Post on 08-Nov-2018
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Oração de Sapiência proferida na Cerimónia de Abertura do II Curso
de Estágio de 2008
Exmo. Senhor Presidente do Tribunal da Relação do Porto
Exmo. Senhor Presidente do Conselho Distrital do Porto da Ordem dos
Advogados
Exmo. Senhor Presidente do Centro de Estágio
Exmo. Senhor Presidente do Conselho de Deontologia
Exmo. Senhor Conselheiro do Conselho Superior
Prezadas e Prezados Colegas
Minhas Senhoras e Meus Senhores
As minhas primeiras palavras são de agradecimento para o honroso,
embora imerecido, convite, que, penso, só se compreende devido à
benevolência de dois queridos Amigos e Colegas, o Dr. Guilherme
Figueiredo e o Dr. Rui Assis, ilustres Presidentes, respectivamente, do
Conselho Distrital do Porto e do Centro de Estágio.
Seguidamente, também vos confesso, não me sinto muito à vontade
com este pomposo e erudito nome, Oração de Sapiência, sob o qual são
intituladas estas intervenções.
Fico mesmo intimidado e peço-vos benevolência, porque nada de sábio
tenho para vos dizer.
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A Oração de Sapiência é uma bonita tradição medieval e caracteriza-se
por ser um discurso denso (principalmente as Académicas), à escolha
do orador, que é pronunciado, a maioria das vezes, na abertura do ano
lectivo das Universidades, mas também, algumas vezes, na abertura de
Cursos, como este de Estágio, que representem, de algum modo, o
início de percurso de uma etapa ou ciclo de vida.
Aqui permitam-me recordar, até porque foi o estabelecimento onde me
licenciei, sendo as que melhor conheço, as magníficas orações de
sapiência proferidas por ocasião da abertura do ano lectivo na
Universidade de Coimbra, desde José Alberto dos Reis, acerca da
missão de não só instruir mas também educar das Universidades, de
Manuel de Andrade que discorreu brilhantemente sob a
“jurisprudência dos interesses” alicerçado no pensamento e
metodologia de Philiph Heck, de Almeida Costa, acerca da
peregrinação do Homem ao seu encontro com o Direito, do Homem,
livre para se perder e livre para se salvar, a Orlando de Carvalho com
a sua densa teia problemática do velho brocardo latino “Ius Quod
Iustum”, ou seja, dar a cada um o que é seu, passando por muitos
outros, não resistindo eu de deixar de citar Cabral Moncada com a
análise do problema do direito natural no pensamento contemporâneo,
e isto num momento em que o direito natural, como referiu Rui
Figueiredo Marcos, já não era cosmológico, nem antropológico, nem
teológico, nem sequer racionalista, mas, enfim, simplesmente
axiológico, isto é, um direito natural dos valores.
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Além do mais, esta Oração de Sapiência de Cabral Moncada, que aqui
destaco, mais do que o tema abordado, teve o condão de nos dizer
como devia pensar-se e não precisamente aquilo que devia pensar-se a
tal respeito.
Isto é, o que realmente importa transmitir não é um pensamento
determinado, mas sim como estruturar o pensamento a respeito de um
determinado assunto, sem imposição de dogmas ou do que quer que
seja.
Como é lógico, não vou abordar temas desta envergadura, não só
porque me falta o talento e o saber, mas também porque as aqui
minhas e meus queridos Colegas destinatários, nas suas várias etapas
de formação, já deixaram o ensino universitário, indo agora iniciar o
seu estágio com vista ao exercício da complexa e fascinante profissão
de Advogado.
Apesar de fascinante, a nossa profissão tem sido alvo de sentimentos
antagónicos, pois, normalmente, ao contrário de todas as outras,
lidamos com a conflitualidade social e temos uma parte contrária de
carne e osso como nós, tudo diferente da medicina e da engenharia, por
exemplo, onde a chamada parte contrária não tem rosto humano,
sendo a doença o que se tem de vencer na Medicina e as forças da
natureza o que se tem de vencer na Engenharia.
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Assim temos que, se por um lado, a Advocacia, no dizer de Voltaire, é a
mais bela profissão do mundo, e, segundo Palma Carlos, é mesmo
tocar as estrelas.
Por outro lado, desde Shakespeare que dizia que os Advogados não
eram precisos para nada, deviam desaparecer, ser mesmo mortos, ao
filho do conhecido actor Harrison Ford, que numa entrevista que
fizeram à família Ford dizia ao entrevistador “o meu pai é actor de
cinema; às vezes faz de boa pessoa, outras vezes faz de advogado”.
Depois disto, neste sentido de vos alertar para a incompreensão que,
muitas vezes, gera a nossa profissão, peço-vos desculpa, mas não me
contenho e queria-vos contar uma história, ao que me dizem verídica, e
que se passou com um simples Guarda Florestal de um parque dos
EUA.
História esta que abriu, aqui há uns anos atrás, o discurso de um
brilhante jurista.
Discutia-se nesse Parque Florestal uma forma de reduzir os
atropelamentos que estavam a acontecer frequentemente, não só de
pessoas como de animais.
Na semana em causa tinham sido atropelados, na mesma zona, ora
vejam, um Advogado e um esquilo.
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Na análise das respectivas ocorrências os peritos estavam a procurar
determinar entre dois locais distintos tidos como possíveis, qual o que
corresponderia ao atropelamento do Advogado e qual o que
corresponderia ao atropelamento do esquilo.
Depois de acesa discussão, até porque os peritos não se entendiam, é
chamado o Guarda Florestal que, com toda a sua simplicidade apontou
de imediato o local onde o esquilo tinha sido colhido.
Quando estupefactos os peritos lhe perguntaram porque ele achava tão
categoricamente que aquele era o local onde tinha sido colhido o
esquilo, ele respondeu, simplesmente, porque existem rastos de
travagem antes do atropelamento.
Voltando agora o fio à meada, após este parêntesis, nesta segunda fase
da vossa formação vão lidar essencialmente com o importante tema da
deontologia e com os também não menos importantes temas
processuais que têm a ver com a tramitação e ritual que devem seguir
os processos judiciais.
É a fase, como se costuma dizer, da “Law in Action”.
Isto é, após uma componente universitária mais teórica, vão agora as
minhas e os meus queridos Colegas entrar numa componente mais
técnica e virada para a Advocacia, onde, porque conheço alguns, vão
ter excelentes mestres aqui no Centro de Estágio.
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Por conseguinte, também não vos irei falar de nenhum destes temas da
segunda fase da vossa formação, a fase do estágio.
Aproveitem, porque não é todos os dias que se tem o privilégio de ter
este “crème de la crème” de formadores.
Posso-lhes dizer ainda que o mês passado, em Bucareste, no Congresso
Mundial da União Internacional dos Advogados, fui um dos
convidados, com várias outros Colegas, tendo havido a preocupação de
escolher um Advogado por país, para fazer uma comunicação e
intervir no debate acerca da criação de uma nova Comissão no âmbito
da União Internacional dos Advogados.
Comissão esta que irá ser criada de propósito e que tem como
objectivo, única e simplesmente, a Formação e o Acesso à profissão de
Advogado.
Vejam pois a importância que a Formação está a assumir, mesmo nos
Fóruns Internacionais, agora mais do que nunca.
Deixei-me também dizer-lhes que o sistema de formação em vigor em
Portugal foi dos mais elogiados, o que para mim nem foi novidade, pois
dos contactos que tenho tido com Colegas do estrangeiro ao longo da
minha vida profissional, posso referir, sem margem para dúvidas, que
os Advogados Portugueses estão ao mais alto nível.
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Gostava assim de vos dizer algumas palavras, que possam, de algum
modo, contribuir para a vossa formação, mas que estejam fora, não só
do âmbito universitário, mas também do âmbito das disciplinas que
vão abordar no curso de estágio.
Ora, quem vos está aqui a falar tem um currículo muito pequeno e ao
mesmo tempo muito grande.
Isto porque, se tivesse que fazer um currículo, quase que chegaria
escrever a palavra Advogado, simplesmente Advogado, um currículo
muito pequeno, mas que poderá tornar-se muito grande se se
acrescentarem todas as vivências que representam ser Advogado já há
mais de vinte anos.
Minhas queridas e meus queridos Colegas, o que aprenderam na
Faculdade de Direito é um instrumento muito importante para todos
os que estão aqui na plateia almejam, e com toda a legitimidade, cheios
de sonhos, aspirações e desejos, que é o de virem a exercer a profissão
de Advogado.
Mas, não tenham ilusões, porque, como acabei de referir, o que
aprenderam na Faculdade de Direito é apenas um das ferramentas,
não a ferramenta.
Capacitem-se disso, pois não quero que cheguem ao extremo de dizer
daqui a uns anos, como se retira da mensagem do livro “A Mistificação
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da América” (The Greening of América) de Charles Reich, antigo
Professor da Escola de Direito de Yale, onde o mesmo parece que
murmura para os ex-alunos que saíram de Yale (a mais conceituada
escola de direito dos EUA, juntamente com Harvard), ora bolas,
passados estes anos todos esquecemo-nos de vos ensinar a advogar…
Quem sai da Faculdade de Direito é óbvio que não sabe o que se passa
nas trincheiras, nem lhe foram ensinadas as coisas que farão dia sim
dia não como Advogados.
Começo-vos então por dizer, embora a frase esteja já um pouco gasta,
que um Advogado que só saiba de direito nem de direito sabe.
Um Advogado tem de saber, além do Direito, essencialmente do
Mundo e da Vida.
Importa pois fazer uma breve reflexão acerca do que é o Mundo
actual.
Actualmente, o progressivo processo de Globalização com tudo o que
tem de bom e com tudo o que tem de mau, está definitivamente
instalado.
O progresso científico, desde a descoberta do ADN à recente
elaboração final do desenho do mapa do genoma humano, se em muito
vai ajudar a sociedade, também cria múltiplos problemas e questões
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jurídicas, desde a escolha dos filhos por processos genéticos, à recusa
de trabalho a quem se preveja que pelo seu código genético em breve
vai contrair uma doença, etc.
Por outro lado, a evolução e a mobilidade tecnológica fazem com que
todos os anos milhões de pessoas mudem de trabalho sem mudar de
profissão, num constante exercício de renovação a que não escaparão
os Advogados.
Ora, considerando a actual conjuntura social e última e
principalmente, a actual conjuntura económico financeira, resultante
dos novos e sofisticados produtos que se criaram e serviços existentes,
decorrentes da evolução dos tempos, das novas formas de gerir, do
avanço científico, das telecomunicações e outros, vemos, como refere
Joaquim Aguiar, que o Estado sem o poder de controlar as pessoas e a
mobilidade dos factores económicos e financeiros, perdeu também um
outro importante poder, e deveras mais relevante, que era o poder do
Estado para controlar o tempo …. o tempo da evolução histórica …das
inter-relações dos grupos sociais, o tempo da mudança nas culturas e
nas configurações sociais.
Tanto os últimos anos do século XX como os primeiros anos deste
século XXI, demonstraram que era um verdadeiro mito poder pensar-
se que o Estado tinha o poder produzir a sociedade e a sua organização
e, desse modo, permitir ao poder político produzir-se a si próprio ao
conseguir controlar a evolução da sociedade.
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Este controlo fazia-se com a mediação do plano nos regimes socialistas,
e com a mediação do mercado, com menor ou maior influência do
Estado, no liberalismo e no social liberalismo.
Para o modelo socialista estatizado, a apropriação colectiva dos meios
de produção e o plano elaborado pelas autoridades centrais garantiam
a condução linear da economia, sem ciclos económicos, e da sociedade,
garantindo a satisfação das necessidades básicas de todos os seus
elementos.
Para os modelos liberais e sociais liberais, os estímulos bem doseados
de política fiscal e de política monetária, com o apoio envolvente das
políticas de segurança social, permitiriam, segundo estes modelos,
obter estas duas estabilidades, a da economia, controlando os ciclos
económicos e assegurando um crescimento sustentado, e da sociedade,
reduzindo a intensidade dos conflitos de classes.
No entanto, estes dois mitos desagregaram-se, e o mais curioso é que
não foi porque tenham sido derrotados politicamente por uma outra
proposta vencedora.
O desenvolvimento tecnológico e a sua sofisticação atrás referida,
fizeram com que estes modelos, única e simplesmente, se
desagregassem por dentro.
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Vejam que o que Osama Bin Ladem não conseguiu com o atentado às
Torres Gémeas foi agora, ao que parece, não só alcançado mas
muitíssimo ultrapassado, com a crise financeira desencadeada pelo
denominado fenómeno do “subprime” nos EUA.
Nesta análise do Mundo em geral em que nós Advogados estamos
inseridos, além dos fenómenos já elencados da globalização e do
progresso tecnológico, com toda a sua mobilidade e sofisticação, não
podemos deixar de fazer alusão à Comunicação Social, dado que esta
vai, no futuro, mais do que nunca, influenciar o actual paradigma do
exercício da Advocacia.
Hoje em dia, a chamada Imprensa já não é o quarto poder como
Honoré de Balzac dizia com a perspicácia e sensibilidade de quem
escreveu que “o amor é a poesia dos sentidos”.
A Imprensa é, isso sim, não o quarto, mas o primeiro poder dos
poderes.
É de pensar como, hoje em dia, estamos longe da Comunicação Social
de há um par de décadas atrás, não sendo necessário recuar aos
tempos do Leipzer Zeitung, primeiro jornal diário do mundo criado na
Alemanha em 1660.
Todas as correntes filosóficas influenciaram os Media, principalmente
o Iluminismo, mas, verdadeiramente, só se começou a sentir a
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importância dos Media no século XIX, quando a Imprensa se tornou
numa indústria com o desenvolvimento da rotativa.
E a importância desta passou a ser tão significativa que já em 1820,
segundo Hegel, o jornal é a oração laica matinal do homem moderno.
No início do século XX os filósofos seguidores de Hegel e Marx, logo
nessa altura, denunciaram o perigo da industrialização e
estandardização da cultura referindo-se à imprensa.
Em meados do século XX as Instituições, segundo Karl Popper, são a
Economia de Mercado, a Democracia Política e, vejam só, os Media.
Aliás, esta Sociedade Aberta de Popper para o austríaco Friedrich
Hayek seria uma Grande Sociedade com os referidos três
intervenientes, Economia de Mercado, Democracia Política e Media,
totalmente ligados e entrelaçados, pois que dependentes uns dos outros,
embora com antagonismos, num autêntico e perfeito “ménage à trois”.
Nos anos sessenta Marshall MacLuhan lucidamente refere que nos
Media até então o que tinha sido importante era a mensagem, mas
agora mais importante do que o conteúdo da mensagem é o Media que
permite a sua transmissão.
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Esta “estandardização da cultura”, ou seja, a homogeneização cultural
promovida pelos Mass Media, acabou por domesticar e moldar a
Opinião Pública.
A Opinião Pública em vez de corresponder a uma real força
modelizadora e mobilizadora dos projectos colectivos, passa a ser não
mais do que uma forma interiorizada de modelos forjados pela
indústria cultural (os Mass Media).
Como salienta, neste seguimento, Adriano Duarte Rodrigues in “O
Campo dos Media”, Comunicação & Linguagens, a Opinião Pública
passa a ser mais objecto do que sujeito autónomo de uma vontade e
saber colectivos.
Repare-se que o espaço encolheu num tempo que se acelera, fruto da
aliança entre a informática e as telecomunicações.
A Televisão passou a ser (e agora também a Internet) a grande
educadora e líder de comportamento.
A sua influência é enorme e penetrante, porque lecciona ao domicílio, é
praticamente grátis, e fá-lo a novos e velhos, universitários e
analfabetos, ricos e pobres, etc.
É o mais influente arquitecto do nosso Universo como referiu o na
altura Senhor Presidente da Assembleia da República, Dr. Almeida
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Santos, na sessão de encerramento do V Congresso dos Juízes
Portugueses.
Forma e deforma, cria e destrói e confunde ficção com realidade.
Nos últimos anos a excessiva empresarialisação dos meios de
Comunicação Social tornou-os escravos das audiências.
A informação procura a todo o custo a obtenção de picos de audiência,
aposta em slogans e frases mediáticas, sendo a informação sumária
para não dizer, muitas vezes, absolutamente primária.
Os Media para não fugir ao que hoje se passa com a maioria das
pessoas, pois todas pensam saber superficialmente de tudo mas
profundamente acabam por não saber nada de nada, permitem-se
fazer afirmações completamente deslocadas e até investigar, julgar,
absolver e condenar, e tudo muito rápida e eficazmente, em
contraposição com a lentidão dos Tribunais.
As opiniões, as entrevistas, as mesas redondas, quadradas e de
qualquer formato sucedem-se, assim como os fóruns e outros que tais,
começando as pessoas a confundir ficção com realidade e o ar do
tempo a reinar, que é o ir na onda e é o que pensam precisamente as
pessoas que não pensam, como dizia há tempos o editorial do Jornal
Expresso.
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Este modo de agir dos Media atingiu toda a sociedade Portuguesa, ao
qual não escapou a Justiça.
O que vos queria pois referir é que os Advogados de futuro têm de
aprender a lidar com este tipo de sociedade mediática, o que é
incontornável, pois a liberdade de expressão é um dos grandes valores
de referência de uma sociedade livre.
A liberdade de Imprensa é um corolário da liberdade de expressão,
sendo aquela outro valor que ninguém põe em causa, tendo-se vindo a
consolidar nas sociedades democráticas toda uma luta que começou em
1695 quando em Inglaterra foi reconhecido à Imprensa (pela Coroa
Inglesa) o direito de impressão sem autorização prévia.
Aqui chegados, convém lembrar, e isto sim diz-nos directamente
respeito, que a regra base das audiências judiciais é de que devem ser
públicas.
Mais, hoje em dia já ninguém contesta que as autoridades judiciárias
devem permanecer expostas às críticas da Sociedade.
O princípio da publicidade dos processos e das decisões judiciais não
poderá jamais ser posto em causa.
A Imprensa tem de ser Livre e a Justiça tem de ser Aberta.
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Este princípio fundamental de Justiça Aberta e Transparente só
poderá ter restrições em casos especiais, quando possa pôr em causa,
por exemplo, a garantia de realização de um julgamento justo e
imparcial.
A Justiça e as autoridades judiciárias (assim como a Política e os
políticos), têm de estar expostas à sociedade e inclusive sujeitas ao
debate público com a necessária publicidade, tudo conforme refere
Gomes Canotilho.
Recorrendo à conhecida máxima “Justice must not only be done; it must
be seen to be done”.
Nos Estados Unidos da América já tivemos julgamentos televisionados
em directo.
Embora com determinadas regras e sem que esta premonição
signifique qualquer concordância antecipada de minha parte, estou
convencido que no futuro poderá ser permitida a transmissão de
julgamentos também noutros países.
As reservas que poderiam existir face a uma possível “encenação”
excessiva das salas de audiência, têm vindo a perder terreno, dado que
com o desenvolvimento tecnológico (vejam, outra vez o
desenvolvimento tecnológico a moldar a sociedade) podem-se fazer
filmagens com pequenas câmaras e bem escondidas.
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De igual modo se tem referido que em vez de se criticar a Imprensa
pelas suas reportagens acerca do que se passou no Tribunal, dever-se-
ia deixar ao telespectador assistir aos debates, sem interposta pessoa,
para que tirasse as suas própria conclusões e ver afinal como tudo se
passa.
Esta discussão tem ultrapassado os países anglo-saxónicos pelo que já
em França se pergunta “si la presse et le public doivent être admis au
procès, pourquoi pas les caméras ?”
Não vamos entrar na discussão deste controverso tema da transmissão
dos julgamentos pela televisão, porque, no fundo, o que vos quero dar é
simplesmente uma ideia da “revolução” por que está a passar o Mundo
à qual a Advocacia não escapará.
O que eu vos quero alertar é que é importante que os Advogados
mantenham a sua dignidade, seus princípios éticos e deontológicos,
perante esta sociedade de Câmaras de Filmar e parangonas nos
jornais.
A Comunicação Social já demonstrou o apetite voraz que tem pelos
casos judiciários, e o que passa na Comunicação Social acerca da
Justiça e dos Advogados é a ideia que fica para o público da nossa
profissão.
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Para o Público, os 15 segundos em que aparece a falar um Advogado
debaixo dos holofotes da Televisão é o retrato da Advocacia.
Estes 15 segundos são o momento, e prevalecem sobre séculos de
existência da nossa profissão e sobre o mister de milhões de
Advogados.
Um verdadeiro salto mortal fazendo tábua rasa de tudo o que está
para trás.
Mas, é assim, não fosse o arquétipo do telespectador médio, dentro
desta nossa normalidade ética contemporânea, um verdadeiro e
arvorado génio da síntese.
Daqui para frente, tenham consciência disso Minhas Queridas e Meus
Queridos Colegas, o Advogado no futuro vai ter que saber conviver,
por este andar, com um Mundo de Câmaras de Filmar e Microfones.
Ora, todo este estado da Nação, ou melhor, do Mundo, originou uma
mutação vertiginosa na Advocacia nos últimos anos.
E quem nos trouxe esta mutação foi, nada mais nada menos,
desculpem voltar a insistir na tecla, o desenvolvimento tecnológico,
com tudo o que tem de bom e com tudo o que tem de mau, mas sendo
imparável, e tendo vindo para ficar, cada vez com maior sofisticação.
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As modificações operadas na profissão de Advogado nos últimos vinte
anos ultrapassam e bem as modificações dos últimos séculos, e quem
não estiver preparado para evoluir será condenado pelas mutações em
curso.
A maioria dos futuros Advogados que estão nesta plateia, embora a
Advocacia individual tenha o seu papel a desempenhar sendo bom que
nunca desapareça, não vão por certo trabalhar sozinhos mas em
sociedades ou grupos de advogados, vão ter de ter uma cultura extra
jurídica mas ao mesmo tempo vão, parece evidente, ter que se
especializar num ramo de direito específico, vão ter ao alcance do
teclado do seu computador toda a informação jurídica possível, vão ter
de falar e escrever em Inglês, a língua franca actual, vão ter de
trabalhar com estrangeiros e no estrangeiro, dado que com o evoluir
do processo de integração na União Europeia e crescente globalização,
os Advogados Portugueses serão cada vez mais Advogados da Europa
e do Mundo.
Sendo este o futuro que penso vos está reservado, não descurem nunca
a vossa formação em todos os campos.
A cultura extra jurídica é essencial para a nossa profissão.
Sentimento este que já está a chegar às Universidades, e não apenas
nas Escolas de Direito, mas em todas as Faculdades.
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Recentemente, parece que a Universidade de Harvard, uma das
melhores do mundo, e pioneira nos métodos de ensino, está a ensaiar
uma reforma com vista à introdução de temas gerais em todos os seus
cursos.
E o lema, a título apenas exemplificativo, é que ao verdadeiro poeta e
escritor só faz bem se além de linguística tiver noções de botânica, ao
historiador se tiver noções de literatura, ao médico se souber
psicologia, ao advogado, e porque não, se tiver noções básicas um
pouco mais avançadas de Matemática, e por aí fora.
Noções estas de Matemática, disciplina que não escolhi
propositadamente por muitos juristas lhe serem avessos, mas sim
porque, o que vos digo com toda a franqueza, é não só extremamente
útil para determinados ramos do Direito Societário, Fiscal e
Financeiro, mas também porque nos ajuda a raciocinar em abstracção.
Se me permitem um conselho, uma das lacunas que por vezes noto nos
nossos Colegas é precisamente a dificuldade do treino da abstracção e
a falta de raciocínio rigoroso, ambos essenciais para que se possa ser
um bom jurista, e que nos são dados e de que maneira pelo estudo da
Matemática, e não da Matemática complicada, não se assustem.
Quanto à benesse de agora o jurista passar a ter toda a informação na
ponta dos dedos frente a um teclado de computador, quero lembrar-
lhes, também, que uma máquina de calcular não ensina Matemática.
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Uma coisa é ter em abstracto toda a informação, outra é saber desse
todo o que ir buscar, o que é adequado ao caso concreto, os acórdãos
que, por exemplo, parecem ter um sumário igual, mas se ler-mos o caso
em concreto e seu desenvolvimento, são completamente antagónicos.
Recordem que toda a informação tem de ser colhida e tratada
cuidadosamente para se aferir da sua aplicabilidade ao caso concreto
que temos em mãos.
Não se iludam com esta pretensa facilidade de tudo estar em bases de
dados, pois quanto mais bases de dados houver mais conhecimentos de
Direito e Formação adequada é necessário obter, para se poder não só
filtrar como relacionar tudo o que elas, bases de dados, nos podem vir
a fornecer.
A informática é das melhores invenções existentes mas cuidado
porque, desculpem o que vou dizer, o computador em si é um idiota
chapado, pois não raciocina para além de determinados limites, e só
deita para fora o que lhe metermos dentro.
Um conselho que vos dou, para uma útil recolha de informação e dados
para enfrentar o problema que se nos depara, como ensina Mark H.
McCormack em “O que não se ensina nas Faculdades de Direito”, é
que a primeira e mais importante tarefa de um Advogado é ouvir
atentamente o cliente.
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Depois de ouvirem atentamente o cliente procurem, dentro do bom
senso e razoabilidade, verificar como pode ser resolvido o caso ou o
problema em concreto.
De começo, nada de Códigos, nada de consulta de Códigos.
É um excelente exercício para a vossa formação tentarem resolver os
casos que surjam, em primeiro lugar, pelo bom senso e razoabilidade.
Só depois vão ao Código, mas atenção, depois é mesmo obrigatório ir
ao Código.
Não pensem que estou a dar um cartão vermelho aos Códigos.
Nada disso, estou apenas a situar o seu “tempo de entrada em jogo”.
O legislador normalmente é razoável e tem bom senso, por isso, a
solução, pelo menos no aspecto geral, com Código ou sem Código, é
normalmente idêntica.
Trata-se de um método tão eficiente que vos posso dizer que ainda hoje
o uso.
Isto é importante referir, porque o jurista saído da Faculdade tem o
vício tremendo de, antes de ouvir atentamente o cliente e debruçar-se
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sobre todas as “nuances” do caso em concreto, já estar a abrir o
Código.
Há vários anos atrás quando dei formação no campo da
Responsabilidade Civil, numa série de empresas, a não licenciados e
licenciados em Direito, muitas vezes os não licenciados tinham
melhores prestações porque, ao contrário dos licenciados em Direito,
não tinham o vício de tentar encontrar tudo no Código.
Pensavam e reflectiam previamente, isso sim, sobre o problema em si.
Depois de pensado e reflectido o assunto, vamos então aos Códigos.
Os Códigos são essenciais, mas o nosso cérebro está primeiro.
Lembrem-se que ouvir e reflectir é a base, e isto em todas profissões.
Em Inglaterra, ao que me foi dado saber, chegou-se à conclusão que
grande parte dos erros médicos ocorre porque o médico não ouve o
doente.
Manda logo fazer exames e às vezes as coisas não vêm nos exames, ou
os exames só podem ser bem analisados com um complemento
exaustivo do que se passa com o paciente, havendo elementos que
apenas ele, doente, pode fornecer.
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O Advogado que abre de imediato o Código, antes de saber os exactos
contornos do problema que tem em mãos, é como o Médico que manda
fazer logo exames sem se preocupar em ouvir e examinar o doente.
Atrás também referi o tema da especialização, que penso ser o destino
da maioria dos Advogados no futuro.
A vida e o direito tornaram-se bastantes complexos, e hoje em dia o
problema não é só o de interpretar a lei, mas, desde logo, o de saber
qual é a que está em vigor, o que foi revogado, o que não foi, as
disposições transitórias, etc.
E não se pense que só em Portugal, em todo Mundo isto acontece.
Um Colega dos EUA referiu-me que em 50 anos tiveram dois Códigos
de Impostos, mas de há vinte anos para cá as alterações saem, não de
ano a ano, não de mês a mês, não de semana a semana, não dia a dia,
mas, pasme-se, de hora a hora.
No entanto, cuidado com a forma de especialização ….
Primeiro tem de se ser um bom Jurista, um bom Clínico Geral,
sabedor do Direito na sua globalidade.
É preciso ter uma boa tabuada, um bom ABC como se costuma dizer.
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Ter uma boa tabuada dá para fazer boas contas e um bom ABC dá
para escrever bem.
Então, depois sim, especialização, mas primeiro, repito, é preciso
raciocinar e pensar o Direito como um todo.
Isto porque, o direito não é estanque e os diferentes ramos do Direito
comunicam entre si.
Posso-vos dizer que quem sabe apenas de um ramos do Direito pouco
sabe, inclusive desse mesmo ramo.
Comparo o Sistema Jurídico ao “Sistema Metabólico” do Corpo
Humano onde também não há fronteiras.
Um bom especialista de fígado tem de saber um pouco de tudo.
Caso contrário, ao tentar curar o fígado vai estragar os rins.
Quanto a este tema recordo um episódio que se passou com um grande
cirurgião plástico hoje em dia, que, anos atrás, pretendeu estagiar com
um dos maiores especialistas da altura, a exercer no Brasil, penso que
o Prof. Pitanguy.
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Quando se preparava para iniciar o estágio teve ainda que esperar uns
anos, porque o famoso cirurgião só “admitia estagiários” na sua equipa
de cirurgia plástica com vários anos de cirurgia geral.
Que interessa fazer-se uma bela operação de transformação de uma
barriga feia numa linda barriga, se ao mesmo tempo se danificarem
outros órgãos e tecidos que não fazem parte da cirurgia estética ?
Quanto ao mais, não quero terminar sem vos referir que além da busca
do saber e do domínio das técnicas da profissão, nunca se conformem
quando, à primeira vista, a lei não vos der a solução que considerem
justa, nem esqueçam nunca a dimensão humana que a Advocacia tem
de ter.
Um Advogado conformado não será nunca um verdadeiro Advogado.
Como escreveu Gustav Radbuch, citado pelo Prof. Figueiredo Dias,
devemos crer, sempre e firmemente na nossa profissão mas, ao mesmo
tempo, temos a obrigação de, constantemente, duvidar dela nas mais
profundas regiões da nossa consciência moral.
Embora possa parecer uma irresponsabilidade da minha parte dizê-lo,
às vezes é preciso dar um pontapé na Lei na busca da solução justa.
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Mas, para se dar o tal pontapé e conseguir alcançar a solução
imaginativa e engenhosa que se almejava, não se iludam, é preciso
saber muito Direito.
José Cardoso Pires, nosso brilhante escritor já falecido, dizia que para
escrever bem a primeira condição é saber gramática; a segunda é
esquecê-la.
E, pensando bem, o famoso Picasso, antes de evoluir para a chamada
síntese entre o surrealismo e o cubismo, foi um grande retratista que
definia os rostos com uma precisão exemplar, pois só um grande pintor
conseguiria depois fazer e pintar aquelas “Picassadas” que, para
alguns, à primeira vista, parecem nenhum significado poder ter.
Lembrem-se, agora no que diz respeito à dimensão humana da nossa
profissão, que vão ter acesso à mais profunda intimidade, aos mais
legítimos anseios e desejos, e a tudo o mais que tem a ver com a vida da
mais maravilhosa invenção do Criador, a Pessoa Humana.
Nunca percam a dimensão Humana da profissão.
Sejam humildes e simples, como dizem os Budistas, o mais alto grau de
espiritualidade é fazer a cama e arrumar o quarto todos os dias.
Sejam tolerantes, por muito sábios que sejam, pois “ninguém sabe o
suficiente para ser intolerante”, como referia Karl Popper.
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Enfim, respeitem tanto o vosso cliente como o vosso adversário, e
lembrem-se sempre, tanto nesta vossa fase de formação, o estágio que
agora iniciam, como ao longo da vossa vida profissional, à qual auguro
os maiores sucessos, que ninguém é tão grande que não possa
aprender, nem tão pequeno que não possa ensinar.
E aqui termino.
Muito obrigado a todos pela paciência com que me escutaram.
Porto, 28 de Novembro de 2008
(Miguel Cerqueira Gomes)