Origem e linhas gerais de evolução das consoantes sibilantes

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OLIVEIRA, Fernando, 1507-ca 1581 Grammatica da lingoagem portuguesa / [Fernão Doliveira]. - Em Lixboa : e[m] casa d'Germão Galharde, 27 Ianeyro 1536. - [38] f. ; 4º (20 cm). Anselmo 607, Simões 532. - Nome do autor na f. [1 v.º]. - Assin.: A-D8 E6 - BN RES. 274 V. http://purl.pt/120/

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Introdução A história do sistema de sibilantes no espaço galego-português1 apesar de já estudado por um conjunto de investigadores notáveis, de entre os quais refiro apenas os nomes de Lindley Cintra, Paul Teyssier, Ivo Castro, Clarinda Maia, Evanildo Bechara e Ramón Lorenzo, continua, ainda hoje, a não obter pleno acordo nomeadamente quanto à cronologia da mudança do sistema medieval de quarto fonemas a um sistema de dois fonemas, pré-dorsais na maior parte do território português.1 Assim, o trabalho que aqui apresentamos não poderia ter, pela modéstia dos nossos conhecimentos, qualquer outra pretensão que a de apenas dar uma visão geral sobre a origem e as linhas gerais de evolução das consoantes sibilantes e palatais do português. A evolução do consonantismo constitui, a par com outras estruturas do latim vulgar (vocalismo tónico, a acentuação, alguns aspectos de morfossintaxe, léxico), um elemento de especial relevância na evolução dos romances ocidentais. Antes de entrarmos propriamente no desenvolvimento do nosso estudo pensamos ser apropriado, até pelo seu carácter didáctico, apresentar uma breve descrição de alguns fenómenos fonético/fonológicos que facilitarão a leitura de alguns conceitos que no decorrer do nosso estudo irão ser nomeados e considerados como já devidamente interiorizados.

• Do ponto de vista da fonética articulatória, as consoantes são produzidas através de uma obstrução ou estreitamento de uma certa região entre a glote e os lábios, o que provoca um bloqueio à passagem do ar que sai dos pulmões e que é responsável pela produção acústica de um ruído.

• As características acústicas daquele ruído variam de acordo com dois parâmetros: o modo de articulação (forma como é feita a obstrução) e o ponto de articulação das consoantes (ou região onde é feita a obstrução).

Modo de articulação Ponto de articulação • Oclusivas: produzidas com uma constrição total e momentânea no tracto bucal seguida de explosão – [p], [t], [k], [b], [d], [g], [m], [n] e [�]. • Fricativas: produzidas com uma constrição parcial no tracto bucal, permitindo o escoamento contínuo do ar e produzindo assim um ruído de fricção – [f], [v], [s], [z], [ʃ], [ʒ]. • Laterais: produzidas com uma obstrução completa no meio do tracto bucal, mas permitindo ao mesmo tempo que o ar se escape pelos lados da língua - [l], [ʎ], [�] (esta última designada por lateral velarizada, por possuir uma articulação ). • Vibrantes: produzidas mediante a vibração de um articulador, que pode ser a coroa da língua para a articulação do [r] ou a úvula para a articulação de [�].

• Bilabiais: produzidas com uma obstrução feita ao nível dos lábios – [p], [b], [m]. • Labio-dentais: produzidas com uma elevação do lábio inferior que se aproxima dos incisivos superiores – [f], [v]. • Alveolares (apicoalveolares e pré-dorso-alveolares): produzidas com a elevação da região anterior da língua em direcção aos alvéolos dos incisivos superiores [t], [d], [n], [s], [z], [r], [l]. • Palatais (pré-dorso-pré-palatais e dorso-palatais): produzidas com a elevação da região central da língua em direcção ao palato duro [ʃ], [ʒ], [�], [ʎ]. • Pós-dorso-velares: produzidas com a elevação da região posterior da língua em direcção ao palato mole ou véu palatino [k], [g]. • Pós-dorso-uvulares: produzida com vibrações sucessivas da úvula em direcção à parede da faringe [�].

_____________________ 1 MAIA, Clarinda de Azevedo - Para a história do sistema de sibilantes em Português. Algumas reflexões sobre a cronologia da mudança fonológica. In: Actas do «Congreso Internacional: La Lengua, La Academia, Lo Popular, Los Clásicos, Los Contemporáneos» (Homenaje a Alonso Zamora Vicente). Universidade de Alicante, 2003.

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Consonantismo Como se pode verificar pelo Quadro I2, o sistema consonântico latino, comparado com o Português era relativamente simples.

Ponto de articulação labial dental lateral velar

surdas p t k oclusivas

sonoras b d g

fricativas f s

nasais m n

Modo de

articulação

líquidas r l Quadro I - Sistema consonântico latino inicial. O Quadro I merece algumas considerações:

• [k] era grafado normalmente por <c>, mas <q> na presença de [u]; • o grupo [ks] era notado como <x>; • a aspirada [h], grafada por <h>, desapareceu praticamente na época clássica, tornando-se uma

sobrevivência gráfica sem valor fonético; • as velares [k] e [g] apareciam frequentemente associadas à semivogal [w] : [kw] e [gw], e eram

representadas por <qu> e <gu>, respectivamente. Este sistema consonântico evoluiu e transformou-se, sobretudo devido ao fenómeno designado por “lenição” ou “abrandamento”, que consiste num conjunto de fenómenos de enfraquecimento das consoantes intervocálicas. A lenição deve a sua origem à tendência das geminadas em se simplificarem: enfraquecendo-se, elas exercem uma pressão sobre seus parceiros intervocálicos simples, que se sonorizam, exercendo assim, por sua vez, uma pressão sobre os seus parceiros sonoros, que desaparecem ou se tornam fricativas. 2 Segundo A. Martinet, a evolução do sistema das oclusivas, em posição intervocálica, pode ser descrita da seguinte forma:

• as consoantes geminadas surdas [pp], [tt] e [kk] simplificam-se em [p], [t] e [q], respectivamente;

• as consoantes oclusivas surdas [p], [t] e [q] sonorizam em [b], [d] e [g], respectivamente;

• as consoantes sonoras intervocálicas fricatizam. • as consoantes sonoras fricatizadas desaparecem, ou evoluem para uma velar em

alguns contextos. _____________________ 2 CASTRO, Ivo – Curso de História da Língua Portuguesa. Colaboração de Rita Marquilhas e J. Léon Acosta, Universidade Aberta, 1991. 3 DUBOIS, Jean et alii – Dicionário de Linguística. São Paulo, Cultrix, 2004.

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Segundo Teyssier, 4 o sistema consonântico do galego-português, entre 1200 e aproximadamente 1350, pode-se reconstituir como a seguir se descreve:

Labiais Dentais-alveolares Palatais Velares

Surdas /p/ /t/ /k/ Oclusivas

Sonoras /b/ /d/ /g/ Surdas /t/ /ts/ /s/ /tšššš/ /šššš/ /k/

Constritivas Sonoras /v/ /dz/ /z/ /(d)žžžž/

Nasais /m/ /n/ /nh/

Laterais [l] /lh/ [����]

Branda /r/ Vibrantes

Forte /����/

Semivogais /y/ /w/ Quadro II - Sistema consonântico do galego-português, entre 1200 e aproximadamente 1350. Ainda segundo Teyssier é com relação às constritivas dentais-alveolares (as “sibilantes”) e palatais (as “chiantes”) que o sistema consonântico do galego-português medieval certamente mais se afastava do de hoje. 4 Como releva do Quadro II havia um par de africadas (uma surda e uma sonora): /ts/ e /dz/, bem diferentes de /s/ e /z/. Os fenómenos de palatalização, segundo Teyssier, já se tinham iniciado na época imperial e tiveram consequências importantes no sistema fonológico da língua, como é o caso do consonantismo. As consoantes sibilantes são um grupo específico das constritivas, as fricativas, que em português, quanto à sua articulação podem ser classificadas como pré-dorso-alveolares (uma surda ou não-vozeada [s] e uma correspondente sonora ou vozeada [z]), ou, em algumas regiões do país, como apicoalveolares, mais ou menos palatalizadas (é a variante mais palatalizada que é vulgarmente conhecida pelo nome de s beirão). Estas fricativas adquiriram tradicionalmente a designação de sibilantes porque o ruído produzido durante a sua articulação se assemelha ao de um silvo ou assobio. Em latim só existia uma sibilante simples, que era não-vozeada e com articulação apical [s÷]. Esta sibilante correspondia à representação gráfica < s >. A grafia de < c > seguida de < i > ou < e > correspondia à consoante oclusiva surda [k]. É aquela sibilante apical que chega ao português, onde se desenvolve, a par da consoante não-vozeada, uma vozeada em contexto intervocálico [z]. No português arcaico, até por volta de 1500, segundo Teyssier – embora a cronologia da mudança do sistema medieval seja ainda polémica, como veremos mais abaixo –, a produção das sibilantes em palavras como passo e coser era apical. Paralelamente, na mesma época, havia duas sibilantes africadas – [ts] e [dz] – provenientes de oclusivas latinas, que correspondiam, respectivamente, às grafias < ç > e < c > seguido de < i > ou de < e >, e [z]. Assim em paço (palatiu_ > *pala[ty]u > *pala[tʃ]u > paa[ts]o > pa[s]o > paço); a grafia <ç> corresponde foneticamente a [ts]; em fazer (facere > *fa[ky]ere > *fa[tʃ]er > fa[ts]er > fa[dz]er > fazer); a grafia < z > corresponde ao som [dz], _____________________ 4 TEYSSIER, Paul - História da Língua Portuguesa, Lisboa: Sá da Costa, 1982 (Tradução portuguesa de Celso Cunha).

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O quadro III, a seguir, esquematiza estes dados.

Sibilantes Surdas Grafias Sonoras

Africadas pré-dorso-dentais [ts] – paço; cervo ç

ci ce [dz] – cozer

Apicoalveolares [ṣṣṣṣ] – passo;servo -s –ss- s- [ẓẓẓẓ] – coser

Quadro III. Sistema de sibilantes do português arcaico c. 1500. Nos anos iniciais do século XVI o sistema de quatro sibilantes ainda se mantinha, mas, entretanto, as africadas sofreram um desafricamento (perda do elemento oclusivo inicial) fixando-se no par de fricativas pré-dorso-dentais [s] e [z], fonologicamente distintas de [șșșș] e de [ẓẓẓẓ], como esquematizado, a seguir, no quadro IV.

Sibilantes Surdas Grafias Sonoras

Pré-dorso-dentais [s] – paço; cervo ç

ci ce [z] – cozer

Apicoalveolares [ṣṣṣṣ] – passo;servo -s –ss- s- [ẓẓẓẓ] – coser

Quadro IV. Sistema de sibilantes do português arcaico no séc. XVI. Em finais do séc. XVI, segundo Teyssier, o português comum reduziu a dois os quatro fonemas, e essa redução fez-se em favor das pré-dorso-dentais. Tem-se então, doravante, os dois fonemas seguintes:

• Uma pré-dorso-dental surda /s/; ex.: paço e passo (palavras homófonas). • Uma pré-dorso-dental sonora /z/; ex.: cozer e coser (palavras homófonas).

Esta transformação refere-se ao português comum, isto é, à língua oficial cuja norma é o uso do Centro e do Sul do País. A situação dos falares do Norte, tal como as pesquisas dialectológicas permitem reconstituí-la, é bem diferente. Na região de Bragança, em zonas mais rurais, subsistem ainda hoje as quatro sibilantes que pertenciam à norma do português entre os séculos XIII e XVI. A produção de passo e coser com articulação apical está mais próxima do latim, mas é tida socialmente como uma pronúncia menos prestigiante. O que hoje é tido como desviante era no séc. XVI tido como norma e a sua realização é que era desviante. Isto pode ser confirmado, por exemplo, na obra de Pêro de Magalhães de Gândavo, Regras que ensinam a maneira de escrever a ortografia da língua portuguesa, de 1574. Assim, e de acordo com Teyssier, pode-se hoje considerar a existência em Portugal de três áreas:

1. Centro-Sul (português comum): confusão das pré-dorso-dentais e das apicoalveolares em favor das pré-dorso-dentais;

2. Zona intermédia do Noroeste-Centro-Leste: a mesma confusão, mas em favor das apicoalveolares (“s” beirão”);

3. Zona arcaica do Nordeste: conservação dos quatro fonemas primitivos.

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A Profª Clarinda Maia, no seu artigo “Para a história do sistema das sibilantes em português”, discorda das afirmações de Paul Teyssier relativamente à cronologia por este adoptada para a neutralização acima referida. Após estudos de análise grafémica de fontes textuais medievais a partir do século XIII, sobretudo dos chamados “documentos linguísticos”, não põe em dúvida a existência de quatro unidades distintivas do português (relevadas acima no quadro 2) – como propõe Teyssier apoiando-se na “Grammatica” de Fernão de Oliveira (1536) e na “Orthographia”, de Pêro de Magalhães de Gândavo (1574) –, mas afirma que, contrariamente à cronologia adoptada por Teyssier (finais do séc. XVI), “pelo menos a partir da segunda metade do século XIII, na área meridional de Portugal, os falantes tinham começado a não estabelecer a distinção entre sibilantes predorsais e apicais”, e que, “ao chegar ao século XV, a língua oral do Sul do País deveria apresentar em estado muito avançado o processo de neutralização fonológica dos dois tipos de fonemas”. Consoantes palatais do português – micro-sistema das fricativas palatais do galego-português. As consoantes palatais do português actual dividem-se nos seguintes grupos:

• Fricativas: � surda ([ʃʃʃʃ]), com a representação gráfica <x> ou <ch>; em dialectos do norte de

Portugal, o dígrafo <ch> representa a africada [tʃʃʃʃ] e a letra <x>, a fricativa [ʃʃʃʃ]. � sonora ([ʒʒʒʒ]), com a representação gráfica <j> ou <g>.

• Nasais: � Sonora ([ɲɲɲɲ]), com a representação gráfica <nh>.

• Laterais: � sonora ([ʎʎʎʎ]) com a representação gráfica <lh>.

• Semiconsoantes: � Sonora ([j] ).

O micro-sistema das fricativas palatais do galego-português era, até ao século XVII, na cronologia adoptada por Teyssier, constituído conforme o quadro V abaixo:

Surdas Grafia Sonoras Grafia

/ tʃʃʃʃ/ < ch > – chave; chamar (dʒʒʒʒ)

/ʃʃʃʃ/ < x > - deixar /ʒʒʒʒ/ - igreja (g, i, j, y) Quadro V. Sistema das fricativais palatais do galego-português até ao séc. XVII. Durante toda a Idade Média, e no período clássico até ao século XVII/XVIII, o galego-português possuía um africada palatal surda [tʃʃʃʃ] escrita < ch >, que surgiu em galego e em português como evolução privativa de grupos consonânticos iniciais com “l” : pl-, cl- e fl-. Estes três grupos tiveram em galego-português uma evolução peculiar, que terminou na africada [tʃʃʃʃ], a qual etimologicamente nada tinha a ver com o seu par sonoro [dʒʒʒʒ], que foi produzido por vias totalmente diversas, nomeadamente como resultado da palatalização dos grupos gi, ge e ju bem como pela transformação da semivogal j em consoante (/ j > dʒʒʒʒ > ʒʒʒʒ/ ) como em IANUARIU > Janeiro). A partir do século XVII/XVIII, porém, vai ocorrer a simplificação da africada [tʃʃʃʃ], que perde o seu elemento oclusivo inicial neutralizando-se assim a oposição [tʃʃʃʃ] / [ʃʃʃʃ]. Foi também no português do sul do país que se desenvolveu a inovação que consistiu no desaparecimento da africada e na pronúncia de [tʃʃʃʃ] como [ʃʃʃʃ]. Esta inovação relativamente tardia só é datada, no português

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padrão de Lisboa, em meados do século XVIII. Dai para cá, progrediu dialectalmente para o norte e, hoje, atingiu as regiões mais modernizadas do Minho, que são as do litoral.

BIBLIOGRAFIA CASTRO, Ivo – Introdução à História do Português. Lisboa: Colibri. ISBN: 972-772-676-3 (2ªed.revista e muito ampliada). CASTRO, Ivo et alii – Curso de História da Língua Portuguesa. Lisboa: Universidade Aberta, 1991. DUBOIS, Jean et alii – Dicionário de Linguística. São Paulo: Cultrix, 2004. MAIA, Clarinda – Para a história do sistema de sibilantes em português. Algumas reflexões sobre a cronologia da mudança fonológica. In: Con Alonso Zamora Vicente (Actas del Congreso Internacional «La Lengua, la Academia, lo popular, los clásicos, los contemporáneos ...»). Presentación: José Carlos Rovira. Edición: Carmen Alemany Bay, Beatriz Aracil Varón, Remedios Mataix Azuar, Pedro Mendiola Oñate, Eva Valero Juan y Abel Villaverde Pérez. Vol. II, universidad de Alicante, 2003, p. 783-791. MARTINET, André – Elementos de Linguística Geral. Lisboa: Sá da Costa Editora, 19991 )11ª ed.). NETO, S. da Silva – História da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro: Presença, 1979 (3ª ed.). TEYSSIER, Paul – História da Língua Portuguesa, Lisboa: Sá da Costa, 1982 (Tradução portuguesa de Celso Cunha). HISTÓRIA DA LÍNGUA PORTUGUESA Ano Lectivo 2008-2009 – 1º Semestre Docente: Prof. Doutora Maria Clara Barros Aluno: António Manuel dos Santos Barros Porto, 2008-11-20