente em festins sem me preocupar com os suplicantes sem ser
incomodado por pessoas que solicitam graccedilas desencontradas sem trovejar
sem relampejar sem ser algumas vezes obrigado a mandar granizo Pelo
contraacuterio levo esta agradabiliacutessima vida de velho bebendo o neacutectar
tagarelando com Jaacutepeto e os outros da minha idade enquanto Zeus eacute que
governa assoberbado de mil preocupaccedilotildees No entanto decidi tirar para mim
estes poucos dias nas condiccedilotildees que referi e retomar o poder a fim de
recordar aos homens como era a vida durante o meu reinado em que todos os
produtos sem serem semeados nem lavrados nasciam espontaneamente natildeo
na forma de espigas mas como patildees jaacute prontos e a carne jaacute vinha cozinhada
e o vinho corria como autecircnticos rios e as fontes eram de mel e de leite Todos
os homens eram bons e feitos de ouro Eis a razatildeo deste meu efeacutemero reinado
e por isso se assiste por todo o lado a algazarra cantos jogos e igualdade para
todos escravos ou homens livres De facto durante o meu reinado ningueacutem
era escravo (Luciano Sat 5-7)295
295 ldquoΙΕΡΕΥΣ
Τὸ μὲν πρῶτον ἐκεῖνο εἰ ἀληθῆ ταῦτά ἐστιν ἃ περὶ σοῦ ἀκούομεν ὡς κατήσθιες τὰ γεννώμενα ὑπὸ τῆς Ῥέας
ἐκείνη δὲ ὑφελομένη τὸν Δία λίθον ὑποβαλλομένη ἀντὶ τοῦ βρέφους ἔδωκέ σοι καταπιεῖν ὁ δὲ εἰς ἡλικίαν
ἀφικόμενος ἐξήλασέ σε τῆς ἀρχῆς πολέμῳ κρατήσας εἶτα ἐς τὸν Τάρταρον φέρων ἐνέβαλε πεδήσας αὐτόν τε καὶ
τὸ συμμαχικὸν ἅπαν ὁπόσον μετὰ σοῦ παρετάττετο
ΚΡΟΝΟΣ
Εἰ μὴ ἑορτήν ὦ οὗτος ἤγομεν καὶ μεθύειν ἐφεῖτο καὶ λοιδορεῖσθαι τοῖς δεσπόταις ἐπ
ἐξουσίας ἔγνως ἂν ὡς ὀργίζεσθαι γοῦν ἐφεῖταί μοι τοιαῦτα ἐρωτήσας οὐκ αἰδεσθεὶς πολιὸν οὕτω καὶ πρεσβύτην
θεόν
ΙΕΡΕΥΣ
Κἀγὼ ταῦτα ὦ Κρόνε οὐ παρ ἐμαυτοῦ φημι ἀλλ Ἡσίοδος καὶ Ὅμηρος ὀκνῶ γὰρ λέγειν ὅτι καὶ οἱ ἄλλοι
ἅπαντες ἄνθρωποι σχεδὸν ταῦτα πεπιστεύκασι περὶ σοῦ
ΚΡΟΝΟΣ
Οἴει γὰρ τὸν ποιμένα ἐκεῖνον τὸν ἀλαζόνα ὑγιές τι περὶ ἐμοῦ εἰδέναι σκόπει δὲ οὕτως ἔσθ ὅστις ἄνθρωπος (οὐ
γὰρ θεὸν ἐρῶ) ὑπομείνειεν ἂν ἑκὼν αὐτὸς καταφαγεῖν τὰ τέκνα εἰ μή τις Θυέστης ὢν ἀσεβεῖ ἀδελφῷ περιπεσὼν
ἤσθιε καὶ εἰ τοῦτο μανείη πῶς ἀγνοήσει λίθον ἀντὶ βρέφους ἐσθίων εἰ μὴ ἀνάλγητος εἴη τοὺς ὀδόντας ἀλλ οὔτε
ἐπολεμήσαμεν οὔτε ὁ Ζεὺς βίᾳ τὴν ἀρχὴν ἑκόντος δέ μου παραδόντος αὐτῷ καὶ ὑπεκστάντος ἄρχει ὅτι μὲν γὰρ
οὔτε πεπέδημαι οὔτε ἐν τῷ Ταρτάρῳ εἰμί καὶ αὐτὸς ὁρᾷς οἶμαι εἰ μὴ τυφλὸς ὥσπερ Ὅμηρος εἶ
ΙΕΡΕΥΣ
Τί παθὼν δέ ὦ Κρόνε ἀφῆκας τὴν ἀρχήν
ΚΡΟΝΟΣ
Ἐγώ σοι φράσω τὸ μὲν ὅλον γέρων ἤδη καὶ ποδαγρὸς ὑπὸ τοῦ χρόνου ὤν διὸ καὶ πεπεδῆσθαί με οἱ πολλοὶ
εἴκασαν οὐ γὰρ ἠδυνάμην διαρκεῖν πρὸς οὕτω πολλὴν τὴν ἀδικίαν τῶν νῦν ἀλλ ἀεὶ ἀναθεῖν ἔδει ἄνω καὶ κάτω
τὸν κεραυνὸν διηρμένον τοὺς ἐπιόρκους ἢ ἱεροσύλους ἢ βιαίους καταφλέγοντα καὶ τὸ πρᾶγμα πάνυ ἐργῶδες ἦν
καὶ νεανικόν ἐξέστην οὖν εὖ ποιῶν τῷ Διί καὶ ἄλλως δὲ καλῶς ἔχειν ἐδόκει μοι διανείμαντα τοῖς παισὶν οὖσι τὴν
173
Essa longa citaccedilatildeo eacute relevante pois confirma o argumento que se consolidou no decorrer
deste capiacutetulo que eacute da oposiccedilatildeo entre Zeus e Cronos Podemos dizer que Luciano recupera a
imagem de Cronos mas resta-nos indagar qual a intencionalidade que estaacute por traacutes disso A
nosso ver reforccedilar a oposiccedilatildeo entre duas formas distintas de governo uma vez que as Saturnais
jaacute representam uma eacutepoca de ouro de alegria e diversatildeo em que ningueacutem era escravo de
ningueacutem
O Cronos luciacircnico desmente a tradiccedilatildeo que dizia que ele comia os proacuteprios filhos
Cronos abandona o poder pela idade fato que natildeo tem correspondecircncia na vida poliacutetica romana
mas que aparece como uma possibilidade de futuro uma forma utoacutepica de sistema de sucessatildeo
No entanto Cronos deixa evidente suas criacuteticas agrave sociedade atual uma vez que natildeo tinha forccedilas
para enfrentar as injusticcedilas atuais
Tendo em vista as diversas imagens de Zeus presentes nos diaacutelogos luciacircnicos
passamos para mais um assunto que eacute fundamental os limites de atuaccedilatildeo das divindades na
vida dos homens No longo diaacutelogo Timon ou o misantropo ndash que tem como tema principal o
papel da riqueza na vida dos homens e de como essa atrairia diversos ldquoamigosrdquo interessados
nas benesses que os tesouros podem trazer-lhes ndash temos que Timon havia sido muito rico e
perdeu todos os seus bens ao ajudar todos que lhe pediam Ele inicia o diaacutelogo com um longo
discurso em que acusa os deuses de negligecircncia uma vez que ele sempre foi um excelente
devoto atento a todos os seus deveres religiosos enquanto muitas pessoas que cometiam atos
de impiedade contra os deuses natildeo eram punidos por seu raio Quando Hermes narra a Zeus a
trajetoacuteria de Timon esse se compadece e lhe envia o mensageiro dos deuses juntamente com
Pluto296 e seu Tesouro para que ele voltasse a ser rico Novamente abastado Timon jaacute natildeo aceita
a bajulaccedilatildeo daqueles que na desgraccedila lhe haviam virado agraves costas Luciano movimenta sua pena
no intuito de colocar mais uma vez a criacutetica aos ricos de seu tempo mesmo que o tempo do
diaacutelogo seja a Atenas democraacutetica
ἀρχὴν αὐτὸν εὐωχεῖσθαι τὰ πολλὰ ἐφ ἡσυχίας οὔτε τοῖς εὐχομένοις χρηματίζοντα οὔτε ὑπὸ τῶν τἀναντία
αἰτούντων ἐνοχλούμενον οὔτε βροντῶντα ἢ ἀστράπτοντα ἢ χάλαζαν ἐνίοτε βάλλειν ἀναγκαζόμενον ἀλλὰ
πρεσβυτικόν τινα τοῦτον ἥδιστον βίον διάγω ζωρότερον πίνων τὸ νέκταρ τῷ Ἰαπετῷ καὶ τοῖς ἄλλοις τοῖς
ἡλικιώταις προσμυθολογῶν ὁ δὲ ἄρχει μυρία ἔχων πράγματα πλὴν ὀλίγας ταύτας ἡμέρας ἐφ οἷς εἶπον
ὑπεξελέσθαι μοι ἔδοξε καὶ ἀναλαμβάνω τὴν ἀρχήν ὡς ὑπομνήσαιμι τοὺς ἀνθρώπους οἷος ἦν ὁ ἐπ ἐμοῦ βίος
ὁπότε ἄσπορα καὶ ἀνήροτα πάντα ἐφύετο αὐτοῖς οὐ στάχυες ἀλλ ἕτοιμος ἄρτος καὶ κρέα ἐσκευασμένα καὶ ὁ
οἶνος ἔρρει ποταμηδὸν καὶ πηγαὶ μέλιτος καὶ γάλακτος ἀγαθοὶ γὰρ ἦσαν καὶ χρυσοῖ ἅπαντες αὕτη μοι ἡ αἰτία τῆς
ὀλιγοχρονίου ταύτης δυναστείας καὶ διὰ τοῦτο ἁπανταχοῦ κρότος καὶ ᾠδὴ καὶ παιδιὰ καὶ ἰσοτιμία πᾶσι καὶ
δούλοις καὶ ἐλευθέροις οὐδεὶς γὰρ ἐπ ἐμοῦ δοῦλος ἦνrdquo 296 Personificaccedilatildeo da riqueza caracterizada como cega
174
Em nossa anaacutelise natildeo interessa o debate acerca da riqueza e da pobreza que poderaacute ser
retomado agrave medida que esse nos forneccedila elementos para a compreensatildeo da imagem que Zeus
o maior dos deuses oliacutempicos apresenta em alguns diaacutelogos luciacircnicos Timon invoca o deus
de maneira bastante irocircnica
Timon ndash Oacute Zeus protetor dos amigos do hospedes e dos companheiros
lanccedilador de raios guardiatildeo dos juramentos ajuntador de nuvens tonante ou
qualquer outro nome que atribuam os poetas que perderam o juiacutezo com teu
reio ndash principalmente quando se veem em dificuldades meacutetricas pois nesse
caso ao tomares muacuteltiplos nomes sustenta o fecho do metro e preenches o
vazio do ritmo - onde estatildeo agora o teu claratildeo estrondoso o teu trovatildeo
reboante e o teu raio ardente brilhante e aterrador Sim tudo isso se revelou
afinal uma balela e fumo puramente poeacutetico para aleacutem do fragor das palavras
Essa tua arma tatildeo celebrada de tatildeo longo alcance e sempre agrave matildeo natildeo sei laacute
como extinguiu-se por completo ficou fria natildeo conservava sequer uma
centelha de coacutelera contra os malfeitores (Luciano Tim 1)297
Timon ao invocar o pai dos deuses comeccedila da maneira usual elogiando a divindade
com os epiacutetetos que a distinguem Entretanto o siacuterio se coloca em um lugar fora da construccedilatildeo
mimeacutetica e procura em seu texto inverter a colocaccedilatildeo Os famosos epiacutetetos presentes na
tradiccedilatildeo desde os poemas homeacutericos e hesioacutedicos natildeo satildeo nada aleacutem de recursos estiliacutesticos
utilizados pelos escritores a fim de compor o verso exato
Ao desvendar os recursos estiliacutesticos dos poetas o samosatense suspende a sacralidade
desses cujo poder invocatoacuterio passa a ser o instrumento vazio da construccedilatildeo verbal do poeta
Assim os poderes do grande deus satildeo questionados uma vez que a simples observaccedilatildeo
cotidiana tem revelado que os homens piedosos natildeo satildeo olhados pelos deuses e que aqueles que
cometem perjuacuterios natildeo satildeo punidos pela deidade Assim tanto poder natildeo passa de construccedilatildeo
poeacutetica
O raio de Zeus seu principal atributo e arma eacute indagado jaacute que ldquouma pessoa que
preparasse para cometer perjuacuterio mais facilmente temeria um pavio de veacutespera do que a chama
do raio omnipotenterdquo (Luciano Tim 2)298 O ataque do maior dos deuses apenas sujaria de
fuligem aqueles que ele atacasse Nesse tom Timon continua seu discurso
297 ldquoΤΙΜΩΝ
Ὦ Ζεῦ φίλιε καὶ ξένιε καὶ ἑταιρεῖε καὶ ἐφέστιε καὶ ἀστεροπητὰ καὶ ὅρκιε καὶ νεφεληγερέτα καὶ ἐρίγδουπε καὶ εἴ
τί σε ἄλλο οἱ ἐμβρόντητοι ποιηταὶ καλοῦσι ndash καὶ μάλιστα ὅταν ἀπορῶσι πρὸς τὰ μέτρα τότε γὰρ αὐτοῖς
πολυώνυμος γενόμενος ὑπερείδεις τὸ πῖπτον τοῦ μέτρου καὶ ἀναπληροῖς τὸ κεχηνὸς τοῦ ῥυθμοῦ ndash ποῦ σοι νῦν ἡ
ἐρισμάραγος ἀστραπὴ καὶ ἡ βαρύβρομος βροντὴ καὶ ὁ αἰθαλόεις καὶ ἀργήεις καὶ σμερδαλέος κεραυνός ἅπαντα
γὰρ ταῦτα λῆρος ἤδη ἀναπέφηνε καὶ καπνὸς ἀτεχνῶς ποιητικὸς ἔξω τοῦ πατάγου τῶν ὀνομάτων τὸ δὲ ἀοίδιμόν
σοι καὶ ἑκηβόλον ὅπλον καὶ πρόχειρον οὐκ οἶδ ὅπως τελέως ἀπέσβη καὶ ψυχρόν ἐστι μηδὲ ὀλίγον σπινθῆρα
ὀργῆς κατὰ τῶν ἀδικούντων διαφυλάττονrdquo 298 ldquoθᾶττον γοῦν τῶν ἐπιορκεῖν τις ἐπιχειρούντων ἕωλον θρυαλλίδα φοβηθείη ἂν ἢ τὴν τοῦ πανδαμάτορος
κεραυνοῦ φλόγαrdquo
175
Em seguida a personagem se lembra de Salmoneu que tentou imitar o trovatildeo de Zeus
Timon apenas faz alusatildeo agravequele que havia construiacutedo uma estrada pavimentada de bronze ou
de ferro e arrastado correntes atraacutes dele Pretendia se assemelhar a Zeus mimetizando o raio e
o trovatildeo Zeus puniu esse ato de impiedade fulminando-o (GRIMAL 2005 412) Como o mito
eacute de conhecimento da maioria dos possiacuteveis ouvintes eou leitores do diaacutelogo o escritor natildeo
apresenta mais que uma raacutepida alusatildeo agrave ambiccedilatildeo presente no mito No caso o mais importante
para a continuaccedilatildeo desse diaacutelogo eacute que ele foi punido com o raio de Zeus
Timon argumenta que em sua atualidade o deus natildeo punia as pessoas com essa
severidade por isso profanar os templos natildeo era um problema Timon dirige-se a Zeus dizendo
ldquoestaacutes adormecido como sob o efeito da mandraacutegora299rdquo (Luciano Tim 2) 300 O deus jaacute natildeo
ouve nem vecirc bem Estaacute remeloso tem a vista curta e os ouvidos moucos ou seja tem os sentidos
de um velho (Luciano Tim 2)
Suas atitudes se diferenciam daquelas tomadas em sua juventude na qual os crimes de
perjuacuterio eram punidos com severidade uma vez que ldquoquando eras ainda jovem irasciacutevel e no
maacuteximo de tua coacutelera aplicavas grandes castigos agraves pessoas injustas e violentas e nunca lhes
davas treacuteguasrdquo (Luciano Tim 3)301 Timon ainda evoca outra narrativa miacutetica disponiacutevel os
infortuacutenios vividos por Decaliatildeo302 fazendo referecircncia ao diluacutevio que quase destruiu a raccedila
humana
Timon enfatiza a negligecircncia natildeo somente de Zeus mas de todos os deuses em relaccedilatildeo
aos assuntos humanos Timon afirma o seguinte ldquoPortanto estaacutes a colher da parte dos homens
o fruto proveniente de tua negligecircncia pois jaacute ningueacutem te oferece sacrifiacutecios nem te coroardquo
(Luciano Tim 4)303 Segundo Timon seguindo esse caminho Zeus se tornaraacute outro Crono
esquecido e ldquoexcluiacutedo de honrariasrdquo (ldquoπαρωσάμενοι τῆς τιμῆςrdquo) (Luciano Tim 4)
Esses atos colocariam Zeus em uma situaccedilatildeo complicada uma vez que seus templos satildeo
assaltados e ele natildeo faz nada Ele cita o caso do templo de Oliacutempia cuja estaacutetua de Zeus eacute
299 Planta da famiacutelia das solanaceae tem efeitos alucinoacutegenos e analgeacutesica muito utilizada na magia de origem
greco-romana 300 ldquoπῶς γὰρ ltοὐgt ὅπου γε καθάπερ ὑπὸ μανδραγόρᾳ καθεύδεις []rdquo 301 ldquoἐπεὶ νέος γε ἔτι καὶ ὀξύθυμος ὢν καὶ ἀκμαῖος τὴν ὀργὴν πολλὰ κατὰ τῶν ἀδίκων καὶ βιαίων ἐποίεις καὶ
οὐδέποτε ἦγες τότε πρὸς αὐτοὺς ἐκεχειρίαν []rdquo 302 Filho de Prometeu escolhido por Zeus para consevar a raccedila humana quando no periacuteodo do Bronze ele resolve
enviar um grande diluacutevio e matar quase todos os homens e mulheres Aconselhado pelo Titatilde ele teria construiacutedo
uma arca que vagou por nove dias No opuacutesculo Sobre a deusa siacuteria Luciano eacute o uacutenico autor antigo grego que
afirma que Deucaliatildeo levou consigo um casal de cada animal existente (Luciano Syr Dea 12) o que
provavelmente eacute uma reminicecircncia de uma memoacuteria mesopotacircmia muito antiga uma vez que essa ideia tambeacutem
se encontra na narrativa judaica do Gecircnese 303 ldquo Τοιγάρτοι ἀκόλουθα τῆς ῥᾳθυμίας τἀπίχειρα κομίζῃ παρ αὐτῶν οὔτε θύοντος ἔτι σοί τινος οὔτε
στεφανοῦντος []rdquo
176
considerada uma das sete maravilhas do mundo antigo ldquoE jaacute nem falo das muitas vezes em
que saquearam o teu templo alguns puseram mesmo as matildeos sobre ti em Oliacutempia e tu o
lsquoaltitonantersquo nem sequer te dignaste despertar os catildees ou chamar os vizinhosrdquo (Luciano Tim
4)304 Luciano ressalta a imobilidade da divindade que mesmo diante de uma ofensa a ela
mesma natildeo age
Ele continua utilizando-se ironicamente de mais alguns epiacutetetos para falar do roubo
das cabeleiras de ouro de sua estaacutetua em Oliacutempia ldquoTu o valentatildeo o lsquoExterminador de
Gigantesrsquo o lsquoVencedor dos Titatildesrsquo ficaste ali plantado e deixando que te raspassem os cabelos
mesmo segurando tu na matildeo direita um raio de dez cocircvadosrdquo (Luciano Tim 4)305
Essa imagem natildeo representa a estaacutetua de Zeus que estava no templo de Oliacutempia uma
vez que essa trazia na matildeo esquerda a deusa Nike (Vitoacuteria) e na direita uma aacuteguia Logo trata-
se de um recurso retoacuterico que fala mais da representaccedilatildeo luciacircnica de Zeus no que tange ao
seu poder enquanto pai dos deuses Provavelmente Luciano natildeo conhecia o Templo de Zeus
em Oliacutempia
Outro ponto interessante eacute a retomada de epiacutetetos que remetem a vitoacuterias passadas o
que era algo comum entre os governantes de seu tempo Para ilustrar esse aspecto podemos
recorrer a Dion Caacutessio que nos conta que o Imperador Cocircmodo mandava suas mensagens ao
Senado Romano assim
O Imperador Ceacutesar Luacutecio Eacutelio Aureacutelio Cocircmodo Augusto Pio Feliz
Sarmaacutetico Germacircnico Maacuteximo Britacircnico Pacificador de toda a terra
Invenciacutevel o Heacutercules Romano Pontiacutefice Maacuteximo Tribuno por 18 vezes
Imperador por 8 vezes Cocircnsul por 7 vezes Pai da Paacutetria para os cocircnsules
pretores tribunos e para o afortunado Senado de Cocircmodo Saudaccedilotildees (Dion
Caacutessio Histoacuteria romana LXXII 15)306
Essa citaccedilatildeo serve para explanar o uso no periacuteodo de Luciano desses epiacutetetos como siacutembolo de
poder Cocircmodo era o conquistador dos Saacutermatas dos Germacircnicos e da Britacircnia Como Zeus ele era
invenciacutevel Dessa forma a maneira irocircnica com a qual Luciano utiliza os tiacutetulos do pai dos deuses
reinventa a imagem presente na tradiccedilatildeo helecircnica
304 ldquoἐῶ λέγειν ποσάκις ἤδη σου τὸν νεὼν σεσυλήκασιν οἱ δὲ καὶ αὐτῷ σοὶ τὰς χεῖρας Ὀλυμπίασιν ἐπιβεβλήκασι
καὶ σὺ ὁ ὑψιβρεμέτης ὤκνησας ἢ ἀναστῆσαι τοὺς κύνας ἢ τοὺς γείτονας ἐπικαλέσασθαι []rdquo 305 ldquoἀλλ ὁ γενναῖος καὶ Γιγαντολέτωρ καὶ Τιτανοκράτωρ ἐκάθησο τοὺς πλοκάμους περικειρόμενος ὑπ αὐτῶν
δεκάπηχυν κεραυνὸν ἔχων ἐν τῇ δεξιᾷrdquo 306 laquo αὐτοκράτωρ Καῖσαρ Λούκιος Αἴλιος Αὐρήλιος Κόμμοδος Αὔγουστος εὐσεβὴς εὐτυχής Σαρματικὸς
Γερμανικὸς μέγιστος Βρεττανικός εἰρηνοποιὸς τῆς οἰκουμένης εὐτυχὴς ἀνίκητος Ῥωμαῖος Ἡρακλῆς
ἀρχιερεύς δημαρχικῆς ἐξουσίας τὸ ὀκτωκαιδέκατον αὐτοκράτωρ τὸ ὄγδοον ὕπατος τὸ ἕβδομον πατὴρ πατρίδος
ὑπάτοις στρατηγοῖς δημάρχοις γερουσίᾳ Κομμοδιανῇ εὐτυχεῖ χαίρειν raquo
177
Nesse caso Zeus vecirc que Timon sempre justo e generoso estaacute pobre e sozinho reclamando dos
deuses que o esqueceram Envia-lhe Hermes com Pluto e o Tesouro a fim de fazer-lhe um homem rico
No final do diaacutelogo novamente rico Timon natildeo aceita mais os bajuladores e os falsos amigos Nesse
diaacutelogo a criacutetica social se sobressai agrave imagem do deus tiracircnico pois a intenccedilatildeo eacute mostrar as reviravoltas
da vida e o aprendizado que a pobreza fornece daiacute esse Zeus natildeo se contradizer agrave imagem traccedilada por
Luciano mas reafirmar jaacute que se distanciou do mundo dos homens por conta dos infindaacuteveis debates
filosoacuteficos e das muitas accedilotildees de perjuacuterio Como ele mesmo diz ldquoTodavia por falta de vagar e pelo
tumulto que provocam os perjuros os violentos e os ladrotildees e ainda por cima com receio dos
saqueadores de templos () haacute muito tempo que nem sequer olho para a Aacutetica sobretudo desde que a
filosofia e as disputas verbais imperaram entre os ateniensesrdquo (Luciano Tim 9)307
Para concluir essa anaacutelise sobre Zeus gostariacuteamos de retomar o diaacutelogo maior Zeus Refutado
cujo tema eacute a presenccedila do destino na vida humana Zeus eacute questionado pelo filoacutesofo ciacutenico Ciniacutesco sobre
as Parcas que tecem o destino de todos os homens e forjam os oraacuteculos Zeus eacute obrigado a afirmar que
ldquoNatildeo haacute nada que as Parcas natildeo tenham determinado mas pelo contraacuterio tudo quanto acontece eacute
enrolado pela sua roca e cada acontecimento tem o desfecho que lhe foi ficado logo desde o princiacutepio
e natildeo eacute possiacutevel acontecer de outra maneirardquo (Luciano I Conf 1)308
O ardiloso filoacutesofo questiona se os deuses tambeacutem estatildeo sob domiacutenio das Parcas o que eacute
respondido com uma afirmativa (Luciano I Conf 3) Tal argumento chega agrave conclusatildeo que fazer
sacrifiacutecios e cultuar os deuses eacute desnecessaacuterio e natildeo influi na vida das pessoas
A nosso entender o Zeus luciacircnico representa duas criacuteticas importantes agrave realidade que o
escritor vive De um lado ele representa o tirano tal como mostram os manuais poliacuteticos e muito
provavelmente sob a orientaccedilatildeo aristoteacutelica e em segundo lugar os limites de accedilatildeo dessa divindade que
natildeo controla tudo
Haacute uma anaacutelise das instituiccedilotildees poliacuteticas de seu tempo Os homens do seacuteculo II natildeo tinham outro
horizonte poliacutetico natildeo havia qualquer expectativa de mudanccedila Assim era fundamental refletir sobre
como natildeo se tornar um mau governante ndash que relembrasse os tiranos de outrora ndash uma vez que natildeo era
possiacutevel evitar o Imperador
307 ldquoπλὴν ὑπ ἀσχολίας τε καὶ θορύβου πολλοῦ τῶν ἐπιορκούντων καὶ βιαζομένων καὶ ἁρπαζόντων ἔτι δὲ καὶ
φόβου τοῦ παρὰ τῶν ἱεροσυλούντων [] πολὺν ἤδη χρόνον οὐδὲ ἀπέβλεψα ἐς τὴν Ἀττικήν καὶ μάλιστα ἐξ οὗ
φιλοσοφία καὶ λόγων ἔριδες ἐπεπόλασαν αὐτοῖςrdquo 308 ldquo[] οὐδὲν γάρ ἐστιν ὅ τι μὴ αἱ Μοῖραι διατάττουσιν ἀλλὰ πάντα ὁπόσα γίνεται ὑπὸ τῷ τούτων ἀτράκτῳ
στρεφόμενα εὐθὺς ἐξ ἀρχῆς ἕκαστον ἐπικεκλωσμένην ἔχει τὴν ἀπόβασιν καὶ οὐ θέμις ἄλλως γενέσθαιrdquo
178
Consideraccedilotildees finais
Luciano de Samoacutesata foi um dos inteacuterpretes do Impeacuterio Greco-Romano Sua prosa
documenta a postura de um intelectual desde que esse conceito se restrinja agravequele indiviacuteduo
que conhece e se relaciona com a tradiccedilatildeo literaacuteria profundamente ligado agraves atividades
culturais de seu tempo Nossa leitura do texto luciacircnico visou mostrar como esse escritor
expressa a difiacutecil relaccedilatildeo dos povos submetidos com o Impeacuterio Deliberadamente fugimos das
dicotomias empobrecedoras que fixavam uma postura ou contra ou a favor O siacuterio eacute um criacutetico
do Impeacuterio um produtor de sentido que tenta interpretar a realidade em que vive Seus textos
expressam essa realidade na contradiccedilatildeo em que ela se insere Como vimos Luciano natildeo estava
preso agrave sua biblioteca mas foi nessa que ele encontrou o material para pesar sua eacutepoca Da
mesma forma que Luciano natildeo foi um intelectual engajado contra o Impeacuterio romano haacute uma
seacuterie de criacuteticas e alertas agraves relaccedilotildees e aos costumes estabelecidos Entretanto natildeo havia um
projeto para substituir a realidade existente
Contudo ainda existia o problema da dificuldade em entender como se dava esse
uso poliacutetico Nesse sentido foi fundamental retornar aos mecanismos metanarrativos que
ordenavam o uso das narrativas sobre o passado ou seja em qual regime de memoacuteria se
inscrevem esses escritos Tal indagaccedilatildeo foi respondida tendo em vista a formaccedilatildeo retoacuterica sob
os auspiacutecios da Paideia helecircnica O uso da linguagem eacute orientado pelo escritor Os professores
de retoacuterica e seus manuais fornecem exemplos que devem ser utilizados nos diferentes
momentos O proacuteprio discurso obedece a uma organizaccedilatildeo interna e externa sendo que o orador
eacute um personagem poliacutetico importante na relaccedilatildeo das cidades com o poder imperial A Paideia
coloca os indiviacuteduos em contato com textos canocircnicos que fornecem os exemplos necessaacuterios
para a construccedilatildeo retoacuterica
Nesse sentido o gecircnero literaacuterio natildeo eacute escolhido aleatoriamente constituindo-se
um importante indiacutecio para a compreensatildeo do cenaacuterio cultural em que o escritor se insere
Luciano tem a intenccedilatildeo de produzir o riso um riso que mobiliza o pensamento e eacute construiacutedo
por meio da saacutetira Nesse caso a saacutetira menipeia de elementos conhecidos e que em seu arranjo
literaacuterio ganha formas inusitadas Haacute em seus escritos um processo de recriaccedilatildeo que visa
interpretar sua realidade fornecendo niacuteveis distintos de interpretaccedilatildeo Nesta Tese buscamos
entender os usos poliacuteticos que o texto luciacircnico poderia ter tendo em vista a relaccedilatildeo entre as
divindades a representaccedilatildeo de assembleias semelhantes agraves helecircnicas a imagem de Zeus os
espaccedilos miacuteticos (Hades e Olimpo) e o comportamento dos tiranos nesses diaacutelogos Nosso
179
objetivo foi se restringindo no decorrer da Tese ao poder poliacutetico e agrave maneira como esse poder
serviu de suporte para a utilizaccedilatildeo das narrativas miacuteticas nesses textos
Nenhum poder se fundamenta exclusivamente sobre a forccedila bruta Haacute o cimento
constituiacutedo da legitimidade simboacutelica como nos ensinou Balandier (1982) Sua manutenccedilatildeo e
sustentaccedilatildeo necessitam de um grupo de apoio com ideias e crenccedilas sonhos e aspiraccedilotildees
horizontes de expectativa e laccedilos de pertencimento Satildeo necessaacuterios consensos que orientem as
escolhas e estrateacutegias de posicionamento Os mitos satildeo narrativas conhecidas amplamente que
remetem a um passado do grupo uma espeacutecie de memoacuteria fundante Os homens antigos
colocavam em segundo plano o questionamento da realidade empiacuterica da memoacuteria miacutetica mas
natildeo a desconheciam como podemos ver nos escritos de Luciano Independentemente do uso
que se faz da narrativa miacutetica ela eacute continuamente dita e repetida em um intenso processo de
emulaccedilatildeo Esse uso contiacutenuo acontece pela capacidade de significaccedilatildeo que o mito oferece ao
seu ouvinte Nesta Tese natildeo nos preocupamos com a utilizaccedilatildeo religiosoa que o uso desse mito
podia ter para o siacuterio Ao ler os textos luciacircnicos nos deparamos com um uso muito mais
matizado e questionador das narrativas miacuteticas O siacuterio viveu em um periacuteodo de efervescecircncia
religiosa com a ascensatildeo de cultos orientais principalmente do cristianismo Assim seus
textos mostram um inteacuterprete que via as contradiccedilotildees presentes nos mitos entretanto em
nenhum lugar de seus escritos ele os descarta Muito pelo contraacuterio Luciano usa os mitos como
veiacuteculo para suas ideias poliacuteticas
A anaacutelise dos textos luciacircnicos corroborou a assertiva de que os mitos apresentam
usos distintos principalmente usos voltados ao questionamento do poder Dizer que haacute usos
poliacuteticos nos escritos luciacircnicos subentende aceitar um questionamento sobre os poderes Nesse
sentido coube interrogar as narrativas alicerccediladas em inuacutemeros conjuntos de sentido fornecidos
pela tradiccedilatildeo homeacuterica e hesioacutedica principalmente uma vez que no regime de memoacuteria greco-
romano tais textos satildeo tomados como cacircnones
Luciano eacute um leitor dessas narrativas Como a escrita permite a glosa interminaacutevel
a interpretaccedilatildeo dar-se-aacute sob o crivo do riso Rir permite questionar e possibilita fugir dos
mecanismos de censura presentes no Impeacuterio romano Natildeo havia oacutergatildeos institucionalizados que
se voltavam agrave censura dos escritores ficando tal controle do que pode ou natildeo ser dito a cargo
do Imperador ou dos homens mais proacuteximos a ele Os homens fieacuteis ao Princeps estavam
dispersos nos mais distantes lugares do Impeacuterio Romano Uma vez detectada a construccedilatildeo de
discursos que se opunham ao governo imperial esses eram destruiacutedos e seu escritor
assassinado
180
Em um processo dialoacutegico de interaccedilotildees socioculturais que superam as meras
dicotomias que opotildeem dominantes e dominados estrutura e evento engajamento e alienaccedilatildeo
os homens constroem suas relaccedilotildees com o poder Os laccedilos que ligam o poder com os elementos
miacuteticos da sociedade ficam evidentes em um trabalho como o nosso que buscou observar o
poder em sua capilaridade para aleacutem do Estado eou Imperador Nesse acircmbito a noccedilatildeo
foucaltiana de micropoderes dispersos deu um norte para avanccedilar na leitura dos diaacutelogos
luciacircnicos O longo conviacutevio com esses textos remete a um mosaico de possibilidades de
leituras sobre o poder Ressaltamos a pluralidade e a plasticidade das informaccedilotildees pois natildeo se
trata de um tratado contra certas praacuteticas ou favor delas mas da representaccedilatildeo de praacuteticas
cotidianas em outro niacutevel no caso a mitologia Cuida-se aqui de compreender um dos
muacuteltiplos usos que esse texto teve
A narrativa luciacircnica prende o agente que escreve e os ouvintes em uma exegese do
real e da poliacutetica da sociedade e dos grupos que a compotildeem Seus diaacutelogos interagem com a
teologia poliacutetica do Impeacuterio Greco-Romano e evidenciam suas contradiccedilotildees Por meio das
releituras de personagens consagrados na tradiccedilatildeo ou de situaccedilotildees referentes a espaccedilos miacuteticos
aleacutem da nossa existecircncia o samosatense se posiciona diante do poder imperial em toda a sua
capilaridade seja na presenccedila cocircmica dos deuses em sua assembleia no riso de Menipo agrave
cegueira humana diante da morte no sofrimento de Prometeu diante das injusticcedilas do poder de
um tirano no desespero dos tiranos que perderam suas riquezas na representaccedilatildeo luciacircnica de
Zeus visto como o deus dos tiranos ou na sua impossibilidade de agir contraacuterio ao que se
estabelece pelo destino A exegese luciacircnica acontece nesse acircmbito que se sustenta em uma
memoacuteria cultural helecircnica que eacute apreendida por meio da Paideia grega A novidade luciacircnica
expressa essa formaccedilatildeo mas na difiacutecil dimensatildeo daquele que aprendeu a cultura do outro
Os textos luciacircnicos satildeo uma expressatildeo complexa e em muitos momentos
contraditoacuterio da Segunda Sofiacutestica desde o momento que entendemos que essa eacute um fenocircmeno
cultural caracterizado pela utilizaccedilatildeo de uma liacutengua especiacutefica que eacute pensada e repensada por
esse escritor O domiacutenio do grego aacutetico eacute expresso em seus textos mas eacute o proacuteprio Luciano que
critica o exagero de alguns sofistas em seu uso Ou seja o siacuterio compreende a tecircnue fronteira
entre a apropriaccedilatildeo criativa da liacutengua falada pelos atenienses do periacuteodo claacutessico e o exagero
pedante de alguns sofistas
O samosatense em sua formaccedilatildeo apropriou-se dos mecanismos mentais que lhe
permitiram dialogar e enfrentar a realidade em que vivia de maneira criativa mordaz e sagaz
Ele brincou com os gecircneros em um sentido muito proacuteprio Podemos questionar se a poliacutetica ou
o poder eacute uma brincadeira e nossa resposta eacute afirmativa e veemente pois trata-se de uma
181
modalidade especiacutefica do riso o riso que mobiliza o pensamento Rir para pensar Mutatis
mutandis podemos recordar a maacutexima comum no Brasil que toda brincadeira tem um fundo
de verdade Outro aspecto importante do riso eacute que ele se coloca na tecircnue linha que separa a
fuacuteria do escarnecido e seu desarmamento simboacutelico Nesse sentido a formaccedilatildeo retoacuterica devia
munir os homens a situaccedilotildees em que a parreacutesia significasse a morte ou a escravidatildeo
O siacuterio construiu seus discursos sob essa historicidade da verdade que confere um
sentido bem restrito e limites claros agrave praacutetica da parreacutesia Esta Tese retoma Luciano e pensa
seus escritos na loacutegica da identidadealteridade ao falar do lugar do outro do lugar de fronteira
que adveacutem de seu nascimento na siacuteria e do aprendizado fundamentado na Paideia helecircnica O
diaacutelogo luciacircnico eacute construiacutedo na confluecircncia de dois outros gecircneros claacutessicos o diaacutelogo
filosoacutefico e a comeacutedia numa estrateacutegia literaacuteria que lhe permitia fazer com que o puacuteblico ndash seja
ele de leitores ou de ouvintes ndash risse e por meio do riso refletisse sobre as coisas Riso se
mobiliza junto ao pensamento Nesse sentido os textos luciacircnicos satildeo extremamente seacuterios e
seus assuntos satildeo atinentes ao mundo que o cerca O domiacutenio do grego aacutetico e dos saberes
produzidos na tradiccedilatildeo cultural helecircnica permite-lhe o ingresso nessa identidade o que eacute um
fenocircmeno bastante especiacutefico jaacute que a identidade eacute construiacuteda por meio da adesatildeo e da
aglutinaccedilatildeo Mesmo dominando esse intricado manancial fornecido pela Paideia Luciano natildeo
deixou de se chamar de siacuterio muito menos se furtou a utilizar o ldquonoacutesrdquo para se referir ao Impeacuterio
(BRANDAtildeO 2014)
Estamos convencidos de que o siacuterio dominou as teacutecnicas da retoacuterica presentes nos
manuais de seu tempo Nesse sentido a citaccedilatildeo de Demeacutetrio eacute importante para mostrar que
havia uma preocupaccedilatildeo sobre como falar aos tiranos ou agraves pessoas violentas por meio de
subterfuacutegios simboacutelicos Ao aprender a lsquofalar ao tiranordquo Luciano se municia de um leque de
possibilidade de exposiccedilatildeo daquilo que ele desejava
Trata-se de uma ingenuidade pensar que o texto luciacircnico voltar-se-ia ao Imperador
Romano diretamente Como homem de letras pertencente a importantes ciacuterculos sociais ele
tinha acesso a grupos vinculados diretamente ao poder imperial em qualquer lugar que
estivesse Assim sua anaacutelise poliacutetica eacute elaborada com a utilizaccedilatildeo da mitologia e de outros
recursos retoacutericos e estiliacutesticos O deslocamento que propomos nesta pesquisa mostrou-se
deveras salutar respondendo as hipoacuteteses que haviacuteamos colocado
O siacuterio natildeo eacute nem proacute nem contra o Impeacuterio Romano sua escrita o coloca em uma
ambiguidade que eacute muito mais complexa Mesmo dominando os fundamentos da cultura
helecircnica ele natildeo era totalmente um grego mesmo servindo ao Imperador no Egito ele natildeo eacute
um defensor inconteste de sua poliacutetica mesmo se autodenominando siacuterio em diversos
182
momentos natildeo haacute um processo de reivindicaccedilatildeo identitaacuteria excludente Veyne mostrou-se
correto ao afirmar que os intelectuais vinculados agrave Segunda Sofiacutestica orgulham-se de serem
gregos desprezam Roma e colaboram com a ordem estabelecida (VEYNE 2009 80)
Analisamos Luciano como um exegeta de seu mundo inteacuterprete privilegiado e
sagaz que natildeo atacava o Imperador mas enfatizava o que seria um bom governante tendo em
vista os tiranos de outrora A memoacuteria histoacuterica e miacutetica coaduna em sua digressatildeo Nos
Diaacutelogos dos mortos podemos ver Heacuteracles Dioacutegenes Alexandre Minos Caronte e ateacute
mesmo Ceacuterbero em diaacutelogos sobre a vida e os vivos
Os poderosos satildeo expressos a todo momento principalmente os tiranos Se naquele
momento a tirania era apenas um adjetivo que qualificava o mau Imperador o samosatense
podia falar de personagens histoacutericos que ocupavam o cargo de tirano e assim prevenir os
contemporacircneos dos possiacuteveis desvios do poder As interpretaccedilotildees luciacircnicas de seu mundo
usam como pano de fundo a representaccedilatildeo de tempos anteriores ou mesmo de personagens
preteacuteritos mas evidenciam as accedilotildees e as praacuteticas que lhe eram contemporacircneos ao ato da escrita
Nesse sentido a narrativa miacutetica com sua diversidade de personagens e situaccedilotildees
possibilitou a construccedilatildeo desse debate referente agraves relaccedilotildees de poder nos diaacutelogos luciacircnicos
Por definiccedilatildeo o relato miacutetico eacute partilhado culturalmente experimentado como um passado da
comunidade eou do grupo por isso entendido aqui como uma memoacuteria cultural cujos
mecanismos de transmissatildeo satildeo compostos por praacuteticas comuns de ensino coacutepia e declamaccedilatildeo
dos textos canocircnicos A narrativa miacutetica permite em sua plasticidade agregar diversos sentidos
que comuniquem as ideias do escritos Luciano natildeo eacute um mitoacutegrafo natildeo queria reunir as lendas
dos deuses fazer cataacutelogos ou organizar informaccedilotildees como outros eruditos sua intenccedilatildeo era
utilizar os personagens miacuteticos seus ambientes suas confluecircncias com a histoacuteria e com sua
contemporaneidade para inventar uma nova forma de discurso Dessa forma seu uso da tradiccedilatildeo
helecircnica eacute bastante seletivo e sugestivo Trata-se em uma das camadas possiacuteveis de
investigaccedilatildeo de encontrar uma reflexatildeo sobre os usos do poder inclusive quando esse se dava
de maneira abusiva
A complexidade da vida poliacutetica entrelaccedilada agrave construccedilatildeo do texto cujos fins
devem ser respeitados pelo inteacuterprete moderno nos evidenciou um Luciano distinto daquele
construiacutedo e reiterado tradicionalmente Ele natildeo era alheio a seu mundo mas tambeacutem natildeo era
um ativista poliacutetico comportou-se em seus textos como um questionador de sua realidade
Para isso mobilizou os recursos que havia aprendido Sob essa premissa margeamos nossa
leitura dos diaacutelogos luciacircnicos partindo do pressuposto de que havia um grande potencial de
leitura das muacuteltiplas relaccedilotildees de poder Nas nervuras de seu texto vemos uma mitologia que
183
dialoga com sua realidade poliacutetica Assim nossa investigaccedilatildeo se interessou pelas relaccedilotildees entre
escrita e poder tendo em vista os sentidos diversos que os escritos antigos nos possibilitam Em
um mundo cada vez mais marcado por conflitos poliacuteticos os escritos luciacircnicos explificam
como podemos viver em uma sociedade muacuteltipla plaacutestica e nunca nos esquecermos de que haacute
uma tradiccedilatildeo discursiva que deve ser lida relida e recriada a fim de encontrar outras estrateacutegias
de sentido que visem agrave construccedilatildeo de um mundo melhor
184
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Mapa II As principais rotas de circulaccedilatildeo na Siacuteria do Norte no Impeacuterio Romano
(BRU 2011 370)
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Mapa III A Camogema do periodo romano (BRU 2011 373)
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Mapa IV A dispersatildeo das legiotildees romanas no periacuteodo imperial (GRANT
200968)