Post on 12-Dec-2018
1
O QUE MUDA NO CHÃO DA ESCOLA APÓS A DÉCADA DA
ALFABETIZAÇÃO?
Edwiges Zaccur
Texto apresentado no III SENAL
Campus de Itabaiana UFS
Por uma nova sociedade, que sendo sujeito de si
mesma, tenha no homem e no povo sujeitos de sua
história. (...) por uma sociedade que se descolonize
cada vez mais. Que cada vez mais corte as correntes
que as faziam e fazem ser objeto de outras que lhe são
sujeitos. (Paulo Freire)
Para discutir a questão que o título introduz, me proponho a fazer um
cerco epistemológico, problematizando a Década da Alfabetização lançada
na ONU em fevereiro de 2003, dobrando-me sobre heranças recebidas de
décadas anteriores e rebatendo-as sobre o que está acontecendo no chão de
nossas escolas, por trás do propalado declínio dos índices de analfabetismo
e de melhorias nos índices do Ideb. Para que se tenha uma dimensão do
problema, o Brasil ocupa um lastimável 54º. lugar entre 59 países, quando
se trata de educação, e uma vergonhosa 4ª. colocação entre os países com
maior desigualdade na América Latina, muito embora sejamos a sexta
economia do mundo.i
Diante dessa situação contraditória, proponho começar fazendo
algumas perguntas que convidam à reflexão. O que significou o
lançamento da Década da Alfabetização na sede das Nações Unidas? A
favor de quem se elaboraram políticas nesta década em que uma vez mais
o combate ao analfabetismo voltou à cena? A década se pautou pela
produção de novos conhecimentos ou se limitou a recondicionar
conhecimentos antigos? Que avanços e retrocessos as ações desenvolvidas
2
produziram no chão das escolas brasileiras? Ou, ainda, o que é possível
dizer a respeito da alfabetização consolidada e da diminuição da pobreza
em países como o Brasil?
Afinal, a Década da Alfabetização foi proposta, tendo como
prioridades: aumentar os níveis de alfabetismo; promover o
empoderamento de todas as pessoas em todos os lugares, e contribuir para a
erradicação da pobreza, como parte dos esforços para a paz num mundo
globalizado onde a alfabetização de todas as pessoas é do interesse da
comunidade internacional. Dez anos depois do seu lançamento a com
pompa e circunstância, a década chega ao seu final sem alarde. Pelo menos
não encontrei nenhum documento da UNESCO sobre um possível balanço
entre o que foi proposto e o que foi realizado na década no Brasil ou em
outros países do sul.
Mas, para não atropelar os fatos, voltemos a 2003. Vale lembrar que
o engajamento do Brasil nos esforços da Década da Alfabetização
coincidiu com um momento histórico que não poderia ser mais propício:
Lula, um sindicalista oriundo do sertão nordestino, assumia a presidência,
consagrado pelo voto popular. Três meses depois foi assinado, no
Congresso Nacional, um acordo entre a UNESCO e o Ministério da
Educação, no valor de 200 mil euros, para o desenvolvimento de um Plano
Nacional de Alfabetização. Naquela oportunidade, Cristóvam Buarque,
então ministro da educação, assumiu o compromisso de alfabetizar vinte
milhões de brasileiros, entre jovens e adultos, em quatro anos.
No entanto, entre pensar, propor e concretizar metas existe um largo
fosso em que naufragam muitas das propostas mais mobilizadoras. Que o
diga Cristóvam Buarque que viu minada a sua influência política no
Governo Lula e esvaziado o seu programa à frente do MEC. Se ao
ministro faltaram apoio e tempo, já que permaneceu no cargo apenas onze
meses (entre 2003 e 2004), as metas tampouco foram muito além dos belos
3
discursos publicados no documento editado pela UNESCO em parceria
com o MECii, sob um título de muito apelo – Alfabetização como
liberdadeiii
.
O documento é aberto com uma apresentação assinada pelo ministro
Cristóvão Buarque e pelo representante da UNESCO no Brasil. Nela se
justifica o engajamento do país na Década da Alfabetização, em razão dos
seguintes argumentos:
A alfabetização universal de crianças e adultos
continua sendo um desafio.
A alfabetização é um direito humano fundamental,
uma necessidade básica de aprendizagem e a chave
para aprender a aprender, condição indispensável
para o exercício pleno da liberdade.
A alfabetização requer esforços sustentados,
intensivos e focalizados, além de programas, projetos e
campanhas de curto prazo.
A alfabetização favorece a identidade cultural, a
participação democrática, a cidadania, a tolerância
pelos demais, o desenvolvimento social e a paz.
Como se constata, nenhum desses motivos faz qualquer alusão à
perversidade do modelo capitalista em que os interesses do capital
atropelam direitos acordados em diferentes fóruns internacionais. É
como diagnosticar males e prescrever remédios paliativos, sem que as
causas sejam devidamente atacadas. Empunhar a bandeira da alfabetização,
sem discutir politicamente o que faz perdurar o binômio analfabetismo e
pobreza, significa ignorar 500 anos de colonização / exploração /
ideologização. Como se sabe, mesmo com a criação da ONU em meados
do século XX, certos países continuam mais iguais do que outros. A
Organização das Nações Unidas continua praticamente cega, surda e muda
em relação a intervenções e guerras promovidas pelos mais fortes contra
os mais fracos, em prol dos interesses econômicos daqueles em detrimento
destes. Não é, pois, de se estranhar que seja eclipsada, no documento da
4
UNESCO, a íntima relação entre regiões exploradas e empobrecidas e altos
índices de analfabetismo.
Se a dupla face político-pedagógica da prática educativa não ganhou
ênfase no documento, tampouco são feitas referências consistentes aos
alfabetizandos, a uma epistemologia outra, a uma pedagogia dialógica e
emancipatória. Pouco se investe no cerco epistemológico realizado por
Freire, em sua práxis revolucionária porque emancipatória, desconstruindo
um conjunto de dicotomias tais como, sujeito-objeto, teoria-prática,
transmissão-recepção, conhecimento-ignorância. Também não se insiste na
diferença abissal entre uma educação bancária, com base na transmissão, e
outra com base no diálogo, uma educação emancipatória. Como o diálogo é
uma relação de eu-tu, como tantas vezes Paulo Freire enfatizou, implica
necessariamente a relação de dois sujeitos. Porém, muito frequentemente,
em se tratando de educação para os esfarrapados do mundo, o tu da
relação é convertido em mero objeto. Nesse caso, como denuncia Freire:
se terá pervertido o diálogo e já não se estará educando, mas deformando.
(Freire, 2011,151)
Denúncias tão radicais estão praticamente ausentes do documento
oficial. Continuou prevalecendo a alfabetização em si mesma, pouco
levando em conta os sujeitos, suas inserções culturais e experiências e,
sobretudo, seus saberes e suas existências históricas. Como no passado,
sobressai o desafio já “enfrentado” ao longo de muitas décadas e governos
sucessivos, acrescido da necessidade de novos esforços e investimentos,
tendo em vista favorecer quase miraculosamente a participação, a
identidade cultural, o desenvolvimento etc, etc, etc. No avesso dos
discursos, leio uma desejável acomodação à ordem vigente como garantia
da paz mundial e tranquilidade das nações.
Além disso, no documento citado, é possível colher indícios da
desqualificação dos saberes dos deserdados da terra. Tomo como exemplo
5
um argumento politicamente correto, mas nem tanto, em que a
alfabetização é enfatizada como um direito humano fundamental, uma
necessidade básica de aprendizagem e a chave de aprender a aprender.
Que a alfabetização seja um dos direitos humanos fundamentais ninguém
discorda, ainda assim é possível perguntar: qual alfabetização, uma que
acomode ou outra que invista na emancipação? Paulo Freire alerta afirma
que “a opção, por isso, teria que ser, também, entre uma “educação”
para a “domesticação”, para a alienação, e uma educação para
a liberdade. “Educação” para o homem-objeto ou educação para o homem-
sujeito.”(Paulo Freire, 2011, 52)
Ao apresentar uma alfabetização pretensamente neutra, oferecida
como chave do aprender a aprender, e não como chave da cultura escrita,
são desqualificados os saberes advindos da leitura de mundo dos
alfabetizandos e das aprendizagens cotidianas decorrentes de sua inserção
cultural. Tal postura é inaceitável, por desumanizar os educandos. Situá-
los num grau zero de aprendizagem os despotencializa para enfrentar o
desafio de se apropriarem da cultura escrita. Além disso, a absolutização
da ignorância, que perpetua a dicotomia ignorância X saber, é
fundamental para a manipulação exercida pelas elites sobre os oprimidos,
como denunciou Freire. Revolucionário é instigar “os condenados da
terra” a descobrir a relatividade de ambas, como no jogo proposto por
Paulo Freire a colonos, com base na troca de perguntas a partir de seus
respectivos conhecimentos, revelando desconhecimentos de ambos os
lados (Freire, 2002). Objetivo de Freire era justamente mostrar que ele
ignorava o que os colonos sabiam e os colonos ignoravam o que ele sabia.
Diversamente, o Diretor Geral da UNESCO, Sr Koichiro Matsuura,
em seu discurso no lançamento da década, reforçou a tese de absolutização
da ignorância ao dizer: “Por meio da alfabetização, os pobres podem
aprender a aprender” (2003, 11). No avesso dessa falsa generosidade é
6
possível ler: sem a alfabetização, os pobres não podem aprender a aprender.
Por esse caminho, implicitamente, o analfabetismo é usado para justificar a
pobreza e vice-versa. Em contraponto a essa retórica equivocada, convoco
Ciço, sujeito da pesquisa de Brandão, quando diz que a escola que é dada
aos pobres ensina o mundo como ele não é (Brandão, 1998). Ensina que
eles nada sabem e que o fato de não saber ler e escrever o transforma em
seres menorizados, incapazes de refletir e gerir seu próprio destino.
No entanto, outro sujeito da pesquisa realizada por mim também
nega Matsuura, confirmando Brandão e Freire. Refiro-me a Aguinoir, um
analfabeto letradoiv
que se evadiu da escola e se encontrou no saber-fazer.
Marceneiro dos melhores, que se autonomeava “artista da madeira” , ele
compreendeu o quanto era explorado na marcenaria em que trabalhava.
Planejou e se preparou para trabalhar por conta própria, adquirindo, aos
poucos, os meios de produção, realizando o sonho de poder dizer com
justificado orgulho: eu sou meu próprio patrão. Trabalhava numa pequena
oficina no fundo da casinha de fundos em que morou muito tempo de
aluguel e da qual se tornou finalmente proprietário, reformando-a e
transformando-a em sobrado. Não sabia fazer conta no papel, mas era
imbatível nos cálculos mentais, revelando possuir, entre outros, o
conhecimento matemático indispensável ao exercício de sua profissão.
Quando necessitava registrar detalhes dos projetos recebidos, criava um
código que funcionava para a sua leitura, embora fosse indecifrável para os
demais.
Aguinoir poderia repetir as palavras que um alfabetizando do sul do
país disse a Paulo Freire: “eu tenho a escola do mundo”. Palavras muito
diferentes das proferidas pela mulher que sintetizou seu desejo de aprender
a ler e a escrever “para deixar de ser a sombra dos outros” . Mal
comparando, o primeiro construiu sua identidade, graças a seu ofício
criativo, fazendo de cada cliente, senão um amigo, um divulgador, de modo
7
que ele costumava dizer: “ minha obra é a minha propaganda”. Quando
veio a falecer, seu filho não teve como avisar ninguém: a agenda de
telefones do pai existia apenas na sua memória. Quanto à mulher, ela
buscava a aprendizagem da leitura e da escrita como uma possível
redenção, que a livrasse de ser apenas uma sombra alheia, sombra que a
sociedade letrada projetou e que ela incorporou, penosa e ideologicamente,
como a pena que se paga por não saber ler.
Não estou aqui fazendo uma apologia do analfabetismo o que seria
uma contradição com minha história, ainda e sempre preocupada com a
apropriação da leitura e da escrita, historicamente negada aos mais pobres.
O que rechaço vivamente é a anulação de saberes de toda uma existência,
justificada por não saber ler. Mesmo porque o pobre para sobreviver
necessita aprender a cada dia, precisa engendrar soluções e invenções para
viver na escassez, precisa “matar um leão por dia”, em condições as mais
adversas. E para isso, precisa recorrer a muito engenho e arte somados a
um tanto de astúcia, que é “a arte do fraco”, como teorizou Certeau.
Aquelas astuciosas estripulias da dupla formada por João Grilo e Chicó,
imortalizadas por Ariano Suassuna em seu Auto da compadecida, são
fortemente inspiradas pela sabedoria popular.
No entanto, quando são invisibilizados os saberes dos oprimidos,
como partir do já sabido para aprender o não sabido? E como sacudir o
peso de se ver negado, tendo sua cultura desrespeitada pelas monoculturas
dominantesv que se pretendem universais, eclipsando outras culturas?
(Santos, 2007: 29-31)
Pincelar esse cenário ajuda a problematização do que aparece apenas
sob a chancela do pedagógico, contrariando a contribuição de Paulo Freire
de que o político e o pedagógico não se separam, como faces que são da
mesma moeda. O próprio Paulo Freire é citado na apresentação do
documento de forma atenuada, quando se diz que a influência de Paulo
8
Freire acrescentou dimensões políticas, situando o aluno não mais como
beneficiário, mero objeto, mas como sujeito de um processo de
alfabetização crítica entendida como possiblidade de participar. Mas
Paulo Freire não reformou a educação, acrescendo uma nova dimensão a
que já existia. Ele a revolucionou com sua práxis dialógica e emancipatória,
instigando os educandos a descobrir a face política do pedagógico, antes
oculta. Tampouco a alfabetização crítica se limita à mera possibilidade de
participar sem que se explicite o complemento desse verbo. Antes se abre
à transformação do sujeito que se assume criador de cultura e crítico e,
portanto, capaz de participar efetivamente da transformação do mundo.
Na minha leitura, além de manter a dicotomia entre o pedagógico e
o político, o documento procura escamoteá-la por meio da junção das
palavras do título: Alfabetizaçãocomoliberdade impressa na capa. Essa
releitura do lema da Década da Alfabetização sugere um amálgama
inseparável entre alfabetização e liberdade, indiciando tanto um diálogo
implícito com o livro de Paulo Freire: Educação como prática de
liberdade, como um explícito, através da inclusão no documento de duas
páginas extraídas do livro Educação e política, de Paulo Freire. Porém,
quem fizer uma leitura atenta, poderá perceber o jogo tão peculiar à política
hegemônica: capturar, filtrar o conteúdo revolucionário e, assim subtraído
do que incomoda o sistema, disseminá-lo em seu próprio discurso. Por esse
caminho, sobram apenas ecos longínquos do revolucionário giro
epistemológico de Freire, em que as pessoas não são libertadas por outrem,
mas se libertam em comunhão.
Acresce que aos colonizadores não basta que os pobres sejam pobres,
é preciso que estejam tão desqualificados que aceitem injustiças de todo
tipo, inclusive as cognitivas, cometidas contra eles. A práxis freireana, ao
contrário, assume claramente a favor de quem se coloca. No livro
Educação como prática da liberdade, Paulo Freire explicita que, nos
9
círculos de cultura, o trabalho se iniciava a partir da pesquisa do universo
vocabular, derivado do universo existencial. As situações existenciais eram
codificadas em imagens, para instigar a discussão abrangente da cultura e
de daqueles sujeitos como fazedores de cultura. Com essa proposta, Paulo
Freire conta que em duas noites são discutidas essas situações, motivando-
se intensamente os homens. A seguir são apresentadas as palavras
geradoras ligadas à vida daquele grupo, representadas pela escrita, mas
inseridas em situações existenciais acompanhadas do debate de dimensões
da realidade. E assim, coletivamente, dialogando, debatendo e refletindo,
homens sem letras, mas com leitura de mundo, se motivam e se
alfabetizam. Como enfatiza Freire: Só assim, nos parece válido o trabalho
da alfabetização em que a palavra seja compreendida pelo homem na sua
justa significação: como força de transformação do mundo. Só assim a
alfabetização tem sentido.(Freire, 2011,181).
Fora do jogo dialógico que desafia a refletir, pouco se aprende e se
ensina, sobretudo quando se trata de se apropriar a modalidade escrita da
língua materna. Como sintetiza Geraldi, a língua só tem existência no jogo
que se joga na sociedade, na interlocução, e é no interior de seu
funcionamento que se pode estabelecer as regras de tal jogo” (Geraldi,
1984, p.43). Vale dizer que, no jogo que se joga na sociedade, as relações
de poder tem importância vital, e compreendê-las faz toda a diferença.
A meio caminho, ficaram os objetivos, entre idealistas e
funcionalistas, traçados pela UNESCO para a década da Alfabetização
com ênfase em ações sem sujeitos:
a) colocar a alfabetização no centro de todos os
níveis dos sistemas educacionais nacionais e de
todos os esforços visando ao desenvolvimento;
b) adotar uma abordagem dupla, conferindo igual
importância tanto às modalidades de educação
formal quanto às de educação não-formal, criando
sinergia entre elas;
10
c) promover, nas escolas e nas comunidades, um
ambiente que propicie os usos da alfabetização e
uma cultura de leitura;
d) assegurar a participação comunitária nos
programas de alfabetização, bem como apropriação
desses programas pelas comunidades;
e) construir parcerias em todos os níveis,
particularmente em nível nacional, entre governo,
sociedade civil, setor privado e comunidades locais; e
também nos níveis sub-regional, regional e
internacional;
f) desenvolver, em todos os níveis, processos
sistemáticos de acompanhamento e avaliação,
embasados por resultados de pesquisa e bases de
dados.
Em contraponto a esse conjunto difuso de ações sem sujeitos, sem
homens, sem mulheres, sem crianças, e sem conflitos, proponho o resgate
de sementes de utopia e experiências que fizeram diferença na Educação
Popular, destacando entre outras: a Paulo Freire, por sua histórica luta
pela emancipação dos mais excluídos e a de Darcy Ribeiro por ter
ousado, a partir da semente lançada por Anísio Teixeira, pensar uma
escola de tempo integral para as crianças de classes populares, os CIEPs,
Recordo que, em 1990, ao iniciar meu Mestrado em Educação,
encontrei a UFF em fértil ebulição iniciada na década anterior. Discutiam-
se, entre outros temas, a aprendizagem como processo, a alfabetização
como continuum e, paralelamente, a avaliação e o fracasso escolar, temas
interconectados aos anteriores que mobilizavam e ainda mobilizam
professoras empenhadas em ensinar melhor. No ano seguinte, uma reforma
curricular foi feita na Faculdade de Educação da UFF, a partir de ampla
discussão, apostando na formação da professora-pesquisadora chamada a
refletir sobre seu fazer. Havia também um candente debate teórico em que
se polarizavam estudiosos do construtivismo de Piaget e do sócio-
interacionismo de Vygotsky, cada grupo empenhado em defender qual
11
suporte teórico explicaria melhor questões relativas aos processos de
aprendizagem, com vistas a contribuir para a diminuição do fracasso
escolar. Outras discussões paralelas denunciando a escola dual que,
grosso modo, pode ser sintetizada na escola de qualidade para os ricos e
uma escolinha, que não muda a vida, para os pobres.
Paralelamente as pesquisas justificavam a busca de alternativas que
explicassem como crianças de classes populares, potentes para responder
aos desafios da vida, se tornavam impotentes para aprender a ler e a
escrever na escola. Em síntese, cresciam os incômodos gerados pela
persistência do fracasso escolar que se mantinha, a despeito da querela dos
métodos que atravessara três décadas, de 1950 a 1970, quando vigorava o
tecnicismo e se apostava em seguir passo a passo métodos de
alfabetização em disputa. Na verdade, se tratava de mais do mesmo, pois,
prevalecia a educação bancária sob a batuta do silenciamento, oposto ao
diálogo.
Foi contra este quadro que Darcy Ribeiro idealizou o Programa dos
CIEPs no 1º.Governo Brizola (1983-1986) e o retomou com mais ímpeto
no segundo mandato (1991-1994). Com uma proposta de escola de tempo
integral e sua organização em ciclos, respeitando o tempo da criança e
evitando confrontá-la com o desestímulo de uma reprovação inicial, os
CIEPs alimentavam amplo debate contra e a favor.
Pude conviver em dois lugares distintos com as políticas
educacionais que atravessaram as décadas de 1980 e 1990. Na primeira
delas, era ainda uma professora da rede estadual que se perguntava porque
os CIEPS recebiam tamanha atenção em detrimento das demais escolas da
rede estadual. Ainda não compreendia o alcance de uma proposta piloto e
não conseguia ver o caráter seminal da experiência. Na década de 1990,
como mestranda, pude alargar minha compreensão e começar a ver o
alcance do projeto arquitetado e reeditado por Darcy Ribeiro no segundo
12
governo de Leonel Brizola. Participando de debates e lendo o Livro dos
CIEPs, compreendi a dimensão política de um projeto que denunciava
nunca ter havido desejo e vontade política de que o nosso povo se
educasse, se alfabetizasse, pois educação implica em dividir, em
reconhecer o outro, em ouvir e ser ouvido, e convivendo com a riqueza da
diferença partilhar com todos o que é direito de todos (Ribeiro, 1986,
p.62). Mas, ao denunciar velhas mazelas de uma sociedade excludente ,
Darcy Ribeiro anunciava que o projeto do CIEP:
contribui para resgatar uma velha dívida da escola,
pois impede que as crianças a abandonem por não
suportarem situações críticas, e pode trazer para seu
interior aquelas que nem procuram matricular-se, por
perceberem a educação como algo que não pertence a
seu mundo. (Ribeiro, 1986, p. 131)
Ainda em 1991, pude ouvir Darcy e Freire dialogarem no encontro -
CIEP: Crítica e Auto-crítica, realizado em Niterói. Se bem me lembro,
aquela era a primeira oportunidade em que se encontravam dois
revolucionários incansáveis, cada qual em seu espaço, após a ditadura
militar e o retorno de ambos do exílio. Eis que recorrendo ao Google, me
emocionei ao encontrar o texto O encontro das águas: diálogos entre
Paulo Freire e Darcy Ribeiro e nele pude ouvir, emocionada, essas vozes
em prol educação popular, generosamente transcritas pelas autoras Lia
Faria e Rosemaria J. Vieira Silva. A luta de cada um se dera em diferentes
espaços e instâncias, mas isso não impediu a sintonia de ambos em prol da
educação popular. Paulo Freire aplaudiu a proposta de tempo integral dos
CIEPs, enfatizando que:
o CIEP, ao mesmo tempo em que ele propõe a
compreensão e o uso diferente do tempo, nesta
proposta ele reeduca, ele forma diferentemente a
própria educadora. É isso que certos intelectuais
metidos a progressistas não entendem. E inclusive
nisso é muito dialético, quer dizer, o CIEP está
convencido de que a teoria passa pela prática e vice-
13
versa; não é possível dicotomizá-las. (...) A escola é o
espaço e o tempo em que se deve conhecer o
conhecimento que já existe, em que se deve trabalhar
para experimentar a possibilidade de criar o
conhecimento que ainda não existe. Isso afinal é a
educação. Do tempo que a criança precisa para
participar da produção do saber, e não para receber
pacote de saber. (Freire)
Ao tomar a palavra, Darcy Ribeiro além de enfatizar que Paulo
Freire é a consciência, a emoção e a sabedoria da educação brasileira,
soube reconhecer que o traço fundamental da vida e obra de Freire é esse,
é de um respeito de educador pelo educando. Um respeito largo que se
estendia à sua luta para realizar a vocação humana para aprender.
Contribuições que fazem parte, como sublinhou Darcy, de ideias
encarnadas movem o mundo. Inclusive, acrescento eu, porque sementes
grávidas de utopia perduram e podem ser retomadas. Nesse sentido, Darcy
fez questão de dizer de onde veio a inspiração para a criação dos CIEPs,
retomando um experimento realizado por Anísio Teixeira. Nas palavras
de Darcy:
Anísio fez um experimento, que foi pra nossa geração
uma coisa comovedora, que é a Escola Parque da
Bahia, no bairro mais miserável da Bahia. Era um
bairro de palafitas, na lama, na merda. Naquele bairro,
o Anísio fez a Escola Parque da Bahia. (...) e a escola
era para quê? Para receber as crianças quatro horas
antes ou quatro horas depois da escola classe. E ele
tentou melhorar as escolas classes, os meninos tinham
suas aulas na escola classe, e iam pra Escola Parque.
A partir da semente lançada, Darcy foi além, criando os Centros
Integrados de Educação Popular. Já não se tratava de dispor de um
complexo educacional, com espaços e atribuições complementares, mas
distintas. Nos CIEPs, a proposta era integrar a cultura da escola com a
cultura da comunidade, inclusive com a mediação de animadores culturais,
14
que deviam realizar um trabalho capaz de articular as demais atividades da
escola, explorando diferentes e possibilidades de criação (arte, música,
dança teatro).
Com a experiência seminal dos CIEPs, dentro e fora deles, o
fracasso escolar ganhou também o sentido de fracasso da escola.
Problematizou-se a produção do analfabetismo no interior das escolas,
onde muitas crianças eram sistematicamente reprovadas até que se
evadissem ou fossem transferidos para o noturno. Isso tudo vi acontecer,
razão por que me comoveu tanto ouvir a forte denúncia de Darcy: Nós
estamos produzindo agora os analfabetos do futuro. Além de denunciar a
escola pensada para e pela elite, Darcy implicitamente relacionou o
fracasso da escola também ao esvaziamento da carreira docente:
a professora ganha hoje uma sexta parte do salário que
recebia. Havia uma profissão que era marido de
professora: casar com professora era um grande
negócio. Minha mãe viúva podia criar dois filhos dela,
eu e meu irmão, e os irmãos dela (...) Quer dizer, uma
professora podia manter, como o médico também.
Insisto em trazer as vozes entremeadas de Paulo Freire e Darcy
Ribeiro, uma vez que a questões ali presentes continuam sem respostas e
ainda se insiste em negar, na intimidade da escola, o conflito social .
Dessa forma, como denuncia Freire, incorrem profundamente num atraso:
Essa gente não quer mudar nada. Pior que isso: essa gente parece querer
retroceder às décadas de 1950 a 1970 quando prevalecia a querela dos
métodos e o tecnicismo.
Se não estivemos andamos em círculos, como me parece, o faro é
que a “Década da Alfabetização” se encerra com parcos avanços, o que
instiga a analisar as distâncias entre as prioridades anunciadas e o que
efetivamente se priorizou entre nós. Aponto algumas: o código e não a
alfabetização ganhou centralidade; os conteúdos escolarizados recobraram
15
força, relegando a um segundo plano a leitura freireana da palavramundo; a
síndrome dos testes encobriu a discussão de processos de avaliação; a
discussão dos processos de aprendizagem foi recalcada pela busca de
resultados; as ONGs cresceram sobre a fragilização da escola pública de
tempo integral; os gestores técnicos tomaram o lugar de humanistas, e
segue por aí um rol de distorções.
E mais, na chamada Década da Alfabetização, foram descartadas
contribuições da psicologia, da sociolinguística, da antropologia filosófica,
da psicolinguística e da linguística, em favor de um foneticismo estreito
que privilegia o código, reduzindo o signo ao significante e reafirmando
conteúdos escolares menores em detrimento da palavramundo. Ou seja,
“jogou-se fora o bebê com a água do banho”.
Posso estar sendo injusta com a década, até por me limitar apenas ao
que pude acompanhar no Brasil. Posso ser acusada de saudosismo, mas não
posso deixar de me indignar diante dos legados descartados em favor de
um neotecnicismo que combina em tudo com neocolonialismo e promove
os retrocessos a que se tem assistido. A alfabetização, defendida por Paulo
Freire como ponte entre a leitura de mundo e a leitura da palavra,
distendendo-se na leitura da palavramundo, viu-se novamente reduzida à
aquisição do código.
Como justificativa teórica para amesquinhar a alfabetização que se
complexificara com Freire, discute-se crescentemente a especificidade da
alfabetização, a par do conceito de letramento que se alarga nas funções
sociais da escrita na sociedade letrada. Emilia Ferreiro tomou posição
contra essa dicotomia:
Há algum tempo, descobriram no Brasil que se poderia
usar a expressão letramento. E o que aconteceu com a
alfabetização? Virou sinônimo de decodificação.
Letramento passou a ser o estar em contato com
distintos tipos de texto, o compreender o que se lê. Isso
16
é um retrocesso. Eu me nego a aceitar um período de
decodificação prévio àquele em que se passa a perceber
a função social do texto. Acreditar nisso é dar razão à
velha consciência fonológica. (2003, p. 30)
A alfabetização saiu de foco e as luzes se acenderam sobre a
discussão do letramento cuja disseminação começou com Mary Kato em
1986. Paulo Freire, que só faleceu onze anos depois, ignorou solenemente
essa discussão que passava ao largo do político como reverso do
pedagógico, questão maior que o mobilizava. Depois de sua morte, não
faltam os que tentam associar o letramento à leitura da palavramundo de
Paulo Freire. Porém Moacir Gadotti, Presidente de Honra do Instituto
Paulo Freire, cioso do legado recebido, além de concordar com Ferreiro, na
denúncia do retrocesso conceitual, vai mais longe, denunciando uma
lamentável tentativa de esvaziar o caráter político da educação e da
alfabetização, uma armadilha na qual muitos educadores e educadoras
hoje estão caindo. (2010, p. 9)
Na contramão dos avanços conquistados nas décadas anteriores,
assiste-se a uma espécie de revanche da educação bancária tão longamente
combatida por Paulo Freire. Mais que nunca as crianças e suas professoras
recebem pacotes prontos que pouco ou nada têm a ver com sua cultura, sua
história, sua experiência. Tais pacotes não levam em conta os sujeitos dos
processos de aprendizagem e atropelam as professoras, cuja prática é
reduzida ao fazer pensado por outros. Enquanto isso, cartilheiros,
especialistas em marketing, com suas técnicas de antanho embaladas nas
tecnologias de agora ganham espaço crescente na mídia e são
contemplados pelas nas políticas públicas.
Para seguir tais pacotes não é preciso ser pedagoga, nem professora-
pesquisadora, nem sujeito que pensa o seu fazer. Basta ser boneco do
ventrículo que, por sua vez, forma bonequinhos de ventrículo que, no
máximo se alfabetizam mecanicamente o que não significa se credenciar a
17
fazer uso da alfabetização e se tornar um leitor confirmado. Cientes de que
a melhor defesa é o ataque, tais cartilheiros atacam, desqualificando o
trabalho de pedagogas, como estratégia de venda ao poder público de
pacotes pretensamente salvadores, compostos de muitos itens, de manuais
coloridos a CDs e até computadores fantasiados de mesas alfabetizadoras,
tudo isso a custos exorbitantes. Em meio a tanta parafernália, a professora
mal paga e desqualificada é posta no final da linha, condenada a
retransmitir acriticamente os pacotes que recebe prontos para consumir.
Nesse sentido, deixa-se de lado tudo o que já foi produzido a respeito
da educação emancipatória e da práxis alfabetizadora de Freire. Ignora-se
por extensão a integração prática-teoria, o fazer pensado, a experiência
refletida, a práxis em construção da professora-pesquisadora que reflete
sobre seu fazer e sobre as respostas que colhe dos alunos, buscando
compreender o compreender deles para ensinar melhor. É tamanha a
imbricação entre ser professora e ser pesquisadora que Paulo Freire
também se posicionou a esse respeito:
Fala-se hoje, com insistência, no professor
pesquisador. No meu entender o que há de
pesquisador no professor não é uma qualidade ou uma
forma de ser ou de atuar que se acrescente à de ensinar.
Faz parte da natureza da prática docente a indagação, a
busca, a pesquisa. O de que se precisa é que, em sua
formação permanente, o professor se perceba e se
assuma, porque professor, como pesquisador.”
(FREIRE, 2000 p.33).
Mas quando se dicotomizam o fazer e o pensar, a teoria e a prática, é
possível perguntar: Como a professora pode se assumir pesquisadora, a
despeito dessa política dos pacotes? Direi que se uma professora não se
demite de pensar a sua prática e de compreender como suas crianças
compreendem, ela se desvencilha das amarras dos pacotes e do controle a
que é submetida. Se a professora consegue ver sentido no que faz, instiga
as crianças à descoberta e à criação e, sobretudo, as convida a ampliar a
18
leitura da palavramundo. Mas como fazer isso, se existe, em muitos
municípios, uma política posta e imposta com controle semanal das
atividades do pacote?
Nesse ponto entra em cena a astúcia da professora. O uso da astúcia
foi teorizado por Certeau como a arma do fraco e, consequentemente, a
arma do pobre. Mas pode ser também a arma da professora desqualificada e
subalternizada por esses pacotes. Recentemente, participei de um dos
encontros do Fórum de Alfabetização e Leitura na UNIRIO em que uma
professora relatou como driblava o controle a que era submetida. Como a
supervisora só comparecia à escola em determinado dia da semana, a
professora resolveu que apenas nesse dia usaria o material do pacote. Nos
demais dias da semana, exploraria outras possibilidades de ler e produzir
conhecimentos com sua turma. Um belo dia, a supervisora apareceu fora do
dia combinado, encontrando a professora vivendo práticas muito distintas
das que estavam previstas para a semana. Questionada, a professora
respondeu que variava as aulas para ir ao encontro dos interesses das
crianças e que estas estavam aprendendo. Não importa saber se a
supervisora agiu com sabedoria, aplaudindo a ação da professora. O
importante é ressaltar que a professora foi além do relato, discutindo a
cartilha e exercícios mecanizantes nela propostos, confrontados com outros
momentos em que o conteúdo da alfabetização incluía o código, sem se
reduzir a ele.
Mas os percalços impostos às professoras não param aí. Além dos
pacotes pedagógicos prontos para transmitir, na última década se
disseminaram políticas de avaliação, que mobilizam verbas substanciais e
um grande aparato sob a alegação de que os testes nacionais e
internacionais em larga escala contribuem para alcançar a almejada
qualidade da educação. Angel Barriga problematiza essa argumentação,
19
não hesitando em denunciar que tal avaliação tem negado a complexidade
pedagógica subjacente aos atos educativos. Para Barriga essa politica:
Longe de abordar os temas substantivos destes
problemas, promoveu um maior formalismo na
educação. Se algum resultado teve este
estabelecimento de sistemas de avaliação, foi o
aumento do formalismo e do simulacro nos actos
educativos. (Barriga, 2009, 28)
Volto ao documento Alfabetização como Liberdade e encontro um
discurso ambíguo sobre alfabetização e avaliação. De um lado, ressalta-se
que a alfabetização serve a propósitos múltiplos, é adquirida de diversas
maneiras, razão por que deve ser encarada, não como um conceito único,
mas sim plural: as alfabetizações. Por outro lado, sinaliza que os métodos
de avaliação da alfabetização (novamente no singular) não são confiáveis,
necessitando uma complexificação (2003, p.35-36). O reconhecimento das
alfabetizações múltiplas, a par da necessidade de complexificar a avaliação,
não foi além das boas intenções. Na prática, acabou desembocando em
testes nacionais e internacionais em larga escala que inverteram o processo:
em vez da avaliação subsidiar a investigação dos processos de
aprendizagem; o ensino e a pretendida aprendizagem passaram a se pautar
pela matriz estreita dos testes em larga escala.
Esse retorno a testes pretensamente objetivos, capazes de apurar
médias em várias instâncias, mas incapazes de compreender os sujeitos e
suas lógicas, me faz lembrar o tempo em que se aplicava o teste ABC nas
escolas. Como o teste era vendido em papelarias, muitas mães compravam
e treinavam seus filhos em casa para se saírem bem. Eram, assim, bem
classificados, ficavam nas melhores turmas para as quais nunca havia falta
de professora. Astúcia de mães que entendiam o jogo da escola capitalista
onde muitas vezes quem mais precisa é quem menos recebe. Se o teste
ABC pretensamente prognosticava, com muitos discrepâncias, quem já
atingira a maturidade necessária à alfabetização, os testes de agora, do tipo
20
provinha Brasil e assemelhados, se pretendem capazes de aferir
objetivamente os resultados ao final de dois anos de escolaridade. São
talhados a perfeição para alardear que o investimento feito gerou
resultados “comprovados”. Servem também para justificar a “eficácia” da
opção por novos gestores da educação, que não são poetas como Cecilia
Meirelles, nem antropólogos como Darcy Ribeiro e nem educadores como
Anísio Teixeira e Paulo Freire. São técnicos que lidam com pessoas como
se fossem números, que administram a educação como se fosse empresa,
que acenam com gratificações como se fossem cenouras para atrair
docentes como se fossem coelhos.
Enquanto isso, parcerias entre governo e sociedade civil,
estimuladas no documento da UNESCO/MEC, vêm crescentemente se
proliferando. As Ongs que se multiplicam atendem a objetivos específicos
voltados ora para as artes, ora para os esportes, ora para a sustentabilidade,
ora para a saúde etc, etc, etc. Não vou entrar no mérito da qualidade
discutível de muitas delas, que recebem vultosas doações do Estado,
eximindo-o de tarefas que seriam suas. Mas o fato de trabalharem com
crianças e adolescentes em horários alternativos ao da escola, exime o
Estado de sua responsabilidade com a educação das crianças em tempo
integral nas escolas. Mas, sobretudo, distanciam-se da complementaridade
pensada por Anísio Teixeira entre escolas base e Escola Parque da Bahia, e
da integração entre cultura da escola e cultura da comunidade defendida no
programa dos CIEPs criado por Darcy Ribeiro. O frouxo nexo entre as
escolas e essas ONGs não vai além do controle de assiduidade e da
aprovação, o que não basta para transformar a escola que temos. Mais um
retrocesso.
Recentemente dados do Ideb-2911 revelaram discreta melhora de 0,4
pontos nos anos iniciais do ensino fundamental e um discretíssimo avanço
de 0,1 nos anos subsequentes e no ensino médio. Tudo dosado e medido
21
com parâmetros genéricos de aferição de avanços, em que ecoam uma
antiga brincadeira infantil: - Mamãe posso ir? – Pode. _ Quantos pontos? –
Menos que meio de formiguinha. O quadro torna-se ainda mais
preocupante, se levarmos em conta que as dificuldades de leitura e escrita
se estendem pelo ensino fundamental, atravessam o ensino médio e
chegam mesmo à universidade. Evidência de que os testes não vão além de
simulacros, enquanto a educação brasileira continua derrapando no que é
essencial.
Diante disso, denúncias suficientemente alardeadas pela imprensa,
sinalizam que, vencido o problema de metas quantitativas, permanece o
desafio de uma educação de qualidade para todos. Jornais estampam
manchetes anunciando problemas crescentes para a economia brasileira
por falta de profissionais com formação adequada. Já vem sendo
recrutados estrangeiros para atender as demandas de mão de obra
qualificada que o modelo educacional que temos não consegue atender.
Temos uma escola que não atende à formação humana e sequer responde
às demandas ditadas pela economia no século XXI. Segundo José Pastorevi:
O mundo do trabalho não quer apenas canudo, apenas
diploma. A escola de hoje ensina, na melhor das
hipóteses, a passar no exame. Não ensina a pensar. E o
trabalho moderno exige o pensamento. Nós vivemos
numa sociedade do conhecimento em que se demanda
muito mais neurônio do que músculo.
Ou seja, em se tratando de educação popular, quando se consegue
ensinar o código, não se consegue avançar em direção à educação de
qualidade. Aliás, temo que se desabilitem atividades leitoras em que o
cérebro humano se aplica desde o nascimento, para desenvolver
competências cognitivas que permitem aos bebês ler o mundo, imaginar e
pensar, processar e incorporar a linguagem oral sem que esta lhes seja
formalmente ensinada.
22
O que constatei, em quase cinco décadas, tanto como professora que
se foi construindo professora-pesquisadora, quanto como pesquisadora-
professora, é que a alfabetização é crucial para a permanência das crianças
de classes populares na escola. Para mim, discutir alfabetização em
qualquer tempo e espaço, pressupõe necessariamente articulá-la à questão
maior da leitura e da formação de leitores críticos. Essa é a bandeira que
abraço desde longa data, sobretudo a partir do final da década de 1980,
quando integrei o grupo de sete professoras de língua portuguesa que,
lideradas por Luzia de Maria, se responsabilizaram por uma ação pioneira:
o lançamento do jornal-revista PRAvaLER, sob o seguinte lema: “Educar
para a leitura, ler para educar”.
O primeiro artigo que escrevi para esse jornal, há quase 25 anos, já
trazia minha preocupação maior em seu título: “Alfabetização – onde a
escola se reprova?”. O texto problematizava a precariedade de nosso
sistema escolar, incompetente não só para alfabetizar todas as crianças –
nenhuma a menos, como também para conseguir alfabetizar, formando
leitores.
Não por acaso, o saldo minimamente positivo da Década da
Alfabetização, a meu ver, diz respeito ao objetivo de promover, nas
escolas e nas comunidades, um ambiente que propicie os usos da
alfabetização e uma cultura de leitura. Pelo menos, a importância da
leitura tem sido difundida na mídia e nas mensagens publicitárias
institucionais. Nesse cenário a FLIP chega à sua décima edição, as bienais
do livro vêm tendo vendas recordes e minifeiras de livros já acontecem em
escolas. Tudo isso é muito bom e tem produzido boas respostas de um
público que dispõe de poder aquisitivo para colocar livros em sua cesta
básica.
No entanto, como construir uma cultura de leitura, tenda onde
entrem todos, se falta uma alfabetização popular que se abra efetivamente
23
ao prazer da leitura, que instigue ao prazer de se emocionar, de sonhar e
de conhecer? Como construir uma cultura de leitura se ainda é quase uma
exceção um trabalho que se inicie em sala de aula e se distenda nas
bibliotecas das escolas? Ou como fazê-lo, quando não se tem uma política
de leitura capaz disseminar livros acessíveis como artigos de primeira
necessidade para todos? O problema é que as classes populares só contam
com as escolas. Estas, muitas vezes, são induzidas a treinar estudantes para
aparecerem em programas de TV para soletrar, quando o que há de mais
importante é a leitura, a produção escrita e o poder de dizer sua palavra.
Por certo, uma cultura de leitura não se improvisa. Construí-la é um
desafio das escolas e das famílias, das políticas públicas e do país, com
vistas à construção da sociedade aprendente que o século XXI está
exigindo, para além da Década da Alfabetização. Entendo que uma cultura
da leitura abre horizontes, indo ao encontro de uma educação
emancipatória em prol de uma sociedade que se descolonize cada vez mais
como fala Freire, na epígrafe com que abri esse texto. E desse modo,
possamos confirmar as palavras esperançosas de Darcy Ribeiro:
Estamosnosconstruindo na luta para florescer
amanhã como uma novacivilização, mestiçae
tropical, orgulhosadesimesma. Mais alegre, porque
maissofrida. Melhor, porqueincorporaemsimais
humanidades. Maisgenerosa,porqueaberta à
convivência com todas as raças e todas as
culturas... (Ribeiro, 1995, 455)
Mas para nos mobilizarmos em direção a esse belo horizonte de
futuro anunciado por Darcy, um movimento coletivo de indignação, contra
os retrocessos na educação popular, mas não só, se faz mais do que
necessário, se faz urgente.
24
Referências bibliográficas
Alfabetização como liberdade. Brasília : UNESCO, MEC, 2003. 72 p.
BARRIGA, Angel. A avaliação na educação mexicana in Sísifo -
Revista de Ciências da Educação, nº. 9º. Lisboa, 2009.
BRANDÃO, Carlos R. Lutar com a palavra, Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1982.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis RJ, Vozes,
1994.
ESTEBAN, Maria Teresa e ZACCUR, Edwiges. Professora-
pesquisadora: uma a práxis em construção. Rio de Janeiro: DP&A,
2002.
FARIA, Lia e Rosemaria J. Vieira Silva O encontro das águas: diálogos
entre Paulo Freire e Darcy Ribeiro.
intranet.ufsj.edu.br/rep_sysweb/File/vertentes
FERREIRO, Emilia. Alfabetização e cultura escrita, Entrevista
concedida à Denise Pellegrini In Nova Escola – A revista do Professor. São
Paulo, Abril, maio/2003.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido, Rio de Janeiro:
Afrontamento, 1975.
_______ . Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro:
Paz e Terra. 2011
_________Pedagogia da Esperança: um diálogo com a Pedagogia
do
Oprimido, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992.
GADOTTI, Moacir. Não podemos negar nossa história. In Alfabetização e
letramento: o que muda quando muda o nome? Zaccur, Edwiges (org)
Rio de Janeiro, Rovelle, 2011.
25
GERALDI, João Wanderley (Org.) Concepções de linguagem e ensino de
Português. In O Texto na Sala de Aula: leitura & produção. Cascavel:
Assoeste, 1984.
KATO, Mary. No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística.
Rio de Janeiro, Ática, 1986.
RIBEIRO, Darcy. O livro dos CIEPs. Rio de Janeiro: Bloch, 1986.
_______________ OPovoBrasileiro: Aformaçãoeosentidodo
Brasil. São Paulo, CompanhiadasLetras–1995.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Renovar a teoria crítica e reinventar a
emancipação social. São Paulo, Boitempo, 2007.
i Ver Carta Capital de 21/08/2012 – Brasil 4º. país mais desigual da América Latina ii O referido documento, publicado no Brasil em maio de 2003 em parceria UNESCO/MEC,
materializa a proposta Década da Alfabetização das Nações Unidas aprovada na 54ª Sessão da
Assembleia-Geral da ONU, por meio da sua Resolução A/RES/54/122 e efetivamente lançada na 56ª.
Sessão da Assembleia-Geral da ONU realizada dia 3 de fevereiro de 2003. iii Este é o título que consta da ficha catalográfica. Porém, capa o título vem com todas as
palavras escritas sem espaço entre elas. iv O termo analfabeto letrado foi cunhado por Magda Soares e se aplica a quem, mesmo não
sabendo ler formalmente, convive a seu modo com práticas sociais de leitura e escrita. Prefiro empregá-lo
a classificar o sujeito da pesquisa realizada por mim como um caso típico do alfabetismo funcional, por
considerá-lo um leitor que vai além, pela leitura crítica e criativa que faz. v Boaventura de Souza Santos denuncia que a racionalidade ocidental reduz a riqueza do mundo,
recorrendo a cinco monoculturas como maneiras de produzir a ausência do que difere de sua matriz: a
monocultura do saber e do rigor, a monocultura do tempo linear, a monocultura da naturalização das
diferenças, a monocultura da escala dominante e a monocultura do produtivismo capitalista. Ver obra
sitada os 29-31. vi Ver entre outras a matéria de 15/8/2012 em O Globo: Dificuldade de encontrar mão de obra qualificada
afeta economia brasileira