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Ruben George Oliven
A Antropologia de Grupos Urbanos
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Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Oliven, Ruben George A antropologia de grupos urbanos / Ruben George Oliven. 6. ed. - Petrpolis, RJ : Vozes, 2007.
ISBN 978-85-326-0774-4 Bibliografia 1. Antropologia urbana 2. Sociologia urbana I. Ttulo. 06-9168 CDD-307.76 ndices para catlogo sistemtico: 1. Antropologia de grupos urbanos : Sociologia urbana 307.76 2. Antropologia urbana : Sociologia urbana 307.76
1995, Editora Vozes Ltda.
Rua Frei Lus, 100
25689-900 Petrpolis, RJ
Internet: http://www.vozes.com.br
Projeto grfico: AG.SR Desenv. Grfico Capa: Bruno Margiotta
ISBN 978-85-326-0774-4
Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.
Sumrio
I. Introduo, .............................................................................................. 7
II. A utilizao de mtodos e tcnicas antropolgicas no estudo de
sociedades complexas, ................................................................................ 11
III. A cidade e as teorias sociais, ................................................................. 17
IV. Pesquisas antropolgicas no contexto urbano, .................................... 29
1. Migrao e trabalho, .................................................................... 29
2. Formas de sociabilidade no contexto urbano,.............................. 43
3. Religio, ....................................................................................... 57
4. Lazer, ............................................................................................ 61
V. Concluso, .............................................................................................. 65
Bibliografia, ................................................................................................. 67
A paginao desse ndice corresponde edio original em papel. A numerao foi inserida entre colchetes no decorrer do texto, indicado sempre o final de cada pgina.
I ----------------
Introduo
primeira vista, um livro de Antropologia dedicado ao estudo de
grupos urbanos pode parecer estranho. Afinal, a Antropologia
tradicionalmente associada ao estudo das sociedades consideradas simples,
que em sua grande maioria so tribais e vivem no campo.
H pelo menos duas maneiras de responder a esta possvel surpresa.
A primeira relativamente simples e consiste em afirmar que Antropologia
tudo aquilo que os antroplogos fazem e que no Brasil, bem como em
vrios outros lugares, eles esto cada vez mais ocupados em pesquisar o
meio urbano, o que inclusive deu origem a uma Antropologia chamada de
urbana.
O segundo tipo de resposta mais slido e est calcado,
primeiramente, no fato de que a pesquisa de reas urbanas sempre teve
certa relevncia em estudos antropolgicos. De fato, existe uma longa
tradio antropolgica de "estudos de comunidade" que, embora no se
ocupem especificamente com sociedades urbano-industriais, tm a cidade
como pano de fundo dos fenmenos pesquisados. No Brasil esta tradio
produziu trabalhos de grande importncia como os de Emilio Willems1,
Charles
[pg. 7]
1 Emlio Willems. Cunha: Tradio e transio em urna cultura rural do Brasil. So Paulo, Secretaria da Agricultura do Estado, 1947.
Wagley2, Marvin Harris3, Antonio Candido4 e Kobert Shirley5, para citar
somente alguns pesquisadores.
Examinando este tipo de pesquisas, Durham e Cardoso assinalam
que as mesmas dizem respeito a
certas categorias ou grupos, ou fenmenos, os quais, embora no necessria e especificamente urbanos, podem ser encontrados e estudados nas cidades modernas. Entram nesta classificao os trabalhos sobre minorias tnicas e raciais, sobre seitas e manifestaes religiosas. Se estes trabalhos no constituem uma antropologia urbana propriamente dita, no menos certo que se estabeleceu entre ns, desde os tempos de Nina Rodrigues, uma tradio de estudos antropolgicos realizados em cidades ou, mais especificamente, em grandes centros urbanos. mais recente o interesse por problemas como os referentes migrao rural-urbana ou populao favelada, que so definidos especificamente por sua natureza urbano-industrial6.
Em reforo ao argumento de que a pesquisa de reas urbanas sempre
ocupou um lugar de importncia em estudos antropolgicos, cabe salientar
que, se atualmente os antroplogos esto cada vez mais estudando
sociedades urbano-industriais, este fenmeno ocorre justamente porque
[pg. 8]
2 Charles Wagley. Uma comunidade amaznica (Estudo do homem nos trpicos). So Paulo, Editora Nacional, 1957. 3 Marvin Harris. Town and Country in Brazil. Nova Iorque, Columbia University Press, 1956. 4 Antonio Candido. Os parceiros do Rio Bonito. So Paulo, Duas Cidades, 1971. 5 Robert W. Shirley. O fim de uma tradio. So Paulo, Perspectiva, 1977. 6 Eunice Ribeiro Durham e Ruth C. Leite Cardoso. "A investigao antropolgica em reas urbanas", in Revista de Cultura Vozes, vol. 67, n. 2, 1973, p. 49-50.
a Antropologia dispe de teorias e instrumentos prprios que podem
contribuir significativamente para a compreenso da dinmica deste tipo de
sociedade.
O estudo antropolgico do meio urbano coloca, entretanto, de sada a
questo da utilizao de mtodos e tcnicas antropolgicas no estudo de
sociedades complexas 7.
[pg. 9]
[pg. 10] Pgina em branco
7 A respeito desta e de outras questes, ver Ruben George Oliven. "Por uma Antropologia em Cidades Brasileiras", in Gilberto Velho (org.). O desafio da cidade (Novas perspectivas da antropologia brasileira). Rio de Janeiro, Campus, 1980.
II ----------------
A utilizao de mtodos e tcnicas antropolgicas no estudo de
sociedades complexas
A Antropologia Social surgiu como uma cincia preocupada com as
sociedades consideradas simples. Neste sentido, revelador que ela tenha
primeiro se desenvolvido no sculo passado na Gr-Bretanha, na poca, a
principal potncia industrial do mundo com um grande imprio formado de
vrias colnias repletas de sociedades "primitivas" a serei n estudadas. J
em pases que no tinham colnias, a Antropologia achou sua razo de ser
atravs do estudo de sociedades indgenas, de grupos rurais e,
eventualmente, at urbanos identificados como as "camadas menos
favorecidas da populao". Mas em ambos os casos, o objeto de estudo
eram sempre os "outros", retratados como portadores de uma cultura
diferente da nossa.
Uma das crticas feitas com muita freqncia a antroplogos que
estudaram sociedades simples a de que suas pesquisas so extremamente
descritivas e pouco preocupadas em relacionar os fenmenos observados
com fenmenos da mesma natureza que ocorrem em sociedades complexas.
A Antropologia se preocupava com os "outros" e estes muitas vezes eram
percebidos como longnquos e at bizarros: "A Antropologia tendeu a
apresentar uma fachada
[pg. 11]
para uso externo onde o interesse pelo extico e distante, o penoso trabalho
de campo e um certo tipo de bibliografia clssica constituam as marcas de
diferenciao"8.
As ex-colnias tornaram-se, entretanto, estados-naes (e em muitas
delas seus habitantes esto passando diretamente da tribo cidade) e nas
sociedades do novo mundo os ndios esto sucumbindo ao peso das
conseqncias do que eufemisticamente chamado de "progresso". Por seu
turno, as "camadas menos favorecidas da populao" esto h muito tempo
expostas s mensagens de sociedades urbano-industriais, estando portanto
em contato com a cultura dominante.
Referindo-se ao fato de que at recentemente as pesquisas
antropolgicas realizadas em cidades como as brasileiras tm se restringido
s "camadas menos favorecidas da populao", Durham e Cardoso
destacam que esta escolha significativa e est ligada tendncia de a
Antropologia trabalhar com tcnicas de pesquisa como entrevistas abertas,
observao participante, que so de natureza qualitativa e, portanto, mais
adequada para reconstituir o universo de participao social e o sistema de
representao dos informantes: "(...) justamente por serem 'marginais', isto
, por no terem acesso pleno aos canais de participao que permitem a
um estrato social, numa sociedade complexa, influir nas decises que
afetam seu prprio destino, que estes grupos podem ser analisados com
sucesso pela antropologia, cincia de certo modo tambm marginal
civilizao urbano-industrial"9.
[pg. 12]
8 Gilberto Velho. "O antroplogo pesquisando em sua cidade: sobre conhecimento e heresia", in O Desafio da Cidade, cit, p. 15. 9 Id., ibid., p. 50.
Comentando, entretanto, que na medida em que a Antropologia
trabalha dentro de um universo fechado de representaes, ela pode no
conseguir captar as foras impessoais que moldam o processo histrico no
qual esta populao se insere, nem perceber o processo de formao e
transformao da sociedade urbano-industrial (tarefa que exigiria
instrumentais tericos e metodolgicos desenvolvidos por outras cincias
sociais), as autoras assinalam que "o impasse reside na dificuldade que a
Antropologia encontra em elaborar um modelo geral mas no formal da
sociedade complexa que permita preservar a particularidade das situaes
concretas que analisa. Sem esta reflexo difcil ultrapassar o carter
fragmentrio dos estudos de caso e das anlises parciais, embora ricas e
sugestivas, pois no h uma teoria que relacione os resultados obtidos em
pesquisas restritas"10.
Um dos traos mais marcantes da formao do antroplogo a
experincia do trabalho de campo, rito de iniciao indispensvel para ser
aceito na comunidade acadmica. Durante este perodo de tempo, o
candidato a antroplogo do veria separar-se do mundo "civilizado" e viver
com o grupo pesquisado, procurando compreender sua lngua, suas Formas
de organizao econmica, social e poltica, seu sis-tema de representaes,
etc.
A preocupao em compreender e se colocar no lugar do "outro" fez
com que os antroplogos cultivassem um estranhamento diante dos
fenmenos observados em outras Culturas. Esta atitude de estranhamento,
no s com o que ocorria sua volta, mas com eles prprios, permitiu que
os
[pg. 13]
10 Id., ibid., p. 54.
antroplogos questionassem e captassem fenmenos que de outra maneira
talvez passassem desapercebidos.
Como transpor esta experincia para o estudo de sociedades
complexas? Embora o trabalho de campo seja possvel em grandes cidades,
ele coloca problemas novos. Por um lado, ele pode parecer muito mais fcil
que estudar sociedades simples onde tudo desconhecido para o
antroplogo, desde a lngua at os hbitos alimentares. Entretanto,
exatamente esta aparente facilidade que torna a tarefa mais difcil e
estimulante. Um dos principais desafios do antroplogo que estuda
sociedades complexas reside justamente em tentar interpretar sua prpria
cultura e questionar seus pressupostos que so muitas vezes aceitos como
fatos inquestionveis pela maioria da populao e inclusive por muitos
pesquisadores. Trata-se de compreender nossos rituais, nossos smbolos,
nosso sistema de parentesco, nosso sistema de trocas, etc. Neste sentido, a
Antropologia, para ser uma boa Antropologia de sociedades complexas,
necessita ser radical, no sentido etimolgico do termo, isto , procurar ir
raiz dos fenmenos que estuda, sem ter receio de desafiar tabus e
conhecimentos consagrados. talvez atravs da observao participante
(ou da participao observante) que se tem a possibilidade de analisar, por
exemplo, a dimenso da dominao no cotidiano e perceber como a cultura
reflete e medeia as contradies de uma sociedade complexa, procurando
estudar a cultura no como algo externo mas como um fenmeno que
produzido pelos homens nas suas relaes sociais. observando os
acontecimentos corriqueiros e cotidianos que a Antropologia pode construir
novas interpretaes, uma vez que o trabalho de campo tem um papel
central no desenvolvimento da teoria antropolgica. E justamente por se
preocupar em
[pg. 14]
estudar os reflexos das grandes transformaes no dia-a-dia e como elas
so vivenciadas e reelaboradas por diferentes camadas sociais que a
Antropologia vem desempenhando um papel to relevante na compreenso
da dinmica de sociedades complexas.
possvel, pois, resgatar o estudo antropolgico do meio urbano
desde que se compreenda que a cidade o local em que convivem diversos
grupos com experincia e vivncias em partes comuns, em parte diferentes:
(...) dentro de nossa prpria sociedade existe, constantemente, esta experincia de estranhamento. Vivemos experincias restritas e particulares que tangenciam, podem eventualmente se cruzar e constantemente correm paralelas a outras to plenas de significado quanto as nossas. A possibilidade de partilharmos patrimnios culturais com os membros de nossa sociedade no nos deve iludir a respeito das inmeras descontinuidades e diferenas provindas de trajetrias, experincias e vivncias especficas. Isto fica particularmente ntido quando fazemos pesquisa em grandes cidades e metrpoles onde a heterogeneidade da diviso social do trabalho, a complexidade institucional e a coexistncia de numerosas tradies culturais expressam-se em vises de mundo diferenciadas e at contraditrias. Sob uma viso mais tradicional poder-se-ia mesmo dizer que exatamente isto que permite ao antroplogo realizar investigaes na sua prpria cidade. Ou seja, h distncias culturais ntidas internas ao meio urbano em que vivemos, permitindo ao "nativo" fazer pesquisas antropolgicas com grupos diferentes do seu, embora possam estar basicamente prximas. No foi toa que alguns dos primeiros trabalhos de Antropologia Urbana foram estudos de minorias t-
[pg. 15]
nicas, imigrantes, e, mais tarde, de grupos desviantes, em se tratando de
trabalhos realizados na sociedade do investigador11.
[pg. 16]
11 Gilberto Velho, op. cit, p. 16.
III ----------------
A cidade e as teorias sociais
Por se constiturem nos centros mais dinmicos de sociedades
complexas, as cidades representam tambm espaos nos quais as
contradies deste tipo de sociedade se tornam mais evidentes. A cidade
passa, assim, a se constituir no contexto no qual se desenvolvem vrios
processos e fenmenos sociais. Ela no a principal causa destes
fenmenos (embora possa intervir no seu desenvolvimento), mas se
constitui no centro de convergncia de processos das mais variadas ordens.
Em relao idia de uma Antropologia Urbana, isto nos remete a
uma situao semelhante de uma Sociologia Urbana, criticada por carecer
de objeto prprio, j que o urbano seria tudo que ocorre no interior de
cidades12. Neste sentido seria mais correto falar de uma Antropologia na
cidade do que da cidade, j que a preocupao seria "estudar situaes que
ocorrem em cidades sem que tenhamos, forosamente, de explic-las pelo
fato de estarem ocorrendo naquele quadro especial. Estamos fazendo
cincia social na cidade e no da cidade"13.
[pg. 17]
12 Ver Manuel Castells. Problemas de investigacin en sociologia urbana. Madri, Siglo Veintiuno, 1971, cap. 2. 13 Gilberto Velho e Luiz Antnio Machado. "A organizao social do meio urbano", in Anurio Antropolgico 76. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1977, p. 71.
Pelo que est sendo discutido, pode-se perceber que para
compreender os processos que ocorrem no meio urbano necessrio
examinar o pensamento de cientistas sociais a respeito da cidade e das
conseqncias da vida urbana sobre seus habitantes14.
Uma das tendncias mais marcantes das teorias que analisaram a
cidade enquanto categoria social foi a de encar-la como uma varivel
explicativa. Sob esta perspectiva a cidade vista como uma potncia social
capaz de gerar atravs de sua influncia as mais diferentes conseqncias
na vida social. Os autores que encaram a cidade como uma varivel
independente de um amplo processo social consideram o modo de vida a
que ela daria origem como seu efeito de maior alcance, atribuindo assim
um forte valor explicativo ao urbano per se na anlise de vrios fenmenos
que ocorrem no seu interior.
Vrios destes autores tendem a atribuir cidade o poder de criar uma
cultura urbana marcada fundamentalmente pela desorganizao social e
cultural. A cidade e a urbanizao seriam, sob esta perspectiva, foras
profundamente desagregadoras. No por acaso que a "Escola de
Chicago", composta por cientistas sociais que se especializaram no estudo
de cidades, tenha se preocupado tanto com a "patologia social".
Para Wirth, um dos mais expressivos membros da "Escola de
Chicago", o estabelecimento de cidades implicaria no aparecimento de uma
nova forma de cultura caracterizada por papis sociais altamente
fragmentados, predominncia
[pg. 18]
14 Para uma anlise mais aprofundada da literatura sobre as teorias sociais a respeito da cidade ver Ruben George Oliven. "A Cidade como Categoria Sociolgica", in Urbanizao e mudana social no Brasil. Petrpolis, Vozes, 1980.
dos contatos secundrios sobre os primrios, isolamento, superficialidade,
anonimato, relaes sociais transitrias e com fins instrumentais,
inexistncia de um controle social direto, diversidade e fugacidade dos
envolvimentos sociais, afrouxamento dos laos familiares e competio
individualista15.
Apesar deste enfoque ter sido e ainda ser muito influente, ele
equivocado. Ele confunde a cidade com a causa de vrios processos sociais,
quando ela muito mais a conseqncia deles e/ou o lugar onde eles
ocorrem. Uma limitao adicional desta perspectiva a dificuldade de
definir o que o urbano e o que o rural, principalmente em pases como o
Brasil, em que existe intensa migrao do campo cidade e fenmenos
como os bias-frias que, embora vivam em cidades, trabalham no campo.
As idias de Wirth esto intimamente associadas teoria do
continuam folk-urbano formulada pelo antroplogo norte-americano Robert
Redfield em decorrncia de suas pesquisas no Mxico. Seu modelo
pertence s chamadas teorias de contraste, que procuram confrontar
caractersticas de uma sociedade no-urbana com a de uma urbana. Ele
acreditava que existiam variaes contnuas entre sociedades do tipo folk e
sociedades urbanas, crescendo ou diminuindo de um extremo para outro,
tendo descrito uma sociedade folk como sendo
pequena, isolada, analfabeta e homognea, com um forte sentimento de solidariedade grupai. Os modos de viver esto convencionalizados naquele sistema coerente que chamamos de "cultura". O comportamento tradicional, espontneo, acrtico e pessoal;
[pg. 19]
15 Louis Wirth. "O Urbanismo como modo de vida", in Otvio Guilherme Velho (orgs.). O fenmeno urbano. Rio de Janeiro, Zahar, 1967.
no existe legislao ou hbito de experimento e reflexo com fina intelectuais. O parentesco, seus relacionamentos e instituies, so as categorias tpicas da experincia e o grupo familiar a unidade de ao. O sagrado prevalece sobre o secular; a economia a mais de status que de mercado 16.
Estabelecendo uma comparao entre diferentes pontos de seu
continuam em relao sociedade folk, Redfield mantinha que
a vila camponesa quando comparada com a vila tribal, a cidade pequena quando comparada com a vila camponesa, ou a cidade quando comparada com a cidade pequena menos isolada; mais heterognea; caracterizada por uma diviso de trabalho mais complexa; tem uma economia monetria mais completamente desenvolvida; tem especialistas profissionais que so mais seculares e menos sagrados; tem instituies de parentesco e compadrio que so menos bem-organizadas e menos eficazes no controle social; correspondentemente menos dependente de instituies de ao impessoal; menos religiosa, no que diz respeito tanto a crenas e prticas de origem catlica como s de origem indgena; apresenta menor tendncia a encarar a doena como resultante da quebra de uma regra moral ou meramente de costumes; permite uma maior liberdade de ao e escolha ao indivduo17.
Apesar de ter construdo seu modelo baseado em quatro comunidade
que estudou na Pennsula de Yucatan, Redfield
[pg. 20]
16 Robert Redfield. "The Folk Society", in American Journal of Sociology, vol. 52, n. 4, 1947, p. 293. 17 Id. The Folk Culture of Yucatan. Chicago, University of Chicago Press, 1941, p. 338.
argumentou que outras comunidades, situadas de modo semelhante em outros pontos do mundo, poderiam ser ordenadas semelhantemente seguindo os mesmos princpios.
A passagem de um extremo para outro no continuum folk-urbano se daria por causa do aumento da heterogeneidade social e da possibilidade de interao que ocorre quando a sociedade cresce. Igualmente, a perda do isolamento ocasionada pelo contato com outra sociedade ou cultura tambm incentivaria este processo.
Desta forma, qualquer comunidade poderia ser localizada em um ponto determinado do continuum e, dadas certas condies de densificao populacional e aumento de heterogeneidade, qualquer grupo se moveria na direo do plo urbano.
Para Redfield, as conseqncias do deslocamento em direo ao extremo urbano seriam a desorganizao da cultura, a secularizao e o individualismo. A urbanizao enfraqueceria ou destruiria os firmes laos que ele acreditava que integravam os homens em uma sociedade rural e criaria uma cultura urbana caracterizada pela fragmentao de papis sociais e um comportamento mais secular e individualista.
A homogeneidade de uma sociedade rural qual corresponderia uma estrutura social no-ambgua e monoltica seria substituda na sociedade urbana por uma estrutura social caracterizada por uma diversidade de papis, aes e significados. A cultural rural, na qual todos os elementos culturais seriam definidos, transformar-se-ia em uma cultura fragmentada na sociedade urbana. As consequncias inevitveis da cultura urbana seriam, ento, o conflito e a desorganizao.
Desde que Redfield o desenvolveu, o modelo folk-urbano tem sido um tema constante em estudos urbanos e uma
[pg. 21]
quantidade muito grande de trabalho terico e emprico foi elaborada sobre
o assunto. A mais famosa crtica a ele foi formulada por Oscar Lewis, outro
antroplogo norte-americano. Em 1943 ele reestudou a vila mexicana de
Tepoztln na qual dezessete anos antes Redfield tinha realizado a pesquisa
que utilizara para a formulao inicial de seu modelo, mais tarde
desenvolvido na Pennsula de Yucatan,
Comparando seu estudo com o de Redfield, Lewis assinalou que
A impresso dada pelo estudo de Redfield sobre Tepoztln a de uma sociedade relativamente homognea, isolada, de funcionamento suave e bem integrada, formada por pessoas contentes e bem ajustadas. Seu retrato da aldeia tem uma qualidade rousseauniana que passa ligeiramente por cima de evidncias de violncia, distrbios, crueldade, doena, sofrimento e desajustamento. Pouco nos dito sobre a pobreza, problemas econmicos ou desavenas polticas. Ao largo de seu estudo encontramos uma nfase nos fatores de cooperao e unificao na sociedade de Tepoztln. Nossos achados, por seu turno, enfatizariam o individualismo subjacente das instituies e carter de Tepoztln, a falta de cooperao, a tenso entre as aldeias que se encontram dentro do municpio, as desavenas dentro da aldeia, a qualidade dominante de medo, inveja e desconfiana nas relaes interpessoais18.
Por isto, Lewis sugeriu que "o continuum 'folk'-urbano era um
modelo terico inadequado para o estudo da mudana cultural" e que
caracterizaes como folk, rural e ur-
[pg. 22]
18 Oscar Lewis. Life in a Mexican Village: Tepoztln Restudied. Urbana, University of Illinois Press, 1951, p. 428-429.
bano "confundem as questes dos estudos de mudanas a curto prazo,
nunca tendo sido provado seu valor heurstico, como instrumento de
pesquisa"19.
Em 1951 Lewis realizou uma pesquisa de acompanhamento de
habitantes de Tepoztln que haviam migrado para a cidade do Mxico,
tendo mais tarde assim resumido seus achados:
1o) Os camponeses da Cidade do Mxico adaptaram-se vida urbana, com muito maior facilidade do que se poderia esperar, a julgar por estudos comparativos dos Estados Unidos e da teoria "folk-urbana". 2o) A vida familiar permaneceu completamente estvel e os laos extensos de famlia antes aumentaram do que diminuram. 3o) A vida religiosa tornou-se mais catlica e disciplinada, indicando o reverso do processo previsto de secularizao. 4) O sistema de compradazgo continuou a ser forte, embora com certas modificaes. 5o) Persistiu o uso dos remdios e das crenas domsticas20.
Em decorrncia de seus achados, ele sugeriu que seu estudo
proporcionava "evidncia de que a urbanizao no constitui processo
nico, integral e universalmente semelhante, mas assume formas e
significados diferentes, que dependem das condies histricas,
econmicas, sociais e culturais prevalecentes"21.
[pg. 23]
19 Id. "Outras observaes sobre o 'continuum' 'Folk'-Urbano com Referncia Especial Cidade do Mxico", in Philip M. Hauser e Leo F. Schnore (orgs.). Estudos de urbanizao. So Paulo, Pioneira, 1975, p. 461. 20 Id., ibid., p. 464. 21 Id. "Urbanization Without Breakdow", in Scientific American, vol. 75, n. 1, 1952.
Subjacente aos modelos de autores como Wirth e Redfield est uma
perspectiva culturalista que procura explicar a dinmica de uma sociedade
em funo das representaes culturais que se acredita dela fazem seus
membros. Sob este ngulo, a cultura encarada no como um fenmeno
que produzido pelos homens como resultado de relaes sociais, mas
como algo externo sociedade e que seria uma espcie de varivel
independente. O comportamento social passaria ento a ser explicado como
resultado da cultura e no o contrrio. O risco desta postura reside em que a
aplicao deste modelo pode levar a explicar a situao de grupos sociais
ou at de sociedades globais em funo das caractersticas de sua cultura.
A teoria da modernizao, que foi utilizada por vrios cientistas
sociais para explicar o desenvolvimento e o subdesenvolvimento de
sociedades a partir do grau de modernidade de seus membros se constitui
num exemplo significativo de culturalismo que esquece seu principal
postulado, a saber, o do relativismo cultural22.
Nesta perspectiva, procura-se explicar inclusive a pobreza pela
suposta ausncia de uma "cultura urbana" ou de atitudes "modernas" por
parte dos grupos subalternos. Um exemplo desta postura representado
pela teoria da "cultura da pobreza" elaborada pelo prprio Oscar Lewis,
baseado em seus estudos no Mxico e em Porto Rico. Ele definiu uma
"cultura da pobreza" como tendo
sua prpria estrutura e lgica, um modo de vida passado adiante de gerao a gerao ao longo de linhas familiais. A cultura da pobreza no somente
[pg. 24]
22 Ver a este respeito, Ruben George Oliven. "A ideologia da modernizao", in Urbanizao e mudana social no Brasil. Petrpolis, Vozes, 1980.
uma questo de privao ou desorganizao, um termo significando a ausncia de algo. Ela uma cultura no sentido antropolgico tradicional na medida em que proporciona aos seres humanos um esquema de vida, um conjunto pronto de solues para problemas humanos, e assim desempenha uma significativa funo adaptativa23.
De acordo com Lewis, esta cultura apresenta quatro principais
caractersticas. Em primeiro lugar ele aponta "a falta de efetiva participao
e integrao dos pobres nas principais instituies da sociedade inclusiva".
Em segundo lugar, "ao nvel da comunidade local, achamos condies
habitacionais precrias, abarrotamento, gregarismo, mas acima de tudo um
mnimo de organizao que transcende o nvel da famlia nuclear e
extensa".
Em terceiro lugar, "ao nvel da famlia os principais traos da cultura
da pobreza so a ausncia da infncia enquanto estgio especialmente
prolongado e protegido do ciclo de vida, iniciao sexual precoce, unies
livres ou casamentos consensuais, uma incidncia relativamente alta de
abandono das esposas e filhos, uma tendncia para as famlias centradas na
me ou numa mulher e conseqentemente um conhecimento muito maior
dos parentes maternos, uma forte predisposio ao autoritarismo, falta de
privacidade, nfase verbal na solidariedade familiar, que s raramente
alcanada por causa da rivalidade entre irmos, e competio por bens
escassos e afeto materno".
[pg. 25]
23 Oscar Lewis. "The Culture of Poverty", in Scientific American, vol. 215, n. 4, 1966, p. 19.
Finalmente, "no mbito do indivduo, as principais caractersticas so
um forte sentimento de marginalidade, de desamparo, de dependncia e de
inferioridade"24.
Embora Lewis tenha assinalado que "a subcultura da pobreza uma
parte da cultura mais ampla do capitalismo" e tenha admitido que "as
principais razes para a persistncia da subcultura so, sem dvida, as
presses que a sociedade inclusiva exerce sobre seus membros e a estrutura
da prpria sociedade inclusiva", ele no obstante mantm que
esta no a nica razo. A subcultura desenvolve mecanismos que tendem a perpetu-la, especialmente por causa do que ocorre com a viso do mundo, as aspiraes e o carter das crianas que crescem nela. Por esta razo, melhores condies econmicas, embora absolutamente essenciais e da maior prioridade, no so suficientes para alterar basicamente ou eliminar a subcultura da pobreza. Ademais, a eliminao um processo que levar mais de uma nica gerao, mesmo sob as melhores circunstncias, incluindo uma revoluo socialista25.
Lewis, que se tornou famoso nas cincias sociais ao assinalar as
falcias contidas no modelo do continuurn folk-urbano de Redfield, foi ele
prprio fortemente criticado pelo conceito que criou. De fato, existe uma
srie de crticas que podem ser feitas a sua teoria da "cultura da pobreza".
Embora seja importante sua tentativa de chamar a ateno sobre a
marginalidade como uma situao de pobreza, sua anlise de organizao
social dos pobres inadequada e opera com
[pg. 26]
24 Id. "The Culture of Poverty", in Anthropological Essays. Nova Iorque, Random House, 1970, p. 70-72. Este captulo foi originalmente publicado no livro de Lewis, La Vida, a Puerto Rican Family in the Culture of Poverty. San Juan e Nova Iorque, Random House, 1965, p. XLV, XLVI e XLVIII. 25 Id., ibid., p. 79.
excessivas simplificaes a respeito dos mesmos. Criticando o fato da
marginalidade dos pobres e sua falta de participao e integrao nas
principais instituies da sociedade serem atribudas a seu baixo nvel de
organizao, Silberstein assinalou que o ltimo "uma adaptao
sofisticada por parte dos pobres, que lhes permite agir dentro dos estreitos
limites da pobreza e contornar a rigidez estrutural imposta pela sociedade
maior"26.
Um nvel mais profundo de anlise, entretanto, o que se centra no
questionamento da validade de seu modelo explicativo. Este, como pode se
perceber, de natureza psicos social e fortemente influenciado pela
perspectiva culturalista. Assim, pode-se questionar o conceito da cultura da
pobreza como uma entidade autoperpetuante numa espcie de crculo
vicioso. Subjacente a esta abordagem est a imputao aos prprios
membros das classes baixas da responsabilidade pela situao na qual se
encontram presos.
Neste sentido, Kowarick chamou a ateno para o enfoque
"essencialista" e o conceito formulado por Lewis. Ela apresentada como
uma entidade ontolgica, parte da sociedade e como tendo uma essncia
prpria sem que em nenhum momento se transcenda o universo restrito de
configuraes das caractersticas das populaes que vivem a situao de
marginalidade. A marginalidade, entretanto, no pode ser considerada auto-
explicvel, pois sua razo de ser se encontra em processos e estruturas que
no devem ser confundidos com as situaes nas quais ela se manifesta27.
[pg. 27]
26 Paul Silberstein. "Favela Living: Personal Solutions to Larger Problems", in Amrica Latina, ano 12, n. 3, 1969, p. 199. 27 Lcio Kowarick. Capitalismo e marginalidade urbana na Amrica Latina. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975, p. 36.
Por operarem com pressupostos tericos equivocados, as proposies
de autores que encaram a cidade como uma varivel independente e/ou que
tm uma viso culturalista dos processos que ocorrem no contexto urbano,
tm sido freqentemente refutadas por pesquisas que estudaram a realidade
da Amrica Latina, continente cuja urbanizao ocorreu de maneira diversa
do que nas sociedades centrais. Estas pesquisas sero analisadas a seguir.
[pg. 28]
IV ----------------
Pesquisas antropolgicas no contexto urbano
1. Migrao e trabalho
Ao se dar exemplos de estudos antropolgicos do meio urbano,
convm comear pelas pesquisas sobre a migrao campo-cidade,
justamente por ser ela um fenmeno intenso em pases como o Brasil e por
colocar populaes de origem rural em confronto com o mundo urbano.
Existe uma srie de autores que se preocupam justamente com a
questo da adaptao ou inadaptao de migrantes de origem rural ao
contexto urbano e as transformaes que o processo migratrio envolve.
Alguns estudiosos tendem a enfatizar que a migrao para a cidade
significa um profundo processo de ressocializao que requer a
aprendizagem de novos padres de comportamento e a aquisio de novos
estoques simblicos; outros autores tendem a argumentar que este processo
muito menos profundo que aparenta, j que os meios de comunicao e a
prpria escola rural tendem cada vez mais a criar orientaes e
comportamentos compatveis com a vida em cidades.
Um dos estudos pioneiros sobre o tema da migrao campo-cidade
a obra Os parceiros do Rio Bonito de Antnio Cndido que se constitui
num estudo sobre o caipira de uma rea do estado de So Paulo e as
transformaes de seus
[pg. 29]
meios de vida, em decorrncia de sua progressiva incorporao esfera da
economia capitalista.
Na concluso do livro, intitulada "O caipira em face da civilizao
urbana", o autor fornece uma rica anlise dos processos envolvidos na
desagregao do mundo do campons e sua conseqente migrao e
gradativa incorporao esfera da vida urbana:
Um grupo que se sentia equilibrado e provido do necessrio vida, quando se equiparava aos demais grupos de mesmo teor, sente-se bruscamente desajustado, mal aquinhoado, quando se equipara ao morador das cidades, cujos bens de consumo e equipamento material penetram hoje no recesso da sua vida, pela facilidade das comunicaes, a multiplicidade dos contatos, a penetrao dos novos estilos de viver. Em conseqncia muda, para o estudioso, o problema dos seus nveis de vida, que passam em nossos dias por uma crise aguda, j referida, em que a ampliao das necessidades no compensada pelo aumento do poder aquisitivo. Colocado em face desta situao, o caipira reage de duas maneiras principais: rejeita em bloco as suas condies de vida e emigra, proletarizando-se; ou procura permanecer na lavoura, ajustando-se como possvel. Vimos que tal ajuste mais satisfatrio no sitiante mdio, precrio no parceiro, mais ainda no colono e no camarada, podendo dar lugar decadncia e plena misria.
Em todos eles, porm, vimos que pode dar-se: 1) aceitao total, 2) rejeio total ou 3) aceitao parcial dos traos introduzidos pela nova situao -sendo a ltima hiptese mais comum e normal nos que permanecem no campo. Entre os que emigram, o ajustamento situao urbana, dadas certas con-
[pg. 30]
(lies econmicas mnimas, quase sempre mais fcil do que poderia parecer, e se deve ao fato de, mesmo atual de incorporao rpida, o afastamento cultural entre os agrupamentos rurais e os centros urbanos ser menos abrupto que supomos. Com efeito, h uma srie de gradaes que se interpem entre os respectivos tipos extremos, dando lugar a uma continuidade, ao longo da qual encontramos estdios progressivos de civilizao. Estes ligamentos sempre permitiram a incorporao lenta, mas perceptvel, de traos urbanos s culturas rsticas, que os vo progressivamente (ou regressivamente) redefinindo ao longo da gradao. Como assinalam os estudiosos para o caso da msica, da poesia e dos contos, muito do que reputamos especfico das culturas rsticas , na verdade, fruto duma lenta incorporao de padres eruditos. Processo que se poderia com justeza chamar de degradao cultural se fosse possvel dar expresso o sentido etimolgico, despindo-a de qualquer significado pejorativo.
Graas a tais conexes compreende-se que o caipira consiga freqentemente, no espao de alguns anos, se no assimilar-se, ao menos acomodar-se satisfatoriamente nos padres propostos pela civilizao urbana. E aqui podemos indicar que o processo de urbanizao - civilizador, se o encararmos do ponto de vista da cidade - se apresenta ao homem rstico propondo ou impondo certos traos de cultura material e no-material. Impe, por exemplo, novo ritmo de trabalho, novas relaes ecolgicas, certos bens manufaturados; prope a racionalizao do oramento, o abandono das crenas tradicionais, a individualizao do trabalho, a passagem vida urbana. Formulando novamente o que ficou dito, podemos verificar no caipira paulista trs reaes adap-
[pg. 31]
tativas em face de tal processo: 1) aceitao dos traos impostos e propostos; 2) aceitao apenas dos traos impostos; 3) rejeio de ambos. claro que a formulao supe trs tipos ideais de caipira, movendo-se num espao sociocultural homogneo e optando livre e conscientemente. A realidade diversa; e se podemos reter os trs tipos bsicos, foroso acentuar que a sua conduta no livre e depende duma srie de fatores. Assim, a proximidade dos centros urbanos, a sua penetrao nas zonas rurais, o tipo de atividade econmica, a qualidade da terra, o sistema de trabalho e de propriedade so alguns elementos que, combinados de modo diverso, condicionam a reao adaptativa28.
O que est sendo discutido no texto acima o ajustamento do
migrante de origem rural ao meio urbano. O autor chama a ateno para
dois aspectos fundamentais neste processo. O primeiro se refere tendncia
do meio rural incorporar cada vez mais padres culturais que se originam e
so difundidos a partir de cidades, fenmeno que refora o ponto de vista
de que no faz muito sentido postular a existncia de uma cultura rural (ou
folk) e uma cultura urbana como realidades estanques.
O segundo aspecto est relacionado com o fato de que, embora o
migrante j esteja munido de alguns padres culturais que o ajudaro na
adaptao ao meio urbano, este processo certamente no monoltico ou
homogneo, j que qualquer indivduo se depara constantemente com uma
variedade de situaes nas quais diferentes aspectos esto envolvidos, no
havendo por que esperar que seu comportamento seja igual em todas elas.
Neste sentido, impor-
[pg. 32]
28 Antonio Candido, op. cit., p. 217-218.
tante distinguir entre diferentes reas de envolvimento social, como por
exemplo trabalho, famlia, religio, lazer, etc.
Em verdade, h uma srie de variveis que precisam ser levadas em
considerao ao se analisar o ajustamento de migrantes vida urbana. Entre
estas variveis se encontram: a rea de origem, a motivao para migrar, as
expectativas em relao ao meio urbano, as oportunidades de trabalho
oferecidas pela cidade de destino, o tempo de exposio vida urbana, os
mecanismos e instituies que ajudam no processo de ajustamento, o
aspecto ou a rea de envolvimento social que est sendo aprofundado pelo
pesquisador, etc.
A motivao para migrar e as expectativas em relao cidade so
variveis que geralmente se apresentam associadas. Assim, num estudo
sobre vida rural e migrao para a cidade de So Paulo, Durham,
entrevistando migrantes, assinala que "quando se tenta precisar em que
consistem as 'dificuldades' da vida rural, aparecem trs tipos de respostas,
freqentemente conjugados: a misria e a falta de conforto; o trabalho
'duro'; a incerteza da produo; a impossibilidade de melhoria'. Por isto,
para o trabalhador rural, a migrao se apresenta como uma tentativa de "melhorar de vida", isto , de restabelecer, em nvel mais alto, o equilbrio entre as necessidades socialmente definidas e a remunerao do trabalho. Assim como a migrao motivada por insatisfaes que so sentidas sobretudo na esfera econmica, a possibilidade de vir a obter uma colocao satisfatria, isto , que preencha ou venha a preencher, pelo menos em parte, as aspiraes do migrante, que condiciona todo o processo de integrao na zona urbana, ou determina, ao contrrio, o retorno vida rural. Vencido o problema da localizao
[pg. 33]
e locomoo, o que feito com o auxlio de grupos de relaes primrias que ajudam o migrante a conseguir alojamento e aprender a locomover-se, apresenta-se a questo fundamental da colocao. A prpria possibilidade de permanncia na cidade, para os trabalhadores que migram com pouco ou nenhum recurso, est condicionada possibilidade de obter rapidamente um modo de ganhar a vida29.
A obteno de um emprego assalariado, simbolizado pela carteira
profissional assinada, significa a entrada no mercado formal de trabalho e
conseqentemente a obteno de vantagens como um salrio relativamente
constante, uma ocupao de tempo integral, cobertura da assistncia social
(isto , aceso a benefcios tais como atendimento mdico gratuito, frias
remuneradas, 13 salrio, direito aposentadoria, licena-sade, etc),
regulamentao legal do contrato de trabalho e a tranqilidade de no ser
detido sob a acusao de vadiagem.
A valorizao da participao no mercado formal de trabalho fica
clara num estudo sobre o botequim que revela, entre outras coisas, que as
"rodinhas" que nele se formam se constituem na base da percepo do
status do indivduo. A ocupao regular no setor formal de trabalho um
dos elementos de distino neste processo: "O smbolo de status mais
valorizado a carteira funcional ou profissional. Ela indica que o portador
tem uma certa estabilidade no emprego, realmente grande quando se trata
de funcionrios pblicos. A frase 'fulano funcionrio' tem uma conotao
ao mesmo tempo elogiosa e reconhecedora da posio de superioridade do
outro. Isto se explica no s por causa da
[pg. 34]
29 Eunice R. Durham. A caminho da cidade: a vida rural e a migrao para So Paulo. So Paulo, Perspectiva, 1973, p. 114 e 145-146.
maior facilidade em obter crdito dos proprietrios do botequim (...), como
tambm pela proteo que o documento representa frente polcia"30.
No surpreende, portanto, que muitas pesquisas mostrem que, apesar
da rigidez e monotonia do trabalho operrio e das dificuldades que os
migrantes tm de enfrentar no meio urbano, este geralmente encarado
positivamente, na medida em que simboliza o ideal de ascenso social e de
acesso a bens e servios.
Neste sentido, uma anlise da ideologia de um grupo de operrios
que migraram para Anpolis (cidade do estado de Gois) revela que os
aspectos valorizados de um modo positivo, so justamente a autonomia e a
independncia do operrio urbano (em contraposio aos laos de
solidariedade social vigentes no campo). Segundo a autora da pesquisa,
Cludia Menezes,
(...) os migrantes concebem o trabalho na fbrica melhor do que a atividade agrcola porque: a) no trabalham tanto quanto na lavra; b) no consideram o trabalho to pesado; c) no assumem responsabilidades quanto produo e, portanto, no precisam participar dos riscos empresariais; d) comparativamente obtm a mesma renda com menos esforo; e) podem morar na cidade, o que representa, tambm em relao condio anterior, mais conforto e prestgio, na medida em que se torna possvel assumir a identidade urbana; f) finalmente, atravs dele, obtm proteo legal e acesso educao formal para os filho31.
[pg. 35]
30 Luiz Antnio Machado da Silva. "'O significado do botequim", in Cidade: Usos ir Abusos. So Paulo, Brasiliense, 1978, p. 86-87. 31 Cludia Menezes. A mudana: Anlise da ideologia de um grupo de migrantes. Rio de Janeiro, Imago, 1976, p. 98.
Alm de refutar as teorias que encaram a cidade como um lugar de
desagregao social e cultural, em contraposio a um meio rural
supostamente harmnico, este tipo de resultado de pesquisa indica que,
apesar da rotina do trabalho fabril, a cidade encarada como um espao de
liberdade e possibilidades, na medida em que o emprego regular
visualizado como uma segurana e independncia, inexistentes no campo.
Dada, entretanto, a incapacidade da economia de pases como o
Brasil de oferecer empregos regulares a sua populao urbana em idade de
trabalhar, existe uma parte considervel da fora de trabalho que sobrevive
no chamado setor informal de trabalho, desempenhando uma srie de
atividades e biscates. Este setor tem todas as conhecidas desvantagens de
variao de rendimentos devido falta de trabalho regular, ausncia de
qualquer cobertura por parte da assistncia social, falta de amparo legal ou
regulamentao do trabalho, etc. Ele tem, entretanto, vantagens como no
exigir credenciais oficiais de educao, de ter horas de trabalho flexveis,
de permitir o trabalho "por conta prpria" e de no implicar em disciplina e
autoridade de trabalho, de servir a pessoas que s vezes teriam dificuldade
de obter empregos no setor formal de trabalho (mulheres, crianas, velhos,
deficientes fsicos, etc.) e de permitir ter vrias atividades simultaneamente
(inclusive a de trabalhar ao mesmo tempo no setor formal e no informal).
A obteno de empregos regulares no setor formal varia,
obviamente, em funo de fatores como a situao do mercado de trabalho,
as credenciais exigidas (como nvel de escolaridade, documentao), idade,
sexo, etc. Neste sentido, uma pesquisa que estudou famlias de origem rural
vivendo em favelas da cidade de So Paulo assinala que,
[pg. 36]
embora o grande atrativo da cidade seja o trabalho assalariado, ele tende a
s absorver os homens. Na medida em que as mulheres ficam restritas a
empregos domsticos elas no experimentam uma grande transformao
em suas atividades em decorrncia do processo de urbanizao. Por isto,
"apesar das diferenas que existem no modo de realizar as tarefas
domsticas na zona rural e nas grandes cidades, as mulheres mantm uma
condio semelhante que tinham antes da migrao. Quando se
transformam em empregadas domsticas tm que incorporar novos
padres, de modo especial quando trabalham para famlias de classe mdia
ou alta. Mas assim mesmo tm como base a experincia acumulada no
passado, que aprimorada, consertada e acertada em funo de certas
exigncias urbanas e de classe".
J no que diz respeito ao trabalho masculino, a situao bastante
diferente:
O conhecimento interiorizado nas prticas imperantes no campo e nas pequenas cidades pouca serventia apresenta para o trabalho fracionado da indstria. Precisa ser esmerilhado e polido em termos das exigncias do trabalho industrial.
Mesmo no caso da construo civil, seu estoque de conhecimentos anterior, quando existente, de pouco serve para a modalidade de trabalho que caracteriza as empresas do ramo. Depois de satisfazer determinados tipos de trabalho qualificado, que necessitam de aprendizagem prpria a uma produo de molde industrial, tal setor emprega abundantemente mo-de-obra braal que poucos conhecimentos necessita para cumprir as tarefas que lhe so impostas.
Se do ponto de vista do trabalho o adestramento do migrante tende a no ser parcializado, pelo menos na forma e no grau que exige a indstria, por outro
[pg. 37]
lado, seu "equipamento cultural" originrio precisa ser readaptado. E isso, mesmo para as atividades que no tm como base a fragmentao do trabalho, cujos exemplos tpicos so os servios autnomos ou assalariados antes referidos. Em outros termos, o migrante - em razo de sua eventual experincia anterior nas cidades - precisa "urbanizar" seus conhecimentos, interiorizando, entre outros, regras e valores de "distncia" e "proximidade" social, fruto do relacionamento das relaes interclasses imperantes na metrpole. Desta forma, analogicamente, precisa desenvolver sua "sagacidade" e "astcia" pessoal a fim de obter uma parcela do excedente das camadas mdias e altas que para muitos - vigias, faxineiros, carregadores, "tarefeiros" de ordem - podem ser essencial como fonte de renda32.
A obteno de empregos, assim como a satisfao de outras
necessidades (alimentao, abrigo, sade, posse de documentos, etc.)
naturalmente no se restringe aos migrantes, constituindo-se em problemas
prementes para toda a populao urbana de baixa renda. Assim, numa
pesquisa realizada por Berlinck e Hogan, "as entrevistas antropolgicas
revelam que a moradia, a legalizao, o emprego e a alimentao
constituem quatro necessidades consideradas urgentes pela populao que
compe as camadas de rendas mais baixas de So Paulo"33.
, pois, importante analisar como algumas destas necessidades so
resolvidas pela populao urbana. Por isso,
[pg. 38]
32 Lcio Kowarick. "Usos e abusos: Reflexes sobre as metamorfoses do trabalho", in Cidade: Usos - Abusos. So Paulo, Brasiliense, 1978, p. 15 e 24-25. 33 Manoel Tosta Berlinck e Daniel J. Hogan. "Adaptao da populao e 'cultura da pobreza', na cidade de So Paulo: Marginalidade Social ou Relaes de Classes?", in Cidade: Usos ir Abusos. So Paulo, Brasiliense, 1978, p. 124.
quando se discutem questes como o ajustamento de migrantes cidade, a
obteno de empregos e o trabalho no setor formal e informal, importante
analisar a instituio do mutiro e suas possibilidades de continuao no
contexto urbano. Esta prtica, freqente no meio rural, se refere a um
processo de trabalho baseado na cooperao e ajuda mtua, que est
calcado na troca de favores, em compromissos familiares e obrigaes
recprocas, ao contrrio do processo capitalista de compra e venda da fora
de trabalho.
Consiste essencialmente na reunio de vizinhos, convocados por um deles, a fim de ajud-lo a efetuar determinado trabalho: derrubada, roada, plantio, limpa, colheita, malhao, construo de casa, fiao, etc. Geralmente os vizinhos so convocados e o beneficirio lhes oferece alimento e uma festa, que encerra o trabalho. Mas no h remunerao direta de espcie alguma, a no ser a obrigao moral em que fica o beneficirio de corresponder aos chamados eventuais dos que o auxiliaram. Este chamado no falta, porque praticamente impossvel a um lavrador, que s dispe de mo-de-obra domstica, dar conta do ano agrcola sem cooperao vicinal34.
Alm do aspecto econmico, o mutiro ocupa todo um aspecto
ldico que se evidencia na festa que oferecida pelo beneficirio por
ocasio do final do processo de trabalho. Examinando relatos de migrantes
de origem rural sobre a importncia do mutiro no campo, Menezes
assinala que
o que fica evidenciado por estas descries a importncia que tem para os migrantes a dimenso ldica apresentada por essas formas de trabalho coletivo. O mutiro e suas variantes preenchem no s
[pg. 39]
34 Antonio Candido, op. cit, p. 68.
uma funo econmica, mas desempenham um papel importante na definio de laos de sociabilidade entre participantes. Alm de solucionar o problema da mo-de-obra, superando as limitaes da atividade individual ou da unidade familiar (na medida em que a necessidade de ajuda originada pela prpria tcnica agrcola), leva tambm criao de uma rede de prestaes e contraprestaes de servio, pois, embora no haja remunerao direta (monetria), existe a obrigao moral de retribuio da ajuda.
A reciprocidade , portanto, o elemento dinamiza-dor que possibilita a reproduo contnua desse sistema de cooperao35.
Mas, como argumentam vrios autores, bastante discutvel o grau
de cooperao envolvida no mutiro j que ocorre mais uma justaposio
de atividades equivalentes e independentes que uma diviso e
interdependncia de tarefas, havendo mais um trabalho "associado" que um
trabalho "dividido"36.
Se no meio rural o mutiro est comeando a diminuir devido
crescente penetrao de relaes capitalistas de produo no campo, nos
grandes centros urbanos ele est ganhando cada vez mais importncia na
construo das casas das classes trabalhadoras. Estas habitaes,
geralmente localizadas em loteamentos de periferia, so construdas com
grande sacrifcio em fins de semana e dias de folga por seus prprios
moradores, contando com a ajuda de parentes e/ou amigos.
[pg. 40]
35 Cludia Menezes, op. cit, p. 79. 36 Ver Antnio Cndido, op. cit., p. 70 e Eunice R. Durham, op. cit., p. 77.
Embora freqentemente se procure apresentar a prtica da
autoconstruo como sendo o "mutiro urbano", na verdade ela se
caracteriza fundamentalmente por ser uma forma de trabalho no-pago,
contribuindo para rebaixar o custo da reproduo da fora de trabalho, do
qual a habitao o segundo item mais importante, vindo depois da
alimentao, e para deprimir os salrios. "Assim, uma operao que , na
aparncia, uma sobrevivncia de prticas de 'economia natural' dentro das
cidades, casa-se admiravelmente bem com um processo de expanso
capitalista, que tem uma de suas bases e seu dinamismo na intensa
explorao da fora de trabalho"37.
Alm de analisar que a autoconstruo se constitui numa forma de
explorao da fora de trabalho, c importante ressaltar que o exame de
casos concretos de autoconstruo revelam que aquilo que muitas vezes
apresentado como sendo o "mutiro urbano" na verdade um processo
bastante diferente do que ocorre no meio rural. Analisando a prtica da
autoconstruo com a ajuda de parentes e amigos na periferia do Rio de
Janeiro, Maria Helena Beozzo de Lima assinala que
Para construir a casa prpria utilizando trabalho obtido dessa maneira, preciso que o autoconstrutor recorra a pessoas a quem j ajudou ou se dispe a ajudar um dia. Entretanto, essa forma de cooperao pouco ou nada tem a ver com o "mutiro'' tal como tem sido, algumas vezes, equivocadamente definido.
[pg. 41]
37 Francisco Oliveira. "A Economia Brasileira: Crtica Razo Dualista", in Estudos CEBRAP, n. 2, 1972, p. 31. Sobre autoconstruo ver, entre outros. Lcio Kowarick, "Autoconstruo de moradias e espoliao urbana", in A espoliao urbana. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980; Erminia Maricato. "Autoconstruo, a Arquitetura Possvel", in A produo capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial. So Paulo, Alfa-mega, 1979.
Existe uma certa idealizao do mutiro que tem levado a atitudes ingnuas diante dessas "redes de solidariedade" que em certa medida viabilizam a autoconstruo. O resultado que tais redes, que na realidade constituem um sistema bem articulado de troca de trabalho, acabam por ser interpretadas como uma ajuda desinteressada entre pares e conseqentemente como manifestaes de uma forte solidariedade de classe. A observao, no entanto, demonstra o contrrio; a partir dela fica bastante claro que, independentemente de ser prestada por parentes, por amigos ou por colegas de trabalho, o sentido da ajuda no se remete a uma fraternidade incondicional, e que o seu significado se cristaliza de fato na expectativa de ser tambm auxiliado no momento em que se precisar.
Uma caracterstica dessas redes de troca de trabalho que no so acionadas continuamente durante o processo de autoconstruo, cobrindo todas as suas fases. No geral, os trabalhadores as acionam em certos momentos e para tarefas especficas. bastante raro para um trabalhador contar com o trabalho de um parente ou amigo sistematicamente. Para isso necessrio que exista uma relao de amizade muito forte, e h regras especiais que extrapolam o cdigo que orienta as redes de troca de trabalho de uma maneira geral, e que vo regular um verdadeiro "pacto de ajuda mtua contnua".
No caberia aqui uma anlise detalhada dos princpios e das normas que regem as redes de troca de trabalho na autoconstruo; importante, todavia, fazer referncia a duas regras que definem as obrigaes principais de quem recebe ajuda. A primeira delas a que se refere ao oferecimento da alimentao e da bebida aos que esto trabalhando como sen-
[pg. 42]
do uma obrigao do dono da casa. A importncia atribuda a esse aspecto tal que aqueles que no possuem recursos para arcar com as despesas que o cumprimento dessa regra acarreta nem sequer solicitam ajuda, "escolhem" de antemo tocarem sua obra sozinhos. A segunda est relacionada com o compromisso - "sagrado" como dizem alguns moradores - de atender pelo menos na mesma medida as solicitaes de trabalho daqueles que trabalharam em sua casa.
Assim, ingressar numa rede de trabalho exige, por um lado, alguma reserva monetria para cobrir gastos prescritos e, por outro, uma disposio forte para retribuir, dando ao outro o mesmo tempo de trabalho recebido38.
2. Formas de sociabilidade no contexto urbano
Vimos, anteriormente, que boa parte da literatura sobre urbanizao
aponta como conseqncia da vida em cidades a criao de uma cultura
urbana caracterizada pela desorganizao social e cultural e responsvel
pelo surgimento de atitudes individualistas e competitivas, afrouxamento
dos laos familiares, secularizao, etc. De modo semelhante, a teoria da
modernizao prev o surgimento de novos comportamentos e orientaes
culturais nas elites e nas massas como precondio e como decorrncia do
desenvolvimento econmico, encarando este processo como ocorrendo de
um modo relativamente linear no continuum tradicional-moderno.
[pg. 43]
38 Maria Helena Beozzo de Lima. "Em busca da casa prpria: Autoconstruo na periferia do Rio de Janeiro", in Licia do Prado Valladares (org.). Habitao em questo. Rio de Janeiro, Zahar, 1980, p. 87-88
De acordo com esta teoria, fenmenos como o paternalismo e o
clientelismo, que so geralmente vistos como tipicamente rurais ou
tradicionais, deveriam gradativamente desaparecer num contexto moderno
como as cidades, sendo substitudos por relaes mais impessoais.
Entretanto, pases como o Brasil se constituem em exemplos esclarecedores
de como o paternalismo e o clientelismo podem adaptar-se dinmica da
sociedade urbano-industrial, vivendo lado a lado com relaes mais
impessoais.
Embora tambm existam em sociedades altamente avanadas39, o
paternalismo e o clientelismo so especialmente fortes em situaes em que
os marcos de referncia formais no fornecem uma efetiva regulao das
relaes pessoais, sendo mais perceptveis em sociedades "caracterizadas
pela existncia de estratos hierarquizados numa gradao de poder
econmico e poltico. Os laos entre patro e cliente proporcionam assim
um canal atravs do qual indivduos de estratos baixos obtm bens
valorizados e proteo poltica, os patres trocando estes pelo apoio
poltico de seus inferiores com o qual eles podem aumentar sua prpria
base"40.
Poder-se-ia sugerir que uma das situaes em que o paternalismo e o
clientelismo provavelmente sero fortes a experimentada por sociedades
que esto se urbanizando rapidamente e nas quais somente parte da
populao urbana absorvida por relaes capitalistas de produo, o
restante tendo que sobreviver no mercado informal de trabalho. Em ambos
os casos, a situao com a qual os membros
[pg. 44]
39 Ver Nicholas Abercrombie e Stephen Hill. "Paternalism and Patronage", in British Journal of Sociology, vol. 27, n. 4, 1976, p. 416. 40 J.S. La Fontaine. "Unstructered Social Relations: Patrons and Friends in Three African Societies", in West African Journal of Sociology and Political Science, vol. 1, n. 1, 1975, p. 67.
das classes subalternas das grandes cidades se defrontam e que tm que
enfrentar a de sobreviver e entender as regras de um contexto em que os
recursos so bastante escassos e a competio acentuada.
A lgica da continuidade do clientelismo nas partes mais complexas
de sociedades como a brasileira reside no fato de que neste tipo de pas
existe um capitalismo tardio e dependente, onde o "tradicional" se articula
com o "moderno" e nos quais o desenvolvimento se d sob forma desigual
e combinada. Neste tipo de sociedade se verifica um capitalismo que no
produziu uma separao radical entre interesses agrrios e industriais e que
tambm, apesar de seu freqente dinamismo, no capaz de incorporar ao
sistema produtivo toda populao em idade de trabalho. Esta massa de
desempregados e subempregados vem formar a maior parte do setor
informal da economia urbana e existem evidncias sugerindo que ele no
composto somente por recm-chegados cidade41.
Analisando os mecanismos institucionalizados sui generis que
permitem a adaptao de setores marginais urbanos numa estrutura social
deste tipo, Berlinck e Hogan argumentam que "o problema da adaptao se
refere, em ltima anlise, ao desenvolvimento de uma rede de interao
relativamente repetitiva e padronizada que permita populao obter do
meio em que vive os recursos necessrios satisfao de suas necessidades
e seus desejos"42. Por isto, a noo
[pg. 45]
41 Ver Lorene Yap. Internai Migration and Economic Development in Brazil. Tese de doutorado. Harvard University, 1972; Manuel Augusto Costa. Urbanizao e migrao urbana no Brasil. Rio de Janeiro, IPEA/INPES, 1975; Celsius Lodder. Distribuio de renda nas reas metropolitanas. Rio de Janeiro, IPEA/ INPES, 1976. 42 Berlinck e Hogan, op. cit, p. 118.
de rede de relaes sociais, utilizada por antroplogos em outros contexto43,
adquire uma importncia fundamental para analisar o dia-a-dia das
populaes urbanas marginais ou de baixa renda, bem como de outros
setores sociais44.
Examinando a questo da sobrevivncia de setores marginais da
populao urbana da Amrica Latina, Lornnitz assinala que "um estrato
importante da sociedade urbana latino-americana, o marginal, assegura sua
sobrevivncia mediante o uso da reciprocidade. Ao compartir seus
recursos, escassos e intermitentes, com os de outros em idntica situao, o
povoador das 'barriadas' logra impor-se em grupo a circunstncias que
seguramente o fariam sucumbir como indivduo isolado"45.
Baseado em suas pesquisas no Mxico, esta autora identifica dois
tipos de relaes na organizao social do setor informal: a) o intercmbio
entre iguais presente nas relaes de troca recproca de bens e servios; b)
as relaes patro/ cliente que ocorrem, por exemplo, quando pequenos
empresrios utilizam seus parentes e conhecidos para criar uma unidade de
produo. Este tipo de relaes assimtricas significa freqentemente a
presena de um intermedirio, j que o patro funciona ao mesmo tempo
como intermedirio
[pg. 46]
43 Ver, por exemplo, A.R. Radcliffe-Brown. Estrutura e funo na sociedade primitiva. Petrpolis, Vozes, 1973. 44 Existem vrias definies de redes de relaes sociais. Epstein, por exemplo, considera que "uma rede de relaes constituda por pessoas que interagem entre si em termos de categorias sociais, e que se consideram como aproximadamente iguais em termos sociais, ignorando neste contexto as pequenas diferenas de stattis sociais que possam existir entre elas" (A.L. Epstein, "The Network and Urban Social Organization", in J. Clyde Mitchell (ed.). Social Networks in Urban Situations. Manchester, Manchester University Press, 1975, p. 110). 45 Larissa Lornnitz. Corno sobreviveu los inarginados. Mxico, Siglo Veintiu-no, 1975, p. 25-26.
entre seus clientes, que fazem parte do setor informal da economia, e as
instituies formais da sociedade46.
No que diz respeito ao intercmbio entre iguais, Lomnitz resumiu
seus principais resultados de pesquisa em favelas mexicanas do seguinte
modo:
1. Redes de reciprocidade so grupos de vizinhos que cooperam na
tarefa diria de sobrevivncia econmica mtua.
2. A afiliao em redes baseada em unidades familiares, no em
indivduos.
3. As redes so constitudas e dispersadas de acordo com um
processo dinmico governado por fatores econmicos e sociais, tais como a
evoluo histrica e a estrutura de propriedade na favela, as origens
geogrficas e a estrutura familiar de seus membros, os principais incidentes
no ciclo de vida, e os vaivns dirios da vida em favela.
4. O tamanho, estabilidade e intensidade da troca numa rede de
reciprocidade dependem da proximidade social entre as famlias-membros.
Todas as redes de parentesco tendem a ser mais estveis, mais auto-
suficientes, e maiores em tamanho que redes de vizinhos que no so
parentes.
5. A filiao a redes baseada numa igualdade fundamental de
necessidades entre seus membros47.
[pg. 47]
46 Id. "Mecanismos de artieulacin entre el seetor informal y el sector formal urbano", in Revista Mexicana de Sociologia, vol. 40, n. 1, 1978, p. 133. 47 Id. Networks and Marginality: Life in a Mexican Shantytow. Nova Iorque, Academic Press, 1977, p. 209.
A autora faz a seguinte relao de bens e servios que so objeto de
intercmbio recproco:
a) Informao. Instrues para migrar, ajuda para encontrar trabalho e alojamento, orientao geral para a vida urbana, e informao interpessoal (mexericos).
b) Ajuda trabalhista. Ao incorporar-se rede, o migrante masculino recebe ajuda para aprender um ofcio atravs dos contatos com a rede. Muitas redes se caracterizam por um ofcio prprio. Os recm-chegados se incorporam ao ofcio como aprendizes, e compartem os salrios de seus anfitries at o momento em que conseguem ganhar o suficiente para se manterem.
c) Emprstimos. H emprstimos dirios ou quase dirios de comida, dinheiro, roupa, ferramentas e uma ampla variedade de artigos domsticos e de uso geral.
d) Servios. Estes favores incluem o alojamento e a alimentao dos novos migrantes por perodos indeterminados: todas suas necessidades esto previstas durante o perodo inicial de sua residncia na cidade. Um tratamento similar se outorga s visitas do campo, que eventualmente poderiam integrar-se permanentemente rede. Ademais, a ajuda se estende a certos parentes necessitados tais como vivas, rfos, velhos e doentes. Os membros da rede cuidam das crianas quando a me est incapacitada por doena ou por necessidades de trabalho. A ajuda mtua inclui uma ampla gama de servios: construo e manuteno de habitaes, transporte dirio de gua potvel, diversos recados, ou o cuidado de crianas alheias quando a me se encontra ocupada.
e) Apoio moral. As redes so mecanismos que geram solidariedade e que abarcam todos os incidentes do ciclo
[pg. 48]
vital. Mais de 60% das relaes de compadrio no estudo realizado se deram
entre parentes e amigos da famlia48.
J no que diz respeito s relaes assimtricas do tipo patro/cliente,
a rede funciona como um mecanismo que poderia ser utilizado por
qualquer membro empreendedor para atender seus fins pessoais ou at para
o progresso coletivo do grupo social. As relaes assimtricas so geradas
dentro de um "grupo de ao" que, a partir de certa estabilidade e
especializao, se transforma em "quase-grupo". Entretanto, "a estrutura
interna de um 'quase-grupo' difere da de uma rede de reciprocidade, devido
existncia de um chefe. Este chefe se converte no patro ao controlar
recursos dos quais carecem seus clientes, tais como capital, emprego ou
influncia poltica fora da favela. Devido desigualdade na relao de
intercmbio no quase-grupo, a estrutura tornou-se assimtrica"49.
Por sua vez, existem trs tipos de intermedirios no Mxico:
a) recrutadores de trabalho; b) caciques polticos- c) intermedirios de produo e comercializao. As carreiras de todos estes intermedirios comea nas suas redes de intercmbio recproco. Inicialmente o intermedirio se diferencia dos demais membros de sua rede nos seguintes pontos: 1) o intermedirio possui alguma habilidade de valor econmico real ou potencial; 2) est em situao de recrutar aos membros de sua rede; 3) possui alguma relao com algum patro fora da favela. No caso de cumprirem-se estas condies a estrutura de ajuda mtua for-
[pg. 49]
48 Id. "Mecanismos de articulacin entre el sector informal y el sector formal urbano", op. cit, p. 135-136. 49 Id., ibid., p. 137.
mada no interior da rede pode transformar-se num recurso econmico que
haver de beneficiar materialmente ao intermedirio50.
No se deve, entretanto, pensar que o fenmeno da reciprocidade
seja restrito s classes baixas. Neste sentido, Berlinck e Hogan assinalam
que "ainda que as classes mais altas se utilizem de um nmero maior de
mecanismos diferentes para a satisfao de suas necessidades e desejos,
tanto elas como as classes mais baixas se utilizam predominantemente de
relaes de parentesco, de amizade e de 'conterraneidade' para resolverem
seus problemas e dedicam grande parte de seu tempo 'livre' cultivando
relaes informais"51.
Examinando a classe mdia urbana chilena, Lomnitz aponta como
um de seus principais atributos o uso do compadrio, enquanto sistema de
reciprocidade de favores. Analisando as regras desta forma de
reciprocidade, ela assinala que "as sanes sociais que fazem cumprir a
reciprocidade no compadrio so freqentemente mais fortes que os
contratos escritos ou obrigaes legais. Como colocado por um dos
informantes, 'a no reciprocao to desonrosa como o no pagamento de
algo; a gente nunca perdoa algum que aceitou um favor importante e
depois esquece. Isto, entretanto, raramente acontece'. Um princpio no
escrito do compadrio est contido no ditado espanhol: Hoje por ti, amanh
por mim'"52.
De modo semelhante, Leeds mostrou a importncia que mtodos
como a "panelinha" e o "cabide" tm no Brasil
[pg. 50]
50 Id., ibid., p. 140. 51 Berlinck e Hogan, op. cit, p. 151. 52 Larissa Lomnitz. "Reciprocity of Favors in the Urban Middle Class of Chile", in George Dalton. Studies in Econornic Anthropology. Anthropological Studies, n. 7,1971, p. 96.
para as classes mdias e superiores na obteno de empregos em
instituies pblicas e privadas, bem como na resoluo de outros tipos de
problemas53.
A importncia para a classe mdia dos relacionamentos informais em
nvel de parentes e amigos fica clara numa pesquisa realizada por Velho
com um extrato social composto de "white collars" em Copacabana, na
qual
verificou-se a importncia crucial dos parentes na vida das pessoas investigadas. Mesmo em apartamentos conjugados foram encontradas vrias situaes em que viviam sob o mesmo teto no s pais e filhos, mas avs, sobrinhos, tios, primos, etc. Embora esta no fosse a regra no prdio estudado, no chegava a ser uma exceo. Constituam minoria, mas minoria significativa. Por outro lado, registravam-se situaes em que estes grupos domsticos poderiam at apresentar-se como unidades de produo. Uma das famlias estudadas tinha como uma de suas fontes de renda bsica a venda de doces. Embora a me fosse a responsvel e o pai tivesse um emprego regular, sempre que havia maior demanda da clientela, toda a famlia trabalhava na confeco de doces, inclusive o pai. Isto poderia ser feito num clima de brincadeira, mas era uma atividade familiar regular. Situaes semelhantes foram encontradas em apartamentos onde filhos e filhas ajudavam a me costureira ou que fazia flores artificiais, fornecia refeies, etc. Em outros nveis a estratgia de vida das pessoas dependia do apoio dos parentes. Auxlio para tomar conta dos filhos, chamar para fa-
[pg. 51]
53 Anthony Leeds. "Carreiras Brasileiras e Estrutura Social: Uma Histria de Caso e um Modelo", in Anthony Leeds e Elisabeth Leeds. A sociologia do Brasil urbano. Rio de Janeiro, Zahar, 1978.
zer refeies regularmente em pocas de maiores dificuldades, apoio para obteno de empregos, etc, apresentavam-se como atividades em que diversos tipos de parentes intervinham. Embora estivessem mais vinculados aos pais e irmos, avs, tios, primos e cunhados tambm apareciam com constncia nesta rede de auxlio mtuo. No item vesturio verificou-se ser hbito institudo a circulao de roupas entre parentes, tanto em termos de emprstimo, como em termos de doao, especialmente no tocante s roupas dos filhos. Assim que um vestido, uma cala, uma blusa de criana poderiam vir a ser usados por trs, quatro ou mais pessoas, passando, por exemplo, dos primos mais velhos para os mais novos. A participao intensa e regular em rituais como aniversrios, casamentos, enterros, etc, servia tambm para enfatizar os laos entre parentes. A importncia destes fica clara tanto em momentos de crise, como no cotidiano. No caso citado existe fragilidade nos laos de vizinhana, mas, talvez por isso mesmo, os parentes podem ser mais essenciais do que em situaes "tradicionais" onde os vizinhos desempenhariam papel mais importante54.
Estes resultados de pesquisa indicam que, ao contrrio da previso de
que a urbanizao implicaria no "enfraquecimento dos laos de parentesco
e no declnio do significado social da famlia"55, ela uma instituio de
grande relevncia no meio urbano da Amrica Latina. Desde que as
pesquisas de Lewis no Mxico sugeriram que a urbanizao no fazia
diminuir, mas, ao contrrio, aumentar os laos
[pg. 52]
54 Velho e Machado, op. cit, p. 72-73. Ver tambm Gilberto Velho. A utopia urbana, Rio de Janeiro, Zahar, 1973. 55 Louis Wirth, op. cit, p. 118.
extensos de famlia, existe ampla evidncia mostrando que em cidades
latino-americanas a rede familiar continua desempenhando importantes
funes tanto para migrantes como para no-migrantes, embora poucos
dados sejam disponveis sobre mudanas nos papis dos membros de
famlias de diferentes classes sociais contemporneas. Carlos e Sellers, por
exemplo, argumentam que "os laos familiares e a instituio do compadrio
fictcio no esto sucumbindo sob o impacto da modernizao, apesar das
teorias e interpretaes sobre a urbanizao que mantm que o contrrio
verdadeiro"56.
Especificamente no que diz respeito ao Brasil, as relaes informais
que ocorrem ao nvel de parentes e amigos se constituem num mecanismo
adaptativo considerado de grande importncia. Um estudo realizado por
Rosen e Berlinck na regio do estado de So Paulo revelou que "os
processos de urbanizao e industrializao no destruram a estrutura
extensa de parentesco e que a populao da cidade de So Paulo
apresentava uma estrutura to ou mais extensa de parentesco que a
encontrada em comunidades rurais da mesma regio. Em estudo posterior,
realizado entre famlias brasileiras da cidade de So Paulo, observou-se que
um dos possveis motivos para que a unidade de parentesco continuasse
extensa nesse meio urbano seria o da troca de informaes que tais grupos
proporcionam aos seus membros em um meio onde 'o segredo a alma do
negcio' e onde no existem outros meios 'eficientes' de informao"57.
[pg. 53]
56 Manuel L. Carlos e Lois Sellers. "Family, Kinship Strueture, and Modernization in Latin America", in Latin American Research Review, vol. 7, n. 2,1972, p. 95 e 98. 57 Berlinck e Hogan, op. cit, p. 139 e 141.
Uma situao na qual tambm se manifesta claramente a importncia
das redes de relaes sociais para ponderveis setores das classes
subalternas no contexto urbano brasileiro a representada pelo botequim.
Alm de servir para a obteno de dinheiro emprestado para enfrentar
momentos de crise e de funcionar como "ponto" para a obteno de
biscates, o botequim tambm desempenha outros papis de grande
relevncia.
Assinalando as modificaes que a famlia e a comunidade, enquanto
organizaes de sustentao do indivduo, experimentam na sociedade
urbano-industrial e a dificuldade dos setores marginais se integrarem em
novas organizaes de sustentao do indivduo, como os sindicatos, a
"poltica", o "consumo", Machado da Silva argumenta que "o botequim
uma das formas de preencher esta lacuna"58.
Entre as razes de o botequim ser um mecanismo de sustentao no
contexto urbano, o autor aponta as seguintes:
Em primeiro lugar, o botequim pode ser um mecanismo de sustentao, porque tem condies de conceder o sentimento perdido de comunidade. Ele cria profundos laos comuns entre uma minoria: os componentes dos estratos inferiores que so "adeptos do lcool". Necessidades de natureza econmica tornam-no muito importante, alm de provocarem estreitas relaes de cooperao. Os conflitos so controlados sem necessidade de frmulas impessoais e de modo quase sempre "ameno". A competio se mantm em nvel pouco explicitado e aceitvel. E, finalmente, o lcool atua como fator de liberao da conscincia de inferioridade, isto , da situao de classe.
[pg. 58]
58 Luiz Antnio Machado da Silva, op. cit., p. 111.
Mas, em segundo lugar, claro que as caractersticas "comunitrias" do botequim so redefinidas, pois inserem-se num contexto novo. Pelo menos em termos "ideais", a comunidade tradicional basta-se a si mesma, um sistema fechado. Nesse sentido, ela se auto-justifica: ela o mundo. O botequim, pelo contrrio, est inserido no meio urbano, faz parte integrante do sistema de mercado, relacionado sociedade de consumo. Apesar disso, o tipo de relaes sociais que se desenvolvem no botequim permite que surja um "sentimento de comunidade" entre os fregueses. Entretanto, uma comunidade com roupagem nova: o "mundo" a cidade, o sistema urbano-industrial - muitssimo mais amplo que ela. Assim, o botequim como "comunidade" transforma-se numa "tica" que contribui para dar sentido quele mundo, interpretando-o. Alm disso, freqentar o botequim na medida em que ele parte do "novo mundo", "conquistar" o sistema urbano-industrial. O fregus sente-se integrado e participante de um todo mais amplo, enquanto parte de um microcosmo que , ao mesmo tempo, uma defesa contra o macrocosmo "desconhecido" e "incompreensvel".
Em resumo, o botequim o smbolo de um esforo no sentido de participar de um universo novo (e uma "ponte" para isso) por parte de certos grupos desamparados pela ruptura dos esquemas referenciais da "sociedade tradicional"59.
Durham sintetiza bem o significado da reciprocidade e outras formas
de sociabilidade no contexto urbano quando afirma que
[pg. 55]
59 Id.,ibid.,p. 111-113.
a incorporao na vida urbana, em oposio vida rural, no se caracteriza, como parece pensar Wirth, pelo desaparecimento da famlia e do parentesco que so substitudos por instituies especializadas, educacionais, sanitrias, recreativas, etc. Em primeiro lugar, porque o homem rural no est necessariamente fora do alcance dessas instituies. E, em segundo lugar, porque na cidade no necessariamente o indivduo, mas freqentemente a famlia que delas usufrui. O que ope o modo de vida rural ao urbano , antes, a importncia relativa e o modo de participao nessas instituies. O homem do campo freqentemente recorre a instituies assistenciais urbanas (especialmente mdico-sanitrias) e mantm relaes com complexos mecanismos polticos e financeiros. Mas o seu contato com essas instituies prprias da sociedade diferenciada realizado, em geral, atravs de um intermedirio, "o patro". A existncia desse intermedirio que caracteriza a dependncia do homem rural. Na cidade, o intermedirio tende a desaparecer. Nem por isso o homem do campo se torna "livre"; torna-se antes desamparado. a famlia que se v forada a assumir a funo de intermediria entre o indivduo e a sociedade mais ampla, recolhendo os fragmentos da experincia individual e tentando transform-los numa interpretao coerente do universo social. Desaparece a comunidade, tal como existia na vida rural, e tendem a se contrapor, com modos diferentes de participao social, a famlia e o grupo de parentes, de um lado, e a sociedade complexa e diferenciada de outro60.
[pg. 56]
60 Durham, op. cit., p. 215.
3. Religio
Autores com posies tericas muito diferentes enfatizaram o
processo de secularizao e racionalizao que estaria ocorrendo ou viria a
ocorrer em sociedades complexas. Assim, Durkheim achava que os
vnculos integrativos da religio estariam sendo ameaados pela diviso
social do trabalho e a cincia estaria tomando seu lugar e Weber assinalou
o processo de racionalizao secular que ele chamou de "o
desencantamento do mundo". Freud, por sua vez, considerava a religio "a
neurose obsessiva universal da humanidade" e, para Marx, o socialismo
eliminaria a necessidade do que ele considerava "o pio do povo".
No que diz respeito vida em cidades, vrios autores apontaram a
secularizao como sendo a conseqncia inevitvel da urbanizao. Sem
negar que a secularizao seja uma das tendncias importantes de
sociedades urbano-industriais, ela na verdade um processo muito mais
complexo do que parece primeira vista. A insero de populaes rurais
no meio urbano provavelmente tender a causar mudanas religiosas, mas
estas transformaes no necessariamente significam secularizao, nem
existe uma relao linear entre este processo e urbanizao.
Em relao ao Brasil, diversos autores sugeriram que a recente
intensificao do seu capitalismo estaria causando um declnio gradual do
catolicismo de folk entre sua populao urbana. Mas, se por um lado a
adeso e freqncia ao catolicismo pode estar diminuindo nas grandes
cidades brasileiras, por outro est havendo um crescimento impressionante
da Umbanda e do Pentecostalismo.
A adeso das massas urbanas Umbanda e ao Pentecostalismo
freqentemente explicada em termos de exposi-
[pg. 57]
o s relaes de produo vigentes nas cidades. Assim, pessoas que no
podem recorrer aos relacionamentos familiares existentes no campo entre
campons ou trabalhador rural e seu patro (as quais embora extremamente
exploradoras pelo menos propiciariam um tipo mais pessoal de contato e
algum tipo de "proteo") buscariam substitutos em cidades onde as
relaes capitalistas de trabalho deixam menos margem para contatos
pessoais e nas quais os empregadores no tm obrigaes morais em
relao a seus empregados.
Segundo Camargo, por isso que estas religies populares tm
coisas significativas para oferecer a seus adeptos: "Pentecostalismo e
Umbanda so religies de massa importantes no Brasil. Para certos setores
da populao elas tm funes sociais e psicolgicas significantes. Por
exemplo, elas no s satisfazem aspiraes em relao a uma viso
espiritual e mgica do mundo mas tambm fornecem ao crente uma
orientao definitiva em relao a sua conduta, assim proporcionando apoio
emocional. (...) eles so vtimas sujeitas a um sistema econmico e social
que os oprime e que no compreendido por aqueles que o operam (...)"61.
De modo semelhante, analisando a forma e o contedo das
ideologias operadas pela Umbanda e pelo Pentecostalismo, Fry e How62
sugeriram que ambas constituem respostas aflio decorrente das
situaes com que as classes baixas urbanas tm que lidar. Estas religies
so interpretadas por estes autores como estratgias sociais utilizadas a fim
de lidar com as transformaes que a populao urbana
[pg. 58]
61 Cndido Procpio F. de Camargo. "Religious Despair Gives Way to Hope", in The Times, Suplemento especial sobre o Brasi