Post on 10-Mar-2016
description
O universo paralelo de Elisa
Camila Morais Silva
O universo paralelo de Elisa
Camila Morais Silva
6
8
Elisa volta a enxergar as peripécias há muito guardadas na
memória e vislumbra os planos que insistia em tramar como se fos-
sem missões, cheias de descobertas, de desfechos, de finais felizes.
A bonequinha de porcelana que ganhara de sua avó em seu
aniversário de 5 anos era sua mais fiel amiga... e confidente. A ela
a menininha confiava seus segredos e julgava ser ela uma sábia
conhecedora do mundo.
As tristezas doloridas que os dias lhe traziam repousavam
como leves plumas molhadas pela chuva sobre seu coração.
Crescia sem perceber uma doce felicidade escondida pelo
risco de se viver sozinha. Mal imaginava ela o quão esse sentimento
a iluminava por dentro e acendia pequenas gotas de crítica que se
irrigavam com as lágrimas internas de seu ser.
Adentra-se no mundinho perdido e singular da pequena
flor. As narrativas fluem com uma exatidão trêmula ofuscada pela
grandiosidade do externo e aquecem o espírito infantil dos sóbrios
de palavra.
9
O gosto das cores
10
Ao entardecer sentava-se ritualmente na escadinha que dava
para o quintal apertado de sua casa alugada e punha-se a ouvir as
melodias fantasiosas e poéticas entonadas pelo vizinho. Nesse mo-
mento parecia que tudo de ruim no mundo se dissolvia em notas
musicais e Elisa se deliciava com os olhos fechados cada letra dos
versos desafinados que chegavam a seus ouvidos.
Dizia ela sempre à boneca que queria cantar para poder levar
a toda sorte de gente a sensação suave de amenização e pensava
que quando a música invadia-lhes a alma eram expulsos os adje-
tivos negros que sempre assombravam a vida.
Olhou ao redor. Viu inúmeras flores preencherem o espaço a
sua frente como mágica. Uma brisa soprou infiltrando nas mechas
desordenadas de seu cabelo. Lembrou-se do campo, dos enormes
girassóis que lutavam contra sabe-se lá o que para ganharem sarai-
vadas imaginárias de calor que o Sol liberava.
11
Como era apaziguadora aquela memória.
14
Num salto, se viu correndo tentando pegar a borboleta azul.
Ela fugira pela presença de alguma forma maior. Planava em sonhos
perdidos, e percebia que era tão pequena quanto suas próprias pre-
tensões. Ela queria pular do globo. Ele a deixava tonta, enjoada.
Por que não? Era só agarrar-se a uma estrela. Não haveria
mal, ainda mais depois de um anjo ter escrito que todos esses pon-
tos iluminados são floridos. Agradável seria então estar entre elas.
A brisa se tornou um vento forte que passou e deixou um ras-
tro iluminado.
Ele passou e subiu como se não houvesse nenhum limite
natural para nada. A criatura que surgiu pairou no céu, sublime e
passou a observar Elisa de longe como um protetor.
16
A pintura da melodia
20
A agitação cessou e a visão se foi.
Na arvorezinha lá longe pousou um pequeno sabiá abafando
o som do vazio com seu cantar.
Envolta em teorias Elisa não viu o céu escurecer. E quando se
deu conta do tempo, o último raio saturado de luz atravessava seu
agora trêmulo corpo. Uma breve despedida.
21
O sussurro do abraço
26
Uma surpresa!
Sem esperar, ao abrir os curiosos olhinhos, a garota encon-
trou sua mais ingênua paixão observando-a fulgurante e inquieta,
sozinha ao longe esperando uma saudação rotineira. Nasceu um
brilho na face de Elisa e com um sorriso carinhoso e cativante ela
ousou quebrar o som longínquo do pássaro, arriscou dizer...
27
‘boa noite minha estrelinha’.
29
Ela imaginava e ouvia a resposta vinda da estrela. Sentiu-se
completa finalmente.
É onde os sonhos repousam tranquilos sem interferência da
sorte ou do destino. No céu estão depositados os anseios dos
apaixonados pela vida, e também as respostas que muitos procuram
sob as linhas temporais.
Mas uma ponta de dúvida surgiu em sua mente e a fez voltar
a si. Perguntou baixinho para sua própria alma até quando sua es-
trelinha a esperaria. Foi aí que depois de anos sob uma estável pro-
teção ela voltou a tocar em uma lembrança que sempre se esforçou
para esquecer como uma bola furada e suja que se guarda dentro de
um baú velho.
30
31
34
Mais uma vez os olhos se tornaram protagonistas de um mo-
mento indesejado. Encheram-se de uma água salgada, melancólica
e foram impressas como se numa foto nas suas bochechas rosadas
como um fio de dúvida do que o futuro a reservava. Por fim sentiu o
medo invadir-lhe o cheio e comportado coração por pensar que a
estrela poderia encontrar no obscuro infinito um outro amor e assim
a abandonar. Já bastava a solidão que os dias infelizes traziam, não
queria ela imaginar passar as noites sem ter a quem demonstrar o
amor puro que guardava dentro de si. Mas ficou feliz de novo. Pois
ouviu a estrela sussurrar em seu ouvido que o seu amor estava bem
guardado sob seus raios, e dentro do amor que a mocinha sentia
encontrava-se o amor da estrela que a alimentava.
35
O cheiro da triste doçura
36
Uma nova surpresa!
Atrás da laranjeira carregada subiu uma pequena nuvem,
escura e solitária que se intrometeu no namoro dos apaixonados e
afastou o olhar de Elisa dos braços sentimentais do cintilante astro.
Do outro lado veio se juntar à nuvem uma outra maior, mais robusta
e de cor ameaçadora. A lágrima que há pouco escorreu sobre a face
da garota recebeu nova companhia: uma gota de chuva pousou na
ponta de seu nariz gelado assustando-a alegremente. Talvez a inter-
rupção do tão esperado encontro não fosse assim tão dolorosa. Afi-
nal a água lavava o mundo e dava a ele um ar de novidade. Além do
mais, ela sabia que na noite seguinte seu amor não lhe faltaria pre-
sença e estaria a sua espera novamente. Então, os sons das batidas
encharcadas sobre o telhado e as folhas tomaram o lugar das velhas
canções e a fizeram despertar de seu estado hipnótico. Levantou-se
num pulo apressado, subiu as escadas e correu para seu quarto. Ti-
rando as botinhas ela subiu em sua cama e se pôs a olhar pela janela
os relances que o vento dava e que pareciam uma pitoresca dança
aquática.
37
Viu uma poça na terra molhada do quintal; ela brilhava de um
jeito estranho. Curiosa, a menina voltou ao quintal encharcando o
cabelo e a roupa. Tudo tinha um gosto agridoce que se atrevia a gri-
tar de longe que eram lembranças que a visitavam e que nem todas
tinham o gosto bom do desejo.
Quando olhou para o amontoado de água Elisa viu tudo ao
redor se desfazer.
38
O chão perfumado
42
A terceira pedra do labirinto estava intacta, vermelha como
um sol que insiste em não se resfriar, quente como a pele dos
apaixonados. Fora dele tudo era cinza, nada se via, se tocava, se ou-
via. Era o perplexo vazio das solidões depositadas diante do tempo
que nunca existiu.
No labirinto robusto e cheio de si, os reflexos pareciam de
um outro mundo o qual era o dela mesma, porém perdido num out-
ro espaço qualquer. Entrava-se no sorriso, mergulhado no branco,
na sombra, no molhado das tardes febrilmente primaveris. Lá den-
tro ela desejou por toda a vida permanecer. Não no esquecimen-
to [longe disso], mas protegida pela água que transmitia um calor
carinhoso e maternal e onde sempre ficaria à salvo do mundo.
43
O vento gélido travava uma briga com a pequena árvore. Que
culpa ela teria de estar onde está?
Sentia o cheiro, seguia os instintos. Acabara de sentir o áspero
azul que, numa ânsia de toca-la, lhe cortou o braço. Logo tudo que
era verde voltava a ser manchado pelo vermelho que escorria e pin-
gava no chão. Sem se importar com o acontecido, inalou seguidas
vezes o frescor transpirado pela árvore e encheu-se de nada.
As coisas desmancharam transformando-se em pó que con-
tinuava a ser levado para longe pelo vento, e Elisa mergulhou numa
imensidão de luz.
Decepcionada, ela olhou sua sombra e tracejou seus sonhos
em meio aos raios da figura estendida no chão desejando que ela se
elevasse de repente e lhe puxasse pelas mãos.
49
O sono
52
Assim tudo desmoronou e o labirinto se desfez. A chuva
aumentou e resfriou todo o momento.
Elisa acordou do devaneio e sentiu o corpo muito gelado.
Correu para dentro de casa. No quarto se secou com a toalha que
estava pendurada atrás da porta, e sentou-se na cama.
Ah! Se soubessem o quanto o mundo espera dos pensadores.
Que o abraço desejado pelos carentes de cultura é aquele que
emerge dos braços de quem se afoga em pensamentos lúdicos.
Impressionada com as repetidas baladas de extremidades
expostas a noite começara a pesar sobre as brancas pálpebras da
criança enevoadas pelo frescor do escuro. Ao lado da boneca ela se
deitou sem se queixar do frio instantâneo e sem perceber que a vida
adormecera junto com ela.
Tudo ficou escuro... e calmo.
53
57
Este livro foi impresso em Rockwell 12 pt.
Miolo impresso em Couchê fosco 300g/m²
Formato: 21cm x 21 cm