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FACULDADE DE DIREITO MILTON CAMPOS
Patricia Duarte Costa Menta
O REGIME JURÍDICO DAS ORGANIZAÇÕES DA
SOCIEDADE CIVIL DE INTERESSE PÚBLICO (OSCIPS)
Nova Lima
2008
Patricia Duarte Costa Menta
O REGIME JURÍDICO DAS ORGANIZAÇÕES DA
SOCIEDADE CIVIL DE INTERESSE PÚBLICO (OSCIPS)
Dissertação apresentada ao curso de Mestrado da Faculdade de Direito Milton Campos, como requisito parcial à obtenção do título de mestre em Direito, na área de concentração Direito Empresarial. Orientador: Prof. Dr. Wille Duarte Costa
Nova Lima
2008
FACULDADES MILTON CAMPOS
2008
Dissertação intitulada O regime jurídico das Organizações da Sociedade Civil de
Interesse Público (OSCIPs), de autoria da aluna Patricia Duarte Costa Menta,
analisada pela banca examinadora constituída pelos seguintes professores:
__________________________________________
Prof. Dr. Wille Duarte Costa - orientador
__________________________________________
Prof. Dr. Carlos Alberto Rohrmann
__________________________________________
Prof. Dr. Lucas de Alvarenga Gontijo
__________________________________________
Prof. Dr. Jason Soares de Albergaria Neto
Nova Lima, 21 de outubro de 2008.
Dedico este trabalho a meus pais, que me ensinaram que sem persistência e
determinação não se vai muito longe.
Dedico-o ainda a meu querido companheiro Fred, que, como um anjo do céu, veio
pra mim como um porto que guarda com pureza o amor necessário para enfrentar
toda e qualquer dificuldade da vida.
RESUMO
O Terceiro Setor, compreendido por ações realizadas tanto por pessoas físicas
quanto por pessoas jurídicas de direito privado, surge como coadjuvante do Estado
na consecução das atividades sociais. Para tanto, faz-se necessário construir um
novo arcabouço legal que reconheça o caráter público de um conjunto, imenso e
ainda informal, de organizações da Sociedade Civil; e, ao mesmo tempo, facilite a
colaboração entre essas organizações e o Estado. Trata-se de construir um novo
marco institucional que possibilite a progressiva mudança do desenho das políticas
públicas governamentais, de sorte a transformá-las em políticas públicas de parceria
entre Estado e Sociedade Civil em todos os níveis, com a incorporação das
organizações de cidadãos na sua elaboração, na sua execução, no seu
monitoramento, na sua avaliação e na sua fiscalização. Apesar da não-submissão
do particular ao princípio da legalidade da mesma forma como ocorre com a
Administração Pública; a Lei nº. 9.979/1999 visa, no geral, a estimular o crescimento
do Terceiro Setor, fortalecendo a sociedade, mas intensifica o teor de subordinação
das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs) à lei. Descobrir
qual o regime jurídico das entidades do Terceiro Setor não é uma tarefa simples,
pois há que se entender o funcionamento da Administração Pública e implica
descobrir qual a parcela de princípios e normas jurídicas aplicáveis a determinado
fato social.
Palavras-chave: Organizações da sociedade civil de interesse público,
Administração Pública, Terceiro Setor, Regime jurídico.
ABSTRACT
The Third Sector, limited by actions that were accomplished by individuals as well as
legal entities of private law, emerges as the States’ coadjutant in the consecution of
social activities. For such, it is necessary to build a new legal framework, which
recognizes the public character of an immense and still informal assemblage, of
organizations of the Civil Society, and, in the same time may facilitate the
collaboration between these organizations and the State. It is about building a new
institutional mark that will enable a progressive change in the government’s public
polices framework, in such a manner that it may transform them into public policies of
partnership between the State and the Civil Society in all levels, incorporating
citizens’ organizations during its elaboration, its execution, its monitoring, its
evaluation and its inspection. In spite of the non submission of its particular towards
the principle of legality, the Public Administration, with the proviso Law number
9.979/1999 is intended, in a general, to stimulate the growth of the Third Sector,
giving strength to the society, although it will intensify the Organizações da
Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs) subordination content’s to the law. To
discover which is the juridical regime of the entities of the Third Sector is not a simple
task, for there is a need to understand how the Public Administration operates and it
also implies in discovering which are the principles bit and the juridical rules that are
applied in a determined social fact.
Key-words: Public administration, Civil society, Third Sector, Juridicial regime.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................8
1 DO ESTADO MODERNO AO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO...............14
1.1 Contextualização ...........................................................................................16
2 A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA......................................................24
2.1 A estrutura do Estado ...................................................................................25
2.2 A Reforma do Aparelho do Estado...............................................................27
2.3 O Ato Administrativo .....................................................................................32
2.3.1 O Financiamento do Terceiro Setor ..........................................................33
2.3.2 O Fomento ................................................................................................34
2.3.3 Interesse Público.......................................................................................38
2.3.3.1 A supremacia do interesse público sobre o privado ......................................40
2.4 A Prestação dos Serviços Públicos.............................................................41
2.4.1 Formas Típicas de Delegação: Concessão e Permissão..........................43
2.4.2 Os Serviços Sociais ..................................................................................44
3 O TERCEIRO SETOR............................................................................................46
3.1 Conceito de Terceiro Setor ...........................................................................49
3.2 Histórico .........................................................................................................50
3.2.1 O Terceiro Setor no Brasil .........................................................................52
3.3 O Que é Terceiro Setor..................................................................................58
3.4 Atributos do Terceiro Setor ..........................................................................59
3.4 Formas Jurídicas do Terceiro Setor.............................................................61
4 A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E A SOCIEDADE ...............................................63
4.1 A Declaração de Utilidade Pública ...............................................................64
4.2 Certificado de Fins Filantrópicos .................................................................65
4.3 O Marco Legal do Terceiro Setor .................................................................66
4.3.1 Organizações Sociais – OS ......................................................................67
4.3.2 Organização da Sociedade Civil de Interesse Público ..............................69
4.3.2.2 Formas de Parceira .......................................................................................72
4.4 Formas de Controle .......................................................................................77
4.4.1 Projeto de Lei nº 3.877/2004.....................................................................78
4.5 As Parcerias Público-Privadas .....................................................................78
5 REGIME JURÍDICO DAS ORGANIZAÇÕES MARCO LEGAL DO TERCEIRO SETOR.................................................................................................................80
CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................85
CONCLUSÃO ...........................................................................................................88
REFERÊNCIAS.........................................................................................................97
LEGISLAÇÃO.........................................................................................................103
8
INTRODUÇÃO
Ao que parece, a verdadeira solução para a realização dos direitos sociais é o
trabalho conjunto em torno de um espírito de solidariedade entre Estado, mercado e
sociedade a partir da ação voluntária de responsabilidades com o desenvolvimento
humano e como um exercício de soberania nacional.
Na última década, os principais problemas que vêm afetando a sociedade -
destruição do meio ambiente, explosão populacional, narcotráfico, proliferação de
doenças, instabilidade dos mercados financeiros, aumento da pobreza e
desemprego - passaram a ser reconhecidos como questões que vão além das
fronteiras e excedem os recursos de que dispõem os Estados. Pela primeira vez
organizações de cidadãos desempenham papel decisivo na definição de uma nova
agenda, na qual democracia e direitos humanos, respeito ao meio ambiente,
igualdade de gênero, luta contra a pobreza e a exclusão social são reconhecidos
como questões do interesse de toda a humanidade. O crescente protagonismo e
influência dos cidadãos nos debates sobre a nova ordem mundial, antes privilégio
dos Estados e de multinacionais, configura o surgimento de um novo segmento
social.
Um novo padrão de relacionamento entre atores públicos e privados está sendo
testado em experiências inovadoras através de um relacionamento de mobilização
para o enfrentamento de questões definidas consensualmente como de inequívoco
interesse público.
Em tempos atuais, nenhum Estado tem condições de enfrentar sozinho os novos
desafios do mundo contemporâneo. Apenas esforços coletivos orientados podem
minimizar ou superar as graves ameaças que pairam sobre a humanidade e auxiliar
em suas reais necessidades.
9
A população mundial está envolta na teia global, fenômeno que expande as novas
tecnologias, invade fronteiras, modifica costumes, constrói e destrói mercados, e
que, com a sua dinâmica, dificulta o controle estatal sobre ele.
A formação de uma sociedade global modifica substancialmente as condições de
vida e trabalho, o modo de ser, sentir e imaginar. Provoca transformações com
implicações econômicas, políticas e sociais, resultando na dissolução de fronteiras e
gerando, com isso, o enfraquecimento do Estado, que não consegue mais controlar
os fluxos de capitais, pessoas, dinheiro e outros bens.
Percebe-se que o Estado já não é mais o único responsável pelo seu próprio
destino. Seu poder político está colocado frente a frente com o mercado, dele
encontra-se dependente e é-lhe impossível controlar relações que extrapolam seus
limites territoriais, fazendo com que ele tenha seu poder de decisão reduzido.
Diversos posicionamentos sobre o papel do Estado - que atenda a reais
necessidades modernas - vêm sendo debatidos desde o final do século passado. A
discussão sai da esfera econômica e passa aos diversos ambientes sociais, e seus
efeitos e desdobramentos para a sociedade implicam uma diferente percepção da
nova estrutura social, econômica e política que sobrepõe o controle desse Estado.
Diante das dificuldades para cumprir as inúmeras tarefas de caráter social que são
enfrentadas - a fraqueza econômica do setor público e sua incapacidade de
satisfazer as demandas sociais -, o Estado acaba por devolver à sociedade parte da
responsabilidade na realização dos direitos sociais.
Pode-se dizer que o denominado Estado Social coloca o poder público como agente
- protetor e defensor - da promoção social e organizador da economia. Nesta
orientação, o Estado é o agente regulamentador de toda vida e saúde social, política
e econômica do país, mas, ao mostrar-se ineficiente na realização dessas
atividades, face às crescentes demandas sociais de uma sociedade heterogênea,
tem sua capacidade instrumental comprometida.
10
O Estado Social busca superar a contradição entre a igualdade política e a
desigualdade social. E só recebe essa denominação quando confere direitos do
trabalho, da previdência, da educação, da cultura, bem como quando intervém na
economia, regula o salário, a moeda e os preços, combate o desemprego, age como
mantenedor da saúde, sempre fundado no reconhecimento da dignidade da pessoa
humana.
O Estado brasileiro - ao longo dos anos 70 e 80 - buscou organizar um modelo de
Estado do Bem-Estar Social, na tentativa de satisfazer algumas demandas da
população desprotegida. Entretanto, desde as décadas citadas o Brasil não
considera os gastos com políticas sociais como investimento produtivo. A maior
parte das políticas adotadas no Brasil são semelhantes às antigas políticas
assistencialistas européias - destinadas mais a remediar a pobreza do que
efetivamente criarem uma maior eficiência econômico-produtiva e gerar novas e
maiores riquezas.
Em outras palavras, a política social brasileira da época, além de ser insuficiente
para cobrir as necessidades da população de mais baixa renda de maneira a evitar a
perpetuação dos bolsões de pobreza e gerar novas riquezas, não somente em
termos de quantidade, mas também de qualidade; exclui, na prática, os segmentos
de alta e média renda. Estes fazem uso cada vez mais freqüente dos sistemas
privados autônomos, seja no campo da saúde, seja no campo das entidades -
abertas ou fechadas - de previdência privada.
A Constituição de 1988, considerada constituição cidadã, consagra o conjunto das
políticas sociais no Brasil - numa fase cujas condições econômicas se tornam cada
vez mais precárias; o Brasil passa toda a década de 1990 preso a empréstimos do
Fundo Monetário Internacional (FMI) e sujeito às regras do Consenso de
Washington,1 que privilegia os interesses dos capitais financeiros internacionais e
1 Roberto Candelori, no artigo “O consenso de Washington e o neoliberalismo”, escrito à Folha de S. Paulo, <http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u11503.shtml>, conta que, “reunidos na capital americana em novembro 1989 no International Institute for Economy, funcionários do governo dos EUA, dos organismos internacionais e economistas latino-americanos discutiam um conjunto de reformas essenciais para que a América Latina superasse a crise econômica e retomasse o caminho do crescimento”. As conclusões desse encontro passaram a ser denominadas informalmente como o Consenso de Washington - expressão atribuída ao economista inglês John Williamson e
11
são avessas a quaisquer políticas sociais. Sendo assim, com a crise econômica e
nas finanças públicas, os direitos constitucionais adquiridos passaram a ser, desde
meados dos anos 90, um dos conflitos a serem enfrentados numa eventual reforma
do Estado. A crise do Estado do Bem-Estar Social no Brasil chegou antes que ele
pudesse ser, de fato, implantado em sua plenitude.
Dessa forma, frente à impossibilidade de o Estado cumprir com suas obrigações de
protetor e promotor, nasce um setor que assume a responsabilidade atribuída pela
Constituição Federal de 1988 como forma de exercício de cidadania e, ao mesmo
tempo, de combate à real ineficiência estatal na realização dos direitos sociais: o
Terceiro Setor.
Setor que tem, no momento atual da sociedade, duas realidades que devem ser
consideradas no seu desempenho: a realidade de sanar as questões sociais não
resolvidas pelo Estado Social e as demandas sociais de que o mercado abdicou nas
suas tradicionais limitações. Essa realidade envolve a filantropia empresarial, os
financiamentos de agências nacionais e estrangeiras, as redes de empresas que
investem na gestão de conhecimento e metodologias para reverter às carências e a
realidade do comprometimento e da missão de privilegiar o ser humano. Essas
novas relações, então, exigem uma nova forma de gestão nas organizações sociais.
O Terceiro Setor reaviva espaços na sociedade e começa a mostrar a sua
importância na relação que visa à integração com o primeiro e segundo setores no
diálogo de políticas sociais necessárias, no treinamento eficaz de gestores sociais e
na multiplicação de seus atores. Destaca a idéia de que os bens e serviços públicos
resultam não apenas da atuação do Estado, mas também de uma multiplicação de
iniciativas particulares.
representavam uma corrente de pensamento na defesa de um conjunto de medidas técnicas em favor da economia de mercado, que visavam, em tese, a recuperação econômica dos países latino-americanos. Denominadas "neoliberais", essas medidas foram aplicadas inicialmente no programa de governo de Margareth Thatcher, a partir dos anos 80. Tendo como eixo central o combate ao poder dos sindicatos e a redução do papel do Estado na economia (Estado mínimo), empregou-se o receituário neoliberal: privatização das empresas estatais, flexibilização da legislação trabalhista, redução da carga fiscal e abertura comercial.
12
Chamando-as por um único nome, obtém-se uma idéia maior de sua escala, que na
verdade é co-extensiva à própria noção de Estado. No limite, não há serviço público
que não possa, em alguma medida, ser trabalhado pelas iniciativas particulares. A
própria manutenção da ordem é direito e responsabilidade de todos, segundo a
Constituição de 1988.
Entre todas as expressões em uso, o termo Terceiro Setor vem tendo maior
aceitação para traduzir o conjunto de iniciativas provenientes da sociedade, voltadas
à produção de bens públicos. O nascimento desse setor representa, em tese, uma
transformação profunda no que tange o papel do Estado e do mercado e, em
particular, à forma de participação do cidadão na esfera pública.
Diante do aparecimento desse novo setor, recém-surgido na legislação brasileira e
na doutrina - considerado uma das áreas mais novas e multidisciplinares das
Ciências Sociais - como uma alternativa viável para que o Estado consiga cumprir
tarefas que, financeira e ou materialmente se mostraram de difícil execução e, a
partir de uma pesquisa bibliográfica e de uma análise das legislações vigentes;
estabelece-se como problema a ser solucionado a seguinte indagação: qual o
regime jurídico das entidades-marco do Terceiro Setor?
Nesse intuito, o presente trabalho é um rico campo que se pretende explorar como
forma de reforçar o debate acadêmico. Para melhor entendimento foi dividido em
cinco partes.
O primeiro capítulo aborda o desempenho e evolução do Estado através de uma
breve contextualização histórica desde o Absolutismo, que passa pelo Estado
Liberal, pelo Estado do Bem-Estar Social até chegar ao Estado Social e Democrático
de Direito, trazido pela Carta Magna. Também examina a estrutura administrativa
estatal, que justifica a oportunidade do ingresso do Terceiro Setor no novo
paradigma de Estado brasileiro.
O capítulo segundo analisa a Administração Pública e a organização do Estado na
promoção de suas atividades, em especial na prestação dos serviços públicos.
Analisa sua estrutura e as novas tendências de gestão abordando a necessidade da
13
redefinição das funções estatais. Nesse intuito apresenta a Reforma do Estado
Brasileiro, que busca uma reestruturação gerencial baseada nos princípios da
eficiência e da subsidiariedade definindo o ato administrativo e as atividades de
fomento às entidades que garantem os direitos fundamentais - de responsabilidade
não só do Estado, mas de toda a sociedade.
O terceiro capítulo apresenta a origem do setor – baseada na impossibilidade do
Estado e do mercado de solucionarem todos os problemas da sociedade. Apresenta
seu conceito, seu histórico – abrangendo o surgimento no Brasil, que culmina em um
novo relacionamento com o Estado, que passa a considerá-lo um aliado – apresenta
as formas que as entidades que o constitui podem assumir e a questão da não-
exclusividade do Estado na prestação dos serviços de interesse social.
No quarto capítulo, é examinada a sociedade como parceira da Administração
Pública na prestação dos serviços sociais e os títulos que a Sociedade Organizada
pode receber para atuar no Terceiro Setor. O capítulo abrange, ainda, o marco legal
que proporciona a manutenção e o desenvolvimento do setor.
O quinto e último capítulo, à luz da conclusão, trata dos aspectos que caracterizam o
regime jurídico das Organizações Sociais e das Organizações da Sociedade Civil de
Interesse Público, indicando qual a parcela de princípios e normas abrangidos por
elas e contribuindo para a conclusão da pesquisa proposta.
14
1 DO ESTADO MODERNO AO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
As diversas mudanças na forma de concepção do Estado trazem inovações no
Direito. A parceria entre o Poder Público e a iniciativa privada quer significar tanto
formas antigas, quanto a concessão e a permissão de serviços públicos como novos
modos de relacionamento entre o público e o privado.
Quando se afasta a idéia do Estado como maior prestador de serviços para a
consecução de seus fins, nasce a vontade de que o Estado seja não aquele que faz
diretamente, mas o grande estimulador, o que ajuda e subsidia a iniciativa privada;
pautando-se sempre pela participação popular nos órgãos deliberativos, consultivos
e de controle, e pela interação entre poder público e setor privado, para que não
mais tenha lugar aquela Administração Pública verticalizada e unilateral, rígida em
suas formas de agir e de se pensar, buscando sempre a eficiência em suas ações.
O surgimento do Estado de Direito, significando a submissão do Estado a uma
ordem legal, afasta a antiga idéia de que o que agradava ao príncipe tinha força de
lei, ou de que o rei não errava. Ainda no primeiro Estado que surge em decorrência
desses novos pensamentos - o Estado de Polícia - já se impunha a noção de que a
Administração Pública teria suas ações reguladas, ou mesmo previstas, pelo
ordenamento jurídico.
A conduta administrativa contornada pela lei leva à defesa da sociedade civil em
relação a qualquer extravagância eventualmente cometida pelos homens que
ocupam cargos ou funções públicas, compreendendo, às vezes, até mesmo o
cerceamento do direito de algum segmento da sociedade face a um interesse
coletivo ou difuso maior. Porém não é apenas contra os ocupantes do Poder Político
que se arma a lei para defender a sociedade. À medida que os detentores do Poder
Econômico querem fazer valer seus desejos em detrimento dos desejos gerais de
uma população, vai surgindo a necessidade do Estado de incorporar a proteção de
direitos de cunho social; daí o nascimento do Estado Providência - que desenvolve
15
políticas públicas populares -, criado, entre outras Cartas, pela Constituição
Mexicana de 1917 e pela Constituição de Weimar de 1919.
Importante frisar que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 tem
cunho fortemente social.1
Mais tarde, na passagem do Estado de Direito Social para o Estado Democrático de
Direito, aumenta a expectativa da participação popular na Administração Pública, e o
princípio do interesse público vai tomando significados diferentes. No Estado liberal
o interesse público a ser protegido tem conotações mais utilitaristas, inspirado nas
doutrinas contratualistas liberais do século XVIII e, ainda, pela idéias de Adam Smith
e Stuart Mill.2 Se o propósito do Direito é o bem-estar geral, através da proteção das
liberdades individuais, a guarda do interesse público é apenas um apêndice deste
objetivo mais global, um meio através do qual se atingiria o objetivo principal.
É possível afirmar, inclusive, que no Estado Liberal o bem-estar geral assume uma
conotação muito mais material que humana, contagiando todos os princípios a ele
submetidos. À medida que o Estado passa a ter não apenas a matéria fruto da
liberdade, mas também os valores patrimoniais como pilares de uma existência
digna; a liberdade começa a ser vista como dignidade. Essa nova concepção de
bem-estar passa a exigir do Estado ações que contribuam para diminuir as
desigualdades sociais e levar não apenas uma ou duas classes, mas toda a
população a atingir um estágio de bem-estar. O interesse público, considerado sob o
aspecto jurídico, reveste-se de um novo aspecto ideológico e começa a confundir-se
com o próprio bem comum.
1 Conhecida como a “Constituição Cidadã”, a Carta Magna é baseada no modelo do Estado Social, e de acordo com os seus preceitos pode-se entendê-la até mesmo como do Estado de Bem-Estar Social, pela importância e ênfase com que o texto Constitucional pontuou as questões sociais e aquelas ligadas à cidadania. 2 Adam Smith (1723-1790): “O papel do Estado na econômica deve ser reduzido, sendo esta confiada à auto-regulação do mercado. O Estado deve limitar-se a facilitar a produção privada, manter a ordem pública, fazer respeitar a justiça e proteger a propriedade. Defende a concorrência entre os privados, num mercado livre, acredita que os seus interesses naturalmente se harmonizariam em proveito do coletivo”. John Stuart Mill (1806-1873): “A principal função do Estado é a de procurar promover as melhores oportunidades de desenvolvimento pessoal e social para todos os indivíduos, nomeadamente através da educação. Não devia ser aceita a intervenção do Estado em coisas que os indivíduos sejam capazes de resolver por si”.
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Também nessa transição adquire nova roupagem o princípio da legalidade.3
Continua sua tradução na submissão do Estado à lei, porém o que muda é que não
se trata mais da lei em sentido estrito, mas também da submissão aos princípios que
dão origem ao ordenamento jurídico, estejam eles positivados ou não.
O apego à forma vai dando lugar à busca pelo cumprimento de um ideal que se
concentra nos desejos da sociedade. A busca de uma justiça ideal não pode
prender-se apenas ao direito formal. Por isso a nova denominação do Estado, que
não é apenas de Direito, mas também Democrático conjugando-se dois aspectos
indissociáveis: o da justiça material - Estado de Direito - e o da participação do
cidadão - Estado Democrático.
1.1 Contextualização
Cada nação modifica-se e evolui de acordo com o período histórico por que passa.
Estão todos no mesmo tempo formal, mas não se encontram na mesma escala
evolutiva em relação ao bem-estar dos seus cidadãos.
Inúmeras definições e teorias sobre a origem e formação do Estado foram
apresentadas por doutrinadores considerando-o como algo além da organização
natural da sociedade.
Para efeito deste estudo será considerado o final da Idade Média como marco
histórico de surgimento do Estado4 justificado pela centralização do poder político
sobre o território que leva ao absolutismo e faz com que o poder fuja aos anseios da
sociedade.
3 Alexandre Rezende da Silva, no artigo “Princípio da legalidade”, publicado em <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3816>, afirma que a lei deriva da vontade geral, e é o princípio primeiro tanto da economia como do governo. Só por ela o Estado há de conseguir atingir seu escopo essencial, qual seja, o bem comum. 4 Instituição organizada política, social e juridicamente, ocupando um território definido, onde a lei máxima, em geral, é uma Constituição escrita, e dirigida por um governo que possui soberania reconhecida tanto interna como externamente.
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Dessa forma, o Estado Moderno, conseqüência desses anseios e da própria
modernização da sociedade, que começa no século XVI e culmina com a Revolução
Industrial, possibilita uma maior mobilidade social e resulta no aumento da
produtividade e no aparecimento de novos grupos sociais. É a época da ascensão
da burguesia.5
No século XVII, essa classe, de forma geral, apóia a Revolução Americana e a
Revolução Francesa, fazendo cair as leis e os privilégios da ordem feudal
absolutista, limpando o caminho para a rápida expansão do comércio. Com a
expansão do comércio e da economia de mercado, o poder e a influência da
burguesia cresce. Em todos os países industrializados, a aristocracia perde
gradualmente o poder ou é expurgada por revoltas burguesas, passando a
burguesia para o topo da hierarquia social.
Esse período de revolta contra o modelo absolutista, que dura, aproximadamente,
até a Primeira Grande Guerra Mundial, caracteriza-se pela busca por um Estado não
intervencionista, baseado no conceito da mão invisível de Adam Smith6 - em que o
mercado deve caminhar por conta própria na busca do progresso, sem qualquer
influência do Estado. Entretanto essa busca pelo progresso gera uma concentração
de renda insustentável, que conduz à idealização de um novo conceito de Estado
para minimizar essas desigualdades.
Apresentando como marca a proposta da liberdade, o Estado Liberal potencializa,
entre outras coisas, o aparecimento do ideal dos direitos do homem e a separação
5 A burguesia é uma classe social que surgiu nos últimos séculos da Idade Média (por volta do século XII e XIII) com o renascimento comercial e urbano. Dedicava-se ao comércio de mercadorias (roupas, especiarias, jóias etc.) e prestação de serviços (atividades financeiras). Dita classe habitava os burgos, que eram pequenas cidades protegidas por muros. Por ser formada por pessoas ricas, que trabalhavam com dinheiro, não era bem vista pelos integrantes do clero católico. 6 A idéia central de Smith em “A Riqueza das Nações” é a de que o mercado, aparentemente caótico, é, na verdade, organizado e produz as espécies e quantidades de bens que são mais desejados pela população, não precisando o governo interferir na economia. Um mercado livre produzirá bens na quantidade e no preço que a sociedade espera. Isto acontece porque a sociedade, na busca por lucros, irá responder às exigências do mercado. Smith ainda escreve: “cada indivíduo procura apenas seu próprio ganho. Porém, é como se fosse levado por uma mão invisível para produzir um resultado que não fazia parte de sua intenção... Perseguindo seus próprios interesses, freqüentemente promove os interesses da própria sociedade, com mais eficiência do que se realmente tivesse a intenção de fazê-lo”. Este conceito de “mão invisível” foi baseado na expressão francesa, laissez faire, que significa que o governo deveria deixar o mercado e os indivíduos livres para lidar com seus próprios assuntos.
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de poderes, determinando o fim do Estado absolutista e estabelecendo a limitação
de suas funções, a preservação da liberdade individual e a segurança do território.
Tal Estado resulta ineficaz sob o ponto de vista social e democrático, pois as leis são
impostas de forma autoritária e o enunciado de direitos individuais é, apenas,
nominal.
Assim, as reações contra o Estado Liberal iniciam-se em meados do século XIX,
quando as conseqüências de sua índole passam a ser sentidas fortemente no
campo socioeconômico: várias empresas transformam-se em verdadeiros
monopólios e dão cabo à existência daquelas de pequeno porte. Os avanços da
indústria propiciam o surgimento de uma classe mais baixa, inteiramente nova; o
proletariado ou classe trabalhadora, que após o êxodo rural havia se concentrado
nas grandes cidades que não estavam prontas para recebê-lo. Assim, os proletários
agrupam-se nos centros urbanos em terríveis condições, assolados pela miséria,
doença e falta de instrução. A continuar o não-intervencionismo estatal propugnado
pelo pensamento liberal, a situação tende a assumir contornos trágicos. A ênfase na
proteção da liberdade e da igualdade torna-se insuficiente para atender aos anseios
de todas as classes sociais.
Mediante o fracasso do Estado Liberal, em resposta às demandas provocadas pela
necessidade da adoção de uma justa distribuição de riquezas e por uma atuação
mais ativa nas questões sociais, o Estado Social consolida-se.
Tinha-se constatado que a reiterada crença no art. 1° da Declaração de Direitos do
Homem e do Cidadão de 1789, de que os homens nascem e são livres e iguais em
direitos, produzira mais a desigualdade socioeconômica do que promovera a
igualdade. A mais nova atribuição do Estado passa a ser a busca de igualdade
material em detrimento da já anacrônica formal. Para tanto, vê-se necessária a
intervenção do Estado na ordem econômica e social no resgate aos menos
favorecidos.
A orientação passa, então, pela busca do bem-comum, baseada na idéia de que a
democracia deve servir para impulsionar o Estado, através da liberdade política. O
espaço privado, que antes merecia ampla proteção, é aos poucos mitigado através
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das sucessivas ingerências estatais, seja através da regulamentação ou mesmo da
fiscalização e controle.
O Estado deve satisfazer não somente o interesse econômico das classes, mas
também de toda a comunidade. Passa a existir não apenas para proteger os
interesses do comércio e da indústria, mas para prestar serviços ao povo, e, ao fim,
levar a esse povo o bem-estar social.
Algumas tarefas são assumidas pelo Estado, tais como a prestação de serviços
públicos de caráter comercial, industrial e social, executados através de empresas
criadas pelo próprio Estado. Algumas são um misto de iniciativa privada e estatal. As
atividades que o Estado não exerce diretamente - ou que indiretamente deixa com
exclusividade à iniciativa privada -, por serem consideradas de interesse público, são
financiadas pelo próprio Estado.
Ao reagir trazendo para si a responsabilidade social, surge o Estado do Bem-Estar
Social.7
Finalmente, em 1948, os países que aderem à Organização das Nações Unidas -
ONU - firmam, em Paris, a Declaração Universal dos Direitos do Homem,
[...] visando restabelecer a ordem jurídica internacional profundamente afetada pela experiência totalitária, como ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações, a fim de que todos os indivíduos e todos os órgãos da sociedade, tendo-a constantemente no espírito, se esforcem, pelo ensino e pela educação, por desenvolver o respeito desses direitos e liberdades e por promover, por medidas progressivas de ordem nacional e internacional, o seu reconhecimento e a sua aplicação universais e efetivos, tanto entre as populações dos próprios Estados membros como entre as dos territórios colocados sob a sua jurisdição.8
7 Estado de Bem-Estar Social ou Estado-Providência (em inglês: Welfare State) é um tipo de organização política e econômica que coloca o Estado (nação) como agente da promoção (protetor e defensor) social e organizador da economia. Nesta orientação, o Estado é o agente regulamentador de toda vida e saúde social, política e econômica do país, em parceria com sindicatos e empresas privadas, em níveis diferentes, de acordo com a nação em questão. Cabe ao Estado-Providência garantir serviços públicos e proteção à população, desde o nascimento até sua morte, direta ou indiretamente, mediante seu poder de regulamentação sobre a sociedade civil, incluindo a educação, a assistência médica, o auxílio ao desempregado, a garantia de uma renda mínima, recursos adicionais para a criação dos filhos. 8 Preâmbulo da Declaração.
20
A Declaração introduz a chamada concepção contemporânea dos direitos humanos,
reconhecendo a universalidade, indivisibilidade e interdependência desses direitos,
prevendo, em um único texto, direitos civis e políticos - artigos 3 a 21 - e direitos
econômicos, sociais e culturais - artigo 22 a 28. É um marco social que consolida a
afirmação de uma ética universal, ao consagrar um consenso sobre valores de
caráter universal a serem seguidos pelo Estado, e que objetiva traçar uma ordem
pública mundial fundada no respeito à dignidade humana, ao consagrar valores
básicos universais.
No Estado Social, a ordem pública deixa de denotar apenas segurança para
expandir-se aos campos econômico, social, abrangendo o patrimônio histórico e
artístico, as profissões, as comunicações, a saúde, os animais. O Estado
absenteísta é substituído por aquele que não apenas oferece serviços, mas se
obriga também a praticar atos de comércio e indústria, intervir na economia, elaborar
planos econômicos para recuperação e promoção do desenvolvimento nacional.
Com todas essas atribuições, o Estado Social toma sentido diametralmente oposto
ao Liberal, este mínimo e aquele máximo. Surge como evolução, na medida em que
se percebe a necessidade de criação de regras para impedir os desvios que o
mercado não consegue controlar.
Feitas as considerações sobre a regulação do Estado por uma norma superior e sua
responsabilidade na garantia dos direitos fundamentais, ressalte-se a premência da
participação do povo nas decisões políticas,9 haja vista sua fundamental importância
para o desenvolvimento social.
Estes acontecimentos culminam no surgimento do Estado Democrático, que tem
seus princípios expressos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão –
que institucionaliza a liberdade individual como um direito natural, inviolável e
imprescritível - e é influenciado por três grandes movimentos: a Revolução Gloriosa10
9 Podem-se indicar três preceitos fundamentais que passaram a nortear o Estado: a supremacia da vontade popular, a preservação da liberdade e a igualdade real de direitos. 10 Ocorrida em 1688. O poder monárquico, na Inglaterra, foi severamente limitado, cedendo a maior parte de suas prerrogativas ao Parlamento, e, como conseqüência, tendo sido instalado o regime
21
- que representa a segunda manifestação da crise do regime monárquico e
absolutista (Antigo Regime) da época histórica que é chamada de Moderna; a
Revolução Americana11 - que influenciou as revoluções liberais que acontecem na
Europa e a Revolução Francesa12 – que aboliu a servidão e os direitos feudais e
proclamou os princípios universais da Liberdade, Igualdade, Fraternidade.
A intervenção excessiva na vida privada acaba por cercear as liberdades em níveis
maiores ou menores em cada nação.
O aumento de tarefas de índole econômica conduz à instituição de monopólios de
atividades pelo Estado ou, ainda, na detenção de capital majoritário de empresas.
De Estado mínimo13 a Estado empresário, no Brasil, a mudança de paradigmas
acarreta uma espécie de desarmonia entre os Três Poderes, posto que ao Executivo
cabe também exercer função empresarial, além de cumprir a função primordial de
executar as leis, assumir o controle e exarar ordens. E as ordens não podem esperar
o lento processo legislativo.
Em obediência ao princípio da legalidade, ao qual o Estado Social ainda está preso,
passa o Executivo a procurar maneiras de editar normas por si só. E assim nascem
parlamentarista inglês, que permanece até hoje. Processo que teve início com a Revolução Puritana de 1640 (a primeira manifestação de crise do regime monárquico absolutista inglês). 11 A Revolução Americana de 1776 teve início com a assinatura do Tratado de Paris, que em 1763 acabou por finalizar a Guerra dos Sete Anos. As 13 colônias desencadeariam a declaração de independência, em 4 de julho de 1776, mas a guerra só terminou em 1783, quando a independência foi reconhecida pelo Reino Unido no Tratado de Paris. Apesar de a estrutura social ter permanecido inalterada, a Guerra da Independência dos Estados Unidos é chamada de revolução por ter instituído, na Constituição de 1787, vigente até hoje, uma república federal, a soberania da nação e a divisão tripartida dos poderes. 12 Revolução Francesa é o nome dado ao conjunto de acontecimentos que, entre 5 de maio de 1789 e 9 de novembro de 1799, alteraram o quadro político e social da França. Em causa estavam o Antigo Regime e a autoridade do clero e da nobreza. Foi influenciada pelos ideais do Iluminismo e da Independência Americana. Está entre as maiores revoluções da história da humanidade, sendo considerada como o acontecimento que deu início à Idade Contemporânea. Aboliu a servidão e os direitos feudais e proclamou os princípios universais de "Liberdade, Igualdade e Fraternidade" (Liberté, Egalité, Fraternité), frase de autoria de Jean-Nicholas Pache. Para a França, abriu-se em 1789 o longo período de convulsões políticas do século XIX, fazendo-a passar por várias repúblicas, uma ditadura, uma monarquia constitucional e dois impérios. 13 Estado derivado das conseqüências do pensamento oriundo da Revolução Francesa e da Revolução Americana, que prega o liberalismo. A burguesia conseguiu após essas revoluções alcançar esse patamar e fazer com que o Estado interferisse minimamente. O Estado de intervenção mínima cuidava apenas da segurança interna e externa. Vários problemas começaram a surgir em razão desse Estado, principalmente após a Revolução Industrial, quando a burguesia passou a deter, além do poder econômico, os meios de produção. Só então começaram os primeiros rumores de que o Estado deveria interferir também no âmbito social.
22
os instrumentos de lei do Poder Executivo, para que ele exerça a gerência sem se
furtar à necessária legalidade: leis delegadas, regulamentos, portarias, medidas
provisórias.
Outro mecanismo encontrado pelo Estado para socorrer as necessidades sociais
emergentes da população em alguns países, como no Brasil, é o aumento da carga
de tributos. Mas o abuso com o gasto do dinheiro público leva o Estado do Bem-
Estar Social a um processo de endividamento, que culmina na chamada crise fiscal
do Estado - agravada pela crise institucional que se instaura em função da
burocratização da prestação dos serviços sociais, executados por servidores
públicos.
A máquina estatal, com sua capacidade estrutural comprometida, faz com que o
Estado Social seja substituído pelo Estado Mínimo.
A sociedade, por sua vez, percebe que pode e deve auxiliar o Estado na solução
dos problemas sociais, como confirma o então Ministro da Administração e Reforma
do Estado, Luiz Carlos Bresser Pereira, ao dizer que houve
[...] um processo gradual de delimitação da área de atuação do Estado. Aos poucos foi-se reconhecendo que o Estado não deve executar diretamente uma série de tarefas. Que reformar o Estado significa, antes de mais nada, definir seu papel, deixando para o setor privado e para o setor público não-estatal as atividades que não lhe são específicas.14
Em conseqüência dessa evolução do Estado surge um novo modelo de
relacionamento entre o governo, o mercado e sociedade, modificando as tradicionais
intervenções assistencialistas: o Terceiro Setor; matéria que será tratada adiante,
considerando o tema proposto para pesquisa, que tem por finalidade definir regime
jurídico das entidades-marco deste novo setor da sociedade.
14 PEREIRA, Luiz Carlos Bresser A reforma do Estado nos anos 90: lógicas e mecanismos de controle. Lua Nova - Revista de Cultura Política, n°.45, p. 49-95, 1998:.. Trabalho apresentado à segunda reunião do Círculo de Montevidéu. Barcelona, 25-26 de abril de 1997. pág. 13
23
O Estado em crise, incapaz de solucionar de forma eficiente as questões que o
assolam, vê como saída a reorganização de sua estrutura e inicia uma reforma que
inclui a sociedade na promoção dos diretos sociais.
Passa-se então a um novo capítulo deste estudo, que analisa a estrutura do Estado
e as novas tendências de gestão e examina a reforma do Estado brasileiro baseada
nos princípios da eficiência e da subsidiariedade. Serão apresentadas, ainda, as
espécies de financiamento do Terceiro Setor, as atividades de fomento às entidades
que garantem os direitos fundamentais - de responsabilidade não só do Estado, mas
de toda a sociedade.
24
2 A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA
Para análise neste item, conceitua-se Administração Pública como o conjunto das
funções estatais organizadas. No Brasil, a Administração, através da história, tem
tomado para si não somente o papel de promotor do desenvolvimento econômico e
conseqüentemente social do país, mas também por diversas vezes tem ocupado a
função de motor desse mesmo desenvolvimento, concentrando a propriedade de
empresas, como as várias estatais que durante anos pertenceram ao Estado.
No Estado Social a sociedade civil torna-se insaciável na demanda por serviços. Se
no Estado Liberal a população desejava apenas a proteção, no Social passa a exigir
que o Estado ofereça saúde, moradia, habitação, educação, esporte, lazer;
protegendo interesses coletivos e difusos, inclusive no campo legiferante, que passa
a apresentar dificuldades de acompanhar as novas feições do Poder Executivo.
Ocorre que o processo de produção de normas pelo Legislativo e o controle judicial
da legalidade são mais lentos do que exige o Estado Social. A Administração
Pública necessita de normas utilitárias e adaptadas às suas novas funções. O
crescente número de serviços prestados pelo Estado precisa ser previsto em lei e
isso demanda uma atividade contínua e incessante. O aumento nos serviços gera
conseqüentemente a intensificação dos conflitos jurídicos a eles ligados, o que faz
com que o Direito precise se adaptar cada vez mais rapidamente a tudo isso. O que
no Estado Liberal era relegado à esfera privada vai paulatinamente tornando-se
público, nomeadamente aquelas necessidades antes consideradas puramente
pessoais.
É aí que também se pode enxergar o alargamento do conceito de bem-comum, que,
antes limitado à consecução da segurança dos particulares, no Estado Social abarca
a objetivos maiores, uma vez que traduz todas as aspirações da sociedade civil em
relação ao Estado. No caminhar para a proteção larga dos desejos dos indivíduos, o
Estado precisa interferir na esfera íntima destes, já que passa a atuar diretamente
nos setores que antes eram protegidos de qualquer intervenção governamental.
25
E neste Estado interventor, protetor, criado pela Constituição da República Brasileira
de 1988 - passados alguns anos da sua promulgação -, enxerga-se uma situação
financeira precária, uma vez que a Lei Maior, ao atribuir muitas tarefas à
Administração, acabou por imbuí-la de um poder-dever grande e deixá-la sem
verbas para realizá-lo.
Começa então a busca por uma forma de aprimorar a eficiência dos órgãos da
Administração, e novas ações surgem para a consecução das atividades-fim: a
privatização de empresas do Estado, com a quebra do monopólio de atividades pelo
governo; a delegação de atividades antes privativas ao particular, com os institutos
da autorização, permissão e concessão; a afirmação de parcerias com a iniciativa
privada para a gestão de serviços através de convênios, consórcios, contratos de
gestão e termos de parceria. Em relação às atividade-meio, a terceirização é a
maneira encontrada para diminuir a sobrecarga administrativa.
2.1 A estrutura do Estado
Inserido na Constituição de 1988, com seus braços na legislação infraconstitucional
especial, o Direito Administrativo brasileiro apresenta como um dos elementos
essenciais aos contratos administrativos a formalidade, que deve ser nortear os
acordos, ajustes, convênios, pactos de qualquer espécie celebrados pelo Estado. O
objeto do contrato administrativo é sempre um interesse público qualificado, e o
vínculo contratual está adstrito ao cumprimento deste interesse.
Mas uma vez que o mundo dos negócios, sejam privados, sejam do Estado, é
dinâmico; a Administração passa por complicados processos de tentativa de
modernização. A Carta de 1988 é rígida, e, para mudá-la, exigem-se processos que
demandam tempo, sobretudo devido ao sistema legislativo bicameral do Brasil. A
Administração tem que agir rapidamente, mas está adstrita ao princípio da
26
legalidade, e, assim, precisa muitas vezes empreender reformas constitucionais se
desejar realizar alguma modificação em suas atividades.
Celso Antônio Bandeira de Mello16 afirma que no Estado Democrático de Direito a
satisfação do interesse público pela Administração demanda um poder muito mais
instrumental e limitado. Para o autor, não há mais lugar para a Administração
Pública hedonista - com vistas a si mesma; motivo por que se torna indispensável
uma legislação certeira e calcada em metas claras e objetivas.
Ocorre que o Estado brasileiro, por força da Constituição Federal de 1988, assume
inúmeras funções perante seu povo, precisando gerir os recursos para cumprir as
metas e funções, e, ainda, proporcionar à população todos os direitos sociais e
fundamentais consignados na Carta Magna.
Com uma política de venda das empresas do Governo, alienando-as de acordo com
os ditames da lei vigente à época, a imprensa brasileira preconiza uma suposta volta
do Estado Social ao Liberal, volta esta chamada por jornalistas, economistas e
analistas em geral de neoliberalismo.17
Torna-se realmente difícil concordar com os segmentos do pensamento que se
limitam a conceituar o Governo como neoliberal ou, de outro lado, partidário do bem-
estar social, uma vez que tais matizes, que parecem tão opostos como o preto e o
branco, na realidade misturam-se. Em todo o mundo ocidental houve, nos últimos
tempos, um acirramento de críticas ao Welfare State, preconizando-se ora a morte
deste modelo, ora o adoecimento do mesmo, causado, entre outros motivos, por um
fenômeno denominado “globalização”. Na opinião de Celso Antônio Bandeira de
Mello, globalização seria uma verdadeira campanha de marketing realizada pelo
capital dominante18 para que fossem mitigados os direitos sociais conquistados
16 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 15a ed. São Paulo: Malheiros, 2002. 17 Neoliberal, segundo Bobbio, é a adoção de políticas que permitam ao indivíduo o alcance do verdadeiro bem-estar, que só poderá ser encontrado se o particular tiver liberdade para buscar seu próprio interesse. (BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. 7a ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 136) 18 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 15a ed. São Paulo: Malheiros, 2002. Para Bandeira de Mello, por meio do marketing foram vendidas as "palavras de ordem": reforma do Estado, privatização e flexibilização.
27
pelos países de economia periférica para que, ausente às mãos do Estado no
controle da economia, pudesse o capital entrar livremente nas nações
subdesenvolvidas.
Com efeito, sendo o Brasil uma república, em que o titular da coisa pública é o povo,
toda função administrativa deve visar à preservação de seus interesses, seja pela
própria Administração ou por quem lhe faça as vezes.
Frente à necessidade de adaptação aos novos acontecimentos mundiais, o Estado,
na obrigatoriedade de rever seus dispositivos constitucionais, promove a elaboração
de um plano que orienta a reforma do aparelho estatal brasileiro.
2.2 A Reforma do Aparelho do Estado
Antes de ser apresentada a reforma do aparelho estatal, é importante dizer que o
Plano Diretor, definido na Constituição brasileira, em seu art. 182, § 1º, como
“instrumento básico da política urbana”, estabelece uma diferença entre o que é
reforma do Estado e o que é reforma do aparelho do Estado.
Reforma do Estado é algo pertinente às várias áreas do governo e, ainda, ao
conjunto da sociedade brasileira. Por outro lado, reforma do aparelho do Estado tem
abrangência mais restrita, pois está orientada para tornar a administração pública
mais eficiente e mais voltada para a cidadania.
As novas políticas para o Terceiro Setor no Brasil, consequentemente, decorrem
desse recém surgido modelo de Administração Pública, em que se tenta transformar
uma administração burocrática e rígida, e portanto ineficiente, de um Estado que
existe para se controlar, em uma Administração Pública gerencial cujo fim
verdadeiro, para além de si mesma, seja a sociedade civil.
28
Inicialmente a burocracia, como especialização dos órgãos da Administração
Pública, nasce como criação do Estado Liberal como forma organizacional capaz de
evitar possíveis efeitos colaterais do Estado - como corrupção e nepotismo, por meio
de
[...]um corpo complexo de funcionários lotados em órgãos, secretarias, departamentos, etc., com cargos bem definidos, selecionados e treinados com base em qualificações técnicas e profissionais, os quais se pautam por um regulamento fixo, determinada rotina e uma hierarquia com linhas de autoridade e responsabilidade bem demarcadas, gozando de estabilidade no emprego.19
O controle aqui é principalmente preventivo, realizado através de instrumentos
formais de aquisição de produtos e seleção de pessoal, tais quais licitações,
concursos públicos, entre outros, para que o serviço prestado se dê de forma
eficiente para a população, que pode ser vista como cliente do Estado.
Esse modelo não mais se ajusta à conjuntura econômica da segunda metade do
século XX, visto se encontrar a economia mundial expandida em transnacionais, em
que o fluxo do capital desconhece fronteiras e dita os rumos de políticas locais. A
eficiência passa de objetivo a princípio da Administração, que, paulatinamente vai-se
retirando do posto de prestadora de serviços para gerenciadora de prestadores dos
mesmos serviços. Não caem todos os pilares da administração burocrática. A
maioria dos cargos públicos continua sendo provida através de concursos, e a
licitação permanece como o meio por excelência da contratação de serviços dos
particulares pelo Estado.
Porém a demora dos processos e a rigidez de suas normas nem sempre se
incorporam com a nova ordem mundial. Mas ao mesmo tempo, há que se respeitar a
legalidade, garantidora do afastamento de práticas pessoais inescrupulosas de
quem ocupa cargos administrativos, e principalmente, maior promotora da
segurança jurídica.
A mudança então encontra-se nos paradigmas da forma de atuação: os
procedimentos perdem a rigidez anterior para que se tornem mais elásticos
19 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 532.
29
permitindo um uso mais utilitário de suas normas, e o controle perde sua formalidade
original para também assumir uma instrumentalidade racional na busca dos
resultados da ação administrativa. A Administração deixa de lado um controle focado
nas ações propriamente ditas, no sentido de conjunto de atos administrativos, e
passa a exercer a fiscalização de resultados.
Tais alterações consignam também uma maior participação popular na
Administração, participação esta que, significando a intervenção da iniciativa
privada, dá origem ao surgimento do Terceiro Setor e seu desenvolvimento para a
forma em que hoje se reveste, porquanto o próprio conceito a respeito do que é
interesse público também se foi modificando. Na administração burocrática - como
oposta à gerencial - interesse público é o correto funcionamento da máquina
administrativa com o uso racional dos recursos públicos, ou seja, o conceito de
interesse público liga-se aos meios e não aos fins da atividade administrativa do
Estado.
Na administração gerencial a visão é mais finalista, quer dizer, não se atenta tanto
aos meios quanto à obtenção dos resultados, estes são a meta, que deve ser
estabelecida de acordo com os desejos da sociedade civil. Este conjunto é
entendido como interesse público. O controle deve ser realizado, portanto, nos
resultados e não nas formas de atuação. Logo, não há uma única maneira de agir
que possa vestir a todos os órgãos e setores da administração, e, sim, várias ações
adequadas às razões da existência de cada órgão, de acordo com suas atividades e
objetivos.
A doutrina brasileira tradicionalmente costuma dividir essas atividades em três, e as
denomina serviço público em sentido amplo. Há os serviços administrativos,
entendidos estes como atividade-meio da Administração; e os de comércio e
indústria, que podem ser divididos em duas espécies: serviços públicos em sentido
estrito20 e atividades econômicas próprias da iniciativa privada.21
20 São aqueles previstos pelo artigo 175 da Constituição Federal, que podem ser prestados diretamente pelo Estado ou por particulares sob regime de concessão ou permissão. 21 São aquelas previstas pelo artigo 173 da Constituição Federal - atividades próprias da iniciativa privada cuja exploração o governo considere importante para a segurança nacional ou a lei consigne
30
Na terceira categoria encontram-se os serviços sociais previstos na Constituição de
1988, nos artigos 193 a 232, cuja exploração pode ser feita conjuntamente com a
iniciativa privada: aposentadoria, saúde, assistência social, educação, cultura,
desporto, ciência, tecnologia, comunicação social, meio-ambiente, proteção à
família, à criança, ao adolescente, ao idoso e aos índios.
Essa divisão tradicional foi preterida pelo Ministério da Reforma do Estado, que
escolheu uma nova categorização dos serviços públicos, já atento ao nascente
modelo estatal, e que aqui se reproduz por entender que serve melhor aos
propósitos da administração gerencial.
Porém mesmo nele é preciso que a burocratização seja modernizada, que os
funcionários passem por um processo de profissionalização. Mesmo que os meios
se sobrepujem aos fins, é imprescindível que os servidores adquiram uma nova
ideologia de ação, baseada na avaliação do desempenho, entre outras técnicas
contemporâneas de eficiência no exercício de cargo ou função pública.
A nova categorização, apresentada em seguida, é quadrúplice, e apenas no primeiro
núcleo da divisão ainda é possível a prevalência da administração burocrática sobre
a gerencial.
a) núcleo estratégico: composto pelos órgãos de governo responsáveis pela
positivação normativa, pelas políticas públicas e pela fiscalização do cumprimento
das mesmas.
b) setor de atividades exclusivas: composto pelos órgãos que prestam atividades
exclusivas do Estado. Estão compreendidos aqui tantos os órgãos que prestam
diretamente o serviço quanto aqueles responsáveis pela regulamentação,
fiscalização, controle e fomento das atividades. São elas: cobrança e fiscalização
dos impostos, polícia, previdência social básica, serviço de desemprego, fiscalização
do cumprimento de normas sanitárias, serviço de trânsito, compra de serviços de
como de relevante interesse coletivo -; e aquelas previstas pelo artigo 177 da mesma Carta Magna, que são as atividades cuja exploração constitui monopólio da União.
31
saúde pelo Estado, controle do meio ambiente, subsídio à educação básica, serviço
de emissão de passaportes.
c) setor de serviços não exclusivos: serviços sociais do Estado (saúde, assistência
social, educação, cultura, desporto, ciência, tecnologia, comunicação social, meio-
ambiente, proteção à família, à criança, ao adolescente, ao idoso e aos índios) em
que ele atua juntamente com a iniciativa privada. O Terceiro Setor da economia, na
forma como se organiza hoje, não apenas foi o propulsor de novas idéias para o
setor de serviços não exclusivos, como se beneficia das diretrizes que surgem para
os serviços sociais.
d) setor de produção de bens e serviços para o mercado: área em que o Estado
exerce atividades econômicas com fins lucrativos. Aqui a previsão é a continuidade
do programa de privatização iniciado no governo Fernando Henrique Cardoso, com
a alienação de empresas pertencentes para o capital privado e a subseqüente
criação de órgãos reguladores da exploração de recursos constitucionalmente
protegidos, como os naturais, as telecomunicações, etc.
As mudanças começam a ser vistas na legislação: a Emenda Constitucional n.º19 de
1998, as Leis n.º 8.987/1995 e 9.074/1995, e, ainda, a Lei n.º 9.637/1998, entre
outras. Reproduz-se, aqui, o parágrafo 8º do artigo 37 da Constituição da República,
introduzido pela Emenda Constitucional n.º 19, que prevê a formação de parcerias
dentro da própria Administração Pública, através da fixação de contratos que a
doutrina convencionou chamar “contratos de gestão”:
§ 8º A autonomia gerencial, orçamentária e financeira dos órgãos e entidades da administração direta e indireta poderá ser ampliada mediante contrato, a ser firmado entre seus administradores e o poder público, que tenha por objeto a fixação de metas de desempenho para o órgão ou entidade, cabendo à lei dispor sobre: I - o prazo de duração do contrato; II - os controles e critérios de avaliação de desempenho, direitos, obrigações e responsabilidade dos dirigentes; III - a remuneração do pessoal.
32
2.3 O Ato Administrativo
Hoje, no Brasil, na transição do Estado Social para um novo modelo, em que não
mais a Administração Pública mantém o indivíduo extremamente dependente de
suas ações provedoras, a colaboração entre sociedade civil e Estado tem-se tornado
cada vez mais elemento-chave no paradigma que vem nascendo. Diminui-se o lugar
para o ato administrativo isolado, revelando-se como instrumento da Administração
um complexo de procedimentos, de natureza sui generis, que têm conseqüências
não apenas para o indivíduo sujeito do caso concreto, mas para toda a coletividade.
Para Marcello Caetano, ao praticar um ato administrativo, a Administração Pública
objetiva realizar interesses que a lei coloca como de sua responsabilidade. Assim,
conceitua ato administrativo como “conduta voluntária da Administração que, no
exercício de um poder público e para prossecução de interesses postos por lei a seu
cargo, produza efeitos jurídicos num caso concreto”.22
Aqui não se estenderá mais na análise do ato administrativo. Quer-se apenas utilizar
as teorias dos atos administrativos para se concluir que, no Brasil, a decisão sobre
quem vai ser financiado, como, e em que quantidade não é apenas um ato
administrativo isolado, mas o resultado um procedimento complexo, que
normalmente é muito mais que um ato, podendo chegar ou não a formalizar um
contrato. A decisão visa ao alcance de interesses postos por lei, mas o processo de
sua tomada extrapola o ato administrativo singular, uma vez que não decorre
apenas de um comando legal, mas de uma política de fomento à iniciativa privada
com fins públicos.
Por isso a decisão não se pode subtrair à legalidade, mas também não está restrita
a critérios sempre objetivos. Tal decisão, assim como o estabelecimento ou não dos
contratos, termos de parceria etc. são, em sua existência, impassíveis de controle
22 CAETANO, Marcello. Princípios Fundamentais do Direito Administrativo. Coimbra: Livraria Almedina, 1972. p. 99.
33
pelos Tribunais em relação à obrigatoriedade. Mas, como qualquer ação do Poder
Púbico, podem ser apreciados no que diz respeito à sua legalidade formal e material.
Já se disse que fomento é uma atividade administrativa, cujo objetivo não é alcançar
diretamente os fins da Administração Pública, mas proporcionar condições para que
particulares possam atingir esses fins. Assim, pode funcionar de maneira positiva,
incentivando o exercício de ações de cunho social, ou negativa, desestimulando,
através, por exemplo, de taxações exageradas, atividades que a seu ver sejam
prejudiciais ao bem-estar comum. Implica, no seu sentido positivo, a transferência de
recursos públicos a um ou mais entes privados.
A atividade de fomento deve seguir todos os princípios das demais atividades
administrativas: supremacia do interesse público sobre o privado, legalidade,
finalidade, razoabilidade, proporcionalidade, motivação, publicidade, moralidade,
impessoalidade, eficiência e igualdade.
2.3.1 O Financiamento do Terceiro Setor
O Estado, através da sua máquina burocrática, em sua essência, deve promover o
bem-estar social. Não sendo o Estado capaz de realizar todas as tarefas para atingir
seu fim, e, necessitando a iniciativa privada de campos de trabalho, o primeiro
estimula essa iniciativa para que a segunda possa realizar tarefas de interesse
público.
O princípio da subsidiariedade justifica-se porquanto o Estado, ao delegar tarefas
“menores” ao particular, não o faz escusando-se do cumprimento das mesmas,
como num Estado Liberal clássico, mas, sim, através de parcerias, que podem ser
de várias maneiras implementadas, dependo da legislação do país.
Tal princípio é uma espécie de orientador das relações entre a Administração
Pública e os cidadãos representados por si, suas famílias, sindicatos, ou outros
34
entes, que implica a limitação da intervenção estatal sem que esta seja omissa,
equilibrando o público e o privado.
Alarga-se a visão de Estado e espera-se da Administração Pública uma atuação no
resguardo da autonomia, da liberdade e da dignidade humanas. Isso significa que
cabe ao Estado propiciar aos indivíduos a possibilidade de estes criarem
organizações capazes de promover a ação social. A subsidiariedade implica,
também, a limitação da intervenção estatal sem que esta seja omissa.
Assim, o Terceiro Setor vem colaborar tanto com o Estado, naquilo em que este se
mostra incapaz de fazer, quanto com a sociedade, naquilo em que ela se mostra
incapaz de obter sem um esforço coletivo, de maneira que os cidadãos tomem para
si tarefas que, no Estado do Bem-Estar Social delegaram à Administração Pública.23
Por isso a insistência no ânimo que impulsiona o Terceiro Setor, pois todo o
processo acima pressupõe a ativação do papel do cidadão, levando-o a se agrupar
para conquistar seus interesses. Surge aí então a solidariedade, significando esta a
comunhão de atitudes e sentimentos que cria um novo laço social, baseado não na
semelhança entre os indivíduos, mas em uma sensibilidade a uma determinada
situação social.24
2.3.2 O Fomento
As organizações do Terceiro Setor, quando financiadas, no todo ou em parte, por
dinheiro público, trabalham com o Estado em regime de cooperação. Para auxiliar
esse funcionamento – retirando um formalismo, que, em exagero, poderia inviabilizar
atividades e fazê-lo perder sua razão de ser –, novos instrumentos jurídicos foram
surgindo em detrimento dos processos licitatórios ordinários.
23 Não se pretende dizer que apenas o Terceiro Setor é subsidiário ao Estado, no sentido do princípio que ora se explana. Apenas ocorre que o assunto do presente estudo, sendo o Terceiro Setor, acaba por entrelaçar-se com os outros e tornar-se mote principal, de modo que sempre será o exemplo, pois é a ele que se quer remeter. 24 DURKHEIM, Émile. Da Divisão do Trabalho Social. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
35
A organização da sociedade em grupos com o objetivo de cumprir um novo papel
social retira uma carga que antes pendia exclusivamente sobre o Estado,
deslocando-o de Estado provedor para Estado gerencial, e surge um novo termo a
ser aplicado ao modelo nascido de Estado: fomento, na acepção de estímulo ao
desenvolvimento de algo que vai ao encontro do interesse público.
Não se pode esquecer que o fomento originariamente é destituído de coerção25
jurídica, não há obrigatoriedade ao Estado, nem ao administrado. Por isso tanto se
fala em um novo modelo de Administração, qual seja, a Administração consensual,
pois, retirado o caráter compulsório, o fomento estatal e a ação privada voluntária
deslocam-se para o campo da vontade.26
Uma vez que o fomento tem origem no Estado, constata-se, sem dúvida, que a
Administração só pode exercer tal atividade quando o particular age em sentido
público, posto que precisa haver uma justificação para a migração de recursos. A
legalidade já é um problema que deve ser investigado à parte, uma vez que o
fomento precisa derivar sempre de lei, porquanto os recursos para o financiamento
são públicos. Há várias controvérsias acerca dos diplomas legais que positivam o
fomento no Brasil, entretanto não serão aprofundadas neste estudo uma vez que
fogem do tema em análise e merecem ser pesquisadas em outro trabalho.
Afirma Sílvio Luís Ferreira da Rocha que “a determinação concreta das atividades
particulares que devem ser fomentadas é uma questão política de conveniência e
oportunidade, que escapa ao campo estritamente jurídico”.27 Não é dado ao Estado
decidir sobre o voluntariado. É o cidadão quem escolhe a hora, a maneira e a seara
pública em que vai atuar.
25 Diz-se originariamente porque há leis no Brasil que praticamente “obrigam” o Estado a exercer parcerias ou a fazer investimentos, preenchidos certos requisitos. Doutrinariamente, os juristas afastam a denominação ‘fomento’ quando há coerção jurídica. Mas o caráter coercitivo moral é sempre lembrado, pois há uma certa compulsoriedade na participação. 26 Reitera-se que o fomento é destituído de coerção jurídica, mas não se nega o caráter coercitivo moral, uma vez que a atividade voluntária é sempre estimulada por uma propaganda “de ordem” travestida em convite. Não se está emitindo um juízo de valor acerca dessa quase compulsoriedade, apenas constatando-a. 27 ROCHA, Sílvio Luís Ferreira. Terceiro Setor. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 21.
36
Se não há coerção jurídica, o fomento não é obrigatório, ou seja, decorre de uma
norma positiva, mas necessita de juízos de valor específicos aliados a uma
apreciação política da situação do fomentado. O Estado precisa fomentar, mas cabe
ao administrador decidir quem, como, e o quantum a ser atribuído. Assim, acredita-
se que o fomento é mais do que um simples ato do administrador, mas o resultado
de um procedimento complexo, que se equilibra entre os limites da vinculação e da
discricionariedade, pois é preciso acrescentar uma avaliação política da situação do
fomentado e do seu papel na sociedade. Assim, quando a lei determina ao
administrador que avalie a situação do fomentado, tal ato é vinculado. Por outro
lado, a ação de fomentar ou não e as características do fomento constituem ato
discricionário. Esta atividade de promoção do Estado às entidades do Terceiro Setor
se coloca como importante ferramenta na realização dos direitos sociais que o
Estado, por si só, não consegue realizar de forma eficiente.
Entre as diversas espécies de fomento encontram-se:
a) as Subvenções - que têm caráter social ou econômico - importam na atribuição de
uma soma em dinheiro à entidade fomentada, soma que pode ser entregue por
unidade de serviço prestado ou pela totalidade dos mesmos;28
b) os Auxílios e Contribuições, que se destinam a entidades de direito público ou
privado, sem finalidade lucrativa (art. 63 do Decreto n.° 93.872/86).29 Constituem
formas de cooperação e têm como pressuposto a comunhão de interesses;
28 Previstas pela Lei n.° 4.320/1964 e reguladas pelo Decreto n.º 93.872/1986. A subvenção social deve visar à prestação dos serviços essenciais de assistência social, médica e educacional. Será concedida sempre que a suplementação de recursos de origem privada aplicados a esses objetivos revelar-se mais econômica. Observe-se que o termo “mais econômica” refere-se ao Estado e não ao particular, significando isto que o administrador deve pesar se será mais econômico ao Estado fomentar a atividade do particular ou ele mesmo prestá-la. Já a subvenção econômica não é objeto deste estudo, posto que será concedida a empresas que podem auferir lucro, mediante expressa autorização em lei especial (Lei n.º 4.320/64, art. 12, § 3º, II e art. 19). 29 O auxílio deriva diretamente da Lei de Orçamento (Lei n.º4.320/64, § 6º do art. 12), e a contribuição será concedida em virtude de lei especial, destinando-se a atender ao ônus ou encargo assumido pela União (Lei n.º 4.320/64, § 6º do art. 12). A contraprestação direta de serviços ou bens não é exigida, como na subvenção. A tendência das Leis de Diretrizes Orçamentárias tem sido diminuir a figura dos auxílios porque não dependem de contraprestação e nem há restrição ao seu valor.
37
c) os Convênios, Acordos ou Ajustes, que, usados como sinônimos pelo Decreto n.°
93.872/86, prestam-se à execução, pelo particular, de serviços ou produção de
bens, desde que a finalidade seja pública;30
d) os Contratos, aqueles celebrados entre a Administração Pública e o particular no
Brasil no que concerne ao Terceiro Setor, contratos esses que são cada vez menos
numerosos;31
e) os Contratos de Gestão, espécie de financiamento que nasceu contaminado dos
mais diversos tipos de polêmica;32
f) os Termos de Parceria,33 espécie surgida com a Lei n.° 9.790/1999 e que se
presta ao relacionamento entre o Poder Público e as entidades que se tornarem, nos
termos do diploma supracitado, aptas a receber a denominação de Organizações da
Sociedade Civil de Interesse Público – as OSCIPs; e
30 Se os interesses forem opostos, haverá contrato, conforme reza o parágrafo único do artigo 48 do supramencionado decreto. Seu objetivo legal é a “descentralização das atividades da administração federal, através da qual se delegará a execução de programas federais de caráter nitidamente local, no todo ou em parte, aos órgãos estaduais ou municipais incumbidos de serviços correspondentes, e quando estejam devidamente aparelhados”. Existe uma divergência doutrinária acerca da possibilidade de se poder utilizar os recursos do convênio para pagamento da força de trabalho ou apenas para compra de recursos, porém, não se preocupará com tal questão, uma vez que se afastaria por demais do tema pesquisado. 31 É que as outras modalidades de financiamento são mais próprias à atividade voluntária, porquanto existe a comunhão de interesses entre o particular e o Estado. Mas, seja qual for a espécie contratual, todas elas precisam seguir regras que fogem à contratualística própria do direito civil, e, deixadas de lado algumas exceções trazidas pela Lei n.º 8.666/93: requerem a forma escrita, a competência para celebrá-las é dada por lei, a finalidade tem de ser pública, há uma preponderância do administrador sobre o particular, no sentido de que ilicitudes próprias do direito privado podem ser consideradas legítimas no direito público. 32 A tipicidade dos contratos de gestão tem sido debatida. Embora embriões do contrato já tenham sido trazidos em vários outros diplomas legais, somente na Lei nº. 9.637/1998 o legislador preocupou-se em trazer um conceito. Estipulou, no artigo 5º, que o contrato de gestão, apenas para os efeitos dessa lei, seria “o instrumento firmado entre o Poder Público e a entidade qualificada como organização social, com vistas à formação de parceria entre as partes para fomento e execução de atividades relativas às relacionadas no art. 1º”. 33 No seu conteúdo, o termo de parceria afigura-se bem parecido com o contrato de gestão. É uma espécie que dispensa a abertura de processo licitatório. Ambos têm que conter objetivos e metas, com os respectivos prazos para cumprimento. Os critérios para avaliação do devido cumprimento do termo precisam constar expressamente do pacto/termo. A diferença está no fato de que, ao contrário do contrato de gestão, o termo de parceria precisa conter normas especificando o programa de trabalho, e, ainda, regras expressas de contabilidade, previsão de receitas e despesas, de elaboração de relatório contábil a ser apresentado ao Ministério Público, bem como previsão de publicação do relatório.
38
g) as Parcerias Público-Privadas, espécie de acordo firmado entre a Administração
Pública e entes privados para estabelecer vínculo jurídico a fim de implantar ou gerir
serviços, empreendimentos e atividades de interesse público, em que o
financiamento e a responsabilidade pelo investimento são divididos entre os
signatários, ou recaem apenas sobre o ente privado. Tem sido objeto de estudo em
todo o mundo ocidental. Sua utilização é ampla e serve mais para a realização de
obras de infra-estrutura de um país, como usinas hidrelétricas, estradas, entre
outras.34
2.3.3 Interesse Público
Na transição do Estado Liberal ao Social, percebe-se a idéia, embrionária, de que o
interesse público é aquele contrário ao privado, ou seja, o público é oposto ao
individual. Mas, se por um lado, é verdade que interesse público significa o interesse
da coletividade, não se pode dizer que coletividade seja algo que exista por si só. É
uma entidade formada por pessoas que querem, pensam, vivem. E esse corpo de
indivíduos dá origem a um interesse público que se forma de acordo com a função
que dele se quer extrair. Obviamente que, em grandes agrupamentos de seres
humanos, é difícil a coincidência de um determinado interesse público com os
desejos de todos os indivíduos que formam o aglomerado. Mas também não é
possível a existência de um interesse público contrário aos desejos desses
indivíduos.; donde se depreende que o interesse público não pode ser oposto aos
individuais.
34 O nome e a conceituação não se aplicam às relações entre o Terceiro Setor e o Estado. Ocorre que os entes privados que acordam a empreitada com o Estado não têm o animus do voluntariado. Ao contrário, a palavra de ordem na Parceria Público-Privada (PPP) é o lucro. A possibilidade de geração de excedentes é o grande propulsor das PPPs. Veja-se o caso das empresas que contratam com a Administração Pública a feitura de rodovias. O investimento tem retorno rápido com a cobrança dos chamados pedágios, taxas para que os veículos transitem no trecho “privatizado”. As Parcerias Público-Privadas são um meio para que o Estado delegue ao particular tarefas que constitucional ou costumeiramente a ele caberiam, como as estradas nacionais, as usinas de energia para o fornecimento de luz à população, o serviço de água e esgotos, processos que, no Brasil, convencionou-se chamar “privatização”. Item último, mas não menos importante, que pertine à diferenciação que se quer fazer é que, enquanto o fomento é o financiamento público daquelas atividades privadas com fins públicos, a Parceria Público-Privada é o financiamento privado de atividades públicas de infra-estrutura de um país.
39
A sociedade é contínua no tempo e no espaço e tem sua expressão jurídica no
Estado. Os interesses dos seus membros não é algo que se forma instantaneamente
e logo se dilui. Precisa de uma evolução para transpor a dimensão de interesse
público para aquele a ser protegido legitimamente pelo Poder do Estado, que
também precisa ser legitimado para que se torne propenso a contemplar esses
interesses públicos.
Logo se pode dizer que o interesse público é aquele manifestado pelos indivíduos
enquanto pertencentes a um organismo social e que neste status é expresso. Em
decorrência, pela necessidade de continuidade desse organismo, o interesse público
tem que contemplar os indivíduos que compõem a sociedade no presente e no
futuro.
Vê-se que a própria noção de legalidade alarga-se quando é tomada como
defensora do interesse público, pois sempre que se destoa do que é de interesse
público se interrompe. Isso significa que a legalidade pode ser macular não apenas
na sua forma, mas na substância - quando um ato formalmente legal contrariar o
interesse público. O fundamento lógico de existência daquela é justamente a defesa
dos interesses subjetivos de cada membro da sociedade e ao mesmo tempo de todo
o corpo social - protegendo-o e dando a ele garantias individuais, sociais e coletivas,
e segurança jurídica. A positivação que posteriormente nasce para regulamentar
essa legalidade jamais pode se desviar dessa linha de conduta mestra, que é em si
a causa de existir do próprio princípio da legalidade.
Conclui-se que os antigos significados de interesse público, que o tinham como algo
imanente do Estado, ou mesmo um interesse do Estado, não mais cabem na nova
ordem mundial, que, entende-se, vê o interesse público como a dimensão pública
dos interesses individuais, desde que emanado de indivíduos organicamente
agrupados no tempo e no espaço. Assim, nem sempre haverá similaridade entre
interesse de Estado e interesse público.
Essas são as considerações a serem feitas sobre o interesse público no seu
significado lógico. Outro é o interesse público após o processo de individuação,
40
expressado de forma positiva no ordenamento normativo, de acordo com a
Constituição.
2.3.3.1 A supremacia do interesse público sobre o privado
É princípio fundamental do Direito Administrativo moderno a preponderância do
interesse público sobre o privado para que o particular possa ter a segurança de
sobreviver num ordenamento que o protege de outros particulares que porventura
queiram sobre ele se sobrepor.
Para que isso aconteça, os órgãos estatais responsáveis pelo cumprimento fático do
princípio precisam ter uma posição superior quando se relacionam com os
particulares.35
Obviamente que a superioridade da Administração Pública em relação ao particular
somente se justifica quando suas ações são orientadas para a obtenção do bem-
comum. Assim, é necessário sempre atentar para o caráter instrumental do ato
administrativo, que se reveste de uma função permanentemente voltada à satisfação
do interesse público, não se podendo desvincular dela em nenhuma hipótese. As
relações jurídicas da Administração Pública se fazem de acordo com as finalidades a
que se propõem.
Nem sempre o Estado exerce suas atividades sob o regime público. Quando age
sob o regime de direito privado, não se reveste dessa posição privilegiada de que se
falou acima, mas sobrevivem para a Administração todos os princípios a ela afetos,
inclusive o da supremacia do interesse público, que deve sempre ser seguido.
35 Expressão disso é a Lei de Execuções Fiscais, que estipula procedimentos que trazem privilégios para o Fisco em detrimento do particular-executado, uma vez que a Fazenda Pública representa o interesse público de se recolher corretamente os tributos. A Lei, entre outras disposições, estabelece presunções materiais e processuais em favor do Fisco e limita a instrução probatória para o contribuinte.
41
Sendo uma das funções do Estado zelar permanentemente e sem exceções pelo
interesse público, consequentemente não pode dispor, renunciar ou alienar esse
interesse, de acordo com uma vontade livre. Não há autonomia da vontade por parte
do Administrador, como existe em relação ao contratante no regime privado,
porquanto o Administrador está restrito a uma ordem jurídica que baliza todos os
seus atos, já que não é o titular dos interesses de que cuida.
O titular dos interesses públicos é o Estado; à Administração cabe apenas o
gerenciamento burocrático dos mesmos, segundo a lei. Retorna-se então ao
princípio da legalidade, que é ao mesmo tempo a base e o entorno de toda a
atividade estatal.
Quando o Estado desenvolve suas funções, o faz na busca de atender aos
interesses da coletividade e legitimado pelo povo, conforme previsão expressa no
parágrafo único do artigo 1º da Constituição de 1988 - pois “todo poder emana do
povo”.
Sendo o Brasil uma república, em que o titular da coisa pública é o povo, toda
função administrativa deve visar à preservação de seus interesses, seja pela própria
Administração ou por quem lhe faça as vezes.
2.4 A Prestação dos Serviços Públicos
Conforme nos ensina Celso Bandeira de Mello, em uma noção mais restrita de
serviço público nos substratos material e formal,
Serviço público é toda a atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administrados, prestados pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público - portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais - instituído pelo Estado em favor de interesses que houver definido como próprios no sistema normativo.36
36 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 12a ed. São Paulo: Malheiros, 1999 p 399
42
Ainda que o conceito de serviço público seja dividido entre um elemento objetivo -
interesse público; um elemento subjetivo - atividade prestada pelo Poder Público
diretamente ou por quem lhe faça as vezes; e um elemento formal - atividade
desenvolvida sob regime de direito público; outras formas de prestação de serviços
públicos vêm sendo desenvolvidas pela sociedade.
Tendo em vista, através do Decreto-Lei 200/1967, que o Poder Público pode
transferir a titularidade da prestação dos serviços públicos não exclusivos para
autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista; a
atuação da Administração Pública começa a ser descentralizada para que haja
maior dinamismo operacional.
Essa descentralização pode ocorrer por outorga - também chamada de
descentralização por serviço -, que ocorre quando o Estado transfere a titularidade e
a execução de serviços públicos para pessoas jurídicas com personalidade própria
criadas ou autorizadas por lei pelo próprio Estado, o que não se confunde com a
Administração Pública Direta37 - ou por colaboração -, também chamada de
descentralização por delegação,38 que ocorre quando se transfere apenas a
execução do serviço público para particulares, entendidos como pessoas jurídicas
de direito privado.
Seja pela ineficiência do Estado na satisfação dos interesses da coletividade, seja
como forma de fazer valer os direitos de cidadania preconizados na Constituição
Federal de 1988, novas formas de prestação de serviços públicos concretizam o
papel da sociedade na efetivação dos direitos sociais como forma de exercer
cidadania e, ao mesmo tempo, os tornam mais eficientes e de maior qualidade.
37 Sob o aspecto operacional, administração pública é o desempenho perene e sistemático, legal e técnico dos serviços próprios do Estado, em benefício da coletividade. A administração pública pode ser direta, quando composta pelas suas entidades estatais (União, Estados, Municípios e DF), que não possuem personalidade jurídica própria; ou indireta, quando composta por entidades autárquicas, fundacionais e paraestatais. 38 Não há transferência da titularidade do serviço público, pois é intransferível. Na descentralização por colaboração há transferência da execução do serviço da Administração Pública para privada, mediante concessões ou permissões. O serviço público é prestado por pessoas jurídicas que não pertencem à Administração Pública Indireta, e, por isso, a titularidade do serviço permanece com a Administração Pública.
43
Como tema relativamente novo, o Terceiro Setor surge como importante ator na
redefinição do papel do Estado. É o que será apresentado a seguir.
2.4.1 Formas Típicas de Delegação: Concessão e Permissão
De acordo com o artigo 175 da Constituição Federal, “incumbe ao poder público, na
forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre
através de licitação, a prestação de serviços públicos”.
As figuras da concessão e da permissão de serviços público são consideradas
tradicionalmente pela doutrina como categorias jurídicas diferenciadas. Contudo
receberam tratamento análogo pelo constituinte de 1988. Para melhor distinguir
concessão e permissão, são apresentadas as definições de Celso Antônio Bandeira
de Mello, que afirma que concessão é instituto através do qual o Estado atribui o
exercício de um serviço público a alguém que aceite prestá-lo em nome próprio, por
sua conta e risco, nas condições fixadas e alteráveis unilateralmente pelo Poder
Público, mas sob garantia contratual de um equilíbrio econômico-financeiro,
remunerando-se pela própria exploração do serviço, em geral mediante tarifas
cobradas diretamente dos usuários do serviço; configurando-se a permissão como
ato unilateral e precário, através do qual o Poder Público transfere a alguém o
desempenho de um serviço de sua alçada, proporcionando, à moda do que faz na
concessão, a possibilidade de cobrança de tarifas dos usuário.39
39 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Serviço Público e Poder de Polícia: Concessão e Delegação. Revista Virtual Diálogo Jurídico, volume 5. Disponível em: <<http://www.direitopublico.com.br/pdf_5/DIALOGO-JURIDICO-05-AGOSTO-2001-CELSO-ANTONIO.pdf>. Acesso em: 27 mar. 2007.
44
2.4.2 Os Serviços Sociais
Serviços sociais e serviços públicos se assemelham na medida em que possuem o
mesmo fundamento: gerar utilidades públicas e atender às necessidades coletivas;
porém os serviços sociais, ao contrário dos públicos, estão à livre disposição dos
particulares, não sendo deferida a delegação estatal para seu exercício, por força de
sistema normativo.
A valoração de um serviço em uma ou outra categoria advém da Constituição
Federal e das leis que indicam as atividades prestadas pelo Estado em caráter não
exclusivo, ou seja, prestado livremente pelos particulares.
Os elementos constitutivos dos serviços sociais - também chamados serviços
públicos impróprios, são a prestação dos serviços feita pela esfera particular e a
independência em relação à delegação estatal.
Ressalta-se que autorização a que se submete a iniciativa privada não se confunde
com o instituto da delegação. Este ocorrerá em hipóteses especiais, definidas em lei,
em que o interesse público devidamente delineado no sistema constitucional o
determine.
Se a atividade é livre ao exercício do particular, como os serviços de atendimento à
criança, ao adolescente, os relativos à erradicação de miséria e da desigualdade
social, entre outros de relevância equivalente; não há que se falar em delegação
estatal mediante concessão ou permissão.
Cumpre ressaltar que o artigo 5º, inciso XVII, da Constituição Federal, concede ao
indivíduo a liberdade de associação, bem como o livre desempenho de atividade que
não seja da alçada exclusiva do Poder Público. No que se refere aos serviços
sociais (ou serviços públicos impróprios), o Estado obriga-se a controlar, a fiscalizar
e, até mesmo, a promover o desempenho de atividade de relevância pública pelos
particulares, jamais delegar seu exercício.
45
Nessa seara reside a atuação do Terceiro Setor, que presta serviços sociais por
iniciativa própria e sem finalidade lucrativa, complementando a atividade estatal.
Cumpre agora definir o que vem a ser esse setor da economia, que assume a co-
responsabilidade com o Estado na garantia dos direitos sociais. É o que será
apresentado.
46
3 O TERCEIRO SETOR
Durante a Guerra Fria, no mundo capitalista, preponderou a bipartição
mercado/governo. Ao governo é dado o nome de Primeiro Setor da Economia. Ao
mercado - entendido aqui como o conjunto das atividades privadas que visam ao
lucro, baseado na lei da oferta e da procura - é dado o nome de Segundo Setor da
Economia.
Finda a Guerra Fria, mercado e estado dão sinais de que continuarão tão presentes
como estavam, apesar de não terem todas as soluções para os problemas da
sociedade, que aumentam após este período. Pelo contrário, mostram-se capazes
de criar as situações de transtorno e inaptos a resolvê-las.
A hierarquia Estado > Mercado > Grupos e indivíduos revela-se inoperante em
relação a aspectos da vida caríssimos aos cidadãos: ecologia, economia, cultura,
lazer, educação, assistência social, entre outros.
Começa a surgir, então, um novo tipo associativo alimentado por um desejo de
estabilizar as relações da pirâmide – que tem o Primeiro Setor no topo, o último na
base; o Primeiro regulando as relações entre o Segundo e a base -, fazendo nascer
uma terceira possibilidade das relações público-privadas, conforme demonstra muito
bem Rubem César Fernandes,1 ao classificar as relações dos agentes privados para
fins privados como mercado; as relações dos agentes públicos para fins públicos
com o Estado; e as relações dos agentes privados para fins públicos com o Terceiro
Setor.2
O Terceiro Setor passa a existir a partir da vontade do particular de gerar bens e
serviços sem visar ao lucro e com o objetivo de responder a desejos coletivos de
bem-estar social. Há no Terceiro Setor uma expansão da idéia de esfera pública,
espaço onde interagem público e privado.
1 FERNANDES, Rubem César. Privado, porém Público: O Terceiro Setor na América Latina. 2. ed. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. 2 Vale ressaltar que agentes públicos prestando serviços para fins privados constitui corrupção.
47
Ao aplicar a nova idéia de esfera pública à realidade histórica brasileira, percebe-se
que são incorporados conceitos que também sofrem mudanças nos últimos quarenta
anos: cidadania, voluntariado, participação.
Hoje cidadão significa muito mais do que quem vota e debate; é aquele sujeito ativo
de direitos e deveres, que participa da vida pública não somente, mas também no
intuito de suprir lacunas da atividade estatal, ou mesmo realizar algo que ajude na
consecução das necessidades coletivas.
Junto às ações voluntárias, ainda que fruto de um certo poder coercitivo moral,
vieram os termos aplicados ao Terceiro Setor: não lucrativo e não governamental.
De início, parece estranho que o Terceiro Setor seja decorrência de falhas no
funcionamento do Primeiro e do Segundo Setores e que se tenha definido
justamente pela negação da natureza dos mesmos, mas este setor capta e produz
recursos, sem o objetivo da geração de lucros e realiza atividades públicas,
inobstante ter origem no governo de um Estado.
As organizações do Terceiro Setor realizam atividades de caráter público - sem
possuir o que o Primeiro Setor tem como seu maior instrumento de coerção jurídica
e moral para captar colaboradores: o uso legítimo da força - e caras ao Segundo
Setor - no sentido de que pode não haver demanda para tais, ou, havendo a
demanda, o mercado-alvo da mesma não possuir poder aquisitivo para adquirir os
serviços e/ou produtos oferecidos. Em outras palavras: os indivíduos não querem ou
não podem pagar, e o Estado não quer ou não pode fazer.
A atividade voluntária do Terceiro Setor demanda recursos e gera outros. Produz,
ainda, uma disputa pelos mesmos. Tais recursos podem ser captados junto ao
Estado e ao mercado. A primeira fonte material a que as organizações não
governamentais de caráter não lucrativo recorreram foram as doações, que, ainda
hoje, são o grande manancial recursal proveniente da iniciativa privada. Houve toda
uma evolução no processo de convencimento das pessoas a despojarem-se de seus
bens materiais em prol do outro, normalmente uma comunidade desconhecida, ou
visando a um futuro em que não se viverá. Palavras foram sendo incorporadas a
48
uma nova publicidade, o marketing do voluntariado: movimentos sociais, sociedade
civil, trabalho comunitário, ação social.
Não há coerção jurídica à participação no Terceiro Setor mas é inegável exista toda
uma coerção moral que, sociologicamente, não pode ser descartada, posto que as
atividades humanas que impulsionam o Terceiro Setor estão impregnadas de um
estado de alma coletiva formado basicamente por essa estratégia sistemática em
torno de expressões que denotam quase uma ordem.
O Terceiro Setor, apesar de atividade não lucrativa, capta e gera recursos, o que faz
com que ele forme um mercado de trabalho bem específico. E, como todo fato social
influencia o Direito e é por ele influenciado, provoca o nascimento de novas
legislações, de outras dinâmicas jurídicas, modifica posições hermenêuticas, faz
surgir novas formas de relacionamento público/privado. No que tange ao contato
com os outros setores, traz condicionamentos orçamentários ao Governo, às
empresas, às pessoas físicas ou naturais.
Como condicionante e condicionado, o Terceiro Setor também logo é absorvido pelo
Estado e pelo Mercado, uma vez que o primeiro passa a produzir leis para
regulamentá-lo e o segundo logo procura uma maneira de “lucrar” com ele.
Antes de conceituar o Terceiro Setor, algumas considerações devem ser feitas para
que seja compreendido com clareza o que não faz parte deste setor.
a) Excluem-se os partidos políticos porque representam uma plataforma para o
ingresso do ator privado no Estado;
b) Excluem-se todas as iniciativas não institucionalizadas (oficial ou
costumeiramente) ou de caráter efêmero.3 A estrutura necessita ser organizada; e a
existência, contínua;
3 Tal como a união de pessoas para dar ceia de Natal aos mendigos apenas no ano de 2007 e apenas na região central de Belo Horizonte. As entidades cuja existência não é oficial precisam ter objeto lícito e respaldo em anseios legítimos de seus constituidores e/ou representantes para incluírem-se. Um exemplo seria uma escola de digitação gratuita, para jovens carentes, funcionando há dois anos de maneira regular sem reconhecimento do Estado.
49
c) Excluem-se os grupos religiosos que fazem “caridade mútua”,4 mas incluem-se as
associações de cunho religioso que transgridem a mera relação caridade-prêmio, ou
seja, incluem-se as estruturas organizadas para atividades no espaço público sem
fins lucrativos, como as Comunidades Eclesiais de Base;
d) Excluem-se sindicatos, associações de trabalhadores ou patronais quando suas
atividades forem mútuas ou apenas se dirigirem à obtenção de vantagens para os
sindicalizados/associados;
e) Finalmente, também não fazem parte do Terceiro Setor os grêmios, as
associações recreativas, clubes, que tenham um determinado número de associados
e dependentes que pagam e auferem para si, e somente para si, uma
contraprestação.
Nem a lista das inclusões nem a das exclusões têm caráter exaustivo. São apenas
um perímetro delimitador para o presente trabalho, posto que seria necessário
observar, caso a caso, a organização em concreto para classificá-la.
3.1 Conceito de Terceiro Setor
Assim, na iminência de estabelecer um conceito para o Terceiro Setor, é preciso que
alguns detalhes sejam esclarecidos.
Na América Latina não se pode esperar o mesmo apego às formalidades que se
observa na Europa e nos Estados Unidos. Ocorre que a chamada “economia
informal” - invisível ao Estado - é presença muito forte na parte sul e central das
Américas, Brasil incluído. Aquilo que funciona despido das vestes oficiais, embora
revestido de publicidade e organização como se oficial fosse, de caráter perene sob
o ponto de vista da não-espontaneidade, ou seja, de um fato social que se realiza
4 Doações dos fiéis para a Igreja utilizar na celebração de cultos.
50
através de um determinado período de tempo; precisa ser conhecido para os termos
da presente investigação.
Importa, aqui, a informalidade não ilícita. Salientando a condição sine qua non da
informalidade não ilícita, também é imprescindível que, para ser considerada, ela
opere de maneira efetiva, tenha possibilidades de captar recursos e realizar tarefas
durante um determinado período de tempo que contemple a produção de resultados.
Logo, a organização de moradores de um bairro que realizem trabalho de
alfabetização eficaz de seus empregados domésticos e respectivas famílias, sem
nenhum registro exigido pelas leis do país para tal, não se configurará como as
excludentes da lista anterior, podendo ser considerada Terceiro Setor.
Finalmente começa a aparecer um conceito de Terceiro Setor; apenas como
elemento referencial : é o coletivo de entidades, locais, nacionais, continentais e/ou
globais, de caráter não lucrativo, não governamental e não efêmero, que realiza
ações em direção à cidadania e à consecução de fins públicos.5
3.2 Histórico
Nos Estados Unidos, costuma ser usada, paralelamente ao termo Terceiro Setor, a
expressão Organizações Sem Fins Lucrativos (Non Profit Organizations) – que
representam instituições cujos benefícios financeiros não podem ser distribuídos
entre seus diretores e associados e à expressão Organizações Voluntárias, que têm
um sentido complementar ao da primeira. Se o lucro não lhes é permitido e se, como
também se supõe, não resultam de uma ação governamental, deriva-se que sua
criação seja fruto de um puro ato de vontade de seus fundadores. E mais, supõe-se
ainda que duram no tempo, em grande medida, graças a um conjunto complexo de
adesões e contribuições igualmente voluntárias.
5 Preferiu-se o vocábulo ‘entidades’ a ‘associações’ devido às fundações, que têm como ponto de partida uma reunião de patrimônio e não de pessoas, como as associações. Então se adotou ‘organizações’ em homenagens às fundações. Não se pode esquecer que as instituições, jurídicas ou não, são, em última análise, fruto da vontade humana. Daí pode-se inferir que muito mais própria a denominação portuguesa “pessoa colectiva” do que a brasileira “pessoa jurídica”.
51
A lei inglesa usa uma expressão mais antiga para designar o objeto. Fala de
caridades (charities), o que remete à memória religiosa medieval e enfatiza o
aspecto da doação - de si, para o outro -, que caracteriza boa parte das relações
idealizadas neste campo. A noção de filantropia, contraponto moderno e humanista
à caridade religiosa, também aparece com freqüência, sobretudo na literatura anglo-
saxã. Mecenato é outra palavra correlata, que faz lembrar a Renascença e o
prestígio derivado do apoio generoso às artes e ciências.
Da Europa Continental vem o predomínio da expressão Organizações Não
Governamentais (ONGs), cuja origem está na nomenclatura do sistema de
representações das Nações Unidas. Chama-se assim às organizações
internacionais, que, embora não representam governos, parecem significativas o
bastante para justificar uma presença formal na Organização das Nações Unidas
(ONU). O Conselho Mundial de Igrejas (CMI) e a Organização Internacional do
Trabalho (OIT) são exemplos em pauta. Dando continuidade ao processo, com a
formulação de programas de cooperação internacional para o desenvolvimento
estimulados pela ONU, nos anos 60 e 70, crescem na Europa Ocidental ONGs
destinadas a promover projetos de desenvolvimento no Terceiro Mundo. Formulando
ou buscando projetos em âmbito não governamental, as ONGs européias procuram
parceiros mundo afora e acabam por fomentar o surgimento de novas organizações
nos continentes do Hemisfério Sul.
Assim, ainda que designe uma característica geral ao campo em questão, que é
justamente sua natureza não governamental, o termo "ONG" no Brasil está mais
associado a um tipo particular de organização, surgida aqui a partir dos anos 1970,
no âmbito do sistema internacional de cooperação para o desenvolvimento. Sua
origem no período autoritário e seu horizonte internacionalizado numa época de
aumento dos embates ideológicos globais resultam numa ênfase na dimensão
política das ações, aproximando-as do discurso e da agenda das esquerdas.
Na América Latina, Brasil inclusive, é mais abrangente falar-se de Sociedade Civil e
de suas Organizações. Este é um conceito do século XVIII que desempenha papel
importante na filosofia política moderna, sobretudo entre autores da Europa
52
continental. Designa um plano intermediário de relações, entre a natureza, pré-
social, e o Estado, em que há socialização completa pela obediência a leis
universalmente reconhecidas. No entendimento clássico, inclui a totalidade das
organizações particulares que interagem livremente na sociedade (entre as quais, as
empresas e seus negócios), limitadas e integradas, contudo, pelas leis nacionais.
Fala-se hoje das Organizações da Sociedade Civil (OSCs) como um conjunto que,
por suas características, distingue-se não apenas do Estado mas também do
mercado. Recuperada no contexto das lutas pela democratização, a idéia de
Sociedade Civil serve para destacar um espaço próprio, não governamental, de
participação nas causas coletivas. Nela e por ela, indivíduos e instituições
particulares exercem a sua cidadania, de forma direta e autônoma.
Estar na Sociedade Civil implica um sentido de pertença cidadã, com seus direitos e
deveres, num plano simbólico que é logicamente anterior ao obtido pelo
pertencimento político, dado pela mediação dos órgãos de governo. Marcando um
espaço de integração cidadã, a Sociedade Civil distingue-se do Estado; mas,
caracterizando-se pela promoção de interesses coletivos, diferencia-se também da
lógica do mercado e forma, por assim dizer, um Terceiro Setor.
3.2.1 O Terceiro Setor no Brasil
Trata-se de um termo relativamente novo, mas seus fundamentos podem ser
buscados desde há muito tempo no Brasil. Passou a ser utilizado a partir do início
dos anos 1990 para designar as organizações da sociedade civil, sem fins lucrativos,
criadas e mantidas com ênfase na participação voluntária, que atuam na área social
e visa à solução de problemas sociais.
No entanto a filantropia, que dá origem à atuação do Terceiro Setor, constitui
fenômeno muito mais antigo. Data do século XVI o início das ações filantrópicas no
Brasil, com o surgimento das Santas Casas de Misericórdia.
53
No período que vai do Império até a 1ª República, datada de 1543, surge a primeira
entidade do país criada para atender desamparados, a Irmandade da Misericórdia,
instalada na Capitania de São Vicente. O Brasil era constitucionalmente vinculado à
Igreja Católica, e a utilização dos recursos, principalmente o privado, passava por
seu crivo. Era a época das Ordens Terceiras, das Santas Casas, das
Benemerências atuando, principalmente, nas áreas de saúde e previdência. A rigor,
o que o Estado não provia os líderes das principais comunidades portuguesas e
espanholas de imigrantes proviam. Com esmolas se constituíam pequenos dotes
para órfãos e se compravam caixões para os pobres. Beneditinos, franciscanos e
carmelitas, assim como a Santa Casa, foram exemplos expressivos da ação social
das ordens religiosas predominantes. Vinculam-se às ações sociais desenvolvidas, à
época, expressões tais como mutualismo, benemerência e outras ainda hoje
utilizadas, tais como assistencialismo e caridade.
Durante mais de três séculos a filantropia no Brasil foi desenvolvida sob a lógica da
prática assistencialista, com predomínio da caridade cristã. Ricos filantropos
sustentavam os educandários, os hospitais, as santas casas, os asilos e demais
instituições correlatas.
Foi somente no final do século XIX e início do XX que as instituições de assistência
e amparo à população carente passaram por mudanças na sua forma de
organização e administração, deixando de ser fundamentalmente orientadas por
princípios de caridade cristã e da filantropia e obtendo o reconhecimento das
fundações como entes dotados de personalidade jurídica.
É nesse período que se intensifica a atuação do Estado na área social,
principalmente nas áreas urbanas, nas questões de saúde, de higiene e de
educação. A intervenção do Estado na gestão administrativa e no financiamento das
organizações assistenciais e filantrópicas também aumenta. Especialmente a partir
de 1910, as instituições assistenciais iniciam um período caracterizado por forte
dependência econômica do Estado, que passa a exigir a prestação de contas
submetendo as organizações a um controle sobre a administração e suas ações
prático-normativas.
54
No período da Revolução de 1930 até 1960, o país entrou em processo de
urbanização e de industrialização, que passaram a moldar a nova atuação da elite
econômica. O Estado tornou-se mais poderoso e o único portador do interesse
público. No Estado Novo, com o presidente Getúlio Vargas, editou-se, em 1935, a
primeira lei brasileira que regulamentava as regras para a declaração de Utilidade
Pública Federal:6 dispunha seu artigo 1º que as sociedades civis, as associações e
as fundações constituídas no país deveriam ter o fim exclusivo de servir
desinteressadamente à coletividade. Em 1938, formalizou-se entre o Estado e a
assistência social com a criação do Conselho Nacional do Serviço Social.
Paralelamente à atuação do Estado, surgiram ações filantrópicas empreendidas por
senhoras de famílias economicamente privilegiadas; e por grandes mecenas,
oriundos das principais cidades e líderes de indústrias, como os Matarazzo,
Chateaubriand, entre outros. Os termos filantropia e mecenato adquirem evidência
nesta fase.
Nessa época surgiram os sindicatos, as associações profissionais, as federações e
confederações, que vinculavam o setor privado às práticas de assistência e auxílio
mútuo para imigrantes, operários, empregados do comércio, de serviços e
funcionários públicos, a criação por Vargas da Legião Brasileira de Assistência; o
Projeto Rondon - que conscientizava o jovem universitário no engajamento ao
atendimento às comunidades carentes sediadas no interior do país.
A partir de 1960 até a década de 70, o fortalecimento da sociedade civil se deu,
paradoxalmente, no bojo da resistência à ditadura militar. No momento em que o
regime autoritário bloqueava a participação popular na esfera pública, micro-
iniciativas na base da sociedade foram criando novos espaços de liberdade e
reivindicação. Surgem, neste momento, os movimentos comunitários de apoio e
ajuda mútua, voltados à defesa de direitos e à luta pela democracia. Marca-se, neste
contexto, o encontro da solidariedade com a cidadania, representadas em ações de
Organizações Não Governamentais (ONGs) de caráter leigo, engajadas em uma
dupla proposta: combater a pobreza e o governo militar ditatorial.
6 Lei nº 91 de 1935 da declaração de utilidade pública para as associações, organizações e entidades sem fins lucrativos, a qual regulamenta a colaboração entre o Estado e as instituições filantrópicas.
55
A partir dos anos 1970 multiplicam-se as ONGs com o fortalecimento da sociedade
civil - embrião do Terceiro Setor - em oposição ao Estado autoritário. O Brasil dava
início à transição de uma ditadura militar para um regime democrático. Com uma
"distensão lenta, segura e gradual" - como os militares costumavam caracterizar
esse processo -, a sociedade brasileira começou a exercer seus direitos
constitucionais, suspensos até então. Com o avanço da redemocratização e as
eleições diretas para todos os níveis de governo, as organizações de cidadãos
assumem um relacionamento mais complexo com o Estado. Reivindicação e conflito
passam a coexistir com diálogo e colaboração.
Foram fundadas inúmeras organizações para defender direitos políticos, civis e
humanos, ameaçados pelos longos períodos de ditadura militar na América Latina, e
no Brasil. Tais organizações autodenominaram-se “não governamentais”, marcando
uma postura de distinção quanto às ações governamentais. Foi daí que surgiu o
termo ONG, hoje disseminado e utilizado para designar qualquer tipo de
organização sem fins lucrativos.
As organizações surgidas no bojo da resistência política tiveram um papel
fundamental nos rumos da sociedade brasileira e na conformação do Terceiro Setor.
Não só foram responsáveis pela disseminação da noção de cidadania e pela
pressão para seu amplo desenvolvimento, como também se constituíram em fator-
chave para a entrada de recursos de fundações internacionais no Brasil, tais como
Fundação Ford, Rockfeller, MacArtur, além de agências de fomento e cooperação
internacional.
As ONGs surgidas nas décadas de 70 e 80 configuraram um novo modelo de
organização e de gerenciamento de recursos. Ao contrário dos períodos anteriores,
em que as organizações vinculavam-se ao Estado tanto administrativa quanto
economicamente, com o surgimento das ONGs o vínculo passa a ser com as
agências e instituições financiadoras internacionais.
Em meados da década de 80, a abertura política e econômica de países do Leste
Europeu e as crises sociais do continente africano levaram as fundações
56
internacionais e órgãos de cooperação a redirecionar parte de seus recursos para
financiar programas de desenvolvimento naquelas áreas do mundo, forçando as
organizações latino-americanas a buscarem alternativas para sua sustentabilidade.
Paralelamente, os recursos governamentais tornaram-se mais escassos.
Nos anos 90 ocorrem mudanças na conformação do Terceiro Setor no Brasil que
dão início a um novo padrão de relacionamento entre os três setores da sociedade.
O Estado começa a reconhecer que as ONGs acumularam um capital de recursos,
experiências e conhecimentos, sob formas inovadoras de enfrentamento das
questões sociais, que as qualificam como parceiros e interlocutores das políticas
governamentais.
O Terceiro Setor não é forma de descentralização do serviço público, pois, como
bem coloca Rocha “os entes que integram o Terceiro Setor são entes privados, não
vinculados à organização centralizada ou descentralizada da Administração
Pública”,7 mas pode-se dizer que tais entes acabaram por descentralizar as políticas
sociais que anteriormente estavam concentradas nas mãos do Estado.
A descentralização das políticas sociais surge para que se ganhe em agilidade e em
eficiência, sem, contudo, retirar o papel do Estado na prestação dos serviços
públicos sociais. Não se busca a total abstenção do Estado; o ideal é a atuação
conjunta entre Estado e Terceiro Setor - princípio da subsidiariedade -, sem deixar
de lado as suas próprias políticas públicas, concebendo-se uma nova relação entre
Estado e sociedade, visando sempre facilitar o acesso da população aos direitos
sociais fundamentais.
O mercado, antes distanciado, passa a ver nas organizações sem fins lucrativos
canais para concretizar o investimento do setor privado empresarial nas áreas social,
ambiental e cultural.
7 ROCHA, Sílvio Luis Ferreira da. Terceiro Setor. São Paulo: Malheiros, 2003. p.13.
57
O termo cidadania já aparecia no discurso do empresariado brasileiro, no início
desta década. Paralelamente, o sentimento vigente era que o Estado, sozinho, não
conseguiria dar conta de todas as suas obrigações na área social.
Ainda na década de 90, a Câmara Americana de Comércio, com apoio da Fundação
Ford e da Fundação W.K. Kellogg, promove um prêmio, reuniões e conferências
sobre filantropia em São Paulo, o que resulta na criação de um comitê de empresas
brasileiras e fundações corporativas. Incluíam-se no grupo fundações como
Bradesco, Odebrecht, Roberto Marinho; organizações como o Instituto Itaú Cultural e
empresas do porte da Xerox e Alcoa. O grupo formaliza-se em 1995, formando o
Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE).
Em 1998, também em São Paulo, 11 empresas se associam e surge o Instituto
Ethos de Empresas e Responsabilidade Social. Expressão que até então não existia
- responsabilidade social - vem marcar o início de uma intervenção social
empresarial alicerçada em um Código de Ética definidor de parâmetros de conduta
das empresas com seus públicos. Busca-se diferenciar, marcadamente, ações "de
negócio" de uma agenda voltada a investimentos sociais privados, de cunho ético e
em benefício da sociedade.
A nova ordem constitucional institui um regime de democracia participativa e de
cidadania responsável. Formas de expressão – tais como parceria, cidadania
corporativa, responsabilidade social, investimento social privado – surgem para
expressar este novo movimento de encontro dos três setores da economia brasileira
Amplia-se, fortemente, o conceito de Terceiro Setor: para além do círculo das ONGs,
valorizam-se outros atores sociais, como as fundações e institutos, as associações
beneficentes e recreativas, também as iniciativas assistenciais das igrejas e o
trabalho voluntário de maneira geral.
Cria-se, no governo de Fernando Henrique Cardoso, o Programa Comunidade
Solidária com o propósito de articular trabalhos sociais em vários ministérios. E, em
18 de fevereiro de 1998, é regulamentada a Lei do Voluntariado - Lei n° 9.608.
58
Foi somente a partir dessa década que o Terceiro Setor começou a se constituir
como um setor com características e lógica diferentes dos demais, marcando os
rumos das organizações sem fins lucrativos no país.
Com a proclamação pela Organização das Nações Unidas (ONU) do ano de 2001
como "Ano Internacional do Voluntário", acontecem, no Brasil, o I° e o II° Fóruns
Sociais Mundiais, implementadores de idéias alternativas de ação econômica e
social. Promove-se o desenvolvimento social a partir do incentivo a projetos auto-
sustentáveis - em oposição às tradicionais práticas de caráter assistencialista
geradoras de dependência - e em propostas de superação de padrões injustos de
desigualdade social e econômica.
Questionam-se, na sociedade civil, formatos pré-conceituosos baseados em padrões
de comportamento e pensamento julgados "adequados" aos sujeitos-cidadãos.
Abrem-se novas perspectivas à aceitação da diversidade de comportamentos
humanos, de respeito à singularidade cultural e à autodeterminação econômica dos
povos. Implementam-se políticas de proteção aos bens da humanidade, incluídas
todas as formas de vida e sua preservação.
3.3 O Que é Terceiro Setor
Em resumo, pelo que foi visto até aqui, pode-se dizer que o Terceiro Setor é formado
por organizações sem fins lucrativos, criadas e mantidas com foco na
voluntariedade, em uma esfera não governamental, que dão continuidade às
práticas tradicionais da caridade, da filantropia e do mecenato.
Esta definição soa um tanto estranha porque combina palavras de épocas e de
contextos simbólicos diversos, que transmitem, inclusive, a memória de uma longa
história de divergências mútuas. A filantropia contrapôs-se à caridade, assim como a
cidadania ao mecenato.
59
São diferenças que ainda importam, mas que parecem estar em processo de
mutação. Perdem a dureza da contradição radical e dão lugar a um jogo complexo e
instável de oposições e complementaridades. Não se confundem, mas já não se
separam de todo. Recobrem-se parcialmente, alternando situações de conflito, de
cooperação e de indiferença. A irmã de caridade que defende sua creche como uma
"ação de cidadania" ou o militante de organizações comunitárias que elabora
projetos para o mecenato empresarial tornaram-se figuras comuns.
No Brasil de hoje, a voz dos mais variados grupos sociais se faz ouvir no espaço
público. Não há questão de interesse coletivo em relação à qual cidadãos não se
mobilizem para cobrar ações do Estado e tomar iniciativas por si mesmos. Este
protagonismo dos cidadãos determina uma nova experiência de democracia no
quotidiano, um novo padrão de atuação aos governos e novas formas de parceria
entre sociedade civil, Estado e mercado. Ampliam-se os recursos e competências
necessários para o enfrentamento dos grandes desafios nacionais, como o combate
à pobreza e a incorporação dos excluídos aos direitos básicos de cidadania.
Terceiro Setor é uma terminologia sociológica que dá significado a todas as
iniciativas privadas de utilidade pública com origem na sociedade civil. A palavra é
uma tradução de Third Sector, uma expressão muito utilizada nos Estados Unidos
para definir as diversas organizações sem vínculos diretos com o Primeiro e o
Segundo Setores.
3.4 Atributos do Terceiro Setor
O Terceiro Setor tem sua composição formada por organizações sem fins lucrativos,
de natureza privada - criadas e mantidas pela participação voluntária - não
submetidas ao controle direto do Estado, dando continuidade às práticas tradicionais
da caridade, da filantropia, trabalhando para realizar objetivos sociais ou públicos.
60
Para que sejam constituídas, algumas características devem ser observadas:
a) formalidade – devem ter alguma forma de institucionalização, legal ou não, com
um nível de formalização de regras e procedimentos, para assegurar a sua
permanência por um período mínimo de tempo;
b) estrutura – privadas, ou seja, não são ligadas institucionalmente a governos. As
entidades do Terceiro Setor não se enquadram dentro da estrutura da Administração
Pública. São formadas por “ações” de pessoas físicas ou jurídicas de direito privado,
organizadas pela sociedade civil na concretização dos direitos sociais, ou seja, é a
sociedade assumindo seu papel cidadão, uma vez que os objetivos da República,
previstos no artigo 3º da CRFB/88, devem ser alcançados não só pelo Estado, mas,
também, por toda a sociedade;
c) gestão - realizam sua própria gestão, não sendo controladas externamente como
uma nova forma de prestar serviços sociais de relevância pública, em busca de uma
maior eficiência na prestação dos mesmos;
d) finalidade pública - existem entidades do Terceiro Setor que desenvolvem tanto
atividades com finalidade pública de interesse geral da coletividade, quanto
atividades com fins coletivos privados. Isto é, visam à preservação de interesses
comuns a um determinado grupo que se associa voluntariamente (associação -
pessoa jurídica de direito privado), sem visar ao lucro, na busca de um fim coletivo
que só lhes interessa;8
e) finalidade não lucrativa9 - não se cogita de instituições do Terceiro Setor com
finalidades lucrativas; caso contrário, se estaria falando do Segundo Setor, integrado
pelo mercado, que busca eminentemente o lucro. As entidades do Terceiro Setor
devem ser privadas para se diferenciarem do Primeiro Setor e, portanto, sem
8 Uma associação de colecionadores de selos ou uma que luta por direitos dos homossexuais. 9 Sobre esse tema da finalidade não lucrativa, importante se fazerem algumas considerações a respeito. A auferição de lucros dentro do Terceiro Setor não podem, para assim serem denominadas, visar lucro no exercício de suas atividades, entretanto, lucros, eventualmente, auferidos em razão de suas atividades não lhe são proibidos, sendo vedada, entretanto, a distribuição desses lucros entre seus membros, devendo ser reinvestidos na própria organização, para melhoria da qualidade de seus serviços.
61
integrar nem a Administração direta nem a indireta. Também não devem ter fins
lucrativos para se distinguirem das empresas inseridas no mercado, ou seja, do
Segundo Setor. A geração de lucros ou excedentes financeiros deve ser reinvestida
integralmente na organização. Estas entidades não podem distribuir dividendos de
lucros aos seus dirigentes e, por último,
f) voluntariedade - outro ponto intimamente ligado à finalidade não lucrativa do
Terceiro Setor envolve o voluntariado. As organizações que integram o Setor
utilizam, em grande parte, o serviço voluntário,10 ou seja, não remunerado no
desenvolvimento de suas atividades.
Dentro das organizações que fazem parte do Terceiro Setor, estão as Organizações
Sociais (OS), as Organizações Não Governamentais (ONGs), entidades
filantrópicas, Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs),
organizações sem fins lucrativos e outras formas de associações civis sem fins
lucrativos, que serão apresentadas ao longo deste trabalho.
3.4 Formas Jurídicas do Terceiro Setor
O Terceiro Setor é compreendido por ações realizadas tanto por pessoas físicas
quanto por pessoas jurídicas de direito privado - importando que essas ações não
visem ao lucro e sejam prestadas em atuação complementar às atividades do
Estado -, podendo assumir duas formas distintas:
a) Associações Civis, que trata de entidades criadas a partir da união de pessoas
que se organizam voluntariamente com objetivos de natureza social e, assim,
passam a atuar em complementação às atividades sociais do Estado. Os fins não
econômicos, previstos na redação do art. 53 do Código Civil, não significam que a
10 A noção de voluntariado se identifica na medida em que o cidadão assume seu papel na efetivação das políticas públicas sociais e não mais na pura noção caritativa. A Constituição, em diversos artigos, como já se expôs, entrega ao cidadão e à sociedade de forma geral grande responsabilidade na consecução dos direitos sociais; a co-responsabilidade social do Estado, do mercado e da sociedade.
62
associação não possa desenvolver atividade econômica, mas tão somente que os
lucros eventualmente auferidos não podem ser distribuídos entre seus membros;11
b) Fundações Privadas, entidades criadas por escritura pública ou testamento,
dotação especial de bens livres, cujo fim deve estar expressamente especificado,
conforme o art. 62 do Código Civil.
Da redação deste artigo pode-se afirmar que, para existir uma fundação no Brasil,
precisam estar presentes: a) patrimônio12 - que deve ser composto por bens livres e
b) finalidade - que deve ser previamente estabelecida pelo instituidor da fundação e
vínculo - que é a afetação pela vontade do instituidor.
Visto o que vem a ser o Terceiro Setor, passa-se agora a estudar as formas que a
sociedade pode assumir para auxiliar o Estado na prestação de serviços sociais
mediante a outorga de títulos e certificados pela Administração Pública.
11 Essa foi a intenção do legislador, que se evidencia ao tratar das sociedades (pessoas jurídicas de direito privado com finalidade lucrativa), nos artigos 981 e seguintes do Código Civil pátrio, quando afirma que “celebram contrato as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados”. A distinção entre sociedade e associação, portanto, é a partilha dos resultados advindos da atividade econômica desenvolvida. 12 A dotação patrimonial é elemento nuclear sem o qual não será possível a criação de uma fundação.
63
4 A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E A SOCIEDADE
Como visto anteriormente, a atividade de fomento permite ao particular colaborar
com a Administração Pública no exercício de suas atividades. Com efeito, figura
como uma atividade paralela ao Estado, como uma atividade que atua na vizinhança
com o serviço público. Ela não é serviço público e não é atividade inteiramente
privada; encontra-se numa zona intermediária.
Dessa forma o reconhecimento da relevância das iniciativas das organizações
particulares que atuam paralelamente ao Poder Público, mediante a outorga de
títulos e certificados pela Administração Pública, apresenta a típica atividade de
fomento.
Mas deve-se observar que o título outorgado mediante ato administrativo não cria
uma nova estrutura organizacional, apenas atesta, reconhece uma situação fática
preexistente que está compreendida nas categorias legais.
As regras de constituição, funcionamento, bem como de extinção das associações
civis e fundações integram os artigos 45 e 46 e demais dispositivos do Código Civil
Brasileiro e os artigos 114 e seguintes da Lei de Registros Públicos, e diferem da
natureza as condições fixadas em lei para a concessão de títulos jurídicos especiais.
As primeiras – regras de constituição - tratam do aspecto existencial das
organizações do Terceiro Setor, as outras selecionam, do amplo universo de
pessoas jurídicas de direito privado, as merecedoras de reconhecimento em
decorrência da prestação de serviços de relevância pública.
Este capítulo trata da outorga de títulos concedidos à entidades sociais mediante a
adoção de critérios que abrangem os princípios da legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência, conforme artigo 37 da Emenda constitucional
19, além da motivação, da igualdade e da finalidade.
64
Os principais títulos jurídicos concedidos às entidades sociais são: a declaração de
utilidade pública; o certificado de fins filantrópicos; as organizações sociais e as
organizações da sociedade civil de interesse público, que serão vistos em tópicos a
seguir.
4.1 A Declaração de Utilidade Pública
Instituído pela Lei 91, de 28 de agosto de 1935, e alterada pela Lei 6.330, de 08 de
maio de 1979, este título – utilidade pública – deve ser outorgado às sociedades
civis, associações e fundações constituídas no país.
De acordo com o instrumento normativo, as entidades detentoras deste título devem
ter a finalidade de servir desinteressadamente à coletividade, desde que preencham
os seguintes requisitos: sejam constituídas no país; tenham adquirido personalidade
jurídica; estejam em efetivo funcionamento em respeito a seus estatutos nos últimos
três anos; não remunerem os cargos de diretoria, conselhos fiscais, deliberativos e
consultivos, nem distribuir lucros ou vantagens a dirigentes, mantenedores ou
associados; apresentem folha corrida e moralidade comprovada pelos seus
diretores; comprovem, mediante relatórios circunstanciados, a promoção da
educação ou atividades de pesquisa científicas, culturais, artísticas ou filantrópicas;
aceitem o compromisso de publicar periodicamente a demonstração de receitas e
despesas.
Após o recebimento da declaração de utilidade pública, as entidades estarão
obrigadas a inscrever o nome e as características em livro especial; apresentar
anualmente relatório circunstanciado dos serviços prestados a coletividade; publicar
anualmente a demonstração de receita e despesa realizada no período anterior.
O caráter deste instituto era meramente cívico e honorífico, mas atualmente confere
uma série de direitos ou benefícios, como a faculdade de dedução do imposto de
renda por pessoas físicas e jurídicas em decorrência de doações a entidade
65
declaradas de utilidade pública; requerimento de isenção da cota patronal do INSS;
isenção do Fundo de Garantia por Tempo de Serviços; realização de sorteios;
recebimento de loterias federias e doações da União Federal.
Apesar de não ser o foco deste trabalho, é importante frisar que o caráter sucinto e
genérico desta legislação federal traz como problemas a escassez de parâmetros e
a vulnerabilidade na área social, em termos de corrupção.
4.2 Certificado de Fins Filantrópicos
Título jurídico outorgado pelo Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS),
conforme artigo 18 da Lei 8.742, de 07 de dezembro de 1993, o certificado de fins
filantrópicos destina-se a entidades cuja atuação esteja voltada para a proteção da
família, maternidade, infância, adolescência e maior idade; o amparo às crianças e
adolescentes carentes; a promoção de ações de prevenção, habilitação e
reabilitação de pessoas portadoras de deficiência; a promoção, gratuita, de
assistência educacional ou de saúde; a promoção à integração no mercado de
trabalho; a promoção de atendimento e assessoramento aos beneficiários da Lei
Orgânica de Assistência Social e da defesa e garantia de seus direitos,1 e desde que
atendam aos requisitos relacionados no Decreto 2.536, de 06 de abril de 1998.
O certificado de fins filantrópicos junto acrescido do título de utilidade pública e
cumpridas das demais exigências previstas na Lei 8.212, de 24 de julho de 1991 –
que dispõe sobre a organização da Seguridade Social -, asseguram a imunidade da
cota patronal de contribuição previdenciária à entidade social.
Este tema gera inúmeras discussões,, inclusive em relação ao aspecto judicial, mas,
na inexistência atual de uma posição pacífica em relação às limitações
constitucionais desta Lei, o Poder Público vem aplicando, para efeitos de outorga do
1 Resolução 177/2000 do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS).
66
certificado de fins filantrópicos, fundamentalmente as regras contidas na Lei nº.
8.212/1991 e na resolução do CNAS 177/2000.
Assim como nas entidades que recebem o título de utilidade pública, não há
possibilidade objetiva de se aferir o desempenho, o resultado em termos
quantitativos e qualitativos dos serviços prestados pelo amplo universo das pessoas
jurídicas que atuam sobre o auspício do certificado de fins filantrópicos outorgado
pelo CNAS.
4.3 O Marco Legal do Terceiro Setor
Após a chegada da Constituição Federal de 1988, que adotou o Terceiro Setor como
parceiro do Estado na prestação de serviços sociais, tornou-se necessária uma
reforma no marco legal para a manutenção e desenvolvimento deste setor.
O marco legal do Terceiro Setor, inserido dentro do contexto da nova ordem
constitucional e de Reforma do Estado, é compreendido pela Lei nº. 9.637, de 15 de
maio de 1998, que concede às entidades deste setor o título de Organização Social
(OS), e pela Lei nº. 9.790, de 23 de março de 1999, que concede o título de
Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP).
A concessão desses títulos traz alguns benefícios e vantagens para essas
entidades. Mas antes de o assunto ser tratado, vale lembrar que os títulos não
denotam a formação de uma nova pessoa jurídica, mas tão-somente a qualificação,
o reconhecimento por parte do Poder Público de que determinadas pessoas
jurídicas de direito privado realizam os objetivos estabelecidos na legislação
específica e serviços de relevância pública, em colaboração com o Poder Público.
67
4.3.1 Organizações Sociais – OS
As Organizações Sociais (OS) integram o Terceiro Setor e podem ser definidas
como entidades privadas sob a forma de associações ou fundações, sem finalidade
lucrativa, prestadoras de serviços de interesse público.
A Lei nº. 9.637, de 15 de maio de 1988, com o intuito de estreitar a relação entre
Estado e sociedade, posicionou as Organizações Sociais numa zona intermediária
entre público e privado e, portanto, alheias à estrutura da Administração Pública
indireta.2
Para que as entidades do Terceiro Setor se habilitem ao título de Organização
Social, terão que atender a alguns requisitos previstos na Lei nº. 9.637/1998, além
de estarem adstritas ao rol de atividades fixado no art. 1º da lei.
A entidade deve perseguir objetivos de cunho social e não pode, sob qualquer
pretexto, distribuir lucros entre seus sócios ou associados. Deverá existir um
Conselho de Administração com participação de representantes do Poder Público e
membros da comunidade, além de membros da entidade; os relatórios financeiros e
os relatórios de execução do contrato de gestão devem ter sua publicação anual no
Diário Oficial da União; está proibida de distribuir seus bens ou parcelas do
patrimônio líquido em qualquer hipótese. Ainda deverá constar do estatuto ou do ato
constitutivo da entidade que, no caso de extinção ou perda da qualificação, o
patrimônio, os legados ou doações que lhe forem destinados, bem como os
excedentes financeiros decorrentes de suas atividades serão incorporados a outra
organização social qualificada ou ao patrimônio da União, dos Estados, Distrito
Federal ou Município, na proporção dos recursos ou bens por estes alocados.
2 A administração pública pode ser direta, quando composta pelas suas entidades estatais (União, Estados, Municípios e DF), que não possuem personalidade jurídica própria; ou indireta, quando composta por entidades autárquicas, fundacionais e paraestatais. A Administração Pública tem como principal objetivo o interesse público, e deve obediência aos princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
68
Além do preenchimento de todos os requisitos, a entidade ainda haverá de vencer o
obstáculo da discricionariedade, conforme dispõe o art. 2º, inciso II, da supracitada
Lei,3 para que seja concedida a qualificação.
Conferido o título de OS, a entidade estará apta a formalizar contratos de gestão
com o Poder Público, bem como fará jus à destinação de recursos orçamentários,
bens públicos e até servidores públicos para o cumprimento do contrato de gestão,
segundo art. 12 da mesma Lei.
Mas a interferência do Poder Público nas Organizações Sociais alcança nível jamais
visto no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente se considerada a natureza
jurídica das pessoas assim qualificadas, dotadas de autonomia própria das
organizações privadas assim como instruídas e geridas sob o influxo do direito
constitucional à liberdade de associação.
Evidencia-se que o Poder Público possui condições extremamente vantajosas, pois
além da presença assegurada no conselho de administração da entidade, participará
da aprovação do contrato de gestão, de acordo com art. 4º, inciso II, da Lei nº.
9.637/1998, como ocorre ordinariamente, haja vista que tal ato envolve a
manifestação de vontades da Administração e da Organização Social. Não sendo
inconstitucional a inclusão desta norma e considerando que as entidades do
Terceiro Setor não pertençam à estrutura da Administração Pública, percebe-se o
enfraquecimento do exercício à liberdade de associação prevista no art. 5º, inciso
XVII, da Carta Magna, especialmente no que toca à estrutura do Conselho de
Administração.
Exercendo atividades não exclusivas do Estado, mas de relevância social - e, por
isso, independentemente de qualquer licitação, uma vez que somente os serviços
públicos são passíveis de contrato de concessão ou permissão -, as OS atuam em
cooperação com o Estado, podendo ser fomentadas mediante contrato de gestão,
pois essas entidades qualificadas como OS prestam serviços de interesse social
3 Embora e Lei 9.637/1988 estipule critérios para qualificação de uma entidade como organização social, não se constata a rigidez de regras que oriente a decisão da autoridade administrativa. O legislador apenas fez menção aos termos “conveniência” e “oportunidade”.
69
relevante e não serviços públicos, que são prestados apenas pelo Estado ou por
quem lhe faça as vezes, debaixo de regras de direito público (concessão ou
permissão – art. 175, Constituição Federal/88).
A entidade perderá a qualificação de Organização Social “quando constatado o
descumprimento das disposições contidas no contrato de gestão” e será precedida
de procedimento administrativo, assegurado o direito de ampla defesa à entidade
social, conforme o parágrafo art. 16 da Lei nº. 9.637/88.
4.3.2 Organização da Sociedade Civil de Interesse Público
A Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) é um título
fornecido pelo Ministério da Justiça, cuja finalidade é facilitar o aparecimento de
parcerias e convênios com todos os níveis de governo e órgãos públicos (Federal,
Estadual e Municipal) e permite que doações realizadas por empresas possam ser
descontadas no imposto de renda.
Disciplinada pela Lei nº. 9.790, de 23 de março de 1999, a OSCIP configura a mais
nova regulamentação jurídica das pessoas jurídicas de direito privado integrantes do
chamado Terceiro Setor e, talvez, seja o mais importante passo em matéria legal
deste setor no Brasil, e, também, o primeiro movimento de certa expressão.
Assim como as Organizações Sociais (OS), as OSCIPs não passam a integrar uma
nova categoria de pessoa jurídica; apenas recebem um reconhecimento especial –
título jurídico – por força de preenchimento de condições estabelecidas na lei
reguladora.
Somente poderão se qualificar as pessoas jurídicas de direito privado, sem fins
lucrativos que promovem serviços de interesse social na área de assistência social;
da cultura, defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico; que prestem
serviços gratuitos de educação e saúde; atuem na promoção da segurança
70
alimentar e nutricional; na defesa, preservação e conservação do meio ambiente e
promoção do desenvolvimento sustentável; promoção do voluntariado; promoção do
desenvolvimento econômico e social e combate a pobreza; experimentação, não
lucrativa, de novos modelos sócio-produtivos e de sistemas alternativos de
produção, comércio, emprego e crédito; dediquem-se à defesa dos direitos
estabelecidos, à construção de novos direitos e à assessoria jurídica gratuita de
interesse suplementar, à difusão de valores como a ética, a paz, a cidadania, os
direitos humanos, a democracia, e de outros valores universais; estudos e
pesquisas, desenvolvimento de tecnologias alternativas, produção e divulgação de
informações e conhecimentos técnicos e científicos que digam respeito ás atividades
mencionadas, conforme o art. 3º da Lei nº. 9.790/1999, ou seja, o objeto da atividade
da OSCIP é mais amplo do que o da OS.
Há, no entanto, no artigo 2º, todo um rol excludente de entidades que não podem se
candidatar a receber a qualificação de OSCIPs, entre elas as organizações sociais e
as cooperativas; posto que impossível criar duas qualificações jurídicas de exceção
para a mesma entidade. Trata-se de lista exaustiva, não comportando qualquer
inclusão, sendo elas: as sociedades comerciais; os sindicatos; as associações de
classe ou de representação de categoria profissional; as instituições religiosas ou
voltadas para a disseminação de credos, cultos, práticas e visões devocionais e
confessionais; as organizações partidárias e assemelhadas, inclusive suas
fundações; as entidades de benefício mútuo, destinadas a proporcionar bens ou
serviços a um círculo restrito de associados ou sócios; as entidades e empresas que
comercializam planos de saúde e assemelhados; as instituições hospitalares
privadas não-gratuitas e suas mantenedoras; as escolas privadas não gratuitas e
suas mantenedoras; as fundações públicas; as fundações, sociedades civis ou
associações de direito privado, criadas por órgão público ou por fundações públicas;
as organizações creditícias que tenham quaisquer tipos de vinculação com o
Sistema Financeiro Nacional a que se refere o art. 192 da Constituição Federal.
A Lei nº. 9.790/1999, em seu artigo 4º, I a VII, estabelece que as normas ou
disposições dos estatutos das OSCIPs devem observar os princípios da legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade, economicidade e eficiência; constituir um
conselho fiscal ou órgão equivalente dotado de competência para opinar sobre os
71
relatórios de desempenho financeiro e contábil, e sobre as operações patrimoniais
realizadas, emitindo pareceres para os organismos superiores da entidade;
possibilitar a instituição de remuneração para os dirigentes da entidade que atuem
efetivamente na gestão executiva e para aqueles que a ela prestam serviços
específicos, respeitados, em ambos os casos, os valores praticados pelo mercado,
na região correspondente a sua área de atuação.
Os requisitos apresentados demonstram que as OSCIPs, apesar de regime jurídico
privado a que se submetem, devem observar derrogações oriundas do direito
público. A observância dos princípios constitucionais expressos da administração
pública, mesmo não se tratando sequer de entes da administração indireta, denota o
alcance das regras que marcam a natureza pública dessas organizações do Terceiro
Setor.
Com efeito, a legalidade visa restringir o âmbito de subjetividade dos atos
perpetrados pelos dirigentes destas organizações da sociedade civil – de interesse
público – sem abolir, por completo o regime jurídico de direito privado.
A qualificação de uma entidade como OSCIP é ato vinculado do Ministro da Justiça.
Não há discricionariedade quanto à possibilidade de conceder o título. Preenchidos
os requisitos legais e formalizado o pedido junto ao Ministério competente, a outorga
do título se mostra como um ato vinculado, diferentemente do que ocorre com a OS,
em que a concessão do título se coloca de forma discricionária, revelando-se a Lei
das OSCIPs uma evolução nesse sentido.
Já o princípio da publicidade indica que a OSCIP deve tornar público o relatório de
atividades e das demonstrações financeiras da entidade. Uma vez mais se constata
a derrogação das normas de direito privado pela introdução de regras próprias do
regime jurídico de direito público.
A perda da qualificação depende inevitavelmente de prévio processo administrativo
ou judicial, uma vez que nenhuma penalidade pode ser aplicada sem o devido
processo legal, com as garantias do contraditório e da ampla defesa. Através de
processo administrativo ou judicial, deverá buscar a verdade material. Deverá apurar
72
se a OSCIP de fato não cumpriu alguma cláusula do termo de parceria, o que, caso
ocorra, autoriza sua desqualificação.
A eventual desqualificação da entidade, dentro do processo administrativo ou
judicial, deve ser motivada apontando as obrigações assumidas e não cumpridas
pela entidade e o fundamento legal que autoriza a desqualificação dentro de uma
razoabilidade considerada.
4.3.2.2 Formas de Parceira
As formas de parceria respondem a uma nomenclatura ainda nova para o Direito
Público. O termo tem origem no Direito Privado e remonta à participação nos lucros
auferidos pelas partes, portanto sem o mínimo de afinidade com o regime jurídico
administrativo e o universo das organizações não governamentais, que por definição
não perseguem fins lucrativos.
No entanto este termo passa a designar a união de esforços entre o Poder Público
(Estado) e o setor privado (Mercado) para a concretização de objetivos de interesse
público, a partir de iniciativas legislativas, bem como sua aceitação pela doutrina no
âmbito do Direito Público.
Luiz Eduardo Patrone Regules,4 nos ensina que:
[...] as formas de parceria, como o convênio, o contrato de gestão e o termo de parceria, integram mecanismos de participação da comunidade na consecução de iniciativas de interesse público. É parceria a colaboração espontânea das organizações do Terceiro Setor em programas que a Administração promove, sem a necessidade de constituição de uma nova pessoa jurídica.
Feitas as considerações, passa-se a analisar as parcerias criadas através de
convênio, contrato de gestão e termo de parceria.
4 REGULES, Luis Eduardo Patrone. Terceiro Setor: regime jurídico das OSCIPs. São Paulo: Editora Método, 2006. p 114.
73
a) Convênio
Os convênios, acordos ou ajustes são usados como sinônimos pelo Decreto n.°
93.872/86. Prestam-se à execução, pelo particular, de serviços ou produção de
bens, desde que a finalidade seja pública. Trata-se de cooperação. O pressuposto é
o da comunhão de interesses. Se os interesses forem opostos, haverá contrato,
conforme reza o parágrafo único do artigo 48 do supramencionado decreto.
Seu objetivo legal é, em acordo com o Decreto supracitado e conforme o Decreto-lei
nº. 200/1967, art. 10, § 1º, ‘’b’’ e § 5º, a:
[...] descentralização das atividades da administração federal, através da qual se delegará a execução de programas federais de caráter nitidamente local, no todo ou em parte, aos órgãos estaduais ou municipais incumbidos de serviços correspondentes, e quando estejam devidamente aparelhados.
Parece, pois, que o objetivo do legislador nesta espécie de fomento foi permitir o
deslocamento de recursos do âmbito federal para o estadual e o municipal dentro da
Administração Pública, embora possa também ser utilizado para acordar com
particulares. Serve tanto para compra de bens permanentes como para a geração de
recursos durante um determinado prazo, visto poder ser de execução imediata ou de
trato sucessivo, consoante interpretação do artigo 57 do Decreto nº 93.872/86, que
preconiza que o convênio pode ser denunciado a qualquer tempo.
Existe uma divergência doutrinária acerca da possibilidade de se poder utilizar os
recursos do convênio para pagamento da força de trabalho ou apenas para compra
de recursos, porém tal questão não será abordada agora, uma vez que se afastaria
por demais do tema pesquisado.
b) Contrato de gestão
O contrato de gestão, para os efeitos da Lei nº. 9.637/1998, é o instrumento firmado
entre o Poder Público e a entidade qualificada como Organização Social, com vistas
à formação de parceria entre as partes para fomento e execução de atividades
74
relativas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à
proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde - atendidos os
requisitos nela previstos.
O Poder Público, por meio de contrato de gestão, fomenta a Organização Social,
através de recursos orçamentários, bens públicos - permissão de uso - e até
servidores públicos para que a entidade qualificada possa cumprir os objetivos
sociais tidos por convenientes e oportunos.
O contrato de gestão é regido por normas de Direito Público, por tratar-se de
contrato administrativo. O art. 37, caput e inciso XXI, da Constituição Federal e o art.
7º da Lei nº. 9.637/1998 determinam de modo pleonástico - frente à obviedade de
qualquer contrato realizado pela Administração Pública se ver obrigado a seguir os
princípios a ela aplicáveis - que vários preceitos aplicáveis à Administração Pública
devem ser observados no contrato de gestão: legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade, economicidade. Ainda segundo o artigo 7º, devem ser
especificados objetivos, metas e prazos, estabelecidos critérios objetivos de
avaliação de desempenho no bojo do contrato, e estipulados limites às
remunerações dos dirigentes.
O contrato será fiscalizado pela entidade supervisora da área fomentada, que
assinou o contrato. Mas podem também os resultados ser analisados,
periodicamente, por comissão de avaliação, “indicada pela autoridade supervisora
da área correspondente, composta por especialistas de notória capacidade e
adequada qualificação”, que deve “encaminhar à autoridade supervisora relatório
conclusivo sobre a avaliação procedida”, segundo art. 8º. Caso a autoridade ou
responsáveis tomem conhecimento de “qualquer irregularidade ou ilegalidade na
utilização de recursos ou bens de origem pública por organização social, dela darão
ciência ao Tribunal de Contas da União, sob pena de responsabilidade solidária”,
como prevê o art. 9º.
Embora a lei não preveja, é necessária a realização de procedimento licitatório para
que a Administração realize o negócio mais vantajoso em prol do interesse da
coletividade. Os artigos das disposições finais e transitórias da Lei nº. 9.637,
75
interpretados em seu conjunto, dão a perceber que as Organizações Sociais,
podem, observados alguns critérios (ênfase no atendimento do cidadão-cliente;
ênfase nos resultados, qualitativos e quantitativos nos prazos pactuados; controle
social das ações de forma transparente) bem distintos dos contidos na Lei de
Licitações, Lei n.º 8.666/1993; receber recursos públicos – bens, verbas e até
servidores – submetendo-se apenas ao crivo de um Ministro do Estado ou, no
máximo, de um Ministro e um supervisor competente – este provavelmente inferior
hierárquico ao Ministro.
É bom frisar que a doutrina tem propugnado pela inconstitucionalidade da lei que
dispensa a licitação na formação do contrato de gestão.
c) Termos de parceria
Espécie surgida com a Lei n°. 9.790/1999, presta-se ao relacionamento entre o
Poder Público e as entidades que se tornam, nos termos deste diploma, aptas a
receber a denominação de Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público –
as OSCIPs.
Qualificada uma organização como OSCIP, torna-se possível a ela firmar com a
Administração Pública um termo de parceria, criado pelo artigo 9° da Lei nº.
9.790/1999, termo esse que no texto é definido como:
[...] o instrumento passível de ser firmado entre o Poder Público e as entidades qualificadas como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público destinado à formação de vínculo de cooperação entre as partes, para o fomento e a execução das atividades de interesse público previstas no art. 3º desta Lei.
Tal como nos contratos de gestão, os termos de parceria também são pactos de
metas e prazos, e há um programa e a obrigatoriedade de um resultado a ser
atingido. Ambos são de duração prolongada, ao contrário dos convênios, e permitem
a elaboração de projetos mais complexos. As diferenças estão no objeto, uma vez
que as OSCIPs podem agir em áreas bem mais diversas que as Organizações
Sociais, e na impossibilidade de migração de pessoal do setor público para o privado
como autorizou a Lei das Organizações Sociais no seu artigo 2º, I, “d” e 3º, I, “a” -
76
exceto quando estiverem em intervenção judicial, situação em que haverá em ambas
a possibilidade de serem geridas pela Administração Pública. Outra diferença se
encontra na vinculação: são Organizações Sociais aquelas que realizam contratos
de gestão com o Poder Público; enquanto as OSCIPs podem optar ou não pela
realização dos Termos de Parceria, segundo ensinamento de Celso Antônio
Bandeira de Mello.5
Ponto comum é aquele que autoriza à Administração Pública, em casos de
malversação de recursos ou bens de origem pública, o encaminhamento de relatório
para o Ministério Público, a Advocacia-Geral da União ou à Procuradoria da entidade
fiscalizadora para que requeiram ao Poder Judiciário as mesmas medidas
processuais já estabelecidas pela lei de 1998, quais sejam: decretação de
indisponibilidade dos bens da entidade fomentada e pedido de seqüestro, nos
termos do Código de Processo Civil de 1973, dos bens dos diretores, inclusive, se
for o caso, de coisas e contas bancárias que estiverem no exterior.
A Lei nº. 9.637 no seu art. 10, § 3º, estipula, para os fins do seqüestro dos bens, que
o Poder Público será o depositário das coisas, dispositivo que foi repetido pela Lei
das OSCIPs. Atribui também à Administração o papel de gestora das atividades da
entidade enquanto durar o processo judicial.
No seu conteúdo, o termo de parceria afigura-se bem parecido com o contrato de
gestão. Ambos têm que conter objetivos e metas, com os respectivos prazos para
cumprimento.
Os critérios para avaliação do devido cumprimento do termo precisam constar
expressamente do pacto/termo. A diferença reside no fato de que, ao contrário do
contrato de gestão, o termo de parceria precisa conter normas especificando o
programa de trabalho e, ainda, regras expressas de contabilidade, previsão de
receitas e despesas, de elaboração de relatório contábil a ser apresentado ao
Ministério Público além de previsão de publicação do relatório. O termo de parceria é
supervisionado por um Conselho de Políticas Públicas, criação também da Lei das
5 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 15a ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 225.
77
OSCIPs, que não chega a estabelecer como será formado tal conselho. Já o
contrato de gestão deve ser supervisionado pelo órgão ou entidade do Poder
Público signatária do contrato.
4.4 Formas de Controle
As entidades do Terceiro Setor, declaradas de interesse público, submetem-se a um
conjunto de normas especiais para que suas atividades possam ser controladas.
À medida que os particulares têm liberdade para desempenhar atividades lícitas,
reconhecidas pela ordem jurídica como de interesse público, fomentadas e
incentivadas pelo Poder Público; mais intensa será a inspeção destas prestações de
serviços.
Para tanto o Poder Público lança mão da autorização, regulamentação e fiscalização
da prestação dos serviços sociais – serviços públicos impróprios, cuja titularidade
encontra-se livre de prévia delegação estatal.
A Constituição Federal, em seu artigo 209, inciso II, condiciona a atividade de ensino
a autorização prévia, assim como o atendimento dos direitos da criança e do
adolescente (art. 228, parágrafo 7º). Além da previsão constitucional, o Poder
Público impõe como requisito para a prática de certas atividades materiais pelas
organizações do Terceiro Setor o registro, como forma de autorização.
Autorizada a efetuar os serviços a que se compromete, a entidade deverá prestar
contas de suas atividades para que o Poder Público possa aferir se a prestação dos
serviços está sendo feita de modo fiel aos ajustes firmados, de acordo com as
diretrizes, obrigações e demais exigências impostos pelas políticas de fomento.
78
4.4.1 Projeto de Lei nº 3.877/2004
O projeto de Lei 3.877, aprovado pelo Senado em 29 de junho de 2004, dispõe
sobre o registro, fiscalização e controle das Organizações Não Governamentais e dá
outras providências.
Ele prevê a Criação de um Cadastro Nacional de Organizações Não
Governamentais, a ser administrado pelo Ministério de Justiça e controlado pelo
Ministério Público, demonstrando, com isso, a preocupação do legislador em
acentuar o controle exercido sobre as ONGs que, em decorrência do diagnóstico
apresentado pela Comissão Parlamentar de Inquérito das ONGs assinalou, entre
outros problemas, o mau uso de verbas públicas.
Apesar da preocupação com o controle dessas entidades, o supracitado projeto de
lei não confere elementos que indiquem objetivamente o universo das ONGs
passíveis de inscrição no referido cadastro; ao contrário da Lei n°. 9.790/1999 - leia-
se Lei das OSCIPs -, que prima pela objetividade nos propósitos perseguidos pela
pessoa jurídica de direito privado assim qualificada.
4.5 As Parcerias Público-Privadas
As parcerias público-privadas constituem espécie de acordo firmado entre a
Administração Pública e entes privados para estabelecer vínculo jurídico a fim de
implantar ou gerir de serviços, empreendimentos e atividades de interesse público,
em que o financiamento e a responsabilidade pelo investimento são divididos entre
os signatários, ou recaem apenas sobre o ente privado. Tem sido objeto de estudo
em todo o mundo ocidental, sendo sua utilização ampla e servindo mais para a
realização de obras de infra-estrutura de um país, como usinas hidrelétricas,
estradas, entre outras.
79
Porém o nome e a conceituação, embora à primeira vista pareçam referir-se ao
estudo que se apresenta, não se aplicam às relações entre o Terceiro Setor e o
Estado. Ocorre que os entes privados que acordam a empreitada com o Estado não
têm o animus do voluntariado. Ao contrário, a palavra de ordem na Parceria Público-
Privada (PPP) é o lucro. A possibilidade de geração de excedentes é o grande
propulsor das PPPs. Veja-se o caso das empresas que contratam com a
Administração Pública a feitura de rodovias. O investimento tem retorno rápido com
a cobrança dos chamados pedágios, taxas para que os veículos transitem no trecho
“privatizado”. As Parcerias Público-Privadas são um meio para que o Estado delegue
ao particular tarefas que constitucional ou costumeiramente a ele caberiam, como as
estradas nacionais, as usinas de energia para o fornecimento de luz à população, o
serviço de água e esgotos; processos que, no Brasil, convencionou-se chamar
“privatização”.
Item último, mas não menos importante, concernente à diferenciação que se quer
fazer é que, enquanto o fomento é o financiamento público daquelas atividades
privadas com fins públicos, a Parceria Público-Privada é o financiamento privado de
atividades públicas de infra-estrutura de um país.
80
5 REGIME JURÍDICO DAS ORGANIZAÇÕES MARCO LEGAL DO TERCEIRO SETOR
Descobrir qual o regime jurídico das entidades do Terceiro Setor não é uma tarefa
simples, pois há que se entender o funcionamento da Administração Pública. Além
disso implica descobrir qual a parcela de princípios e normas jurídicas aplicáveis a
determinado fato social.
O legislador não estabelece a espécie de regime jurídico a que elas se submetem;
todavia as indicações legais podem ser interpretadas em ambos os sentidos. Trata-
se, sobretudo, de isolar o núcleo de princípios e normas jurídicas peculiares que
regulam determinado objeto.
Ao verificar que a sociedade investida de funções delegadas - através da permissão
e da concessão de serviço público - exerce atividades sob o amparo,
predominantemente, do regime de Direito Público, conclui-se que a titularidade da
prestação dessas utilidades públicas pertence ao Poder Público, aplicando-se,
portanto, às referidas relações jurídicas um regime normativo característico, peculiar,
o de Direito Público.
Por outro lado, as associações civis são constituídas e desempenham suas
atividades estatutárias sob a ordem do direito constitucional à liberdade de
associação. Os membros destas pessoas jurídicas gozam da plena liberdade de
associação para fins lícitos. Conseqüentemente, atuam com ampla liberdade sem,
contudo, ferir a lei. O particular pode fazer tudo aquilo que não seja vedado em lei. O
regime jurídico a elas aplicável é o do Direito Privado, sob o influxo do principio da
autonomia privada.
As Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público são organizações privadas
constituídas fora do aparelho do Estado e se dedicam ao desempenho de atividades
não exclusivas do Estado. Não há delegação de função pública; portanto,
permanecem, em princípio, alheias ao regime do Direito Público.
81
A adoção do regime do Direito Privado é abolida por normas de Direito Público, pois
as OSCIPs submetem-se a condicionamentos, restrições especiais, bem como
recebem vantagens não aplicáveis à generalidade das associações, sociedades
civis sem fins lucrativos ou fundações privadas.
Dessa forma, não lhes cabe nem a adoção do regime de Direito Público nem a de
Direito Privado. Melhor dizendo: o regime jurídico dessas organizações do Terceiro
Setor é dotado de características mistas, pois emergem do direito à liberdade de
associação e da autonomia privada, assim como desempenham atividades
qualificadas pela lei como de interesse público, submetendo-se, por conta disso, a
controle especial diverso daquele a que se sujeitam os particulares cujos serviços
atingem o universo restrito de associados.
Conforme discorre Luis Eduardo Regules, os serviços de utilidade pública, por seu
fim e pelo grande número de pessoas nelas interessadas, são submetidos a
disciplina jurídica especial. E prossegue, afirmando que:57
Os serviços sociais são desempenhados pelos particulares, mas regulamentados, autorizados e fiscalizados pelo Estado diante do interesse social envolvido. Daí, tradicionalmente, o caráter misto do regime jurídico a que se submetem as entidades prestadoras de serviços sociais.
As atividades das OSCIPs também apresentam características que as distinguem de
um regime jurídico puro. São desenvolvidas sob a influência de princípios e regras
privadas, embora existam algumas indicações legislativas de aspectos de Direito
Público, como os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade,
economicidade e da eficiência, como dispõe o art. 4º, I, da Lei nº. 9.790/1999.
Observa Regules que o legislador traçou as bases para um regime jurídico misto ou
especial, uma vez que a OSCIP deve coadunar com a Constituição Federal, que a
Lei nº. 9.790/1999 e a legislação em geral têm fundamento de validade na Lei Maior;
e que os estatutos e o regulamento próprio são produzidos em observância às
normas hierarquicamente superiores. O regulamento é tido tradicionalmente como
ato administrativo abstrato, enquanto os estatutos resultam da comunhão de 57 REGULES, Luis Eduardo Patrone. Terceiro Setor: regime jurídico das OSCIPs. São Paulo: Ed. Método, 2006. p 157.
82
vontades dos particulares; fato que ressalta, novamente, as características mistas do
regime jurídico aplicável às OSCIPs, em razão da combinação de instrumentos que
regem aspectos internos dessas organizações privadas.
É necessário dizer que as atividades exercidas pelas OSCIPs estão sujeitas, nos
limites da lei, ao condicionamento pelo Poder Público. Submetem-se a mecanismos
de controle que extrapolam as técnicas tradicionais de fiscalização das iniciativas
particulares de interesse social. Neste âmbito, a legislação especial prevê o controle
desta forma de fomento pelos Conselhos de Políticas Públicas, pois os mesmos
detêm competência para opinar acerca da celebração, além de fiscalizar a execução
do termo de parceria.
Existem, por conseguinte, alentadas referências legislativas no sentido de se aplicar
regime jurídico especial às Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público,
consubstanciado na adoção de normas de direito privado com derrogações
originárias do regime de direito público, fundamentalmente em razão da:
a) observância aos princípios de direito público como o da impessoalidade,
moralidade, economicidade, eficiência entre outros;
Apesar da não submissão do particular ao princípio da legalidade do mesmo modo
como ocorre na Administração Pública, o dispositivo da Lei nº. 9.9790/1999 visa
intensificar o teor de subordinação das OSCIPs à lei. Diante do relevante interesse
público tutelado por estas organizações privadas, pretende-se que suas atividades
estejam cada vez mais atreladas às finalidades consagradas por lei.
Mesmo tendo garantido direito à intimidade aos sigilos consagrados em sede
constitucional – dispensada pela ordem jurídica aos particulares –, o princípio da
publicidade é adotado pelos estatutos das OSCIPs, que não podem encobrir ou
obstruir informações e dados relativos à qualificação como OSCIPs, às atividades
relativas a referido título jurídico, assim como decorrentes da execução do termo de
parceria a elas destinados para a consecução de seus objetivos sociais. A
transparência não se configura como uma faculdade ou exigência moral, mas
83
fundamentalmente como dever. Além disso, o título de OSCIP depende de prévio
reconhecimento oriundo do Poder Público.
b) adoção de instrumentos internos que instituem regras a estas organizações do
Terceiro Setor, originários dos distintos ramos do Direito - Privado e Público, como
os estatutos e o regulamento;
c) reconhecimento do Poder Público – qualificação – e controle especial voltado, se
necessário, para a perda do título jurídico;
d) outorga de vantagens especiais (recursos públicos), compatíveis com os encargos
específicos, e também de controle peculiar, como o exercido pelos Conselhos de
Políticas Públicas, em regra, exercidos em consonância com a participação da
sociedade.
Além da existência dos princípios que orientam as OSCIPs, é importante ressaltar
que, no que toca à responsabilidade pelos atos dessas organizações, a regra é
subjetiva, portanto será exigido dolo ou culpa. Com efeito, não se trata de delegação
de serviços públicos, o que afasta como regra geral a responsabilidade objetiva das
referidas pessoas jurídicas de direito privado.
Tal regra de responsabilidade subjetiva poderá ser elidida nos casos específicos em
lei, ou ainda, quando a atividade normalmente desenvolvida pelo ator do dano
implicar, por sua natureza, riscos para os direitos de outrem. Nestas hipóteses,
conforme estipulado pelo parágrafo único do art. 927 do Código Civil, haverá
obrigação de reparar o dano independentemente da culpa.
O Estado responderá se ficar demonstrada a negligência na fiscalização do termo de
parceria, assim como o nexo entre essa negligência e o dano ocasionado a terceiro.
Fala-se, portanto, em responsabilidade subjetiva na medida em que, além do nexo
casual, haverá de se constatar a negligência do Estado. Entendemos, ainda, que a
falha na fiscalização pode tornar o Estado responsável solidário perante terceiros.
84
Por sua vez, a responsabilidade civil subjetiva dos administradores da organização
decorre da prática de atos danosos com culpa ou dolo no exercício de suas
atribuições, conforme previsão do art. 158, inciso I, da Lei nº. 6.404/1976. A
responsabilidade civil objetiva deriva da violação à lei ou ao estatuto nos termos da
legislação societária, consoante o art. 158, inciso II, da referida lei.
Cumpre observar que haverá responsabilidade solidária do administrador e da
organização em razão de ato ilícito praticado.
85
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma nova concepção de atividade privada - realizada pelo cidadão não investido em
cargo ou função pública - com sentido público, em direção à obtenção de algo que
deveria ser provido pelo Estado, veio crescendo desde a década de 60, e deu à luz
o que levou o nome de Terceiro Setor da Economia.
Impregnado positivamente por algo que se pode chamar animus, o Terceiro Setor
abraça a vontade do particular de gerar bens e serviços sem visar ao lucro e com o
objetivo de responder a desejos coletivos de bem-estar social. Há no Terceiro Setor
uma dilatação da idéia de esfera pública, lugar onde interagem público e privado.
Capta e produz recursos, mas o objetivo não é a geração de lucros, realiza
atividades públicas, mas não tem origem no Governo de um Estado.
Pode-se conceituar o Terceiro Setor como coletivo de organizações de natureza
privada, locais, nacionais, continentais e/ou globais, de caráter não lucrativo, não
governamental e não efêmero, que realiza ações em direção à cidadania e à
consecução de fins públicos.
Em decadência no Brasil, o modelo de Administração Pública provedora, ou seja,
aquela que produz para promover seus objetivos, subsiste à obrigatoriedade do
Estado de, através da sua máquina burocrática, promover o bem-estar social. Não
sendo capaz de realizar todas as tarefas para atingir seu fim, e, necessitando a
iniciativa privada de campos de trabalho, o Estado estimula essa iniciativa para que
a Administração Pública possa realizar tarefas de interesse público.
Ao delegar as tarefas ao particular, o Estado não o faz escusando-se do
cumprimento das mesmas, como num Estado Liberal Clássico, mas, sim, através de
parcerias, que podem ser de várias maneiras implementadas, dependendo da
legislação do país.
86
O princípio da subsidiariedade vem amparar essa tendência. Isso significa que cabe
ao Estado propiciar aos indivíduos a possibilidade de estes criarem organizações
capazes de promover a ação social, conceito que, para os termos deste trabalho,
coincide com a realização do interesse público. A subsidiariedade implica
nomeadamente a limitação da intervenção estatal sem que esta seja omissa. É uma
proposta de equilíbrio entre o público e o privado.
A organização da sociedade em grupos para cumprir um novo papel social retira
uma carga que antes pendia exclusivamente sobre o Estado, deslocando-o de
Estado-provedor para um Estado-gerencial, e surge uma nova palavra-chave a ser
aplicada ao modelo nascido de Estado: fomento, na acepção de estímulo ao
desenvolvimento de algo que vai ao encontro do interesse público. Esse algo seria a
atividade privada de cunho público.
As organizações do Terceiro Setor, quando financiadas, no todo ou em parte, por
dinheiro público, trabalham com o Estado em regime de cooperação. Para auxiliar
esse funcionamento – retirando um formalismo, que, em exagero, poderia inviabilizar
atividades e fazer o Terceiro Setor perder sua razão de ser –, novos instrumentos
jurídicos foram surgindo em detrimento dos processos licitatórios ordinários.
Uma vez que o fomento tem origem no Estado, constata-se, sem dúvida, que
somente pode a Administração fomentar quando o particular age em sentido público,
posto que precisa haver uma justificação para a migração de recursos. A
legitimidade do fomento repousa sempre no animus, no elemento volitivo da
atividade voluntária auxiliada, cujo fim imprescinde localizar-se no bem-estar
comunitário. O fomento precisa derivar sempre de lei, porquanto os recursos para o
financiamento são públicos.
A atividade de fomento deve seguir todos os princípios das demais atividades
administrativas: supremacia do interesse público sobre o privado, legalidade,
finalidade, razoabilidade, proporcionalidade, motivação, impessoalidade,
publicidade, moralidade, eficiência, igualdade.
87
O fomento foi positivado por várias leis brasileiras. Em que pesem as controvérsias
acercas desses diplomas legais, os mais importantes para o presente trabalho são
aqueles pertinentes às Organizações Sociais e às OSCIPs.
Isso significa que, para obedecer ao ordenamento jurídico brasileiro, o Terceiro Setor
precisa se submeter aos processos previstos pelo diploma legal para se relacionar
com a Administração Pública.
Assim, atendendo a um clamor vindo das pessoas relacionadas ao Terceiro Setor, o
legislador foi paulatinamente editando diplomas que trouxeram novas formas de
relacionamento entre o voluntariado e o Estado. Criou, para tal, novas
denominações para as organizações, denominações estas que equivalem a
verdadeiros status jurídicos.
Por fim, cabe alinhavar os pontos concernentes à conclusão da pesquisa, para que
seja respondida a questão proposta como tema do presente trabalho: o regime
jurídico das entidades-marco do Terceiro Setor.
88
CONCLUSÃO
Da passagem de Moderno até o Democrático de Direito percebe-se uma crescente
preocupação do Estado em relação ao bem-estar da sociedade, ao mesmo tempo
que se verifica sua incapacidade de atender com eficiência os anseios de todas as
classes sociais. Por sua vez os indivíduos percebem que podem e devem auxiliá-lo
na solução dos problemas sociais, e isso leva a um novo relacionamento entre
sociedade, governo e o mercado.
Organizada, a sociedade passa a desenvolver atividades voltadas à consecução do
interesse público, e o Estado busca, por sua vez, o aprimoramento da eficiência de
seus órgãos administrativos, através de uma reforma em seu aparelho.
Este novo Estado, agora reformado, possibilita à sociedade organizada o
financiamento da execução de tarefas menores sem escusar-se do cumprimento das
mesmas, mas efetuando-as através de parcerias.
Instituídas sob amparo do direito à liberdade, especialmente da livre associação, e,
ademais, voltadas à obtenção do interesse público conforme delineado pelo sistema
normativo; as organizações sociais desenvolvem suas atividades fora do aparelho
estatal e se dedicam às atividades sem fins lucrativos, constituindo, portanto, um
Terceiro Setor – considerando-se o Primeiro como o Estado e o Segundo como o
mercado.
O avanço do Terceiro Setor não leva à substituição da prestação estatal de serviços
na área social pela iniciativa particular; possui, sim, um caráter de complementação
das ações desempenhadas pelo Estado, seja pela ineficiência deste, seja como
forma de fazer valer os direitos de cidadania indicados na Constituição Federal de
1988.
A prestação dos serviços sociais podem ser delegadas ao Terceiro Setor através da
concessão - desde que a entidade os execute em nome próprio, por sua conta e
89
risco, nas condições fixadas e alteráveis unilateralmente pelo Poder Público, mas
sob garantia contratual de um equilíbrio econômico-financeiro, remunerando-se pela
própria exploração do serviço, em geral e basicamente mediante tarifas cobradas
diretamente dos usuários do serviço - ou através da permissão a alguém que recebe
do Poder Público, através de ato unilateral e precário, o consentimento para
desempenho de um serviço de sua alçada, proporcionando, à moda do que se
realiza na concessão, a possibilidade de cobrança de tarifas dos usuários.
É importante ressaltar que os serviços sociais não se confundem com os serviços
públicos, pois a sua prestação será feita pelo Estado, bem como por organizações
privadas, afastadas a titularidade jurídica exclusiva do primeiro nesta atividade –
uma vez que inexiste a figura de delegação, conforme determina o sistema
constitucional pátrio, assegurando-se a livre ação dessas pessoas privadas. Nestes
termos, a adoção do princípio da autonomia privada e a vinculação dos particulares
aos interesses públicos prestigiados em lei, sujeitos à fiscalização para coibir
desvios em seus escopos, prenunciam a formação de um regime jurídico de caráter
misto para estas organizações do Terceiro Setor.
No Brasil, o Terceiro Setor nasce para assumir a responsabilidade atribuída pela
Constituição Federal de 1988 como forma de exercício de cidadania e, ao mesmo
tempo, o combate à real ineficiência estatal na realização dos direitos sociais. Para
serem constituídas, as organização sociais devem observar as características de
formalidade – alguma forma de institucionalização; de estrutura –, devendo ser
privadas; de gestão – realizando sua própria gestão; de finalidade pública –,
desenvolvendo atividades de interesse da coletividade; de finalidade não lucrativa –
não podendo distribuir dividendos de lucros aos dirigentes e, por último, de
voluntariedade – a maior parte do serviço é voluntário, ou seja, não remunerado.
O Terceiro Setor é compreendido por ações realizadas tanto por pessoas físicas
quanto por pessoas jurídicas de direito privado - importando que essas ações não
visem ao lucro e sejam prestadas em atuação complementar às atividades do
Estado -, podendo assumir duas formas distintas: as associações civis e as
fundações privadas.
90
Nesse sentido, para que seja considerada entidade do Terceiro Setor, basta a
organização possuir elementos característicos próprios, como a liberdade de
associação, ausência de fins lucrativos e estar voltada à consecução do interesse
público. O Estado apenas lhe outorga título jurídico especial, como a declaração de
utilidade pública, o certificado de entidade de fins filantrópicos e as qualificações
como Organização Social (OS) e Organização da Sociedade Civil de Interesse
Público (OSCIP). Tais títulos não denotam a formação de uma nova pessoa jurídica,
mas o desempenho de atividade administrativa de fomento - pelo qual se pode
assegurar a obtenção de título honorífico ou recurso e bens de origem pública para a
execução de serviços sociais.
Esta subsidiariedade resguarda a autonomia e a liberdade humana e propicia aos
indivíduos a possibilidade de criarem organizações capazes de promover ações
sociais. Limita a intervenção do Estado sem que este seja omisso e permite o
equilíbrio entre o público e o privado.
A intervenção do Estado subordina-se aos critérios de necessidade e adequação,
assegurando o exercício dos direitos individuais, sobretudo à liberdade, e o incentivo
às iniciativas privadas de interesse público, conhecido como atividade administrativa
de fomento voltada para a consecução dos direitos e interesses coletivos e difusos.
O perfil das OSCIPs, modelo ao qual se atribui o marco legal do Terceiro Setor, foi
descrito pela Lei nº. 9.790/1999, mas, diante da inexistência de definição legal de
OSCIP, cumpre ao doutrinador construir uma definição dotada, sobretudo, de cunho
operacional. E dos conceitos sugeridos no presente estudo, podem ser extraídos os
seguintes traços jurídicos fundamentais: a Organização da Sociedade Civil de
Interesse Público (OSCIP) constitui um título fornecido pelo Ministério da Justiça,
cuja finalidade é facilitar o estabelecimento de parcerias e convênios com todos os
níveis de governo e órgãos públicos (Federal, Estadual e Municipal), permitindo que
doações realizadas por empresas possam ser descontadas no imposto de renda.
São pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos, não havendo a
possibilidade de distribuição de lucros ou dividendos entre os membros; entretanto,
faculta-se a remuneração de dirigentes e daqueles que prestem serviços
91
específicos, respeitados os limites a fim de que o referido escopo não seja
desvirtuado.
Os serviços por elas prestados buscam a satisfação do interesse público, conforme
delineado pela lei, sendo marca fundamental na definição do escopo dessas
organizações privadas a vedação à qualificação de entidades de benefícios mútuo
voltadas à satisfação de um núcleo restrito de sócios ou associados, conforme o
disposto no art. 2°, inciso V, da Lei Federal 9.790/1999.
Não atuam de modo isolado e fragmentado, ao contrário, surgem como reflexo da
atividade administrativa de fomento, empreendendo iniciativas em colaboração com
a ação estatal em áreas sociais definidas em lei, como a promoção da assistência
social, da cultura, da educação e saúde gratuitas, entre outras. São criadas e
geridas exclusivamente pelos particulares, o que as diferencia das Organizações
Sociais (OS), cuja gestão sofre a ingerência do Poder Público mediante a
participação de representantes no órgão colegiado deliberativo.
São qualificadas pelo Estado mediante ato de outorga do título jurídico de
Organização da Sociedade Civil de Interesse Público. Assim como as Organizações
Sociais (OS), as OSCIPs não passam a integrar uma nova categoria de pessoa
jurídica, apenas recebem um reconhecimento especial – título jurídico – por força de
preenchimento de condições estabelecidas na lei reguladora, mas é-lhes
possibilitada a destinação de recursos e bens a título de incentivo às iniciativas
privadas de interesse público, mediante a celebração de termo de parceira.
Apesar de constituir nomenclatura nova para o Direito Público, a parceira que tem
origem no Direito Privado e remonta à distribuição de lucros agora é utilizada com
forma de promoção dos objetivos de interesse público - para representar a união de
esforços entre Estado e mercado, a partir de iniciativas legislativas, bem como pela
aceitação pela doutrina no âmbito do Direito Público.
As OSCIPs são continuamente fiscalizadas: verifica-se, por um lado, o exercício da
polícia administrativa e, por outro lado, o controle da política de fomento. Os serviços
sociais estão livres ao desempenho pelos particulares, o que não afasta, diante do
92
interesse público prestigiado pela ordem jurídica, o exercício pelo Poder Público de
missões relativas à autorização, regulamentação e fiscalização do atendimento por
eles prestados. Trata-se da chamada polícia administrativa, tida como o
condicionamento do exercício à liberdade e à prioridade dos indivíduos a fim de
adequá-los ao bem-estar e aos interesses da coletividade.
Por outro lado, detecta-se a vigilância estatal decorrente de atividade particular
incentivada pelo Estado, pela qual busca-se, em vez de limitar o exercício de direito
propriamente dito, adequar a conduta da organização privada às diretrizes e
obrigações relativas à política pública de fomento, fenômeno freqüente na outorga
de títulos jurídicos e nos ajustes firmados com o Poder Público (termo de parceria),
passível, inclusive, de acarretar a perda da qualificação ou, ainda, a extinção da
parceria.
A Lei nº. 9.790/1999, em seu artigo 4º, I a VII, estabelece que as normas ou
disposições dos estatutos das OSCIPs devem observar os princípios da legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade, economicidade e eficiência; constituir um
conselho fiscal ou órgão equivalente dotado de competência para opinar sobre os
relatórios de desempenho financeiro e contábil, e sobre as operações patrimoniais
realizadas, emitindo pareceres para os organismos superiores da entidade;
possibilitar a instituição de remuneração para os dirigentes da entidade que atuem
efetivamente na gestão executiva e para aqueles que a ela prestam serviços
específicos, respeitados, em ambos os casos, os valores praticados pelo mercado,
na região correspondente a sua área de atuação.
Os requisitos apresentados demonstram que as OSCIPs, apesar de regime jurídico
privado a que se submetem, devem observar derrogações oriundas do direito
público. A observância dos princípios constitucionais expressos da administração
pública, mesmo não se tratando sequer de entes da administração indireta, denota o
alcance das regras que marcam a natureza pública dessas Organizações do
Terceiro Setor.
Em síntese, o regime jurídico especial decorre do conjunto de preceitos jurídicos
aplicáveis às OSCIPs, que asseguram, de um lado, a liberdade e o princípio da
93
autonomia privada, típicos do regime jurídico de direito privado, e de outro, a
consecução de objetivos voltados à satisfação do interesse público, segundo
princípios e normas específicos, próprios do regime jurídico de direito público, como
a legalidade, a impessoalidade, a moralidade e a publicidade. Torna-se oportuno
sublinhar que há derrogação parcial das normas de direito privado, haja vista o
dever do Ministério da Justiça de prestar informações acerca das OSCIPs, restrito,
obviamente, aos dados relacionados com o ato de qualificação e a execução do
termo de parceria.
È importante realçar que a criação da pessoa jurídica de direito privado, sem fins
lucrativos, não se confunde com a qualificação outorgada pelo Poder Público como
OSCIP. A primeira diz respeito à substância das organizações privadas e submete-
se às regras previstas na legislação civil, segundo os arts. 45, 46 e demais
dispositivos do Código Civil e arts. 114 e seguintes da Lei nº. 6.015/1973; enquanto
o ato de qualificação revela o reconhecimento - certificação de suas qualidades
institucionais inerentes à consecução de atividades de interesse público, sendo
aplicável a Lei nº. 9.790/1999.
Os critérios de qualificação como OSCIP podem ser divididos em formais e
finalísticos. Os formais referem-se aos documentos que acompanham o
requerimento dirigido ao Ministério da Justiça: estatuto registrado em cartório, ata de
eleição da diretoria atual, balanço patrimonial e demonstração do resultado do
exercício, declaração de isenção de imposto de renda e inscrição no cadastro geral
de contribuintes, segundo o art. 5°, incisos I a V, da Lei nº. 9.790/1999. Os requisitos
finalísticos decorrem de regras que apontam os objetivos ou princípios a serem
perseguidos pelas OSCIPs, como a promoção da assistência social, da cultura, da
segurança alimentar e nutricional ou, ainda, a observância dos princípios da
impessoalidade, moralidade e publicidade, conforme o arts. 3º e 4° da referida lei.
A perda da qualificação depende inevitavelmente de prévio processo administrativo
ou judicial, uma vez que nenhuma penalidade pode ser aplicada sem o devido
processo legal, com as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa.
Através de processo administrativo ou judicial, dever-se-á buscar a verdade material,
94
apurando-se se a OSCIP de fato não cumpriu alguma cláusula do termo de parceria,
o que autoriza sua desqualificação.
A perda do título de OSCIP pode se dar tanto no âmbito administrativo quanto
jurisdicional. A eventual desqualificação da entidade, dentro do processo
administrativo ou judicial, deve ser motivada apontando as obrigações assumidas e
não cumpridas pela entidade e o fundamento legal que autoriza a desqualificação
dentro de uma razoabilidade considerada.
A invalidação do ato de qualificação, ao término de processo iniciado pelo cidadão
ou pelo Ministério Público, será um imperativo sempre que não se verifiquem mais
os pressupostos fáticos descritos na Lei para a emissão do título jurídico ou diante
das hipóteses de erro e fraude, respeitando o devido processo legal como
pressuposto constitucional indispensável para a perda desse título jurídico. A perda
da qualificação poderá resultar, ademais, de pedidos apresentados pela própria
entidade social, de acordo com o art. 8° da supracitada lei.
Ainda que existam semelhanças entre a Organização Social (OS) e a Organização
da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), como caráter não lucrativo e
prestação de serviços de interesse público - ou de relevância pública, algumas
distinções fundamentais merecem ser demarcadas. Tanto o ato de qualificação
quanto a perda do título jurídico de Organização Social possuem caráter
marcadamente discricionário.
A Lei nº. 9.637/1998, em seu art. 2º, inciso II, estabelece que o critério de
conveniência e oportunidade a ser adotado pelo Ministro de Estado; já no art. 16
apresenta a faculdade atribuída ao Poder Executivo diante da desqualificação da
entidade em descompasso da entidade da legalidade e da segurança jurídica. As
entidades portadoras do título de Organização da Sociedade Civil de Interesse
Público, por sua vez, são qualificadas mediante critérios legais objetivos e, ainda,
não remanesce qualquer dúvida acerca da obrigatoriedade da perda dessa
qualificação, caso não mantenham alguns dos atributos indispensáveis à outorga do
título jurídico.
95
A gestão das Organizações Sociais (OS) é objeto de ingerência por parte do Poder
Público mediante a participação de seus representantes no órgão colegiado,
deliberativo, enquanto o modelo das Organizações da Sociedade Civil de Interesse
Público assegura a administração autônoma dessas organizações, contemplando na
sua plenitude o direito constitucional à livre associação. Enquanto as OSCIPs
recebem, a título de fomento, recursos e bens públicos, as Organizações Sociais
(OS) são beneficiárias do que denominamos imoderada atividade de fomento,
contando com recursos - inclusive orçamentários -; bens - permissão de uso de bens
imóveis sem prévia licitação -; servidores públicos em cessão; veiculação de
publicidade institucional de entes de direito público e absorção de atividades
exercidas por entes da União Federal.
Ao contrário das OS, as atividades das OSCIPs mantêm-se mais abertas ao controle
pela sociedade. A celebração do termo de parceria com o Poder Público será
precedida de consulta ao Conselho de Políticas Públicas, de acordo com o art. 10°,
parágrafo 1°, Conselho esse composto por representantes da sociedade. Ademais, a
execução da parceria será acompanhada e fiscalizada pelo mesmo órgão colegiado,
consoante o art. 11, caput, da Lei nº. 9.790/1999.
A responsabilidade pelos atos das OSCIPs, em regra, é subjetiva, aplicada, por sua
vez, a obrigação de reparar o dano independentemente de culpa, nos casos
específicos em lei, ou, ainda, quando a atividade normalmente desenvolvida pelo
autor do dano implicar, por sua natureza, riscos para os direitos de outrem, conforme
o art. 927, parágrafo único, Código Civil. A responsabilidade do Estado decorre
fundamentalmente de negligência na fiscalização do termo de parceria. Aplica-se
aos administradores da OSCIP o regramento de direito societário no que se refere à
responsabilidade civil, de acordo com o art. 158, incisos I e II, da Lei nº. 6.404/1976.
A instituição do titulo jurídico referente às OSCIPs visa, fundamentalmente, conferir
um mesmo tratamento às entidades beneficiárias da atividade administrativa de
fomento, proibindo-se a outorga de benefícios sob o amparo de critérios casuísticos
e individuais, além de impor um controle especial a organizações portadoras deste
título, o que denota significativo avanço, se comparado à declaração de utilidade
pública.
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A reforma administrativa, ao instituir novas categorias de fomento como as OSCIPs,
não inovou no que se refere à administração participativa, pois já existia, por obra do
constituinte de 1988, suporte normativo para a participação popular no processo de
decisão político-administrativa, seja mediante a atuação do cidadão nos Conselhos
de Políticas Públicas e demais instâncias administrativas, seja mediante os modelos
cooperativos de participação, pelos quais as organizações privadas prestam
colaboração às ações encampadas pelo Poder Público em confluência com o
interesse coletivo.
O “marco legal do terceiro setor” decorre seguramente da edição da Lei Federal
9.970/1999, no entanto se esgota nela. As Organizações da Sociedade Civil de
Interesse Público não são fins em si, mas instrumentos destinados à implementação
de iniciativas privadas de interesse público, no bojo da atividade administrativa de
fomento e, ainda, em incondicional conformidade com o modelo constitucional do
Estado Social e Democrático de Direito.
97
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Projeto de Lei n. 3.877, de 13 de dezembro de 2004. Dispõe sobre o registro, fiscalização e controle das Organizações Não Governamentais.