Post on 10-Jan-2017
CURSO DE PSICANÁLISE PARA PSICOTERAPEUTAS
Grupo de Estudos Psicanalíticos de Campinas
O SENTIMENTO DE SOLIDÃO
HELIANA LUISA GUARDIANO REIS
Campinas – São Paulo – Brasil
Ano - 2013
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SUMÁRIO
Introdução 3
Parte I - A Solidão na Posição Esquizo-Paranoide 6
Música – Pedaço de Mim 7
Parte II – A Solidão nos Estados Maníacos-Depressivos 9
Música – Fera Ferida 10
Parte III – A Solidão na Posição Depressiva 12
Música – Dança da Solidão 13
Parte IV – Defesas contra a Solidão 15
Conclusão 16
Bibliografia 18
Referências Musicais 19
3
Resumo
O presente trabalho tem como objetivo fazer uma reflexão sobre como
se instala e se desenvolve o Sentimento de Solidão, de acordo com M. Klein.
Partindo basicamente do artigo publicado postumamente, “Sobre o
sentimento de Solidão” (1963). Nele são descritas três configurações
psíquicas: da posição esquizo-paranoide, da fase maníaco-depressiva e da
posição depressiva. Desenvolve o tema considerando as ansiedades, defesas
e fantasias que prevalecem, no sistema kleiniano. Para atravessar o árido
caminho conceitual e diante da necessidade de aproximar o fenômeno vivido
do seu sentido, no nível mais simbólico, a autora se apoia na riqueza da
Música Popular Brasileira. Apresenta algumas canções e versos musicais, que
podem ilustrar essas configurações presentes tanto no desenvolvimento
normal, quanto nas patologias; quando o sentimento vigente é a solidão.
Introdução
Um dos principais objetivos de Melanie Klein foi evidenciar que desde
o início da vida havia um ego rudimentar, que sob a influência de demandas
pulsionais e externas em constante interação, se movimenta em direção ao
desenvolvimento. Uma teoria relacional baseada na experiência clínica, a
partir do atendimento de crianças pequenas e pacientes psicóticos inovou e
revolucionou a Psicanálise. O sistema kleiniano é composto por ansiedades,
4
mecanismos de defesas e fantasias que sustentam todo o processo. Assim,
identifica padrões de funcionamento psíquicos mais harmônicos ou mais
desequilibrados, normais e patológicos.
No Congresso de Copenhagen, em 1959, M. Klein apresentou o artigo
que inspirou e sustenta este trabalho. O artigo foi publicado postumamente:
“Sobre o sentimento de Solidão” (1963), ela descreve de forma clara, qual a
sua compreensão a respeito deste sentimento. Evidencia a natureza essencial
das primeiras relações objetais no estabelecimento da qualidade deste
sentimento, bem como as implicações e dificuldades que levam a
configurações mais rígidas ou patológicas.
Para M. Klein, a solidão seria: “o resultado de uma ânsia onipresente
por um estado interno perfeito, inalcansável. Tal solidão que é vivenciada,
em alguma medida por todos, brota de ansiedades paranoides e depressivas
que são derivadas das ansiedades psicóticas do bebê.” (p.341)
Ao tentar descrever fenômenos psíquicos, dinâmicos, intensos e vivos,
é preciso atravessar a linguagem, que pode tornar-se concreta, complexa, ou
quase incompreensível. “Assim o brincar, o cantar, o escrever, a produção
artística, enfim, visa encontrar formas de expressão, pondo em andamento o
interjogo das pulsões e do desejo” (p.48).
A partir da dificuldade de entrar em contato, com crianças gravemente
comprometidas, M. Klein começou a usar os brinquedos e desenvolveu a
técnica lúdica, trazendo uma nova possibilidade: a intervenção psicanalítica
precoce.
“Nós somos medo e desejo, somos feitos de silêncio e sons, tem certas coisas
que eu não sei dizer” (18)
Pensando nesta necessidade de aproximar o fenômeno vivido, do seu
sentido, no nível mais simbólico, busca-se o auxílio das expressões artísticas:
música, poesia e imagens podem nos acompanhar nesta jornada de tentar
compreender, pensar, e sonhar o que se passa, quando o sentimento gritante
5
e vigente é a solidão.
Pode ser tocante perceber como, às vezes, uma personalidade forte e
talentosa pode se desintegrar, se despedaçar e ir se arrastando para o breu...
Uma vida inteira, de dor, de desamparo e solidão. Há vários exemplos que a
literatura, o cinema, o teatro e a música nos oferecem para ilustrar, e assim
colaboram de forma extraordinária para compreendermos de que matéria,
nós seres humanos somos feitos.
A linguagem é um instrumento sofisticado, antes dela se vive muito,
experiências iniciais são carregadas de emoções brutas, viscerais, na luta
incessante entre as pulsões de vida e de morte. Algo, que se passa em níveis
pré-verbais, numa outra forma de comunicação, acessada pela intuição e
vivida de forma inconsciente.
Nesta trilha, a música tem uma função única, porque pode nos trazer a
melodia, o tom, o acorde, o ritmo que embala a emoção básica daquele
momento. Aliada, a poesia e a letra nos oferece um conjunto precioso de
acalanto. Desde as cantigas de ninar, até a ópera, ela nos remete a uma
possibilidade de representação muito especial e humana: “Desse modo, o
sofrer pode ter seu escoamento na música que ampara, criando redes,
caminhos... para assim não esgarçar o tecido mental.” (p.48).
A partir disso, dentre tantos talentos e muitas possibilidades, para o
recorte deste trabalho selecionou-se, algumas canções e versos que possam
embalar o árido caminho, que pretendemos atravessar, para pensar o
sentimento de solidão.
“Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa, não sou
alegre nem sou triste – sou poeta!” (08)
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Parte I – A Solidão na Posição Esquizo-paranoide
“Derrama o leite bom na minha cara e o leite mau na cara dos caretas” (06)
A partir do nascimento, um ego rudimentar submetido às pulsões de
vida e de morte, trava uma batalha pela sobrevivência e o objeto externo
tem uma influência muito grande no desenvolvimento dele. O processo que
foi descrito para compreender como surgem as emoções e no caso, o
sentimento de solidão começa assim, segundo Klein: “o perigo de ser
destruído pela pulsão de morte dirigida contra o self contribui para a cisão
dos impulsos em bons e maus; devido a projeção desses impulsos sobre o
objeto originário, este também é cindido em bom e mau. “Algo está sendo
fundado aqui, neste interjogo, de forças internas e externas, estabelece-se o
alicerce do funcionamento psíquico. Vale ressaltar que há também, desde o
início, uma tendência a integração que aumenta com o desenvolvimento do
ego.
“Você tem fome de quê?” (19)
O interesse está em compreender como ocorre o processo, nesses
estágios iniciais: a fragilidade do bebê humano é algo comovente, precisa-se
do outro para sobreviver. A mãe-seio-leite é imprescindível, o olhar
apaixonado, que reflete e sustenta; o colo que acalma e conforta, matam a
fome do corpo e da alma.
“Por que você me deixa tão solto, por que você não cola em mim, estou me
sentindo muito sozinho.” (21)
A ansiedade persecutória atinge o seu auge por volta do terceiro mês
de vida. Mas afinal do que se trata? No importante artigo de 1946, “Notas
sobre alguns Mecanismos Esquizoides”, Klein descreve que a ansiedade é
vivida como um temor persecutório e que este incrementa a ação de
mecanismos de defesa característicos desta posição: a cisão, a idealização, e
a identificação projetiva são coloridas pela onipotência de que o mundo gira
em torno de si. Na verdade, ela nos ensina que é um desespero incontrolável,
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porque o bebê deseja e precisa de algo que o objeto tem e sente que não
quer lhe dar. A inveja está implícita, os impulsos hostis são intensos a
capacidade de tolerar, esperar é pequena; e então se sente insegurança,
desconfiança... Que é uma das “raízes da solidão”. (p.342)
“Quem espera que a vida seja feita de ilusão, pode até ficar maluco ou
morrer na solidão...” (20)
Sabemos que na esquizofrenia, o processo é mais intenso, exacerbado
e portanto patológico. Os mecanismos de cisão e a identificação projetiva
ocorrem de forma que o ego fica muito fragmentado. Nas palavras de Klein:
“O esquizofrênico sente que está irremediavelmente despedaçado e nunca
terá a posse do seu self... este fator está vinculado à solidão.” (p.344). Afinal,
rodeado por um mundo hostil ele conclui que ficou isolado e perdido com
sua desgraça. Outro aspecto importante refere-se a esse excesso de
fragmentação gerar também confusão, ele já não sabe diferenciar o bom ou
mau objeto, nem o que é realidade interna ou externa. A dor e o imenso
sofrimento levam ao isolamento. Há uma aparente indiferença, um vazio -
não nasceu a esperança.
Pedaço de Mim (03)
Chico Buarque
Oh, pedaço de mim oh, metade afastada de mim leva o teu olhar que a saudade é o pior tormento é pior do que o esquecimento é pior do que se entrevar
Oh, pedaço de mim oh, metade exilada de mim leva os teus sinais que a saudade dói como um barco que aos poucos descreve um arco e evita atracar no cais
Oh, pedaço de mim oh, metade arrancada de mim
8
leva o vulto teu que a saudade é o revés de um parto a saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu
Oh, pedaço de mim oh, metade amputada de mim leva o que há de ti que a saudade dói latejada é assim como uma fisgada no membro que já perdi
Oh, pedaço de mim oh, metade adorada de mim lava os olhos meus que a saudade é o pior castigo e eu não quero levar comigo a mortalha do amor adeus
A melodia melancólica, desta canção arrebatadora, remete ao escuro,
frio e desamparado sentimento de solidão. A poesia se puder ser prosa, vai
contando sobre o objeto adorado, que partiu. E partindo arrancou, amputou
a metade do ser. Quem vive pela metade, neste tormento de estar para
sempre de castigo, condenado e entrevado? A dor latejante de não ter ficado
nada, nem o vulto, nem um sinal... o revés do parto, é morte. A morte
psíquica pode acontecer em seres vivos, que se sentem incapazes e desistem.
O narcisista, tentando se proteger do mundo e do outro acaba por sucumbir
à morbidez da própria solidão.
Outro aspecto interessante, que fomenta o sentimento de solidão é a
incapacidade de se relacionar com as partes excindidas e perdidas. A dor de
não pertencer ao outro e nem de ser capaz de recuperar as partes também
solitárias.
“Sou um pobre diário perdido na areia, esperando que você me leia!” (11)
9
Parte II – A Solidão nos Estados Maníaco-depressivos
“Ou me odeia desesperadamente ou disfarçadamente me tem amor” (09)
No curso de desenvolvimento normal, a distância entre o objeto bom e
o objeto mau começa a diminuir, porque as ameaças foram amenizadas, e as
experiências de satisfação vão integrando e fortalecendo o ego. No entanto
há ambivalências e outra configuração surgindo.
No artigo Klein, sobre os estados maníacos depressivos (1935), ela
explica:”A dependência torturante e perigosa em relação aos objetos amados
impele o ego a busca de liberdade. No entanto, sua identificação com esses
objetos é profunda demais para ser abandonada. Por outro lado, o ego é
perseguido pelo medo dos objetos maus. Na tentativa de escapar de todo
esse sofrimento, o ego recorre a vários mecanismos, alguns dos quais,
originando-se de diferentes fases do desenvolvimento, são mutuamente
incompatíveis.” (p.318)
A tentativa ansiosa de negar a importância do objeto, usando o
sentimento de onipotência tem como propósito controlar e dominar o
objeto. “Esta depreciação da importância do objeto e o desprezo por ele, é
uma característica específica da mania e permite ao ego atingir a indiferença
parcial que percebemos lado a lado com sua fome de objetos.” (p.320).
Em casos extremos a necessidade de ter o objeto, aparece como um
controle onipotente sobre ele, há ainda muita desconfiança, portanto não há
condição de se manter uma atitude de trocas, de companheirismo. Isso pode
se expressar numa tendência ao suicídio.
“Eu não existo longe de você e a solidão é o meu pior castigo.” (04)
10
O caminho do desenvolvimento psíquico, não é linear, nem
progressivo, parece mais com uma trilha sonora, que tem nuances: notas
fortes; claras e intensas, silêncios e intervalos; notas mais profundas e tristes.
A variação depende do afeto, do estado emocional que prevalece.
Dependendo de como o self atravessou a posição esquizo-paranoide, se
houve um predomínio da tendência a integração, ele se vê nesse período
transitório que se assemelha aos estados maníaco-depressivos.
“Entre o amor e o ódio a linha é tênue, meu bem... A indiferença escorre fria
a me ferir.” (09)
Portanto, mais do que o esquizofrênico, ele sente a necessidade de ter
o objeto bom em segurança, dentro de si, para poder preservar esse objeto e
protegê-lo. Neste caso, a intenção parece boa, porém ele não é capaz de
realizar tal tarefa. Uma vez que o processo de integração ainda não foi
concluído, ainda aparecem os sentimentos hostis que dificultam a síntese,
voltam as ameaças e a tendência a cindir novamente. Neste balanço
frenético, há grandes oscilações, entre querer muito e não se sentir amado.
Então: “A ânsia de ser capaz de superar todas essas dificuldades em relação
ao objeto bom faz parte do sentimento de solidão.” (p.346)
“Eu finjo ter calma... a solidão me apressa!” (05)
A forma de se defender inclui negação da necessidade do objeto, o
triunfo sobre ele e o desprezo, marcando a dificuldade de discriminação
entre amor e ódio.
Fera Ferida (01)
Maria Bethânia
Acabei com tudo escapei com vida tive as roupas e os sonhos rasgados na minha saída mas saí ferido sufocando o meu gemido fui o alvo perfeito muitas vezes no peito atingido
11
Animal arisco domesticado esquece o risco me deixei enganar e até me levar por você eu sei quanta tristeza eu tive mas mesmo assim se vive morrendo aos poucos por amor
Eu sei o coração perdoa mas não esquece à toa o que eu não me esqueci
Eu andei demais não olhei pra trás era solta em meus passos bicho livre sem rumo sem laços
Me senti sozinha tropeçando em meu caminho à procura de abrigo uma ajuda um lugar um amigo
Animal ferido por instinto decidido os meus passos desfiz tentativa infeliz de esquecer.
Eu sei que flores existiram mas que não resistiram à vendavais constantes eu sei as cicatrizes falam mas as palavras calam o que eu não me esqueci
Não vou mudar esse caso não tem solução sou fera ferida no corpo na alma e no coração
Eu sei que flores existiram mas que não resistiram à vendavais constantes eu sei as cicatrizes falam mas as palavras calam o que eu não me esqueci
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A melodia forte e intensa dessa canção, aliada a poesia composta de
forma tão clara, leva a noção de sobrevivência, a luta desesperada e
triunfante de não precisar desse amor, de sair ferido, mas ainda com vida.
Não olhar pra trás, tropeçando e rasgando os sonhos. Uma tentativa infeliz,
no entanto, porque se as palavras calam o que não me esqueci... há negação.
As defesas desabam quando se conclui que não há possibilidade de mudança,
fera ferida, no corpo, na alma e no coração, é de uma dor lancinante que
beira a morte. A solidão aqui vem desse desespero da procura de um lugar,
de um abrigo que não se tem, internamente.
Parte III – A solidão na Posição Depressiva
“O amor é um grande laço, um passo para uma armadilha!” (07)
A partir de um núcleo de ego estabelecido, o processo de coesão e
integração vai acontecendo e se instalando no self. A percepção de que o
objeto amado e odiado é o mesmo, traz novos afetos e consequências. M.
Klein, descreve de forma elucidativa: “isso significa que os lados destrutivos
são repetidamente excindidos e recuperados, até que se efetive uma maior
integração. Como resultado, o sentimento de responsabilidade torna-se mais
forte, e a culpa e a depressão são mais plenamente vivenciadas. Quando isso
acontece o ego é fortalecido, a onipotência dos impulsos destrutivos fica
diminuída juntamente com a inveja e é liberada a capacidade de amor e
gratidão que estivera abafada no decurso dos processos de cisão” (p.257).
A necessidade de ser alimentado, acolhido, acalmado e compreendido
pode ser satisfeita na medida em que self e objeto se integram, se entrosam
e encontram o ritmo que irão dançar, nesta situação harmônica está a base
da confiança, da segurança, da tranquilidade: a partir do qual poderá brotar
esperança e a criatividade.
“Peitos fartos, filhos fortes, sonhos semeando um mundo real”. (15)
13
Klein sugere que “a dor que acompanha os processos de integração
também contribui para a solidão, pois significa fazer face aos próprios
impulsos destrutivos e partes odiadas do self... Integração também significa
perder um pouco da idealização que coloriu desde o início, a relação com o
objeto bom.” (p.346)
“O meu desafio é andar sozinho, esperar no tempo os nossos destinos, não
olhar para trás, esperar na paz o que me traz a ausência do seu olhar.” (13)
A formação do self é um caminho doloroso, a necessidade de se
identificar com o outro e ser capaz de se separar sem se despedaçar, faz-se
necessária. Encantos que se quebram, ilusões que se desfazem, estão
relacionadas a capacidade de enfrentar os desafios de ser um, para depois se
ligar ao outro.
Dança da Solidão (22)
Marisa Monte
Solidão é lava que cobre tudo amargura em minha boca sorri seus dentes de chumbo...
Solidão, palavra cavada no coração resignado e mudo no compasso da desilusão...
Viu! Desilusão, desilusão danço eu, dança você na dança da solidão...
Camélia ficou viúva, Joana se apaixonou, Maria tentou a morte, por causa do seu amor...
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Meu pai sempre me dizia: meu filho tome cuidado, quando eu penso no futuro, não esqueço o meu passado oh!...
Desilusão, desilusão danço eu, dança você na dança da solidão viu! Desilusão, desilusão danço eu, dança você na dança da solidão...
Quando vem a madrugada meu pensamento vagueia corro os dedos na viola contemplando a lua cheia...
Apesar de tudo existe uma fonte de água pura quem beber daquela água não terá mais amargura oh!...
Desilusão, desilusão danço eu, dança você na dança da solidão viu! Desilusão, desilusão danço eu, dança você na dança da solidão...
Danço eu, dança você na dança da solidão..
Desilusão! Oh! Oh! Oh!..
Nesse lindo samba, aparece o efeito de se ter uma fonte de água pura
onde a amargura pode ser suportada. O ritmo traz a alegria, e a tristeza que
pode ser enfim, dançada. Se a lava houvesse destruído tudo, nada restaria
nem eu nem você... Os casos extremos. No entanto, a desilusão não é morte,
é um estado onde a realidade se impõe mostrando sua face e revelando as
verdadeiras possibilidades. A capacidade simbólica é a resultante desse
15
processo, pode-se pensar o que foi vivido, criar, tocar um instrumento e
contemplar a lua cheia. A lua é cheia de luz, e de esperança. No compasso
está a resignação, a capacidade de lidar com o que se tem, de usufruir da
vida sem ressentimentos.
“Eu desço dessa solidão... quanto ao pano dos confetes, já passou meu
carnaval!” (16)
Parte IV – Defesas contra a solidão
“Sabe o que eu queria agora, meu amor, morar no interior do meu
interior...” (12)
Os principais mecanismos de defesa já foram descritos, no entanto na
vida cotidiana todos usam de uma forma ou de outra, defesas para ir
driblando o sentimento de solidão. No final do artigo, que também coincide
com o final da sua vida, onde o anjo da morte, talvez, já se fizesse presente,
M. Klein discorre sobre situações defensivas tão bem ajustadas, que nem se
vivencia de maneira consciente.
1- Dependência: algumas pessoas tem uma necessidade de depender do
outro que permanece como um padrão por toda a vida.
2- Fuga para o objeto interno: na tentativa de anular a dependência do
outro, há uma atitude de rejeição de qualquer companhia.
3- Idealização do passado: usada principalmente na velhice, aparece
como uma tentativa de evitar as frustrações do presente.
4- Idealização do futuro: usada pelos jovens, de forma semelhante surge
para que se possa suportar o que virá.
5- Apreço dos outros e o sucesso: ligada ainda a necessidade de ser
apreciado e reconhecido, pode levar a um otimismo exagerado.
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6- Negação: pode atrapalhar o estabelecimento das boas relações de
objeto.
Há uma consideração a ser feita, em relação ao superego:
segundo o sistema kleiniano, o bebê traz consigo algumas condições
ou tendências, para a integração-desintegração, bem como para maior
ou menor tolerância à frustração. Isso somado ao relacionamento que
irá estabelecer com as figuras parentais, formará um superego mais ou
menos severo. Quanto mais implacável ele for, mais intensas serão as
ansiedades tanto paranoides quanto depressivas e maior será o
sentimento de solidão. “Eu preciso aprender a ser só...” (17)
Conclusão
“De perto ninguém é normal...” (06)
A obra de M. Klein é extensa, a mente criativa e perspicaz aliada a
grande sensibilidade para captar os afetos, nos envolve de forma única. A sua
história de vida também foi marcada por eventos dramáticos de dor,
conflitos, embates, perdas e solidão. Ela conclui o seguinte: “todos os fatores
no desenvolvimento a que me referi nunca chegam a eliminar totalmente o
sentimento de solidão” (p 352). Nessa afirmação parece nos alertar para uma
incessante busca de completude, que jamais será alcançada.
“Ainda bem que agora encontrei você, o meu coração já estava acostumado,
com a solidão...” (14)
Quando aborda essas configurações psíquicas, da posição esquizo-
paranoide, dos estados maníacos depressivos e da posição depressiva,
pretende estabelecer alguns critérios. O objetivo é oferecer elementos que
caracterizem alguns estados psíquicos presentes tanto no desenvolvimento
normal, quanto nas patologias. A dinâmica parece com a de um
caleidoscópio, dependendo do ângulo que se observa pode prevalecer mais
17
um funcionamento do que outro; ou ainda, qualquer movimento pode
alterar novamente a imagem configurada.
A música atende de forma profunda, a essas variações, a poesia brinca
com as palavras e a melodia dança com elas. Em alguns pontos, pode parecer
se tratar exclusivamente de relações amorosas. Importante ressaltar, que na
verdade trata-se, de um fenômeno humano que pode ocorrer em qualquer
vínculo e independente do objeto. Estas configurações fazem parte de uma
dinâmica inconsciente que se estabelece nas escolhas e nas formas de se
relacionar. Mesmo nos exemplos apresentados como ilustração, poderia
articular novas percepções, novas composições, novos vértices. O estímulo
está no exercício inesgotável, de buscar o sentido.
“Minha solidão se sente acompanhada...” (02)
A vida pode ser uma grande oportunidade, para ir desenvolvendo a
competência de se relacionar. Na infinita possibilidade de encontros e
desencontros vai se depurando a condição de ser e de estar com o outro.
“Vou te contar os olhos já não podem ver, coisas que só o coração pode
entender, fundamental é mesmo o amor, é impossível ser feliz sozinho, o
resto é mar...” (10)
Bibliografia
Ajzenberg,R. A Música segundo Tom Jobim.: Aproximações. Artigo da revista
Psicanálise e Cultura, São Paulo, 2011.
Cintra,E.M.de U. e Figueiredo, L.C.: Melanie Klein: Estilo e Pensamento. São
Paulo: Escuta, 2010.
Grosskurth,P.: O Mundo e a Obra de Melanie Klein. Rio de Janeiro: Imago,
1992.
18
Klein, M.: Inveja e Gratidão e outros trabalhos. Obras Completas. Rio de
Janeiro: Imago, 1991.
________ Uma Contribuição à Psicogênese dos Estados Maníaco-Depressivos
(1935). In: Amor, Culpa e Reparação. Cap.17. Pg 301. Rio de Janeiro: Imago,
1996.
________ Notas sobre alguns Mecanismos Esquizoides (1946).In: Obras
Completas. Cap.1. Pg.167. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
________ O Sentimento de Solidão (1963).In: Obras Completas. Cap.16.
Pg.341. Rio de Janeiro: Imago. 1991.
Segal, H.: Notas sobre a Formação de Símbolos (1979). In: Melanie Klein –
Hoje. Cap.3. Pg.167. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
Referências musicais: <www.youtube.com.br>
01 – BETHÂNIA, Maria. Fera Ferida. 1993.(3:27)
02 – BUARQUE, Chico. Iolanda. 1993.(4:50)
03 – BUARQUE, Chico. Pedaço de Mim. 1979.(3:41)
04 – CALCANHOTO, Adriana. Fico assim sem Você. 2004.(3:10)
05 – CAROLINA, Ana. Nua. 2009.(4:56)
06 – COSTA, Gal. Vaca Profana. 1984.(4:45)
07 – DJAVAN. Faltando um Pedaço. 1988.(4:29)
08 – FAGNER. Eu Canto. 1978.(4:12)
19
09 – GADU, Maria. Linha Tênue. 2012.(3:31)
10 – JOBIM, Tom. Wave. 2000.(4:03)
11 – LEE, Vander. Esperando Aviões. 2006.(4:09)
12 – LEE, Vander. Onde Deus possa me Ouvir. 2006.(4:10)
13 – LEO, Leandro. João de Barro. 2012.(5:35)
14 – MONTE, Marisa. Ainda Bem. 2011.(3:46)
15 – MONTE, Marisa. Vilarejo. 2008.(3:26)
16 – RAMALHO, Zé. Chão de Giz. 1991.(4:50)
17 – REGINA, Elis. Preciso aprender a ser Só. 1973.(4:19)
18 – SANTOS, Lulu. Certas Coisas. 1988.(4:14)
19 – TITÃS. Comida. 1997.(3:56)
20 – TITÃS. É preciso saber Viver. 2006.(4:22)
21 – VELOSO, Caetano. Sozinho. 2011.(3:38)
22 – VIOLA, Paulinho da. Dança da Solidão. 2001.(2:42)