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XI CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA
1 a 5 de Setembro de 2003, UNICAMP, Campinas, SP
GT 22: SOCIEDADE DA INFORMAO E METODOLOGIAS
INFORMACIONAIS
Ttulo do Trabalho: O MNIMO HOMEM - REFLEXES SOBRE OS
PROCESSOS DE SUBJETIVAO NA SOCIEDADE TECNOLGICA
Autor: ROSA MARIA LEITE RIBEIRO PEDRO
O MNIMO HOMEM REFLEXES SOBRE OS PROCESSOS DE
SUBJETIVAO NA SOCIEDADE TECNOLGICA
Rosa Maria Leite Ribeiro Pedro1
RESUMO: No mbito das cincias humanas e sociais, as reflexes acerca do tema da
subjetividade independentemente de seu acento mais individualista ou comunitarista
tm como pressuposto que se trata de um atributo distintivamente humano, entendendo que
disto que devemos partir para compreender os processos e as prticas que fazem do
homem um sujeito. Argumentamos que, na Atualidade, experimentamos uma intensa
mediao da tecnologia em nossas vidas, e neste enquadramento de especial relevncia
no apenas a possibilidade de artificializao do humano uma lgica de simulao -, mas,
sobretudo, a hibridao entre humano e artifcio em diferentes dimenses um dispositivo
de agenciamento. Diante de tais possibilidades, as pesquisas variam desde a explorao das
virtualidades abertas pela hibridao at as tentativas de demarcar uma espacialidade,
mesmo que mnima, em que o propriamente humano ainda resistiria uma configurao
que chamamos aqui de mnimo homem. Propomos, aqui, explorar algumas dessas
formulaes nas dimenses mental/cognitiva, corporal/orgnica e ntima/intencional, a fim
de buscar algumas pistas que nos permitam responder a seguinte questo: possvel pensar
uma subjetividade hbrida de humano e no-humano?
PALAVRAS-CHAVE: subjetividade, sociedade tecnolgica, hbridos
1 Doutora em Comunicao e Cultura.
Professora e Pesquisadora do Programa de Ps-Graduao em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia
Social (EICOS/Instituto de Psicologia/UFRJ), onde integra a Linha de Pesquisa tica, Saberes, Subjetividades e Desenvolvimento. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Cultura Contempornea, Subjetividade e Produo de Conhecimento (CNPq)
E-mail: rosapedro@globo.com
INTRODUO
Se h um elemento comum nas consideraes que so hoje feitas acerca de nossa
Atualidade, ele aparece na constatao do vigor da tecnologia ou das novas tecnologias. O
fato de j nos referirmos to naturalmente nossa sociedade como sociedade da
informao (MATTELART, 2002), ou utilizarmos termos como cibercultura (LVY,
1999; LEMOS, 2002) e cultura digital (COSTA, 2002), parece justamente apontar para a
intensa mescla da tecnologia em nossas vidas, de uma forma, aparentemente, sem
precedentes.
Se h razovel consenso acerca dessa espcie de mutao social e antropolgica
experimentada pela Atualidade, certamente so muitos e variados os estudos que buscam
mape-la, desde aqueles que se atm a uma caracterizao global do contexto atual,
passando pelas tentativas de identificar alguns fenmenos especficos que lhes seriam
prprios a comunicao em rede, as comunidades e os relacionamentos virtuais ,
chegando a ensaios que se revelam como verdadeiras denncias dos perigos e riscos de um
mundo tecnologizado.
Ao tentarmos nos inserir nesta relevante discusso, damo-nos conta de que a maior
parte das anlises encontra-se fundamentada em uma polarizao entre duas posies
extremas e antagnicas: ou a tecnologia vista como etapa de um progresso natural,
inevitvel, e at desejvel, caminhando de mos dadas com a evoluo da cincia e a
tarefa que nos cabe a de compreender seu funcionamento e seus impactos sobre a
sociedade; ou aparece como algo a ser demonizado, na medida em que afastaria o homem
de sua verdadeira natureza, corrompendo-o e desviando-o de uma trajetria qual seria
possvel, e mesmo desejvel, retornar e, neste caso, a compreenso do objeto tecnologia
e de seus perigos e riscos deve estar acompanhada de uma constante vigilncia, a fim de
que certos limites no sejam ultrapassados.
Tal polarizao, argumentamos, parece radicar num inescapvel determinismo que
pode assumir duas formas, o determinismo sociolgico e o determinismo tecnolgico. De
acordo com o primeiro, confere-se sociedade papel determinante na produo dos objetos
tcnicos, de tal modo que seramos totalmente responsveis pelas conseqncias que advm
do que produzido. Neste caso, o progresso cientfico-tecnolgico seria uma espcie de
conseqncia natural do desenvolvimento de nossa sociedade e disso deveramos nos
orgulhar quando este progresso redundasse no bem comum ou nos precaver, pois alguns
desses avanos poderiam levar a uma explorao ou alienao do homem. De qualquer
modo, no h dvidas de que o presente e o futuro da tecnologia dependem de ns. Na
segunda forma de determinismo, o que ressalta o poder conferido tecnologia de
conformar nossas vidas, tornando-nos refns do que produzimos. Neste caso, o que parece
estar em jogo uma espcie de autonomizao da tecnologia que, ao assumir e radicalizar
certas caractersticas antropomrficas, configuraria um cenrio em que a criatura escapa
do controle do criador e nos domina cenrio este que h muito freqenta a fico
cientfica norte-americana.
Para no sucumbir a tal discusso polarizada, preciso reconhecer nela um
problema nodal: o fato destes estudos no problematizarem justamente a imbricao entre
sociedade e tecnologia, optando por tomar ambos os termos como j-dados, como tecidos
densos cujos contornos sabemos identificar e dos quais devemos partir como base para
nossas pesquisas2.
Gostaramos de propor um ngulo diferenciado de anlise, em que partimos no dos
plos sociedade ou tecnologia , mas do coletivo tecnologia-natureza-sociedade, ou
como preferimos, sociedade tecnolgica, a fim de poder delinear seus contornos, bem
como algumas prticas que lhe esto associadas. Reconhecemos que a fora e o carter
indito das novas tecnologias comunicacionais, informacionais e biomdicas so
marcas distintivas de nosso tempo. Julgamos, porm, que o mais interessante consiste em
explorar o fato de elas introduzirem, na j complicada relao entre natureza e sociedade, a
radical artificialidade do fato/feito tecnolgico. Se, na Modernidade, a compreenso de
qualquer fenmeno se dava a partir de sua categorizao como uma entidade natural ou
cultural (LATOUR, 1994), somos hoje confrontados com a possibilidade de produo
artificial da natureza do mundo e da nossa prpria. Como conseqncia, experimentamos
uma proliferao de hbridos em escala crescente, sendo tais hbridos agora mistos de
2 Uma discusso aprofundada das relaes entre tecnologia e sociedade do ponto de vista da histria da
tcnica pode ser encontrada no ensaio de Tamara Benakouche (1999): Tecnologia sociedade: contra a noo de impacto tecnolgico.
natureza, cultura e artifcio, humano e no-humano, incluindo aqui o no-humano
maqunico (PEDRO, 1996a; 1996b). Obviamente tais processos de hibridao se fazem
acompanhar de movimentos de purificao, entendidos como aqueles que buscam encontrar
uma ordem, uma inteligibilidade que as categorias modernas pareciam garantir.
Compreender a sociedade tecnolgica implica, portanto, no desafio de apreender sua
constituio hbrida, enfrentando simultaneamente os projetos de purificao.
No jogo destes movimentos de hibridao e de purificao que se constitui a
tessitura social que nos envolve e os sujeitos que somos. Nas palavras de Lemos:
Levar em conta a dimenso tcnica da vida quotidiana significa dirigir nosso
olhar ao mundo da vida (2002, p. 19).
E se acreditamos, juntamente com Simondon (1989a, 1989b), que a tcnica
dimenso do devir coletivo, percebemos que somos incessantemente transformados pelos
objetos tcnicos. Assim, ao colocarmos como questo a compreenso da constituio de
nossa sociedade, somos de imediato levados a problematizar as transformaes em nossa
subjetividade, a fim de compreender o que nos acontece e o que podemos ser.
Propomos, assim, explorar o tema da produo de subjetividade na Atualidade a
partir dos movimentos de hibridao e de polarizao entre humano e no-humano que a
tecnologia possibilita encenar. Isto porque, se, por um lado, a noo de sujeito no se
confunde com a de homem ou de humano, por outro, o humano uma espcie de
pressuposto indiscutvel nas conceituaes modernas acerca da subjetividade do
humano, afinal de contas, que se trata, quando se diz sujeito. Entendemos que a
configurao do humano se encontra hoje instabilizada a partir da relao com a tecnologia,
de duas formas possveis. Primeiramente, atravs da simulao das capacidades humanas
por parte dos artefatos cognitivos. Dentro desta lgica da simulao, busca-se duplicar
(ou replicar) o humano em diferentes nveis e aqui podemos incluir as mquinas
capazes de substituir a fora humana em tarefas mecnicas, as prteses e os prottipos no
campo da Inteligncia Artificial. tambm neste mbito que emerge a figura do mnimo
homem: a constituio de uma espacialidade, mesmo que reduzida, em que o propriamente
humano ainda tenta resistir e se diferenciar do no-humano. Os que defendem esta posio
costumam afirmar que, diferena das mquinas artificiais, o humano tem uma mente, tem
um corpo, tem uma intencionalidade.
possvel, tambm, identificar uma outra lgica em ao, aquela que opera por
meio no da simulao, mas dos agenciamentos do humano com os objetos tcnicos o que
nos permite, inclusive testemunhar uma certa fluidificao de fronteiras entre, por exemplo,
pblico e o privado, o prprio e o comum, o sujeito e o objeto. Entendendo que a
hibridao o que faz potncia, os defensores desta posio procuram investigar os
agenciamentos que fazem pensamento, que compem corpo e que produzem
intencionalidade.
a partir de tais posicionamentos que julgamos decisivo recolocar a questo no
apenas do que significa ser sujeito hoje, mas, sobretudo, o que pode ser hoje o sujeito.
Propomos, assim, investigar o que se passa na tenso entre o mnimo homem e os
agenciamentos hbridos em trs dimenses que j foram tomadas como definidoras do
humano: a dimenso mental/cognitiva, a dimenso corporal/orgnica e a dimenso
ntima/intencional. Esperamos que a investigao assim conduzida nos oferea algumas
pistas para nos aproximarmos de uma questo radical: possvel pensar e, em caso
afirmativo, quais as condies de sua possibilidade uma subjetividade hbrida de
humano e no-humano?
VIRTUALIZAO DO MUNDO E DA REALIDADE
Dentre as diferentes possibilidades de anlise abertas pela constituio tecnolgica
da sociedade contempornea, caberia destacar o fenmeno de virtualizao do mundo e
da realidade, que nos parece especialmente relevante para a compreenso da instabilizao
das fronteiras entre humano e no-humano. Trazida cena como objeto de pesquisa e
debate, sobretudo a partir do surgimento da Internet, a virtualidade tem sido relacionada
diretamente perda de humanidade que se costuma associar sociedade tecnolgica, em
especial s relaes que se configuram e se exercem no espao por ela aberto. Trata-se
mesmo, no dizer de alguns autores, de uma espcie de perverso do que haveria de mais
genuno nas relaes humanas, do que habitualmente se exprime nos contatos face a face.
Esta possibilidade de desumanizao, j se v, tem por base a oposio mundo
real e mundo virtual, com a conseqente associao real/humano e virtual/tecnolgico,
onde a vida e o propriamente humano estariam identificados ao mundo real, enquanto a
tecnologia seria o habitante do rido e artificial mundo virtual.
Segundo Pierre Lvy (1996), a oposio em questo deriva de concepes
catastrofistas acerca da virtualizao, que a enfocam seja como desaparecimento do
universal, seja como imploso dos referenciais de espao e tempo. Ao analisar tais
conceituaes, Lvy recorre aos estudos de Gilles Deleuze para identificar um equvoco de
base, em termos filosficos: ao virtual no se deveria opor a materialidade do real, mas
antes a possibilidade de sua resoluo no atual. Definindo o virtual como um complexo
problemtico, Deleuze (1991) argumenta que a ele no falta realidade o virtual pleno de
realidade, e isto que lhe confere a capacidade de atualizao, no como mero
desdobramento lgico de uma forma que lhe antecede e cuja existncia j estaria pr-
figurada, mas, sobretudo, como criao ou inveno. Portanto, o que devemos analisar no
a polarizao real/virtual, mas o par atual/virtual. A virtualizao assim compreendida
no a desrealizao do mundo, mas o movimento em que qualquer objeto passa a
encontrar sua consistncia num campo problemtico, ao invs de atualizar-se numa
soluo. A virtualizao deve ser traada, portanto, no caminho que vai de uma soluo
atualizada (concreta) a uma rede de problematicidades, plena de possibilidades ainda no
atualizadas e, portanto, imprevisveis. No movimento de virtualizao passagem do atual
ao virtual as distines que se encontravam constitudas se fluidificam, ampliando assim
os graus de liberdade de um acontecimento no limite, pode-se dizer mesmo que a
virtualizao cria mais realidade.
Neste movimento de criao e de inveno, o humano no est de forma alguma
ausente. Ao contrrio, como assinala Pierre Lvy, o humano tem um papel destacado na
abertura possibilitada pelo virtual:
O virtual s eclode com a entrada da subjetividade humana no circuito, quando,
num mesmo movimento, surgem a indeterminao do sentido e a propenso do
texto a significar, tenso que uma atualizao (interpretao) resolver na
leitura (LVY, 1996, p. 40).
No por acaso, o autor diferencia dois movimentos presentes na virtualizao, a
objetivao e a subjetivao. Enquanto a objetivao pressupe a implicao de atos
subjetivos ao longo de um processo de construo de um mundo comum o ciberespao,
por exemplo a subjetivao, num movimento complementar, refere-se integrao de
dispositivos tecnolgicos no funcionamento psquico e somtico e social de cada um. So
esses movimentos que nos possibilitam pensar os agenciamentos sociotcnicos que
envolvem hibridam humanos e no-humanos nas dimenses cognitiva, corporal e
intencional.
Embora com um entendimento ligeiramente diferenciado da noo de virtualidade,
Michel Hardt e Toni Negri (2001), em suas anlises que conceituam a sociedade
contempornea como uma expanso ilimitada em rede o Imprio , tambm enfatizam a
positividade do virtual e sua potncia de subjetivao, conectando-o no a qualquer
instncia transcendente, mas diretamente ao do sujeito, ou melhor, da multido. O
no-lugar da virtualidade seria o que investe todo o tecido biopoltico e condensa o
potencial de agir da multido. O virtual, assim concebido, o que pode exercer presso nas
bordas do possvel e tocar o real, num ato de criao. Este poder de agir constitudo por
trabalho, inteligncia, paixo e afeto num lugar de todos (p. 380)
Assim, mesmo o carter de intangibilidade do virtual ele, de fato, no est
presente, no sentido de que no ocupa uma poro definida do espao fsico e do tempo
uniforme no justifica o valor negativo que a ele se costuma atribuir. Ao contrrio, cabe,
antes de tudo, explorar suas potencialidades ampliadoras, uma vez que no estar em um
espao especfico pode significar estar em toda parte no novo lugar do no-lugar
abrindo, assim, mltiplas possibilidades de constituio de linhas de fuga, mltiplas
possibilidades de subjetivao.
HUMANOS E NO-HUMANOS: ENTRE O MNIMO HOMEM E A HIBRIDAO
As questes trazidas cena pela virtualidade e pela proximidade crescente do no-
humano artificial em nossas vidas representam, para ns, uma oportunidade de colocar em
questo o modo como o humano se constituiu. Deseja-se, acima de tudo, problematizar e,
conseqentemente, desnaturalizar, o privilgio que o humano se atribuiu na relao com o
no-humano, em cuja base estaria uma inquestionvel e radical alteridade.
Este privilgio particularmente visvel nas pesquisas iniciais no campo dos
Sistemas Artificiais e das Cincias da Cognio, onde o humano fornecia o modelo de
estrutura e funcionamento mental que as mquinas buscavam reproduzir. Com o
desdobramento dos estudos nestas reas e, mais recentemente, no campo da Sociologia das
Tcnicas e da Ciberarte, possvel perceber, conforme j argumentamos, a passagem deste
modelo de simulao para um modelo de acoplamento ou de hibridao, em que se
parece apostar numa espcie de estrutura ou funcionalidade hbrida, cuja compreenso
parece dispensar a polarizao entre o humano e o tecnolgico.
O primeiro modelo tem suas origens na construo de mquinas tradicionais,
criadas para substituir o trabalho humano, e que operavam de forma mecnica e
padronizada. A simulao, nestes casos, no era problemtica para a concepo
diferenciada do humano, na medida em que cabia a estes artefatos a execuo de tarefas
simples e repetitivas, justamente aquelas que no exigiam o que se supe ser o distintivo do
humano: a conscincia de as estar realizando. Somente com o advento da Ciberntica e,
sobretudo, a partir da dcada de cinqenta, com a criao dos primeiros autmatos
celulares, o debate em torno da simulao surge e se acirra3, pois o que passa a estar em
jogo a artificializao da autonomia e da reflexividade como exemplo, temos as
pesquisas no campo da Inteligncia Artificial.
O segundo modelo envolve pesquisas mais recentes, em especial nos campos das
Cincias da Cognio, da arte interativa e Ciberarte, e das redes sociotcnicas. No se trata
aqui de saber do que a tecnologia capaz no seu enfrentamento da capacidade humana.
Trata-se antes da aposta de que, no acoplamento scio-tcnico, no parece fazer mais
sentido a pergunta acerca do apenas humano ou do apenas tecnolgico mas antes do que
capaz esta configurao hbrida. A separao, antes bem demarcada, entre humano e no-
humano figura aqui como contingencial e no necessria, sendo tal considerao decisiva
3 Ver, a esse respeito, a segunda parte do livro de entrevistas de Guitta Pessis-Pasternak (1993), em que a
jornalista apresenta um leque de posies acerca da simulao artificial da mente humana.
para a abertura de outras possibilidades de se pensar a produo de subjetividade, agora
configuradas a partir do agenciamento entre humano e no-humano.
Propomos explorar estes agenciamentos nas dimenses cognitiva/mental,
corporal/orgnica e ntima/intencional. Em todos possvel perceber o carter decisivo do
elemento virtual, pois, no espao aberto pela virtualidade, novas experincias subjetivas
se tornam possveis, dispensando a organicidade do corpo, a materialidade do espao e a
linearidade do tempo. possvel igualmente identificar a persistncia da crtica, ainda
fundamentada no modelo de simulao, que insiste em acentuar a perda de humanidade que
vigoraria em tais acoplamentos, na tentativa de demarcar a espacialidade do mnimo
homem.
a) Explorando a dimenso mental/cognitiva
O desenvolvimento das pesquisas no campo da Inteligncia Artificial j h muito
nos fornece uma primeira e poderosa aproximao da fluidificao das fronteiras que
separam os seres humanos das mquinas que eles prprios constrem. Os autmatos
celulares, concebidos a partir da dcada de cinqenta, eram capazes de simular algumas das
capacidades ditas superiores do humano, tais como a auto-reproduo e a auto-
organizao. Essas mquinas podiam exibir comportamentos complexos, no sentido de que
uma estrutura global emerge a partir de regras locais (DUPUY, 1994). Pouco tempo depois
comeam a surgir mquinas com sensibilidade ao meio (DENNETT, 1998), isto , que tm
uma representao interna do meio exterior, sendo capazes, inclusive, de operar sobre suas
prprias regras de funcionamento quando estas se mostram ineficazes. Assim,
progressivamente, os limites antes claramente marcados entre as capacidades cognitivas de
humanos e mquinas comeam a se tornar mais tnues, de modo a passarmos a nos
perguntar: ser mesmo a capacidade reflexiva agir e ter disto uma representao o que
nos distingue dos no-humanos? E, mais ainda, no seria esta conscincia reflexiva
apenas mais um modo de habitar o mundo, diferenciado talvez, mas no necessariamente
superior?4
4 Este argumento foi desenvolvido de forma mais detalhada em minha Tese de Doutorado, onde se
exploraram as relaes em rede entre matria / seres vivos / mquinas / cosmos e sujeito / objeto / espao /
tempo. (Cf. PEDRO, 1996a e tb PEDRO, 1997).
As pesquisas avanam e, a despeito da polmica que segue acompanhando o seu
desdobramento, as simulaes propiciadas pelos avanos no campo das Cincias da
Cognio parecem tender a um grau de mxima sofisticao e de indiferenciao entre
mentes e prteses. Coelho dos Santos, em seu artigo Socialidade na interface: relaes
entre indivduos e criaturas informticas nas redes sociotcnicas, apresenta um caso
exemplar desta indiferenciao, ao narrar a histria de um homem tetraplgico que, a partir
do implante de eletrodos em seu crtex cerebral, passou a se comunicar e a comandar um
computador. Por meio desse mouse implantado em seu crebro, ele se tornou capaz de
fazer com o pensamento o que estava incapacitado de fazer com as mos simplesmente
pensando ele penetrou na interface grfica e ganhou a possibilidade de deslizar em sua
superfcie (2001, p. 3). Segundo o autor, verifica-se a o acasalamento entre organismo e
mquina que caracteriza o ciborgue, pondo em questo os limites ontolgicos entre, por
exemplo, humano e inumano, natural e artificial, orgnico e inorgnico:
(...) em John, estabeleceu-se uma via de acesso que pe em conexo o crebro
humano e o crebro eletrnico, um atalho para ir da inteligncia humana
artificial ou, para utilizar uma linguagem mais precisa e atualizada, uma interface
entre o wetware que seu crebro e o conjunto software-hardware que o
computador (pp. 4-5).
Encontra-se j aqui prefigurada uma outra possibilidade de relao entre humano e
no-humano que aposta numa forma de cognio no mais individual, mas coletiva, e
nestes coletivos o que ressalta a hibridao scio-tcnica. Esta possibilidade encontra sua
formulao mais precisa na noo de cognio distribuda, proposta por autores como
Edward Hutchins, que traz a idia de que a cognio ocorre dentro e fora do humano,
constituindo um programa partilhado por humanos e objetos tcnicos (HUTCHINS, 1995).
Ao abandonar a idia tradicional de uma capacidade cognitiva localizada no interior de uma
mente individual, Hutchins argumenta em favor de uma ecologia cognitiva, em que a
inteligncia funo de um coletivo que envolve interaes entre atores humanos e
artefatos tecnolgicos (ROGERS, 1997). Nas palavras de Hutchins,
Ao utilizarmos esta unidade de anlise mais ampla, o que parecia internalizao
pode agora ser visto como uma propagao gradual de propriedades funcionais
distribudas ao longo de um conjunto de meios maleveis (1995, p. 312).
Em suas pesquisas envolvendo ambientes de navegao, Hutchins pode observar
que o sucesso das tarefas se devia natureza interativa de processos cognitivos produzidos
pela cooperao entre atores sociais (os navegadores) e objetos tcnicos, responsveis pela
construo de representaes externas nas quais os navegadores costumavam se basear e,
portanto, confiar para tomar certas decises. Nesses sentido, possvel afirmar que as
decises eram partilhadas entre humanos e no-humanos, a partir dos processos
representacionais distribudos em redes de alcance varivel.
Em lugar do assujeitamento ou submisso do homem ao computador, o que se
est verificando um alargamento de nossa conscincia ou um suplemento da
alma. (...) As memrias externas nos transformam em seres potenciais para
existir fora de ns mesmos (DOMINGUES, 2002, p. 39).
b) Explorando a dimenso corporal/orgnica
Quando, no campo cognitivo, a possibilidade de uma cognio compartilhada entre
mentes e objetos tcnicos se afirma como hiptese plausvel, o mnimo homem parece
encontrar seu lugar no corpo. Dito de outro modo, os argumentos em favor da distino do
humano surgem atravs da questo: possvel admitir a existncia de uma mente sem
corpo? Assim, o corpo biolgico emerge como argumento de resistncia hibridao com o
no-humano, como uma espcie de requisito ou fundamento para a configurao da
humanidade.
interessante observar, porm, que no campo das neurocincias e das
biotecnologias que as pesquisas parecem avanar mais rapidamente, com o
desenvolvimento de prottipos que mesclam redes neuronais e circuitos de silcio,
dificultando a delimitao ntida entre o natural e o artificial. No por acaso, o cyborgue
criatura que se define por sua indefinio ontolgica entre o humano e o tecnolgico
surge como uma metfora poderosa da fluidificao de fronteiras, estrategicamente
utilizada no por aqueles que se ressentem da possibilidade das misturas ou temem pelo
assujeitamento do homem, mas pelos que acenam com o prazer na confuso de fronteiras
(HARAWAY, 2000), bem como os que apostam nas potencialidades inditas do ps-
humano (HAYLES, 1999). Segundo Derrick de Kerckhove (1997), uma vez que o corpo,
no acoplamento com as novas tecnologias, vem sendo remodelado e remapeado em seus
processos sensoriais e em sua capacidade de processar e gerar informaes, est aberto o
espao para a emergncia de uma biologia da interatividade.
Tambm os campos da tecno-arte ou Ciberarte tm se revelado espaos
privilegiados de experimentaes envolvendo o acoplamento tecno-orgnico, oferecendo a
oportunidade de reflexo acerca da importncia dos agenciamentos entre corpo e tecnologia
para os processos de subjetivao. Edmond Couchot chega a propor uma nova categoria, o
sujeito interfaceado, para designar o acoplamento do corpo humano a mundos virtuais
atravs de diferentes interfaces, de tal modo que o campo perceptivo se abre a experincias
inusitadas. Como ressalta Domingues:
O corpo e sua capacidade cognitiva conecta-se a bancos de dados eletrnicos e
sua capacidade de gerenciar e devolver sinais, ampliando as formas de sentir,
pensar, sonhar numa fuso do imaginrio humano com o imaginrio de mquinas.
Os sistemas artificiais com suas redes nervosas de silcio alimentam os sistemas
biolgicos e geram situaes inimaginveis. (2002, p. 28).
Uma dessas estranhas situaes a corporeidade partilhada no ciberespao
apresentada pela antroploga Paula Sibilia, ao comentar a obra do artista Eduardo Kac:
Kac destaca a possibilidade de duas pessoas geograficamente distantes
experimentarem juntas, no mesmo corpo, um espao remoto inventado a partir de
uma outra perspectiva que no as suas prprias, suspendendo temporariamente a
base de sua identidade, a localizao geogrfica e a presena fsica (SIBILIA,
2002, p. 57).
Domingues (2002) prope uma noo para definir tais experincias de
agenciamento entre corpo e tecnologia: o sentir ps-biolgico, em que ocorre uma
alterao do campo sensrio-perceptivo e podemos conectar idias, crenas, valores e
emoes em estados em que o corpo est amalgamado com as estruturas de silcio
(op.cit., p. 30). As consideraes de Roy Ascott acerca de seu corpo novo, estendido
pelas redes teleinformticas, podem ser tomadas como ilustrativas desta forma diferenciada
de sentir:
medida que interajo com a Rede, reconfiguro a mim mesmo; minha extenso
rede me define exatamente como meu corpo material me definiu na velha cultura
biolgica; no tenho peso, nem dimenso em qualquer sentido exato, sou medido
pela minha conectividade (apud Sibilia, 2002, p.57).
Vale ressaltar que no apenas os corpos so modificados a partir de tais
experincias. Assim como os corpos se tecnologizam no acoplamento com ambientes
virtuais, as tecnologias naturalizam-se, pois incorporam sinais biolgicos durante as
interaes, tornando ainda mais indiscernveis os limites entre o biolgico e o tecnolgico.
c) Explorando a dimenso ntima/intencional
Se nas dimenses cognitiva e orgnica a confuso de fronteiras um fato, seria a
esfera intencional volitiva ou desejante o locus onde o mnimo homem ainda resiste?
Bruno Latour (1996, 2001) quem permite problematizar tambm esse espao
ntimo com argumentos que privilegiam o agenciamento em detrimento da simulao.
Para tanto, apresenta suas reflexes acerca da relao entre o humano e os objetos-tcnicos
com os quais, atravs do que denomina delegao, partilhamos no apenas nossas
capacidades cognitivas, mas, sobretudo, nossa responsabilidade moral. Latour parte do
exemplo do quebra-molas, objeto feito de concreto que utilizado para que o motorista
reduza sua velocidade em reas especficas, como nos campi das universidades, por
exemplo, onde a responsabilidade moral do motorista para com os estudantes que ali
transitam por vezes no suficiente para fazer com que ele dirija mais devagar. Assim,
quando em seu percurso o motorista diminui a velocidade diante de um quebra-molas,
possvel dizer que a ao dele; mas se pode igualmente afirmar que o quebra-molas
operou um desvio uma traduo em minha inteno original e modificou meu
comportamento. Latour conclui afirmando que o sujeito realizou uma ao moral o
cuidado com a vida de outros partilhando sua moralidade com um objeto tcnico. Outros
exemplos incluem os cintos de segurana ou os despertadores:
O que o cinto de segurana faz lembrar-lhe fisicamente o compromisso que voc
assumiu antes ao coloc-lo. De certo modo, ele o protege contra voc mesmo. Assim
como o despertador lhe recorda o contrato que voc fez na vspera consigo mesmo,
mas que voc se arrisca a esquecer no dia seguinte se estiver muito cansado, pode-
se dizer que o despertador e o cinto de segurana so delegaes parciais de sua
moralidade: de certo modo, voc manda uma parte de si mesmo para um outro
tempo (a manh do dia seguinte, no caso do despertador) ou um outro estado da
matria (com o cinto de segurana, em caso de uma freada brutal) (LATOUR,
1996, pp.162-163).
As anlises acerca das aes dos agentes sociais nas redes de informao so,
igualmente, instigantes para explorarmos a questo da partilha scio-tcnica de nossa
intencionalidade (JOHNSON, 2001). Um agente tambm denominado knowbot uma
espcie de software, criado como intermedirio entre o usurio e os mecanismos de busca a
fim de no apenas agilizar nosso acesso informao em virtude do excesso que circula
na rede mas, principalmente, auxiliar-nos a melhor saber o que estamos procurando.
Acrescentando, por freqncia, outras palavras s palavras-chave iniciais, constri um
mapa que estimula a continuar navegando e orienta a navegao (VAZ, 2002, p.6). Os
agentes sociais, por habitarem a rede, constrem suas aes a partir das aes dos usurios,
detectando padres de preferncia, fazendo sugestes a eles a partir de tais deteces e,
inclusive, aprendendo a partir das recusas e aceitaes pelo usurio das recomendaes
que props. O interessante, aqui, so as inflexes que os agentes podem produzir em nossos
movimentos na rede, afetando, inclusive, nossos interesses de pesquisa, conforme nos relata
Vaz em seu artigo sobre os agentes em rede a partir de suas experincias na livraria virtual
Amazon Books:
a interao com o agente social, creio, infletiu diversas vezes o rumo de minhas
pesquisas. Num mundo onde a diviso disciplinar est em crise, este agente
especialmente eficaz, pois no respeita fronteiras (...). tambm eficaz na
pesquisa de campos de conhecimento dinmicos, onde ningum pode saber tudo o
que est sendo publicado de interessante (VAZ, 2002, P.11).
Mais adiante, refletindo sobre sua prpria experincia como pesquisador, continua o
autor:
Embora continuasse comprando livros sobre a Internet, estava particularmente
entediado com a repetio de argumentos (...). Eis que meu agente indica o
Interface Culture, do Steve Jonhson. No estava diante apenas de algum
argumento novo; consegui conectar uma srie de estudos que ainda se
apresentavam dispersos (...) Este artigo sobre os agentes resultou do denodo de
meu agente social. A descrio algo apologtica de seu trabalho deve ser
gratido (p.11).
Associando as reflexes do autor com as de Latour, somos levados a indagar se
estaramos diante de um novo modo de conceber a vontade, ou o desejo, agora partilhado
com os objetos tcnicos, que nos parecem dotados de uma estranha intencionalidade,
como se ultrapassassem nossa prpria inteno ao produzi-lo e assumissem uma espcie de
autonomia. Argumentamos, uma vez mais, pela necessidade de se pensar no a partir da
lgica da simulao que buscaria identificar em que medida a inteligncia dos agentes
pode ser comparada nossa prpria ou se sua ao pode ser interpretada como um ato de
vontade , mas a partir da potncia dos agenciamentos, em que os coletivos configuram
um espao ambguo onde sociedade e tecnologia, humano e no-humano misturam-se e
diferenciam-se, certo, porm no mais por caractersticas intrnsecas. Nesta rede de
mltiplas conexes possveis, os objetos tcnicos so capazes de surpreender e desviar
nossa inteno, de modo a nos percebermos radicalmente transformados por nossas
prprias transformaes.
Encontramos tambm em Michel Serres uma concepo semelhante das relaes
entre humanos e objetos tcnicos, que ele denomina quase-sujeitos, qualificando-os como
atores que produzem diferena nas redes scio-tcnicas. Argumenta Serres que este objetos
pensam junto com os humanos, entre os humanos e, por vezes, no lugar dos humanos. Sua
descrio da relao do jogador com a bola , a esse respeito, exemplar:
- Veja aqueles garotos jogando bola: os desajeitados tomam a bola como um
objeto, enquanto os mais espertos servem-na como se ela lhes fosse superior; eles
se adaptam aos passos e recuos. Acreditamos que sujeitos manipulam esta bola
inflada; puro engano ela traa suas relaes. Para seguir sua trajetria que a
equipe se cria, se conhece, se apresenta. Sim, ativa, a bola joga (SERRES, 1995,
p. 48).
CONSIDERAES FINAIS
Em movimentos mltiplos que levaram do humano aos objetos tcnicos e,
inversamente, destes ao humano, buscamos problematizar a separao entre sociedade e
tecnologia, e propor um ngulo de anlise em que a tcnica deixa de ser o que afronta a
sociedade para participar de um modo que estamos comeando a explorar de nossa
prpria configurao. Assim, pensar a partir dos coletivos, do que nos liga aos no-
humanos, tem por objetivo estratgico abrir espao para que possamos problematizar nossa
prpria constituio enquanto sujeitos, enquanto humanos e transformao, na medida
em que somos transformados por aquilo que apreendemos.
Estas reflexes nos levam, neste momento de concluso, ao encontro dos trabalhos
de Michel Foucault acerca dos processos de subjetivao (FOUCAULT, 1997; DELEUZE,
1988; 1992a; 1992b), em que ele nos alerta que ser sujeito pode ser uma experincia de
enclausuramento, em que nos tornamos assujeitados, mas que pode igualmente envolver
a potencialidade (arriscada, certo) do acontecimento, quando temos a chance de nos
individuarmos diferentemente e fazer de nossas vidas uma criao, uma obra de arte.
Um dos argumentos centrais deste trabalho de que, na Atualidade, a subjetivao
como assujeitamento ou como criao passa pelo interfaceamento com o no-humano
tecnolgico, o que implica uma redefinio de nossa humanidade, de nossos contornos
subjetivos. O que procuramos evidenciar e isto que nos parece decisivo que,
enquanto a lgica da simulao e a busca do mnimo homem podem nos fazer refns do
assujeitamento, a aposta nos agenciamentos sciotcnicos e na hibridao pode oferecer
uma possibilidade nica de reinventarmos nossas vidas o que coloca, de imediato, a
questo: o que podemos ser?
Parece interessante e, igualmente assustadora a concluso de que, no espao
hoje aberto s possibilidades de subjetivao, no haja necessidade de conceitu-las como
algo privilegiadamente humano, na medida em que no existem fronteiras fixas e
necessrias entre o homem e o animal, o homem e a mquina, o macho e a fmea e que a
prpria natureza um terreno artificial aberto a todas as novas mutaes e misturas, a
todos os hibridismos (HARDT & NAGRI, 2001, p.235).
Retomar a metfora do ciborgue, criada por Donna Haraway (2000) e utilizada por
outros pesquisadores no mbito da sociologia (LAW, 2001; LAW & URRY, 2002) e da
antropologia (SILVA, 2000a, 2000b; DONALD, 2000), pode nos permitir avanar nesta
questo. Os ciborgues seres hbridos de humano e no-humano, de natureza, cultura e
artifcio podem ser concebidos como uma rede de agenciamentos, simultaneamente
individual e coletivo, e que nos habilita a problematizar que estamos dentro daquilo que
fazemos e o que fazemos est dentro de ns. Com eles, podemos estrategicamente
perguntar:
Quando aquilo que supostamente animado se v profunda e radicalmente
afetado, hora de perguntar: qual mesmo a natureza daquilo que anima o que
animado? no confronto com clones, ciborgues e outros hbridos tecnoculturais
que a humanidade de nossa subjetividade se v colocada em questo (...).
Ironicamente, a existncia do ciborgue no nos intima a perguntar sobre a
natureza das mquinas, mas, muito mais perigosamente, sobre a natureza do
humano: quem somos ns? (SILVA, 2000a, pp 12-13)
Como resposta provisria a esta questo, possvel afirmar que vivemos e somos
um mundo de interconexes, muito embora nossa tarefa de explorar o alcance de tais
consideraes esteja apenas se iniciando. No se trata, certamente, de uma tarefa fcil.
Talvez toda essa reflexo acerca da sociedade em que vivemos e do que estamos nos
tornando, envolva, como j tivemos a oportunidade de expressar (PEDRO, 1999), uma
aventura arriscada e instvel, agenciamentos coletivos dos quais no sabemos de antemo
como iremos sair ou quais os desdobramentos de nossa transformao.
Para concluir, diramos, como Michel Serres (1999), que estamos imersos numa
espcie de oceano de possveis, cujo alcance e direo no podemos saber de antemo, e
no qual estamos aprendendo a navegar. Sendo assim, pouco nos valem atitudes de adeso
ingnua s proezas tecnolgicas seja porque elas realizaro as aspiraes humanas ou
porque nos brindaro com teorias sempre renovadas acerca do sujeito que somos e da
sociedade em que vivemos - ou de rejeio sistemtica ao que a tecnologia possibilita
por se crer na posse da verdade ou da realidade que ela estaria obscurecendo ou pelo temor
de que nossos projetos nos ultrapassem e dominem. O decisivo parece estar justamente na
recusa oposio entre tecnologia e experincia, a fim de tentarmos compreender a
singularidade de nossa sociedade tecnolgica e as mudanas nas relaes que podemos
estabelecer com o mundo e com os outros para, a partir da, ensaiarmos novas
possibilidades ainda no dadas de ser e de viver. As palavras de Gilles Deleuze so
aquelas que eu gostaria de deixar para reflexo:
Pode ocorrer que as foras do homem entrem na composio de uma forma no-
humana, mas animal, ou divina (...) Hoje comum dizermos que o homem
enfrenta novas foras: o silcio e no mais simplesmente o carbono, o cosmos e
no mais o mundo ... Por que a forma composta seria ainda o Homem ? Se o
homem foi uma maneira de aprisionar a vida, no seria necessrio que, sob uma
outra forma, a vida se libere no prprio homem ? (DELEUZE, 1992c, p. 114)5.
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5 Esta citao tambm utilizada na concluso do livro de Paula Sibilia (op.cit.), onde a autora reflete sobre o
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