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O jogo retórico nos sermões do advento, do padre António Vieira
Claudia Letícia Pivetti de Carli (UFFS)
Resumo: A Retórica Aristotélica era utilizada, principalmente no século XVII, pela eloquência
religiosa. Uma das figuras que mais empregou o mecanismo da retórica foi o Padre António
Vieira. Considerado um dos maiores representantes da cultura luso-brasileira, António Vieira,
jesuíta da Companhia de Jesus, um dos articuladores do sebastianismo, fez missões no Brasil
e lutou pelas causas dos índios e de Portugal. Este artigo apresenta um estudo retórico nos
Sermões do Advento do Padre António Vieira, escritos e pregados em 1650, e inseridos na
segunda fase da vida do Vieira, que, segundo João Lúcio de Azevedo, refere-se ao padre
“político”. Tal análise faz parte do projeto de pesquisa intitulado: "A lógica arquitetônica nos
sermões de António Vieira" e utilizará como fundamentação teórica textos como “O discurso
engenhoso”, de António José Saraiva, e “Teatro do sacramento”, de Alcir Pécora. Da mesma
forma, pelo estudo da Retórica, serão analisados os quatro “juízos” que Vieira, através das
palavras, utiliza como argumentos nos Sermões do Advento para persuadir os leitores.
Palavras-chave: Padre António Vieira; Retórica; Aristóteles; Sermão do Advento.
Resúmen: La Retórica Aristotélica era utilizada, principalmente en siglo XVII, por la elocuencia
religiosa. Una de las personalidades que más empleó el mecanismo de la retórica fue el Padre António
Vieira. Considerado uno de los mayores representantes de la cultura luso-brasileña, António Vieira,
jesuita de la Compañia de Jesús, uno de los articuladores del sebastianismo, hizo misiones en Brasil y
luchó por las causas de los indios y Portugal. Este artículo presenta un estudio retórico en los Sermones
del Advenimiento del Padre António Vieira, escrito y clavado en 1650, y insertó en la segunda fase de
la vida del Vieira, que, segundo João Lúcio de Azevedo, se refiere al padre “político”. Tal análisis hace
parte de lo proyecto de investigación denominado: “La lógica arquitectónica en los sermones de
António Vieira” y utilizará cómo base teórica texto cómo “Lo Discurso Ingenioso”, de António José
Saraiva, y “Teatro del Sacramento”, de Alcir Pécora. Del mismo modo, por el estudio de la Retórica,
serán estudiados los cuatros “juicios” que Vieira, a través de las palabras, utiliza cómo
argumentos en los Sermones del Advenimiento para persuadir los lectores.
Palabras-Clave: Padre António Vieira; Retórica; Aristóteles; Sermón del Advenimiento
Introdução
Padre António Vieira possuía uma preocupação com a absorção e aceitação dos seus
argumentos pelos ouvintes-leitores de sua época, século XVII, até os dias de hoje. Cada palavra
que Vieira usava em seus sermões portava uma forte significação, não era dita por dizer, pois
o padre desdobra-a, como se estivesse fazendo uma anatomia da palavra. Fazendo esse jogo,
consegue costurá-las com outras ideias e verbos. Logo essa palavra deixa de ser somente letras,
passa a ter um sentido, segundo António José Saraiva (1980) é mutável e imprevisível, sempre
se metamorfoseando.
Seu discurso é conhecido como “engenhoso” pela estrutura que António Vieira
trabalhava, pois cada premissa, exemplos que ilustram seus argumentos, são engrenagens para
fazer com que seu engenho funcione.
A palavra “engenhoso” me parece muito própria para indicar o gênero do
discurso de que tratarei aqui. No sentido em que emprego, é uma palavra
muito freqüente no século XVII em Portugal, na Espanha e na Itália. O Pe.
Bouhours, um dos teóricos do discurso “clássico”, a usou, a seu modo, para
caracterizar especialmente a maneira de expressão que condenava nos
italianos e espanhóis, chamados, hoje, por nós, de “barrocos”. (SARAIVA,
1980, p. 8).
António Vieira escolhe premissas coerentes para obter conclusões corretas e assim seus
argumentos geram lógica e uma possível aceitação dos seus ouvintes-leitores, mas também
utiliza o jogo retórico, através das palavras, para o convencimento dos receptores com suas
razões. “Não há nele palavras átonas, indiferentes e languescentes. Cada uma parece ocupar o
lugar que lhe é próprio, como em estado de alerta.” (cf. SARAIVA, 1980, p. 9).
Em muitos sermões, o padre utiliza a etimologia e a alegoria para explicação de suas
ideias, usa do conhecimento físico de mundo para exemplificar seus argumentos. Segundo
Saraiva (1980, p. 88) o texto do Vieira é uma leitura e uma explicação, pois com argumentos
ligados à textos profanos, exemplos da Natureza e também da História, formam um contexto
próprio que se explicam entre si. Os textos de António Vieira possuem um forte conhecimento
de inteligência espontânea e uma profunda imersão nos acontecimentos, nos temas e no
contexto que o jesuíta produz os seus textos (cf. Pécora, 1944, p. 39). E é por isso que seus
sermões são os mais temíveis e desejados até os dias de hoje.
A Retórica Aristotélica foi muito utilizada pelos eloquentes religiosos do século XVII,
mas desde seu surgimento, com os sofistas, ela é aplicada em diversos casos. Aristóteles,
filósofo grego, estudou sobre o discurso e escreveu dois tratados: a Arte Poética e a Arte
Retórica. Para o grego a definição de Retórica seria "a capacidade de descobrir o que é
adequado a cada caso com o fim de persuadir", e dividiu sua obra em três livros: a) o primeiro
sendo livro do emissor da mensagem; b) o segundo sendo livro do receptor da mensagem; c)
o terceiro sendo livro da mensagem.
Segundo Lausberg (2011) a elaboração do discurso se compõe em 5 fases, que são: o
invention (a invenção do que dizer); o dispositio (ordenação dos argumentos); elocutio (estilo,
a enunciação); memoria (associação dos “arquivos” do orador com do ouvinte); pronuntiatio
(entrega do discurso).
O foco do artigo será no dispositio do discurso nos Sermões do Advento do Padre
António Vieira, como jesuíta organizou suas ideias. Mas antes é necessário entender a
composição do dispositio, ou seja, entender suas etapas que compõem o discurso: o exórdio, a
parte que introduz o assunto; a narração, é a apresentação do assunto, porém fundamentado
com a evidência da tese; a prova, apresentação das prova, da confirmação para sustentação da
tese; o epílogo, dispor o ouvinte a um comportamento emocional.
No Advento, os cristãos apelam pela penitência e fazem reflexões sobre a
fragilidade humana, o arrependimento, a misericórdia divina e a esperança pela vida eterna (cf.
MARQUES, 2014, p. 50). Com o pensamento sobre o “fim do mundo”, “a vinda de Jesus para
salvação”, “o Juízo Final” é que se constrói os Sermões do Advento do António Vieira. Foi
pregado na Capela Real em 1650, em uma época em que Portugal passava por graves problemas
internos, com conspiradores e espiões infiltrados na capital do país, etc. Na dispositio dos
sermões, Vieira teve como objetivo “[...] ressumar o mesmo espírito dos insistentes temas
barrocos sobre a precariedade da vida, a imprevisibilidade da morte e a certeza cristã de um
rigoroso juízo divino, ditando a inapelável perdição ou salvação eterna.” (ibidem, p. 51). Para
que esse objetivo ocorresse foi necessário que os ouvintes/leitores encaixassem os
acontecimentos da época com o exame de consciência para se arrependerem de seus erros e
assim mudarem suas condutas morais. Da mesma forma que o próprio Vieira exigia-se que
antes de pregar algo era necessário olhar para seu “interior psicológico” e saber sobre quem era
e como executava seus deveres como pregador e humano (cf. ibidem, p. 51).
1 António Vieira e os sermões do advento (1650)
1.1. A primeira dominga
António Vieira elimina o exórdio e inicia com a matéria do discurso, dizendo sobre a
passagem do Evangelho de S. Lucas que relata sobre Cristo em relação ao juízo universal. Essa
matéria tem um cunho moral e doutrinário, pois era dessa forma que os padres pregavam suas
ideias e assim o objetivo de convencimento da população. São Jerônimo disse “Levantai-vos
mortos, e vinde a Juízo” (VIEIRA, 2014, p. 150), o juízo não só virá para os vivos, mas para
os mortos também.
Para o Pe. é melhor chorar e se arrepender dos pecados agora do que fazer tudo depois,
porque não haverá misericórdia para as lágrimas e nem perdão para os arrependimento. “Agora
vivemos como queremos; e ainda mal porque depois havemos de ressuscitar como não
queremos” (ibidem, p. 150). A primeira consideração que Vieira faz no seu discurso é pessoas
que foram bem nascidas, mas que no juízo será mal ressuscitada, pois na ressurreição natural
cada um ressuscita da forma como nasceu e na ressurreição sobrenatural cada um ressuscita
como viveu. Um exemplo para esse argumento é sobre Pedro, uma vez que “na ressurreição
nasce Pedro, e ressuscita Pedro; na ressurreição sobrenatural nasce pescador, e ressuscita
Príncipe.” (ibidem, p. 150). É nesse sentido que o jesuíta explica o cunho moral de que Deus
não é injusto com aqueles que nascem sem riqueza, mas são humildes, pessoas boas, porém é
justo com aqueles que possuem fortuna, mas são de má fé.
Dando continuidade com a narração, explica o que ocorrerá no julgamento final. No
julgamento todos terão a mesma “medida”, ou seja, todos serão julgados da mesma forma, não
importa o seu status e sim as suas obras. Perante isso, o Pe. diz que serão colocados no mesmo
lugar, juntos, nessa ordem: a) os Papas; b) Imperadores; c) os Reis; d) os Bispos; e) os
Religiosos; f) os demais. Aqui o Vieira compara a situação que estava ocorrendo em Portugal
naquela época, pois muitas dioceses estavam sem pastores. E assim todos serão divididos, em
seus estados no mundo, entre os bons e os maus.
Terminado de explicar a fase da separação, António Vieira inicia a análise das
consciências, como se fizesse uma anatomia minuciosa e diz sobre os dois pecados “mais
terríveis do mundo”: de omissão e de consequência. Utiliza os príncipes e ministros como
exemplos dos pecados, pois será pedido para ambos do que fizeram e do que deixaram de fazer,
e por conta disso serão todos condenados pelo que não fizeram e muitos pelo que fizeram.
Pecado de omissão advém da impenitência final, pois “por uma omissão perde-se uma
inspiração, por uma inspiração perde-se um auxílio, por um auxílio perde-se uma contrição,
por uma contrição perde-se uma Alma.” (cf. ibidem, p. 162). Para o Padre António Vieira:
A omissão é o pecado que com mais facilidade se comete, e com mais
dificuldade se conhece: e o que facilmente se comete, e dificilmente se
conhece, raramente se emenda. A omissão é um pecado que se faz não
fazendo: e pecado que nunca é má obra, e algumas vezes pode ser obra boa,
ainda os muito escrupulosos vivem muito arriscados em este pecado. (ibidem,
p. 163).
Para provar sobre esse pecado, cita sobre o Profeta Elias enquanto no deserto, estando
em uma cova, Deus lhe perguntou do por que estava ali, e Elias diz que ele estava ali na cova,
distante do mundo, que estava se disciplinando. Mas Deus não lhe deu essa função, pois o que
Elias estava fazendo era devoção, mas não sua obrigação que era de andar na Corte, estar
emendando a Terra. Então Elias enquanto salvava sua Alma, perdia muitas, deixou de fazer
sua obrigação de salvar as demais almas e ficou na ignorância de salvar a sua. “Os menos maus
perdem-se pelo que fazem; os piores perdem-se pelo que deixam de fazer, [...] por omissões,
por negligências, por descuidos, por desatenções, por divertimentos, por vagares, por dilações,
por eternidades.” (idem, ibidem).
O segundo pecado se dá pela consequência, porque “há pecados que acabam em si
mesmo; há outros que [...] ainda duram em suas consequências.” Sobre esse pecado, Vieira
emprega sobre as metáforas de Jó1: “Considerastes, Senhor, as pegadas de meus pés”. Ou seja,
o que fica são as pegadas e os passos passam, então Deus não só pedirá conta dos pecados, mas
senão das consequências desses pecados. Vieira novamente remete à prova para explicar sobre
essa metáfora usando o exemplo de Zaqueu, quando roubou de alguns indivíduos. Pois o autor
do roubo é obrigado a pagar o valor que tomou para si, mas também é obrigado a pagar do que
perdeu a vítima e o que nem chegou a obter.
O Pe. também cita sobre as consequências dos votos nas eleições para vice-reis,
ministros, generais, governadores, generais e etc. E os que mais protestam pelas más escolhas
são os pobres, as viúvas e os órfãos e eles são os mais inocentes. E por causa dessas eleições
“injustas” ficam a:
República mal servida; os bons escandalizados; os Príncipes murmurados; o
governo odiado; o mesmo Conselho, em que assistis, ou presidis, infamado;
o merecimento sem esperança; o prémio sem justiça; o descontentamento com
1 [Jó 13, 27]
desculpa; Deus ofendido, o Rei enganado, a Pátria destruída. (ibidem, pp.
166-167).
E por fim, seu epílogo inicia dizendo:
Todo o homem, que é causa gravemente culpável de algum dano grave, se o
não restitui, quando pode, não se pode salvar: todos, ou quase todos os que
governam são causas gravemente culpáveis de graves danos, e nenhum, ou
quase nenhum restitui o que pode; logo nenhum, ou quase nenhum dos que
governam se pode salvar. (ibidem, pp. 168-169).
E termina com Cristo após tomar conta de todos os humanos, olha para Sua mão direita
e entrega-lhe seu Reino para os bem-aventurados e para aqueles à Sua esquerda os mandará
para o Inferno.
1.2. A segunda dominga
Como disse no sermão anterior, sobre a existência do Juízo final e de que Deus é justo
com os bons e condena os maus, usará de referência, neste sermão, à prisão de João Batista2.
Com essa referência, procurou mostrar o quanto é “temeroso, rigoroso” o Juízo dos homens
para com os outros. Para provar o quanto esse juízo é temível, mostrará 5 razões, e a partir
dessas razões, o pregador mescla a narração e a prova do discurso.
A primeira razão: Deus julga com o entendimento, os homens julgam com a vontade.
Segundo António Vieira, quem julga com o entendimento tanto pode julgar bem quanto julgar
mal, mas quem somente julga com a vontade, não julga bem. “Porque quem julga com o
entendimento, se entende mal, julga mal, se entende bem, julga bem. Porém quem julga com a
vontade, ou queira mal, ou queira bem, sempre julga mal: se quer mal, julga como apaixonado,
se quer bem, julga como cego.” (ibidem, p. 205). E para obter um juízo perfeito é necessário
da ciência, da justiça e do poder, pois respectivamente, a ciência é para examinar o juízo, a
justiça é para julgar o juízo e o poder para executar o juízo.
No julgamento de Deus tanto o entendimento quanto a vontade dividem as funções,
logo o entendimento é que julga e a vontade é que dá. Diferente do julgamento dos homens, o
entendimento não possui um ofício, então a vontade é que dá e julga. E por isso que o Juízo
dos homens são mais assustadores do que de Deus. E para comprovar que o juízo dos homens
2 [Mt 11]
julga com a vontade, Vieira mostra o julgamento de Cristo perante Pilatos. Onde Pilatos depois
de examinado as testemunhas, as acusações, declarou Cristo como inocente. Porém logo após
levaram Cristo ao Calvário e pregaram-no na Cruz e colocaram nela “a causa escrita”3. Mas o
pregador se questiona do porque puseram a escrita na cruz se Pilatos não achou causa. E a
resposta que encontrou foi no Evangelho de São Lucas4, onde Pilatos após declarar inocência
de Jesus, cedeu as acusações para o juízo da vontade dos Príncipes Sacerdotes5 e da população
que estavam no julgamento. Então como Jesus foi julgado na vontade dos homens, assim
acharam a causa e crucificaram o Nazareno. “[...] o entendimento acha o que há, a vontade
acha o que quer.” (ibidem, p. 207).
A segunda razão: No juízo de Deus basta o testemunho da própria consciência, no dos
homens a vontade prevalece. Nessa razão, Vieira diz que todos podem acusar de algo, tanto
Deus, homens, Demônios, o mundo todo, porém se sua consciência não vos acusa, então estará
tranquilo rindo de todos. No julgamento dos homens é diferente, pois podem ter a consciência
mais limpa, inocente, mas se uma pessoa invejosa, mal informada, injusta, irá te julgar igual
mesmo sabendo de sua inocência, ou seja, nada adianta as defesas do coração se a vontade de
julgar é a que prevalece. “Oh desgraçada sorte a do coração humano! Poder ser julgado dos
homens para a culpa, e não poder ser visto dos homens para a defesa!” (ibidem, p. 209).
A terceira razão: No juízo de Deus, o que nos defendem são nossas obras, no juízo dos
homens as nossas obras são nossas maiores inimigas. O jesuíta inicia essa razão com o
exemplo de Abel sendo julgado por Caim, e a causa desse julgamento foi de Abel ser o melhor
para Deus. Outro exemplo seria de Saul sentenciar Davi muitas vezes a morte por Davi ser o
mais valente que Saul. Então Davi quis que Deus o julgasse e não os homens, porque “no juízo
de Deus perdoam-se os pecados como fraqueza; no juízo dos homens, castigam-se as valentias
como pecados.” (ibidem, p. 210).
A quarta razão: Deus julga o que conhece, os homens o que não conhece. Nesta razão
além dos homens julgarem as obras que veem e as palavras que escutam, também julgam os
pensamentos mais íntimos. Esse julgamento será tanto bem quanto mal, pois julgarão
pensamentos que nem se quer conhecem e muitas vezes nem se passam pela mente. A diferença
do julgamento de Deus, o pensamento necessita existir, podem ser bons ou maus, porém ele
tem que consentir. Porém na dos homens não é necessário o consentimento do pensamento,
3 [Mt, 27, 37] “Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus”. 4 [Lc 23, 1.25]
5 Eram a classe dominante dos sacerdotes daquela época, os mais próximos de Pilatos.
nem que seja bom ou mau, e nem que exista o pensamento. O exemplo que Vieira nos mostra
é dos irmão de José no Egito. Os irmão aparecem para José e logo depois que disseram quem
eram e o que faziam lá, José os julgou mal e mandou prender os irmãos. A “desculpa” para
prender os irmãos foi: “Sois espias, vindes a explorar os Reinos de Faraó, meu Senhor”6. José
prendeu os irmãos sabendo quem eram, e nem passou pela mente dos irmãos que seriam presos.
Pois os homens julgam, condenam pelo que nem os inocentes imaginam.
A quinta razão: No juízo de Deus, a sentença é dita no juízo final; e no dos homens,
não se espera pelo fim para julgar. O pregador inicia com a parábola do proprietário que
observa a cizânia (joio) crescer no meio de sua plantação, e Deus pede para deixar crescer e
amadurecer para depois separar o trigo do joio. Entre os homens isso não ocorre, pois “[...]
regulam os fins pelos princípios” (cf. ibidem, p. 215), pois muito o que acontece na vida não
só depende da vontade própria dos indivíduos. E nem sempre os bons princípios causam bons
fins e Vieira cita Judas e os ladrões como exemplo. Em Judas os princípios começaram bem,
mas seguiram-se maus fins, e do mau ladrão os princípios começaram maus e acabaram mau,
do bom ladrão começaram maus e acabaram bons fins. “Por isso quem quiser julgar bem há de
aguardar pelos fins” (ibidem, p. 215). Logo que no juízo de Deus só se julgue no final, pois
ainda existirá possibilidade do indivíduo se emendar. Outro ponto que o jesuíta deixa explícito
é sobre o juízo final ocorrerá somente um dia e no vale de Josafá, no juízo dos homens não
importa o dia, todos os dias julgam e independente do local. Deus não julgará antes do homem
adquirir a razão, ou seja, antes de saber entender suas ações; os homens julgam bem antes disso.
Segundo Vieira (2014, p. 221), “Deus julga a cada um pelo que é, os homens julgam a
cada um pelo que são. Deus julga-nos a nós por nós; os homens julgam-nos a nós por si”. Para
finalizar o sermão, o padre ressalta que para ser bem julgado no juízo de Deus é necessário que
sejas bom, e para ser bem julgado no juízo dos homens, ninguém deve ser mau, todos devem
ser inocentes. Por isso que, para Vieira, esse é o pior juízo.
1.3. A terceira dominga
O pregador inicia seu exórdio mencionando as palavras propostas pelos Sacerdotes, que
fizeram ao João Batista: Tu quis es? Quid dicis de te ipso?7 Com esse relato, a tese a ser
6 [Gn 42, 9]
7 [Jo 1, 19.22] Quem és tu? Que dizes de ti mesmo? (NT)
trabalhada nesse sermão é o “Juízo de cada um para consigo”. Conforme o padre (2014, p.
247), essa matéria é gravíssima e de maior importância em qualquer parte do mundo.
Quando os homens testemunham de si, enganam-se por dois motivos: primeiro no que
são e segundo no que dizem de si. Pois dizem mais do que são e são bem diferentes do que
dizem que são: “[...] todo homem mente duas vezes, uma vez mente-se a si, e outra vez mente-
nos a nós: mente-se a si, porque sempre cuida mais do que é; mente-nos a nós, porque sempre
diz mais do que cuida.” (cf. ibidem, p. 247).
Como prova do seu argumento, o padre utilizou o exemplo do velho Tobias8. O Anjo
Rafael falou com o Tobias em traje de caminhante, e antes de Tobias entregar seu filho ao
Anjo, fez-lhe uma pergunta: “De que família és?”, então o Anjo respondeu que era Azarias,
filho de Ananias, o Magno. Porém anjos não possuem pais, filhos, e assim não podem mentir,
mas como o Anjo Rafael disse que era filho de Ananias?. E Vieira responde de uma forma bem
simples e clara, pois o Anjo não era homem, estava se fazendo de homem e assim falou com
Tobias como um homem, logo não mentiu. O Anjo Rafael só fez o que os homens fazem, dizem
serem uma coisa, mas são outra (cf. ibidem, p. 249).
Para António Vieira, os homens tem que se contentar com o que são e crescer dentro de
suas esferas, não quererem ser outro e esquecerem de quem são, visto que “[...] nenhum se
contenta com crescer dentro da sua espécie” (cf. ibidem, p. 253). O que era mais importante
para o jesuíta pretendia com esse sermão era fazer com que cada ouvinte/leitor conhecesse
quem era, Tu quis es, e o que define quem és são suas ações, e são elas que serão suas essências.
E para finalizar o sermão, o epílogo, Vieira afirma “As ações generosas, e não os pais
ilustres, são as que fazem fidalgos” (ibidem, p. 265), ou seja, cada indivíduo é suas ações, e
não é mais que elas e nem menos. Segundo o pregador, Batista não era o Messias e nem Elias,
mas é “Ego vox clamantis in deserto”9, é suas ações, é a voz que clama no deserto. Não importa
se és filho de fidalgos, o que importa são as suas ações e elas determinarão sua riqueza.
1.4. A quarta dominga
O exórdio deste sermão inicia quando o Pe. António Vieira fala sobre o quarto juízo e
engata junto a tese a ser defendida, que seria “o juízo dos três juízos”: o juízo de cada um para
8 [Tb 5, 11.16]
9 [Jo 1, 23] “Eu sou a voz daquele que clama no deserto” (NT)
consigo mesmo; o juízo dos homens para um com os outros; juízo de Deus para com os homens.
Pois, conforme Vieira (2014, p. 268) “vêm hoje chamados a juízo”. Esse sermão tem como o
Evangelho de S. João o principal tema, “que refere a pregação do Batista nas margens do rio
Jordão, o rio do juízo, anunciando o batismo de penitência para remissão dos pecados.”
(VIEIRA, 2014, p. 268).
As causas desses três juízos são, respectivamente, a apelação, o agravo e a suspeição,
pois cumprida a penitência, os esperam a revogação, o desprezo e a emenda. Importante
ressaltar que se os outros sermões foram dirigidos ao entendimento, esse será ao coração.
Nos sermões anteriores comentou sobre o juízo de Deus para com os homens, juízo dos
homens uns para os outros e juízo de cada um para consigo. Mas antes de começar a falar sobre
o quarto juízo, ele faz uma recapitulação dos sermões anteriores usando o exemplo de como
esses juízos comportam em um tribunal, neste caso o tribunal da Penitência.
A narração inicia-se pelo juízo de si mesmo, que perante a corte, entra com os olhos
tapados (vale ressaltar que Vieira compara a entrada deste juízo com o tribunal dos
Areopagitas10 em Atenas), pois não há juízo mais cego que esse. Para o jesuíta “a cegueira dos
olhos faz que não vejamos as coisas, a cegueira do amor-próprio faz que a vejamos diferentes
do que são: que é muito maior cegueira.” (ibidem, p. 270). O juízo da Penitência, em primeiro,
quer “voltando-nos os olhos de fora para dentro, para que nos vejam; ou virando-nos a nós
mesmos de dentro para fora, para que nos vejamos”, em segundo, põe-nos “a nós diante de nós,
como objeto diante do espelho, para que nos vejamos”, ou seja, é necessário que nos
reconhecemos quem somos e como somos. Para António Vieira somos vaidosos e
desvanecidos de nós mesmo, isso se dá por de não nos reconhecermos, saber quem somos. A
gravidade de nossos pecados que “tampam” nossos olhos e faz com que não nos conhecemos.
Com o início da narração, Vieira nos mostra a primeira prova do dispositio que é o
exemplo do Rei Davi, que ao lado das suas pinturas das suas aventuras guerreiras, mandou
pintar diversos quadros sobre suas “lastimosas histórias de seus pecados”. Diante dos quadros
de seus pecados, com suas meditações alcançou o conhecimento de si mesmo através de suas
vitórias, ou seja, Davi depois de observar tanto as obras de seus pecados, conheceu a si mesmo
10 São membros do Areópago que foram antigos supremos Tribunais de justiça de Atenas, encarregava-se
dos casos de religião e políticos, porém eram reconhecidos pelo senso de justiça e castidade.
e para Vieira, nós também conseguiremos saber quem somos se fazermos o mesmo que Davi
fez.
A partir do momento que o indivíduo se reconhece pelos seus erros e se arrepende, o
juízo de si mesmo é emendado, pois os nossos erros é quem diz sobre nós (cf. ibidem, p. 275).
O padre dá continuidade com a narração no momento que apresenta sobre o juízo dos
homens perante o tribunal da Penitência, que consigo traz “todos os sentidos, e com todas as
potências livres, e muito livres; porque com todas julga a todos” (cf. ibidem, p. 276). Esse juízo
é o mais adorado, temido e respeitado no mundo, pois só merece desprezo: aquele que procura
ser bem julgado por Deus, não dará atenção pelo julgamento dos homens. Aquele penitente
arrependido pouco faz caso da “opinião do mundo”. Novamente se remete a Davi como prova
para seus argumentos, pois após Davi estar arrependido, jamais se lembrou de seus pecados e
do que os homens diziam sobre esses pecados. Conforme Vieira:
Faça-se tudo o que for necessário à salvação, e digam os homens o que
quiserem. Que importa ser bem julgado dos homens, se vós não vos salvais?
E se vós vos salvais, que importa ser mal julgado dos homens? Eis aqui como
o juízo dos homens se despreza no juízo da Penitência. (ibidem, p. 282).
E é assim que o juízo dos homens se despreza, pois sabendo quem sois e como sois, não
tem porque dar-lhe ouvidos ao julgamento dos homens.
E dando continuidade com seus argumentos, diz sobre o último a se apresentar no
tribunal da Penitência, que foi o juízo de Deus, que será revogado no Juízo final, no último dia
do mundo. Entrará no Tribuna acompanhado com um majestoso aparato que o torna “horrível
e tremendo”, e traz consigo uma espada de dois gumes, a pena de sentido e a de dano. Com
isso, Deus possui o poder para condenar tanto corpos quanto espíritos. Nesse sentido, o que
fará a Penitência? Ela irá partir para o lado do coração em direção a Deus (penitência dá voltas
no coração) e tentar retirar a condenação desses indivíduos. Ou seja, tem dois lados o “Juízo
Final” e a “Penitência”, então o tribunal manda o indivíduo para o lado da Penitência, pois do
lado do juízo de Deus esse indivíduo não terá recursos para sua absolvição.
Com esses argumentos, Vieira retorna a nos provar por que a penitência é a nossa
salvação. O exemplo utilizado é “o maior exemplo que no mundo até hoje houve para
documentar” foi o de Jonas, quando pregou em Nínive a destruição da cidade, seria destruída
se a população não fizesse penitência por quarenta dias. Todos ouviram o pregão do profeta,
desde o Rei até o mais humilde dos habitantes, e se penitenciaram. Aqui está o exemplo de “o
que no juízo de Deus se sentenceia, no juízo da Penitência se revoga” (ibidem, p. 285). Então,
se no juízo final “Não é lícito apelar da justiça de Deus para Sua misericórdia; no juízo da
Penitência é lícito apelar da justiça de Deus” para o Seu perdão. No juízo de Deus será
condenado os pecadores pelos seus erros e no juízo da Penitência os erros serão condenados,
assim os errantes serão absoltos. Não adianta se arrepender dos seus erros e cometê-los
novamente, o certo é se arrepender e não cometer mais os mesmos erros. Por mais que a pessoa
é condenada, ela pode ser perdoada depois de um tempo mostrando seus arrependimentos.
E para finalizar, o epílogo inicia quando António Vieira diz sobre uma fala de Santo
Agostinho, que diz: “Si aliquando cur no modo?11”, ou seja, se um dia eu me arrependerei dos
erros, por que não hoje? Essa pergunta não tem resposta, nem mesmo os filósofos, os santos e
anjos sabem essa resposta. Mas, segundo Vieira, se não se arrepender agora, não irão se
arrepender depois. “Dê-me licença Santo Agostinho por trocar a pergunta,[...] Eu digo então:
Si no modo cur aliquando? Se não nos arrependermos agora, porque cuidamos que nos
havemos de converter depois?” (cf. ibidem, p. 288). Ou seja, se as razões que tendes não bastam
para se arrepender agora, como bastará para se arrepender depois? Foi o que ocorreu com Judas.
Nesse ponto, utilizou outra prova para a sustentação do discurso e convencer os
ouvintes/leitores das suas ideias morais. Judas disse: “maiores motivos do que eu tive para me
converter não são possíveis, porque tive o mesmo Cristo aos meus pés: pois se Cristo aos meus
pés não foi bastante motivo para me converter; não me fica que esperar, venha um laço.”
(ibidem, p. 285).
Para aqueles que deixam de se arrepender no fim da vida, têm-se arriscada a salvação,
porque dificilmente se salvam. Então, para Vieira, fazeis agora aquilo que dizeis que haveis de
fazer depois.
Conclusão
Os Sermões do Advento acabam sendo uma “unidade de quatro partes”, pois um
complementa o outro. Na Primeira Dominga, o Padre dá início sobre o tema que será discutido
no decorrer dos sermões, na Segunda e na Terceira ele mostra as consequências do primeiro
sermão, que são muito atuais no nosso cotidiano, e por último a Quarta Dominga que é a
conclusão do tema que foi trabalhado nos anteriores. É recorrente o aparecimento de certas
11 “Se (o farei) um dia mais tarde, porque não já?” (NT)
frases nos sermões, pois é uma forma de complementar o sentido da frase e deixar mais
convincente o discurso do Padre, para o convencimento do leitor/ouvinte. E assim é o jogo
retórico do António Vieira.
O jesuíta não utilizou as fases da Retórica Aristotélica na ordem como foi postulado por
Aristóteles, pois como visto no sermão da Primeira Dominga ele não começa com o exórdio e
sim com a narração juntamente com a tese. A todo momento ele articula as provas com a
narração para deixar deixar bem explicativo o seu discurso e conseguir alcançar seu objetivo,
o convencimento dos ouvintes/leitores.
Em todos seus sermões, não somente dos Adventos, o padre busca uma “manifestação
divina” em seus auditores, a retórica e a estética acabam sendo mais um efeito e multiplicação
dessas “manifestações”, são a partir delas que o luso-brasileiro tenta alcançar o seu objetivo.
Conforme Pécora (1944, p. 42) é impossível fazer uma análise mais profunda da retórica nos
sermões do padre se não examinar o valor do divino que tanto Vieira discute. Não é cabível
falar sobre a retórica em seus sermões se não entender cada premissa, cada exemplos, cada
engrenagem que seu discurso necessita para funcionar.
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