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OLHAR INQUIETO – O GESTO POÉTICO EM SEGALL E DRUMMOND
Ana Lucia Beck
RESUMO Flusser define a consciência melancólica de si enquanto elaborada a partir de um movimento pendular do sujeito entre o morar e o estar no mundo. Valéry, por sua vez, define a obra poética enquanto ato; gesto poético que necessariamente se efetiva como movimento entre objeto e espírito. Tais definições delimitam a abordagem comparatista entre o desenho de Lasar Segall e a poesia de Carlos Drummond de Andrade a partir das críticas de Mario de Andrade e de Antonio Candido respectivamente. Fundamentadas sobre a noção de inquietude, caracterizada como gesto poético derivado do olhar para si e para o mundo, que se revela na forma poética. Tais pressupostos e enfoque metodológico aproximam os modernismos visual e literário brasileiros, sugerindo certa perspectiva à reflexão sobre nossa particularidade de nação. PALAVRAS-CHAVE Lasar Segall, Carlos Drummond de Andrade, Modernismo Brasileiro. ABSTRACT- RESTLESS GAZE - DRUMMOND‟S AND SEGALL‟S POETIC GESTURE Flusser identifies a sad consciousness of self as intrinsically connected to a subject‟s movement between living and being in the world. Whereas Valéry defines poetry as an act which establishes a poetic gesture effectively moving between object and spirit. Such definitions enable a comparatist approach to Lasar Segall‟s drawings and Carlos Drummond‟s poetry according to the critical considerations of Mario de Andrade and Antonio Candido respectively. Based on these, the poetic gesture characterises itself as restless gaze turned between self and world, a restlessness traced in the poetic form. Such perspective and methodology propose an approximation between Brazilian modernist visual art and poetry, further suggesting issues regarding the nations‟ identity. KEYWORDS Lasar Segall, Carlos Drummond de Andrade, Brazilian Modernism.
BECK, Ana Lúcia. Olhar inquieto – o gesto poético em Segall e Drummond, In Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 26o, 2017, Campinas. Anais do 26o Encontro da Anpap. Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas, 2017. p.1277-1290.
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Der Mensh ist ein wohnendes, aber nicht notwendigerweise ein beheimates Wesen. Er muss wohnen, um Mensh sein zu können, denn die Wohnung und ihre Gewonheiten erlaubem ihm erst, die Geräusche der Welt in Informationen umzuarbeiten, und die Welt wahrzunehmen. Das menschliche Dasein ist ein Pendeln zwischen Wohnung und Welt, zwischen Privatem und Öffentlichen, es ist ein Privatisieren von Öffenlichem und ein Publizieren von Privatem. Dieses Pendeln ist das „unglückliche Bewustsein„. (FLUSSER, Heimat und Heimatlosigkeit).
[...] a obra do espírito só existe como ato. Fora desse ato, o que permanece é apenas um objeto que não oferece qualquer relação com o espírito. (VALÉRY, 1999, p. 185).
Considerada um “divisor de águas” (SIMIONI, 2013, p. 2), a Semana de Arte
Moderna marca o nascimento da arte moderna brasileira inaugurando também certa
tradição caracterizada pelo “semanismo” identificado por Herkenhoff (2002, p. 30-
44). É no sentido de ampliar o debate sobre as características do modernismo
brasileiro que o presente estudo visa contribuir aproximando as artes visuais e a
literatura brasileiras relativamente à dinâmica entre obra e processo de criação.
Deste modo, propõe-se uma aproximação comparatista [1] entre certos desenhos de
Lasar Segall (1891-1957) e poesias de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987).
Tal enfoque detém-se em 3 retratos de brasileiros negros anônimos, elaborados por
Segall na década de 20 e emBrejo das Almas, segundo livro de poesias de
Drummond, lançado em 1934; fundamentando-se no uso da noção de inquietude
tanto por Mario de Andrade como por Antonio Candido [2] ao caracterizarem tais
produções respectivamente. A noção de inquietude convida à aproximação entre as
artes visuais e a poesia ao permitir a identificação de uma faceta comum do gesto
poético de ambos os criadores.
Tal aproximação se articula sobre o pressuposto da obra enquanto reveladora de um
processo de criação tensionado entre três eixos; a saber, o olhar do criador para si
mesmo e para o mundo; o olhar do criador para a própria obra; o olhar que esta
devolve ao criador. Constitui-se assim uma dinâmica de criação que se revela na
“ação que faz”, para recuperar a noção valeriana (VALÉRY, 1999, p. 181),
considerando o olhar essencial ao processo de criação. A ação que faz, porém,
como bem detalha Molina ao aproximar a concepção valeriana ao desenho
(MOLINA, 2006, p. 145-148), é em tudo evidente neste último considerado enquanto
produto revelador de seu próprio processo constitutivo. Ação que se faz no risco,
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que se acumula em rasura. Ação que, na dimensão do processo de criação, se
assemelha ao desenho compositivo das imagens poéticas.
A situação de Segall A presença artística de Segall no Brasil inicia-se com exposições nas cidades de
São Paulo e Campinas em 1913, em função da estadia do artista no Brasil para
visitar parentes emigrados. À época, o impacto de pinturas como Aldeia Russa
(figura 1) pode ser inferido tomando-se por indicativo a notória reação às obras de
Anita Malfatti em 1917 (SIMIONI, 2013, p. 2).
Figura1: Lasar Segall (1891-1957)
AldeiaRussa, 1912 Oleo sobre tela
http://www.museusegall.org.br/img/upload/obras/mls0003.jpg
Figura 2: Lasar Segall(1891-1957) Mário na rede, 1930 Gravura em metal
http://www.pinakotheke.com.br/new/imagens/imprensa/25-23-68.jpg
Desde sua chegada ao Brasil, Segall exerceu importante influência no meio cultural,
desenvolvendo significativa relação com Mario de Andrade (figura 2), importante
articulador do movimento literário modernista do Brasil e importante crítico de sua
obra, aspecto extensivamente recuperado por Chiarelli (2008a). Tendo tido sua
formação artística principalmente na Alemanha, a produção inicial de Segall se
aproximava do modelo Expressionista na forma e modelo visual, bem como na
inclinação social dos conteúdos com engajamento crítico-político. Entretanto,
emigrando definitivamente para o Brasil em 1923, Segall amadurece artisticamente,
tornando-se um “perdido” com relação ao ideário moderno de avant garde
(CHIARELLI, 2008a, p.13 e 17), ao abandonar a produção da “arte pela arte”, mais
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inclinada a discussões de caráter formal do que à critica social. De acordo com
Chiarelli (2009), ao assumir a alegoria brasileira, Segall torna-se menos
expressionista desenvolvendo um estilo mais eclético, sustentado entre o
Expressionismo, o Impressionismo e o Cubismo, de acordo também com Franz Roh,
crítico contemporâneo de Segall cujo enfoque Chiarelli recupera (2008a, p. 17).
A “perdição” de Segall, identificada primeiramente por Mario de Andrade
(CHIARELLI, 2008a), teria garantido à sua produção uma perspectiva mais realista,
orientada socialmente e com forte impacto e ressonância na realidade social
brasileira. A maturidade degenerada de Segallé o principal motivo para
Andradeconsiderar sua referência importante em termos de produção moderna
nacional (CHIARELLI, 2008a), por atender ao programa artístico e literário
modernista brasileiro de uma produção atualizada em termos estéticos
profundamente conectada à realidade social do país.
No Brasil, a produção de Segall altera-se em dois sentidos fundamentais. O mais
formal sendo o uso de uma paleta mais vibrante, marcada por cores mais saturadas,
enquanto em termos temáticos o artista volta-se a uma representação mais realista
em termos sociais. Em relação à incorporação do ethos brasileiro em sua produção,
Chiarelli (2009) considera que o modelo visual de Segall aproxima-se da alegoria
brasileira típica, evidente na apresentação da figura humana como figura central e
principal em primeiro plano, acompanhada no segundo plano pela exuberância da
vegetação tipicamente tropical, marca incontestável do exotismo brasileiro. Outra
alteração refere-se aos tipos retratados na pintura que evocariam o “tipo brasileiro”.
A intenção seria retratar brasileiros autênticos, concebidos como seres multirraciais,
traço determinante para a escolha de modelos de pele escura, e na identificação de
tais “tipos” no título das obras (CHIARELLI, 2008a, p.23). Esta é uma das razões
para Chiarelli considerar que, ao assumir os tipos brasileiros, Segall garantiu uma
posição de destaque à sua produção tanto em termos formais, como em termos de
temática social.
Tal enfoque marca outro aspecto interessante da produção de Segall, ou seja, a
posição de dupla articulação considerada por Chiarelli sugere que o artista entendia
a própria obra artística enquanto espaço de reflexão sobre o processo de criação.
Para Segall e Drummond, a reflexão e concepção sobre o processo criativo não se
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realizariam teoricamente,separadamente ao processo de criação, mas objetivamente
durante o processo de criação, considerado por sua vez nos termos do confronto
com suas múltiplas possibilidades. Em tais termos, toda decisão tomada pelo artista
durante o processo de criação revela uma compreensão especifica da própria arte,
noção consonante a Valéry, para quem a poesia se caracterizaria não somente por
seu viés temático, mas essencialmente pela particularidade do gesto que a institui.
A poética de Drummond Na perspectiva comparatista queinvestiga a relação entre a obra e o processo de
criação enquanto intrinsecamente ligados, proponho aproximar os desenhos de
Segall à poesia de Drummond, poeta que elabora uma poesia de “caráter social”
(CANDIDO, 1977, p. 106), principalmente a partir de 1935. Candido considera que
tal poesia é regida por “inquietudes poéticas” (p. 96) que se devem, principalmente,
a uma inquietude do “eu” do poeta (CANDIDO, 1977,p. 100). Entretanto, Candido
atenta também para o fato de que as torções desse “eu” sobre si mesmo
estabelecem o “movimento criador da obra” cujo peso de inquietude faz o poeta
“oscilar entre o eu, o mundo, a arte” (p. 96). Tal consideração revela a inquietude
não apenas como um traço pessoal do poeta que, em função desta, estabeleceria
um núcleo temático para sua poesia, mas como aquilo que organiza a “experiência
poética” da poesia que deixa de ser “de registro” para ser “de processo” (CANDIDO,
1977, p. 95).
Considerando-se a noção valeriana, uma poesia marcada pela inquietude seria
constituída por gesto poético “inquieto”, gesto que pode ser identificado na poesia de
Drummond. Ainda que Candido refira-se principalmente à produção de Drummond
entre 1935 e 1959, o gesto poético inquieto é flagrante em Brejo das Almas,
publicado em 1934. Nos poemas deste livro, observa-se um movimento da linha
narrativa que oscila explicitamente entre o eu, o mundo e a poesia, produzindo
cruzamentos, desdobramentos e oposições nunca resolvidas. Tal gesto revela-se na
intricada tensão entre o olhar do poeta para si, o olhar do poeta para a realidade e o
olhar do poeta para o próprio processo de criação da poesia, que estabelece
diferentes perspectivas assumidas pela voz poética. O gesto poético de Drummond
é puro movimento.
BECK, Ana Lúcia. Olhar inquieto – o gesto poético em Segall e Drummond, In Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 26o, 2017, Campinas. Anais do 26o Encontro da Anpap. Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas, 2017. p.1277-1290.
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O gesto poético de Drummond revela a voz de um sujeito lírico que em muitos
momentos emaranha-se com a voz do sujeito empírico que, se por um lado
expressa seu “eu”, ao mesmo tempo critica e contemporiza tal desejo expressivo. O
poema se efetiva assim em imagens de tom oposto entre as quais o fazer poético
estabelece um desenho. Uma comparação entre as imagens de diferentes poemas,
considerando a relação entre a perspectiva que rege tais imagens em si e não
apenas sua “figurabilidade”, revela que tal alteração corresponde a uma alteração no
foco do olhar. Ao final de Poema de sete faces, por exemplo, o tom muda
completamente, alterando-se da lamentação para a ironia. Tal tensão entre lamento
e ironia permeia o olhar-reflexão do poeta e indica seu grau de atenção e de
autocrítica para com as formas elaboradas. É tênue o limite que separa o que seria
uma simples descrição do olhar que ora parece entender, ora parece julgar as
coisas, ora percebe a si próprio neste movimento.
A alternância entre o olhar dirigido para si mesmo e o olhar irônico para as emoções
e sentimentos expressos na poesia, assim como o movimento que tal alternância
provoca no desenho do poema, pode ser claramente identificado no soneto Perdida
Esperança, no qual o olhar para si, olhar de desalento do sujeito, reverte-se em um
olhar para o coletivo que não expressa aquele sujeito somente, mas que situa o
desalento deste com relação à condição humana, perspectiva adotada pela voz do
poema que se altera do indivíduo para o contexto mais amplo da percepção da
experiência humana:
Perdi o bonde e a esperança. Volto pálido para casa. A rua é inútil e nenhum auto passaria sobre meu corpo. Vou subir a ladeira lenta em que os caminhos se fundem. Todos eles conduzem ao princípio do drama e da flora. Não sei se estou sofrendo ou se é alguém que se diverte por que não? Na noite escassa com um insolúvel flautim. Entretanto há muito tempo nós gritamos: sim! Ao eterno. (DRUMMOND, 2001, p. 23)
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Se a primeira estrofe de Perdida Esperançase centra em sentimentos de
autocompaixão e autocomiseração do narrador, nos versos finais se insinua a ironia
de que nenhum carro desejaria passar por cima do corpo do narrador. Tal rasura
poéticaé também evidente na terceira estrofe quando o narrador apresenta dois
lugares de observação distintos para o mesmo fato, considerando seu estado de
sofrimento, bem como considerando tal estado uma ironia do destino. Oscilação
entre compaixão e ironia. Compaixão centrada no sujeito e ironia como perspectiva
que se instaura a partir de um olhar que não é interno e ensimesmado. De si parte o
olhar que permite ver-se em relação com o espaço mais amplo da vida enquanto
fenômeno que também se observa na relação com o todo. Ao ampliar o olhar de
análise sobre si e sobre seu sofrimento, o sujeito reconhece uma possibilidade de
compreensão dos fenômenos que se localiza na amplidão do mundo enquanto lugar
possível do universal. Em vários poemas identifica-se tal movimento pendular que
oscila entre dois polos, instituindo um desenho compositivo [3]. A rasura no desenho
do poema marca, portanto, tanto a presença do sujeito individual, como do universal
e, nesse ponto, a subjetividade do poema adquire perspectiva universal.
Percebe-se em Drummond uma constante alteração de perspectiva, ou seja, de
ponto de vista desde o qual o sujeito poético fala no poema. Os elementos
subjetivos são perceptíveis principalmente quando, assumindo o modelo lírico, a
primeira voz do singular desenha a narrativa do poema. O fato de tal voz lírica não
se caracterizar apenas pela expressão de um “si”, não se apoiar apenas no ponto de
vista da expressão de um sujeito ensimesmado, trai a característica lírica, revelando
um desdobramento crítico no qual aquilo que é desenhado parece responder,
lançando um olhar irônico à expressão do poeta. Nesse sentido, Drummond escapa
do modelo lírico tradicional assumindoa característica moderna de crítica ao modelo
poético na elaboração mesma do poema que, ainda assim, se desenvolve sobre o
modelo lírico.
A alteração constante e repetitiva de perspectiva, a retirada do chão inicial da voz
poética, institui um movimento que confere mobilidade poética, o que Candido
sugere quando considera que a oscilação entre o sujeito e o mundo (entre o “eu” e o
“outro”), que ele nomeará a inquietude de Drummond, é de fato o gesto poético
drummondiano.
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Inquietude Poética em Segall e Drummond
Figura 3: Lasar Segall(1891-1957) Jovem Negro, 1925 Grafite sobre papel
(MUSEU LASAR SEGALL, 1991, p. 88)
Figura 4: Lasar Segall(1891-1957) Jovem Negro de Mãos Cruzadas, 1925
Grafite sobre papel (MUSEU LASAR SEGALL, 1991, p.78 )
Ao analisar a produção em desenho de Segall, Mario de Andrade também recorre à
noção de inquietude para descrever em termos conceituais o gesto do artista. O uso
de tal termo, na crítica à exposição de Segall para o Correio Paulistano em 1924, é
justificado por Andrade ao considerar a inquietude “característica artística
fundamental da contemporaneidade” (CHIARELLI, 2008a, p. 18). Andrade também
argumenta que Segall identificaria sua própria inquietude e tentaria resolvê-la em
sua produção, aproximando assim a noção de inquietude daquela elaborada por
Candido com relação a Drummond.
É notável que Chiarelli considere que a mais importante alteração na produção de
Segall ao mudar-se para o Brasil foi tornar-se mais humano (CHIARELLI, 2008a, p.
17-18) por abandonar a perspectiva hipersensível de exacerbação excessiva da
subjetividade. Segundo Naves (MUSEU LASAR SEGALL, 1991, p. XIX), a questão
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do abandono da exacerbação subjetiva deve-se ao fato de Segall acreditar que tal
exacerbação reacenderia o egoísmo, instituindo traço oposto à “forma compassiva”
e ao “exercício de empatia”, que Naves considera serem características essenciais
dos desenhos de Segall. Percebe-seque tanto na consideração de Candido sobre
Drummond, como na de Naves e Andrade sobre Segall, o gesto poético é
identificado na configuração movimento de um olhar inquieto a oscilar entre a
perspectiva de si e aquela que abarca o outro e o mundo, gesto instituidor a marcar
a forma artística.
Por um lado, o gesto poético marcado no desenhodepõe sobre a dinâmica desta
linguagem e, por outro, revela a percepção de Segall sobre seus modelos de
maneira bastante evidente, especialmente nos três desenhos aqui considerados
(figuras 3, 4, e 7) que se distinguem em termos formais e conceituais de outros
incluídos na seleção apresentada pelo Museu Lasar Segall (1991). Com traços e
decisões compositivas que sugerem em vários momentos a inexatidão dos esboços,
bem como a dinâmica instituída entre cheio e vazio, observa-se nestes desenhos
uma suavização da linha excessiva, predominantemente dura, angular e reta de
outros desenhos. Nesse sentido, é necessário considerar dois fatos significativos.
Um deles é a evidente decisão de pelo uso da distribuição, acumulação e contraste
na direção das linhas para marcar graficamente tanto a pele escura, como a
angularidade das faces. Note-se que tal solução formal se diferencia da solução
mais realista de uso do esfumado, adotada por Albrecht Dürer (figura 5), por
exemplo. Uma solução semelhante a de Dürer pode ser percebida em Moça com
Franja (figura 6), que tanto se distingue dos três desenhos aqui considerados, assim
como de outros executados por Segall.
Figura 5: Albrecht Dürer (1471 - 1528)
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Cabeça de Negro, 1508 Carvão sobre papel
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Albrecht_D%C3%BCrer_-_Head_of_a_Negro_-_WGA7069.jpg
Figura 6: Lasar Segall(1891-1957)
Moça com franja, 1920 Grafite sobre papel
http://www.bolsadearte.com/oparalelo/category/retrospectiva-2
Nestes três desenhos (figuras 3, 4, e 7), linhas retas de movimento extremamente
simples marcam planos distintos e contrastam com outras que se desenvolvem mais
organicamente, ainda que em um uso quase ingênuo em termos de representação.
Contrastada à produção mais ampla de Segall em desenho, porém, o olhar dos
retratados, aspecto mais marcante e revelador do desenho de figura humana de
Segall, algo ganha dimensão ímpar. É nestes desenhos que o gesto poético marca
sobremaneira na forma a tensão entre o olhar para o outro e o reconhecimento de si
no olhar que este lhe devolve, enquanto aspecto paralelo e em equilíbrio ao olhar
para si, conforme indicado relativamente à poesia drummondiana. Dentre tais
desenhos, um destaca-se por hiper-dimensionar tal aspecto:
Figura 7: Lasar Segall(1891-1957) Jovem Negro, 1927 Grafite sobre papel
(MUSEU LASAR SEGALL, 1991, p. 88 )
Figura 8: detalhe da imagem anterior.
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Em Jovem Negro (figuras 7 e 8), movimento e inquietude são evidentes tanto no
valor formal das linhas, como no que estas revelam de um fazer que oscila entre a
perspectiva da subjetividade do desenhista em contraposição à consideração do
mundo. Movimento e inquietude são perceptíveis principalmente no contraste entre
as áreas trabalhadas com a linha e aquelas onde o vazio adquire valor plástico.
Movimento e inquietude são perceptíveis nas linhas rápidas e vigorosas que, em
certos momentos, adquirem uma simplicidade quase ingênua; linhas que se
alternam, alterando o tipo de informação que marcam e aquilo que revelam. Naquilo
que tais linhas revelam sobre o processo de criação, a troca de olhares entre
desenhista, modelo e desenho torna-se sintomática de um aspecto insuspeito da
poética de Segall.
É no olhar do menino negro – forma tão significativamente elaborada sobre densa
rasura – que a dimensão subjetiva da poética de Segall podem ser reconhecida. Há
ali, na melancolia do olhar do menino, algo que nos escapa, mas ainda nos
acompanha. Uma melancolia esculpida na sobreposição de linhas, na oscilação do
movimento da mão que as desenha, na qualidade que esta deposita naquelas.
Linhas rígidas a revelar um olhar palpável. Gesto que marca na rasura tanto o olhar
do desenhista como o olhar que o menino devolve a este. Mas esse olhar do
desenho pode ser afinal meu próprio olhar, tanto quanto o olhar de Segall. E se esse
olhar pode ser a projeção do espectador sobre o desenho, tese plausível conforme
desenvolveu Didi-Hubermann (1998), não poderia ser ele também a subjetividade de
Segall acolhida por suas próprias mãos? Poderia o retrato anônimo ser uma
elaboração palpável sobre a tensão entre reconhecimento e diferença? Como se
naquilo que conforme Simioni (2013, p. 4), somente na década de 20 viria a
interessar os artistas brasileiros aqui nascidos; o aspecto multirracial e
especialmente mulato e negro da sociedade brasileira; se revelasse na poética de
Segall no olhar do outro cristalizado no desenho, ou seja, no reconhecimento deste
enquanto sujeito marginalizado socialmente.
O olhar do menino negro pode ser revelador do olhar de Segall para o Brasil desde
sua condição de expatriado, de ser deslocado entre o estar e o habitar elaborado por
Flussel. Tal possibilidade se contrapõe à noção típica do modernismo brasileiro de
Segall de busca por um tipo essencialmente brasileiro em termos de raça, ao indicar
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outro índice. O último menino parece nos olhar através da percepção emocional de
Segall. Ali, na rasura do desenho, se aloja também a condição de expatriado do
próprio artista, e, na melancolia marcada na pele daquele, aqueles que se
reconhecem pertencentes a despertencimentos. Suas imagens, porém, ressoam
ainda em nós, pois, como Andrade já notara,
A glória do desenho é outra. Ele não morre quando cessa a visão, nem é já uma verdade adquirida enquanto a visão dura. A ressonância dele nos provoca, vos dinamiza, vos açula, vos maltrata, castiga ou aplaude: e ele é um conselho, uma salvaguarda, um cinismo, uma repulsa, uma revolta. Ele arma o vosso braço. Podereis não saber explicar o desenho, não saber falar sobre ele, mas ele fala sobre vós, fala em vós, fala por vós. (ANDRADE, 1991, p. 152)
A inquietude enquanto noção fundamental para a caracterização do gesto poético de
Segall, assim como para a caracterização do gesto poético de Drummond será
considerada também por Didi-Hubermann (1998, p. 77) ao caracterizar as “imagens
dialéticas” que dão a ver inquietando, noção que em tudo ressoa a consideração de
Andrade sobre o desenho de Segall. A inquietude será ainda noção fundante em
Didi-Hubermann quando este, sobre o exemplo das gravuras da série Caprichos de
Goya, caracterizará a vista abrangente (2015, loc. 69), puro movimento dialético que
vai e vem (2015, loc. 70) invertendo a distância entre sujeito e objeto.
A inquietude essencial ao gesto poético sustenta assim em Segall, como em
Drummond, a possibilidade de uma produção inter-sujetiva (DIDI-HUBERMANN,
1998, p. 66) que Candido caracterizará em Drummond na simetria entre o “eu torto”
do poeta e a “subjetividade de todos” (CANDIDO, 1977, p. 108). Entretanto, o que a
crítica de arte brasileira pôde reconhecer satisfatoriamente na produção poética,
encontra-se ainda adiante de nós em termos de maturidade social e política. Afinal,
[...] certa paisagem monolítica sobre o Brasil tem sido sistematicamente desenvolvida no exterior: o país de uma natureza selvagem e deslumbrante adornado por curvas sensuais – entendam isso em todos os aspectos – e habitado por um povo alegre e desinibido. Até que ponto isso é mito ou verdade sobre nós? Haveria uma certeza sobre a identidade de um povo a ponto de construirmos sua personalidade? (SCOVINO, 2016, p. 855. Grifo meu).
Resta-nos ainda, enquanto nação, percebermos que a diferença não configura uma
ameaça, uma vez que constitui aquilo que nos convida a sermos menos refratários,
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tornando-nos mais humanos. A metodologia comparatista, ao propor certo método
investigativo das artes visuais revela, nos gestos poéticos de Segall e de
Drummond, que o olhar do outro, enquanto resposta a um olhar inquieto, sustenta a
parcela mais humana da criação. Seja este o olhar que a poesia em andamento
lança a seu autor, seja o olhar do desenhista que avalia o processo de criação, seja
o olhar humano que lança o desenhista a seu modelo e que o modelo por sua vez
lhe devolve, revelando-se nas linhas. Ali, na rasura do encontro entre os olhares, se
instala a condição efetiva de ser deste e da arte.
Notas 1 Conforme indicado por Carvalhal (2006), a disciplina de Literatura Comparada evoluiu do estudo comparatista entre textos literários de diferentes nações à metodologia de pesquisa que possibilita a aproximação investigativa entre obras de diferentes linguagens. Ademais, dada a característica fundante desta metodologia de investigação de deter-se no “espaço entre”, esta configura-se como ferramenta crítica de significativa contribuição para a investigação em artes visuais considerando o objeto artístico em relação estreita com a dinâmica de seu processo de criação configurado enquanto “espaço entre” sujeito e objeto, subjetividade e mundo, desejo expressivo e realidade material. 2 Do Desenho, texto de Mario de Andrade sobre o desenho de Lasar Segall foi originalmente publicado no álbum Mangue de Segall, pela Revista Acadêmica em 1943, sendo posteriormente incluído no volume O Desenho de Lasar Segall organizado pelo Museu Lasar Segall em 1991. Inquietudes na Poesia de Drummond foi publicado por Antonio Candido originalmente nos Cahiers dês Amériques Latines em 1967 e posteriormente em Vários Escritos de 1977. 3 Todo desenho origina-se do movimento. Neste sentido, trata-se tanto do movimento da mão (parcela constituinte objetiva) como da energia posta neste movimento que é determinada, sobretudo pela dimensão subjetiva do desenhista. É interessante notar que, graficamente, se percebe com clareza distinções entre uma linha hesitante – aquela desenhada pelo medo – da linha aventureira, daquela nervosa, ou mesmo daquela que hesita ao posicionar-se sempre em outra perspectiva, em outra direção, daquela que tenta ultrapassar os limites de origem subjetiva do desenhista. Interessa-me marcar a possibilidade de aproximação entre as características que um desenho adquire através do movimento que o realiza e as características formais e temáticas que o poema pode adquirir a partir do movimento reflexivo do desenhista assim como do poeta. Interessa identificar o lugar desde o qual o poeta fala, mas também atentar para seu grau de mobilidade interna: oscilações, mudanças de rumo, saídas do lugar, hesitações. É neste sentido mesmo que o termo rasura, que será incorporado em vários momentos neste texto, deve ser entendido tanto como marca gráfica como também “marca da oscilação mental e emocional” da perspectiva adotada pelo criador, poeta-desenhista. Para um aprofundamento sobre tal dimensão da rasura a partir da intersecção entre o desenho e a literatura, recomendo Beck (2017). Referências Bibliográficas ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Record, 2001. ___________________________. Nova Reunião – 23 livros de poesia. Volume 1. Rio de Janeiro: BestBolso, 2011. ANDRADE, Mario de. “Do Desenho”. MUSEU LASAR SEGALL (org). O desenho de Lasar Segall. São Paulo: Museu Lasar Segall, 1991. p 149-160. BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2008. BECK, Ana Lúcia. Silent landscapes - A comparative approach to José Leonilson and Louise Bourgeois. Canadian Review of Comparative Literature. v. 44.2. Junho 2017. p. 318-336. CANDIDO, Antonio. “Inquietudes na poesia de Drummond”. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1977. Carvalhal, Tania. Literatura Comparada. São Paulo: Ática, 2006. CHIARELLI, Tadeu. “Modernism and Concretism in Brazil: Impacts and Resonances”. POST - notes on Modern and Contemporary Art around the Globe. MOMA, 2012. <http://post.at.moma.org/content_items/310-modernism-and-concretism-in-brazil-impacts-and-resonances>
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1290
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