Post on 22-Jul-2020
1
Comunicação Organizacional e Espaços Fronteiriços:
análise das escolhas linguísticas no site institucional da Unipampa
Stefânia COSTA1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Resumo
Observa-se questões relacionadas à interdependência entre comunicação organizacional e o contexto que a envolve, atentando-se para o caso da Universidade Federal do Pampa, localizada ao longo da fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai e a Argentina. Procura-se, então, apontamentos realizados por autores como Rudimar Baldissera e Nestor Canclíni, bem como informações sobre a língua enquanto prática sociocultural fronteiriça, para criar ferramentas conceituais de análise. Em seguida, direciona-se o olhar para o site da Unipampa e fazem-se breves colocações a respeito de o seu conteúdo estar todo em português. Acredita-se que disponibilizá-lo também em espanhol, mostrando que a Unipampa está aberta ao diálogo e reconhece a diversidade cultural, pode gerar possíveis identificações estratégicas entre a instituição e os espaços fronteiriços, resultando em retornos de imagem-conceito. Palavras-chave: Comunicação organizacional; Espaços fronteiriços; Práticas socioculturais; Língua; Unipampa. 1 Introdução
Há alguns anos, acreditava-se em identidades fixas e estáveis. Quando se falava em
identidades nacionais, por exemplo, partia-se da premissa de que existia uma pureza cultural
capaz de unificar diferentes sujeitos por pertencerem à mesma nação. Hoje, porém, entende-se
que essa visão do sujeito de identidade única e permanente está ultrapassada, pois o fenômeno
da globalização trouxe consigo uma série de consequências, entre elas a possibilidade de os
sujeitos estabelecerem contatos e identificações com as mais diversas culturas étnicas, raciais,
linguísticas, religiosas e, principalmente, nacionais.
As teorias que agora dão suporte à comunicação organizacional visam responder
positivamente a essas demandas propostas pelo novo entorno social: o da diversidade, da
interdependência, do hibridismo, das línguas em contato, do pluralismo, das rápidas
mudanças, do acúmulo de informação, enfim, das trocas culturais intensificadas pelos
1 Relações Públicas, Publicitária; Especialista em Comunicação Integrada de Marketing; Mestranda em Comunicação no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Técnica Administrativa da UFPel. E-mail: facosta4@hotmail.com
2
processos globalizantes. Nesse cenário, as organizações são compreendidas como agentes
sociais, afetando e sendo afetadas pela história, pelo contexto, pelas práticas socioculturais
existentes nos espaços onde atuam. Logo, a ideia de comunicação como o simples processo de
criação e transmissão (fluxo) de mensagens é superada pelo entendimento de que ela é
constitutiva das organizações, pois as próprias identidades organizacionais são o resultado da
interação dessas com as demais identidades existentes nos ambientes que as cercam.
Pensando-se nessas relações, adotam-se as fronteiras binacionais sul-rio-grandenses
como contextos de análise. São espaços “divididos” por linhas demarcatórias, que separam o
Rio Grande do Sul (Brasil) da Argentina e do Uruguai, mas historicamente coabitados e
partilhados por grupos de distintas nacionalidades. Entre as principais características
identitárias resultantes dos intercâmbios ali estabelecidos, estão os elementos linguísticos.
Nesses territórios fragmentados, há mais de um século a vida cotidiana é marcada pelo
contato do espanhol com o português, de forma que a língua se constitui como uma prática e
uma marca local. Quer-se, por conseguinte, verificar se as universidades atuantes nesses
espaços apoderam-se estrategicamente da língua enquanto prática sociocultural, estabelecendo
identificações mútuas com a alteridade e com o entorno através das escolhas linguísticas, a
fim de obterem retornos de imagem-conceito2, legitimando suas próprias identidades e
promovendo a integração/valorização com/do Outro.
Uma instituição de educação superior, atuante em espaços tão híbridos como os
fronteiriços, torna-se interessante objeto de análise. A escolha pela Fundação Universidade
Federal do Pampa3 – Unipampa se dá, portanto, em decorrência de seus campi estarem
distribuídos ao longo de dez cidades gaúchas, ambas situadas nas/ou perto das fronteiras
nacionais, como sugere a figura a seguir:
2 “[...] a noção de imagem-conceito é explicada como um construto simbólico, complexo e sintetizante, de caráter judicativo/caracterizante e provisório, realizada pela alteridade (recepção) mediante permanentes tensões dialógicas, dialéticas e recursivas, intra e entre uma diversidade de elementos-força, tais como as informações e as percepções sobre a identidade (algo/alguém), a capacidade de compreensão, a cultura, o imaginário, a psique, a história e o contexto estruturado”. (BALDISSERA apud BALDISSERA, 2009a, p.7) 3 Planície muito extensa, coberta de vegetação rasteira, na região meridional da América do Sul, especialmente Rio Grande do Sul, Argentina e Uruguai. (MICHAELIS MODERNO DICIONÁRIO DA LÍNGUA PORTUGUESA, 2009.)
3
(Fonte: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAMPA, 2013.)
Neste primeiro passo para uma pesquisa mais abrangente, olha-se apenas para o site
institucional e discutem-se as escolhas linguísticas ali explicitadas. A opção por este veículo
de comunicação resulta do reconhecimento de que atualmente as práticas comunicacionais
estão cada vez mais mediadas pela tecnologia. Não se tem o intuito de reduzir a comunicação
organizacional somente àquela série de mensagens tangíveis, planejadas e transmitidas aos
públicos, chamada de organização comunicada4, mas de iniciar um trabalho que futuramente
contemple também os processos informais (e complexos) de “construção e disputa de
sentidos”.
Apresenta-se, então, argumentos sobre as organizações e seus contextos, explica-se
como a língua se constitui como prática sociocultural fronteiriça, e, por fim, olha-se para o
site institucional da Unipampa a fim de averiguar se ela produz enunciados em português e/ou
espanhol e de fazer algumas considerações a respeito, trazendo-se inclusive breves colocações
sobre o papel das instituições de ensino no processo integracionista, intensificado por acordos
de livre comércio como o Mercosul.
2 Comunicação organizacional e contexto
Primeiramente, faz-se interessante explicar que contexto será aqui empregado como o
ambiente linguístico, social, cultural e psicológico – ao qual um texto responde e sobre o qual
ele opera. Ou seja, o contexto está estritamente baseado em relações e diretamente
4 “Processos formais, e, até, disciplinadores, da fala autorizada; àquilo que a organização seleciona de sua identidade, e, por meio de processos comunicacionais (estratégicos ou não), dá visibilidade objetivando retornos de imagem-conceito”. (BALDISSERA, 2009b, p.118)
4
relacionado a elementos como língua(gem), discurso, produção e recepção de enunciados,
práticas sociais, dentre outros. Hoje em dia se reconhece que muito da produção de sentido
que ocorre por meio da língua depende do contexto (HANKS, 2008).
O conceito de cultura, também importante para o entendimento deste trabalho, tem
sido repensado nesse mesmo sentido. Thompson (2011, p.166) defende os fenômenos
culturais entendidos como “formas simbólicas em contextos estruturados”. Por conseguinte,
“a análise cultural pode ser pensada como o estudo da constituição significativa e da
contextualização social das formas simbólicas”. Deve ter como objetivo a lógica informal da
vida cotidiana em que os sujeitos e suas teias de significados estão em relação. Destaca-se
ainda o fato de a cultura fazer parte do sistema de significação onde a identidade adquire
sentido e de as interações culturais e identitárias serem viabilizadas pela comunicação.
Essas colocações estão bastante evidentes nas atuais pesquisas em comunicação
organizacional. Baldissera (2009, p.135) propõe “compreender/explicar a comunicação
organizacional como processo de construção e disputa de sentidos no âmbito das relações
organizacionais”. Neste caso, “as organizações são pensadas como sistemas auto-eco-
organizados/organizantes e a comunicação como seu principal processo/lugar
dinamizador/possibilitador”. Enquanto agentes sociais, as organizações apresentam-se como
resultados provisórios da cultura do grupo onde estão inseridas e, ao mesmo tempo,
influenciam a (re)elaboração da cultura e do imaginário desse grupo.
Assim, a comunicação pode ser entendida como produtora de sentido nas
organizações, e estas, como construções sociais e discursivas. Vizer e Carvalho (2009, p.150)
apresentam na noção de “cultivo social” a possibilidade de as organizações desenvolverem
práticas e dispositivos que assegurem o acesso a recursos estratégicos. Nesse movimento, a
comunicação adquire papel fundamental porque implica “[...] una apropiación socializada del
entorno a través de procesos y dispositivos cognitivos y expresivos que permiten ‘modelizar’
simbólica y linguisticamente los contextos y la experiencia colectiva de los Otros” (VIZER;
CARVALHO, 2009, p.151).
A partir dessa dialética Nós/Outros, a identidade organizacional também se torna fruto
da interação. Ela adquire importância na medida em que está diretamente relacionada à
efetividade do processo de recepção, assimilação e retroalimentação da organização pelos
mais variados grupos. Esse processo é viabilizado pela comunicação, agora entendida como
5
um agente da construção mútua do espaço comum onde os sujeitos se relacionam entre eles e
com o mundo, constituindo reciprocamente as suas ações.
O espaço comum, ao tornar ativo o receptor, considera as diferenças daí resultantes e
favorece, por conseguinte, a construção de sentidos nos ambientes interno e externo das
organizações. A identidade organizacional é resultado desse processo construtivo. Por isso,
Baldissera (2007) indica dois movimentos: no primeiro, as organizações apreendem os
principais códigos culturais, responsáveis pela sensação de pertencimento a um grupo, e
elaboram um sistema de representações de modo a interagir com esse grupo; no segundo,
usam estrategicamente as informações obtidas com o intuito de se tornar uma referência,
institucionalizando-se. Como resultado possível desse jogo tem-se o reconhecimento da
organização por seus públicos e a legitimação de uma identidade organizacional coesa com o
entorno.
As universidades estão entre esses atores sociais, sendo constituídas em interação e
afetadas pelas práticas socioculturais estabelecidas no contexto onde atuam. Cabe, então,
refletir a respeito do importante papel que as instituições de ensino podem desempenhar ao se
apoderarem estrategicamente dessas práticas e, em seus esforços comunicacionais, não apenas
valorizarem a(s) cultura(s) e a(s) identidade(s), como obterem retornos de imagem-conceito.
3 O que são, afinal, os espaços fronteiriços?
Usualmente, fronteira é o limite que separa o terreno doméstico do internacional, é
onde termina o poder de um Estado e começa o de outro. Porém, para além desta dimensão,
compreendemos a fronteira como uma área onde se sobrepõem as influências socioculturais e
econômicas de dois países. Assim, não são aqui pensadas como limites e demarcações
territoriais, mas como estruturas sociais, espaços abertos e contínuos, com possibilidades de
intercâmbios diversos (de informações, de produtos, de relações...). “O espaço é um
cruzamento de móveis. É de certo modo animado pelo conjunto dos movimentos que aí se
desdobram”. Enfim, “é um lugar praticado”, assegura Certeau (2012, p.184). Por isso esses
locais de fluxos de bens e de pessoas, de contato e relações entre diferentes culturas são
chamados de espaços fronteiriços.
6
São historicamente marcados pelo “entre-dois”, entre dois países, entre duas (ou mais)
línguas, entre dois Estados, entre duas culturas. Esses entrelaçamentos permitem falar em uma
identidade cultural fronteiriça. Ninguna identidad cultural aparece de la nada; todas son construidas de modo colectivo sobre las bases de la experiência, la memória, la tradición (que también puede ser construida e inventada), y una enorme variedad de prácticas y expresiones culturales, políticas y sociales. (SAID, 2005, p.39)
Não existem, por sua vez, culturas puras, raças puras, identidades homogêneas.
Segundo Canclini (2008, p.29), “as fronteiras rígidas estabelecidas pelos Estados modernos se
tornaram porosas. Poucas culturas podem ser agora descritas como unidades estáveis, com
limites precisos baseados na ocupação de um território delimitado”. As fronteiras entre países
são “contextos que condicionam os formatos, os estilos e as contradições específicas da
hibridação”. Daí surge o que Canclini (2008), Said (2005) e Hall (2011) chamam de culturas
híbridas, agora tão discutidas em virtude dos cruzamentos e misturas culturais resultantes da
globalização, mas já presentes na fronteira há mais de um século. Os sujeitos que partilham
esses espaços “devem aprender a habitar, no mínimo, duas identidades, a falar duas
linguagens culturais, a traduzir e a negociar entre elas”, afirma Hall (2011, p.90).
No caso dos espaços pampianos focados neste trabalho, eles foram povoados no final
do século XIX e começo do século XX, quando nasceram as cidades fronteiriças, justamente
umas em frente às outras, com o intuito de frear a expansão territorial, principalmente
portuguesa. Esses terrenos podem hoje ser compreendidos como “o resultado de lutas
fronteiriças, de demarcação de limites e de acampamentos militares” (PÉREZ-CARABALLO,
2011, p.54, tradução nossa). A miscigenação deriva, portanto, do encontro entre guaranis,
jesuítas, portugueses e espanhóis, sendo intensificada pela posterior chegada de outras
populações, como a palestina, por exemplo.
Como fruto da permanente interação e da quebra de barreiras, podemos citar as
famílias binacionais, os casamentos mistos, que por sua vez também apresentam
características próprias: “Con respecto a los derechos que se adquieren a través del
matrimonio el poder hacerlos efectivos lleva muchas veces a duplicar el acto matrimonial”
(BENTANCOR, 2009, p.120). Ao querer dar a dupla nacionalidade para os filhos, por
exemplo, precisa-se reconhecer o matrimônio de ambos os lados. É muito comum, então,
7
famílias com integrantes das duas nacionalidades e é frequente que pessoas que moram num
lado da linha divisória trabalhem do outro.
O trabalho é, inclusive, historicamente determinante de outras práticas comuns no
pampa gaúcho, como o contrabando, apontado por Pérez-Caraballo (2011) como fonte de
renda de muitos habitantes das fronteiras. Normalmente em pequenas e médias escalas, é
percebido sobretudo como um “ganha-pão”, não necessariamente ilegal. Dorfman (2012,
p.109) observa o contrabando representado nas obras literárias “como estratégia de
sobrevivência da população diante de uma dinâmica histórica desterritorializante, e não como
crime ou contravenção”. Nesse sentido, estaria sobreposto à cultura da fronteira, seria uma
prática conectada com a condição fronteiriça.
É também curioso o fato de atualmente as cidades fronteiriças, principalmente do lado
brasileiro, possuírem suas economias fortalecidas por atividades com características
predominantemente urbanas, como o comércio, as universidades, as redes hoteleira e
imobiliária, mas ainda persistirem as práticas e o imaginário acerca de atividades como, por
exemplo, andar a cavalo, tomar chimarrão, comer muita carne e ouvir músicas folclóricas ou
tradicionalistas. Assim, a vida campeira é mais um elo entre as distintas nações que habitam a
região, bem como mais uma referência para o que batizamos aqui de identidade cultural
fronteiriça. O pampa é diluidor de fronteiras, território da liberdade, lugar de encontros amistosos e do Mercosul hoje, de guerras ferozes no passado, mas sempre imóvel e soberano, a ver sucederem-se as gerações e as fases da Lua [...]. Em sua majestosa amplidão das pradarias, o pampa chama-nos à ancestralidade, à terra, instituindo-se em território pleno de metáforas, de existência mais lírica do que real. Mas não só o poeta: mesmo o peão de estância vê com os olhos da alma o pasto que alimenta o gado; conhecemos bem aquela sua silenciosa imagem, ao entardecer, tomando mate em frente ao galpão com as vistas perdidas nas lonjuras. (BRASIL, 2002, p.128)
Brasil (2002) vê as cidades fronteiriças como datadas de vida própria, com suas
complexas redes de relações interpessoais e suas culturas específicas, mas fontes de diversas
representações (um tanto estilizadas) do pampa. O autor cita referências literárias ao afirmar
que o sujeito habitante dessas cidades mantém dentro de si permanente ambiguidade, não
apenas representada pelos elementos já citados, mas também, e principalmente, pelas práticas
linguísticas.
8
4 A língua como prática sociocultural nos espaços de fronteira
O Uruguai e a Argentina têm o espanhol como língua oficial; o Brasil, o português.
Como as fronteiras são heterogêneas, o contato linguístico é inevitável. Conforme Müller e
Raddatz (2009, p.108), “na região da fronteira, presencia-se uma mescla linguística muito
grande, uma aceitação da língua do outro e a convivência rotineira sem predominância de um
ou de outro idioma”. É muito comum que uma pessoa fale em espanhol e a outra responda em
português, por exemplo, e vice-versa, bem como nos dialetos locais. As diferentes gerações demonstram que seus usos e falares independem de uma mecânica padronizada. A tradução do espanhol e do português não é literal, mas consequência da sociabilidade entre os povos e da tradição oral que se desenvolve nesse espaço. (MÜLLER E RADDATZ, 2009:108)
O bilinguismo5 reflete, por conseguinte, a capacidade de aceitar as diferenças, de
conviver com a diversidade cultural, e, sobretudo, de encontrar caminhos “alternativos” para a
integração e os intercâmbios. “A língua, elemento constitutivo de uma cultura, serve tanto
para a construção da identidade de um grupo sociocultural quanto também como um
instrumento de negociação e de tradução na relação com outras culturas” (FLEURI, 2010,
p.211). A aprendizagem da língua do outro, dessa forma, torna-se fator de construção da
própria identidade e da relação crítica com os outros.
Essa hibridez do linguajar pode ser percebida na própria literatura. O mapa das
comarcas literárias indica o pertencimento do Rio Grande do Sul ao Brasil e ao Pampa.
Segundo Dorfman (2012, p.107), isso pode ser entendido como “uma negação da suposta
congruência entre cultura e nacionalismo, onde a fronteira nacional delimitaria língua e
práticas culturais”. Em função disso, explica a autora: “A literatura da fronteira, produzida no
Rio Grande do Sul, carrega a ambiguidade de ser a um só tempo não nacional, mas
transnacional, identificada com o regionalismo tradicionalista”. Disso decorre a importância
dos glossários nas obras, explicando termos particulares da região.
Existem, no entanto, gírias ou expressões fronteiriças que não podem ser traduzidas
sob o risco de terem seus significados reduzidos. São entendidas somente por quem conhece o
5 Bilíngues são pessoas capazes de produzir enunciados significativos em duas ou mais línguas, de dominar pelo menos uma das habilidades linguísticas (leitura, fala, escrita, audição), de usar alternadamente várias línguas, etc. Logo, raramente possuem a mesma fluência em todas as línguas. (GROSJEAN 2008, p.42)
9
contexto, por quem é da fronteira ou já estabeleceu relações com ela. Observa-se na mídia
muitos desses traços linguísticos: Ao ouvir com atenção uma emissora de rádio ou ler um jornal de uma região de fronteira, percebe-se que algumas expressões e elementos que aparecem no texto só se justificam ou são compreendidos dentro da cultural local. De certa forma, fazer rádio e fazer jornal dentro de um espaço binacional [...] corresponde não apenas a trabalhar com as informações desse lugar por meio da linguagem padrão, mas também levar em conta que, em si mesmo, o conteúdo do rádio e do jornal mostra-se como um produto dessa cultura, além de representá-la por meio dos fatos que relata. (MÜLLER E RADDATZ, 2009, p.108)
Não são somente algumas palavras diferentes que caracterizam esse “falar” distinto.
Como dito anteriormente, a encontro dos povos resultou na presença de dialetos, usualmente
chamados de portunhol/portuñol, os quais são a língua materna de muitos habitantes locais.
“Essa primeira língua, dita materna, mas que não engloba somente a mãe, como ainda a
família e a comunidade do individuo, seria a bagagem cultural constitutiva da personalidade e
da identidade do mesmo”, salienta Pérez-Cabarallo (2011, p.21, tradução nossa). Em virtude
disso, complementa a autora, “a língua estará carregada de afeto, de sentido e de
representações para o indivíduo que a fala”, razão por que muitos artistas continuam a
escrever e a cantar em portunhol com o argumento de que não conseguem expressar suas
emoções de outra forma.
Deduz-se, por fim, que, em suas manifestações orais e escritas, a língua está entre os
principais signos a serem explorados e investigados pelas organizações como meio
privilegiado de estabelecer relações e interações nos espaços fronteiriços. A negociação que
ocorre quando uma organização realiza suas escolhas linguísticas deve estar, portanto,
diretamente relacionada ao entorno e à cultura dos envolvidos nesse processo de construção
de sentido. No caso das organizações públicas como as universidades, elas teriam inclusive
um compromisso local em valorizar a diversidade cultural, pois, como explica Fleuri (2010),
o sistema de ensino precisa de uma radical transformação, superando sua estrutura disciplinar
monocultural e constituindo campos de relações entre sujeitos e culturas diferentes.
5 Aspectos linguísticos observados no site da Universidade Federal do Pampa
O site da Unipampa contém diversas informações relevantes sobre a universidade:
texto de apresentação, estrutura administrativa e acadêmica, localização, projeto institucional,
10
identidade visual, processos seletivos, dúvidas frequentes, entre outras. As notícias,
atualizadas diariamente, podem ser lidas por campi ou de maneira abrangente.
A leitura do texto de apresentação permite identificar a Unipampa como mais uma
instituição federal, portanto pública, brasileira, localizada na metade sul do Rio Grande do Sul
e de ter por intuito a promoção do desenvolvimento regional e o estímulo aos jovens
estudantes para que ali permaneçam após graduados. Em nenhum momento, contudo, há
informações sobre ser essa uma região pampiana e fronteiriça. O próprio mapa exibido na
introdução deste trabalho, e que pode ser visualizado ao lado desse texto de apresentação, não
traz a fronteira representada, pois mostra apenas cidades do lado brasileiro e nenhuma
referência aos países vizinhos: Uruguai e Argentina.
Uma vez que, como visto anteriormente, são possíveis identificações múltiplas,
entende-se ser também viável a Unipampa apresentar-se como uma universidade localizada na
região da fronteira, com todas as peculiaridades simbólicas e culturais que esse espaço possui,
e mesmo assim manter suas demais identificações. Ao encontro dessas colocações, pode-se
citar Müller et al (2007, p.12): “priorizar respostas próprias, considerando a identidade das
populações em questão [...], parecem ser os desafios para as organizações e populações das
fronteiras, em especial das fronteiras nacionais”. As autoras lembram que “possíveis conflitos
podem ser problematizados através da comunicação e de organizações comprometidas com as
situações locais”.
O site da Unipampa, bem como o texto que diz a que veio, disponibiliza seu conteúdo
somente em português, língua oficial do Brasil. Todavia, onde estão distribuídos seus campi,
o português convive de forma harmônica com o espanhol. A mídia, segundo pesquisa
desenvolvida por Müller e Raddatz (2009), legitima essas práticas linguísticas. As emissoras
de rádio e os jornais locais já compreenderam a importância de valorizar as marcas do lugar,
e, através da língua, fortalecem sua função como meios de comunicação, como organizações e
como partícipes do processo integracionista. A universidade em questão não parece se
apoderar da língua dessa mesma forma.
Considera-se também significante o fato de ela oferecer, através do Processo Seletivo
Específico para Candidatos Uruguaios Fronteiriços, vagas reservadas nos cursos de graduação
aos estudantes que possuam o “documento especial de fronteiriço” e o comprovante de
residência uruguaia. Já os editais para cursos de pós-graduação estão abertos aos estudantes
11
estrangeiros em geral. Esses dados, e todos os demais que possam interessar aos habitantes da
zona de fronteira, estão disponíveis no site da Unipampa somente em português. No entanto, o
fato de existir essas vagas para fronteiriços indica que a instituição não está de “olhos”
totalmente fechados para o contexto.
Ao encontro desta discussão, Fleuri (2010) faz colocações muito ricas sobre a escola
como campo de mediação cultural. Enquanto instituição, a escola teria sido estruturada pela
sujeição, exclusão e hierarquização, estando carente do que o autor chama de “educação
intercultural”. Esta seria possível na medida em que as bases monoculturais fossem superadas
e campos de relações entre sujeitos e culturas diferentes fossem estabelecidos. “Ao mesmo
tempo em que constitui um processo de transmissão, de reprodução da cultura nacional,
dominante; a escola também serve para reproduzir ou consolidar as culturas locais”. Entende-
se, a partir disso, que a Unipampa seria uma mediadora cultural na medida em que
estabelecesse “formas de reprodução, de comunicação e de tradução entre a cultura nacional
envolvente e as culturas locais” (FLEURI, 2010, p. 212). A escolha linguística, pelo que se
viu até agora, estaria entre as possibilidades de aproximação com a cultura local.
O próprio Tratado de Assunção (1991), ao constituir um mercado comum entre a
República Argentina, a República Federativa do Brasil, a República do Paraguai e a
República do Uruguai, conhecido por Mercosul, aponta, no Artigo 17°, o espanhol e o
português como línguas oficiais do novo bloco consolidado. La existencia de una multiplicidad y pluralidad lingüística implica en la necesidad de delimitar las lenguas presentes mayoritariamente, u oficialmente en el nuevo territorio constituido, sin que ello implique en una intervención en la soberania lingüística de los países, para que se las entienda como lenguas de comunicación, y quizá un poco más arriesgadamente se podría adoptar el planteamiento de lenguas de integración, dado que no serían propriamente lenguas que ocupen um espacio de disputa lingüístico, sino propiciar una aproximación sócio-cultural. (BARREDA, 2010, p. 215)
O Mercosul, desse ponto de vista, não teria o intuito de confundir integração com
homogeneização. Tudo indica sua intenção de promover o desenvolvimento regional
primeiramente reconhecendo as diferenças, como as linguísticas, e encontrando soluções para
garantir os intercâmbios. Supõe-se que as organizações devam caminhar nessa mesma
direção, principalmente as atuantes nos espaços fronteiriços onde se dá o encontro “físico”
desses países.
12
Escolhas linguísticas que contemplassem ao menos o português e o espanhol
poderiam, assim, ser um dos passos estratégicos dados pela Unipampa em direção a um
movimento maior através do qual outros aspectos da identidade cultural fronteiriça fossem
resgatados. Estratégico porque ao mesmo tempo em que mostraria preocupação em não impor
a língua nacional como única possibilidade para o diálogo, valorizaria uma das principais
características da fronteira – o bilinguismo - e colaboraria para que a integração não ocorresse
somente no nível econômico, mas também sociocultural. Como diz Baldissera (2007, p.240),
“com bons níveis de simpatia, a organização tende a tornar-se uma poderosa fonte de
significação para os públicos”.
6 Considerações finais
Não se pode traçar conclusões nem afirmar com propriedade que a identidade
organizacional da Unipampa não está também ancorada na identidade fronteiriça, pois são
muitas as relações envolvidas no processo de construção da identidade. Ressalta-se, contudo,
que uma das dimensões da comunicação estratégica é exatamente sua capacidade de
aproximar e de promover a adaptação entre organização e seu entorno.
Dessa forma, talvez a Unipampa reconheça o contexto fronteiriço e já realize
importantes trocas com este, mas ainda não o tenha olhado estrategicamente, destacando
atributos coerentes com a identidade local, servindo de mediadora cultural, produzindo
“formas simbólicas” no intuito de promover mais intercâmbios e entrelaçamentos entre a
cultura organizacional e a cultura local. Esses esforços podem, sem dúvida, dar retorno
positivo ao processo de construção da sua imagem-conceito institucional.
Cabe, por fim, lembrar que os atuais acordos entre os países sul-americanos, como o
caso do Mercosul, preconizam a integração e a valorização da diversidade. As organizações,
como atores sociais, não estão isentas de responsabilidade nesse processo integracionista.
Assim, devem-se preocupar com uma gestão democrática, promovendo o reconhecimento das
diferenças e a aceitação do Outro e entendendo que suas próprias identidades também são
resultado desse rico contato. A comunicação apresenta-se, portanto, “como lugar e meio para
que os sujeitos possam se realizar como diversidade, atualizando suas ideias, seus
pensamentos, suas concepções e/ou suas diferenças sem que uns se sobreponham aos outros”
(BALDISSERA, 2009, p.143).
13
Talvez nas práticas cotidianas e nos contatos interpessoais não mediados pela
tecnologia, isto é, nos discursos não oficiais e planejados, a diversidade linguística já esteja
presente, pois essa relação com o contexto, como visto na revisão bibliográfica, é bem mais
complexa e determinante da comunicação organizacional do que se imagina. Sem dúvida
tornar-se uma organização oficialmente bilíngue não é o único esforço que a Unipampa pode
fazer para mostrar que está aberta ao diálogo, mas é um passo interessante para uma
universidade ainda “jovem” (apenas cinco anos) e que, como todas as demais instituições
educacionais, tem indiscutível papel na promoção da integração e da harmonia entre os povos.
E será cobrada por isso.
Referências BALDISSERA, Rudimar. Comunicação, organizações e comunidade: disputas e interdependências no (re)tecer as culturas. In: CONGRESSO BRASILEIRO CIENTÍFICO DE COMUNICAÇÃO ORGANIZACIONAL E RELAÇÕES PÚBLICAS, 3., 2009a, São Paulo. Anais eletrônicos... Disponível em <http://www.abrapcorp.org.br/anais2009/m.html>. Acesso em: 03 jul. 2013. ________. Comunicação organizacional na perspectiva da complexidade. In: Revista Brasileira de Comunicação Organizacional e Relações Públicas. São Paulo, v.6, n.10/11, p. 115-120, 2009b. ________. A teoria da complexidade e novas perspectivas para os estudos de comunicação organizacional. In: KUNSCH, Margarida (org.). Comunicação organizacional: histórico, fundamentos e processos, v.1. São Paulo: Saraiva, 2009c, p.135-164. ________. Tensões dialógico-recursivas entre a comunicação e a identidade organizacional. In: Revista Brasileira de Comunicação Organizacional e Relações Públicas. São Paulo, v. 4, n. 7, p. 229-243, ago./dez. 2007. BARREDA, Suzana M. Políticas de lenguaje en el mercosur: una contraposición entre la ley federal brasileña y las disposiciones del bloque. In: NÚÑES, Ángel; PADOIN, Maria M.; OLIVEIRA, Tito C. M. (Orgs.). Dilemas e diálogos platinos: relações e práticas socioculturais, v.2. Dourados, MS: Ed. UFGD, 2010. BENTANCOR, Gladys. Rivera-Livramento: una frontera diferente. Série Fronteiras da Integração, v.1. Pelotas: Editora da Universidade Federal de Pelotas, 2009.
14
BRASIL, Luiz Antonio de A. O nosso pampa, tão comum e vário. In: MARTINS, Maria Helena (Org.). Fronteiras culturais: Brasil, Uruguai, Argentina. São Paulo: Ateliê, 2002, p. 127-131. CANCLINI, Néstor G. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 4. ed. São Paulo: Edusp, 2008. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer, v.1. 19. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. DORFMAN, Adriana. Representações, normas e lugares: contos de contrabando da fronteira gaúcha. In: Revista Eletrônica ParaOnde!? Porto Alegre, v.6, n.2, p. 102-113, jul./dez. 2012. FLEURI, Reinaldo M. Desafios epistemológicos emergentes na relação intercultural. In: NÚÑES, Ángel; PADOIN, Maria M.; OLIVEIRA, Tito C. M. (Orgs.). Dilemas e diálogos platinos: relações e práticas socioculturais, v.2. Dourados, MS: Ed. UFGD, 2010. GROSJEAN, François. Bilinguismo individual. Disponível em: <http://www.proec.ufg.br/revista_ufg/dezembro2008/tradução.html>. Acesso em: 10 dez. 2012. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2011. HANKS, William F. Língua como prática social: das relações entre língua, cultura e sociedade a partir de Bourdieu e Bakhtin. São Paulo: Cortez, 2008. LUCENA, Marta G. A condição social fronteiriça Brasil-Uruguai no Mercosul. Série Fronteiras da Integração, v.3. Pelotas: Editora da Universidade Federal de Pelotas, 2012. MARCHIORI, Marlene (org.). Faces da cultura e da comunicação organizacional, v. 1. São Caetano do Sul, SP: Difusão Editora, 2008. MERCOSUL. Tratado de Assunção, de 26 de março de 1991. Disponível em: <www.mercosul.gov.br>. Acesso em: 26 ago. 2013. MICHAELIS MODERNO DICIONÁRIO DA LÍNGUA PORTUGUESA, 2009. Disponível em <http://www.michaelis.uol.com.br>. Acesso em: 05 ago. 2013.
15
MÜLLER, Karla M.; RADDATZ, Vera L. S. O elemento lingüístico como marca sociocultural na mídia fronteiriça. In: Revista Galáxia. São Paulo, n. 17, p. 107-118, jun. 2009. ________; GERZSON, Vera R. S.; EFROM, Bianca. Intercâmbios entre a cultura local e a cultura organizacional: a Binacional ACM/ ACJ Fronteira. In: CONGRESSO BRASILEIRO CIENTÍFICO DE COMUNICAÇÃO ORGANIZACIONAL E RELAÇÕES PÚBLICAS, 1., 2007, São Paulo. Anais eletrônicos... Disponível em <http://www.abrapcorp.org.br/anais2007/trabalhos/relacao_gt2.htm>. Acesso em: 03 ago. 2013. PEREZ-CARABALLO, Gimena. Construction identitaire dans les espaces frontaliers: quel lien avec l’appartenance territoriale et l’identité linguistique? Le cas de la population frontalière habitant entre le Brésil et l’Uruguay. Mémoire Master 2 (Recherche). Lyon: Université Lumière Lyon 2, 2011. SAID, Edward. Cultura, identidade e história. In: SCHRÖDER, Gerhart; BREUNINGER, Helga (comps.). Teoria de la cultura: un mapa de la questión. Buenos Aires: Fondo de Cultura, 2005 p. 37-53. SILVA, Tomaz T. da. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz T. da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 13. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p. 73-102. THOMPSON, John B. Ideologia e Cultura Moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. 9 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAMPA – UNIPAMPA. Universidade. Disponível em: <http://www.unipampa.edu.br>. Acesso em 5 de agosto de 2013. VIZER, Eduardo A.; CARVALHO, Helena. Comunicación y socioanálisis en comunidades y organizaciones sociales. In: Revista Latinoamericana de Ciencias de la Comunicación. São Paulo, v.6, n.11, p. 148-157, 2009.