Post on 16-Oct-2018
289
R E S U M O EscavaçõesarqueológicasrealizadasnocentrohistóricodeTavira(Algarve)permitiram
descobririmportanteartefactoqueficouconhecidocomo“VasodeTavira”.Aformamuito
particulare,acimadetudo,ariquezaiconográficaqueostenta,dotadadefigurasantropo-
mórficasezoomórficasmoldadas,tornaram-nofamosoeincontornávelparaacompreensão
dosníveismaisantigosdoperíodoislâmicodacidade.Aimportânciasimbólicaquemani-
festasuscitoudiferentesinterpretaçõesrelativamenteàsuafunçãoecronologiaemquese
integra.Nesteestudoéapresentadanovapropostadeinterpretaçãoatravésdaanálisedeuma
dasmaisfascinantespeçasdaarqueologiamedievalportuguesa.
A B S T R A C T Duringthearchaeologicalworksthattookplace inthehistoricalcenterof
Tavira (Algarve) was discovered an important artefact now known as “Tavira’s Vase”. The
rarityof itsshapeand,aboveall, itsremarkable iconographicvalue,featuredbymoulded,
anthropomorphicandzoomorphicfigures,madeitveryfamousandessentialfortheunder-
standingoftheoldestlevelsofthetown’sIslamicperiod.Thesymbolicimportanceconveyed
leadstodifferentfunctionalinterpretationsandchronologicalvariances.Inthispaperitis
presentedanewproposalofinterpretationthroughtheanalysisofoneofthemostfascinat-
ingpiecesofPortuguesemedievalarcheology.
1. Introdução
OCentroHistóricodacidadedeTaviratemvindoaserobjectodesistemáticasintervençõesarqueológicas, que têm permitido aprofundar os conhecimentos da realidade quotidiana dassociedades,dadinâmicaeorganizaçãodaocupaçãoantigadoCerrodeSantaMaria.
Aimportânciaeníveisdeconservaçãodosvestígiosvêmcomprovararicaherançapatrimo-nialdaurbeeaferirasuaprojecçãogeoestratégicaregionalnosváriosmomentosdaHistóriadoAlgarve.
Deentreasmaisrelevantesdescobertasfoi,semdúvida,adapeçabaptizadapor“VasodeTavira”.Artefactoprofusamentedecorado,comelevadacomplexidadeconceptualecargasimbó-
O simbolismo da purificação. O “Vaso de Tavira”: iconografia e interpretação
LUíSCAMPOSPAULO*
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 289-316
Luís Campos Paulo O simbolismo da purificação. O “Vaso de Tavira”: iconografia e interpretação
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 289-316290
lica,temsuscitadodiversasinterpretaçõesquantoaoseusignificado,funcionalidadeecrono-logia.
Combasenestesconsiderandos,apresenta-senovapropostaparareflexão,atravésdaanáliseiconográficadeumdosmaisimportantesbensdopatrimóniomóvelislâmiconacional.
2. A descoberta e contexto arqueológico
AsobrasderequalificaçãodaagênciadoentãoBancoNacionalUltramarino,em1996,leva-ramànecessidadedemedidasdeminimizaçãoqueincluíamintervençãoarqueológica,vistoqueseencontravaemZonaEspecialdeProtecçãodemonumentoclassificadoeporsetratardeáreadeelevadasensibilidadepatrimonial,juntoàactualPraçadaRepúblicaedeumadasantigasentra-das,aconhecidaPortadeD.Manuel(Fig.1).
Foiprecisamentenodecorrerdestestrabalhosarqueológicos,realizadosporManueleMariaMaia,queforamencontradososvestígiosmaisantigosdoPeríodoMuçulmanoemTavira.Ainter-vençãopermitiuaindaidentificarpartedamuralha,datadadafasefinaldeocupaçãoislâmicaque,segundoaquelesarqueólogos,sobrepunhasectordebairro,desactivando-oparcialmentee inte-grandoorestantenointeriornoperímetrofortificado,doqualseregistapartedehabitaçãoparti-cular,queapenassubsistiuasinstalaçõessanitárias(Maia,2004,p.143).
Atravésdaanálisedadinâmicaestratigráfica,realizadapelosarqueólogosresponsáveis,facil-menteseverificouqueastrêscamadassuperioresestavamassociadosaosníveisdeocupaçãorela-cionadoscomaprópriamuralha,identificandomúltiplosfragmentosdetelhaemmeia-cana,que
Fig. 1 LocalizaçãodaIntervençãoArqueológicadoBancoNacionalUltramarino.
O simbolismo da purificação. O “Vaso de Tavira”: iconografia e interpretação Luís Campos Paulo
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 289-316 291
sedispunhamsobrepavimentoformadopor terra batida, recolhendo abundanteespólio,constituído,nasuamaioria,porpeças de cerâmica doméstica caracterís-tica da fase final de ocupação islâmica,dosséculosXII-XIII,nomeadamente,frag-mentosdetalhavidradadecorverdecomdecoraçãoestampilhada,cântarosepane-lasdecerâmicacomum,bemcomo,torresderocaecossoiroemosso,eseteplaqui-nhasquedeveriamfazerpartedecorativadeumacaixaouarquetademadeira(Maia,2004,p.143-144).
Imediatamente abaixo do referidopavimento dispunham-se outras trêscamadas (4.ª a 6.ª), sendo a primeira,aquelaondeassentavamosalicercesdasconstruções e as duas últimas, quase
estéreisemmateriaisarqueológicos,envolviamascanalizaçõeseesgotosdashabitaçõesmuçul-manas(Maia,2004,p.144).
Porém,foinacamada7destearqueossítio,correspondendoapossível“vala-lixeira, praticada em níveis proto-históricos datados dos séculos V-IV a.C.”(Maia,2004,p.144),quefoiidentificadoconjuntodepeças,quenosmereceespecialatenção,umadasquaiséobjectodeestudospontuais,apesardesedesconheceratotalidadedosmateriaisqueseencontravamnomesmocontexto.
Esteconjuntodemateriaistemvindoaserpublicadoeexpostoemdiversoslocaisesãoosúnicosqueseconhecemprovindosdomesmonívelarqueológico.
Doconjuntosalienta-segrupodepeçasemcerâmicacomum,ondesedestaca,umconten-tordepastaalaranjada,deformatoncocónicaebordoaplanadodispostoemaba,comdiversosorifícios,aparentementeparasuspensão,profusamentedecoradocompinturaaengobedecorbrancaetrêsfinoscordõesplásticoscompequenasincisões,juntoaobordoeameiodocorpo(Fig.2).
Umcantiligualmenteempastadecoralaranjada,apresentamutilaçãoaoníveldobordoegargalo,eestádecoradoemambasfacesenasasas,compinceladasdeengobedecorbranca.Numadas facesoferece traçosquecontornamaextremidadedapeça,posteriormenteseguede formaverticalpassandopelocentro,deondepartemquatrotraçosrodeandosobresi,formandogénerodecírculos(Fig.3).Nafaceoposta,dispõem-sedoiscírculosparalelos,colocandoentreelesquatrogruposdetraçosverticais,doisdelescompostosporsetelinhaseosrestantescomdezlinhas,eainda três círculos ovalados, dois deles com o interior preenchido sugerindo bolbo de lótus,estandounidosàdecoraçãoquesedispõeaocentrodapeça.Nasuapartecentralencontramosteoriadelinhasdispostasdeformasemicircular,paralelasduasaduas,deformasubquadrangular.Estãopreenchidaspormúltiplostraçosparaleloseligeiramenteinclinados,eexternamentecomlinhascolocadasnaperpendicular.Duasdaquelasvãouniraosdoiscírculoscomointeriorpreen-chido,formandoelementofitomórfico(Fig.4).
Noentanto,apeçadecerâmicacomumque,semdúvida,seapresentaemmaiordestaque,pelararidadeeexcepcionalcomposição,éodenominado“VasodeTavira”sobreoqual,maistarde,nosdebruçaremoscommaispormenor.
Fig. 2 ContentordesuspensãoencontradonasescavaçõesarqueológicasdoBNU(Maia,1999,p.25).
Luís Campos Paulo O simbolismo da purificação. O “Vaso de Tavira”: iconografia e interpretação
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 289-316292
Aindanestamesmacamadaarqueológicaforamexumados,pelomenos,umfundodetaçaesmaltada a branco, assente em pé baixo em anel, contendo no seu interior inscrição feita amanganés que, segundo Adel Sidarus e Ahmed Tahiri, significa “Não há Deus senão Alá”, e quecertamenteporlapso,foirecentementepublicadacomosendoproduçãodoséculoXVI(Maia,1999,p.29,2003,p.299,2004,p.144)(Fig.5),bemcomo,diversosfragmentosdetaçacomdeco-raçãoemcordasecatotal,commotivosfitomórficosaverdeecastanho,formandoflordequatrograndespétalas,combolboaocentroepalmetasaantecederobordo(Maia,1999,p.29,2004,p.144)(Fig.6).
Ascaracterísticastécnicaseformaisdaprimeira,sugeremcorresponderaproduçãocalifal,cominscriçãodecarizreligioso,comclarosintuitosdeafirmaçãoreligiosaentreapopulação.
Aindanestamesmacamadaarqueológicaforamexumados,pelomenos,umfundodetaçaesmaltada a branco, assente em pé baixo em anel, contendo no seu interior inscrição feita amanganés que, segundo Adel Sidarus e Ahmed Tahiri, significa “Não há Deus senão Alá”, e quecertamenteporlapso,foirecentementepublicadacomosendoproduçãodoséculoXVI(Maia,1999,p.29,2003,p.299,2004,p.144)(Fig.5),bemcomo,diversosfragmentosdetaçacomdeco-raçãoemcordasecatotal,commotivosfitomórficosaverdeecastanho,formandoflordequatrograndespétalas,combolboaocentroepalmetasaantecederobordo(Maia,1999,p.29,2004,p.144)(Fig.6).
Ascaracterísticastécnicaseformaisdaprimeira,sugeremcorresponderaproduçãocalifal,cominscriçãodecarizreligioso,comclarosintuitosdeafirmaçãoreligiosaentreapopulação.
Figs. 3 e 4 CantilencontradonasescavaçõesarqueológicasdoBNU(Maia,1999,p.37).
Fig. 5 Fundodetaçaesmaltada(Maia,1999,p.27). Fig. 6 Taçaemcordaseca(Maia,1999,p.27).
O simbolismo da purificação. O “Vaso de Tavira”: iconografia e interpretação Luís Campos Paulo
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 289-316 293
Relativamenteàsegundapeça,utilizadecoraçãoemcordasecatotal,queamaioriadosinvestiga-doresdefendeserumatécnicaquesurgiuapartirdoséculoXI,tendoasuamaiordifusãonacentúriaseguinte,apresentandoosmotivosdecorativosbastantediversificados,desdeosgeométricos,zoomór-ficos,epigráficosefitomórficos,sendonestesúltimosrecorrentesaspalmetaseasfloresdelótus.
Peloatéagoraexposto,vistoquesedesconhecematotalidadedosmateriaisarqueológicosprovindosdacamada7dosítiodoBancoNacionalUltramarino,eaindadainexistênciadeanáli-sesquímicasaosartefactose,sobretudo,dedataçõespormétodosabsolutos,estenívelpoderá,eventualmente,nãocorresponderaumaunidadeselada.
Talnãoseriadeestranhar,poisestamosemplenaáreaurbana,comfortedinâmicadeocupa-çãoatéaosnossosdias.Poroutrolado,nosníveissuperioresdispõe-sesistemadecanalizaçõesefossaséptica,integradasemimportanterededesaneamentobásicodacidadedosséculosXII-XIII.Finalmente,nãoserádeexcluireventuaisníveisremexidosparaacriaçãodavaladefundaçãodopanodemuralhadafasefinaldeocupaçãomuçulmana,quepudesseatingiraquelaprofundidade.Desalientarqueaprópriavala-lixeira,quecorrespondeàcamada7,destruiuosníveisproto-histó-ricosdatadosdosséculosV-IVa.C.(Maia,2004,p.144).
Porestasrazões,podemosestarperanteníveisremexidoscomvestígiosarqueológicosdata-dosdosséculosIX-X,eeventualmentedosséculosXI-XII,estaúltimapelapresençadefragmentosdetaçacomdecoraçãoemcordasecatotal.
3. Breve descrição formal do “Vaso de Tavira”
OVasodeTaviracorrespondeapeçadeperfiltroncocónicodepastafina,contendoelementosnãoplásticosdecalcárioequartzito,decoravermelhada,defundoplanoeparedesdispostasligeira-mente na oblíqua, medindo cerca de36 cm de altura e 42 cm de diâmetromáximos(Maia,2004,p.143)(Fig.7).
A espessura do bordo resulta decanal para passagem de líquidos, queseria introduzido pela torre e que,posteriormente,vertiapororifíciosdeoitodascatorzefigurasqueornamen-tamapeça.
Estas são constituídas por seisrepresentaçõesantropomórficasecincozoomórficas. Entre as primeiras desta-cam-se três indivíduos montados acavalo, dois deles armados e no meiodestes,aparentemente,arepresentaçãode uma mulher, ornada com diademaoudepenteadotodoapanhadoepresonaparteposterior(Fig.8).Àsuadireitadispõe-se um dos cavaleiros, com acabeça coberta por turbante, armadocom aparente lança e cinturão comespada, que o tempo se encarregou de Fig. 7 PerspectivageraldoVasodeTavira(Torres,2004,p.5).
Luís Campos Paulo O simbolismo da purificação. O “Vaso de Tavira”: iconografia e interpretação
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 289-316294
Fig. 8 Versodastrêsfigurasacavalo(Torres,2004,p.5).
Fig. 9 PerspectivasuperiordoVasodeTavira(Torres,2004,p.6).
O simbolismo da purificação. O “Vaso de Tavira”: iconografia e interpretação Luís Campos Paulo
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 289-316 295
fazerdesaparecer.Ooutro,noladoopostodarepresentaçãofeminina,apresentacapacetedeformacónica,espadaempunhoeescudodecombatedeformacircular,comrepresentaçãoincisa,demotivofitomórfico.Aoladodeste,dispõe-sepersonagemqueseriacertamenteumpeãoarmado,aparente-mentecombesta(Fig.9).
Àdireitadocavaleirocomturbante,seguemconjuntodemúsicos,dequeapenasrestamdois,deumpossívelquarteto,umdelessugerindotocarumpequenotamboroutanur,enquantoqueooutrotocaumadufe.Ambosapresentamacabeçacobertaporcapacetedeformacónicaepontiaguda.
No ladoopostodapeçaencontramosquatro figuraszoomórficas,muito fragmentadas,oquecondicionaasuaidentificaçãoeconsequenteinterpretação,apenassereconhecendoumboví-deo,umcaprídeoeumcamelo.Próximodobesteiro,encontra-seinequivocamentearepresentaçãodeumatartaruga,comacarapaçaprofusamentedecoradaaengobedecorbrancaeincisõesdeformacircular(Fig.10).
Atorreapresentaconjuntodediversasaves,reproduzindopossivelmentepombas,quealter-namcomesquemadecorativodepinturasabrancoeincisõesqueavalorizam.
Aenriquecertodaestapeça,foicriadacomplexagramáticadecorativaconstituídaporpinturasdecorbranca,comrepresentaçõesmuitovariadas,detemáticageométrica,fitomórfica,debolbosdelótusepalmetaseaindazoomórfica,comafiguraçãoesquemáticadepeixes(Fig.11).
fazerdesaparecer.Ooutro,noladoopostodarepresentaçãofeminina,apresentacapacetedeformacónica,espadaempunhoeescudodecombatedeformacircular,comrepresentaçãoincisa,demotivofitomórfico.Aoladodeste,dispõe-sepersonagemqueseriacertamenteumpeãoarmado,aparente-mentecombesta(Fig.9).
Àdireitadocavaleirocomturbante,seguemconjuntodemúsicos,dequeapenasrestamdois,deumpossívelquarteto,umdelessugerindotocarumpequenotamboroutanur,enquantoqueooutrotocaumadufe.Ambosapresentamacabeçacobertaporcapacetedeformacónicaepontiaguda.
No ladoopostodapeçaencontramosquatro figuraszoomórficas,muito fragmentadas,oquecondicionaasuaidentificaçãoeconsequenteinterpretação,apenassereconhecendoumboví-deo,umcaprídeoeumcamelo.Próximodobesteiro,encontra-seinequivocamentearepresentaçãodeumatartaruga,comacarapaçaprofusamentedecoradaaengobedecorbrancaeincisõesdeformacircular(Fig.10).
Atorreapresentaconjuntodediversasaves,reproduzindopossivelmentepombas,quealter-namcomesquemadecorativodepinturasabrancoeincisõesqueavalorizam.
Aenriquecertodaestapeça,foicriadacomplexagramáticadecorativaconstituídaporpinturasdecorbranca,comrepresentaçõesmuitovariadas,detemáticageométrica,fitomórfica,debolbosdelótusepalmetaseaindazoomórfica,comafiguraçãoesquemáticadepeixes(Fig.11).
Fig. 10PlanoverticaldoVasodeTavira(Maia,1999,p.31).
Luís Campos Paulo O simbolismo da purificação. O “Vaso de Tavira”: iconografia e interpretação
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 289-316296
4. Um objecto, várias interpretações
Adescobertadestaimpressionantepeçaquefazpartedopatrimónioislâmiconacional,susci-touarealizaçãodediversasnotícias(Bernus-Taylor,2000,p.156;Catarino,2002,p.32;Gomes,1998,p.19-20;Maia,1999,p.17-19,2003a,p.300;MaiaeMaia,2002,p.70;Maia,MaiaeTorres,1998,p.99;TorreseMacias,1998,p.216)e,maisrecentemente,foiobjectodeestudosespecíficosdedicadosàsuainterpretação(Maia,2004,p.143-166;Torres,2004).
Existemdiferençasdeopiniãorelativamenteàfuncionalidadeedataçãodo“VasodeTavira”.Osarqueólogosqueadescobriram,ManueleMariaMaia,eaindaCláudioTorres,consideramquesetratadarepresentaçãosimbólicadeumraptonupcial,servindoapeçadedoteparacasamento,aqualcorresponde,semdúvida,aumaproduçãodosfinaisdoséculoXI,ouiníciosdoXII(Maia2004,p.150-151;Maia,MaiaeTorres,1998,p.99;Torres,2004,p.18-22).
Quanto à sua funcionalidade, Cláudio Torres sugere a possibilidade de ser um vaso paracolocardeterminadaplanta,sugerindomesmoaalfádega(espéciedemanjerico),pelassemelhan-çasdapeçaalgarviacomoutraencontradanaalcariaislâmicadeBofilla,noconcelhodeBétera(Valência)(LópezElum,1994,p.324-328;Torres,2004,p.23),enquantoqueMariaMaiapropõeuma“miniatura popular de um tanque palaciano”(Maia,2004,p.151).
Fig. 11PerspectivageralVasodeTavira(Torres,2004,p.9).
O simbolismo da purificação. O “Vaso de Tavira”: iconografia e interpretação Luís Campos Paulo
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 289-316 297
Pelocontrário,MárioVarelaGomes,consideraqueo“VasodeTavira”correspondeareci-pientedeabluções,comoformadepurificaçãoatravésdaáguaqueasfigurasvertiamparaoseuinterior,dosguerreirosrepresentados(murabitun)epreparadosparaaguerrasanta(djihad),esti-muladospelosmúsicosqueosacompanham,aseremresistenteseobstinadoscomoatartaruga.Quantoàcronologia,esteinvestigador,recuaaquelapeçaparacontextosdoséculoIX,pelassuascaracterísticas técnicas e decorativas, mas igualmente, por se enquadrar em período de grandeinstabilidadepolítico-militarqueassolouoGharb al-Andalus(Gomes,1998,p.19-20).
5. Iconografia e simbolismo
O“VasodeTavira”,possivelmentedeproduçãolocal,feitoemtornorápidoefigurasmolda-dasàmão,apresentadensaiconografiacoroplásticaepintada,comelevadacargasimbólica.
Tivemosanteriormenteoportunidadedesalientaraexistênciadeváriasfigurasantropomórfi-cas, representando uma mulher, diversos guerreiros a cavalo ou a pé e conjunto de músicos.Asreduzidasdimensõesdasfigurasaltera,decertaforma,asproporçõesdosobjectosqueostentam.Noentanto,existiuaintençãodooleirodeosrepresentarcomgranderealismo(Fig.12).
Oconjuntodeguerreiroséconstituídopordoiscavaleiroseumbesteiro.Umdoscavaleirosapresenta capacete de forma cónica e encontra-se armado com escudo circular, o qual ostentadecoraçãofitomórficaeespadaempunho(Fig.13).
Aformacirculardoescudoeasériedeimpressõesfeitasporincisãonoseubordo,remetemeventualmente a modelo elaborado em couro ou de madeira revestido por aquele material.Omodelocircularouovaladofoiutilizadopelastropasmuçulmanas,equesugereumacontinui-dadetipológicadosescudosTardo-RomanoseAntiguidadeTardia,sendoprogressivamentesubs-tituídospelaadarga,escudodeabasduplas,introduzidaspelaprimeiraveznaPenínsulaIbéricanabatalhadeZalaca(1086)pelaguardanegradeYosuf ben Tasfin(SolerdelCampo,2000,p.21;Torres,2004,p.7)(Fig.14).
Fig. 12Conjuntodefigurasantropomórficas(TorreseMacias,1998,p.216).
Luís Campos Paulo O simbolismo da purificação. O “Vaso de Tavira”: iconografia e interpretação
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 289-316298
EmLiètor(Albacete)foidescobertomodelodestatipologiaemmadeira,datadodosséculosX-XI,com58cmdealturaeseriaoriginalmenterevestidoemcouro,possivelmenteparareforçodasua estrutura ou suporte para eventual decoração (Navarro Palazón e Robles Fernández, 1996,p.93-94).Éigualmenteconhecidaasrepresentaçõesdecavaleirosedeguerreirosemlutacontradoisleões,empunhandolanças,espadaseescudoscirculares,dosrelevosdaarquetadeLeyre,peçadatadade1004-1005(AAVV,1992,p.198-201).
OescudodocavaleirodeTaviraoferecedecoraçãofitomórfica,certamenterepresentandoa“árvoredavida”,“árvoredoParaíso”ou“árvorecósmica”,símbolodeorigensqueremontamnoOriente à Pré-História, sobretudo na região do Egeu, desenvolvendo-se com as comunidadesmuçulmanasorientais,queadivulgaramnaPenínsulaIbérica(Gomes,1988,p.172).Temaquesecentranocaráctercíclicodaevoluçãocósmica—morteeregeneração,nosconceitosdefertilidade,deasceseeunidadeentreohomemeDeus(Fig.15).
Oguerreiroprotegiaasuacabeçacomelmodeformacónica,semelhanteaoutrorepresen-tadoemcantilprovenientedaáreaurbanadeSilves,queseintegranosfinaisdoséculoIX,princí-piosdoséculoX(Fig.16).
Comosalientámosemrelaçãoaoescudo,oarmamentodefensivoemiralecalifal,nãosofre-ramgrandesalteraçõesdosutilizadosnostempostardo-romanoevisigótico.Defacto,oselmospré-islâmicospeninsulareseramdeformacónicatipoSpagenhelmdeépocavisigóticaequecerta-menteperduraramduranteosprimeirostemposdaocupaçãomuçulmana(SolerdelCampo,2001,p.346).
Ambos cavaleiros estão com armamento ofensivo, interpretado por alguns investigadoresporespadaelança(Maia,2004,p.148;Torres,2004,p.11),masqueasuaesquematizaçãoenívelde fragmentação não permitem, infelizmente, definir características tipológicas destes equipa-mentosbélicos,queforamvariandoaolongodaIdadeMédia.Salienta-seaindaofactodeambaspersonagens,quandovistasposteriormente,estaremdotadosdecinturãoondesuspendiamespadaouadagadedefesapessoal(Fig.8).
Fig. 15Pormenordoescudodocavaleiro (Torres,2004,p.19).
Fig. 13Vistafrontaldocavaleiro (Torres,2004,p.7).
Fig. 14Vistalateraldocavaleiro (Torres,2004,p.7).
O simbolismo da purificação. O “Vaso de Tavira”: iconografia e interpretação Luís Campos Paulo
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 289-316 299
Osoldadooupeãoestá,aparentemente,armadocombesta,apoiadaembaseemformadeforquilha.Estaarmaofensivadesempenhavaimportantesfunçõesnoscontingentesmilitares,apardosarqueiros,permitindooataqueaoinimigoamédia/longadistância(Fig.17).
São escassas as informações de quese dispõe deste tipo de armamento emcontextosmuçulmanos.Sabemos,porém,aexistênciadebestasportáteisnoOcidentedesde o Baixo-Império e que as fonteseuropeiasdocumentamasuaamplautili-zaçãonoséculoX(SolerdelCampo,2001,p.345).NaPenínsulaIbérica,asprimeirasdescrições encontram-se nas pinturasmoçárabesdeSanBaudeliodeBerlangaeno Beato del Burgo de Osma, ambos doséculoXI(SolerdelCampo,2001,p.345).
Caso a cronologia defendida porMárioVarelaGomesestejacorrecta,ecoma qual concordamos, a iconografia doVasodeTavira levantaahipótesedequeestetipodearmamentoterásidoutilizadoainda nos séculos IX-X, tornando estarepresentaçãonamaisantigadoAl-Anda-lusatéagoraconhecida.
Fig. 16CantilcomrepresentaçõesantropomórficasencontradoemSilves(TorreseMacias,1998,p.204).
Fig. 17RepresentaçãodesoldadonoVasodeTavira(Torres,2004,p.19).
Luís Campos Paulo O simbolismo da purificação. O “Vaso de Tavira”: iconografia e interpretação
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 289-316300
Naindumentáriasalienta-seoturbantequeumdoscavaleirosostenta(Fig.18).Estapeçadevestuário, de origem antiga, possivelmente, assíria, persa ou egípcia, é geralmente associada àsvestes masculinas. Com elevada carga simbólica e religiosa, o uso do turbante enquadra-se nanecessidadedosmuçulmanosdecobriremacabeçasemprequeestivessemdianteDeus,sobretudo,duranteoritualdaoração.
Eleé igualmentesímbolodistintivodomuçulmanoemrelaçãoao infiel.Maomépossuíaumturbante.“No dia do Juízo, o Homem receberá luz para cada volta do turbante em torno da cabeça”.Destaforma,usá-loestáconotadocomaaceitaçãodopróprioislamismo(ChevaliereGheerbrant,1994,p.667).
Além do carácter religioso desta peça de vestuário, o turbante é símbolo de investidura,sabendo-sequeoscalifasmuçulmanoscolocavam-noaosviziresduranteosactospúblicos.
De um conjunto, possivelmente, de quatro músicos, foram apenas conservados dois, umtocandoadufeeooutroumtanur (Figs.19e20).
Amúsicadesempenhouimportantepapeldesociabilidadenomundomuçulmano,buscandoassuasorigensàstradiçõesmusicaisgregas,persas,indianasebizantinas.
Esta manifestação estava profundamente marcada na sociedade hispano-muçulmana, nacorteenosmeiosprivadosquotidianosdapopulaçãocivillogonosséculosVIII-X,conformeteste-munhamalgunsartefactosencontradosemintervençõesarqueológicasdosuldePortugal,salien-tando-seostamboresdaAlcáçovadeSilves(séculoVIII)enoCasteloVelhodeAlcoutim(séculosX-XI),bemcomodoisinstrumentosdesoproprovindosdoCastelodeMértola(finaisdoséculoXI,primeirametadedoséculoXII)(AAVV,2001a,p.172;Catarino,1997-1998,p.381-382,848;Gomes,1995,p.27-30;Macias,1996,p.91;Rafael,1998,p.173).
Certosinstrumentosserviamnãoapenasparaamúsicamas,igualmente,paracomunicaragrandesdistâncias,conformepareceindicarosbúziosperfuradosexumadosemPalmela(Fernan-des,2004,p.125),hábitoaparentementevulgarizadonaPenínsula Ibéricae testemunhadoporPlínio(Guerra,1995,p.39).
AmúsicaárabeencontrouoseumaiordesenvolvimentoatravésdomecenatocalifaldadinastiaOmíadadeDamasco,posteriormenteseguidaporBagdadabássidae,maistarde,noAl-Andalus.
Estaprocessava-senumabaseessencialmenteinspiradanosgrandesteóricosdaGréciaantiga,sendoosinstrumentosdepercussão(tambores,adufes)eosdesopro(alaúde)fundamentaisparaaconstruçãomelódica(Thoraval,1995,p.222).
Ascaracterísticasinerentesdaconstruçãomusicalforamdeterminantesparaqueestafosseconsideradapordiversascivilizações,comoumramodamatemática,aharmoniaentreosnúme-roseocosmos.Ossonseritmos,astonalidadeseostimbresproduzidos,associam-seàharmoniadocosmos.
Semdúvida,queemimportantesmanifestaçõessociaisoupessoais,amúsicaestásemprepresente,desempenhandoumafunçãoascética,espiritualedecomunicaçãocomodivinoeasuaessênciasuperior.Estecaráctermísticoatingeoseuapogeunomundomuçulmano,nosufismo,doutrinaquesurgeno Iraquenos finaisdoséculoVII,princípiosdoséculoVIIIenoCaironoséculoIX,eapartirdaqui,expandindo-seportodoomundoislâmico.
Osseusseguidorespretendiamatingiroestadomístico,deuniãocomAllah,baseadoemtrêsvias:adocrente(makhafah)oudapurificação,adoamor(mahabbah)oudosacrifícioe,porúltimo,adoconhecimento(maarifah)(Thoraval,1995,p.287).
Importaaindareferirqueamúsicaestavaigualmentepresentenaguerraemanifestaçõesdeexortaçãoouincitamentoàdjihad.
Comefeito,elateriaumpapelmuitosubtil,masdeterminante,nessesrituaisdeincitamento,comoelementocoadjuvantenaelevadacargapsicológicaqueseimpunhaaosguerreiros.Saliente-
O simbolismo da purificação. O “Vaso de Tavira”: iconografia e interpretação Luís Campos Paulo
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 289-316 301
mosquenosconflitosbélicos,alémdasopçõesestratégicasecapacidadesmilitares,oefeitodamagnificênciaou“aparato”dastropaseadeterminaçãodoscombatentessãofactoresfundamen-taise,nalgunscasos,determinanteparaodesfechofinaldasbatalhas.
Sabemoshojequeashostesmuçulmanasempunhavambandeiraseestandartes,tocavamostamboresetrompetas,comoformadeatemorizaroinimigo,assimcomoeraumelementoindis-pensáveldemanifestaçãodoseupoder.EmiconografiadasCantigas de Afonso X, O Sábio(CantigaCLXV),estãorepresentadastropasmuçulmanasacompanhadascomtamboreseanafis,prepara-dosparaaguerra.
Obarulhoproduzidopelotamborencontra-seassociadoaosomprimordial,sendoqueasuautilização em conflitos bélicos está, certamente, relacionado com o trovão e o raio, enquantoelementosdestruidores.
Asfontesliteráriascristãstestemunhamoterroreoefeitoassustadorquetodoaquelebaru-lhodesempenhavanasbatalhas.ACrónica Geral de Espanhareferequeosruídosdosseusinstru-mentos,conjuntamentecomasvozesealaridosdosmuçulmanos,eramtãograndesqueparecia,queocéueterrasefundiam(PérezHiguera,1994,p.68).Poroutrolado,comoexplicaIbn Haldu-n,tratava-sedeummeiodeexcitarovalordosguerreirosperanteamorte,salientandoqueaexalta-çãoprovocadapelamúsica,tinhaomesmoefeitoqueabebida(PérezHiguera,1994,p.65).
Nesta dialéctica de incitamento à guerra, certamente estariam relacionadas as figuraszoomórficasqueseencontramnoladoopostoaosguerreiros,nãonossendo,noentanto,possí-veldeinterpretá-lasnasuatotalidade,devidoaoelevadoníveldefragmentaçãoqueapresentam(Fig.21).
Autilizaçãoderepresentaçõesdecertosanimaisnadecoraçãodosobjectos,pelassuascaracte-rísticasmorfológicasesimbólicas,evidencia-selogodesdemuitocedonaculturaoriental,consoli-dando-seduranteaépocasassânida,comomanifestaçãodopoder(PérezHiguera,1994,p.80-81).
Umadestasfigurasdo“VasodeTavira”parecerepresentarcaprídeo,levantando-semesmoahipótesedecorresponderaveado,corçoougamo,tudoespéciesqueeramcaçadaspelascomuni-dadesmuçulmanaspeninsularesequeabundamaindahojenatoponímialocal.Recordemosque
Fig. 18Vistafrontaldocavaleiro (Torres,2004,p.18).
Fig. 19Representaçãodemúsicocomtanur (?)(Torres,2004,p.13).
Fig. 20Representaçãodemúsicocomadufe(Torres,2004,p.13).
Luís Campos Paulo O simbolismo da purificação. O “Vaso de Tavira”: iconografia e interpretação
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 289-316302
Fig. 21Vistageraldoconjuntoderepresentaçõeszoomórficas (Torres,2004,p.14).
Fig. 22Pormenordoconjuntoderepresentaçõeszoomórficas (Torres,2004,p.20).
O simbolismo da purificação. O “Vaso de Tavira”: iconografia e interpretação Luís Campos Paulo
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 289-316 303
aactividadecinegéticaconferiaprestígioàselitesdascomunidadesnómadas,estando,naépocamedieval,intimamenterelacionadacomaactividadeguerreira.
ApossívelpresençadafiguraçãodeumcamelonovasodeTavirainscreve-seperfeitamentenumcontextodeincentivoàguerra(Fig.22).
Natradiçãoárabe,ocamelorepresentatodasasqualidadesdesobriedade,resistênciaerapi-dez,necessáriasàsdurascondiçõesdevidanodeserto.Eleéamontadaqueajudaaatravessarodesertoegraçasaoqualsepodeatingirocentrooculto,aessênciadivina(ChevaliereGheerbrant,1994,p.149).«OCamelo»é,igualmente,adesignaçãoqueperpetuoudacélebrebatalhatravadaemal-Basra(Novembro-Dezembrode656),entreocalifa‘Al- Ta-libeaviúvadoProfeta‘A-’ ishaacom-panhada por Talha b. ‘Ubayd Alla-h al-Taym- e al-Zubayr b. al-‘Awwa-m. Aquela figura feminina foielemento central no período conturbado resultante do assassinato do califa ‘Uthma-n b. ‘Affa-n,participandoactivamentenarevoltacontraaeleiçãode‘Al-,desenvolvendoiniciativasparaainsur-reiçãodapopulaçãodediversaspovoaçõescontraocalifa(AAVV,1975,p.424-425).
Oboi(al-baqara)eraconsideradopelosEgípcioscomoumanimallunare,paramuitascultu-ras, símbolo de resistência, força e sacrifício. No livro sagrado do Islão, al-baqara é o título da2.ªSura.Nosimbolismoberbereé consideradoumametáforade trabalho, energiae empenho(Chebel,1995,p.73-74).
Masafiguraquemelhorseidentificaé,semdúvida,atartaruga(soulahfa).Símbolodaperseve-rançaefirmeza,resistênciaeforçaobstinada.Asualongevidadeéassociadaàideiadeimortalidade(Fig.23).
Poroutrolado,acarapaçadatartaruga,deformaredonda,comoaabóbadaceleste,eacha-tadanaparteinferiorcomoaterra,centraemsi,todaarepresentaçãodouniverso,ouseja,nadamaisqueumacosmografia.OpróprioprofetadescreveoCéucomoumacúpuladenácarsobrequatropilares(ChevaliereGheerbrant,1994,p.271),semdúvidaaquirelacionadocomasquatropatasdaqueleanimal.
Fig. 23RepresentaçãodetartaruganoVasodeTavira(Torres,2004,p.15).
Luís Campos Paulo O simbolismo da purificação. O “Vaso de Tavira”: iconografia e interpretação
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 289-316304
Arepresentaçãodatartarugaencontra-se,igualmente,associadaàáguacomoelementorege-nerador,integrando-se,destaforma,nosdiferenteselementosqueinteragemnasimbologiaquesedesenvolvenestapeça.
Todosestesaspectoslevam-nosaumaquestãofulcralno“VasodeTavira”.Aáguadesempe-nhaumafunçãodeterminante,nãoapenasaoquerespeitaàssoluçõestécnicasquepermitemasuacirculaçãonobordoeposteriordeposiçãonointeriordoartefacto,mas,essencialmente,naesferaconceptualesimbólicadoVasodeTavira.
Aágua(al-ma)é,antesdemais,umdoselementosprimordiais,apardaterra,céu,fogoear,desenvolvendo significações simbólicas ao longo dos milénios, que se centram em três temasfundamentais — Fonte de vida, meio de purificação e centro de regeneração (Chevalier e Gheerbrant,1994,p.41).
Simbolizaamanifestaçãodivina,dasuagenerosidadeeavida.OpróprioHomem,segundooAlcorão,foicriadodeumaáguaderramada.Achuvaé,inclusivamente,designadaporRahmat Allah (Chebel,1995,p.149).OsJardinsdoParaísotêmregatosdeáguasvivasefontes,eopróprioTronoDivinoencontra-sesobreaságuas(ChevaliereGheerbrant,1994,p.44).
Aáguasimbolizaapureza,sendoutilizadaparaseprocederàpurificação.Apenasoorantequeseencontraemestadodepurezaritualatravésdasabluções,poderácumprircomaoraçãoritualmuçulmana(çalat).
Apurificação(tahara)estásempreligadaàágua,aofogoeaosangue,aocontráriodoimpuroqueseencontranaterra.Apurificaçãosimbolizaaaspiraçãodocrentenumaformasuperiordevida.Oprópriosomdaáguaacairéextremamenterelaxante,facilitandooprocessodeasceseecomunicaçãocomodivino.
Referimosanteriormente,queesteelementoprimordialcentraemsidiversassimbologias,salientando-seaprópriaregeneração.
NoAlcorãoéreferidoopeixequeélançadonaconfluênciadedoismares,naSuradaCaverna,equeressuscitaquandoémergulhadonaágua.Trata-se,semdúvida,deumtemainiciático—obanhonaFontedaImortalidade(ChevaliereGheerbrant,1994,p.44).
Naverdade,nasuperfícieexternajuntoàbase,estãodispostasrepresentaçõesdepeixes,quiçáumaalegoriaaofundodosmares,nesta“FontedeImortalidade”queéo“VasodeTavira”(Fig.24).
Emcertoscasos,osimbolismodopeixechegaaassociar-seà«mãodeFatma»ou«mãodeFátima», filhadoprofetaemãedoscrentes,querepresentaaprotecção, figuradacomapalmaaberta.Osdedos,recordavamaosfiéis,oscincofundamentosdoIslão,enquantoostrêsdedosmaioresrepresentamapalavraescritadeAllah(Gomes,1988,p.170).
Acimadasrepresentaçõesdospeixes,dispõem-sefiguraçõesdebolbosdelótuspintadosdecorbranca.Temadeorigemoriental,simbolizaaeternidadedavidaeharmoniadocosmos,equefoiamplamentedivulgadonaculturamuçulmana(Paulo,2000,p.230).
Finalmente,oelementoemtornodoqualoritualrepresentadonovasosedesenvolve—atorre.Correspondeaelementodeformasubcilíndrica,porondeeraintroduzidaaáguaque,porsuavez,vertiapelasdiversasfigurasdispostanobordoparaointeriordapeça(Fig.25).
Apresentaprofusadecoraçãonasuperfícieexterna,constituídaporpinturaabranco,interca-landocompequenasincisõeserepresentaçõeszoomórficas,possivelmentealudindoapombas.
Na nossa opinião, esta integra a unidade descrita como representação de um minarete(manara)deumamesquita.Esteimportanteelementodaarquitecturareligiosamuçulmanatinhacomofunçãoochamaroscrentesàsváriasoraçõesdiáriasouaopróprioreagrupamentodemuçul-manos.NestarepresentaçãoéevidenteaalusãoàconvocaçãodosguerreirosàpráticadaGuerraSantapelosimãs.
O simbolismo da purificação. O “Vaso de Tavira”: iconografia e interpretação Luís Campos Paulo
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 289-316 305
Fig. 24PormenordabasedoVasodeTaviracomdecoraçãopintada(Torres,2004,p.17).
Fig. 25VistageraldatorredoVasodeTavira (Torres,2004,p.16).
Luís Campos Paulo O simbolismo da purificação. O “Vaso de Tavira”: iconografia e interpretação
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 289-316306
Esta interpretação reforça-se pelofacto de ser frequente, nas torres ouedifícioemaltura,sealojaremavescomoaspombas,ondefazemosseusninhos,coabitamereproduzem-se(Fig.26).
Senaculturajudaico-cristãapombaestárelacionadacomapureza,asimplici-dade,amensagemdodivinoeoEspíritoSanto,nomundo islâmico,pelocontrá-rio, associa-se essencialmente à imagemdamulher,amorebeleza,sobretudo,napoesia de amor árabe e persa. Porém, opombo relaciona-se com a mensagemdivina,poisforamdoisdaquelesanimaisque Allah enviou ao profeta Muhammadqueestavaescondidonacaverna(Chebel,1995,p.106).
Ascaracterísticastécnicasdefabricoedecorativasqueo“VasodeTavira”ostentatambémsugeremintegraresteartefactonosfinaisdoséculoIXeprincípiosdoséculoX.
Estapeçaapresentaprofusadecoração,atravésdepinturasaengobebrancointercalado,emdeterminadospontos,porpequenasincisõesepunçõesque,namaioriadoscasos,pretendemdarvolumetria, plumagem ou, simplesmente, preenchimento de espaço vazio, às figuras que sedispõemsobreobordo.Osprópriosmotivosdecorativosapresentamcaracterísticasqueseenqua-dramnoâmbitocronológicoproposto.
Adecoraçãopintada,decorbranca,empeçasdepastasvermelhas,alaranjadas,castanhasouacinzentadas,sobreosbordos,colos,corposeasasdasmaisvariadasformaséumatécnicafrequentena cerâmica comum, desde as produções dos séculos VIII-IX, prolongando-se pelos períodosseguintesdapresençaislâmicanaPenínsulaIbérica(Paulo,2000,p.233).
Talrealidadeétestemunhadapelosdiversosmateriaisencontradosnosprincipaisarqueossí-tiosdoSuldePortugal,nomeadamentenasintervençõesrealizadasemSilves,Palmela,AlcácerdoSal, Mesas do Castelinho, Castelo Velho de Alcoutim e Serro das Relíquias (Carvalho, Faria eFerreira, 2004, p. 41-51, 76-78; Catarino, 1997-1998, p. 851-855; Gomes, 1988, 1995, p. 24-31;GuerraeFabião,1993,p.94-100,2002,p.173-174).
Estatécnica,jáconhecidanaPenínsulaIbéricadesdeaIdadedoFerro,comacerâmicapintadaorientalizante,tevegrandedifusãoeacentuadadiversificaçãoeexpressãogramáticanaépocaislâmica.
AstemáticasdecorativasdasproduçõesdosséculosVIII-IX,devemseguiroscontributosétni-coseculturalnorteafricanos,sobretudo,berberes,emboraalgunsdenoteminfluênciasorientais,criandonovasformas,associadosaelementoscoroplásticos,desconhecidospelapopulaçãoautóc-tone.ApartirdoséculoX,verifica-seadiminuiçãodadiversidadedasformasdacerâmicacomumedatemáticadecorativa,paravoltaraacentuar-seduranteodomíniodaspopulaçõesmagrebinas(Gomes,1999,p.1659).
Apinturaégeralmenteaplicadacriandotraçosoblíquosdispostosemsérie,porvezesinterca-lando com outros colocados horizontalmente, formando género de faixas. Séries de dedadas oupinceladasformandomotivosfitomórficos,traçosondulantes,losangos,teoriasdecírculos,elemen-tosovais,finasbandashorizontaiscomreticuladonoseuinterior,sériesdetraçosdispostoshorizon-
Fig. 26PormenordatorredoVasodeTavira(Torres,2004,p.15).
O simbolismo da purificação. O “Vaso de Tavira”: iconografia e interpretação Luís Campos Paulo
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 289-316 307
talouverticalmente,ponteados,motivosespiraliformes,enfim,umaricavariedadetemáticaqueestatécnicadecorativapermite,foisemdúvidaexploradapelosoleiroshispano-muçulmanos(Fig.27).
Apeçaalgarviaagoraemestudooferecediversificadosmotivosdecorativos,comoconjuntodeparesdepequenostraçosfeitosapincelmuitofinos,queseunemapenasnumadasextremida-desequeassentamsobretraçomaisgrossoqueseparaasdiversasbandas(Fig.25).Intercalandocom os conjuntos de traços finos, observam-se grupos de losangos preenchidos por tracejado,figuraspseudo-epigrafadas,diversoselementosfitomórficos,distinguindo-sepequenosbolbosdelótus,tambémpreenchidoscomtracejado(Fig.24).Eaantecederobordo,conjuntosdereticula-dosexecutadosporbateriasdepincéisdeespessuramuitofina,inseridosembandadelimitadaportraçosmaisgrossos(Fig.24).
Agramáticadecorativa,que sumariamenteevidenciámos, surgeemproduçõescongéneresexumadasnocasteloeáreaurbanadeSilves,CerrodaVila(Vilamoura),MértolaeAlcácerdoSal.
Éexemplodessasemelhançaosparesdetraçosverticaisqueseunemapenasnumadasextre-midades e que assentam sobre traço mais grosso, que encontramos semelhante decoração emtaças,púcaros,jarroecantildeSilveseemaguamanilexumadonoCriptopórticodeMértola.Alémdagramáticadecorativadestaúltima,afiguraçãozoomórficadobico,obordoegargaloapresen-tam semelhanças formais com a torre do “Vaso de Tavira” (AAVV, 2001a, p. 110; Bento, 1998,p.104;Gomes,1995,p.27-28,2002,p.492;GómezMartínez,1998,p.105).
Aspectointeressantenasemelhançaeuniformidadedecorativadestaspeçassão,porexemplo,ospseudo-asteriscosrealizadosnabasedatorreeporbaixodeste,nabandadecoradanoVasodeTavira, conjuntode reticulados, idênticosaosverificadosnosbordosdeduas taçasprovindasdopátioanexoaoPoço-CisternadeSilves(Silv.3Q17/C3eSilv.3Q30/C3)edepúcaroprovindodoCriptopórtico-cisternadeMértola(Gomes,1995,p.24,27;Torres,1987,n.º15)(Fig.25).
Os reticulados, inseridos em bandas,executadoscombateriadepincéis,étemadeco-rativorecorrentenasproduçõesemirais,tendosidoidentificadodeentreosmuitosexemplospeninsulares,emtaçadepastasbeges,exumadaem intervenção arqueológica decorrente daconstruçãodaBibliotecaMunicipaldeSilves,oferecendobordoplano,debasealgoconvexa,apresentandonoseuinteriormotivofitomór-ficopintado,semelhanteaoutroidentificadodo castelo daquela cidade (Gomes e Gomes,2001,p.51;GonçalveseSantos,2005,p.190).
A carapaça superior da tartaruga do“VasodeTavira”oferecebandareticuladanoseuinterior,constituídapordoistraçosmaisgrossos, onde se dispõem traços verticaisparalelos(Figs.10e23).Estatemática,queseencontraemperfeitaharmoniacomtodaagramáticadecorativadapeçaalgarvia,temparalelos em motivos inseridos em fundosdetaçasencontradasnosníveisdosséculosVIII-IXeXdeSilves(Gomes,1995,p.24,27--28,30).Fig. 27Versodarepresentaçãodesoldado(Torres,2004,p.8).
Luís Campos Paulo O simbolismo da purificação. O “Vaso de Tavira”: iconografia e interpretação
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 289-316308
Estas produções apresentam fortes influências norte-africanas e orientais, sobretudo nadecoração pintada, como exemplo do cantil, de círculos concêntricos descoberto na escavaçãoarqueológicadoBancoNacionalUltramarino(Tavira),comsemelhançasamotivosencontradosempúcarosejarrasdopalácioomíadadeAmman(Jordânia),queintercalamcomlinhaparalelastransversas,porvezesonduladas,bandascomsériesdepontosemotivosfitomórficosesquemáti-cos(Almagro,JiménezeNavarro,2000,p.176-182).
Arepresentaçãocoroplásticadeelementoszoomórficossurgedesdecedonaarte islâmica.NoMédioOrientesãováriasaspeçasqueaproveitamasformasdedeterminadosanimais,paraintegraremafuncionalidadedoartefacto,possivelmente,cominfluênciasegípciasehelenísticasemvasosglobularesdeformaszoomórficas,designadosporaryballoi.
Destacam-senaarteorientaloconhecidojarrocombicovertedordeformazoomórficadeUmm al-Walid,naJordânia,ouaspeçasegípciascomoosfamososaguamanisdeMarwan,embronze,comvertedoremformadegaloedatadodoséculoVIII(AAVV,2001b,p.44,53).
TambémnopalácioomíadadeAmmanfoiexumadofragmentodebicodeaguamanilcomrepresentaçãodepossívelbovídeo(Almagro,JiménezeNavarro,2000,p.209).
NaPenínsula Ibérica,este tipodeproduções teveoseumaiordesenvolvimentoduranteoperíodocalifal,declarainfluênciaoriental,sobretudo,empeçasdebronzeecerâmica.Salientam-seosaguamanisembronzecomformadepavão,ambos,eventualmente,provenientesdeCórdova,profusamentedecorados,umdatandode972eooutrodefinaisdoséculoXprincípiosdacentúriaseguinte,assimcomooutro,emformadepássaro,comamesmadataçãoeencontradonaregiãodaCerdeña(Espanha)(AAVV,2001b,p.45-50).
Nostanquespalacianoscalifaiseramcolocadasfigurasdeanimais,porvezesembronze,deondevertiaaáguaparaointerior,comoosdoiscervídeosdeMedinatal-Zahra,datadosdoséculoX(AAVV,2001b,p.190-193).
Sãotambémconhecidososcandisdebronzecomfigurasdeanimaisformandoaasa,dispos-tosnapartesuperiordoreservatórioounaseparaçãodocorpocomobico,provenientesdeCacelaeumcandilcomelementoszoomórficos,datadodoséculoX,masqueactualmentesedesconheceoparadeiro(TorreseMacias,1998,p.217-218;Vasconcellos,1899-1900,p.247).Éprecisamentenesteperíodoqueseverificamaiorrecorrêncianasrepresentaçõeszoomórficas,nãoapenascoroplásticasmas,essencialmente,figurativas,salientando-seentreoutros,osdiversificadosmotivosqueorna-mentamacerâmicaesmaltadapolicroma,comdecoraçãoaverdeemanganés,especialmenteemfundosdetaçaseexteriordegarrafasejarros,enasproduçõesemreflexometálicoorientais.
EmvalaclandestinaabertanosítiodaCasadeD.Sancho (Silves), foi recuperadobicodeaguamanil,representandocabeçadefelino,combocaabertaeasorelhaserguidas,emposiçãodeataque.Aiconografiaetemáticasugeremtratar-sedeexemplardoséculoVIII-IX,de influêncianorte-africana(Gomes,1998,p.106).
NaTravessaMartimFarto,emLoulé,foiigualmenteidentificadopequenofragmentodebicovertedorzoomórfico,comsemelhançastécnico-formaisàsrepresentaçõesdeTavira(Luzia,2003b,p.232).AliásestapeçaeajarradecoloaltoidentificadanaCercadoConvento(Loulé),comdeco-raçãopintadaabranco,commotivosconstituídosporbandasgeométricascombinandotraçoshorizontais,ponteadosesegmentosdecírculos,bemcomonobojointercalandocomgruposdetraçosoblíquosemformadeV(Luzia,2003a,p.59)feitosapincelfino,parecemenglobar-senamesmaesferaculturalemiral-califal,comgramáticadecorativasemelhante.
AindanoconcelhodeLoulé,noCerrodaVila(Vilamoura),foiidentificadobicovertedorcomrepresentaçãozoomórfica,possivelmentedegalo.Aliforamigualmentereconhecidaspeças,comoaguamanis,púcaros,jarrinhasecantarinhascomcaracteresmorfotipológicosedecorativosquese
O simbolismo da purificação. O “Vaso de Tavira”: iconografia e interpretação Luís Campos Paulo
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 289-316 309
integramnosséculosIX-X,destacando-se,naquelaúltimaforma,decoraçãoconstituídaportrêstraçosverticaismuitofinos,unidosnumúnicoponto,queassentanaintercepçãodesemicírculos,geminadosdispostosembanda(Matos,1991,p.444-449).
NorestanteAl-Andalusforamidentificadosfragmentosdeelementosdecorativoszoomórfi-coscentrando-se,sobretudo,nosbicosvertedores.Adificuldadenoestudodestesmateriaisresultano facto de, na maioria dos casos, aparecerem descontextualizados e/ou muito fragmentados,desconhecendo-seasuafuncionalidadeecontextualizaçãohistórica.
NaMesetaespanholaforamidentificadostrêsbicosvertedoresdeaguamanil,cujosatributostécnicoseformaisforamclassificadosdoperíodoOmíada(RetuerceVelasco,1998,p.203).
EstesachadostêmaparecidoumpoucoportodaaPenínsulaIbérica,estendendo-sepelaMarcaSuperior, Costa Levantina e Gharb al-Andalus, vulgarizando-se este tipo de produções a partir doséculoIX,conformeindicamosníveisidentificadosemPechina(RetuerceVelasco,1998,p.205).
Nestesentido,asimbologiaquenorteiao“VasodeTavira”evidenciatodasasqualidadesqueos murabitun desejavam alcançar, com resistência e rapidez como o camelo, e a perseverança,firmeza,resistênciaeforçaobstinadaquerepresentaatartaruga,fiéisaoIslão,purificadoseagindoemnomedeAllah.
6. Evocando Yam-la – da lenda ao objecto
Aolongodetodasestasconsideraçõesquetemosvindoaexpor,leva-nosaevidenciarqueoVasodeTavira,deverá,defacto,corresponderapequenapiadeabluções,transmitindoumamensa-gem de apelo à Guerra Santa (Djihad), através de conjunto de elementos com elevada carga designificadosesimbolismos,talcomoédefendidoporMárioVarelaGomes(1998,p.19-20).
Contudo,sobressainesteconjunto,afiguramontadaacavalo,querepresentaumamulher,aparentementedesenquadradadestapropostadeinterpretação(Fig.28).
Ela é a figura central na dialéctica desenvolvida no vaso,tendosidoabaseparaalgunsinvestigadoresconsideraremquenestapeçaseencontravaarepresentaçãodeumraptonupcial,possivelmente,deorigemberbere.
No Alcorão a mulher é apresentada como virtuosa, boaesposa,comrespeitopeloseumaridoesubmissaaoscostumesestabelecidos. Com efeito, ela desempenhava importantesfunções no seio da família, tendo, em contrapartida, umavertenteaonívelsocial,menosvisível.Aliásnemopodia,poisesseestavareservadoaohomem.
Aonívelprivado,elaexerceumaacçãoestruturante,regidapelosentimentodeamor,fidelidadeehonradafamília,defesadoprestígiosocialdomaridoeaconselhamentoadeterminadosproblemas que o afectam, mas sendo apenas ele quem tem adecisãofinal.Assim,oelementofemininoexercefunções-chavena vida social, nomeadamente, na educação das crianças e deautoridademoraldogrupofamiliar.
Sãomuitosospoetasmuçulmanosqueexaltamoamor,abeleza física, os atributos de fidelidade e dedicação das suasesposas, demonstrando respeito e amizade por elas, como
Fig. 28RepresentaçãofemininanoVasodeTavira(Torres,2004,p.18).
Luís Campos Paulo O simbolismo da purificação. O “Vaso de Tavira”: iconografia e interpretação
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 289-316310
descreveIbn ‘Arabi,dasua«santaesposa».OuIbn Darrag al Qastalli,habitantedeCacela,nosfinaisdoséculoX,queexprimenumpoemaoseugrandeamor(Boissellier,1999,p.202).
Mas, no mundo muçulmano, vamos descobrir que existem algumas diferenças ou certasvariaçõesquantoaopapelsocialdamulher,nomeadamenteentreaocidentaleaoriental.
Comefeito,amulherárabeocupasempreumaposiçãosecundáriaemrelaçãoaohomem,devendohonrá-lo,preservarasuanobrezaeimagemsocial,sempredeumaformapassiva.Todaasuaactuaçãodevesercomrespeitoedeumaformahonrosaparacomoseumarido.Eladevecobrirasuaface,terumaposturasubmissaperanteavidaeosoutros.
Contudo,nacomunidadeberbere,apesarde tambémseencontrar socialmentesecundari-zadaqueemrelaçãoaohomem,amulherdetémmaiormargemdeactuação,existindomaisconsi-deraçãoegozandodeumamaior“liberdade”,contrastandocomoestadodesubserviênciaqueencontramosnamulherárabe(Guichard,1998,p.108).
Aestefactonãoestaráalheioofundoculturalquesemprepersistiutardo-romano,visigóticoecristãonaPenínsulaIbéricaeMagreb,bemcomo,daprópriatradiçãobeduína(Guichard,1998,p.109,121-140).
ÉreconhecidoqueoprocessodeislamizaçãodoAl-Andaluscriounovastradições,costumesereligiãonaesferaculturaledasmentalidades,masfundouigualmenteumadialécticaentreestaseofundoculturalautóctone.EstefactofoidamesmaformadeterminanteparadiminuiraforçadosrígidospreceitosdoIslãosobreamulherhispano-muçulmana(Guichard,1998,p.147).
AolongodaHistóriaexistemdiversosexemplosdemulheresqueemmomentosespecíficossurgemcomumpapelmaisactivonavidapolítica,socialemilitar,desempenhandofunçõesquediríamosmaisreservadasaohomem,situaçãoverificada,geralmente,emcomunidadesougruposquetêmconceitosmaisflexíveiseondeamulherseencontranumasituaçãomais“privilegiada”.
SãoexemplososcasosdairmãdeFirmus,quesesobrelevoucontraosromanosnoséculoVI,adeKa-hina,nomequedesigna«aprofetisa»ou«aadivinhadora», figuraquealcançoudiversasvitóriasàfrentedassuastropasberberescontraosárabes(séculoVII-VIII),aviúvadoProfeta‘A-’ isha(656)queseopôsaocalifa‘Al- īTa-īlibeaindaasprincesasdaépocaalmorávida(Guichard,1998,p.106).
Estas«mulheresdeacção»foramdeterminantescomosímbolosderesistência,combateedeapeloaoespíritoguerreiro,marcandoaslendasetradiçõesmuçulmanaspeninsulares.
No Al-Andalus do século IX, reconhece-se a presença de uma figura feminina de origemberbere,denomeīYam-la,irmãdorebeldeMahmud ibn ‘Abd al-Jabbar,deMérida.Ibn Hazm,exaltaī Yam-la,quenãovacilavaemparticiparnoscombates,damesmaformaqueoshomens,tornando-sefamosapelasuabravura(Guichard,1998,p.106).
Defacto,oséculoIXéumperíodoemqueoAl-Andalusassistiuaumjogodetensõespolíticasesociais,nomeadamenteétnicas,entreberbereseacortedeCórdova,acentuando-se,sobretudo,na segunda metade da centúria. A revolta estendeu-se nas áreas de predomínio berbere, essen-cialmentenoCentroeNortedaPenínsula,cominsurreiçõesemdiversascidades,salientando-seaquelasocorridasemMéridaeToledo(Guichard,1998,p.276-278).
Lisboa,porexemplo,revolta-senosanosde808-809,lideradaporHazim Ibn Wahb,repercu-tindo-seemtodaaregiãoocidental,especialmenteemCoimbraeBeja.Em809tropasdoemirdeCórdova, Al-Hakam I, comandadaspor seu filho,opríncipe Hisham,puseramfimà insurreição(Levi-ProvençaleGarcíaGómez,1967,p.104).
Entre811-812e,maistarde,entre818-819,oemircordovêsviu-senanecessidadedeenviartropasparaaMarcaMédiaedesitiaracidadedeToledo.Simultaneamentetevedelutarcontramuladieseberberesinsurrectos,tendoMéridacomocentroderesistência.
O simbolismo da purificação. O “Vaso de Tavira”: iconografia e interpretação Luís Campos Paulo
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 289-316 311
Apósseteanosdeoperaçõesmilitares,Al-Hakam Irestabeleceuaordem,apesardenãoserpormuitotempo.AprópriacidadedeCórdovafoipalcoderevoltasentre805e818.Apardasinsur-reiçõesmuçulmanasnaszonasfronteiriças,houvediversasincursõescristãs,sobreváriascidadeseterritóriosislâmicos.
ComasubidaaopoderdocalifaomíadaAbd al-Rahman II,eapesardasofensivascomotenta-tivadeestabilizaçãodosterritóriosfronteiriços,promovendováriasincursõesaosreinoscristãos,continuavamahaverinsurreiçõescontraogovernodoemir.
Mérida, talcomoToledoeZaragoza,capitaisdeMarca,cidadesde fundaçãoantigaequeresistirammuitoantesdeintegraremaesferapolíticadoIslão,eraconstituídaporumapopulaçãomaioritariamentedemuladiseberberes.Arelativaproximidadecomosterritórioscristãos,possi-velmente com algumas relações económicas, na verdade em muitas circunstâncias se revoltoucontraogovernocentraldeCórdova(Levi-ProvençaleGarcíaGómez,1967,p.138).
Foinestecontextoqueduranteoanode828,oshabitantesdeMéridasejuntaramaoslíderesrevoltosos,oberbereMahmud Ibn ‘Abd al-JabbareomuladiSulayman Ibn Martín,destruindotudooquepudesseligaraopodercentralomíada,assassinandoogovernadornomeadodacidade,Marwan al-Chiliqí(Levi-ProvençaleGarcíaGómez,1967,p.139).
Apósváriastentativas,osexércitosdeAbd al-Rahman IIconseguiram,em830,fazercomqueoshabitantesdeMéridaserendessem,restabelecendoaordemeaautoridade.Noentanto,nosanosseguintesoemirtevedeprocederadiversasincursõesparamanutençãodapraçarebeldeedosterritóriosdaMarcaInferior.Foiprecisamentenoanode835que,aacreditarnalápidedefundaçãoqueaindaaliseencontradisposta,foierguidaafortificaçãodeMérida,comoformadecontrolarnovarebeliãoedeservirdeguarniçãoàstropasomíadas.
Segundo o documento de Ibn Hayyan, Mahmud Ibn ‘Abd a-Jabbar e o Sulayman Ibn Martínconseguiramescaparantesdatomadadacidadepeloemir,pedindoasiloinicialmenteaBadajoze,posteriormente,aoutroscastelosdoValedoGuadiana(IbnHayyan,2001,p.299).
A dedicação e convicção nos seus ideais levaram a que se separassem, tendo Sulayman Ibn MartínseinstaladononortedoAl-Andalus,estabelecendoasuaguarniçãonocastelodeSantaCruzdelaSierra,pertodeTrujillo,ondefoiderrotadoporAbd al-Rahman II em834.Posteriormente,ofilhodeSulayman,Muha-gireosrestantespartidáriosjuntaram-seaMahmud.
Pelocontrário,Mahmud Ibn ‘Abd al-Jabbarestabeleceu-senovaledoGuadiana,possivelmenteemBarrancos(IbnHayyan,2001,p.299-300).ComosreforçosdeMuha-gir,decidiudeslocar-secomosseuspartidáriosberberesesuasmulheres,paraaprovínciadeOssonoba,pelafertilidade,inaces-sibilidadedassuasmontanhaseporficarafastadodosseusinimigos(IbnHayyan,2001,p.300;Levi-ProvençaleGarcíaGómez,1967,p.140).
OshabitantesdeBejaaotomaremconhecimentoqueastropasdeMahmudiampassarnoseuterritório,organizaramumnumerosoexércitoparalhesfazerfrente.
OconfrontocomastropasdeBejaeavitóriaqueMahmudimpôscomumexércitodemenornúmerodeefectivosérelatadoporIbn Hayyan(2001,p.300-302).
PosteriormenteseguiuparaoAlgarve, instalou-sepróximodacosta,nocastelodoMonteSacro(?)(Monchique),ondepermaneceulargosanos,fomentandoarevoltanaregiãoematandoosleaisaocalifa(IbnHayyan,2001,p.303).
Desconhece-sea fortificaçãoreferidaporIbn Hayyan.Noentanto,desdeoséculoXIXqueEstáciodaVeigaidentificounaSerradeMonchiqueoCastelodoAlferce,dadoaconhecerporsuasobrinha-netaMariaLuísaEstáciodaVeigaSantos(1972,p.69).Fortificaçãodeplantadeformarectangular,dotadadecisternanoseuinterior,oferecesegundalinhademuralhaquecontornaatopografiadoterreno,estacertamenteconstruídaposteriormente,nafasefinaldoperíodoislâ-
Luís Campos Paulo O simbolismo da purificação. O “Vaso de Tavira”: iconografia e interpretação
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 289-316312
mico,paraadefesadeumadasprincipaisviasdeligaçãoentreoBaixoAlentejoeoAlgarve(Gomes,2002,p.123-126).Recenteprojectodeinvestigaçãoversandoaquelemonumentomilitar,desen-volveuintervençãoarqueológicaidentificandoespóliointegrávelnoperíodoemiral-califal,asso-ciando-seaesteatipologiadaestruturadefensivacentral(Grangé,2005,p.162-171).
Apósoenviodediversasmilícias,olíderrebeldefoidaliexpulsopeloexércitoomíadaem838.Dirigiu-seàGalizaerecebeudeAfonsoIIumfeudonazonafronteiriçaentreoPortoeLamego,reali-zandofrequentesraziaseincursõesemterritóriomuçulmano(Levi-ProvençaleGarcíaGómez,1967,p.141).Posteriormente,Yam-lapromoveavindadeMahmudparaoAl-Andalus,salientandoafidelidadeaosoberanodeCórdova,chegandoaqueleaescreveraAbd al-Rahman II,ondelhepediaperdãopelasuaconduta(Levi-ProvençaleGarcíaGómez,1967,p.141;Guichard,1998,p.106).AoterconhecimentodestasituaçãoAfonsoIIdecideatacarofeudodeMahmud,quefoipresoemortoem840.
OperíodoconturbadodaprimeirametadedoséculoIX,prolongou-sepelasdécadasseguin-tesnaMarcaInferior,sobretudopelomovimentopromovidoporIbn Marwaneosrestanteslideresdos pequenos reinos independentes. A partir dos finais da centúria, o movimento de rebeliãodesencadeouumaverdadeiraguerracivil,chegandomesmoahavernaactualregiãodoAlgarve,insurreiçõeslocaisdemuladieseberberes.ÉprecisamentenesteperíodoqueseformamdiversosreinosondeseencontraodeIbn BackremOssónoba.
Emnossoentender,afigurafemininarepresentadano“VasodeTavira”poderáevocarprecisa-menteadeYam-la,enquantosímboloderesistência,deapeloaocombateedeincentivoàGuerraSanta.SalientaIbn Hayyan,queosfeitosheróicosqueYam-ladesenvolveunabatalhacontraastropasdeBeja“foicomentadaportodaagentenadiversascomarcasdoAndalus,sendoafaçanhacantadanasfestasdasregiõesdoOcidentedurantemuitotempo”(IbnHayyan,2001,p.302).AqueleautorreferemesmoqueolíderrevoltosoteveajudadeDeusparatãograndevitória(IbnHayyan,2001,p.303).
AdivulgaçãodaimagemecargasimbólicadeverátertidomaiordifusãoquandoseuirmãoMuhamudestevenoAlgarve,conspirandocomoutrosrevoltososdaprovíncia.
Comefeito,arepresentaçãofemininadapeçadeTavira,nãoapresentaumaposturasubmissa,dequemestavanocentrodeumraptonupcial.Pelocontrário,elamostraumaposiçãoagressiva,diriamesmodecombate,demonstrandoasuabravuraecoragem.Aposturadebraçosabertosevidenciaaafirmaçãodoindivíduo,ésemdúvida,umaposiçãodeconfrontação,deataque.
Lamentavelmentenãodispomosdosmembrossuperioresdafigurafeminina,queatépodiamempunhar o estandarte de Mahmud que a crónica refere, quando Yam-la liderou a cavalaria demulheres(IbnHayyan,2001,p.302).
Poroutrolado,salientemosqueoraptonasociedademuçulmanaeraconsideradodesonrosoparaafamíliaougrupovítimadorapto,daíqueesteeraconsequentementepraticadoquandosetratavamdegruposinimigosouestrangeiros(Guichard,1998,p.79-80).
OsfeitosdeYam-lanocampodebatalha,certamentevalorizadopelasuacondiçãodemulher,tornou-senummitooulenda,representadonumapiadeabluções,constituindoumexemploaseguir, um ideal, integrado num ritual de purificação de preparação para guerra santa. Nestesentido,podemosmesmolevantarahipótesedequeasrepresentaçõesdosdoiscavaleirossãoosdeMuhamud Ibn ‘Abd al-Jabbar eSulayman Ibn Martín,ouentãodeseufilhoMuha-gir.
Comestaimportantepeça,concluímosqueTaviraesteveenvolvidaequeasuapopulaçãoparticipouactivamentenesteperíodotãoconturbadodaHistóriadoGharb Al-Andalus.Desconhe-cemososgruposétnicosqueconstituíamapopulaçãohispano-muçulmanadeTavira.Porémsabe-mosquearegiãodoAlgarvetevefortecolonizaçãoberbere,encontrando-semesmonotermodeTaviradiversostopónimoscomoBemParece,Benamor,BenalforouBengado,possivelmenteradi-candoasuaorigemnonomeBanu ‘Amir(Marques,1993,p.141).
O simbolismo da purificação. O “Vaso de Tavira”: iconografia e interpretação Luís Campos Paulo
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 289-316 313
7. Considerações finais
Arealidadeartefactualqueo“VasodeTavira”easrestantespeçasqueseencontravamasso-ciadas, como o contentor de forma toncocónica com orifícios aparentemente para suspensão,panelasepúcaro,ajarraoferecendocorpoglobularachatadoeassenteemfundoalgoconvexo,gargalotroncocónicoeduasasasopostas,decoradaporlinhashorizontaisepequenostraçossub-verticais, comclarosprotótiposemAlcácerdoSaleSilves, classificadosdos finaisdoEmirado(Fig.29),ocantileumaasadetalhadeformazoomórfica,exumadanasescavaçõesarqueológicasdaPensãoCastelo,naáreaurbanadeTavira,emuitopróximodoarqueossítiodoBancoNacionalUltramarino,oferecendodecoraçãodelevestraçosdeengobebranco(Fig.30),apresentamumauniformidadetecnológicaedecorativaqueseenquadramnosfinaisdoséculoIXeprincípiosdoséculoX.
Ascaracterísticasformaisdo“VasodeTavira”resultamdospreceitosnecessáriosdoritualdaablução.
Na Península Ibérica conhecem-se actualmente apenas mais duas peças com semelhançasformais.NaalcariaislâmicadeBofilla,naregiãodeBétera(Valência),foramencontradosdoisreci-pientesdecerâmicacomtipologiasemelhanteaodeTavira,masdivergindoemdiversosaspectos(LópezElum,1994,p.324-328)(Figs.31e32).
Ambaspeçasespanholassugeremfuncionalidadedistinta,servindocomovasoparafloresououtrotipodeplanta,existindoparaesseefeitopequenoorifícionabaseparaoexcessodeágua(Fig.33).SegundoLópezElum,aindahojeétradicionalnasfestasdeAgostodaregiãodeBétera,autilizaçãodevasosparaplantaralfádega(espéciedemanjericão),equesãocolocadasnasportasejanelasdashabitaçõesparticulares(LópezElum,1994,p.324-325).
Fig. 29JarradescobertanasescavaçõesarqueológicasdoBNU(Maia,2003b,p.301).
Fig. 30AsadetalhadescobertanasescavaçõesarqueológicasdaPensãoCastelo(Maia,2003c,p.301).
Fig. 31VistageraldapeçaencontradanasescavaçõesarqueológicasemalcariaBofilla(Valência)(LópezElum,1994,p.325).
Luís Campos Paulo O simbolismo da purificação. O “Vaso de Tavira”: iconografia e interpretação
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 289-316314
Por outro lado, estas peças não usufruem da riqueza decorativa que a congénere algarviaapresenta,desprovidasdepinturasouqualquertipodeacabamento.Adecoraçãoplásticadispostaigualmentenobordolimita-seaconjuntosdeelementogeométricossugerindopequenastorresecúpulas.
Apenasumadestaspeçasdetémsistemainternoporondepassariaoslíquidosnelaintrodu-zidos.Aáguaseriaigualmenteconduzidaporumatorre-funilevertiaapenasportrêsdasquinzefigurasqueacompõem,produzindoumaregacontroladaparaointeriordorecipiente.
AcresceaindaaausênciadeníveisestratigráficosemBofilla,pelofactodosubstratorochosoestarmuitoàsuperfície,pelosdanosprovocadospelostrabalhosagrícolas,peladinâmicaconstru-tivamedievalterdestruídoosvestígiosmaisantigos,eaindapelopovoadotermantidoumaocupa-çãobastantevastadesdeoséculoXIaoXIV(LópezElum,1994,p.136).
ApesardassemelhançasformaisentreaspeçasdeBofillaedeTavira,verificamosqueambastêmfuncionalidadesecronologiasmuitodistintas.
O“VasodeTavira”encerraemsimúltiplosaspectossobrearealidadevividapelascomunida-deshispano-muçulmanasdoGharb al-Andalus.
OselementossimbólicoseconceptuaisdecadafiguramoldadaerepresentaçãopintadaempeçadestinadaapiadeabluçõesparaintegrarritualdeincitamentooudepreparaçãoparaaGuerraSanta(djihad),emquecadaumdesseselementostransmitiamaosmurabitumosvaloresnecessáriosparadefenderoIslão.
Adescobertadestaimportantepeçanaáreaurbana,remetendoaeventual“mito”ou“lenda”deMahmud Ibn ‘Abd al-JabbaresuairmãYam-la,ecomcaracterísticastécnico-formais,integráveisnosfinaisdoséculoIXeprincípiosdacentúriaseguinte,recolocaaquestãodasorigensmuçulma-nasdacidadedeTaviraeasuaimportânciaestratégicanocontextogeo-políticoeeconómicoislâ-micodoSotaventoAlgarvio.
Fig. 32VistageraldeoutrapeçasemelhantedescobertaemBofilla(Valência)(LópezElum,1994,p.328).
Fig. 33PerspectivasuperiordapeçadaalcariaBofilla(Valência)(LópezElum,1994,p.326).
O simbolismo da purificação. O “Vaso de Tavira”: iconografia e interpretação Luís Campos Paulo
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 289-316 315
NOTAS
* Arqueólogo. BolseirodaFundaçãoparaaCiênciaeTecnologia– IIIQuadroComunitáriodeApoio. luiscampospaulo@yahoo.com
BIBLIOGRAFIA
AAVV(1975)-Encyclopédie de l’Islam,Leyde:G.P.MaisonneuveMaxBresson.
AAVV(1992)-Al-Andalus. Las artes islámicas en España.Madrid:EditorialViso.
AAVV(2001a)-Museu de Mértola. Arte islâmica.Mértola:CampoArqueológico;CâmaraMunicipal.
AAVV(2001b)-El esplendor de los Omeyas cordobeses.Granada:FundaciónElLegadoAndalusí.
ALMAGRO,A.;JIMÉNEZ,P.;NAVARRO,J.(2000)-El Palacio Omeya de ‘Amman.Granada:CSIC.
BENTO,A.(1998)-Cantil.InPortugal Islâmico. Os Últimos Sinais do Mediterrâneo,Lisboa:MuseuNacionaldeArqueologia,p.104.
BERNUS-TAYLOR,M.(2000)-Jatteàdécord’animauxetdepersonnages.InLes Andalousies de Damas à Cordoue.Paris:InstitutduMondeArabe,p.156.
BOISSELLIER,S.(1999)-Naissance d’une identité portugaise. La vie rurale entre Tage et Guadiana de l’Islam à la Reconquête.Lisboa:INCM.
CARVALHO,A.R.;FARIA,J.C.;FERREIRA,M.A.(2004)-Alcácer do Sal islâmica. Arqueologia e História de uma Medina do Garb Al-Andalus
(Séculos VIII-XIII).AlcácerdoSal:CâmaraMunicipal
CATARINO,H.(1997/98)-OAlgarveOrientalduranteaocupaçãoislâmica.Al-Ulyã.Loulé.6,3vols.
CATARINO,H.(2002)-O Algarve islâmico. Roteiro por Faro, Silves e Tavira.Faro:ComissãodeCoordenaçãodaRegiãodoAlgarve.
CHEBEL,M.(1995)-Dictionnaire des symboles musulmans. Rites, mystique et civilisation.Paris:AlbinMichel.
CHEVALIER,J.;GHEERBRANT,A.(1994)-Dicionário dos Símbolos.Lisboa:Teorema.
FERNANDES,I.C.(2004)-O Castelo de Palmela do Islâmico ao Cristão.Lisboa:Colibri.
GOMES,M.V.(1998)-Portugalislâmico.Oestadodaarte?.Al-madan.Almada.7,p.19-20.
GOMES,R.V.(1988)-CerâmicasmuçulmanasdoCastelodeSilves.Xelb.Silves.1.
GOMES,R.V.(1995)-CerâmicasmuçulmanasdeSilves,dosséculosVIIIeIX.In1.as Jornadas de Cerâmica Medieval e Pós-Medieval,Tondela:Câmara
Municipal,p.19-32.
GOMES,R.V.(1998)-Bicodejarroaguamanil,Portugal Islâmico. Os últimos sinais do Mediterrâneo.Lisboa:MuseuNacionaldeArqueologia,p.106.
GOMES,R.V.(1999)-Silves (Xelb)-Uma Cidade do Gharb al-Andalus. Arqueologia e História (séculos VIII-XIII).DissertaçãodeDoutoramentoem
História-EspecialidadedeArqueologia,Lisboa:UniversidadeNovadeLisboa(textopolicopiado).
GOMES,R.V.(2002)-Silves (Xelb): Uma cidade do Gharb al-Andalus. Território e cultura.Lisboa:IPA.
GOMES,R.V.(2003)-Silves (Xelb): Uma cidade do Gharb al-Andalus. A alcáçova.Lisboa:IPA.
GOMES,R.V.;GOMES,M.V.(2001)-Palácio almóada da Alcáçova de Silves.Lisboa:MuseuNacionaldeArqueologia.
GOMÉZMARTíNEZ,S.(1998)-Jarroaguamanilcomvertedorzoomórfico.Portugal Islâmico. Os últimos sinais do Mediterrâneo.Lisboa:Museu
NacionaldeArqueologia,p.105.
GONÇALVES,M.J.;SANTOS,A.L.(2005)-NovostestemunhosdosistemadefensivoislâmicodeSilveseosrestososteológicoshumanos
encontradosjuntoàmuralhadeumarrabalde-notíciapreliminar.Xelb.Silves.5,p.178-200.
GRANGÉ,M.(2005)-LeCerrodoCastelodeAlferce(Monchique,Faro):Premièrehypothèsessurlagenèseetl’évolutiondupeuplement
médiévaldanslaSerradeMonchique(Ve-XIIIesiècle).Xelb. Silves.5,p.157-176.
GUERRA,A.(1995)-Plínio-o-Velho e a Lusitânia.Lisboa:Colibri.
GUERRA,A.;FABIÃO,C.(1993)-UmafortificaçãoomíadaemMesasdoCastelinho(Almodôvar).Arqueologia Medieval.Porto.2,p.85-102.
GUERRA,A.;FABIÃO,C.(2002)-MesasdoCastelinho,Almodôvar:umafortificaçãoruralislâmicadoBaixoAlentejo.InMil Anos de Fortificações
na Península Ibérica e no Magreb (500-1500).Palmela:Colibri;CâmaraMunicipal,p.171-176.
GUICHARD,P.(1998)-Al-Andalus. Estructura antropológica de una sociedad islámica en Occidente.Granada:Universidad.
IBNHAYYAN(2001)-Crónica de los Emires Alhakam I y ‘Abdarrahmīn II entre los anos de 796 y 847 (Almuqtabis II-1).Zaragoza:InstitutodeEstudios
ydelOrientePróximo.
LEVI-PROVENÇAL,E.;GARCíAGÓMEZ,E.(1967)-EspañamusulmanahastalacaídadelcalifadodeCórdoba(711-1031).InHistoria de España.
Madrid:R.Espasa-Calpe.
Luís Campos Paulo O simbolismo da purificação. O “Vaso de Tavira”: iconografia e interpretação
REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 289-316316
LÓPEZELUM,P.(1994)-La alquería islámica en Valencia. Estudio arqueológico de Bofilla. Siglos XI a XIV.Valencia:Ed.doAutor.
LUZIA,I.(2003a)-Cerâmicas islâmicas da Cerca do Convento (Loulé).Loulé:CâmaraMunicipal.
LUZIA,I.(2003b)-TestemunhosdaocupaçãoislâmicaemAl-’Ulyà.Xelb. Silves.4,p.219-234.
MACIAS,S.(1996)-Mértola islâmica. Estudo histórico-arqueológico do Bairro da Alcáçova (Séculos XII-XIII).Mértola:CampoArqueológicodeMértola.
MAIA,M.(2003a)-VasodeTavira,comdecoraçãocoroplástica.InTavira. Território e Poder.Lisboa:MuseuNacionaldeArqueologia,p.300.
MAIA,M.(2003b)-Jarrinha.InTavira. Território e Poder.Lisboa:MuseuNacionaldeArqueologia,p.301.
MAIA,M.(2003c)-Asazoomórfica.InTavira. Território e Poder.Lisboa:MuseuNacionaldeArqueologia,p.301.
MAIA,M.G.P.(1999)-Catálogo Exposição lendas das mouras encantadas de Tavira.Tavira:CâmaraMunicipal;CampoArqueológicodeTavira.
MAIA,M.G.P.(2004)-OvasodeTaviraeoseucontexto.InPortugal, Espanha e Marrocos - O Mediterrâneo e o Atlântico.Faro:Universidadedo
Algarve/CentrodeCulturaÁrabe,IslâmicaeMediterrânica,p.143-166.
MAIA,M.;MAIA,M.G.P.(2002)-AsmuralhasmedievaisepostmedievaisdeTavira,Património Islâmico dos Centros Urbanos do Algarve: Contributos
para o Futuro.Faro:ComissãodeCoordenaçãodaRegiãodoAlgarve,p.67-81.
MAIA,M.;MAIA,M.;TORRES,C.(1998)-Vaso.InPortugal Islâmico. Os últimos sinais do Mediterrâneo.Lisboa:MuseuNacionaldeArqueologia,
p.99.
MARQUES,A.H.deO.(1993)-Portugaldasinvasõesgermânicasà«Reconquista».InNova História de Portugal, I.Lisboa:Presença.
MATOS,J.L.(1991)-CerâmicamuçulmanadoCerrodaVila.InCerâmica Medieval no Mediterrâneo Ocidental.Mértola:CampoArqueológicode
Mértola,p.429-456.
NAVARROPALAZÓN,J.;ROBLESFERNÁNDEZ,A.(1996)-Liétor. Formas de vida rurales en Sarq al-Andalus a través de una ocultación de los siglos X-XI.
Murcia:Ayuntamiento.
PAULO,L.C.(2000)-AchadosislâmicosemudéjaresnoCentroHistóricodeÉvora.A Cidade de Évora.Évora.IIªSérie.4,p.219-236.
PÉREZHIGUERA,T.P.(1994)-Objectos e Imágenes de Al-Andalus.Barcelona:Lunwerg.
RAFAEL,L.(1998)-Instrumentomusical(?).InPortugal Islâmico. Os últimos sinais do Mediterrâneo.Lisboa:MuseuNacionaldeArqueologia,p.173.
RETUERCEVELASCO(1998)-La cerámica andalusí de la Meseta.Madrid:Cran,S.L.
SANTOS,M.L.E.daV.A.dos(1972)-Arqueologia romana do Algarve.Lisboa:AssociaçãodosArqueólogosPortugueses.
SOLERDELCAMPO,A.(2000)-ElarmamentomedievalislamicoenlaPenínsulaIbérica.InPera guerrejar. Armamento medieval no espaço português.
Palmela:CâmaraMunicipal,p.15-36.
SOLERDELCAMPO,A.(2001)-Elarmamentoomeyapeninsular.InEl esplendor de los Omeyas cordobeses.Granada:FundaciónElLegado
Andalusí,vol.I,p.344-349.
THORAVAL,Y.(1995)-Dictionnaire de civilisation musulmane.Poitiers:Larousse.
TORRES,C.(1987)-Cerâmica islâmica portuguesa.Mértola:CampoArqueológicodeMértola.
TORRES,C.(2004)-O Vaso de Tavira: uma proposta de interpretação.Mértola:CampoArqueológicodeMértola.
TORRES,C.;MACIAS,S.(1998)-O legado islâmico em Portugal.Lisboa:CírculodeLeitores.
VASCONCELLOS,J.L.(1899-1900)-DaLusitâniaàBética.O Archeólogo Português.Lisboa.5,p.225-249.