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OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol.
OLHARES PLURAIS - Artigos
Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir
OS CORPOS DE FOUCAULT:
RESUMO Este artigo apresenta parte danão se trata de apresentar um resumo da mesma, masextrema importância ao pensamento foucaultiano:dúvida: sabe-se que durante a década ao poder, mas antes, ele já havia pensado tal tema? A partir daí nos reportamos as obras da década de 1960, e entre os textos estudados um nos chamou atenção, a conferência de 1966: “O corpo utópico”. Trata-se, assim, sob a ótica foucaultiana, de pensarcorpo disciplinado. E com ambos e para além de ambos um isto é, contradisciplinar, mas autodisciplinado. PALAVRAS -CHAVE : Foucault; co
THE FOUCAULT'S BODUES: ABSTRACT This article presents part of our dissertation in Philosophy. It is a part because it is a cutout, since we do not intend to present a summary of the dissertation, but from it, expose a theme of extreme importance to Foucault's thought: the body. The disseit is known that during the 1970s Foucault explored the subject of the body hitched to power, but would he have thought this issue before? From this, we resorted to the works of the 1960s, and among the texts studied one caubody". Thus, the aim of this work is, in Foucault's view, to think the utopian body and the disciplined body. And with both, and besides both, a possible useless and indocile body, that is, against disciplinary, but self KEYWORDS : Foucault; utopian body; disciplined body INTRODUÇÃO
O filósofo Nietzsche, no século XIX, em um aforismo disse:
[...]. Até o momento, nada daquilo que deu colorido à existência teve história: se não, onde está uma história do amor, da cupidez, da inveja, da consciência, da piedade, da crueldade? [...]. Já se tomou por objeto de pesquisa as diferentes divisões do direpouso?
1 Doutorando no Programa de Pós(UNIOESTE/Toledo). fabiobatista1985@bol.com.br
Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016
Artigos
Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir
OS CORPOS DE FOUCAULT: UTÓPICO, DISCIPLINADO E PARA ALÉM
Artigo submetido em: out./2015
apresenta parte da nossa dissertação em Filosofia. Parte porque é um recorte, pois entar um resumo da mesma, mas a partir dela apresentar
ncia ao pensamento foucaultiano: o corpo. A dissertação nasceu de tal se que durante a década de 1970 Foucault explorou a temática do corpo atrelado
ao poder, mas antes, ele já havia pensado tal tema? A partir daí nos reportamos as obras da década de 1960, e entre os textos estudados um nos chamou atenção, a conferência de 1966:
se, assim, sob a ótica foucaultiana, de pensarcom ambos e para além de ambos um possível corpo inútil e indócil,
isto é, contradisciplinar, mas autodisciplinado.
: Foucault; corpo utópico; corpo disciplinado.
THE FOUCAULT'S BODUES: UTOPIAN, DISCIPLINED AND TO BEYOND
This article presents part of our dissertation in Philosophy. It is a part because it is a cutout, since we do not intend to present a summary of the dissertation, but from it, expose a theme of extreme importance to Foucault's thought: the body. The dissertation was born of such doubt: it is known that during the 1970s Foucault explored the subject of the body hitched to power, but would he have thought this issue before? From this, we resorted to the works of the 1960s, and among the texts studied one caught our attention, the conference from 1966: "The utopian body". Thus, the aim of this work is, in Foucault's view, to think the utopian body and the disciplined body. And with both, and besides both, a possible useless and indocile body, that
disciplinary, but self-disciplined.
: Foucault; utopian body; disciplined body.
O filósofo Nietzsche, no século XIX, em um aforismo disse:
[...]. Até o momento, nada daquilo que deu colorido à existência teve história: se não, onde está uma história do amor, da cupidez, da inveja, da consciência, da piedade, da crueldade? [...]. Já se tomou por objeto de pesquisa as diferentes divisões do dia, as consequências de uma fixação regular do trabalho, das festas e do repouso? (2001, p. 59).
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná
(UNIOESTE/Toledo). fabiobatista1985@bol.com.br
ISSN 2176-9249
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UTÓPICO, DISCIPLINADO E PARA ALÉM
Fabio Batista1
out./2015 e aceito em: jan./2016
em Filosofia. Parte porque é um recorte, pois apresentar um tema de
. A dissertação nasceu de tal de 1970 Foucault explorou a temática do corpo atrelado
ao poder, mas antes, ele já havia pensado tal tema? A partir daí nos reportamos as obras da década de 1960, e entre os textos estudados um nos chamou atenção, a conferência de 1966:
se, assim, sob a ótica foucaultiana, de pensar o corpo utópico e o possível corpo inútil e indócil,
UTOPIAN, DISCIPLINED AND TO BEYOND
This article presents part of our dissertation in Philosophy. It is a part because it is a cutout, since we do not intend to present a summary of the dissertation, but from it, expose a theme of
rtation was born of such doubt: it is known that during the 1970s Foucault explored the subject of the body hitched to power, but would he have thought this issue before? From this, we resorted to the works of the 1960s,
ght our attention, the conference from 1966: "The utopian body". Thus, the aim of this work is, in Foucault's view, to think the utopian body and the disciplined body. And with both, and besides both, a possible useless and indocile body, that
[...]. Até o momento, nada daquilo que deu colorido à existência teve história: se não, onde está uma história do amor, da cupidez, da inveja, da consciência, da piedade, da crueldade? [...]. Já se tomou por objeto de pesquisa as diferentes
a, as consequências de uma fixação regular do trabalho, das festas e do
Graduação em Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná
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Foucault, passado menos de um século, compreendeu tal proposta e iniciou
investigações inabituais: sobre a doença mental, a morte, a sexualidade, o crime, o c
Diante desse quadro de estudos, importa a nós as investigações do filósofo francês sobre o
corpo.
Durante a década de 1970
poder, assim nasceu o binômio poder
enquanto superfície de inscrição do poder real; 2 corpo enquanto investido por técnicas de
poder que o torna dócil e útil. Porém, em 1966, Foucault havia proferido uma conferência
radiofônica cujo foco também era o corpo, no entanto, a
corpo utópico, um ensaio no qual Foucault nos apresentava um corpo
invisível, o corpo visto enquanto matriz de todas as utopias. Por fim, a partir de Foucault,
apresentar-se-á um outro corpo poss
se tornar inútil e indócil, a exemplo de um dançarino, iogue ou faquir
1 UMA CONFERÊNCIA DE 1966 Em uma conferência de 1966 Foucault discorreu sobre o corpo, cujo título
utópico”4. Curta, pois pensada para ser proferida em uma emissora de rádio, contudo, como
veremos, rica.
Sabe-se hoje que Foucault produziu inúmeros textos sob diversas circunstâncias, os
quais em sua maioria atualmente se encontram reunidos
encontram-se entrevistas, conferências, introduções, comentários acerca de literatura, artes
plásticas, cinema, e também sobre livros de outros filósofos, enfim, um riquíssimo material a
partir do qual podemos compreender
Contudo, esse pequeno texto sobre o corpo não se encontra nos volumes dos
foi publicado recentemente no Brasil, juntamente com outro texto. Este último já conhecido
do público brasileiro: “As heterotopias
2 O poder psiquiátrico (1973-1974),3 Artigo a partir da dissertação: de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual de Londrina Doutor Marcos Alexandre Gomes Nalli.4 Em 1966 o corpo é pensado a partir do tema proposto a década de 1970, que o corpo estará atrelado ao poder.5 A primeira edição francesa em quatro volumes é de 1994 e reúne os mais variados tipos de textos de entre 1954-1988. Os quais foram organcontudo, organizada tematicamente. 6 Ver: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritosde Janeiro: Forense Universitária, 2005
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Foucault, passado menos de um século, compreendeu tal proposta e iniciou
investigações inabituais: sobre a doença mental, a morte, a sexualidade, o crime, o c
Diante desse quadro de estudos, importa a nós as investigações do filósofo francês sobre o
Durante a década de 19702 Foucault ocupou-se do corpo. Ao pensá
poder, assim nasceu o binômio poder-corpo: 1 corpo-suplício; 2 corpo
enquanto superfície de inscrição do poder real; 2 corpo enquanto investido por técnicas de
poder que o torna dócil e útil. Porém, em 1966, Foucault havia proferido uma conferência
radiofônica cujo foco também era o corpo, no entanto, a abordagem era outra: tratava
corpo utópico, um ensaio no qual Foucault nos apresentava um corpo topia
invisível, o corpo visto enquanto matriz de todas as utopias. Por fim, a partir de Foucault,
á um outro corpo possível que procura ir além do poder disciplinar, e que quer
se tornar inútil e indócil, a exemplo de um dançarino, iogue ou faquir3.
UMA CONFERÊNCIA DE 1966 - “O CORPO UTÓPICO”
Em uma conferência de 1966 Foucault discorreu sobre o corpo, cujo título
. Curta, pois pensada para ser proferida em uma emissora de rádio, contudo, como
se hoje que Foucault produziu inúmeros textos sob diversas circunstâncias, os
quais em sua maioria atualmente se encontram reunidos nos chamados
entrevistas, conferências, introduções, comentários acerca de literatura, artes
plásticas, cinema, e também sobre livros de outros filósofos, enfim, um riquíssimo material a
partir do qual podemos compreender melhor o pensamento do filósofo francês.
Contudo, esse pequeno texto sobre o corpo não se encontra nos volumes dos
foi publicado recentemente no Brasil, juntamente com outro texto. Este último já conhecido
do público brasileiro: “As heterotopias” ou “Outros espaços6”. É provável que a ideia de
1974), Vigiar e punir (1975). “Sobre poder e corpo em Foucault”, 2015. A qual foi
Graduação em Filosofia da Universidade Estadual de Londrina – UEL, sob a orientação do Professor Doutor Marcos Alexandre Gomes Nalli.
Em 1966 o corpo é pensado a partir do tema proposto a Foucault, “Utopia e literatura”. E só posteriormente, na década de 1970, que o corpo estará atrelado ao poder.
A primeira edição francesa em quatro volumes é de 1994 e reúne os mais variados tipos de textos de entre 1988. Os quais foram organizados em ordem cronológica. No Brasil já temos a tradução desses volumes,
contudo, organizada tematicamente. Ditos e escritos: estética: literatura e pintura, música e cinema. Vol. III. 2ª ed. Rio
ro: Forense Universitária, 2005.
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Foucault, passado menos de um século, compreendeu tal proposta e iniciou
investigações inabituais: sobre a doença mental, a morte, a sexualidade, o crime, o corpo.
Diante desse quadro de estudos, importa a nós as investigações do filósofo francês sobre o
se do corpo. Ao pensá-lo articulou-o ao
suplício; 2 corpo-disciplinas; 1 corpo
enquanto superfície de inscrição do poder real; 2 corpo enquanto investido por técnicas de
poder que o torna dócil e útil. Porém, em 1966, Foucault havia proferido uma conferência
abordagem era outra: tratava-se do
topia e utopia, visível e
invisível, o corpo visto enquanto matriz de todas as utopias. Por fim, a partir de Foucault,
ível que procura ir além do poder disciplinar, e que quer
.
Em uma conferência de 1966 Foucault discorreu sobre o corpo, cujo título é: “O corpo
. Curta, pois pensada para ser proferida em uma emissora de rádio, contudo, como
se hoje que Foucault produziu inúmeros textos sob diversas circunstâncias, os
nos chamados Ditos e escritos5. Aí
entrevistas, conferências, introduções, comentários acerca de literatura, artes
plásticas, cinema, e também sobre livros de outros filósofos, enfim, um riquíssimo material a
melhor o pensamento do filósofo francês.
Contudo, esse pequeno texto sobre o corpo não se encontra nos volumes dos DE. Ele
foi publicado recentemente no Brasil, juntamente com outro texto. Este último já conhecido
”. É provável que a ideia de
A qual foi apresentada ao Programa UEL, sob a orientação do Professor
Foucault, “Utopia e literatura”. E só posteriormente, na
A primeira edição francesa em quatro volumes é de 1994 e reúne os mais variados tipos de textos de entre o Brasil já temos a tradução desses volumes,
: estética: literatura e pintura, música e cinema. Vol. III. 2ª ed. Rio
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publicá-los em um mesmo livro tenha nascido da temática que subjaz aos dois: o espaço, o
lugar. Mas a nós importa, em especial, o primeiro que trata do corpo.
Poderiam objetar: “por que em meio aos livros
se ocupar de um simples texto que nem foi publicado em vida por Foucault?”. “Ora”,
poderíamos responder: “se paramos para estudar tal texto, ainda que aparentemente sem muita
relevância, é em vista de nosso tema
Foucault o inicia afirmando que o corpo é o contrário de uma utopia. Ou seja, que o
corpo é topia, lugar; enquanto a utopia seria um não
se-ia dizer: a utopia é um lugar sem lugar. O corpo, por sua vez,
irremediavelmente amarrado,
Posso até ir ao fim do mundo, posso, de manhã, sob as cobertas, encolherme tão pequeno quanto possível, posso deixarestará sempre comigo onde eu estiver. Está aqui, irremediavelmente, jamais em outro lugaroutro céu, lugar absoluto, pequeno fragmento de espaço com o qual, no sentido estrito, faço corpo (FOUCAULT, 2013, p. 7; itálicos nossos).
Aquilo que faço parece ser inseparável do
muitas coisas, como Foucault indicou acima,
sempre atrelado a ele: é com ele, por via dele que poderei fazer
que uma utopia deve ser co
Foucault pôs corpo e utopia lado a lado para opô
corpo como lugar e utopia como não
A que se deve o prestígio da utopia, a beleza, o deslumbramento da utopia? A utopia é um lugar fora de todos os lugares, mas um lugar onde terei um corpo um corpo que seria belo, límpido, transparente, luminoso, veloz, colossal na sua potência, bem ser que a utopia primeira, a mais inextirpável no coração dos homens, consista precisamente na utopia de um corpo incorporal (FOUCAULT, 2013, p. 8).
Temos, portanto: corpo
nos propiciaria a fantasia de um corpo incorpóreo, um corpo invisível, imaterial. Um corpo no
qual talvez nos encontrássemos menos amarrados, o qual fosse mais flexível e que, assim,
também nem mesmo fosse um corpo. Ainda, para além da utopia enquanto um lugar mágico,
o qual está próximo de um país de Alice que Lewis Carrol criou, temos, de acordo com
Foucault, mais duas formas utópicas de nos livrarmos do corpo, duas formas de apagarmos
esse lugar ao qual estamos presos. Ambas há muito já conhecidas de todos: o país dos mortos,
que “[...] são as grandes cidades utópicas que nos foram deixadas pela civilização egípcia”
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los em um mesmo livro tenha nascido da temática que subjaz aos dois: o espaço, o
lugar. Mas a nós importa, em especial, o primeiro que trata do corpo.
: “por que em meio aos livros e outros textos de maior importância,
se ocupar de um simples texto que nem foi publicado em vida por Foucault?”. “Ora”,
poderíamos responder: “se paramos para estudar tal texto, ainda que aparentemente sem muita
m vista de nosso tema”.
oucault o inicia afirmando que o corpo é o contrário de uma utopia. Ou seja, que o
enquanto a utopia seria um não-lugar, ou se se aceitar o paradoxo, poder
ia dizer: a utopia é um lugar sem lugar. O corpo, por sua vez, é um lugar a
amarrado, como parece indicar o texto:
Posso até ir ao fim do mundo, posso, de manhã, sob as cobertas, encolherme tão pequeno quanto possível, posso deixar-me derreter na praia, sob o sol, e ele estará sempre comigo onde eu estiver. Está aqui, irremediavelmente, jamais em outro lugar. Meu corpo é o contrário de uma utopia, é o que jamais se encontra sob outro céu, lugar absoluto, pequeno fragmento de espaço com o qual, no sentido estrito, faço corpo (FOUCAULT, 2013, p. 7; itálicos nossos).
faço parece ser inseparável do meu corpo. Pois, ainda que
como Foucault indicou acima, - esconder-se, encolher-
é com ele, por via dele que poderei fazer, agir. O que implica em dizer
que uma utopia deve ser considerada o seu contrário? Se sim, por quê? Em que medida
Foucault pôs corpo e utopia lado a lado para opô-los? Na medida em que ele parece pensar o
corpo como lugar e utopia como não-lugar. Vejamos:
A que se deve o prestígio da utopia, a beleza, o deslumbramento da utopia? A utopia é um lugar fora de todos os lugares, mas um lugar onde terei um corpo um corpo que seria belo, límpido, transparente, luminoso, veloz, colossal na sua potência, infinito na duração, solto, invisível, protegido, sempre transfigurado; pode bem ser que a utopia primeira, a mais inextirpável no coração dos homens, consista precisamente na utopia de um corpo incorporal (FOUCAULT, 2013, p. 8).
Temos, portanto: corpo e utopia; lugar e não-lugar; aquilo que nos
nos propiciaria a fantasia de um corpo incorpóreo, um corpo invisível, imaterial. Um corpo no
qual talvez nos encontrássemos menos amarrados, o qual fosse mais flexível e que, assim,
mesmo fosse um corpo. Ainda, para além da utopia enquanto um lugar mágico,
o qual está próximo de um país de Alice que Lewis Carrol criou, temos, de acordo com
Foucault, mais duas formas utópicas de nos livrarmos do corpo, duas formas de apagarmos
ar ao qual estamos presos. Ambas há muito já conhecidas de todos: o país dos mortos,
que “[...] são as grandes cidades utópicas que nos foram deixadas pela civilização egípcia”
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los em um mesmo livro tenha nascido da temática que subjaz aos dois: o espaço, o
e outros textos de maior importância,
se ocupar de um simples texto que nem foi publicado em vida por Foucault?”. “Ora”,
poderíamos responder: “se paramos para estudar tal texto, ainda que aparentemente sem muita
oucault o inicia afirmando que o corpo é o contrário de uma utopia. Ou seja, que o
lugar, ou se se aceitar o paradoxo, poder-
é um lugar ao qual se está
Posso até ir ao fim do mundo, posso, de manhã, sob as cobertas, encolher-me, fazer-me derreter na praia, sob o sol, e ele
estará sempre comigo onde eu estiver. Está aqui, irremediavelmente, jamais em , é o que jamais se encontra sob
outro céu, lugar absoluto, pequeno fragmento de espaço com o qual, no sentido estrito, faço corpo (FOUCAULT, 2013, p. 7; itálicos nossos).
meu corpo. Pois, ainda que se possa fazer
-se, deitar-se - estarei
. O que implica em dizer
or quê? Em que medida
los? Na medida em que ele parece pensar o
A que se deve o prestígio da utopia, a beleza, o deslumbramento da utopia? A utopia é um lugar fora de todos os lugares, mas um lugar onde terei um corpo sem corpo, um corpo que seria belo, límpido, transparente, luminoso, veloz, colossal na sua
infinito na duração, solto, invisível, protegido, sempre transfigurado; pode bem ser que a utopia primeira, a mais inextirpável no coração dos homens, consista precisamente na utopia de um corpo incorporal (FOUCAULT, 2013, p. 8).
lugar; aquilo que nos ata; e aquilo que
nos propiciaria a fantasia de um corpo incorpóreo, um corpo invisível, imaterial. Um corpo no
qual talvez nos encontrássemos menos amarrados, o qual fosse mais flexível e que, assim,
mesmo fosse um corpo. Ainda, para além da utopia enquanto um lugar mágico,
o qual está próximo de um país de Alice que Lewis Carrol criou, temos, de acordo com
Foucault, mais duas formas utópicas de nos livrarmos do corpo, duas formas de apagarmos
ar ao qual estamos presos. Ambas há muito já conhecidas de todos: o país dos mortos,
que “[...] são as grandes cidades utópicas que nos foram deixadas pela civilização egípcia”
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(FOUCAULT, 2013, p. 8), e a alma. Esta última conhecida das religiões e das fil
ainda que sob significados diferentes. Diante dela o
vez é pura, lugar do conhecimento. A alma deve apagar o corpo, ou ao menos pô
do contrário permaneceremos no plano do sensível e do devir,
e sem acesso à verdade que somente a alma pode alcançar
Assim a utopia, de acordo com Foucault, enquanto lugar
ainda a alma, é aqui a expressão de uma recusa
forma utópica de se apagar o corpo seria a última. Em muitas religiões
exemplo - ela é aquilo que desde sempre deve ser cuidado e salvo; aquilo que sobrevive à
morte do corpo. Na filosofia, desde a Antiguidade
simples acidente, ou um cárcere do qual é preciso se libertar
sempre mais importante que o corpo, a qual em um dado momento deve prevalecer sobre ele.
Mas seria assim simples: o próprio corpo não co
por exemplo, não seria uma estranha caverna, pergunta Foucault. Pois composta de duas
aberturas ou mais que só as vejo diante do espelho
daqui encontramos o ponto de inflexão no text
corpo é o contrário de uma utopia
mas não seria o próprio corpo uma utopia? Como veremos, o corpo parece ser antes utópico
que não utópico. Ou talvez e
ponto há uma passagem a qual é de extrema importância, na qual Foucault disse:
Corpo incompreensível, corpo penetrável e opaco, corpo aberto e fechado: utópicoolhado por alguém da cabeça aos pés, sei o que é ser espiado por trás, vigiado por cima do ombro, surpreso quando percebo isso, sei o que é estar nu; mesmo corpo que é tão visível, é afastado, cda qual jamais posso desvencilháposso tocar com meus dedos, mas nunca ver; […]. O corpo, fantasma que só aparece na miragem dos espelhos e, ainda assim, de maneira fragverdadeiramente, dos gênios e das fadas, da morte e da alma, para ser ao mesmo tempo indissociavelmente visível e invisível? [...]Não, verdadeiramente, não há necessidade da mágica nem do feérico, não há necessidade de uma alma nem de uopaco e transparente, visível e invisível, vida e coisa. que seja um
7 Esse argumento, no âmbito da Filosofia, a favor da alma em detrimento do corpo, nos remete a tradição que vai de Parmênides a Descartes, passando por Platão. Em Platão: o corpoao tema da alma em contraposiçãtradicional acerca do tema. De acordo com nosso filósofo: se tem é a ideia de uma produção da “subjetividade” ou “consciência” queum indivíduo. Esta produção estaria atrelada sobretudo aos saberes de radical 8 Acerca do tema alma e corpo na filosofia ver tópicos 2a e 2b do texto de Orlandiem minidesfile”.
Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016
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Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir
(FOUCAULT, 2013, p. 8), e a alma. Esta última conhecida das religiões e das fil
e sob significados diferentes. Diante dela o corpo é impuro, lugar do err
pura, lugar do conhecimento. A alma deve apagar o corpo, ou ao menos pô
do contrário permaneceremos no plano do sensível e do devir, portanto, no p
verdade que somente a alma pode alcançar7.
utopia, de acordo com Foucault, enquanto lugar mágico, ou
ainda a alma, é aqui a expressão de uma recusa obstinada do corpo. Entre essas
apagar o corpo seria a última. Em muitas religiões
ela é aquilo que desde sempre deve ser cuidado e salvo; aquilo que sobrevive à
morte do corpo. Na filosofia, desde a Antiguidade – Platão, por exemplo
simples acidente, ou um cárcere do qual é preciso se libertar8. Em ambos os casos a alma é
sempre mais importante que o corpo, a qual em um dado momento deve prevalecer sobre ele.
Mas seria assim simples: o próprio corpo não conteria lugares sem
por exemplo, não seria uma estranha caverna, pergunta Foucault. Pois composta de duas
aberturas ou mais que só as vejo diante do espelho (Cf. FOUCAULT,
daqui encontramos o ponto de inflexão no texto de Foucault. Se até aqui ele afirmou que o
corpo é o contrário de uma utopia e argumentou para justificar isto. Doravante, ele pergunta,
mas não seria o próprio corpo uma utopia? Como veremos, o corpo parece ser antes utópico
que não utópico. Ou talvez encerre as duas possibilidades: utopia e não utopia. Para esse
ponto há uma passagem a qual é de extrema importância, na qual Foucault disse:
Corpo incompreensível, corpo penetrável e opaco, corpo aberto e fechado: utópico. Corpo absolutamente visível, em um sentido: sei muito bem o que é ser olhado por alguém da cabeça aos pés, sei o que é ser espiado por trás, vigiado por cima do ombro, surpreso quando percebo isso, sei o que é estar nu; mesmo corpo que é tão visível, é afastado, captado por uma espécie de invisibilidade da qual jamais posso desvencilhá-lo. Este meu crânio, atrás do meu crânio, que posso tocar com meus dedos, mas nunca ver; […]. O corpo, fantasma que só aparece na miragem dos espelhos e, ainda assim, de maneira fragverdadeiramente, dos gênios e das fadas, da morte e da alma, para ser ao mesmo tempo indissociavelmente visível e invisível? [...] Não, verdadeiramente, não há necessidade da mágica nem do feérico, não há necessidade de uma alma nem de uma morte para que eu seja ao mesmo tempo opaco e transparente, visível e invisível, vida e coisa. Para que eu seja utopia, basta que seja um corpo (2013, p. 10-11; itálicos nossos).
Esse argumento, no âmbito da Filosofia, a favor da alma em detrimento do corpo, nos remete a tradição que vai
de Parmênides a Descartes, passando por Platão. Em Platão: o corpo-prisão da alma. Foucault (Cf. 2009) voltou ao tema da alma em contraposição ao corpo no primeiro capítulo de Vigiar e punirtradicional acerca do tema. De acordo com nosso filósofo: “a alma, prisão do corpo”. Em se tem é a ideia de uma produção da “subjetividade” ou “consciência” que delimita e define os modos de ser de um indivíduo. Esta produção estaria atrelada sobretudo aos saberes de radical psi: psicologia, psiquiatria
Acerca do tema alma e corpo na filosofia ver tópicos 2a e 2b do texto de Orlandi (Cf.
ISSN 2176-9249
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(FOUCAULT, 2013, p. 8), e a alma. Esta última conhecida das religiões e das filosofias,
corpo é impuro, lugar do erro; ela por sua
pura, lugar do conhecimento. A alma deve apagar o corpo, ou ao menos pô-lo de lado,
portanto, no plano das opiniões
mágico, ou além túmulo, ou
obstinada do corpo. Entre essas a mais forte
apagar o corpo seria a última. Em muitas religiões – cristianismo, por
ela é aquilo que desde sempre deve ser cuidado e salvo; aquilo que sobrevive à
emplo - o corpo parece ser
. Em ambos os casos a alma é
sempre mais importante que o corpo, a qual em um dado momento deve prevalecer sobre ele.
nteria lugares sem-lugar? A cabeça,
por exemplo, não seria uma estranha caverna, pergunta Foucault. Pois composta de duas
FOUCAULT, 2013, p. 10). A partir
o de Foucault. Se até aqui ele afirmou que o
o. Doravante, ele pergunta,
mas não seria o próprio corpo uma utopia? Como veremos, o corpo parece ser antes utópico
ncerre as duas possibilidades: utopia e não utopia. Para esse
ponto há uma passagem a qual é de extrema importância, na qual Foucault disse:
Corpo incompreensível, corpo penetrável e opaco, corpo aberto e fechado: corpo el, em um sentido: sei muito bem o que é ser
olhado por alguém da cabeça aos pés, sei o que é ser espiado por trás, vigiado por cima do ombro, surpreso quando percebo isso, sei o que é estar nu; no entanto, este
aptado por uma espécie de invisibilidade lo. Este meu crânio, atrás do meu crânio, que
posso tocar com meus dedos, mas nunca ver; […]. O corpo, fantasma que só aparece na miragem dos espelhos e, ainda assim, de maneira fragmentária. Preciso, verdadeiramente, dos gênios e das fadas, da morte e da alma, para ser ao mesmo
Não, verdadeiramente, não há necessidade da mágica nem do feérico, não há ma morte para que eu seja ao mesmo tempo
Para que eu seja utopia, basta
Esse argumento, no âmbito da Filosofia, a favor da alma em detrimento do corpo, nos remete a tradição que vai prisão da alma. Foucault (Cf. 2009) voltou
Vigiar e punir , invertendo a proposição “a alma, prisão do corpo”. Em Vigiar e punir o que
delimita e define os modos de ser de : psicologia, psiquiatria
(Cf. 2004): “Corporeidades
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Ou seja, as utopias não são o contrário do corpo. O próprio corpo encer
possíveis utopias por sua disposição anatômica: costas e nuca que não vejo de imediato. Ele
pode ser visível e invisível; opaco e transparente. Assim, ele seria fonte primeira de todas as
demais formas de utopia. Ainda que
como vimos acima, nos casos do lugar mágico, país dos mortos, e da alma.
Ora, diante disso, pode
Como diante dessa potência utópica que é o corpo, ainda sabemos qu
cá estamos? A resposta, segundo Foucault, seria: “[..], graças ao espelho e ao cadáver, é que
nosso corpo não é pura e simples utopia” (FOUCAULT, 2013, p. 15). O espelho e o cadáver
servem como meios de sempre nos trazer de volta, o
É por eles que descobrimos nossos corpos; ambos nos ensinam que temos um corpo. Pois,
As crianças, afinal, levam muito tempo para saber que têm um corpo. Durante meses, durante mais de um ano, elas têm apenas um ccavidades, orifícios, e tudo isso só se organiza, tudo isso literalmente toma corpo somente na imagem do espelho. De modo mais estranho ainda, os gregos de Homero não tinham uma palavra para designar a unidade do corpo. Por paradoxaque seja, diante de Tróia, abaixo dos muros defendidos por companheiros, não havia corpos, mas braços erguidos, peitos intrépidos, pernas ágeis, capacetes cintilantes em acima de cabeças: não havia corpo. A palavra grega para dizer corpo sóportanto, o cadáver e o espelho que nos ensinam (enfim, ensinaram aos gregos e agora ensinam às crianças) que temos um corpo, que este corpo tem uma forma, que esta forma tem um contorno, que no contorsuma, que o corpo ocupa um lugar (FOUCAULT, 2013, p. 15).
A imagem do espelho ensinando às crianças que elas têm um corpo, e o cadáver, o
corpo morto, inerte, ensinava aos gregos da antiguidade. Temos com eles dois exemplos de
como historicamente pode-
dissessem: “o espelho e o cadáver também são
imagem do meu corpo e não ele mesmo. E jamais poderei estar ali onde se encontrara o meu
cadáver”. Ao que Foucault responderia: “[...] descobrimos então que unicamente as utopias
podem fazer refluir nelas mesmas e esconder por u
nosso corpo” (FOUCAULT, 2013 p. 15
acabar, ainda que momentaneamente, com o corpo utópico; um modo de se aniquilar esse
“impulso” à utopia. Qual seria esse meio?
Ora, se o espelho e o cadáver, ainda que também utopias, servem para nos ensinar que há um
corpo; por que o amor seria um meio mais eficaz para esse fim? Talvez porque nesse último
caso entre em cena de forma
Seria talvez necessário dizer também que fazer amor é sentir o corpo refluir sobre si, é existir, enfim, fora de toda utopia, com toda densidade, entre as mãos do outro.
Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016
Artigos
Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir
Ou seja, as utopias não são o contrário do corpo. O próprio corpo encer
possíveis utopias por sua disposição anatômica: costas e nuca que não vejo de imediato. Ele
pode ser visível e invisível; opaco e transparente. Assim, ele seria fonte primeira de todas as
demais formas de utopia. Ainda que depois elas pareçam se voltar contra ele para apagá
como vimos acima, nos casos do lugar mágico, país dos mortos, e da alma.
o, pode-se perguntar: como não nos perdermos de uma vez por todas?
Como diante dessa potência utópica que é o corpo, ainda sabemos que temos um corpo, e que
cá estamos? A resposta, segundo Foucault, seria: “[..], graças ao espelho e ao cadáver, é que
nosso corpo não é pura e simples utopia” (FOUCAULT, 2013, p. 15). O espelho e o cadáver
servem como meios de sempre nos trazer de volta, ou de nos por sempre aqui no corpo
É por eles que descobrimos nossos corpos; ambos nos ensinam que temos um corpo. Pois,
As crianças, afinal, levam muito tempo para saber que têm um corpo. Durante meses, durante mais de um ano, elas têm apenas um ccavidades, orifícios, e tudo isso só se organiza, tudo isso literalmente toma corpo somente na imagem do espelho. De modo mais estranho ainda, os gregos de Homero não tinham uma palavra para designar a unidade do corpo. Por paradoxaque seja, diante de Tróia, abaixo dos muros defendidos por companheiros, não havia corpos, mas braços erguidos, peitos intrépidos, pernas ágeis, capacetes cintilantes em acima de cabeças: não havia corpo. A palavra grega para dizer corpo só aparece em Homero para designar cadáver. É o cadáver, portanto, o cadáver e o espelho que nos ensinam (enfim, ensinaram aos gregos e agora ensinam às crianças) que temos um corpo, que este corpo tem uma forma, que esta forma tem um contorno, que no contorno há uma espessura, um peso; em suma, que o corpo ocupa um lugar (FOUCAULT, 2013, p. 15).
A imagem do espelho ensinando às crianças que elas têm um corpo, e o cadáver, o
corpo morto, inerte, ensinava aos gregos da antiguidade. Temos com eles dois exemplos de
-se combater a permanente tentação do corpo utópico. E se a iss
dissessem: “o espelho e o cadáver também são outros lugares. Porque o espelho traz uma
imagem do meu corpo e não ele mesmo. E jamais poderei estar ali onde se encontrara o meu
cadáver”. Ao que Foucault responderia: “[...] descobrimos então que unicamente as utopias
podem fazer refluir nelas mesmas e esconder por um instante a utopia profunda e soberana de
nosso corpo” (FOUCAULT, 2013 p. 15-16). Mas, haveria uma forma exemplar de
acabar, ainda que momentaneamente, com o corpo utópico; um modo de se aniquilar esse
“impulso” à utopia. Qual seria esse meio? O amor, ou, como afirmou Foucault, fazer amor.
Ora, se o espelho e o cadáver, ainda que também utopias, servem para nos ensinar que há um
corpo; por que o amor seria um meio mais eficaz para esse fim? Talvez porque nesse último
caso entre em cena de forma evidente um elemento importante. Vejamos:
Seria talvez necessário dizer também que fazer amor é sentir o corpo refluir sobre si, é existir, enfim, fora de toda utopia, com toda densidade, entre as mãos do outro.
ISSN 2176-9249
157
Ou seja, as utopias não são o contrário do corpo. O próprio corpo encerraria as
possíveis utopias por sua disposição anatômica: costas e nuca que não vejo de imediato. Ele
pode ser visível e invisível; opaco e transparente. Assim, ele seria fonte primeira de todas as
oltar contra ele para apagá-lo
como vimos acima, nos casos do lugar mágico, país dos mortos, e da alma.
se perguntar: como não nos perdermos de uma vez por todas?
e temos um corpo, e que
cá estamos? A resposta, segundo Foucault, seria: “[..], graças ao espelho e ao cadáver, é que
nosso corpo não é pura e simples utopia” (FOUCAULT, 2013, p. 15). O espelho e o cadáver
u de nos por sempre aqui no corpo-lugar.
É por eles que descobrimos nossos corpos; ambos nos ensinam que temos um corpo. Pois,
As crianças, afinal, levam muito tempo para saber que têm um corpo. Durante meses, durante mais de um ano, elas têm apenas um corpo disperso, membros, cavidades, orifícios, e tudo isso só se organiza, tudo isso literalmente toma corpo somente na imagem do espelho. De modo mais estranho ainda, os gregos de Homero não tinham uma palavra para designar a unidade do corpo. Por paradoxal que seja, diante de Tróia, abaixo dos muros defendidos por Heitor e seus companheiros, não havia corpos, mas braços erguidos, peitos intrépidos, pernas ágeis, capacetes cintilantes em acima de cabeças: não havia corpo. A palavra grega
aparece em Homero para designar cadáver. É o cadáver, portanto, o cadáver e o espelho que nos ensinam (enfim, ensinaram aos gregos e agora ensinam às crianças) que temos um corpo, que este corpo tem uma forma,
no há uma espessura, um peso; em suma, que o corpo ocupa um lugar (FOUCAULT, 2013, p. 15).
A imagem do espelho ensinando às crianças que elas têm um corpo, e o cadáver, o
corpo morto, inerte, ensinava aos gregos da antiguidade. Temos com eles dois exemplos de
se combater a permanente tentação do corpo utópico. E se a isso
. Porque o espelho traz uma
imagem do meu corpo e não ele mesmo. E jamais poderei estar ali onde se encontrara o meu
cadáver”. Ao que Foucault responderia: “[...] descobrimos então que unicamente as utopias
m instante a utopia profunda e soberana de
16). Mas, haveria uma forma exemplar de acalmar ou
acabar, ainda que momentaneamente, com o corpo utópico; um modo de se aniquilar esse
O amor, ou, como afirmou Foucault, fazer amor.
Ora, se o espelho e o cadáver, ainda que também utopias, servem para nos ensinar que há um
corpo; por que o amor seria um meio mais eficaz para esse fim? Talvez porque nesse último
evidente um elemento importante. Vejamos:
Seria talvez necessário dizer também que fazer amor é sentir o corpo refluir sobre si, é existir, enfim, fora de toda utopia, com toda densidade, entre as mãos do outro.
OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol.
OLHARES PLURAIS - Artigos
Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir
Sob os dedos do outro que nos percorrem, tpõemseuspara ver nossas pálpebras fechadas. O amor, tammorte, sereniza a utopia de nosso corpo, silencianuma caixa, trancaespelho e da ameaça da morte; e se, apesar dessas duas figucercam, amamos tanto fazer amor, é porque no amor o corpo está (FOUCAULT. 2013, p. 16).
Dissemos acima que diante do espelho e do cadáver, ainda que ambos nos ensinem
que temos um corpo, estamos ainda frente à utopias, pois nós
um nem em outro. O primeiro é imagem em um espaço inacessível; o segundo é morte, e
assim ausência. Contudo, diante dessa utopia quase incontornável que é o corpo, nos restaria
um único e último meio através do qual ele se acalma
que isso ocorreria, disse Foucault. Por quê? Talvez porque nesse último caso a presença do
outro corpo diante de seu corpo, assegure o lugar do corpo aqui e agora.
a intensidade desse encontro
apagar todas as utopias – isso parece certo na medida em que o pronome
em destaque no trecho acima citado
mas, diante do cadáver do outro não se teria o mesmo efeito? Provavelmente não, porque no
caso do cadáver o que temos é a inércia do outro. E o que Foucault parece indicar com fazer
amor é que através desse encontro entre os corpos o importante é a presença do outro q
toca, lhe beija e lhe vê; é só assim, de acordo com Foucault, que o corpo está aqui, e não em
outro lugar.
O título, “O corpo utópico”, é curioso. Pois, de saída poderia se perguntar: qual a
relação entre corpo e utopia? A princípio
utopia, pois, ele é o lugar absoluto ao qual estaríamos presos, e uma utopia seria um não lugar.
Porém, nosso filósofo mostrou
ao dizer que as utopias eram vol
próprio corpo e, em seguida, talvez, retornem contra ele” (FOUCAULT, 2013, p. 11). Um
exemplo? De acordo com ele
a lenda dos corpos imensos. É a lenda dos gigantes que se conta na Europa, Ásia, África. Ora,
se o corpo e as utopias se põem lado a lado, ele como o próprio ponto de origem e de
aplicação delas, como sabemos que temos um corpo? Que estamos aqui com ele? O espelho, o
cadáver e o fazer amor seriam as vias pelas quais poderíamos acalmar a utopia de nossos
corpos, sobretudo através da última forma, através do entrelaçamento dos corpos no sexo, no
amor.
Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016
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Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir
Sob os dedos do outro que nos percorrem, todas as partes invisíveis de nosso corpo põem-se a existir, contra os lábios do outro os nossos se tornam sensíveis, diante de seus olhos semicerrados, nosso rosto adquire uma certeza, existe um olhar, enfim, para ver nossas pálpebras fechadas. O amor, também ele, como o espelho e como a morte, sereniza a utopia de nosso corpo, silencia-a, acalmanuma caixa, tranca-a e a sela. É por isso que ele é parente tão próximo da ilusão do espelho e da ameaça da morte; e se, apesar dessas duas figucercam, amamos tanto fazer amor, é porque no amor o corpo está (FOUCAULT. 2013, p. 16).
Dissemos acima que diante do espelho e do cadáver, ainda que ambos nos ensinem
que temos um corpo, estamos ainda frente à utopias, pois nós não nos encontramos nem em
um nem em outro. O primeiro é imagem em um espaço inacessível; o segundo é morte, e
assim ausência. Contudo, diante dessa utopia quase incontornável que é o corpo, nos restaria
um único e último meio através do qual ele se acalmaria: o corpo está aqui, é através do amor
que isso ocorreria, disse Foucault. Por quê? Talvez porque nesse último caso a presença do
corpo diante de seu corpo, assegure o lugar do corpo aqui e agora.
a intensidade desse encontro durante o entrelaçamento dos corpos seria fundamental para
isso parece certo na medida em que o pronome
em destaque no trecho acima citado, ou seja: a referência ao outro. Contudo, poderiam dizer:
do cadáver do outro não se teria o mesmo efeito? Provavelmente não, porque no
caso do cadáver o que temos é a inércia do outro. E o que Foucault parece indicar com fazer
amor é que através desse encontro entre os corpos o importante é a presença do outro q
toca, lhe beija e lhe vê; é só assim, de acordo com Foucault, que o corpo está aqui, e não em
corpo utópico”, é curioso. Pois, de saída poderia se perguntar: qual a
relação entre corpo e utopia? A princípio Foucault nos diz que o corpo é o contrário de uma
utopia, pois, ele é o lugar absoluto ao qual estaríamos presos, e uma utopia seria um não lugar.
nosso filósofo mostrou que o próprio corpo encerra utopias: “Enganara
ao dizer que as utopias eram voltadas contra o corpo e destinadas a apagá
próprio corpo e, em seguida, talvez, retornem contra ele” (FOUCAULT, 2013, p. 11). Um
ele uma das utopias mais velhas na qual o corpo é o ator principal é
s imensos. É a lenda dos gigantes que se conta na Europa, Ásia, África. Ora,
se o corpo e as utopias se põem lado a lado, ele como o próprio ponto de origem e de
aplicação delas, como sabemos que temos um corpo? Que estamos aqui com ele? O espelho, o
er e o fazer amor seriam as vias pelas quais poderíamos acalmar a utopia de nossos
corpos, sobretudo através da última forma, através do entrelaçamento dos corpos no sexo, no
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odas as partes invisíveis de nosso corpo se a existir, contra os lábios do outro os nossos se tornam sensíveis, diante de
olhos semicerrados, nosso rosto adquire uma certeza, existe um olhar, enfim, bém ele, como o espelho e como a
a, acalma-a, fecha-a como se a e a sela. É por isso que ele é parente tão próximo da ilusão do
espelho e da ameaça da morte; e se, apesar dessas duas figuras perigosas que o cercam, amamos tanto fazer amor, é porque no amor o corpo está aqui
Dissemos acima que diante do espelho e do cadáver, ainda que ambos nos ensinem
não nos encontramos nem em
um nem em outro. O primeiro é imagem em um espaço inacessível; o segundo é morte, e
assim ausência. Contudo, diante dessa utopia quase incontornável que é o corpo, nos restaria
ria: o corpo está aqui, é através do amor
que isso ocorreria, disse Foucault. Por quê? Talvez porque nesse último caso a presença do
corpo diante de seu corpo, assegure o lugar do corpo aqui e agora. A presença do outro,
durante o entrelaçamento dos corpos seria fundamental para
isso parece certo na medida em que o pronome seus (olhos) aparece
. Contudo, poderiam dizer:
do cadáver do outro não se teria o mesmo efeito? Provavelmente não, porque no
caso do cadáver o que temos é a inércia do outro. E o que Foucault parece indicar com fazer
amor é que através desse encontro entre os corpos o importante é a presença do outro que lhe
toca, lhe beija e lhe vê; é só assim, de acordo com Foucault, que o corpo está aqui, e não em
corpo utópico”, é curioso. Pois, de saída poderia se perguntar: qual a
que o corpo é o contrário de uma
utopia, pois, ele é o lugar absoluto ao qual estaríamos presos, e uma utopia seria um não lugar.
que o próprio corpo encerra utopias: “Enganara-me, há pouco,
tadas contra o corpo e destinadas a apagá-lo: elas nascem do
próprio corpo e, em seguida, talvez, retornem contra ele” (FOUCAULT, 2013, p. 11). Um
uma das utopias mais velhas na qual o corpo é o ator principal é
s imensos. É a lenda dos gigantes que se conta na Europa, Ásia, África. Ora,
se o corpo e as utopias se põem lado a lado, ele como o próprio ponto de origem e de
aplicação delas, como sabemos que temos um corpo? Que estamos aqui com ele? O espelho, o
er e o fazer amor seriam as vias pelas quais poderíamos acalmar a utopia de nossos
corpos, sobretudo através da última forma, através do entrelaçamento dos corpos no sexo, no
OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol.
OLHARES PLURAIS - Artigos
Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir
2 CORPO: DOS SUPLÍCIOS AO ADESTRAMENTO DISCIPLINAR
Na década de 1970,
corpo: poder e corpo se articulam, é sobre ele que o poder se exerce. E que corpo é este, como
isso funciona? De acordo com Foucault,
Se fizéssemos uma história do controle social do corpo, podo século XVIII inclusive, o corpo dos indivíduos é essencialmente a superfície de inscrição de suplícios e de penas; o corpo era feito para ser supliciado e castigado. Já nas instâncias de controle que surgem a partir do século XIXsignificaçãoque deve ser formado, reformado, corrigido, o que deve adquirir aptidões, receber um certo número de qualidades, qualificar(FOUCAULT, 2005, p. 119; itálico nosso).
Para que se possa compreender o lugar, a posição que o corpo ocupou nas
investigações foucaultinas no período por nós
as formas jurídicas - pode ser um importan
poder investiu o corpo, primeiro: superfície de suplícios; segundo: aquilo que deve ser
formado e reformado, apto a trabalhar na sociedade industrial
significações diferentes acer
Mas é, sobretudo,
formulação desses dois modos de exercer o poder sobre o corpo: “o corpo dos condenados” e
“os corpos dóceis”.
Em Vigiar e punir
vingança do poder real até fins do século XVIII. O corpo do condenado era a superfície
material sobre a qual o poder real se exercia. Castigar certos crimes até essa época era
apossar-se do corpo do súdito e sobre ele provocar
termo final: a morte. Isto porque
Nas monarquias europeias, o crime era não somente descaso pela lei, transgressão. Era, a um só tempo, uma espécie de ultraje feito ao rei. Todo crime era, por assim dizer, um pequde algum modo, sua força física. Na mesma medida, a pena era a reação do poder real contra o criminoso
Isto é, “a pena era a reação do poder real” sobre o corpo do criminoso.
dos suplícios havia uma outra forma de exercício de poder sobre o corpo. Fora do campo da
9 De acordo com Dreyfus e Rabinow (2010, p. 151), em referência a clínica: “Desde o início ele se interessou pelo corpo conforme era investigado pelos cientistas e pelo poder que reside em instituições especializadas. Mais recentemente, Foucault reconheceu que essa potente relação entre saber e poder, localizada no corpo, é, na verdade, um mecanismo geral de poder da maior importância para a sociedade ocidental”. 10 Sobre o ritual do suplício: as primeir(Cf. FOUCAULT, 2009).
Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016
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Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir
CORPO: DOS SUPLÍCIOS AO ADESTRAMENTO DISCIPLINAR
da de 1970, por outro lado, é sob outra perspectiva que Foucault abordou o
corpo: poder e corpo se articulam, é sobre ele que o poder se exerce. E que corpo é este, como
o funciona? De acordo com Foucault,
Se fizéssemos uma história do controle social do corpo, podo século XVIII inclusive, o corpo dos indivíduos é essencialmente a superfície de inscrição de suplícios e de penas; o corpo era feito para ser supliciado e castigado. Já nas instâncias de controle que surgem a partir do século XIXsignificação totalmente diferente; ele não é mais o que deve ser supliciado, mas o que deve ser formado, reformado, corrigido, o que deve adquirir aptidões, receber um certo número de qualidades, qualificar-se como corpo capaz de trab(FOUCAULT, 2005, p. 119; itálico nosso).
Para que se possa compreender o lugar, a posição que o corpo ocupou nas
investigações foucaultinas no período por nós aqui estudado, essa passagem
pode ser um importante ponto de partida. Dois modos pelos quais o
poder investiu o corpo, primeiro: superfície de suplícios; segundo: aquilo que deve ser
, apto a trabalhar na sociedade industrial-capitalista nascente
significações diferentes acerca do corpo9.
em Vigiar e punir que encontramos de forma explícita a
formulação desses dois modos de exercer o poder sobre o corpo: “o corpo dos condenados” e
Foucault partiu do estudo do corpo supliciado, o qual
vingança do poder real até fins do século XVIII. O corpo do condenado era a superfície
material sobre a qual o poder real se exercia. Castigar certos crimes até essa época era
se do corpo do súdito e sobre ele provocar sofrimentos calculados, graduados até o
termo final: a morte. Isto porque
Nas monarquias europeias, o crime era não somente descaso pela lei, transgressão. Era, a um só tempo, uma espécie de ultraje feito ao rei. Todo crime era, por assim dizer, um pequeno regicídio. Atacava-se não apenas a vontade do rei, mas também, de algum modo, sua força física. Na mesma medida, a pena era a reação do poder real contra o criminoso10 (FOUCAULT, 2012a, p. 105-106).
Isto é, “a pena era a reação do poder real” sobre o corpo do criminoso.
dos suplícios havia uma outra forma de exercício de poder sobre o corpo. Fora do campo da
De acordo com Dreyfus e Rabinow (2010, p. 151), em referência a História da loucura
: “Desde o início ele se interessou pelo corpo conforme era investigado pelos cientistas e pelo poder que especializadas. Mais recentemente, Foucault reconheceu que essa potente relação entre
saber e poder, localizada no corpo, é, na verdade, um mecanismo geral de poder da maior importância para a
Sobre o ritual do suplício: as primeiras páginas de Vigiar e punir descrevem o suplício de Damiens em 1757
ISSN 2176-9249
159
CORPO: DOS SUPLÍCIOS AO ADESTRAMENTO DISCIPLINAR
por outro lado, é sob outra perspectiva que Foucault abordou o
corpo: poder e corpo se articulam, é sobre ele que o poder se exerce. E que corpo é este, como
Se fizéssemos uma história do controle social do corpo, poderíamos mostrar que, até o século XVIII inclusive, o corpo dos indivíduos é essencialmente a superfície de inscrição de suplícios e de penas; o corpo era feito para ser supliciado e castigado. Já nas instâncias de controle que surgem a partir do século XIX, o corpo adquire uma
totalmente diferente; ele não é mais o que deve ser supliciado, mas o que deve ser formado, reformado, corrigido, o que deve adquirir aptidões, receber
se como corpo capaz de trabalhar
Para que se possa compreender o lugar, a posição que o corpo ocupou nas
aqui estudado, essa passagem – de A verdade e
te ponto de partida. Dois modos pelos quais o
poder investiu o corpo, primeiro: superfície de suplícios; segundo: aquilo que deve ser
capitalista nascente. Daí duas
que encontramos de forma explícita a
formulação desses dois modos de exercer o poder sobre o corpo: “o corpo dos condenados” e
liciado, o qual era exposto à
vingança do poder real até fins do século XVIII. O corpo do condenado era a superfície
material sobre a qual o poder real se exercia. Castigar certos crimes até essa época era
sofrimentos calculados, graduados até o
Nas monarquias europeias, o crime era não somente descaso pela lei, transgressão. Era, a um só tempo, uma espécie de ultraje feito ao rei. Todo crime era, por assim
se não apenas a vontade do rei, mas também, de algum modo, sua força física. Na mesma medida, a pena era a reação do poder
106).
Isto é, “a pena era a reação do poder real” sobre o corpo do criminoso. Mas, ao lado
dos suplícios havia uma outra forma de exercício de poder sobre o corpo. Fora do campo da
História da loucura e o Nascimento da : “Desde o início ele se interessou pelo corpo conforme era investigado pelos cientistas e pelo poder que
especializadas. Mais recentemente, Foucault reconheceu que essa potente relação entre saber e poder, localizada no corpo, é, na verdade, um mecanismo geral de poder da maior importância para a
descrevem o suplício de Damiens em 1757
OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol.
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Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir
Lei e ao lado dele uma forma menos visível de poder, mais sutil, corria toda
poder disciplinar. O qual na virada do sécul
impondo a prisão como a pena universal por excelência
Direito, até início do XIX, era marcado, destroçado, havia
poder que dele fazia outro uso. Sua ação era mais da ordem da modelagem, da ortopedia, do
exercício do que da destruição, da violência calculada e da morte.
Ora, ao menos duas formas diferentes de se tratar o corpo coexis
ocidentais durante o século XVIII. Mas aos poucos, de acordo com uma necessidade de
ordem econômica e social, o poder em sua forma positiva passa a ocupar cada vez mais
espaço. Sai de cena o corpo supliciado e cada vez mais fica em evid
seja nas instâncias da justiça penal, seja em toda a sociedade. Assim, para que se possa
compreender o exercício do poder
É preciso, em primeiro lugar, afastar uma tese muito difundida, segundo a qual o poder nas sociproveito da alma, da consciência, da idealidade. Na verdade, nada é mais material, nada é mais físico, mais corporal que o exercício do poder... Qual é o tipo de investimento do corpo quesociedade capitalista como a nossa? Eu penso que do século XVII ao início do século XX, acreditourígido, constante, meticuloso. Daí esses terríveconcentram nas escolas, nos hospitais, nas casernas, nas oficinas, nas cidades, nos edifícios,
Antes de se exercer sobre alma (a subjetividade, a consciência) o poder visa ao
E se “atinge” a alma é porque antes atingiu o corpo: alma, subjetividade seriam produtos do
exercício do poder sobre o corpo, as quais serviriam de instrumentos para melhor prendê
malhas do poder, serviriam para reforçar seu domínio sobre ele
corpo do adulto, da criança
aquilo, por exemplo, que a psicologia se atribui como objeto, é antes efeito do poder sobre o
corpo. Pois, o poder disciplinar ope
identifica poder à proibição, torna
Dessa forma se quisermos efetivar um
considerar que o alvo primeiro do poder é o corpo, mas também
11 “De onde vem a prisão? Eu responderia: ‘um pouco de todas as partes’. Houve ‘invenção’, sem dúvida, mas invenção de toda uma técnica de vigilância, de controle, degestos, de sua atividade, de sua eficácia. E isso, a partir do século XVI e XVII, no exército, nos colégios, escolas, hospitais, ateliês. Uma tecnologia do poder apurado e cotidiano, do poder sobre os coúltima dessa era das disciplinas” (FOUCAULT, 2012, p. 33). 12 “Não se deveria dizer que a alma é uma ilusão, ou um efeito ideológico, mas afirmar que ela existe, que tem uma realidade, que é produzida permanentemente, em torno, na superfície, no interior do corpo pelo funcionamento de um poder que se exerce sobre osvigiados, treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, [...]” (FOUCAULT, 2009, p. 32).
Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016
Artigos
Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir
Lei e ao lado dele uma forma menos visível de poder, mais sutil, corria toda
qual na virada do século XVIII para o XIX colonizaria o
impondo a prisão como a pena universal por excelência11. Ou seja, se o corpo no âmbito do
Direito, até início do XIX, era marcado, destroçado, havia paralelamente outra tecnologia de
poder que dele fazia outro uso. Sua ação era mais da ordem da modelagem, da ortopedia, do
exercício do que da destruição, da violência calculada e da morte.
Ora, ao menos duas formas diferentes de se tratar o corpo coexis
ocidentais durante o século XVIII. Mas aos poucos, de acordo com uma necessidade de
ordem econômica e social, o poder em sua forma positiva passa a ocupar cada vez mais
espaço. Sai de cena o corpo supliciado e cada vez mais fica em evidência o corpo adestrado,
seja nas instâncias da justiça penal, seja em toda a sociedade. Assim, para que se possa
compreender o exercício do poder disciplinar:
É preciso, em primeiro lugar, afastar uma tese muito difundida, segundo a qual o poder nas sociedades burguesas e capitalistas teria negado a realidade do corpo em proveito da alma, da consciência, da idealidade. Na verdade, nada é mais material, nada é mais físico, mais corporal que o exercício do poder... Qual é o tipo de investimento do corpo que é necessário e suficiente ao funcionamento de uma sociedade capitalista como a nossa? Eu penso que do século XVII ao início do século XX, acreditou-se que o investimento do corpo pelo poder devia ser denso, rígido, constante, meticuloso. Daí esses terríveis regimes disciplinares que se concentram nas escolas, nos hospitais, nas casernas, nas oficinas, nas cidades, nos edifícios, nas famílias... (FOUCAULT, 2004a, p. 147-148).
Antes de se exercer sobre alma (a subjetividade, a consciência) o poder visa ao
E se “atinge” a alma é porque antes atingiu o corpo: alma, subjetividade seriam produtos do
exercício do poder sobre o corpo, as quais serviriam de instrumentos para melhor prendê
malhas do poder, serviriam para reforçar seu domínio sobre ele. Adestra
adulto, da criança e só a partir daí constitui-se a alma de um e de outro
aquilo, por exemplo, que a psicologia se atribui como objeto, é antes efeito do poder sobre o
corpo. Pois, o poder disciplinar opera produzindo, de modo que a noção de repressão
identifica poder à proibição, torna-se inútil quando adentramos esses campos de análise.
Dessa forma se quisermos efetivar uma investigação consistente, torna
rimeiro do poder é o corpo, mas também
“De onde vem a prisão? Eu responderia: ‘um pouco de todas as partes’. Houve ‘invenção’, sem dúvida, mas
invenção de toda uma técnica de vigilância, de controle, de identificação dos indivíduos, enquadramento de seus gestos, de sua atividade, de sua eficácia. E isso, a partir do século XVI e XVII, no exército, nos colégios, escolas, hospitais, ateliês. Uma tecnologia do poder apurado e cotidiano, do poder sobre os coúltima dessa era das disciplinas” (FOUCAULT, 2012, p. 33).
“Não se deveria dizer que a alma é uma ilusão, ou um efeito ideológico, mas afirmar que ela existe, que tem uma realidade, que é produzida permanentemente, em torno, na superfície, no interior do corpo pelo funcionamento de um poder que se exerce sobre os que são punidos – de uma maneira geral sobre os que são vigiados, treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, [...]” (FOUCAULT, 2009, p. 32).
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Lei e ao lado dele uma forma menos visível de poder, mais sutil, corria toda a sociedade: o
o XVIII para o XIX colonizaria o Direito penal,
. Ou seja, se o corpo no âmbito do
paralelamente outra tecnologia de
poder que dele fazia outro uso. Sua ação era mais da ordem da modelagem, da ortopedia, do
Ora, ao menos duas formas diferentes de se tratar o corpo coexistiam nas sociedades
ocidentais durante o século XVIII. Mas aos poucos, de acordo com uma necessidade de
ordem econômica e social, o poder em sua forma positiva passa a ocupar cada vez mais
ência o corpo adestrado,
seja nas instâncias da justiça penal, seja em toda a sociedade. Assim, para que se possa
É preciso, em primeiro lugar, afastar uma tese muito difundida, segundo a qual o edades burguesas e capitalistas teria negado a realidade do corpo em
proveito da alma, da consciência, da idealidade. Na verdade, nada é mais material, nada é mais físico, mais corporal que o exercício do poder... Qual é o tipo de
é necessário e suficiente ao funcionamento de uma sociedade capitalista como a nossa? Eu penso que do século XVII ao início do
se que o investimento do corpo pelo poder devia ser denso, is regimes disciplinares que se
concentram nas escolas, nos hospitais, nas casernas, nas oficinas, nas cidades, nos 148).
Antes de se exercer sobre alma (a subjetividade, a consciência) o poder visa ao corpo.
E se “atinge” a alma é porque antes atingiu o corpo: alma, subjetividade seriam produtos do
exercício do poder sobre o corpo, as quais serviriam de instrumentos para melhor prendê-lo às
. Adestra-se, torna-se dócil o
se a alma de um e de outro12. No limite
aquilo, por exemplo, que a psicologia se atribui como objeto, é antes efeito do poder sobre o
e modo que a noção de repressão, que
se inútil quando adentramos esses campos de análise.
investigação consistente, torna-se importante não só
“De onde vem a prisão? Eu responderia: ‘um pouco de todas as partes’. Houve ‘invenção’, sem dúvida, mas identificação dos indivíduos, enquadramento de seus
gestos, de sua atividade, de sua eficácia. E isso, a partir do século XVI e XVII, no exército, nos colégios, escolas, hospitais, ateliês. Uma tecnologia do poder apurado e cotidiano, do poder sobre os corpos. A prisão é a figura
“Não se deveria dizer que a alma é uma ilusão, ou um efeito ideológico, mas afirmar que ela existe, que tem uma realidade, que é produzida permanentemente, em torno, na superfície, no interior do corpo pelo
de uma maneira geral sobre os que são vigiados, treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, [...]” (FOUCAULT, 2009, p. 32).
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É preciso se distinguir dos pararepressão uma importância exagerada. Pois se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por meio da censura, da exclusão, do recalcamento, à maneira de um grande supermodo negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é porque produz efeitos positivos a nível do desejo saber.saber sobre o corpo, foi através de um conjunto de disciplinas militares e escolares. É a partir de um poder sobre o corpo que foi possível um saber fisiol(FOUCAULT
Portanto, o poder não só como forma compacta, limitadora, aliás, não uma forma, mas
o caráter produtivo do poder, o caráter relacional entre poder e saber, relação que é uma
constante nesse período no pensamento de Foucault. Pode
e Rabinow (2010, p. 140), que suas pesquisas nessa época tem como baliza uma tríade: “o
genealogista é aquele que diagnostica e se concentra nas relações de poder, saber e corpo na
sociedade moderna”. O intercâmbio, a artic
ele: a tecnologia política do corpo “[...]
– [...]” (DREYFUS; RABINOW, 2010, p. 151).
Esta tecnologia política do corpo é ativada ou posta em funcion
procedimentos disciplinares, que se exercem sobre ele de forma detalhada, mais sobre os
processos do que sobre os resultados. Técnicas sempre menores, se comparadas aos rituais do
poder soberano, minuciosas, mas muito mais eficazes por serem e
uma rede sobre a sociedade; a disciplina é em última instância, e daí sua astúcia: “[...] uma
anatomia política do detalhe” (FOUCAULT, 2009, p. 134).
Pode-se encontrar entre os textos dessa época um número considerável de
que façam referência ao corpo: “tecnologia política do corpo”; “anatomia política”; “anatomia
política do detalhe”; “ortopedia social”, pois, “um dos maiores empreendimentos de Foucault
foi sua habilidade de isolar e conceituar o modo pelo qual o co
essencial para a operação das relações de poder na sociedade moderna” (DREYFUS;
RABINOW, 2010, p. 150).
Se o corpo é objeto de um poder de tamanha flexibilidade e funcionalidade; se a partir
desse investimento sobre o corpo se c
somos, o que fazer? É possível um outro corpo que não seja o produto da disciplina
corpo indócil e inútil? Já que a disciplina o torna dócil e útil. Um corpo que seja improdutivo,
que não se deixe levar pelos objetivos da sociedade ocidental moderna. Corpo que não seja só
13 É possível uma sociedade que não esteja atravessada por dispositivos disciplinares? Provavelmente simedida em que eles fazem parte de uma formação históricadado a mudança. O próprio Foucault
Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016
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É preciso se distinguir dos para-marxistas como Marcuse, que dão à noção de repressão uma importância exagerada. Pois se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por meio da censura, da exclusão, do recalcamento, à maneira de um grande super-ego, se apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é porque produz efeitos positivos a nível do desejo – como se começa a conhecer saber. O poder, longe de impedir o saber, o produz. Se foi possível constituir um saber sobre o corpo, foi através de um conjunto de disciplinas militares e escolares. É a partir de um poder sobre o corpo que foi possível um saber fisiol(FOUCAULT, 2004a, p. 148-149).
poder não só como forma compacta, limitadora, aliás, não uma forma, mas
o caráter produtivo do poder, o caráter relacional entre poder e saber, relação que é uma
constante nesse período no pensamento de Foucault. Pode-se afirmar, como observou Dreyfus
e Rabinow (2010, p. 140), que suas pesquisas nessa época tem como baliza uma tríade: “o
genealogista é aquele que diagnostica e se concentra nas relações de poder, saber e corpo na
sociedade moderna”. O intercâmbio, a articulação dessa tríade daria forma a uma noção cara a
ele: a tecnologia política do corpo “[...] - o cruzamento das relações entre poder, saber e corpo
[...]” (DREYFUS; RABINOW, 2010, p. 151).
Esta tecnologia política do corpo é ativada ou posta em funcion
procedimentos disciplinares, que se exercem sobre ele de forma detalhada, mais sobre os
processos do que sobre os resultados. Técnicas sempre menores, se comparadas aos rituais do
poder soberano, minuciosas, mas muito mais eficazes por serem elas ininterruptas, formando
uma rede sobre a sociedade; a disciplina é em última instância, e daí sua astúcia: “[...] uma
anatomia política do detalhe” (FOUCAULT, 2009, p. 134).
se encontrar entre os textos dessa época um número considerável de
referência ao corpo: “tecnologia política do corpo”; “anatomia política”; “anatomia
política do detalhe”; “ortopedia social”, pois, “um dos maiores empreendimentos de Foucault
foi sua habilidade de isolar e conceituar o modo pelo qual o corpo se tornou o componente
essencial para a operação das relações de poder na sociedade moderna” (DREYFUS;
RABINOW, 2010, p. 150).
Se o corpo é objeto de um poder de tamanha flexibilidade e funcionalidade; se a partir
desse investimento sobre o corpo se constituiu o indivíduo que somos, o corpo sujeitado que
somos, o que fazer? É possível um outro corpo que não seja o produto da disciplina
corpo indócil e inútil? Já que a disciplina o torna dócil e útil. Um corpo que seja improdutivo,
levar pelos objetivos da sociedade ocidental moderna. Corpo que não seja só
É possível uma sociedade que não esteja atravessada por dispositivos disciplinares? Provavelmente si
que eles fazem parte de uma formação histórica e, como sabemos, tudo que é histórico é perecível, dado a mudança. O próprio Foucault na década de 1970 afirmava a crise da sociedade disciplinar.
ISSN 2176-9249
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marxistas como Marcuse, que dão à noção de repressão uma importância exagerada. Pois se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por meio da censura, da exclusão, do impedimento, do
ego, se apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é porque produz efeitos
como se começa a conhecer – e também a nível do O poder, longe de impedir o saber, o produz. Se foi possível constituir um
saber sobre o corpo, foi através de um conjunto de disciplinas militares e escolares. É a partir de um poder sobre o corpo que foi possível um saber fisiológico, orgânico
poder não só como forma compacta, limitadora, aliás, não uma forma, mas
o caráter produtivo do poder, o caráter relacional entre poder e saber, relação que é uma
e afirmar, como observou Dreyfus
e Rabinow (2010, p. 140), que suas pesquisas nessa época tem como baliza uma tríade: “o
genealogista é aquele que diagnostica e se concentra nas relações de poder, saber e corpo na
ulação dessa tríade daria forma a uma noção cara a
o cruzamento das relações entre poder, saber e corpo
Esta tecnologia política do corpo é ativada ou posta em funcionamento pelos
procedimentos disciplinares, que se exercem sobre ele de forma detalhada, mais sobre os
processos do que sobre os resultados. Técnicas sempre menores, se comparadas aos rituais do
las ininterruptas, formando
uma rede sobre a sociedade; a disciplina é em última instância, e daí sua astúcia: “[...] uma
se encontrar entre os textos dessa época um número considerável de expressões
referência ao corpo: “tecnologia política do corpo”; “anatomia política”; “anatomia
política do detalhe”; “ortopedia social”, pois, “um dos maiores empreendimentos de Foucault
rpo se tornou o componente
essencial para a operação das relações de poder na sociedade moderna” (DREYFUS;
Se o corpo é objeto de um poder de tamanha flexibilidade e funcionalidade; se a partir
onstituiu o indivíduo que somos, o corpo sujeitado que
somos, o que fazer? É possível um outro corpo que não seja o produto da disciplina13, um
corpo indócil e inútil? Já que a disciplina o torna dócil e útil. Um corpo que seja improdutivo,
levar pelos objetivos da sociedade ocidental moderna. Corpo que não seja só
É possível uma sociedade que não esteja atravessada por dispositivos disciplinares? Provavelmente sim, na como sabemos, tudo que é histórico é perecível,
década de 1970 afirmava a crise da sociedade disciplinar.
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produtor de objetos e mercadorias, que não seja produtor e fonte de saber, que não seja
consumidor e consumido. Em suma: é possível um corpo indisciplinado? Ora, é provável que
um outro corpo que não o formatado pela disciplina seja possível. Para tanto seria
imprescindível atacar a disciplina, fazer parar seus procedimentos e técnicas, desarranjar sua
rede, na medida em que é através deles que somos aquilo que somos enquanto corpo
disciplinados.
Mas, ainda que possível, isso não seria muito fácil, na medida em que o próprio
Foucault não apontou uma saída evidente, uma forma de se esquivar às malhas da disciplina, à
maquinaria panóptica, que cotidianamente toma uma multiplicidade q
treina e exercita, cria hábitos. O que fazer se a escola
desejável? O que fazer se com o exército
fora das demais instituições? Ou seja, o que fazer
indivíduos, mas já é parte inseparável da vida ordinária?
De modo mais radical e difí
passou e passa por muitas vias,
isto é, do modelo de exclusão do leproso ao modelo de inclusão do pestífero e, por fim, ao
panoptismo15. Seria um beco sem saída? Porque se o poder funciona em rede, e nós somos os
pontos de tal rede, aquilo que liga os fios de tal rede, como m
daquilo que nos constitui? Apresenta
notado. Vejamos: quando estudou os arquivos sobre “a vida dos homens infames” e preparou
um livro a partir desse material, Foucault e
Alguém me dirá: isso é bem próprio de você, sempre a mesma incapacidade de ultrapassar a linha, de passar para o outro lado, de escutar e fazer ouvir a linguagem que vem de outro lugar ou de baixo; sempre a mesma escolha, do lado dque ele diz ou do que ele faz dizer. Essas vidas, por que não ir escutápor elas próprias, elas falam? Mas, em primeiro lugar, do que elas foram em sua violência ou em sua desgraça singular, nos restaria qualquer coisa se elas não tivessem, em um dado momento, cruzado com o poder e provocado suas forças? Afinal, não é um dos traços fundamentais de nossa sociedade o fato de que nela o destino tome a força da relação com o poder, da luta com ou contramais intenso das vidse chocam com o poder, se debatem com ele, tentam utilizar suas forças ou escapar de suas armadilhas (2003
Nosso filósofo procurou justificar essa hipotética crítica a sua “incap
ultrapassar a linha”, isto é, sua incapacidade de estar fora do poder, assim: afirmou que aquilo
que estudou e doravante apresentaria a nós não poderia ser estudado se não fosse o poder. Foi
14 FOUCAULT, Michel. História da loucura na Id15 Sistematização/concentração das disciplinas em um projeto arquitetural (proposto pelo inglês Jeremy Bentham no final do XVIII) transferível e adaptável as mais variadas instituições: prisão, fábrica, hospital,
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produtor de objetos e mercadorias, que não seja produtor e fonte de saber, que não seja
consumidor e consumido. Em suma: é possível um corpo indisciplinado? Ora, é provável que
outro corpo que não o formatado pela disciplina seja possível. Para tanto seria
imprescindível atacar a disciplina, fazer parar seus procedimentos e técnicas, desarranjar sua
rede, na medida em que é através deles que somos aquilo que somos enquanto corpo
Mas, ainda que possível, isso não seria muito fácil, na medida em que o próprio
Foucault não apontou uma saída evidente, uma forma de se esquivar às malhas da disciplina, à
maquinaria panóptica, que cotidianamente toma uma multiplicidade qualquer e individualiza,
treina e exercita, cria hábitos. O que fazer se a escola-disciplina nos parece necessária e
desejável? O que fazer se com o exército-disciplina acontece o mesmo, e o mesmo dentro e
fora das demais instituições? Ou seja, o que fazer se a disciplina hoje não só fabrica
indivíduos, mas já é parte inseparável da vida ordinária?
De modo mais radical e difícil: Foucault descreveu que o controle sobre o indivíduo
passou e passa por muitas vias, do internamento dos desrazoados14 à disciplina
isto é, do modelo de exclusão do leproso ao modelo de inclusão do pestífero e, por fim, ao
. Seria um beco sem saída? Porque se o poder funciona em rede, e nós somos os
pontos de tal rede, aquilo que liga os fios de tal rede, como modificar isso? Como se esquivar
daquilo que nos constitui? Apresenta-se aqui um problema que o próprio Foucault parece ter
notado. Vejamos: quando estudou os arquivos sobre “a vida dos homens infames” e preparou
um livro a partir desse material, Foucault expôs assim o problema:
Alguém me dirá: isso é bem próprio de você, sempre a mesma incapacidade de ultrapassar a linha, de passar para o outro lado, de escutar e fazer ouvir a linguagem que vem de outro lugar ou de baixo; sempre a mesma escolha, do lado dque ele diz ou do que ele faz dizer. Essas vidas, por que não ir escutápor elas próprias, elas falam? Mas, em primeiro lugar, do que elas foram em sua violência ou em sua desgraça singular, nos restaria qualquer coisa se elas não tivessem, em um dado momento, cruzado com o poder e provocado suas forças? Afinal, não é um dos traços fundamentais de nossa sociedade o fato de que nela o destino tome a força da relação com o poder, da luta com ou contramais intenso das vidas, aquele em que se concentra sua energia, é bem ali onde elas se chocam com o poder, se debatem com ele, tentam utilizar suas forças ou escapar de suas armadilhas (2003a, p. 208).
Nosso filósofo procurou justificar essa hipotética crítica a sua “incap
ultrapassar a linha”, isto é, sua incapacidade de estar fora do poder, assim: afirmou que aquilo
que estudou e doravante apresentaria a nós não poderia ser estudado se não fosse o poder. Foi
História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 2008a.
ão das disciplinas em um projeto arquitetural (proposto pelo inglês Jeremy Bentham no final do XVIII) transferível e adaptável as mais variadas instituições: prisão, fábrica, hospital,
ISSN 2176-9249
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produtor de objetos e mercadorias, que não seja produtor e fonte de saber, que não seja
consumidor e consumido. Em suma: é possível um corpo indisciplinado? Ora, é provável que
outro corpo que não o formatado pela disciplina seja possível. Para tanto seria
imprescindível atacar a disciplina, fazer parar seus procedimentos e técnicas, desarranjar sua
rede, na medida em que é através deles que somos aquilo que somos enquanto corpos
Mas, ainda que possível, isso não seria muito fácil, na medida em que o próprio
Foucault não apontou uma saída evidente, uma forma de se esquivar às malhas da disciplina, à
ualquer e individualiza,
disciplina nos parece necessária e
disciplina acontece o mesmo, e o mesmo dentro e
se a disciplina hoje não só fabrica
que o controle sobre o indivíduo
à disciplina do soldado;
isto é, do modelo de exclusão do leproso ao modelo de inclusão do pestífero e, por fim, ao
. Seria um beco sem saída? Porque se o poder funciona em rede, e nós somos os
odificar isso? Como se esquivar
se aqui um problema que o próprio Foucault parece ter
notado. Vejamos: quando estudou os arquivos sobre “a vida dos homens infames” e preparou
Alguém me dirá: isso é bem próprio de você, sempre a mesma incapacidade de ultrapassar a linha, de passar para o outro lado, de escutar e fazer ouvir a linguagem que vem de outro lugar ou de baixo; sempre a mesma escolha, do lado do poder, do que ele diz ou do que ele faz dizer. Essas vidas, por que não ir escutá-las lá onde, por elas próprias, elas falam? Mas, em primeiro lugar, do que elas foram em sua violência ou em sua desgraça singular, nos restaria qualquer coisa se elas não tivessem, em um dado momento, cruzado com o poder e provocado suas forças? Afinal, não é um dos traços fundamentais de nossa sociedade o fato de que nela o destino tome a força da relação com o poder, da luta com ou contra ele? O ponto
as, aquele em que se concentra sua energia, é bem ali onde elas se chocam com o poder, se debatem com ele, tentam utilizar suas forças ou escapar
Nosso filósofo procurou justificar essa hipotética crítica a sua “incapacidade de
ultrapassar a linha”, isto é, sua incapacidade de estar fora do poder, assim: afirmou que aquilo
que estudou e doravante apresentaria a nós não poderia ser estudado se não fosse o poder. Foi
. São Paulo: Perspectiva, 2008a. ão das disciplinas em um projeto arquitetural (proposto pelo inglês Jeremy Bentham
no final do XVIII) transferível e adaptável as mais variadas instituições: prisão, fábrica, hospital, escola.
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na medida em que vidas e técnicas de poder se encontra
perdidas de uma vez por todas, puderam ocupar um lugar nos arquivos da história: existências
cotidianas e ordinárias que ao se chocarem com o poder puderam ser anotadas, escritas e
registradas. Deleuze na pista do mesmo pr
O sujeito é sempre uma derivada. Ele nasce e se esvai na espessura do que se diz, do que se vê. Foucault tirará daí uma concepção muito curiosa do ‘homem infame’, [...]. O homem infame é [...] o homem comum, o homem qualquer, bruscameniluminado por um fato corriqueiro, queixa dos vizinhos, presença da polícia, processo... É o homem confrontado ao Poder, intimado a falar e se mostrar (DELEUZE, 1992, p. 134).
O homem infame, que é o homem comum, e nós que também somos homens comuns
somos uma derivada, na medida em que estamos sempre em embate com o poder disciplinar
do nascimento à morte. Essa tecnologia de poder que marca a vida de todos à toda hora, como
dela se esquivar? Voltamos aqui, portanto, ao ponto inicial, como constituir u
indisciplinado, não normalizado, não enquadrado e fabricado? Ou ao menos, como constituir
um corpo que volta os procedimentos disciplinares a seu favor? Sabe
encera uma negatividade, pelo contrário, é antes produtiva, mas é
torna dócil-útil, corpo dócil que obedece, corpo útil que produz. O importante talvez fosse
voltar a produtividade da disciplina a outros objetivos, um corpo disciplinado que dança,
como o do bailarino16. Ou dois exemplos que nos vêm d
corpo do faquir. Corpos forjados sob práticas ascéticas, sobre os quais se poderia dizer: “mas
não participam da cultura Ocidental, portanto não são alvos do tipo de poder que se
desenvolveu aqui”. Ao que se poderia respon
que é a disciplina tal como a conhecemos, mas que servem de exemplo, e mostram outras
possíveis configurações do corpo”. Um corpo ascético, e “disciplinado” (todavia, uma
disciplina que desafia a nossa e, portan
si mesmo, que adestrando
teríamos, em relação ao corpo disciplinado de todos os dias, um heterocorpo. Talvez por isso
esses corpos orientais nos pareçam exóticos, na medida em que enceram o outro daquilo que
16 E assim desarticular os dispositivos disciplinares pondo em xeque a sua necessidade. 17 Sobre esse ponto acerca do Oriente e Ocidente: “essa dissolução da constrangedora subjetividade europeia que nos foi imposta pela cultura a partir do século que o zen budismo me interessa. [...] as regras da espiritualidade budista devem tender a desindividualização, a uma dessubjetivação, a fazer passar a individualidade aos seus limites visarespeito ao sujeito” (FOUCAULT, 2011já não sejam uma saída, um modo de dessubjetivação e subjetivação: pois elas cada vez mais são capturadas pelas forças do capitalismo. Em que o corpo autodisciplinado propalado pelos adeptos ocidentais da ioga, por exemplo, talvez não passe de um objeto estético exposto na vitrine do mundo.
Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016
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na medida em que vidas e técnicas de poder se encontraram que essas vidas, que estariam
perdidas de uma vez por todas, puderam ocupar um lugar nos arquivos da história: existências
cotidianas e ordinárias que ao se chocarem com o poder puderam ser anotadas, escritas e
registradas. Deleuze na pista do mesmo problema, afirmou que
O sujeito é sempre uma derivada. Ele nasce e se esvai na espessura do que se diz, do que se vê. Foucault tirará daí uma concepção muito curiosa do ‘homem infame’, [...]. O homem infame é [...] o homem comum, o homem qualquer, bruscameniluminado por um fato corriqueiro, queixa dos vizinhos, presença da polícia, processo... É o homem confrontado ao Poder, intimado a falar e se mostrar (DELEUZE, 1992, p. 134).
O homem infame, que é o homem comum, e nós que também somos homens comuns
somos uma derivada, na medida em que estamos sempre em embate com o poder disciplinar
do nascimento à morte. Essa tecnologia de poder que marca a vida de todos à toda hora, como
dela se esquivar? Voltamos aqui, portanto, ao ponto inicial, como constituir u
indisciplinado, não normalizado, não enquadrado e fabricado? Ou ao menos, como constituir
um corpo que volta os procedimentos disciplinares a seu favor? Sabe-se que a disciplina não
encera uma negatividade, pelo contrário, é antes produtiva, mas é uma produtividade que
útil, corpo dócil que obedece, corpo útil que produz. O importante talvez fosse
voltar a produtividade da disciplina a outros objetivos, um corpo disciplinado que dança,
. Ou dois exemplos que nos vêm do Oriente17: o corpo do iogue, e o
corpo do faquir. Corpos forjados sob práticas ascéticas, sobre os quais se poderia dizer: “mas
não participam da cultura Ocidental, portanto não são alvos do tipo de poder que se
desenvolveu aqui”. Ao que se poderia responder: “corpos não ocidentais, que não sabem o
que é a disciplina tal como a conhecemos, mas que servem de exemplo, e mostram outras
possíveis configurações do corpo”. Um corpo ascético, e “disciplinado” (todavia, uma
disciplina que desafia a nossa e, portanto, implicando em indisciplina), mas que se volta sobre
si mesmo, que adestrando-se, se adestra para que o domínio sobre si seja maior; assim
teríamos, em relação ao corpo disciplinado de todos os dias, um heterocorpo. Talvez por isso
s nos pareçam exóticos, na medida em que enceram o outro daquilo que
E assim desarticular os dispositivos disciplinares pondo em xeque a sua necessidade. Sobre esse ponto acerca do Oriente e Ocidente: “essa dissolução da constrangedora subjetividade europeia que
nos foi imposta pela cultura a partir do século XIX é ainda o que está em jogo, penso eu, nas lutas atuais. É nisso que o zen budismo me interessa. [...] as regras da espiritualidade budista devem tender a desindividualização, a uma dessubjetivação, a fazer passar a individualidade aos seus limites visando a uma libertação no que diz
ito ao sujeito” (FOUCAULT, 2011, p. 244-245). Embora se deva notar que hoje as práticas orientais talvez já não sejam uma saída, um modo de dessubjetivação e subjetivação: pois elas cada vez mais são capturadas
rças do capitalismo. Em que o corpo autodisciplinado propalado pelos adeptos ocidentais da ioga, por exemplo, talvez não passe de um objeto estético exposto na vitrine do mundo.
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ram que essas vidas, que estariam
perdidas de uma vez por todas, puderam ocupar um lugar nos arquivos da história: existências
cotidianas e ordinárias que ao se chocarem com o poder puderam ser anotadas, escritas e
O sujeito é sempre uma derivada. Ele nasce e se esvai na espessura do que se diz, do que se vê. Foucault tirará daí uma concepção muito curiosa do ‘homem infame’, [...]. O homem infame é [...] o homem comum, o homem qualquer, bruscamente iluminado por um fato corriqueiro, queixa dos vizinhos, presença da polícia, processo... É o homem confrontado ao Poder, intimado a falar e se mostrar
O homem infame, que é o homem comum, e nós que também somos homens comuns
somos uma derivada, na medida em que estamos sempre em embate com o poder disciplinar
do nascimento à morte. Essa tecnologia de poder que marca a vida de todos à toda hora, como
dela se esquivar? Voltamos aqui, portanto, ao ponto inicial, como constituir um corpo
indisciplinado, não normalizado, não enquadrado e fabricado? Ou ao menos, como constituir
se que a disciplina não
uma produtividade que
útil, corpo dócil que obedece, corpo útil que produz. O importante talvez fosse
voltar a produtividade da disciplina a outros objetivos, um corpo disciplinado que dança,
: o corpo do iogue, e o
corpo do faquir. Corpos forjados sob práticas ascéticas, sobre os quais se poderia dizer: “mas
não participam da cultura Ocidental, portanto não são alvos do tipo de poder que se
der: “corpos não ocidentais, que não sabem o
que é a disciplina tal como a conhecemos, mas que servem de exemplo, e mostram outras
possíveis configurações do corpo”. Um corpo ascético, e “disciplinado” (todavia, uma
to, implicando em indisciplina), mas que se volta sobre
se, se adestra para que o domínio sobre si seja maior; assim
teríamos, em relação ao corpo disciplinado de todos os dias, um heterocorpo. Talvez por isso
s nos pareçam exóticos, na medida em que enceram o outro daquilo que
E assim desarticular os dispositivos disciplinares pondo em xeque a sua necessidade. Sobre esse ponto acerca do Oriente e Ocidente: “essa dissolução da constrangedora subjetividade europeia que
XIX é ainda o que está em jogo, penso eu, nas lutas atuais. É nisso que o zen budismo me interessa. [...] as regras da espiritualidade budista devem tender a desindividualização, a
ndo a uma libertação no que diz Embora se deva notar que hoje as práticas orientais talvez
já não sejam uma saída, um modo de dessubjetivação e subjetivação: pois elas cada vez mais são capturadas rças do capitalismo. Em que o corpo autodisciplinado propalado pelos adeptos ocidentais da ioga, por
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somos. É certo que isso talvez pareça um exagero, na medida em que o mundo há vários
séculos se torna maior e menor ao mesmo tempo, isto é, as distâncias se apagam cada vez
mais e com isso as diferenças. Mas é provável que ainda possam existir muitos tipos de
corpos indisciplinados, até mesmo entre nós. Vejamos dois exemplos da literatura moderna
usados por Pelbart, o corpo magro do jejuador (Kafka, “Um artista da fome”), e o corpo
raquítico de Bartleby (Melville, “Bartleby, o escrivão”):
pensemos na fragilidade desses corpos, próximos do inumano, em posturas que tangenciam a morte, e que no entanto enceram uma estranha obstinação, uma recusa inabalável. Nessa renúncia ao mundo pressentimafirma algo essencial do próprio mundo. Nesses seres somos confrontados a uma surdez que é uma audição, uma cegueira que é uma vidência, um torpor que é uma sensibilidade exacerbada, uma apatia que é puro indício de uma vitalidade superior (PELBART, 2003, p. 43
Em ambos, o jejuador e Bartleby, imagens de corpos frágeis, mas que atestam uma
recusa inabalável, recusa do quê? Poderíamos dizer que é uma recusa ao sistema de coerção
da disciplina, que toma para si o corpo de cada um de nós e molda, adestra. Em ambos uma
recusa que é uma marca de resistência, ainda que essa resistência possa conduzir à morte.
Portanto, um outro corpo que não o disciplinado pode existir, contudo é sempre um
risco que nos levaria ao limite de nós mesmos.
que levar aos limites as possibilidades de configuração de outros corpos, de outros modos de
vida, isto é, novas formas de subjetividades.
CONCLUSÃO A trajetória aqui efetivada
estudado, antes da década de 1970, o corpo.
entanto, como se mostrou, corpo
outro lado, vimos que o corpo também foi compreendido pelo filósofo francês enquanto
objeto e alvo de poder, poder disciplinar: na
corpo é o lugar onde se exerce um tipo de poder com o
normal, o qual é, ou deve ser, politicamente dócil e economicamente útil. Por fim, diante da
necessidade de se avançar sobre a maquinaria disciplinar e fabricar outro corpo, pensou
um corpo inútil e indócil, contradis
ataque às disciplinas e fabricação de um outro corpo (isto é, uma outra subjetividade), seja
importante a potência utópica do corpo: isto é, talvez contra o poder
opor esta potência-criadora
Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016
Artigos
Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir
somos. É certo que isso talvez pareça um exagero, na medida em que o mundo há vários
séculos se torna maior e menor ao mesmo tempo, isto é, as distâncias se apagam cada vez
o as diferenças. Mas é provável que ainda possam existir muitos tipos de
corpos indisciplinados, até mesmo entre nós. Vejamos dois exemplos da literatura moderna
usados por Pelbart, o corpo magro do jejuador (Kafka, “Um artista da fome”), e o corpo
co de Bartleby (Melville, “Bartleby, o escrivão”):
pensemos na fragilidade desses corpos, próximos do inumano, em posturas que tangenciam a morte, e que no entanto enceram uma estranha obstinação, uma recusa inabalável. Nessa renúncia ao mundo pressentimos o signo de uma resistência. Aí se afirma algo essencial do próprio mundo. Nesses seres somos confrontados a uma surdez que é uma audição, uma cegueira que é uma vidência, um torpor que é uma sensibilidade exacerbada, uma apatia que é puro páthosindício de uma vitalidade superior (PELBART, 2003, p. 43
Em ambos, o jejuador e Bartleby, imagens de corpos frágeis, mas que atestam uma
recusa inabalável, recusa do quê? Poderíamos dizer que é uma recusa ao sistema de coerção
sciplina, que toma para si o corpo de cada um de nós e molda, adestra. Em ambos uma
recusa que é uma marca de resistência, ainda que essa resistência possa conduzir à morte.
Portanto, um outro corpo que não o disciplinado pode existir, contudo é sempre um
risco que nos levaria ao limite de nós mesmos. E a resistência talvez não seja nada mais do
que levar aos limites as possibilidades de configuração de outros corpos, de outros modos de
vida, isto é, novas formas de subjetividades.
efetivada, a partir do corpo utópico, mostra que Foucault já havia
estudado, antes da década de 1970, o corpo. À primeira vista corpo-lugar, corpo
entanto, como se mostrou, corpo-utópico, e ponto a partir do qual deriva a(s) utopia(s)
outro lado, vimos que o corpo também foi compreendido pelo filósofo francês enquanto
objeto e alvo de poder, poder disciplinar: na perspectiva de Foucault desde
corpo é o lugar onde se exerce um tipo de poder com o objetivo de fabricar o indivíduo
normal, o qual é, ou deve ser, politicamente dócil e economicamente útil. Por fim, diante da
necessidade de se avançar sobre a maquinaria disciplinar e fabricar outro corpo, pensou
um corpo inútil e indócil, contradisciplinar, mas autodisciplinado. Talvez também para tal
ataque às disciplinas e fabricação de um outro corpo (isto é, uma outra subjetividade), seja
importante a potência utópica do corpo: isto é, talvez contra o poder-
criadora, esta fábrica do possível.
ISSN 2176-9249
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somos. É certo que isso talvez pareça um exagero, na medida em que o mundo há vários
séculos se torna maior e menor ao mesmo tempo, isto é, as distâncias se apagam cada vez
o as diferenças. Mas é provável que ainda possam existir muitos tipos de
corpos indisciplinados, até mesmo entre nós. Vejamos dois exemplos da literatura moderna
usados por Pelbart, o corpo magro do jejuador (Kafka, “Um artista da fome”), e o corpo
pensemos na fragilidade desses corpos, próximos do inumano, em posturas que tangenciam a morte, e que no entanto enceram uma estranha obstinação, uma recusa
os o signo de uma resistência. Aí se afirma algo essencial do próprio mundo. Nesses seres somos confrontados a uma surdez que é uma audição, uma cegueira que é uma vidência, um torpor que é uma
páthos, uma fragilidade que é indício de uma vitalidade superior (PELBART, 2003, p. 43-44).
Em ambos, o jejuador e Bartleby, imagens de corpos frágeis, mas que atestam uma
recusa inabalável, recusa do quê? Poderíamos dizer que é uma recusa ao sistema de coerção
sciplina, que toma para si o corpo de cada um de nós e molda, adestra. Em ambos uma
recusa que é uma marca de resistência, ainda que essa resistência possa conduzir à morte.
Portanto, um outro corpo que não o disciplinado pode existir, contudo é sempre um risco, um
E a resistência talvez não seja nada mais do
que levar aos limites as possibilidades de configuração de outros corpos, de outros modos de
, a partir do corpo utópico, mostra que Foucault já havia
lugar, corpo-limite. No
riva a(s) utopia(s). Por
outro lado, vimos que o corpo também foi compreendido pelo filósofo francês enquanto
perspectiva de Foucault desde o século XVII o
objetivo de fabricar o indivíduo
normal, o qual é, ou deve ser, politicamente dócil e economicamente útil. Por fim, diante da
necessidade de se avançar sobre a maquinaria disciplinar e fabricar outro corpo, pensou-se em
ciplinar, mas autodisciplinado. Talvez também para tal
ataque às disciplinas e fabricação de um outro corpo (isto é, uma outra subjetividade), seja
-que-enquadra deva-se
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OLHARES PLURAIS - Artigos
Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir
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Os dispositivos de poder e o corpo em Vigiar e punir .