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ANA CLAUDIA MARTINS DOS SANTOS
O EXÉRCITO NAS FRONTEIRAS DO IMPÉRIO:
MOBILIZAÇÃO MILITAR E DEFESA DA PROVÍNCIA DE MATO GROSSO
(1850-1864)
Cuiabá-MT
Dezembro/ 2011
II
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO EM HISTÓRIA
O EXÉRCITO NAS FRONTEIRAS DO IMPÉRIO:
MOBILIZAÇÃO MILITAR E DEFESA DA PROVÍNCIA DE MATO GROSSO
(1850-1864)
ANA CLAUDIA MARTINS DOS SANTOS
Dissertação apresentada à banca examinadora do
Programa de Pós-graduação em História da
Universidade Federal de Mato Grosso, como
requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em História.
Orientador: Profº. Dr. Ernesto Cerveira de Sena
Cuiabá-MT
Dezembro/2011
III
FICHA CATALOGRÁFICA
Santos, Ana Claudia Martins dos.
O Exército nas fronteiras do Império: Mobilização militar e defesa da Província de
Mato Grosso (1850-1864)./Ana Claudia Martins dos Santos. Cuiabá - MT: Universidade
Federal de Mato Grosso, 2011.
156f.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Mato Grosso. Programa de Pós-
Graduação em História, 2011.
Orientador: Ernesto Cerveira de Sena.
1. Exército na província de Mato Grosso. 2. Defesa da província fronteiriça/MT. 3.
Reorganização militar - 1850/MT. 4. Guerra do Paraguai – 1864/MT. I. Título.
CDU: 94(817.2).059
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Regional de Cáceres
IV
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
PRÓ-REITORIA DE ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Avenida Fernando Corrêa da Costa, 2367 - Boa Esperança - Cep: 78060900 -CUIABÁ/MT
Tel : (65) 3615-8493 - Email : gerapesquisa@gmail.com
FOLHA DE APROVAÇÃO
TÍTULO : “O EXÉRCITO NAS FRONTEIRAS DO IMPÉRIO: MOBILIZAÇÃO
MILITAR E DEFESA DA PROVÍNCIA DE MATO GROSSO (1850-1864)”
AUTOR : Mestrando Ana Claudia Martins dos Santos
Dissertação defendida e aprovada em 19/12/2011
Composição da Banca Examinadora:
Presidente Banca / Orientador: Doutor Ernesto Cerveira de Sena
Instituição: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
Examinador Interno: Doutora Maria Adenir Peraro
Instituição: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
Examinador Externo: Doutor Domingos Sávio da Cunha Garcia
Instituição: UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MATO GROSSO
CUIABÁ, 03/02/2012.
V
Dedico este trabalho à minha mãe, Maria
Martins dos Santos e, ao meu avô, Antônio Martins
Neves (In Memoriam), com todo amor e carinho.
VI
AGRADECIMENTOS
Muitas pessoas fizeram parte desta caminhada, cujo apoio foi fundamental para o
andamento desta pesquisa e sem o qual não teria sido possível a elaboração deste trabalho.
Mencionar todos não seria viável e, possivelmente, injusto. Mas, é necessário citar aqueles que
estiveram diretamente envolvidos nessa caminhada, pelos quais tenho profundo sentimento de
gratidão e carinho.
Agradeço ao meu orientado, Prof. Dr. Ernesto Cerveira de Sena, pelo benefício do apoio
intelectual dedicado, o qual foi fundamental para a elaboração deste trabalho e pela compreensão
ilimitada durante os momentos de orientação.
À Professora Dr. Maria Adenir Peraro, pela atenção e pela disposição em fazer parte da
banca de qualificação e defesa deste trabalho e, principalmente, pelas contribuições e
encaminhamentos direcionados ao andamento desta pesquisa.
Da mesma forma, estendo meus agradecimentos ao Prof. Dr. Domingos Sávio da Cunha
Garcia, pelas orientações e encaminhamentos direcionados ao desenvolvimento desta pesquisa,
assim como, pela disposição em ter aceito fazer parte da banca examinadora deste trabalho.
À CAPES, pelo amparo a pesquisa.
Aos funcionários do Arquivo Público de Mato Grosso – APMT, pelas orientações
prestadas que auxiliaram na pesquisa e na seleção da documentação.
À Profª. Dr. Leonice Aparecida de Fátima Alves e Prof. Dr. João Carlos Barrozo do
programa de Pós-Graduação em História, pelo afeto e atenção que tornaram essa caminhada mais
amena e agradável.
Agradeço o incentivo dos membros do grupo de pesquisa "Fronteira Oeste: Poder,
Economia e Sociedade", especialmente aos Professores Otávio Chaves, João Edson e Domingos
Sávio.
Não poderia esquecer de agradecer aos meus amigos e companheiros de caminhada no
mestrado com os quais tive o prazer de conviver, principalmente, Luis Cesar, Luciana, Elói,
Gabriela e Vanusa.
Agradeço aos colegas que compartilharam com as calorosas discussões sobre o tema da
pesquisa, compartilhando resultado e dúvidas sobre o tema em pesquisa, são eles: Jonh Érick,
Patrícia e Reinaldo.
VII
Agradeço a compreensão, a paciência e o carinho das minhas companheiras de “abrigo”
- Maria Raimunda e Kátia Amaro, pelos momentos agradáveis que tornaram a convivência mais
amena e menos amarga. A vocês, sou grata pela companhia, carinho e pela paciência dedicada.
Quero agradecer com imenso carinho, a atenção e auxílio prestado pela secretária do
Programa de Pós-Graduação em História, Valdomira, carinhosamente, Val.
Aos meus amigos e eternos companheiros de caminhada, pessoas que tenho eterna
gratidão e respeito, Ester, Iracema, Lygia, Leonice, Carla Fernanda, Juarez, Maria Madalena,
Tayani, Neusa, Geraldinho e Brenda Mariana.
Não posso deixar de agradecer aos amigos Marciela e Jair pela companhia e amizade,
que tornaram a experiência na fronteira com a Bolívia o mais agradável e proveitosa possível.
Mais nada teria sido possível, ou se quer, teria começado sem o incentivo e o apoio dado
pelos meus familiares, principalmente, de minha mãe e de minhas irmãs, Maria Aparecida, Irene
e Leida. Agradeço pelo carinho e auxílio prestado pelos meus sobrinhos, Suelena e Reginaldo,
como também, pelo meu cunhado, Arlindo.
Com todo carinho e admiração ao meu tio José “Crispim”, pelo apoio e incentivo dado
no decorrer dessa caminhada. Serei eternamente grata. Assim como, estendo os agradecimentos a
sua filha, Marinalva, pela hospedagem e pelos calorosos bate-papos.
A todos, muito obrigada!
8
RESUMO
Este trabalho analisa a organização e a
atuação do Exército, força de 1ª Linha, na
defesa da província de Mato Grosso, entre a
reorganização militar em 1850 e o início da
Guerra do Paraguai em 1864, pontuando as
dificuldades de mobilização de efetivos para
fazer a defesa dessa província fronteiriça. A
proteção da província foi sendo realizada por
indivíduos considerados marginais,
criminosos, desordeiros, que eram
recrutados e enviados para assentar praça.
Muitos desses indivíduos buscaram várias
estratégias para evadir do serviço militar,
sendo a deserção uma opção frequente entre
eles e estimulada pela proximidade com a
fronteira. Dessa maneira, o Exército na
província de Mato Grosso foi insuficiente
para realizar a defesa e atender as
necessidades militares da província, não
tendo sofrido alterações significativas na sua
organização e na quantidade de efetivos,
mesmo em momentos mais tumultuados e
diante das constantes reclamações por parte
dos presidentes da província quanto à
ameaça de uma invasão por parte da
República do Paraguai.
Palavras-chave: Exército; Defesa; Mato
Grosso; Império.
ABSTRACT
This work analyzes the organization, and the
performance of the Army force from the 1st
Line, to the defense of the province of Mato
Grosso, between the military reorganization
in 1850 and the beginning of the War of
Paraguay in 1864, highlighting the
difficulties of mobilizing effective to defend
the frontier province. The protection of the
province was being performed by
individuals considered marginal, criminals
and looters, who were recruited and sent to
build square. Many of these individuals have
tried several strategies to escape from
military service, and the desertion a frequent
option between them and stimulated by the
proximity to the border. This way, the Army
in the province of Mato Grosso was
insufficient to achieve the defense and meet
the military needs of the province, not
having undergone significant changes in its
organization and in the amount of effective
even in these tumultuous times more and
face of constant complaints on the part of the
presidents of the province and the threat of
an invasion by the Republic of Paraguay.
Keywords: Army; Defense; Mato Grosso;
Empire
9
SUMÁRIO
LISTA DE QUADROS .............................................................................................................................. 10
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................................... 11
CAPÍTULO 1: O EXÉRCITO NO IMPÉRIO ........................................................................................ 19
1.1 As reformas na organização militar a partir de 1850 ......................................................................... 28
1.2 “Como o diabo foge da cruz”: as dificuldades de mobilização militar .......................................... 34
1.2.1 Voluntários, engajados e recrutas................................................................................................ 38
1.2.2 Os embaraços ao recrutamento militar ........................................................................................ 46
CAPÍTULO 2: O PERIGO ESTÁ AO SUL: A ATUAÇÃO DO EXÉRCITO NA PROTEÇÃO DE
MATO GROSSO ........................................................................................................................................ 53
2.1 Navegação e limites: peculiaridades de uma província fronteiriça .................................................... 53
2.1.1 Conexões com a Corte: as vias de comunicação e a navegação pelo rio Paraguai ......................... 59
2.2 Litígios com o país Guarani: a tensa relação entre o Brasil e o Paraguai ...................................... 66
2.2.1 O Exército, a força policial e a Guarda Nacional ........................................................................ 74
2.2.2 Os constantes receios de uma invasão ......................................................................................... 84
CAPÍTULO 3: RECRUTAMENTO E RESISTÊNCIA ......................................................................... 99
3.1 Entre malfeitores e desordeiros: o recrutamento para o serviço militar ............................................. 99
3.1.1 Isento, mas praça: recrutamento de menores e escravos ............................................................... 115
3.2 Vida autônoma dentro da ordem estabelecida: as práticas de resistências aos serviço militar .... 123
3.2.1 Fronteira: uma opção a deserção ............................................................................................... 129
3.2.2 Reduto de desertores ................................................................................................................. 134
CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................................................142
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................................... 148
10
LISTA DE QUADROS E MAPAS
QUADRO I Forças efetiva de paz e guerra do Exército 1850-1864 ........................................................... 37
QUADRO II Recrutas, voluntários e engajados 1850-1864 ....................................................................... 42
QUADRO III Proposta de nomeação de recrutadores dirigida ao Ministério da Guerra pelo presidente da
província de Mato Grosso-1862 ................................................................................................................... 44
QUADRO IV Efetivos do Exército em Mato Grosso ................................................................................. 75
QUADRO V Praças da Guarda Nacional destacados para auxiliar o Exército ........................................... 83
QUADRO VI Mapa estatístico da Colônia Militar de Miranda - março de 1864 ..................................... 105
QUADRO VII Mapa mensal de recrutamento-1864 ................................................................................. 108
QUADRO VIII Cota estabelecida para o serviço de guarnição 1852-1854 ............................................. 109
CROQUI elaborado pelo Tenente Pedro Pereira-1862 ................................................................. 95
MAPA I – Principais pontos militares da Província de Mato Grosso - Século XIX ....................69
MAPA II – Freguesias conhecidas como reduto de desertores no século XIX ........................... 135
11
INTRODUÇÃO
Julgo escusado renovar as sediças observações
apresentadas por mim e pelos meus antecessores nesta
Presidência acerca da insufficiencia da tropa existente
[...] cujos Districtos no caso de serem inopinadamente
atacados não se podem socorrer mutuamente nem receber
a tempo socorros da Capital [...].1
Augusto Leverger, dezembro de 1853.
A observação feita por Augusto Leverger, no início da década de 1850, quanto à
insuficiência de praças no Exército não se tornou algo restrito a esse momento. A falta de homens
empregados no serviço militar foram às principais reclamações dos presidentes e comandantes
militares em Mato Grosso no período. As guarnições nos diversos pontos militares eram mal
guarnecidas e o corpo móvel da província mostrava-se incapaz de socorrê-las no caso de invasão
por parte dos países vizinhos.
Este trabalho investiga a organização do Exército numa província situada em área de
fronteira litigiosa, cuja presença da força armada era fundamental para sua defesa, pontuando a
dificuldade de mobilização militar e de preenchimento de efetivos, entre 1850 e 18642.
A província de Mato Grosso3 estava localizada numa extensa área fronteiriça com a
República do Paraguai e da Bolívia, com as quais mantinha uma relação conturbada devido às
tensões geradas pela falta de acordo na questão da demarcação de limites, tornando constante a
ameaça de invasão na província, principalmente por parte do Paraguai.
1 Augusto Leverger ao ministro da Guerra Pedro de Alcântara Bellegarde, em 31 de dezembro de 1853. Registro de
correspondência oficial da presidência ao Ministério da Guerra 1853-1855. Livro 135. 2 Essas balizas temporais foram estabelecidas por serem da década de 1850, marcada pela centralização política do
Império, com aprovação de leis que incluía a organização do Exército. Encerramos nossa pesquisa com o início da
Guerra do Paraguai, pois o esforço de guerra apresenta uma situação extraordinária para a mobilização. 3 A província de Mato Grosso corresponde atualmente aos Estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e parte sul
de Rondônia.
12
As fronteiras enquanto limites políticos entre dois países é uma construção que
acompanhou a formação dos Estados nacionais, sendo que, até o início da Guerra do Paraguai
essas fronteiras ainda não estavam demarcadas.4 Essa necessidade de demarcação de limites
interferiu nos direcionamentos político e militar na província de Mato Grosso, pautado na
necessidade de ter controle sobre o território, cuja posse era contestada. Como esse território era
ainda mal definido, o governo brasileiro buscou ter conhecimento do espaço geográfico para
poder exercer o controle político, sendo que, esse controle político, espacialmente bem
delimitado, é que tornava o espaço em questão em território, brasileiro ou não.5
As fronteiras, segundo Benedikt Zientara, não devem ser pensadas como uma linha de
fronteira definida que separa dois estados, tal como as encontramos em um mapa geográfico. É
preferível pensá-las como uma faixa mais ou menos larga, fixada de diferentes maneiras por um
grupo, com o intuito de se isolar ou de se diferenciar dos demais.6
O interesse dos países vizinhos com o Brasil era de defender as fronteiras que
reivindicavam, embora ainda faltasse um acordo oficial, por isso, essa relação ficou marcada por
controvérsias quanto ao terreno ocupado por um ou por outro país.
Até a década de 1860, o Brasil não contava com um Exército de grande porte, sendo que a
quantidade de efetivos militares era insuficiente para atender as necessidade de defesa e socorrer
todos os pontos do país. O Império abriu mão do monopólio de violência legitima para a
manutenção do sistema escravista, sendo que, as elites locais continuaram sendo detentoras dos
instrumentos para manutenção do poder, criando para si pequenos exércitos sob controle direto
dos senhores latifundiários.7
A manutenção dos interesses da elite escravista estabeleceu-se uma série de isenções para
a realização do recrutamento, que retirou da mira dos agentes recrutadores os indivíduos
4 MAGNOLI, Demétrio. O corpo da pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912). São
Paulo: UNESP, 1997. 5 SOUZA, Marcelo Lopes. “Território” da divergência (e da confusão): Em torno das imprecisas fronteiras de um
conceito fundamental. In: SAQUET, Marcos Aurélio (Org.) Territórios e territorialidades: teorias, processos e
conflitos. São Paulo: Expressão Popular: UNESP, 2009. 6 ZIENTARA, Benedikt. Fronteira. In: BOBBIO, Norberto. Enciclopédia Einaudi – Estado e Guerra. Vol. 14. Porto:
Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1989. 7 COSTA, Wilma Peres. A espada de Dâmocles: o exército, a Guerra do Paraguai e a crise do Império. São Paulo:
HUCITEC, 1996. p.54.
13
diretamente ligados ao círculo de proteção dos proprietários. Isso fazia com que o número
daqueles que pudessem ser enviados para as fileiras fosse insuficiente, estando sempre
desfalcado.
Para uma pessoa que participava da elite política, assim como, os que nela buscavam
apadrinhamento, ficavam fora do alcance da ação dos agentes recrutadores, pois o recrutamento
não se estendeu a todas as camadas da sociedade, tendo como principais alvos os livres e os
pobres. Estes eram enviados para as fileiras do Exército sem preparação militar, submetidos a
viver com estrutura precária, marcada por péssimas instalações, alimentação deficitária, baixo
soldos, situações enredadas que tornavam a experiência militar amarga.
Essa mobilização, pautada no recrutamento forçado, fez com que a defesa militar ficasse
nas mãos de pessoas que não tinham interesse de estar à disposição das forças armadas, que na
primeira oportunidade aproveitavam para fugir. A deserção foi uma entre as várias alternativas
buscadas para evadir do serviço militar, ao qual recorriam indivíduos que não suportando a vida
precária das casernas, buscavam uma alternativa para voltar aos seus afazeres e ao convívio
familiar.
O recrutamento, além de ter sido utilizado para completar o efetivo militar, tornou-se uma
opção para o chefe de polícia que enviava para suas fileiras, com o objetivo de “limpar” a cidade,
aqueles indivíduos considerados perturbadores da ordem.
Desta maneira, a cultura política nos forneceu a possibilidade de analisar não só as
instituições políticas que determinam como e quando proceder ao recrutamento e a importância
que deve ser atribuída à mobilização militar nessa localidade, como também compreender as
manifestações dos indivíduos que eram afetados direta ou indiretamente (no caso dos familiares)
por essas ações, sendo possível verificar os valores que orientam as motivações e atitudes desses
indivíduos. Segundo Karina Kushnir e Leandro Carneiro, a cultura política coloca “em evidência
as regras e os pressupostos nos quais se baseia o comportamento de seus atores.” 8
Várias pesquisas abordam a discussão quanto à organização do Exército imperial,
apontando esclarecimentos diferenciados para explicar a dificuldade de mobilização e a
8 KUSHNIR, Karina e CARNEIRO, Leandro Piquet. As dimensões subjetivas da Política: Cultura Política e
Antropologia da Política. Estudos Históricos, nº 24, Rio de Janeiro, FGV, 1999. p. 227.
14
insuficiência das forças armadas para realizar a defesa do país. De acordo com Fernando
Uricoechea, o Exército teve sua participação restringida na organização institucional do país,
estando limitada à defesa da fronteira. Esse autor pontua que houve uma militarização da
sociedade, por meio da Guarda Nacional, que apresentou uma elevada capacidade de
mobilização.9
Para Vitor Izecksohn, a desmobilização do Exército foi uma opção política dos grupos
dirigentes que viam no Exército uma ameaça de interferência militar, o que permitiu que o
controle dos instrumentos coercitivos ficassem nas mãos dos grupos dirigentes, sem que o
Exército passasse por uma reforma nos moldes profissionais e corporativos. Assim, a Guarda
Nacional, que não representava essa interferência, era uma alternativa frente aos custos que
representaria manter um Exército bem organizado. As reformas implantadas em 1850 não foram
elaboradas com interesse de formar um Exército profissional, mas para dar uma organização
mínima entre os que assumissem como oficiais, pois estariam em posição de comando, diante da
necessidade de um corpo armado que pudesse fazer frente às ameaças externas, no momento em
que o Brasil procurava firmar seus interesses na região da Prata para demarcar suas fronteiras.10
John Schulz11
analisa as mudanças promovidas pelas reformas de 1850, principalmente as
direcionadas ao acesso do oficialato militar, a partir da Lei nº 585 de 06 de setembro de 1850.
Segundo Schulz, essa reforma introduziu uma mudança profunda no acesso ao oficialato, o
tornou mais aberto à população.
Na análise de Wilma Peres Costa, a desmobilização do Exército deve-se à maneira como
ocorreu o processo de independência do país, sem ruptura à estrutura social vigente, mantendo o
regime monárquico, a unidade territorial e o regime escravista. Sendo que, a manutenção do
escravismo era um dos principais obstáculos à formação de um Exército bem organizado, pois
reduzia significativamente o número daqueles que podiam ser recrutados.
9 URICOECHEA, Fernando. O minotauro imperial: a burocratização do Estado patrimonial brasileiro no século
XIX. Rio de Janeiro/São Paulo: Difel, 1978. pp.131-132. 10
IZECKSOHN, Vitor. O cerne da discórdia: a Guerra do Paraguai e o núcleo profissional do Exército brasileiro.
Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1997. p.76. 11
SCHULZ, John. O Exército e o Império. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (Org.) História Geral da Civilização
Brasileira. 2 ed. tomo II, vol.4. São Paulo: Difel, 1974; SCHULZ, John. O exército na política: origens da
intervenção militar, 1850-1894. São Paulo: Ed. da USP, 1994.
15
Apresentando outro contraponto, Fabiana Rodrigues argumenta que, a desmobilização do
Exército foi uma medida adotada frente ao estado de anarquia em que se encontrava a força de
linha após a Abdicação, contando com o apoio de oficiais que achavam preferível reduzir o
número de efetivos, numa tentativa de dar forma e organização às tropas de linha, ao invés de
recorrer ao modo de recrutamento herdado do período colonial.12
No decorrer da nossa pesquisa, pudemos contar com historiografia de Mato Grosso,
ajudando-nos a perceber a ação do Império na província de Mato Grosso, por meio dos aspectos
político, social, econômico e cultural. Podemos destacar as pesquisas realizadas por Ernesto
Cerveira de Sena, Luiza Volpato, Maria Adenir Peraro, Domingos Sávio da Cunha Garcia e
Oswaldo Machado Filho.13
Assim, recorremos a essas pesquisas e as dissertações elaboradas no curso de Mestrado da
Universidade Federal de Mato Grosso para compreender as abordagens que corroboraram com
este trabalho, como a pesquisa de Rosely Almeida, Eula Wojciechowski e Leonam Lauro Nunes
da Silva.14
A abordagem sobre a atuação militar em Mato Grosso no decorrer do Império é um
campo de análise que ainda é restrito às pesquisas. Quando se trata do Exército, nessa província,
12
RODRIGUES, Fabiana Mehl Sylvestre. Caminhos e descaminhos da nacionalização do Exército brasileiro no
período Regencial (1831-1840). Almanack Brasiliense, nº03, maio 2006. p.65. 13
SENA, Ernesto Cerveira de. Entre anarquizadores e pessoas de costumes: a dinâmica política nas fronteiras do
Império: Mato Grosso 1834-1870. Cuiabá: Ed. da Universidade Federal de Mato Grosso; Carlini & Caniato, 2009;
VOLPATO, Luiza Rios Ricci. A conquista na terra no universo da pobreza: formação da fronteira oeste do Brasil
1719-1819. São Paulo: HUCITEC; Brasília, DF: INL, 1987; VOLPATO, Luiza Rios Ricci. Cativos do sertão: vida
cotidiana e escravidão em Cuiabá 1850-1888. São Paulo: Ed. Marco Zero; Cuiabá, MT: Ed. da UFMT, 1993;
PERARO, Maria Adenir. Bastardos do Império: família e sociedade em Mato Grosso no século XIX. São Paulo:
Contexto, 2001; GARCIA, Domingos Sávio da Cunha. Território e negócios na “Era dos Impérios”: os belgas na
fronteira oeste do Brasil. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 2009; MACHADO FILHO, Oswaldo. Ilegalismo e
jogos de poder: um crime célebre em Cuiabá (1872), suas verdades jurídicas e outras histórias policiais. Cuiabá, MT:
Carlini & Caniato: EdUFMT, 2006.
14 ALMEIDA, Rosely Batista Miranda de. A presença indígena na Guerra com o Paraguai (1864-1870). 2006. 133
fl. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Mato
Grosso. Cuiabá, 2006; WOJCIECHOWSKI, Eula. “Sem lei nem rei”: debochados, vadios e perniciosos. Os soldados
militares na província de Mato Grosso, 1850-1864. 2004. 123 fl. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de
Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá, 2004; SILVA, Leonam Lauro Nunes da.
Relações na Tríplice Fronteira: a Bolívia no Contexto da “Grande Guerra” (1865-1868). 2009. 127 fl. Dissertação
(Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá,
2009.
16
a abordagem é direcionada com mais frequência para o período da Guerra do Paraguai, sendo
uma abordagem mais privilegiada entre os trabalhos consultados.
Para a realização deste trabalho, baseamos nossa pesquisa no acervo de documentação
pública do Arquivo Público de Mato Grosso (APMT), especificamente, nas Latas e nos Livros de
Correspondências, abarcando um conjunto de documentos com informações detidas nas
correspondências da presidência com o Ministério da Guerra, com o Ministério dos Negócios
Estrangeiros e correspondências da presidência com os comandos militares nos diferentes pontos
da província, entre o período de 1850 e 1864, revelando as medidas adotadas na província quanto
à defesa, as dificuldades de mobilização militar para sua realização e as práticas cotidianas de
quem carregava o peso de defender militarmente a província.
Trata-se de documentação oficial, entre as autoridades que permitem perceber ações e
ideias dos presidentes e comandantes sobre organização militar, como também, revelam a ação de
pessoas comuns diante da ação do governo. Essa documentação, já visitada por outros
pesquisadores, oferece várias possibilidades de análise, sendo que “o historiador não esgota
jamais um documento; ele pode interrogá-lo com outras questões ou fazê-lo falar com outros
métodos.” 15
Segundo Carlos Bacellar, é necessário que o historiador procure conhecer o contexto de
produção da documentação que está sendo pesquisado, sendo necessário perguntar quem
produziu o documento e qual o propósito de sua elaboração. É necessário ter um conhecimento
prévio sobre o tema e período em que vai ser realizada a pesquisa, antes de partir para a análise
da documentação, o que facilita na compreensão das informações e, até mesmo, para que o
historiador não aborde de forma equivocada as informações produzidas em contextos diferentes
do que está vivenciando.16
Obtivemos também informações importantes para a realização desta pesquisa nos
Relatórios de Presidentes da Província de Mato Grosso, Relatórios do Ministério da Guerra e nos
Decretos da Coleção de Leis do Império. Os relatórios dos presidentes trazem dados sobre as
15
DEL PRIORE, Mary. Fazer história, interrogar documentos e fundar a memória: a importância dos arquivos no
cotidiano do historiador. Revista Territórios e Fronteiras, vol.3, n.1, Jan/Jun, Cuiabá, 2002. pp. 9-20. 16
BACELLAR, Carlos. Uso e mau uso dos arquivos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (Org.) Fontes Históricas. São
Paulo: Contexto, 2005.
17
medidas adotadas e as reclamações quanto à questão militar. A partir de 1835, torna-se
obrigatório a elaboração do relatório anual sobre a situação da província de Mato Grosso, sendo
elaborado pelo presidente que esteve no cargo no ano correspondente, para levar ao
conhecimento da Assembléia Legislativa e da Corte os acontecimentos e as meditas tomadas na
província. De acordo com Ernesto Cerveira de Sena, a utilização desses relatórios é importante
porque “[...] formam a base para a reconstituição das ações e ideias governamentais, bem como
possibilitam entrever as reações ou o desconhecimento dos governados ante os intentos das
autoridades.” 17
Nos relatórios do Ministério da Guerra observamos as medidas adotadas para viabilizar
uma organização militar, a importância e preocupação do governo imperial com a província de
Mato Grosso. Não realizamos uma análise da Coleção de Leis do Império, apenas nos reportamos
a esses decretos, de acordo com que nos eram apresentados os dados contidos na documentação
analisada.
Estamos utilizando vários quadros ilustrativos, os quais são inseridos nos capítulos deste
trabalho e por meio dos mesmos organizamos algumas informações referentes a quantidade de
efetivos da força de 1ª Linha e sobre a mobilização militar, há também um mapa apontando os
principais pontos militares da província na segunda metade do século XIX.
Para a discussão sobre a mobilização e a atuação do Exército na defesa da província de
Mato Grosso, procuramos organizar este trabalho de maneira a discutir como estava a
organização do Exército, sua atuação para a defesa da província e as dificuldades de mobilizar
praças. Para isso, dividimos este trabalho em três capítulos.
No primeiro capítulo destacamos como estava à organização do Exército nas duas
primeiras décadas da segunda metade do século XIX, que tinha sua fileira preenchida
majoritariamente por meio ao recrutamento forçado e as reformas implantadas pelo Ministério da
Guerra. As dificuldades de mobilização resultaram em fronteiras mal guarnecidas, com
contingente insuficiente para as necessidades militares do país.
17
SENA, Ernesto Cerveira de. A História intelectual e tratamento de fontes tradicionais. Em Tempo de História, n.5,
ano 5, Brasília: 2001. p.157-176. p.158
18
No segundo capítulo pontuamos as peculiaridades de Mato Grosso como província
fronteiriça, ressaltando seu posicionamento estratégico frente aos interesses do governo imperial
em demarcar e defender seu território. Discutimos como o Exército era importante na província
para fazer sua defesa frente às ameaças de invasão por parte dos países vizinhos; mostramos
também as dificuldades de atuação frente a uma força armada insuficiente e despreparada.
No terceiro capítulo partimos da insuficiência da força armada para pontuar como era
realizada a mobilização militar para completar o contingente do Exército, pautada no
recrutamento forçado e tendo como principal alvo os livres e os pobres. A defesa da província
estava nas mãos de indivíduos que foram obrigados a pegar em armas para defender interesses
que não lhes eram próprios, buscando várias maneiras de evadir da obrigação imposta pelo
serviço militar, fazendo com que fosse constante a fuga e a deserção.
19
CAPÍTULO 1
O EXÉRCITO NO IMPÉRIO
Durante a primeira metade do século XIX, a regulamentação de efetivos militares passou
a fazer parte dos debates sobre a organização do Estado, sendo que as reclamações quanto à sua
atuação e à sua desarticulação ganharam força de acordo com que as revoltas regenciais foram se
espalhando por outras províncias do território brasileiro.
O período que seguiu da abdicação de D. Pedro I foi um momento agitado no Império
brasileiro, marcado pela revisão da estrutura institucional vigente, num contexto de várias
revoltas nos mais diversos pontos do Império, o qual demandava a emergência de novas ações
políticas.18
Ao ascender ao poder, o governo regencial deparou-se com um Exército desorganizado e
indisciplinado, que trazia em sua organização traços da herança militar portuguesa19
. O alto
oficialato do Exército, majoritariamente, era ocupado por membros da aristocracia, favorecido
por redes de privilégios e com acesso rápido ao oficialato militar. Sua ascensão ao generalato era
18
A década de 1830 foi marcada por diferentes projetos políticos: os moderados, que defendiam a implantação de
reformas para reduzir os poderes do Imperador, mas sem afetar a ordem imperial; os exaltados, que almejavam
reformas mais profundas, em sentido federalista; e os caramurus, que eram contrários a tal reforma e almejavam o
retorno de D. Pedro I. Embora com projetos e ações distintas, moderados e exaltados se uniram para defender
princípios liberais contra o absolutismo português, representado pela figura de D. Pedro I. Com a abdicação em
1831, a frágil aliança entre essas duas facções é desfeita, explodindo as rivalidades políticas numa violenta disputa
pelo poder, assumindo a direção os moderados, excluído os exaltados. As disputas no cenário político ficaram
restritas a essas duas facções, sendo que, com a morte de D. Pedro I em 1834, a proposta dos restauradores perdeu o
sentido.
BASILE, Marcello. O laboratório da nação: a era regencial (1831-1840). In: SALLES, Ricardo;
GRINBERG, Keila (Org.) O Brasil imperial, volume III: 1831-1870. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
pp. 60-72
19 O universo militar no século XIX não estava restrito ao Exército (serviço assalariado, permanente e em tempo
integral), compreendendo a milícia, força de 2ª Linha (civis em tempo parcial, não assalariado) e a de 3ª linha (civis
não alistados para a tropa regular ou a milícias, não assalariados, confinados ao limites municipais). Segundo
Fernando Uricoechea, nesse período o Exército profissional real era o mais burocratizado, pois possuía uma
organização hierárquica, assalariada e arregimentado. Seu acesso era aberto, embora houvesse diferença entre a
corporação da oficialidade formada por proprietários de terras e filhos de militares e, a tropa, formada por homens de
cor e trabalhadores (URICOECHEA, Fernando. Op. cit., p.69).
20
em grande parte por fidelidade à monarquia.20
O recrutamento de oficiais era realizado entre os
nobres e os praças menos favorecidos, sendo que antes de 1850, quase todos os generais eram
oriundos de grupos formados por fazendeiros, comerciantes ricos, altos funcionários civis e
militares. Aqueles que não eram membros da aristocracia tinham pouca chance de progredir na
carreira militar e chegar ao oficialato, com exceção aos períodos de guerra.21
A experiência liberal, no início da Regência, implantou uma série de reformas
descentralizadoras, visando atenuar os resíduos absolutistas do Primeiro Reinado. Entre essas
medidas está a reforma realizada no poder repressivo do Estado, onde se inclui o Exército, que
teve seu número de efetivos reduzido significativamente22
.
Com a reforma do poder repressivo do Estado, a atuação do Exército foi limitada à
proteção de fronteira, quando foi criada a Guarda Nacional para o serviço de policiamento
interno. Essa proposta de descentralização previa uma distribuição dos poderes político e
administrativo entre as províncias, cabendo a essas também se defenderem, o que foi atribuído a
Guarda Nacional, limitando o Exército para proteção de áreas de fronteiras.
Embora não tenha sido criada para substituir o Exército, a Guarda Nacional serviu de
contraponto ao efetivo militar que foi reduzida com base na proposta apresentada a Câmara dos
Deputados pelo ministro de Guerra, Manoel da Fonseca Lima e Silva, no ano de 1832.23
Criada
com base na Lei de 18 de agosto de 1831, a Guarda Nacional estava subordinada ao Ministério da
Justiça e às autoridades civis. Com essa medida foram extintos os corpos de Guardas Municipais,
Ordenanças e Milícias existentes, desde o período colonial, tornando a Guarda Nacional a
20
Segundo Adriana Barreto de Souza, o perfil dos que chegaram ao oficialato antes de 1850 não era homogêneo,
havendo pelo menos três caminhos para ascender na carreira militar: os combatentes, por meio da participação em
combates internos ou externos; os administradores, que fizeram carreira na administração militar; os técnicos, por
meio da atuação na área de formação, eram o único meio, mas era necessário o diploma de engenharia. Independente
da trajetória, o ponto em comum a todo o grupo dessa geração de 1840 era a subordinação à Coroa e havia
dependência de sua generosidade, uma vez que a Coroa detinha o monopólio de distribuição de patentes militares e
demais títulos nobiliárquicos ou títulos de nobreza. SOUZA, Adriana Barreto de. A serviço de Sua Majestade: a
tradição militar portuguesa na composição do generalato brasileiro (1837-50). In: CASTRO, Celso; IZECKSOHN,
Vitor; KRAAY, Hendrik (Org.) Nova história militar brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. pp.161-170
21 SCHULZ, John. O exército na política. Op. cit., p.28
22 BASILE, Marcello. Op. cit., p.73
23 RODRIGUES, Fabiana Mehl Sylvestre. Op. cit., p. 57
21
principal força auxiliar, estando organizada com armas de infantaria, cavalaria e artilharia. Era
uma milícia privada, com cargos honorários e sem remuneração, mas obrigatória para cidadãos
entre 18 a 60 anos que tivessem renda para serem eleitores e se armar com seus próprios recursos.
Ficando o Estado encarregado da distribuição de materiais e da remuneração dos guardas, quando
destacados para auxiliar a tropa de 1ª Linha.24
A Guarda Nacional foi criada para:
[...] defender a Constituição, a Liberdade, a Independência, e Integridade
do Império; para manter a obediência às Leis, conservar, ou restabelecer a
ordem, e a tranquilidade pública; e auxiliar o Exército de Linha na defesa das
fronteiras e costas.25
Nesse sentido, a crença na eficiência da Guarda Nacional para a defesa interna do país não
permaneceu por muito tempo, mostrando logo suas limitações. A Guarda não apresentava
condições para combater as revoltas, sendo insuficiente e despreparada, mostrando-se incapaz de
manter a ordem e integridade nacional diante das revoltas provinciais.26
Mas, mesmo com as
críticas a sua atuação não foi desmobilizada, além disso, o número de efetivos do Exército
permaneceu reduzido durante o enfrentamento, nesse primeiro momento, das revoltas internas.
As principais controvérsias quanto à promulgação das reformas descentralizadoras
ocorreram com a reforma constitucional, levantando vozes discordantes entre a elite política. Em
1834, foi aprovado o ato adicional à Constituição de 1824, estabelecendo uma Regência Una,
excluindo o Conselho do Estado, descentralizando a administração e conferindo uma significativa
margem de autonomia às províncias, ao criar a Assembleia Legislativa Provincial.27
Em oposição à aprovação do Ato Adicional surgiu um grupo de políticos com ideias
regressistas, liderado por Bernardo Pereira de Vasconcelos, defendendo a necessidade de revisar
as reformas realizadas até o momento. Pautavam-se na necessidade de estabelecer a autoridade e
24
URICOECHEA, Fernando. Op. cit., pp. 134-140 25
Lei de 18.08.31, Art. I Apud URICOECHEA, Fernando. Op. cit., p.133 26
SCHULZ, John. O exército na policia. Op. cit., p.26 27
BASILE, Marcello. Op. cit., p. 83
22
a ordem, uma vez que, essas reformas não foram capazes de evitar as revoltas provinciais, as
insurreições negras a eclodir em diversas províncias e a ameaça de uma fragmentação territorial.
Com a renúncia de Diogo Feijó, em 1837, assumiu o governo o regente Pedro de Araujo
Lima (o visconde de Olinda) representando o grupo de políticos com ideias regressistas, do qual
emergiu o Partido Conservador,28
este iria montar a estrutura política e administrativa vigente a
partir do Segundo Reinado. Os regressistas defendiam uma centralização política e
administrativa, estando atreladas ao fortalecimento da figura do Imperador, vendo um governo
forte e centralizado como a única maneira de restabelecer a ordem interna e, consequentemente,
promover a civilização.29
Os conservadores, na construção do Estado imperial, pautaram-se na necessidade de
manutenção da ordem e da segurança interna, privilegiando as atividades coercitivas, dando
atenção especial ao Ministério da Justiça e da Guerra. Sendo que, estes desfrutaram de um lugar
privilegiado na distribuição orçamentária do governo, considerado o segundo maior orçamento à
pasta de segurança, ficando atrás somente da pasta da Fazenda que tratava de questões referentes
à terra e à mão de obra.30
Os debates sobre a atuação das forças armadas haviam se tornado cada vez mais fortes na
Câmara dos Deputados, em decorrência da experiência das revoltas provinciais, quando em 1837,
o ministro da Guerra, o liberal José Saturnino da Costa Pereira apresentou como proposta o
fortalecimento da força armada e a contratação de mercenários. Essa proposta foi rebatida pelos
conservadores, propondo a disciplinarização da força de linha. Pela primeira vez foi apresentada
uma opção para a contratação de mercenários, sugerido pelo deputado Honório Hermeto Carneiro
Leão, à disciplinarização do Exército como um meio eficaz para fazer frente aos revoltosos. Era
preciso uma reorganização interna, devendo as forças de linha serem “disciplinadas, porque um
28
Até o ano de 1837 não existia partidos políticos no Brasil, apenas organizações políticas. Somente na década de
1830, com as reformas centralizadoras e as revoltas provinciais, emerge os dois principais partidos que vão
comandar a vida política no Império: o Partido Conservador (ex-moderados e ex-restauradores, que desejavam
reformar as leis descentralizadoras) e o Partido Liberal (defendiam as reformas descentralizadoras). CARVALHO,
José Murilo de. I A construção da ordem. II Teatro de sombras. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ; Redume
Dumará, 1996. p. 204
29 MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema. São Paulo/Brasília: Hucitec/INL, 1987. pp.145-79
30 SOUZA, Adriana Barreto de. O exército na consolidação do Império: um estudo histórico sobre a política militar
conservadora. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999. p.132
23
exército muito numeroso não valeria a terça parte de um exército bem disciplinado, além do que,
quanto mais indisciplinado for, mais funesto para o país e mais perigoso para a ordem pública.” 31
Ao assumir o governo regencial em 1837, Araujo Lima chamou para ocupar o Ministério
da Guerra o conservador Sebastião do Rego Barros32
. Quando no governo, Rego Barros
apresentou um projeto para reorganização das forças armadas, com base nas propostas que já
vinham sendo defendidas pelos conservadores, restabelecendo a força de 1ª Linha para fazer
frente às ameaças externas.
Os conservadores arremataram estrategicamente os descontentamentos com o acirramento
das disputas provinciais, articulando num projeto político que buscava conter os revoltosos e, ao
mesmo tempo, apresentar a fragilidade dos governos liberais. Conseguiram imobilizar os liberais
e passaram a modificar a legislação que foi reformada durante os anos iniciais da Regência.
Essas propostas foram inicialmente desenvolvidas pela “trindade saquarema” (Paulino
José Soares de Souza, Joaquim José Rodrigues Torres e Eusébio de Queiros Matoso Câmara),
contando ainda com o apoio de Honório Hermeto Carneiro Leão e José da Costa Carvalho. Essa
“trindade” formou o núcleo do Partido Conservador que conseguiu dar “forma e expressão à
força entre os últimos anos do Período Regencial e o renascer liberal dos anos sessenta, a qual
não só alterou os rumos da „Ação‟ mas, sobretudo imprimiu o tom político e administrativo e
definiu o conteúdo do Estado Imperial.” 33
A reação centralizadora se fundamentou primordialmente na Lei de interpretação do Ato
Adicional, que foi aprovada em 12 de maio de 1840, revogando os poderes atribuídos as
31
Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 23 de junho de 1837. Apud SOUZA, Adriana Barreto de. O exército
na consolidação do Império. Op. cit., p.32 32
O início da reorganização do Exército, ainda durante o regresso, teve no Ministério da Guerra o conservador
Sebastião do Rego Barros, um típico oficial aristocrata filho de coronel, nascido em Pernambuco, que ingressou no
Exército aos três anos de idade com o título de cadete. SOUZA, Adriana Barreto de. O exército na consolidação do
Império. Op. cit., p.85. 33
MATTOS, Ilmar. Op. cit., p.108 Essas pessoas que ganharam destaque no campo político na primeira metade do
século XIX, como no caso desses políticos que conseguiram imprimir um direcionamento na construção do Estado
imperial, utilizaram de vários meios para poder tecer suas relações, não sendo exclusivamente relacionadas à origem
social dos representantes. Como foi o caso de Paulino Soares e Rodrigues Torres, que casaram com as filhas de João
Álvares de Azevedo, um proeminente cafeicultor fluminense.
24
Assembleias Provinciais34
. Esse projeto foi elaborado ainda no ano de 1837, por uma Comissão
da Assembleia Legislativa da Câmara formada pelos conservadores Paulino José Soares de
Souza, Miguel Calmon e Honório Hermeto Carneiro Leão. No ano seguinte, na aprovação da Lei
de Interpretação do Ato Adicional, foi aprovada a reforma do Código do Processo Criminal, com
base num projeto apresentado em 1839, pelo senador Bernardo Pereira de Vasconcelos,
subordinando a ação judiciária e criminal, ao governo central. 35
A reforma da Guarda Nacional completou esse processo de centralização. A Lei nº 602 de
19 de setembro de 1850 extinguiu o sistema eleitoral e regulamentou a escolha de oficiais pelo
governo central. Segundo Ilmar Mattos, essa reforma rompeu com o mito da democracia que a
Lei de 1831 forjara ao determinar preenchimento de cargos por meio da eleição, reafirmando a
hierarquização no interior da corporação, passando a estar subordinada ao Ministério da Justiça e
aos presidentes das províncias. Era uma maneira de assegurar os interesses do Governo Central,
mantendo-o em ligação com os poderes locais, fazendo da Guarda Nacional um agente
centralizador e difusor das noções de ordem, disciplina e hierarquia, para que os homens livres
aderissem aos propósitos conservadores.36
Consideramos que, devido a essa atribuição dada a
Guarda Nacional pelos conservadores, na proposta de organização do Estado, ela não foi
desmobilizada ao iniciar a reestruturação das forças de 1ª Linha, continuando com o propósito de
proteção da ordem interna do país, ou seja, dos interesses da ordem escravista.
Para realizar essas reformas, os regressistas contaram com o apoio dos senhores
proprietários de terras, principalmente da elite que emergia na região do Vale do Paraíba37
. No
fim da década de 1830, o Brasil despontou como o maior produtor mundial de café, cuja
produção vinha quase toda da região do Vale do Paraíba38
. Com terras aptas e disponíveis para o
cultivo, numa região próxima ao grande porto do Rio de Janeiro, a província fluminense do
médio Vale do Paraíba despontou na produção cafeeira. O aumento dessa produção significou um
34
Segundo Fernando Uricoechea, a década de 1840 marca o esforço do governo em retirar dos senhores os
instrumentos políticos locais, os quais perdem o monopólio local da máquina judiciária e policial, e deixa de nomear
os vice-presidentes. URICOECHEA, Fernando. Op. cit., p.111 35
BASILE, Marcello. Op. cit., pp. 87-91 36
MATTOS, Ilmar. Op. cit., pp.171-172 37
Segundo Fernando Uricoechea, em nenhum momento da construção do Estado imperial o governo central
mostrou-se capaz de governar sem tecer alianças com os potentados locais, reconhecendo os limites frágeis de sua
autoridade. URICOECHEA, Fernando. Op. cit., p.112 38
Compreende terras das províncias de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.
25
acréscimo significativo de mão de obra, num momento em que, a Inglaterra vinha pressionando o
Brasil para o cumprimento do acordo assinado entre os dois países, previa o fim do tráfico
internacional de escravos.39
A elite cafeeira necessitava de uma estrutura política, capaz de assegurar seus interesses
ameaçados pela instabilidade, gerada pelas revoltas provinciais que inviabilizavam os
investimentos direcionados para incentivo da exportação e, ao mesmo tempo, pudesse fazer
frente à política antiescravista inglesa. Com isso, os saquaremas (grupo de políticos
conservadores da província fluminense) elaboraram suas propostas, partindo do pressuposto de
que era necessário um Estado forte e centralizado para proteger aos interesses dos proprietários
de terras e, assim, garantir a integridade territorial frente ás ameaças internas e externas. Esse
grupo que formou o núcleo do Partido Conservador conseguiu, no decorrer do período de
constituição do Estado imperial e da classe senhorial40
, consolidar sua posição na direção política
do governo do Estado e, ao mesmo tempo, assegurar os interesses de setores ligados a agricultura
escravista que eles representavam.41
Desse modo, as medidas centralizadoras não tinham por objetivo uma substituição dos
poderes locais, mas “estar em contato permanente com ele, romper seu isolamento, para poder
vigiá-lo e dirigi-lo” e, assim, impor um predomínio dos interesses do governo do Estado sobre os
interesses privados.42
Os liberais, com a maioridade, assumiram o gabinete ministerial, mas essa permanência
foi por pouco tempo. Dispensados do governo, fizeram insurgir as revoltas liberais em Minas
Gerais e São Paulo, em 1842, contra o estabelecimento do poder centralizador. Quando
retornaram ao governo em 1844, os liberais mantiveram a estrutura institucional vigente
modificada pelas reformas regressistas, facilitando a retomada das reformas quando os
conservadores retornaram ao governo em setembro de 1848.
39
MARQUESE, Rafael; TOMICH, Dale. O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado mundial do café no
século XIX. In: O Brasil Imperial volume II – 1831-1870. SALLES, Ricardo (Org.) Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2009. pp. 364-365 40
A classe senhorial se constituiu por cafeicultores, burocratas, comerciantes, todos com interesses comuns
relacionados ao monopólio de mão de obra e da terra. Ao mesmo tempo em que propunha a construção do Estado
imperial, expandiram seus interesses e procuraram imprimir uma direção e dominação, “levando a cabo seu próprio
forjar enquanto classe”. MATTOS, Ilmar. Op. cit., p.57 41
Ibidem, p.165 42
Ibidem, p.205.
26
As experiências das revoltas provinciais mostraram os limites da política empreendida
pelos liberais, que se viram incapazes de conter os revoltosos. Essas experiências foram
favoráveis aos direcionamentos políticos dos conservadores, sendo que, a revolução Praieira de
Pernambuco em 1848 foi um dos fatores que ajudou na queda do gabinete liberal presidido por
Francisco de Paula Souza e Melo, colocando fim aos quatro anos seguidos de governo liberal,
marcando a ascensão dos conservadores novamente ao poder.
De acordo com Joaquim Nabuco, “A revolução de 1848 em Pernambuco podia ser
desejada pelo Partido Conservador, tão proveitosa lhe foi”.43
No decorrer dessa segunda fase das
revoltas provinciais, ainda na década de 1840, o Exército conquistou as primeiras vitórias, após o
restabelecimento de seu efetivo militar. Foi vitoriosa sua atuação, sob o comando do marquês de
Caxias44
, contra a Sabinada na Bahia, a Balaiada no Maranhão, as revoltas liberais de São Paulo e
Minas Gerais, a Farroupilha no Rio Grande do Sul e, a última delas, a Praieira em Pernambuco.45
Após o fim dessas revoltas, os conservadores assumiram a direção do governo, formando
o gabinete de 29 de setembro de 1848, exclusivamente conservador, contando inicialmente com o
visconde de Olinda na presidência do Conselho e nas pastas da Fazenda e dos Negócios
Estrangeiros; José da Costa Carvalho na pasta do Império; Eusébio de Queiros na Justiça; e
Manoel Felizardo de Sousa e Mello nas pastas da Guerra e da Marinha. Aproximadamente um
ano após essa formação inicial, saiu Olinda e assumiu a presidência do Conselho José da Costa
Carvalho, sendo a pasta dos Negócios Estrangeiros ocupada por Paulino José de Souza Soares e a
da Fazenda por Joaquim José Torres Homem. Era a “trindade saquarema” reunida num mesmo
gabinete para impor os direcionamentos da política imperial.46
Embora o gabinete formado fosse exclusivamente conservador, inicialmente a Câmara foi
composta, em sua maioria, por membros do partido liberal. Essa situação apenas reverteu-se no
início dos anos de 1850, quando, com exceção de Bernardo de Souza Franco, a Câmara, assim
43
NABUCO, Joaquim. Um Estadista do Império. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar S.A., 1975. p.113 44
Luis Alves de Lima e Silva, o marquês Caxias, era sobrinho de Manoel da Fonseca Lima e Silva, que promoveu a
redução do efetivo militar em 1832.
45 SCHULZ, John. O Exército e o Império. Op. cit., p. 244
46 IGLÉSIAS, Francisco. Vida política, 1848/1868. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (Org.) História Geral da
Civilização Brasileira. Tomo II, v.3. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. p.12
27
como o gabinete, passou a ser exclusivamente conservadora.47
Segundo Joaquim Nabuco, esse
gabinete formado em fins de 1848 “era um dos mais fortes e mais homogêneos que o país já
teve” e se manteve até maio de 1852, quando foi formado um novo gabinete. Houve
continuidade, pois foi renovado apenas três dos nomes do gabinete anterior. Foram quatro anos
seguidos no governo, em que conseguiram lançar “a base de grandes reformas e melhoramentos
que mais tarde se realizaram”.48
Foram aprovadas medidas, por meio das quais os saquaremas
conseguiram se firmar no governo do Estado, impondo um direcionamento centralizador de
governo e conseguindo imprimir um direcionamento político, intelectual e moral.49
Os conservadores procuraram encaminhar as questões de interesse aos plantadores,
referentes à mão de obra e terra. Os cafeicultores do Vale do Paraíba já se encontravam
suficientemente abastecidos de mão de obra escrava, quando em 04 de setembro de 1850 foi
aprovada a Lei Eusébio de Queiros, estabelecendo uma série de medidas para o fim do tráfico
negreiro, buscando evitar qualquer desembarque de escravos em solo brasileiro. A partir desse
momento, a reposição da força de trabalho para a área de plantio foi basicamente realizada
através do tráfico interno entre províncias, fazendo-se necessária a construção de estradas
ferroviárias para escoamento dessa mão de obra, investimento em maquinário avançado, entre
outras medidas que permitissem poupar mão de obra. Nessa política do Estado, em preservar a
escravidão, há uma articulação entre a política de mão de obra e a de terras. Em 18 de setembro
de 1850 foi aprovada a Lei º nº 608, Lei de Terras, que o Estado caberia legislar sobre as terras
devolutas, tendo por objetivo poupar o consumo imediato de mão de obra, após o fim do tráfico
intercontinental. No início da segunda metade do século XIX também foram aprovadas algumas
medidas que iriam de encontro aos interesses dos negociantes, como as medidas administrativas
para regulamentar o meio circulante, incentivando a expansão dos negócios com o Código
Comercial de 1850 e com o Decreto nº 801 de 02 de julho de 1851 para organização do Banco do
Brasil. 50
Era a atuação da Coroa na busca de preservar o monopólio da mão de obra, na qual
estavam pautados os interesses da classe senhorial, eliminando suas vulnerabilidades. Para
47
Ibidem, p.16 48
NABUCO, Joaquim. Op. cit., pp.118-119 49
MATTOS, Ilmar. Op. cit., pp. 220-228 50
Ibidem, pp.174-240
28
justificar as medidas repressivas adotadas, o tráfico intercontinental foi apresentado como um
risco á soberania nacional, devido às pressões antiescravistas inglesa e ao aumento das
insurreições escravas. Procurou-se fazer com que o fim do tráfico não fosse relacionado à pressão
inglesa, mas como uma ação do governo imperial mediante a necessidade civilizatória.
Esse gabinete formado em 1848 teve a frente do Ministério da Guerra o conservador
Manoel Felizardo de Sousa e Mello51
, sendo aprovadas várias medidas para organizar as forças
armadas. As primeiras medidas referiam-se ao procedimento técnico administrativo, como a
elaboração de livros de assentamento, mapas estatísticos, entre outros. Com o objetivo de
conhecer os soldados para poder aumentar a capacidade de controle do Estado sobre os corpos
armados e implantar a disciplina. Também foram estabelecidas regras para organização do corpo
de saúde, criada uma comissão de melhoramentos materiais, uma escola de exercícios práticos de
artilharia, determinação de penas e processos crimes militares, criado curso de infantaria e
cavalaria na província do Rio Grande do Sul e regulamentando o acesso aos postos de oficiais das
diferentes armas.52
1.1 As reformas na organização militar a partir de 1850
Entre as medidas aprovadas para organização das forças armadas, a Lei nº 585 de 06 de
setembro de 1850 marcou uma mudança na estrutura dos corpos de oficiais e, consequentemente,
na organização do Exército. Essa lei regulamentava o acesso aos postos de oficiais do Exército,
estabelecendo requisitos de promoção por antiguidade, privilegiando a profissionalização e
abolindo o sistema aristocrático que permitia acesso a altos cargos em pouca idade, conforme
segue:
51
Manoel Felizardo é um exemplo de oficial de elite. Formou-se em matemática pela Universidade de Coimbra,
ocupou o cargo de presidente nas províncias do Ceará, Maranhão, Alagoas, Pernambuco e São Paulo. Representou a
província do Rio de Janeiro na Câmara dos Deputados, e dirigiu as pastas da Marinha, Fazenda, Agricultura e da
Guerra, como também fez parte da direção da Academia Militar. SCHULZ, John. O exército na política. Op. cit.,
p.28 52
MATTOS, Ilmar. Op. cit., p.173
29
Art. 1º O acesso aos postos de Officiaes das diferentes armas do Exercito será
gradual, e sucessivo desde Alferes, ou Segundo Tenente até Marechal de
Exercito.
Art. 3º Nenhum militar poderá ser promovido do posto de Alferes ou Segundo
Tenente, sem ter completado dezoito annos de idade, e dous annos, pelo menos,
de praça effectiva no Exercito.
Art. 4º Nenhum Official poderá ser promovido ate o posto de Capitão inclusive
sem ter as habilitações marcadas nos Regulamentos do Governo, e dous annos
de serviço em cada posto, nem terá accesso aos postos superiores sem ter
completado tres annos naquelle em que se achar.53
Por mais que os favorecimentos oriundos das “boas relações” política/social continuassem
presentes, as exigências de idade e de instrução para o progresso na carreira contribuíram
significativamente para a redução das vantagens aristocráticas. As vantagens oferecidas pela
instrução, numa sociedade em que os recursos educacionais já não eram restritos aos membros de
famílias tradicionais, contribuíram para que o corpo de oficiais do Exército, a partir da década de
1850, deixasse de ser “uma força privilegiada tradicional do ancien regime para transformar-se
em uma corporação relativamente profissionalizada e racional”.54
As principais transformações, que antecederam a década de 1850, foram a eliminação do
elemento português do Exército e a expansão do sistema de educação militar, por meio da criação
de uma Academia Militar em 1810. Até 1874 a Academia Militar era a única escola de
engenharia do Brasil, tendo bipartido em 1858, separando a parte de engenharia civil do ensino
propriamente militar. Quando criada, a Academia só formava oficiais de artilharia, estado-maior
e engenharia. Somente na década de 1850 passou a formar oficiais de infantaria e de cavalaria.55
Em 1845 foi ampliado o sistema de ensino militar, estando conectado com os objetivos da
carreira. As exigências para o ingresso na Academia Militar foram alteradas, acrescentando
gramática portuguesa, francês e geografia, além da gramática latina para o curso de engenharia.
53
Lei nº. 585 de 06 de setembro de 1850. Coleção de Leis do Império do Brasil. 54
SCHULZ, John. O exército na política. Op. cit., p.27 55
CARVALHO, José Murilo de. As forças armadas na Primeira República: o poder desestabilizador. In: FAUSTO,
Boris (Org.) História Geral da Civilização Brasileira. 2 ed. Tomo III, v.2. Rio de Janeiro: Difel, 1978. p.195
30
Mas em 1850, foram criadas escolas preparatórias gratuitas no Rio de Janeiro e no Rio Grande do
Sul, ampliando a oportunidade de acesso e melhor qualificação dos candidatos.56
Essas mudanças na organização do Exército abriram a perspectiva de ingresso na carreira
militar, oferecendo a oportunidade para as pessoas de variados níveis sociais em competir pelos
altos cargos. Para pais e padrinhos que desejavam investir na carreira dos filhos e não podiam
pagar um curso no Liceu, abria-se a perspectiva de ingresso na Academia Militar, onde recebiam
moradia, alimentação, educação e um modesto soldo. Para os que não possuíam dinheiro para
enviar o filho para fazer o curso de direito ou medicina, “as academias militares muitas vezes
apresentavam a única alternativa a uma vida de misérias” 57
.
Após essas reformas de âmbito organizacional, o Estado procurou introduzir mecanismos
disciplinares visando regulamentar a conduta dos militares. Esses oficiais mostravam-se pouco
feito a disciplina, não cumprindo ordens que lhes eram determinadas, achando-se no direito de
avaliar e traçar estratégias de defesa por conta própria, recusando a fazer parte de comissões
contrárias aos seus planos. Uma dessas medidas foi à criação da Repartição do Ajudante General,
responsável pela coordenação das atividades militares, através do qual o Estado procurou
aumentar seu controle sobre os oficiais do Exército.58
Algumas dessas medidas regulamentadoras provocaram reações e protestos por parte dos
militares, como ocorreu com o projeto de lei de 1854, o qual proibia jovens oficiais de contrair
laços matrimoniais sem a autorização do Ministério da Guerra. O Estado alegava não possuir
condições financeiras de arcar com os custos que os laços matrimoniais representavam, por ser
responsável em pagar pensão à viúva de oficiais. A proposta revoltou os jovens militares, que
promoveram manifestações, e, com base em princípio religioso moralista, conseguiram barrar a
aprovação do projeto de lei de 1854, embora este retornasse anos depois por meio de uma
circular.59
As mudanças no cenário político e a prosperidade econômica permaneceram até por volta
de 1864, possibilitaram as reformas na força de 1ª Linha e o financiamento das vitórias internas
56
SCHULZ, John. O Exército e o Império. Op. cit., p.248 57
Ibidem, p.241 58
SOUZA, Adriana Barreto de. O Exército na consolidação do Império. Op. cit., p.114 59
Ibidem, pp.114-115
31
comandadas pelo marquês de Caxias, na década de 1848 e, na região da Prata, contra Oribe e
Rosas no início da década de 1850.
Na segunda metade do século XIX o Estado Imperial já estava consolidado, os
conservadores já tinham firmado sua presença no governo do Estado e os conflitos entre as
facções políticas já não eram vistas como uma ameaça à unidade territorial do país. Foi um
período marcado por um maior desenvolvimento econômico e de progressos materiais. A
necessidade da ordem tornou-se secundária no projeto político, ganhando ênfase à necessidade de
difusão da civilização. Segundo Ilmar Mattos, nesse momento, as pastas do Império e da
Agricultura ganhavam mais atenção, predominando as atividades relacionadas ao
desenvolvimento econômico e progressos materiais, buscando conhecer a população e promover
a difusão dos valores, normas e padrões da direção política empregada.60
A partir de 1850 os acordos políticos entre os partidos se mostravam mais atraentes, de
modo que, não colocavam em risco as instituições imperiais. Essa estabilidade política forneceu a
possibilidade de conciliar as facções no governo, ambas participando da vida administrativa e
política do Império. Embora preservasse a hierarquia, os liberais tinham que se sentir como parte
do “mundo do governo”, de modo que, as disputas políticas não viessem a enfraquecer a estrutura
vigente nem deixar margem para a “plebe” reivindicar direitos e posições na política, pois a
liberdade política não deveria ser confundida com igualdade.61
Nessa nova proposta, a conciliação entre os partidos políticos apresentava-se como meio
difusor da civilização. A conciliação já era anunciada desde a década de 1840, mas somente
surgiu enquanto política ministerial em 1853, no 12º gabinete, presidido pelo conservador
Honório Hermeto Carneiro Leão (marquês de Paraná), onde “pela primeira vez depois de tantas
perseguições um governo fazia solenemente da conciliação o seu compromisso ministerial”. Esse
gabinete ainda contou com a presença de Luis Pedreira do Couto Ferraz, José Tomás Nabuco de
Araujo, Limpo de Abreu, Pedro de Alcântara Bellegarde, José Maria da Silva Paranhos e João
Mauricio Wanderley.62
60
MATTOS, Ilmar. Op. cit., p.201 61
Ibidem, pp.131-151 62
NABUCO, Joaquim. Op. cit., p.161
32
Segundo Joaquim Nabuco, o visconde de Paraná era um dos políticos mais fortes do país,
capaz de guiar a proposta política que visava uma “conciliação” para abrandar as rixas entre os
partidos: “Paraná era dotado de raro tino político, de uma disposição prática positiva que o fazia
observar friamente os homens, acumular as pequenas observações de cada dia, de preferência a
procurar ideias gerais, princípios sintéticos de política.” 63
Com exceção de Paranhos e Limpo de
Abreu, esse gabinete trouxe à posição de liderança um grupo de jovens políticos que tiveram
forte influência e predominância nos anos que se seguiram. Eram jovens formados em São Paulo
e Olinda, ao contrário da geração anterior, que era formada em Coimbra e predominou nos cargos
políticos no período que antecedeu a conciliação.64
Com a morte do marquês de Paraná em 1856, a “situação fica sem chefe” e a política de
conciliação começa a ruir a passos largos. Para substituí-lo na presidência do Conselho foi
convidado Pedro de Araujo Lima, o marquês de Olinda. Na busca de tentar prolongar a política
de conciliação, Olinda chamou dois liberais para comporem o gabinete, o que não agradou a ala
dos conservadores puros (mais próximos a trindade saquarema). A política implantada pelo
liberal Bernardo Souza Franco, na pasta da Fazenda, acabou gerando uma forte instabilidade no
mercado. O gabinete não resistiu à crise e caiu.65
Durante esse período o Ministério da Guerra foi ocupado exclusivamente por militares:
Manoel Felizardo de Sousa e Mello, Luis Alves de Lima e Silva (Caxias) e Pedro de Alcântara
Bellegarde. Os militares participaram da vida política durante todo o Império, não só como
representantes do corpo de oficiais, mas também como homens de partido. Estar inserido no meio
político era uma das maneiras mais rápidas para avançar na carreira militar. Ocupar cargos
importantes ou ser transferido para servir em uma província distante da capital do Império,
dependia das boas relações políticas.66
Para substituir Olinda, foi chamado para formar um novo gabinete o ex-liberal Limpo de
Abreu, o visconde de Abaeté, assumindo em 1858. Durante esse gabinete foi implantado, por
meio da atuação do ex-liberal Sales Torres Homem na pasta da Fazenda, uma política financeira
63
Ibidem, p.154 64
CARVALO, José Murilo. A construção da ordem. Op. cit., p.80
65 SENA, Ernesto Cerveira de. Entre anarquizadores e pessoas de costumes. Op. cit., p.123
66 SCHULZ, John. O Exército e o Império. Op. cit., pp. 250-251
33
que conseguiu conter a instabilidade no mercado gerada pelas medidas financeiras implantadas
no gabinete anterior, agradando o núcleo do Partido Conservador. Porém, dividiu os
parlamentares, notadamente do Partido Conservador, quando o gabinete passou a nomear pessoas
ligadas aos conservadores puros. Nesse momento, os congressistas já estavam divididos entre
conservadores puros, conservadores moderados e liberais.67
Moderados e liberais sentiram-se excluídos do governo, mas ao contrário do que se
realizou na década de 1840, quando pegaram em armas para reivindicar a participação no poder,
nesse momento, conseguiram eleger no próprio jogo constitucional um dos principais teóricos do
Partido Liberal, Teófilo Otoni no principal centro da política saquarema, a província do Rio de
Janeiro. Essa vitória levou a queda do gabinete de 1858, sendo convidado para formar um novo
gabinete o conservador marquês de Caxias, formando o gabinete em 02 de março de 1861. Os
políticos moderados que ingressaram nesse gabinete não demoraram no poder, pois logo foram
substituídos por outros ligados aos conservadores puros. A reação a essa medida não tardou a
aparecer.68
Conservadores moderados e liberais se uniram para alcançar mais representatividade no
poder, conseguindo derrubar o gabinete de 02 de março. Zacarias de Góis e Vasconcellos
assumiu provisoriamente a presidência, para em seguida assumir o marquês de Olinda, em maio
de 1862, como representante dessa reorganização partidária que resultou na formação da “Liga
Progressista”. De acordo com Nabuco, “a Liga teve sempre, como teve a Conciliação, a simpatia,
o apoio e a cooperação constitucional do Imperador, que via nela o desenvolvimento, a evolução
da ideia conciliadora de 1853.” 69
Ao contrário do ocorrido durante a conciliação, os liberais
predominaram nesse novo arranjo político.
A união entre moderados e liberais não era forte e faltou uma direção comum, sendo que
não demoraram a aparecer as disputas políticas dentro do próprio partido, acabando por separá-
los. Os progressistas continuaram integrando o gabinete, mas já não contavam com a sustentação
nas Câmaras, marcando um período de instabilidade ministerial até por volta de 1868.70
67
SENA, Ernesto Cerveira de. Entre anarquizadores e pessoas de costumes. Op. cit., p.123 68
Ibidem, pp.123-124 69
NABUCO, Joaquim. Op. cit., p.366 70
SENA, Ernesto Cerveira de. Entre anarquizadores e pessoas de costumes. Op. cit., pp.124-125
34
A década de 60 marcou uma nova fase do Império, onde os liberais alcançaram
significativas vitórias no campo político, dando início a uma nova organização partidária que
resultou no Partido Progressista, reascendendo os debates em torno da organização do Estado
imperial. Embora reascendessem as antigas discussões sobre a estabilidade econômica e política
que marcou a década de 1850, a qual permaneceu até o início do conflito que envolveu o Brasil
na região do Prata em meados da década de 1860.
1.2 “Como o diabo foge da cruz”: as dificuldades de mobilização militar
No ano de 1858, o ministro da Guerra, marquês de Caxias, alerta sobre a necessidade de
aumentar a força regular para garantir a segurança interna e externa do país. O ministro refere-se
ao momento conturbado em que o Brasil pleiteava o acordo de livre navegação pelo rio Paraguai,
no trecho em comum com a República do Paraguai. Em 1856, o governo brasileiro assinou com
Berges, plenipotenciário paraguaio enviado ao Rio de Janeiro, um acordo de amizade, navegação
e comércio com o Paraguai, mas este não foi cumprido. Segundo Joaquim Nabuco, a ratificação
desse acordo seguiu a promulgação de regulamentos que tinham por fim inutilizá-lo. Essas
negociações perduraram até 1858, quando foi estabelecido o franqueamento da navegação na
convenção de 12 de fevereiro, assinada por Paranhos e Francisco Solano Lopez na cidade de
Assunção.71
Mencionamos esse episódio, porque durante as negociações não foram descartadas as
possibilidades de uma guerra entre os dois países e, ao mesmo tempo, exporia as dificuldades em
mobilização para o serviço militar. De acordo com o marquês de Caxias, essa dificuldade de
completar o efetivo militar deveu-se a um
[...] systema tortuoso, irregular, e, por conseguinte improfícuo do recrutamento
forçado, admittido entre nós; e da necessidade, de dar-se baixa a praças que tem
71
NABUCO, Joaquim. Op. cit., p.192
35
excedido de muito o tempo de serviço marcado na lei, para cuja substituição o
producto desse defeituoso recrutamento é insufficiente.72
As reclamações quanto à insuficiência de efetivos militares e, principalmente, às
dificuldades em mobilizar homens para servir nas fileiras do Exército foram uma constante nas
primeiras décadas do século XIX e durante todo o Império brasileiro.
A cada ano era publicado um Aviso Circular estabelecendo o número de praças que cada
província deveria ter na guarnição e a quantidade que deveria fornecer ao corpo móvel, variando
de acordo com a província. No ano de 1856, no período tenso que antecedeu o acordo de livre
navegação, o número estabelecido pelo Parlamento aproximou-se de dezenove mil homens, o que
poderia ser considerado insuficiente para a proteção de um país territorialmente extenso e com
áreas fronteiriças litigiosas. No entanto, foi o mais elevado entre o início de 1850 até o início do
conflito contra o Paraguai. Embora inicialmente pudesse ser considerado insuficiente, era visto
como um peso aos recursos do país, tanto financeiros quanto humanos, sendo que a capacidades
militares desse período ultrapassaram pouco mais de quatorze mil praças.
Embora o serviço militar fosse obrigatório, as isenções concedidas afastavam parte
significativa daqueles que poderiam servir na força de 1ª Linha. Essas isenções permaneceram,
pois não havia a intenção de afetar a base da economia e aos interesses da classe senhorial. A
intenção do governo imperial era poder contar com um Exército organizado sem afetar
contundentemente os interesses da classe senhorial.
Essas isenções estão relacionadas aos embaraços impostos pelo escravismo a estruturação
do exército profissional, por estreitar a base de recrutamento, pois além de retirar o escravo da
mira do serviço militar, ainda fazia com que fosse necessária a manutenção de homens prestando
serviços privados para a manutenção da ordem interna, nesse caso, a Guarda Nacional. Levando-
se em consideração também as isenções decorrentes dos empregos na captura de presos e
escravos fugidos, emprego no policiamento e nos serviços de correio.
72
RELATÓRIO apresentado à Assembleia Geral Legislativa da primeira sessão da décima legislatura pelo Ministro
e Secretário dos Negócios da Guerra, Marquez de Caxias. Rio de Janeiro: Typ. Universal de Laemmert, 1857. p.15
36
Em vários momentos, a sugestão do marquês de Caxias, enquanto ministro da Guerra, foi
de reduzir o número de militares ao invés de aumentá-los. Isso porque, cada vez que fosse tentar
elevar esse efetivo teria de recorrer ao recrutamento forçado, sendo o qual não conseguiam
preencher a quantidade estabelecida de militares, uma vez que essa “decretação de uma força
irrealizável não passa de uma ficção, não passa de mera formalidade vã e illusoria”.73
Diante da dificuldade de completar o efetivo estabelecido para o ano de 1856-1857,
Caxias sugeriu que esse número fosse reduzido para quatorze mil praças, sendo dez mil para o
corpo móvel e quatro mil para as guarnições nas províncias:
[...] é mais conveniente ter um exército pequeno, porém composto de bom
pessoal, bem pago, bem disciplinado, e bem fornecido do necessário, do que um
maior, que não possa ser mantido nessas condições, pelo concurso de diversas
circunstâncias que o obstão. 74
As vitórias na região platina contra Oribe (1851) e Rosas (1852), assim como, as vitórias
sobre as revoltas provinciais, contribuíram para fortalecer a política externa brasileira e a ação
política dos conservadores, pois eram questões vistas como uma ameaça a integridade do Império
brasileiro. Essas conquistas foram proveitosas para a força de 1ª Linha, assim como, as reformas
implantadas nesse período, mas o Exército continuou sendo visto como lugar de criminosos e de
marginais. Assim, o preenchimento de suas fileiras era majoritariamente realizado por meio do
recrutamento forçado, com base nas instruções elaboradas no Primeiro Reinado.
Apesar dos esforços empregados, o Exército permaneceu no decorrer da segunda metade
do século XIX com um efetivo numericamente insignificante para a extensão territorial do país.
A taxa de efetivos estabelecida pelo Parlamento não sofreu mudanças significativas, sendo
mínimas as variações presentes em momentos mais conturbados, como o que envolveu a ação do
Brasil no Prata para negociação do acordo de navegação com o Paraguai.
73
RELATÓRIO apresentado à Assembleia Geral Legislativa na primeira sessão da décima primeira legislatura pelo
Ministro e Secretário dos Negócios da Guerra Marquês de Caxias. Rio de Janeiro, Tpy. Laemmert, 1861. p.12 74
Relatório do Ministério da Guerra de 1857. Op. cit., p.15
37
O número presente no quadro I representa a quantidade de homens que o Parlamento
considerava suficiente para o serviço militar. Mas, entre o número considerado adequado e aquele
que efetivamente existia, há uma distância significativa, marcada por deserções, fugas, isenções,
redes de privilégios, voluntários e recrutas.
Quadro I – Força efetiva de paz e guerra do Exército 1850-1864
ANO 1850-
51
1852-
55
1856 1857 1858-
59
1860 1861 1862-
63
1864
PAZ 16.000 16.000 19.000 19.500 17.000 17.000 18.000 14.000 18.00
0
GUERR
A
21.000 27.000 27.000 27.000 27.000 25.000 25.000 25.000 24.00
0
Fonte: SCHULZ, John. O Exército na política. Op. cit., p. 216.
O Exército era organizado em diferentes armas, sendo uma parte de força móvel e outra
parte de força fixa. Ao corpo móvel era atribuída mais importância, por oferecer a vantagem de
poder se mobilizar pela vasta extensão do território nacional. Embora os corpos fixos ou
guarnições ficassem restritos a proteção das províncias, era considerada imprescindível para a
defesa e para a manutenção da ordem, devido à vasta extensão do território e à insuficiência da
força policial nas províncias.75
Os praças do Exército que faziam parte dos corpos de guarnição, constantemente, eram
distraídos de sua função militar para serem empregados no serviço de policiamento, captura de
presos e de escravos fugidos no correio e nas construções. Tal prática gerou reclamações por
parte dos presidentes de províncias, alegando-se que esse deslocamento de funções estaria
fazendo com que os militares prestassem um serviço para o qual não haviam sido designados.
Esta era uma das causas da más condições da disciplina desses corpos de guarnição.
75
RELATÓRIO apresentado à Assembleia Geral Legislativa na quarta sessão da nona legislatura pelo Ministro e
Secretário dos Negócios da Guerra Marquês de Caxias. Rio de Janeiro, Tpy. Laemmert, 1856. p.12
38
Seria conveniente que os corpos policiaes nas províncias fossem
preenchidos, a fim de poderem acudir e desempenhar todo o serviço próprio da
sua instituição, de modo que nem a tropa de linha seja continuamente distrahida
para a captura de criminosos e outros iguaes commissões, para as quaes não está
convenientemente educada, nem a guarda nacional se converta, por semelhante
maneira, em força permanente de linha.76
Além dos problemas para conseguir mobilizar praças para o Exército, outros fatores
contribuíram para o desfalque das forças de 1ª Linha, como a morte de efetivo, baixas por
doenças, deserções, fim do tempo de serviço. O resultado dessa combinação de fatores contribuiu
para um esvaziamento anual das forças armadas.
1.2.1 Voluntários engajados e recrutas
Os métodos empregados para preencher as fileiras do Exército eram variados. Utilizavam-
se da contratação de mercenários e do destacamento de Guardas Nacionais, tidos como recursos
provisórios para o oferecimento de vantagens ao voluntariado, para haver o engajamento e o
recrutamento forçado.
A contratação de mercenários teve significativa importância, aproximadamente até o
início do Primeiro Reinado, que no processo de Independência viu-se sem Exército para enfrentar
os conflitos internos que estavam eclodindo no país.
Outra opção utilizada para o preenchimento das fileiras do Exército era o engajamento de
veteranos. O engajamento era realizado por aqueles que, tendo terminado seu tempo de serviço,
realistavam-se novamente. Era uma maneira de prestar serviço voluntário, recebendo um prêmio
pelo alistamento, um pouco maior do que os voluntários comuns, assim como, um maior soldo.
Mas o engajamento nem sempre esteve relacionado ao serviço voluntário, pois o Estado imperial
76
RELATÓRIO apresentado à Assembleia Geral Legislativa da primeira sessão da décima segunda legislatura pelo
Ministro e Secretário dos Negócios da Guerra, João Manoel de Mello. Rio de Janeiro: Typ. Universal de Laemmert,
1864. p.4
39
utilizou-se dessa prática para alongar o tempo de serviço dos militares, não concedendo baixa ao
fim da prestação do serviço militar. Dentro desse contexto, estiveram aqueles que, percebendo
que não iriam conseguir a baixa do serviço, acabaram se engajando por um novo período para
receber os benefícios do voluntariado.77
Em 1858, Manuel Felizardo de Sousa e Mello, então ministro da guerra, deixou de dar
baixa a 1.853 praças que tinham concluído seu tempo de serviço. De acordo com o ministro,
esses praças não tinham a intenção de se engajar para continuar a servir nas forças armadas, e se
tivessem dado baixa, o déficit no quadro de efetivos seria bem maior.
[...] esta falta de pontualidade (que não se póde evitar), constitue uma das
causas, que torna mais pronunciada a repugnância ao serviço da armas, por um
tempo indefinido, e destróe em grande parte a concorrencia de voluntarios; mas
o governo tem também o dever de não arriscar a segurança do paiz, constituindo
o estudo indefeso, por falta de pessoal necessario.78
Como o Estado demorava em dar baixa ao soldado que tinha completado o tempo de
serviço, o número de engajamento reduzia, porém diante do contexto significativo a retenção de
baixa contribuiu para a quebra de confiança daqueles que poderiam ser recrutados, aumentando a
dificuldade para a reposição das fileiras. E, ao mesmo tempo, aumentava o número de deserção
entre aqueles que perdiam a esperança de conseguir baixa no fim do tempo de serviço.79
O voluntariado era um modo de preencher as fileiras sem que o Estado recorresse ao
recrutamento forçado, sendo oferecidas algumas vantagens àqueles que se apresentassem para o
serviço militar, como podemos verificar em alguns artigos do regulamento para o serviço
voluntário no Exército, aprovado em 1848:
77
MENDES, Fábio Faria. Recrutamento militar e construção do Estado do Brasil imperial. Belo Horizonte, MG:
Argvmentvm, 2010. p.53 78
Relatório do Ministério da Guerra de1856. Op. cit., p.32 79
MENDES, Fábio Faria. Op. cit., p.41
40
Artigo 1º. Os Presidentes nas Provincias, e os Commandante das Armas
na Corte, contractarão Voluntários para servirem nos Corpos do Exercito por
tempo de seis annos, tendo, alêm das vantagens concedidas pelas Leis anteriores,
o premio nunca maior de duzentos mil réis aquelles que houverem já servido em
qualquer Corpo Militar pago, e até cento e cincoenta mil réis os que não
estiverem nestas circunstancias.
Artigo 2º. Metade do premio acima determinado poderá ser pago á vista, e
o resto em prestações de vinte mil réis mensaes.
Artigo 3. Para execução do disposto no Artigo antecedente, augmentar-se-
há na relação de mostra mensal huma casa de titulo – Gratificações de
engajamento – para nella se lançar a quantia que houver de tirar-se no mez para
cada praça.
Artigo 4ª. Os contractados, em quanto tiverem praça effectiva nos Corpos
do Exercito, terão direito ao respectivo premio; mas commetendo o crime de
deserção pelo qual forem sentenciados, ainda que depois tornem a continuar no
serviço, ou, tendo baixa por qualquer causa, que não seja desastre adquirindo em
acção do serviço ou moléstia, perderão o direito á percepção da parte do premio
não recebida, desde o dia da baixa em diante.
Artigo 6º. Os contractados não assentarão praça sem que huma Junta
sanitária declare terem elles a saude e robustez necessaria para bem servirem.80
Havia a ideia de que os “voluntários” buscavam atribuir à prestação de serviço militar
para a cooperação cívica, para atrair às fileiras do Exército por parte da população que tinha
aversão à prestação de serviço na força de 1ª Linha.81
Entre as vantagens oferecidas aos
voluntários estava à redução do tempo de prestação de serviço. Se um recrutado devia servir por
oito anos, aos voluntários esse período era reduzido para seis anos. Mas, as vantagens oferecidas
não serviam de garantia para evitar a deserção entre os praças que se apresentavam
voluntariamente, ou mudar a aversão da sociedade quanto ao serviço militar, sendo que “todas
essas vantagens não são sufficientes para vencerem a repugnancia do nosso povo ao serviço das
armas”.82
80
Decreto nº. 562 de 18 de novembro de 1848. Coleção de Leis do Império. 81
SENA, Ernesto Cerveira de. Entre anarquizadores e pessoas de costumes. Op. cit., p. 141 82
Relatório do Ministério da Guerra de 1861. Op. cit., p.16
41
Foram muitos aqueles que recorreram à deserção, logo ao ingressar no serviço militar,
levando o prêmio pago pelo governo, por ter se apresentado voluntariamente. Isso representava
duplo prejuízo ao Estado, pelo prêmio pago e pelos gastos adquiridos com o treinamento,
alimentação, vestuário, alojamento e etc. O artigo 2º do decreto de 1848, citado anteriormente,
reflete essa situação ao dividir o pagamento do prêmio, sendo que, o praça que desertasse não
levaria todo o valor que deveria ser pago pelo Estado, reduzindo o prejuízo gerado pela deserção
de voluntários. Assim como, o desertor que retornasse não teria direito a receber a parte do
prêmio que ainda não havia sido paga. A presença desses artigos no decreto, que regulamenta o
pagamento de benefícios aos voluntariados, aponta que a deserção era uma constante entre os
voluntários.
Diante das vantagens oferecidas, o número de voluntários era relativamente baixo83
, sendo
que a possibilidade de melhores condições financeiras e de não ter que se submeter ao sofrimento
da vida militar, ainda trazia poucos interessados em se apresentar voluntariamente à força de 1ª
Linha. “Os maus tratos, privações, as arbitrariedades e disciplina severa, e os baixos soldos
ajustavam-se à retórica do entusiasmo cívico e patriótico, desestimulando os voluntários
potenciais.” 84
Aqueles que se apresentavam voluntariamente ao Exército faziam por motivos diversos.
Segundo Fábio Faria Mendes, o fator econômico não era o principal atrativo ao voluntariado,
pois o soldo era baixo. O fator principal referia-se ao fato de haver a possibilidade de
recrutamento forçado, que era uma prática constante àqueles que não possuíam isenções legais ou
não contavam com a proteção de senhores locais, ofereciam-se como voluntários, como uma
maneira de amenizar o que seria por vez inevitável.
Como podemos perceber no quadro abaixo, embora não tenha sido maior o número
daqueles que prestavam serviços voluntariamente, foi significativa sua presença para completar
83
De acordo com Fábio Faria Mendes, as cidades de guarnição, como a Corte, o Rio Grande do Sul e Pernambuco,
apresentavam um índice maior de voluntários. Isso se deve ao fator de não haver necessidade de deslocamento para o
aquartelamento, ficando os soldados próximos do convívio familiar. O Rio Grande do Sul também conta com o fato
de ser província fronteiriça e ter relação conturbada com o país vizinho, requerendo atenção por parte do Estado
imperial. MENDES, Fábio Faria. Op. cit., pp.51-53 Acrescentemos o fato de essas localidades possuírem um número
populacional mais elevado, se comparado com outras províncias. 84
MENDES, Fábio Faria. Op. cit., p.49
42
os efetivos do Exército. O número de voluntários e engajados no período correspondem
aproximadamente 40% dos praças.
Quadro II - Recrutas, voluntários e engajados 1850-1864
1850-54 1855-59 1860-64
Recrutas 55,0 63,9 55,8
Voluntários 16,3 13,7 28,4
Reengajados 28,7 22,4 25,7
Total 100,0 100,0 100,0
Fonte: MENDES, Fábio Faria. Op. cit., p.47.
O recurso de mobilização militar que predominou no século XIX foi o recrutamento
forçado. Como o voluntariado não era suficiente para preencher as fileiras, recorriam-se ao
recrutamento para alcançar esse objetivo, sendo iniciado após o término do período destinado à
chamada de voluntários. O recrutamento era realizado com base nas Instruções de 1822, que
trazia inúmeras isenções, dando margem para interpretações arbitrárias.
Para justificar e procurar naturalizar essa prática, de maneira a evitar maiores transtornos
em torno dessa ação, os ministros da Guerra procuravam apresentá-la como o meio mais eficaz
de proceder ao preenchimento das fileiras do Exército, alegando que a apresentação de
voluntários e de engajados era insuficiente para atender as necessidades militares. Como
podemos perceber na descrição feita pelo ministro da Guerra Polidoro Jordão:
A experiência tem demonstrado que este duplo modo de alistamento
[voluntario e engajamento] não é entre nós um poderoso, mas sim muito fraco
elemento de reforço para as fileiras do exercito.
A geral repugnância da população para a carreira das armas, repugnância
devida aos rigorosos e austeridades da vida militar, e, sobretudo a facilidade dos
meios de subsistencia no nosso paiz, arreda do serviço do exercito o concurso de
43
numerosos indivíduos (aliás, perfeitamente aptos para elle), apezar das
vantagens que lhes são offerecidas.85
O recrutamento era um recurso sistemático para o preenchimento das fileiras, pois era
utilizado com frequência para esse objetivo, tendo limites estabelecidos para a prática, sendo
proibido no período de sessenta dias antes e trinta dias após as eleições, como só poderiam
começar trinta dias após o prazo estabelecido para chamada de voluntários. A quantidade de
homens a ser recrutados variava de acordo com a necessidade de reposição das fileiras e as
conjunturas políticas.
O recrutamento é apresentado pela historiografia como uma prática realizada por
autoridades civis (aparatos policial, judicial e administrativo), feito apenas eventualmente por
militares, sendo que, esses recrutadores não eram funcionários especializados, mas por um oficial
retido ou por um cidadão de prestígio local nomeado pelo Juiz de Direito.86
Consideramos que,
embora possa ser uma prática comum, não deve ser atribuída a todas as províncias no decorrer do
império brasileiro. O Decreto nº 2821 de 21 de agosto de 1861 alterou as disposições do
regulamento aprovado pelo Decreto nº 2171 de 1858 relativos à nomeação de recrutadores e suas
gratificações, estabelecendo que os recrutadores passassem a ser nomeados pelo Ministério da
Guerra e não mais pelos presidentes de província. Os recrutadores passaram então a receber um
salário mensal de sessenta mil reis e vantagens gerais quando oficiais ao invés de haver
investimentos em voluntários apresentados que assentassem praça. Ao presidente de província
coube apenas indicar os nomes entre aqueles que deveriam ser escolhidos, ficando essa escolha
ao cargo do Ministério da Guerra.
Através dessa medida centralizadora, podemos verificar os nomes indicados pelo
presidente da província de Mato Grosso para serem agentes recrutadores para o ano de 1862-
1863, quando o recrutamento passou a ser realizado por autoridades civis e raramente por
militares. Reafirmamos que estas medidas não servem de base para todas as províncias. Nesse
85
RELATÓRIO apresentado à Assembleia Geral Legislativa da terceira sessão da décima primeira legislatura pelo
Ministro e Secretário dos Negócios da Guerra, Polidoro da Fonseca Quintanilla Jordão, Rio de Janeiro: Typ.
Laemmert, 1863. p.11 Grifo nosso 86
KRAAY, Hendrik. Repensando o recrutamento militar no Brasil – Império. Diálogos, Maringá, v. 3, n. 3, 1999.
pp.114-118
44
caso, entre os oito indicados, apenas um era Guarda Nacional e outro exercia o cargo de Chefe de
polícia. Dentre os outros, quatro eram Oficiais superiores (um Coronel e três Tenentes-Coronéis)
e dois Oficiais subalternos (um Capitão e um Segundo-tenente).
Quadro III - Proposta de nomeação de recrutadores dirigida ao Ministério da Guerra pelo
presidente da província de Mato Grosso - 1862
Nº DISTRICTOS RECRUTADORES
1º Municipio da Capital O Tenente Comm. da Força Policial da
Provª. Gregório Rodrigues Ferreira e
Costa
2º Munº. do Diamantino O 2º Tenente Comm. do Destacam. de
linha Manoel Joaquim de Paiva
3º Munº. de Poconé O Ten. Cor. Comm. do 5º Batalhão da G.
N. João Nunes Bueno o Prado.
4º Munº. de Villa Maria O Cor. Comm. do Districto Militar João
Nepomuceno da Silva Portella
5º Munº. de Mato Grosso O Capitão Comm. do Distrº. Militar João
Gervasio de Sousa Perné
6º Freguesia de Albuquerque pertencente
ao Munº. de Miranda
O Ten. Cor. Comm. do Distrº. Militar do
Baixo Paraguay, Hermenegildo de
Albuquerq. Portocarrero
7º Fregsª. de Miranda O Ten. Cor. Comm. do Distrº. Militar
José Antonio Dias da Silva
8º Municipio de Sant‟Anna do Paranahyba O Alferes Comm. do Destacam. de linha,
Justiniano Candido da Cunha Barbosa.
Fonte: Herculano Ferreira Penna ao ministro da Guerra Polydoro da Fonseca Quintanilha Jordão em 4 de agosto de
1862. Registro de Correspondência oficial da presidência com o ministro da Guerra 1861-1862. Livro 194, R. 37,
F.06
45
Percebemos na documentação enviada por agentes de recrutamento ou referindo-se a eles,
que se trata de forte presença de militares, principalmente de oficiais superiores encarregados do
serviço do recrutamento. Nesse contexto, muitos agentes recrutadores agiam em benefício de
interesses de grupos políticos, utilizando o recrutamento para benefícios eleitorais em busca de
obter votos, o que explica a ressalva do ministro da Guerra José Mariano de Mattos, em
evidenciar que o recrutamento deveria ser realizado por pessoas alheias a influência dos partidos
políticos, como também não deveria ser realizado em períodos eleitorais.
A maioria das restrições se deve ao fato do recrutamento ser utilizado como instrumento
político para enviar as fileiras do Exército membros de facção adversária, efetuar prisão de
pessoas da política local que eram da oposição e enviá-las para outros locais. Mas essa prática
não ficava restrita aos períodos próximos as eleições, sendo algo corriqueiro no cotidiano de
todas as províncias do Império.
Muitas vezes é dispensado, ou deixa de ser enviado para o serviço do
exercito aquelle, que nenhuma isenção tem a seu favor, sendo, porém, recrutados
pessoas em outras circunstancias, mas contra quem prevalecem ódios e
prevenções de localidade. 87
As autoridades policiais procuravam utilizar-se do recrutamento para se livrar de
criminosos e desordeiros potenciais. O Juiz de Paz, responsável pela vigilância da população,
aproveitava para combinar a função do policiamento com a do recrutamento, buscando resolver
as duas questões ao mesmo tempo “sempre que a oportunidade se apresenta, as autoridades locais
procuram „limpar‟ seus distritos de vadios e patifes por meio do recrutamento”, entregando esses
criminosos potenciais ao recrutamento ao invés de enviar para a prisão, que não se mostrava
segura.88
No entanto, mesmo que o recrutamento tenha sido usado como mecanismo de controle
social, a finalidade dele era corresponder às necessidades militares. Através desse recurso o
87
Relatório do Ministério da Guerra de 1863. Op. cit., p.4 88
MENDES, Fábio Faria. Op. cit., p.88
46
Estado procurou fornecer o número de soldados necessários ao serviço militar sem ter de arcar
com custos elevados e sem afetar as forças produtivas, evitando estender o recrutamento a toda à
sociedade.
O sucesso do recrutamento dependia da sua imprevisibilidade, surpreendendo os recrutas
potenciais e não dando tempo para fugirem. Mas como havia sinalização do momento em que
seria iniciado o recrutamento (após a eleição e a chamada de voluntários), os agentes tinham de
adaptar-se a esse contexto, para formular novas estratégias. Acabando, muitas vezes, por utilizar
de pretextos diversos para recrutar, aumentando ainda mais a aversão da população ao
recrutamento.89
Após a realização do recrutamento, os recrutados deveriam ser encaminhados ao quartel
por uma escolta, para que não desertassem no caminho. As instruções de 1822 ressaltam que não
deve ser empregado o uso de “correntes, algemas ou manilhas” no decorrer da escolta dos
recrutados, o que significa que esses métodos eram utilizados para esse fim.
1.2.2 Os embaraços ao recrutamento militar
Os alvos do recrutamento eram aqueles que não dispunham de algum tipo de proteção. O
momento em que o recrutamento atingiu os grupos que gozavam de isenções deu-se quando foi
preciso ampliar os esforços impostos pelo conflito entre o Brasil versus o Paraguai. Com exceção
desse período, o recrutamento era realizado nas camadas dos homens livres e libertos pobres.
O pequeno Exército imperial centrava o recrutamento naqueles que não
contavam com a proteção de alguma pessoa influente que as pudesse isentar
89
Ibidem, pp.71-73
47
daquele serviço. Desocupados, potenciais criminosos e desempregados eram os
principais alvos dos recrutadores.90
Por se tratar do recrutamento em uma sociedade escravista, não devemos esquecer que o
escravismo imprimiu suas bases para dificultar ainda mais o sistema de recrutamento e a
formação de efetivos do Exército. Segundo Wilma Peres Costa, a manutenção do sistema
escravista é um empecilho para a composição do quadro das forças armadas, pois o escravismo
era parte significativa da população, mas que não podia ser recrutado para servir nas fileiras
armadas por não ser considerado detentor dos direitos que tinham os homens livres. Além de
reduzir o número de pessoas a serem recrutadas, o sistema escravista tinha como necessidade a
manutenção de uma milícia local para proteger os senhores latifundiários das ameaças de rebelião
escrava. O resultante desse política interna do Império, foi reduzir significativamente o
contingente a ser recrutado.91
O governo não tinha a intenção de libertar escravos para esse fim (o serviço militar), pois
afetaria a base da mão de obra. O alistamento de escravos estava condicionado às vontades dos
senhores, sendo que procuravam agir com cautela para não afetar as bases de apoio ao regime
monárquico.
No decorrer do século XIX, houve vários casos de escravos que fugiam para se alistar
voluntariamente no Exército, enquanto outros eram recrutados confundidos no meio da
população livre que circulavam pelas ruas. Porém, em nenhum desses dois casos o governo
ameaçava os interesses dos senhores, sendo que estes podiam recorrer à devolução do escravo,
caso conseguisse provar que era de sua propriedade. Para isso era necessário, logo de início, que
o senhor reconhecesse seu escravo, pois este fornecia nome falso para ingressar nas fileiras do
Exército, negligenciando informações pessoais e a condição de cativo. Após reconhecer e provar
ser sua propriedade, o senhor devia arcar com os custos para sua libertação, pagando os gastos
realizados pelo Exército com o recruta.
90
IZECKSOHN, Vitor. Recrutamento militar no Rio de Janeiro durante a Guerra do Paraguai. In: CASTRO, Celso;
IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik (Org.) Nova história militar brasileira. Rio de Janeiro: Editora da FGV,
2004. p.183 91
COSTA, Wilma Peres. Op. cit., p.59
48
[...] mesmo que as autoridades tivessem se apoderado ilegalmente da
propriedade alheia, através do recrutamento forçado, ou tivessem negligenciado
verificar a condição de liberdade dos voluntários, os interesses fiscais do Estado
levaram-no a exigir dos senhores pagamento pelo sustento dos recrutas
dispensados por serem escravos.92
Em situações extraordinárias, como a que ocorreu na Guerra do Paraguai, as dificuldades
enfrentadas pelos agentes do Estado para completar as forças militares fez com que o Estado
aceitasse escravos nas fileiras do Exército. Esses escravos eram comprados pelo Estado e
libertados, para depois serem enviados ao quartel. Dessa maneira, não estariam sendo recrutados
escravos, mas libertos. A venda de escravos para o governo apresentou-se aos senhores como um
modo de recuperar investimento, vendendo escravos que eram doentes, problemáticos ou
apresentavam algum tipo de deficiência física.93
Assim como, o regime escravista apresentava limitações ao recrutamento, podemos
destacar mais dois fatores principais que restringiam a realização do recrutamento de vários
setores da sociedade: são as isenções legais e as redes de proteção.
Em 1856, o marquês de Caxias descreveu no relatório do Ministério da Guerra o que
considerava serem os fatores principais do problema para completar o efetivo do Exército.
Ambas as causas apresentam embaraços para o recrutamento e estavam relacionadas às isenções
legais ao serviço militar. Referiam-se, primeiramente, ao sistema de recrutamento vigente.
Essa deficiência de pessoal para completar a força decretada dimana de
muitas causas: indicar-vos-hei como principaes; 1º, o systema defeituoso do
recrutamento para o exército, que se funda em uma multiplicidade de instruções,
de portarias, de avisos, importando inumeraveis isenções, que, não formando um
92
KRAAY, Hrendrik. “O abrigo da farda”: o Exército brasileiro e os escravos fugitivos, 1800-1881. Afro-Ásia.
Salvador, v.17, 1996. p.37 93
IZECKSOHN, Vitor. Recrutamento militar no Rio de Janeiro durante a Guerra do Paraguai. Op. cit., p.81 Em um
contexto de alta dos preços de escravos, devido ao fim do tráfico intercontinental e o aumento da demanda para área
de plantação como o Vale do Paraíba, possivelmente eram poucos os casos de alforrias nesse período.
49
corpo regular de doutrina, muitas de suas disposições escapão ao conhecimento
das autoridades recrutadoras; e provém dahi a inefficacia, e irregularidade do
serviço [...]94
O sistema de recrutamento no Brasil imperial baseava-se nas instruções de 1822, para
saber quem poderia ser recrutado e os que estavam isentos do serviço na força de 1ª Linha.
Comentamos anteriormente sobre quais eram os alvos do recrutamento, agora cabe pontuar quais
eram os grupos beneficiados com essas isenções.
As Instruções de 1822 estabeleceram inúmeras isenções legais, estando isentos do serviço
militar homens casados, irmão maior de órfãos, um filho de cada viúva e de cada lavrador,
estudantes, feitores ou administradores de propriedade com mais de seis escravos, tropeiros,
mestre de ofício, pedreiro, carpinteiro, pescadores, cocheiros, marinheiros, determinado número
de caixeiro de casa comercial nacional ou estrangeira. Lembrando que, o serviço no Exército
requeria dedicação exclusiva, tendo que permanecer alojado nas acomodações militares e, muitas
vezes, em locais distantes de suas residências. Estar alistado no Exército apresentava-se como um
empecilho da dedicação às atividades econômicas e às demais atividades que requeriam muito
tempo.
A ampliação das isenções em 1837, alterando o modo de proceder ao recrutamento,
acrescentou que o recruta poderia conseguir se isentar por meio da substituição ou do pagamento
de contribuições, ampliando ainda mais a válvula de escape para aqueles que tinham recursos. É
permitido aos recrutados apresentar em seu lugar “substitutos idôneos ou a quantia de
quatrocentos mil réis” 95
, aumentando a possibilidade de evadir-se do serviço militar, pois era
permitido a qualquer praça, em todo o tempo eximir-se do serviço, entrando
para os cofres públicos com a quantia correspondente ao tempo que lhe falta
servir; concorre também em grande parte para o desfalque das fileiras do
exército. 96
94
Relatório do Ministério da Guerra de 1856. Op. cit., p. 17. 95
Decreto de 13 de outubro de 1837. Coleção de Leis do Império do Brasil. 96
Relatório do Ministério da Guerra de 1861. Op. cit., p.20
50
A segunda causa para a dificuldade em completar o efetivo do Exército, apresentado por
Caxias, refere-se à Guarda Nacional:
[...] a necessidade que o governo tem para suppir a insufficiencia da força
do exercito, de poupar do recrutamento forçado, não só os guardas nacionaes em
destacamento, mas também os das capitaes das províncias que fazem nellas o
serviço da guarnição; e servem de preferencia os designados para taes misteres
aquelles em que geralmente não recahem as isenções estabelecidas.97
O serviço na Guarda Nacional era eventual, com local apropriado e com disciplina menos
rígida. Constituindo-se numa rede de proteção legal contra o recrutamento e isentando seus
membros do serviço ativo no Exército. Os cidadãos alistados no serviço ativo ou reserva da
Guarda Nacional estavam isentos do recrutamento para o serviço na Tropa de 1º Linha, conforme
as Instruções de 1822, ficando sujeito a serem destacados para auxiliar a força de 1ª Linha
quando a situação assim o exigisse.
O campo de atuação dos guardas nacionais era restrito aos limites da província. Mas
vários foram os Corpos destacados para o serviço extraordinário para suprir a tropa de linha para
enfrentar momentos mais conturbados. Muitas vezes, essas interferências na Guarda Nacional
não agradavam aos interesses das lideranças locais que as utilizavam como um sustentáculo para
manter seus interesses e o poderio local.98
Ao serem destacados para auxiliar o Exército, os
guardas nacionais estavam submetidos exclusivamente aos regulamentos da própria Guarda
Nacional, estabelecido pela Lei de 1850, diferenciando dos soldados aqueles que eram alistados
em províncias fronteiriças com países vizinhos, também contavam com um regimento especial
97
Relatório do Ministro da Guerra de 1856. Op. cit., p.17 98
IZECKSOHN, Vitor. Resistência ao recrutamento para o Exército durante as guerras Civil e do Paraguai. Brasil e
Estados Unidos na década de 1860. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº 27, 2001, p.86
51
promulgado em 1850, ficando o governo autorizado a dar regulamento especial para a
qualificação, organização e serviço dos Guardas.99
A necessidade de auxiliar o Exército oferecia aos comandantes uma nova opção, que era
reprimir os milicianos, principalmente os de facção oposicionista, enviando-os para suprir a
insuficiência de efetivos da força de 1ª Linha. O simples fato de pertencer a Guarda Nacional não
assegurava aos milicianos deixar de alistar-se para ao Exército. As redes de relações pessoais
eram fundamentais nessa situação, tanto para não ser enviado ao Exército pelo próprio
comandante, quanto para contar com sua proteção no caso de ser recrutado.100
As redes de proteção eram as principais dificuldades para a realização do recrutamento,
por interferir entre aqueles que podiam ou não ser recrutados. Isso estabelecia limites ao serviço
do agente recrutador, ficando muitas vezes sem saber quem poderia ou não ser recrutado. Esses
agentes só conseguiram atravessar os limites das proteções quando, em tempo de guerra, o
recrutamento exigia um número de recrutas mais significativo e adentrava no espaço de proteção
dos potentados locais.101
Diante da dificuldade em conseguir completar o número de efetivos, as isenções legais, às
vezes, não impedia que indivíduos isentos fossem recrutados. Nessa situação, cabia ao presidente
de província a função de analisar os requerimentos de isenção e fornecer parecer favorável ou
desfavorável sobre os pedidos. No entanto, emitir parecer favorável ao requerimento de soltura
daqueles que tinham sido recrutados apesar de isentos, era uma maneira de buscar reforçar sua
imagem de autoridade e os laços de proteção.102
Quando não conseguiam isentar-se, os praças buscavam outros meios para escapar do
serviço militar, por meio de “fugas, automutilação, resistência armada, falsificação de
documentos, casamentos de última hora, tudo servira na profusão de estratégias de evasão dos
recrutáveis.”103
99
Refere-se ao decreto 520 de 14 de fevereiro de 1850. Coleção de Leis do Império do Brasil. 100
IZECKSOHN, Vitor. Recrutamento militar no Rio de Janeiro durante a Guerra do Paraguai. Op. cit., p.194. 101
KRAAY, Hendrik. Repensando o recrutamento militar no Brasil – Império. Op. cit., pp.123-125 102
Ibidem, p.122 103
MENDES, Fábio Faria. Op. cit., p.54
52
As redes de privilégios e isenções eram inúmeras, bem como, as estratégias de fuga e
resistência ao recrutamento. A deserção foi uma constante no Exército, sendo que nem as
penalidades barravam essa prática. A deserção foi uma prática comum entre os soldados desde o
período colonial.
Os desertores procuravam refugiar-se nos matos para escapar dos agentes recrutadores,
sendo que a fronteira com países vizinhos representava uma opção para a deserção, assim como,
uma fonte de preocupação e de dificuldade para os agentes recrutadores. A deserção representava
perda de investimento por parte do Estado, que investia tempo, esforço e dinheiro no treinamento
de recrutas, sendo ainda pior no caso da deserção dos voluntários que levavam o prêmio pago
pelo engajamento voluntário.104
104
KRAAY, Hendrik. O cotidiano dos soldados na guarnição da Bahia (1850-89). In: CASTRO, Celso;
IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik (Org.) Nova história militar brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004
p.244
53
CAPÍTULO 2
O PERIGO ESTÁ AO SUL:
A ATUAÇÃO DO EXÉRCITO NA PROTEÇÃO DE MATO GROSSO
A organização do Exército na província de Mato Grosso não é indiferente à organização
militar que apresentamos na primeira parte deste trabalho. Essa província estava localizada numa
região litigiosa, fazendo, em geral,fronteira ao sul - sudoeste com a República do Paraguai e a
oeste com a República da Bolívia. Sua proteção fazia parte da preocupação do governo imperial
que procurava manter em estado defensivo as áreas de fronteiras para garantia da integridade
territorial do país. Na nova ordem de interesses do Império, era fundamental garantir o controle
sob seu território, inclusive sob as províncias mais longínquas. Para isso, era necessário ter rápido
acesso a todo o território e manter os limites políticos bem definidos. Essas duas questões
nortearam a ação do governo imperial em relação à Mato Grosso e a importância das forças
armadas nessa localidade.
2.1- Navegação e limites: peculiaridades de uma província fronteiriça
O processo de ocupação de Mato Grosso teve início com a entrada de homens pelo sertão
em busca de índios e de metais preciosos. Foi no decorrer desse processo que a região de Cuiabá
foi ocupada, após a descoberta de ouro nas margens do rio Coxipó em 1719 por Pascoal Moreira
Cabral, seguida de outros achados auríferos, como o realizado por Michel Sutil no córrego da
Prainha, dando origem à Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, em 1727. Assim como, a
descoberta de ouro nessa região, as novas jazidas encontradas poucos anos mais tarde no Vale do
Guaporé possibilitaram a formação de núcleos populacionais e novas demarcações de limites
entre a Coroa portuguesa e a espanhola. Além da importância gerada por esses achados, Mato
54
Grosso ainda acarretava a função de proteger o território português, sendo que esses fatores
impulsionaram a criação da Capitania em 1748.105
Fazer a defesa do território e ocupar áreas litigiosas para ampliar o domínio português,
impulsionou o início do aparelhamento militar na fronteira, fazendo da militarização e da
fortificação da fronteira as bases da política colonial. A defesa e o povoamento desse território
foram garantidos pela entrada de homens enviados pela Coroa para ocupar funções
administrativas, militares e eclesiásticas, assim como, pelos aventureiros, mineradores,
comerciantes e preadores de índios. Contava ainda com negros escravos e índios, os quais foram
empregados na mineração, na agricultura, na pecuária e nas obras públicas (construção de pontes,
fortes, fortalezas, varadouros, estradas), ajudando a instalar e a intensificar a presença do governo
central na localidade.
O aparelho militar fazia parte da preocupação da Coroa portuguesa em buscar consolidar
e fortalecer a posse do território. No fim do século XVIII, a preocupação com a militarização da
fronteira se tornou ainda maior, devido aos conflitos entre Portugal e Espanha, passando a contar
a Capitania com os primeiros corpos militares, formado por uma Companhia de Dragões, uma de
Pedestre, um Corpo de Ordenanças e Companhia de Auxiliares em Cuiabá.106
Para demarcar e defender o território brasileiro em Mato Grosso a fim de garantir a
comunicação com o litoral foi fundado o Forte de Nossa Senhora da Conceição (depois
denominado Forte de Bragança), Forte Príncipe da Beira e Casalvasco as margens do Guaporé e
o presídio de Nova Coimbra, Albuquerque e Vila Maria (atual Cáceres) às margens do rio
Paraguai. Essas fortificações foram construídas para defender os territórios das ameaças dos
países vizinhos, dos ataques indígenas e servir de apoio às navegações, como um ponto de
abastecimento (Anexo I).107
De acordo com Domingos Sávio da Cunha Garcia, essa estratégia para a manutenção
territorial procurava consolidar a presença da Coroa portuguesa em locais considerados
importantes para o controle territorial. Assim, Albuquerque, Vila Maria e o Forte de Coimbra
105
VOLPATO, Luiza Rios Ricci. A conquista na terra no universo da pobreza. Op. cit., pp. 30-39 106
Ibidem, p.41 107
Ibidem, pp.43-45
55
estão localizados mais ao sul, na entrada sul da capitania e próximo a Assunção. E, na entrada
norte, mais próximo das províncias de Moxos e Chiquitos, está o Forte Príncipe da Beira,
contando também com Casalvasco e Vila Bela, sendo que essa “ação portuguesa estabeleceu o
domínio total sobre essa região, seja pela ocupação militar direta, com os fortes, seja pelo
povoamento, procurando fechá-la aos espanhóis.” 108
Mas o século XIX adentrou sem que nada estivesse resolvido quanto às delimitações e a
proteção da fronteira com a Bolívia e com o Paraguai, em uma extensão de aproximadamente
quinhentas léguas, continuou sendo uma das principais preocupações do governo do Império,
marcadas pelo receio constante de uma invasão.
A delimitação da fronteira é um processo histórico fundamental no decorrer da construção
do Estado nacional, tido como ferramenta para a delimitação do espaço e do controle político do
país, sendo possível apenas por meio do conhecimento preciso sobre o espaço geográfico em
questão.109
As áreas fronteiriças do Brasil com a Bolívia e o Paraguai só foram delimitadas na
segunda metade do século XIX. Após o processo de independência, a intenção desses países era
delimitar suas fronteiras, mas não havia um entendimento entre eles quanto às pretensões
territoriais para o estabelecimento de limites, partindo cada um de pressupostos diferentes.
A fronteira com a Bolívia foi delimitada em 1867 por meio do Tratado de Ayacucho.
Antes de 1867 o governo boliviano já havia enviado vários comissários para procurar estabelecer
um acordo de limites com o Brasil. Mas, o governo brasileiro vinha prorrogando essa decisão,
para que em condições melhores pudesse conseguir acordos mais proveitosos. No entanto, com o
envolvimento na Guerra do Paraguai o acordo acabou sendo assinado, pois era complicada a
relação do Brasil na região do Prata, procurando evitar problemas com a Bolívia e evitar uma
possível aliança deste país com o Paraguai.110
108
GARCIA, Domingos Sávio da Cunha. Op. cit., p.41 109
MAGNOLI, Demétrio. O corpo da pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912). São
Paulo: UNESP, 1997
110 SENA, Ernesto Cerveira de. Acordo de Ayacucho – territórios e as descontinuidades dos tratados: forjando
fronteiras, elaborando nações (Bolívia e Brasil): época colonial – 1867. Disponível em
www.anphalc.org/periodicos/anais/encontro9/ernesto_cerveira_de_sena.pdf
56
A maior preocupação do governo brasileiro não era com a Bolívia, mas com o Paraguai.
Não havia concordância quanto às pretensões de limites, disputando o território entre os rios Apa
e Branco. O governo brasileiro reivindicava a soberania sobre o território entre os rios Apa e
Branco, o que não era aceito pelo governo paraguaio que pleiteava o limite no rio Branco com
base no Tratado de Santo Ildefonso.111
O acordo de limites só foi firmado em 1873, com o fim do
conflito em que os dois países se envolveram na região do Prata.
Nesse sentido, não era apenas o posicionamento externo do Brasil que estava conturbado.
A situação política interna não era das mais favoráveis, sendo que a instabilidade da política
interna do Império, a qual comentamos na primeira parte deste trabalho, limitava a ação do
governo imperial para resolver as questões na região do Prata.
Na província de Mato Grosso, desde 1837, a vida política era dominada pelo grupo
político que formou o Partido Liberal, sendo um período de governos instáveis com contestação
dos nomes indicados pela Coroa, entrando em conflito o legislativo com o executivo. Um dos
maiores embates políticos desse período entre o presidente da província e a facção local foi
durante o governo de Joaquim José de Oliveira, quando este fez frente à facção conhecida como
partido Camapuã (estigma atribuído ao partido liberal pelos opositores), ele conseguiu com que
as eleições de 1849 fossem favoráveis aos conservadores, embora a vitória não tivesse sido
completa, manteve a facção de Ribeiro como domínio político até 1850.112
Nas eleições provinciais de 1849 os conservadores conseguiram pela primeira vez fazer
uma maioria na Assembleia provincial, cujos cargos eram fundamentais para o controle político
na província. Além disso, Joaquim José de Oliveira conseguiu deixar o cargo sem que um vice
assumisse o governo, exercendo seu mandato pelo maior tempo possível, de modo que os
políticos locais não pudessem utilizar desse cargo para tomar alguma medida contra o governo
central.113
O coronel João José da Costa Pimentel veio a assumir o governo da província em
setembro de 1849. A partir desse governo já não havia uma forte oposição entre a Assembleia e o
111
DORATIOTO, Francisco F. M. Maldita Guerra: nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002. p.32
112 SENA, Ernesto Cerveira de. Entre anarquizadores e pessoas de costume. Op. cit., pp. 78-98
113 Ibidem, pp. 97-98
57
Executivo. Isso se deu não apenas ao predomínio dos conservadores na província, mas também à
mudança de estratégia política. Já não existiam dois partidos bem definidos no cenário político
provincial, nem mesmo oposição acirrada aos nomes indicados pela Corte para presidente da
província, pelo contrário, os políticos perceberam que fazer acordo com o governo central era
mais proveitoso, adotando medidas de aproximação e fazendo da manutenção da ordem uma
barganha política. Com isso, os presidentes da província deixaram de ser alvo constante de
hostilidades por parte do legislativo.114
A década de 1850 marcou a emergência de novos atores políticos na província de Mato
Grosso, tendo início com os conservadores assegurando o poder e revogando algumas medidas
implantadas pelos liberais. A política de conciliação implantada na Corte na década de 1850
visava atingir todas as províncias, tendo sido escolhido para ocupar esse cargo e promover a
conciliação em Mato Grosso, Augusto Leverger, futuro Barão de Melgaço, que se encontrava em
missão na fronteira do Baixo Paraguai, retornou a Cuiabá e assumiu a presidência em fevereiro
de 1851.115
Ao assumir o governo, após a exoneração de João José da Costa Pimentel, Leverger
esteve à frente da presidência da província de Mato Grosso entre 1851 á 1857, num período
sequenciado. Geralmente, o presidente da província era nomeado pelo governo central, não sendo
alguém do local e ocupando o cargo da mesma província por pouco tempo116
, porém tornando-se
uma peça estratégica para a constituição do Estado imperial.117
O que não era o caso de Leverger,
francês e morador da província de Mato Grosso que, entre a presidência e a vice presidência,
esteve no governo provincial por mais de sete anos.
Augusto Leverger passou a morar em Cuiabá em 1830, quando foi enviado para organizar
o sistema de defesa da província de Mato Grosso. Segundo Ernesto Sena, a preocupação de
Leverger ao assumir o cargo de presidente da província, foi com o posicionamento das facções
políticas. Contudo, não se formou um bloco oposicionista na Assembleia Legislativa quando seu
nome foi indicado para o cargo. Uma das estratégias política adotada por Leverger foi à
114
Ibidem, p. 276 115
CORRÊA FILHO, Virgilio. História de Mato Grosso. Várzea Grande: Fundação Júlio Campos, 1993. p. 528 116
O presidente da província fazia parte do quadro administrativo do Império em cada província, sendo o principal
instrumento do governo central na tarefa de administrar, sendo nomeado pelo imperador. O Império utilizou a prática
de fazer circular seus funcionários, para adquirir experiência e evitar identificação com os interesses locais. Essa
circulação era geográfica e por cargo, sendo o político levado desde o início da carreira a conhecer outras províncias
além da sua. CARVALHO, José Murilo de. I A construção da ordem. II Teatro de sombras. Op. cit., p.121 117
MATTOS, Ilmar. Op. cit., p. 213
58
nomeação de Luzias para o cargo de vice-presidente, como tentativa de aproximação dos liberais.
Mas, sua preferência era que a nomeação do vice-presidente recaísse sobre uma pessoa que não
fosse da província, de forma que não estivesse diretamente ligado as questões políticas local.118
A presença de Leverger no governo da província era conveniente para os interesses do
governo imperial, nesse momento, pois seu posicionamento fazia com que os conflitos entre as
facções locais não colocassem em risco a ordem política. Para as facções locais essa convivência
também era importante, num momento que era fundamental a manutenção da ordem como
barganha política frente ao governo central, com Leverger sabendo distribuir cargos e tarefas
durante o período em que esteve no governo.119
Sua administração contou com o apoio da
Assembleia Legislativa, que não contestou a indicação feita pela Corte do seu nome para o cargo,
recebendo felicitações tanto dos conservadores quanto dos liberais, demonstrando a adesão à sua
administração. Esse apoio da Assembleia era importante para Leverger, que aproveitava para
expressar seu apoio e adesão aos princípios monárquicos, sendo visto como o homem de
confiança do governo imperial.
A política de conciliação fica evidente em 1854, quando a Assembleia fez alusão ao
desempenho de Leverger, evidenciando a vantagem gerada pela política de administração
empregada, que foi “manejada com patriotismo, energia e tactica havendo o desapparecimento
em grande vulto dos antigos ressentimentos dos ódios e rancores, resíduos sempre perniciosos
das urnas eleitoraes.” 120
Com a estabilidade na política interna, o governo imperial buscou maior participação na
região platina, visando demarcar suas fronteiras e franquear a navegação dos rios que cortam o
território platino. Ambas as medidas estavam relacionadas à pretensão do governo imperial em
conhecer e ter controle sobre o território que reivindicava para poder assegurar sua pretensão dos
limites com a Bolívia, e, principalmente, com o Paraguai.
Na segunda metade do século XIX iniciam-se algumas ações mais direcionadas para
abertura de vias de comunicação entre o Brasil e os países vizinhos, sejam a Bolívia e o Paraguai,
118
SENA, Ernesto Cerveira de. Entre anarquizadores e pessoas de costumes. Op. Cit., p. 104 119
Ibidem, p.113 120
RELATÓRIO do Presidente da Província de Mato Grosso, o capitão de mar e guerra Augusto Leverger, na
abertura da sessão ordinária da Assembleia Legislativa Provincial em 3 de maio de 1854. Cuiabá, Typ. do Echo
Cuiabano, 1854. p.41
59
pois a bacia fluvial platina estava localizada em um dos principais contenciosos de fronteira e era
fundamental estabelecer um melhor contato do litoral com a província de Mato Grosso e, com
isso, garantir a posse e a disseminação do processo de civilização.
2.1.1 Conexões com a Corte: as vias de comunicação e a navegação pelo rio Paraguai
Na década de 1850 a livre navegação pelo rio Paraguai se apresentava como o meio mais
eficaz de comunicação da província de Mato Grosso com a capital do Império e com a rota
internacional de comércio. Ligar as províncias mais remotas do Império com o centro de decisões
político-administrativa localizada no Rio de Janeiro era fundamental para a política empregada
pelo governo imperial, para garantir a posse e a proteção da região, principalmente em Mato
Grosso, local que estava em área litigiosa, principalmente se considerarmos que a rota terrestre
utilizada demorava em torno de seis meses para ligar Cuiabá ao Rio de Janeiro.
A demora decorria porque os percursos fluviais ofereciam grandes embaraços para a
navegação, dentre os quais haviam cachoeiras e banco de areias, além de serem longos e
custosos. A via de comunicação do Distrito de Mato Grosso (atual Vila Bela da Santíssima
Trindade) para o Amazonas, pelos rios Guaporé, Madeira e Mamoré, cujo domínio em parte
pertencia à Bolívia, era a via que abastecia a província de artilharia, armamentos, munição, e
outros artigos vindos do Pará. Mas, a decadência do distrito de Mato Grosso e o despontamento
de Cuiabá como o novo centro comercial e político-administrativo, fez com que essa navegação
fosse quase que completamente abandonada, sendo que a navegação pelo rio Paraguai era mais
viável para o acesso a Cuiabá.121
Outro percurso era a navegação da Vila do Diamantino para a cidade de Santarém pelos
rios Arinos, Juruena e Tapajós, sendo utilizada para realizar carregamento de louça, sal, ferro,
121
RELATÓRIO do Presidente da Província de Mato Grosso, o capitão de fragata Augusto Leverger, na abertura da
sessão ordinária da Assembleia Legislativa Provincial em 10 de maio de 1851. Cuiabá, Typ. do Echo Cuiabano, 1852
p.27
60
entre outros metais. Apesar de ser realizada toda em território brasileiro, o decréscimo na
importação de sal desmotivou o comércio com o Pará e consequentemente a utilização dessa rota
fluvial.122
A comunicação por via terrestre não era indiferente a esses embaraços, com a
precariedade dessas estradas dificultando o acesso dentro da própria província, sendo o trajeto
cheio de estradas mal conservadas e, muitas vezes, inundadas, quando não tinham que atravessar
ribeirões e pantanais, faltando na maioria das vezes pontes para a sua travessia. Além disso,
faltavam pontos de abastecimento no decorrer das rotas, além de estarem sujeitos aos ataques
indígenas.
A comunicação terrestre de Mato Grosso com outras províncias era realizada através de
três rotas: uma para a província de Goiás (a mais utilizada), outra para São Paulo pelo Piquiri
(utilizada pelo correio vindo de São Paulo e por tropas, por ser uma área baixa estava sujeita a
alagamento no período das chuvas e a escassez na seca) era a rota de Mato Grosso. Haviam
estradas estreitas, onde trafegavam apenas cargueiros, sendo que “não passão de simples trilhos,
que quasi nada devem a arte e não admitem outros meios de transportes senão animaes de
carga”.123
As vias de comunicação até então utilizadas apresentavam obstáculos físicos e tornavam
as viagens até a província de Mato Grosso mais demoradas e com custos elevados. Diante desse
contexto, a navegação fluvial pela bacia do Prata passou a ser vista pelo governo imperial e local
como a maneira mais viável de comunicação. Na década de 1850, uma via de comunicação
rápida com a Corte era vista como o meio de promover o progresso em Mato Grosso, pois a sua
população estaria entrando em contato com os hábitos e com os costumes civilizados do Rio de
Janeiro.
Esta província regada como he, de tão importantes rios, cujas grandes
artérias levão saus correntes ao Oceano, terá consequentemente de saborear os
fructos da civilização e riqueza, logo que de facto abra a navegação sem
122
Ibidem, p.28 123
Ibidem, p.32
61
obstaculos naturaes, que lhe offerece a via fluvial do Paraguay, acontecimento
este que será precursor do desenvolvimento de uma industria agrícola.124
Um meio rápido de comunicação colocava a província de Mato Grosso em contato direto
com o litoral, considerado civilizado e moderno, em contraste com o sertão, visto como atrasado,
o sinal da barbárie. Além disso, o sertão é tido como um lugar em que há dificuldades para a
presença de um governo forte e centralizado, podendo ocorrer divergências entre aquilo que era
ordenado pelo governo imperial e o que era feito por seu representante local.125
A navegação pelo rio Paraguai, não tendo obstáculos naturais, era em larga medida a
opção mais viável para superá-los, tornando o acesso à província de Mato Grosso mais rápido e
confortável. Dessa maneira, passou a fazer parte das principais reivindicações dos presidentes
dessa província:
O rio Paraguay, desde que começa a ser navegável em não grande
distancia da Villa do Diamantino até incorporar-se com o Paraná e correr elle o
golfão da Prata, não tem obstaculos naturaes que impecção a navegação [...] He
sem duvida a melhor, ou antes, a unica via pela qual possamos receber os
objectos que, pelo seu peso ou volume, tornão-se impossível ou custosissimo
transporte por terra ou pelos rios de caxoeiras.126
O governo imperial, com esse objetivo, buscou assinar um acordo que franqueasse a livre
navegação pelo rio Paraguai e Paraná, através de uma série de ações diplomáticas, pois era do
interesse do Brasil que houvesse a livre navegação pela Bacia do Prata.127
As dificuldades
envolvendo a navegação por esses rios não eram motivadas por obstáculos naturais, mas
124
RELATÓRIO do Presidente da Província de Mato Grosso, o chefe de divisão Joaquim Raimundo de Lamare, na
abertura da sessão ordinária da Assembleia Provincial em 3 de maio de 1858. Cuiabá, Typ. do Echo Cuiabano, 1858.
pp. 18-19
125 GALETTI, Lylia da Silva Guedes. Nos confins da civilização: sertão, fronteira e identidade nas representações
sobre Mato Grosso. Tese (Doutorado em História) – FFLCH/USP. São Paulo, 2000. p. 169 126
Relatório do Presidente da Província de 1851. Op. cit., p.30 127
Essa Bacia é formada pelos rios Paraná, Paraguai e Uruguai, compreendendo territórios do Brasil, Argentina,
Uruguai e parte da Bolívia.
62
diplomáticos, sendo bloqueadas no rio Paraná pelo governo de Rosas, da República Argentina, e
no rio Paraguai pela República do Paraguai.
A livre navegação pelos rios Paraguai e Paraná era uma decisão que cabia às repúblicas
do Paraguai e da Argentina, sendo pautada no princípio de ribeirinho inferior que era decidir
sobre a liberdade de navegação ou não do ribeirinho superior. Era com base nesse princípio que o
Brasil garantia o monopólio sobre a navegação na bacia Amazônica, fechando-a para a
navegação dos ribeirinhos superiores (Bolívia, Peru, Nova Granada, Equador e Venezuela). Mas
com base nesse princípio, o Brasil reivindicava a abertura da livre navegação, alegando que a
navegação devia ser livre aos demais ribeirinhos. Desse modo, a posição brasileira em relação à
reivindicação no Prata estava em contradição com a sua postura tomada quanto à bacia
Amazônica, onde implantou uma política de fechamento à navegação internacional. 128
O Tratado de Amizade, Navegação e Comércio assinado no dia seis de abril de 1856 entre
o Império e a República do Paraguai pautou-se na utilização desse princípio, como podemos
perceber no seguinte artigo:
Artigo 2º
O Brasil concede aos navios mercantes da Republica do Paraguay a livre
navegação dos rios Paraná e Paraguay nas partes em que é ribeirinho; e a
Republica do Paraguay concede, nos mesmos termos, ao Brasil o direito de
navegação livre, na parte daquelles dous rios em que é ribeirinha; de modo que a
navegação dos ditos rios, na parte em que cada uma das duas Nações é ribeirinha
fica tendo commum a ambas.129
A dificuldade em estabelecer acordo de navegação com a Argentina está relacionada à
posição política do Império no Prata. A política externa brasileira a partir da década 1840 foi
pautada na busca da afirmação nacional e preservação dos seus interesses geopolíticos,
assumindo um posicionamento político “anti-rosista”. Assim, buscava garantir a independência
128
COSTA, Wilma Peres de. Op. cit., p.120
129 Lata 1856 D. APMT
63
do Uruguai e a independência da República do Paraguai, reconhecida pelo Brasil em 1844. Esse
posicionamento visava evitar a reconstrução do Vice-Reino do Rio da Prata, objetivo apresentado
por D. Manuel Rosas, chefe do partido federal e governador da Província de Buenos Aires, que
buscava estender seu domínio e reviver o projeto de recomposição do Vice-Reino.130
Se isso
acontecesse, a navegação pelos rios platinos estaria sobre o controle de um único país, assim
como grande parte da fronteira com o Brasil.
Devido a queda do governo de Rosas em 1852, o Brasil conseguiu encaminhar a
negociação sobre o acordo de navegação, e, em março de 1856, por meio do visconde de Abaeté,
foi celebrado na cidade de Paraná um tratado de amizade, comércio e navegação com a
Confederação Argentina131
.
Quanto à navegação pelo rio Paraguai, a política de isolamento das questões externas
adotada pelo governo paraguaio, atrapalhava a possibilidade de estabelecer acordo com esse país.
O Paraguai tornou-se independente em 1810, assumindo o governo do país José Gaspar
Rodriguez de Francia, que governou até o ano de sua morte em 1840, mantendo o país numa
política de isolamento das questões platina e investindo na formação de um Exército treinado,
disciplinado e armado.132
A política de isolamento adotada pelo Paraguai dificultava as negociações de limites à
navegação pretendida pelo governo brasileiro. Com a morte de Francia, duas juntas militares e
um Consulado o substituíram, sendo composto por Mariano Roque Alonso e Carlos Antonio
Lopez, sendo Lopez o escolhido pelo Congresso para o cargo de presidente do país, iniciando
uma política de afirmação nacional, que fez sentir sua presença no cenário platino. Em dezembro
de 1842 o Paraguai pediu ao Brasil o reconhecimento de sua independência, sendo o ato de
reconhecimento assinado em 14 de setembro de 1844. A Argentina só veio a reconhecer a
independência paraguaia em 1852, após a queda do governo de D. Manuel Rosas.133
130
O Vice-Reino do Rio da Prata foi criado pela Coroa espanhola em 1776 visando conter o avanço da Coroa
portuguesa sobre seus domínios. Era formado pelo que hoje corresponde a Argentina, o Uruguai, o Paraguai e a
Bolívia. DORATIOTO, Francisco. Op. cit., p.24 131
NABUCO, Joaquim. Op. cit., p.192
132 SILVA, Leonam Lauro Nunes da. Op. cit., p. 36
133 DORATIOTO, Francisco. Op. cit., p. 27
64
A partir de 1840, o governo imperial procurou estabelecer acordo com o Paraguai para
navegação dos rios em comum. Antes disso, Augusto Leverger havia sido encarregado em 1839
de percorrer as vias fluviais até Assunção para conversar com Francia sobre um acordo de
navegação entre os dois países, mas foi barrado antes mesmo de chegar ao destino, terminando a
viagem ainda quando estava no forte de Bourbon.134
Em novembro de 1846, o então presidente da província de Mato Grosso, Ricardo Gomes
Jardim, percorreu a região fronteiriça da província na companhia de Leverger, procurando
conhecer essa área que gerava constante receio de investidas dos países vizinhos. Nesse mesmo
ano, Leverger, então Capitão de Fragata, desceu o rio Paraguai até sua confluência com o Paraná
para completar o reconhecimento desse rio.135
As explorações eram realizadas com o incentivo
do governo imperial, visando sondar a navegação da região em disputa entre os dois países.
Em dezembro de 1850, o governo brasileiro e o paraguaio assinaram um acordo de ajuda
mútua contra as investidas do governo de Rosas, comprometendo-se também com a abertura da
navegação. Somente em 06 de abril de 1856 foi assinado o Tratado de Amizade, Comércio e
Livre Navegação entre ambos, concedendo livre navegação pelos rios Paraná e Paraguai, no
trecho em comum entre os dois países.136
Em fevereiro do ano seguinte chegou a Mato Grosso vapores vindos do Rio de Janeiro e
de Buenos Aires (estes com mercadorias), atraindo a atenção dos moradores e despertando o
entusiasmo para o desenvolvimento da província com a nova rota de comunicação e de comércio.
Augusto Leverger registrou esse momento, descrevendo a euforia da população causada pela
chegada dessas embarcações, onde “o nosso porto, apinhado de povo, os recebeo com aquelle
jubilo e admiração que a novidade demanda” 137
, na expectativa de estar à província a gozar dos
benefícios da livre navegação.
134
CORREA FILHO. Op. cit., p. 525 135
Registro dos Documentos oficiais relativos aos limites do Império. Livro 173, Est. 07, R 035, F 01. APMT 136
Esse acordo contou com a participação de Montevidéu, Urquiza (Entre-Rios) e posteriormente Virassoro
(Corrientes), conseguindo a derrubar o governo de Oribes em 1851 e de Rosas em 1852. COSTA, Wilma Peres. Op.
cit., p.104 137
OFÍCIO de Augusto Leverger dirigido ao Sr. Tenente Coronel Albano de Souza Osório 1º Vice-Presidente da
Província, ao transmitir a Presidência da mesma, em 1º de Abril de 1857. p.10
65
O acordo não alcançou o resultado esperado pelo governo brasileiro, pois desejava incluir
junto com essa negociação a questão de limites de fronteiras, além de que, o Paraguai continuava
colocando obstáculos à navegação de embarcações brasileiras, conforme nos apresenta Paranhos:
Desde 1852 o Brasil se esforça por chegar a acordo com o Paraguai sobre
a questão da navegação fluvial, que tanto interessava aquela nossa província
[Mato Grosso]. O governo paraguaio não queria separar essa questão da de
limites, e como sobre esse ponto não nos podíamos entender, estávamos
privados do direito ao trânsito fluvial, implícita e virtualmente estipulado no
artigo 3º do tratado de 25 de dezembro de 1850. Carlos López enviou em 1856
ao Rio de Janeiro o Ministro Berges. O Sr. Visconde do Rio Branco, então
ministro dos Negócios Estrangeiros, foi o negociador brasileiro, e conseguiu
separar as duas questões, ficando adiantada a de limites, e assinando-se o tratado
de amizade, navegação e comércio de 6 de abril [...]. Pouco depois, porém,
Carlos López anulou de fato o tratado de 6 de abril, submetendo a navegação
comum a regulamentos, que eram a negação do que havia sido estipulado e que
tornaram impossível o comércio interno com a Província de Mato Grosso.138
Em 1857, o Conselheiro José Maria da Silva Paranhos foi designado para a missão de
conseguir resolver as dificuldades existentes para a navegação, o que veio a acontecer com a
assinatura de aditivo em 1858, pelo representante do governo brasileiro,Francisco Solano López,
em Assunção, revogando os regulamentos anteriormente impostos pelo governo paraguaio,
conseguindo o franqueamento da navegação. Dessa vez, o tratado teve forma satisfatória para o
governo brasileiro, ficando pendente apenas a questão de limites.
A livre navegação pelo rio Paraguai, as viagens do Rio de Janeiro até Cuiabá passaram a
demorar em torno de trinta dias, ou seja, reduziu-se significativamente o tempo gasto nas viagens
entre a província e o litoral. Também foi criada, no ano de 1858, a Companhia de Navegação do
Alto Paraguai, estabelecendo uma linha regular de navegação entre Cuiabá, Corumbá e
Montevidéu.139
138
Nota de Paranhos em Schneider. Apud COSTA, Wilma Peres. Op. cit., pp.117-118 139
PERARO, Maria Adenir. Op. cit., p.38
66
Naquele período, a província de Mato Grosso pouco tinha a oferecer, sendo que a
necessidade de uma via de comunicação eficiente estava mais relacionada com a necessidade de
circulação da informação rápida com a Corte e à importação de produtos comerciais. De acordo
com Luiza Volpato, o principal elemento de exportação da província no início da segunda metade
do século XIX era o gado bovino, e com a abertura da navegação sentiu-se a necessidade de um
produto de exportação que compensasse os gastos com as viagens. Esse produto foi à poaia ou
ipecacuanha, raiz utilizada para a fabricação de alcalóide, que passou a ser exportada a partir da
década de 1830, por ter um importante mercado após o desenvolvimento da indústria química na
Europa. A poaia era um produto nativo bem presente nas redondezas de Vila Maria e se tornou o
principal produto de exportação da província entre a abertura da navegação e o início da Guerra
do Paraguai.140
Mato Grosso foi inserido na rota do mercado internacional para ligar a província com o
litoral do país, embora de maneira ainda acanhada, foi estimulado o desenvolvimento da
província, com mudanças na estrutura urbana, instalação de novas casas comerciais e estimulada
a imigração estrangeira.141
Mesmo com assinatura e a vigência do acordo de livre navegação, o receio de que a
navegação pelo rio Paraguai pudesse ser bloqueada a qualquer momento permaneceu entre a
população, refletindo o receio das negociações com esse país, sendo necessário “ter-se uma linha
de correio por terra, que offereça garantia” para qualquer eventualidade referente à navegação
fluvial142
. Apesar do receio, a navegação pelo rio Paraguai permaneceu sem interrupções até o
fim de 1864, quando novamente foi bloqueada com o início da Guerra do Paraguai.
2.2 Litígios com o país Guarani: a tensa relação entre o Brasil e o Paraguai
140
VOLPATO, Luiza R. Ricci. Op. cit., pp.50-51 141
Ibidem, p. 44 142
Correio Geral de Cuiabá ao presidente da província Joaquim Raimundo de Lamare, em 29 de janeiro de 1859.
Lata 1859. APMT
67
A prioridade do governo imperial com a província de Mato Grosso era a defesa da
fronteira a oeste. As tensões geradas pelas discussões quanto ao acordo de livre navegação e a
não delimitação de tratados de limites deixou a relação entre esses países tensa e o governo
brasileiro em constante alerta. A província de Mato Grosso era considerada uma região
estratégica para os interesses geopolíticos do Império, devido à “importancia desta provincia
como fronteira” 143
, sendo fundamental a manutenção de uma força armada bem preparada e
suficiente para manter essa região guarnecida. Desse modo, as forças armadas apresentavam-se
como um elemento fundamental para a proteção da província, cabendo ao Exército o serviço de
destacamento pelos principais pontos da fronteira. Mas a situação do Exército na província não
era favorável.
As principais reclamações dos presidentes da província de Mato Grosso foram sobre a
insuficiência das forças armadas e sobre a fragilidade militar de defesa da província,. Na análise
de Augusto Leverger, então presidente da província, “por qualquer lado que for a Provincia
seriamente atacada, não possue meios de repellir a invasão” 144
, refletindo a situação da defesa e a
condição em que se encontravam as forças armadas na província de Mato Grosso. Não foi uma
opinião que ficou restrita a um momento específico, mas algo que pode ser usado como
referência para os anos que antecedem o conflito com o Paraguai.
Situada ao oeste do território brasileiro, Mato Grosso sempre esteve responsabilizada pela
manutenção e pela defesa da fronteira, sendo essa província afastada da Corte e estando precária
a situação dos arsenais e reduzida à quantidade de efetivos, era necessário que recebesse mais
atenção e recursos por parte do governo imperial. Segundo Volpato, mesmo tendo um
posicionamento estratégico e garantindo a manutenção da fronteira, a responsabilidade dos
custeios para essa manutenção recaia grande parte sobre sua população, pois a ajuda enviada pela
Corte era mínima.145
O estado das fortificações e dos fortes da província eram precários, o que acarretava o
mau armazenamento dos materiais bélicos e a péssima acomodação dos soldados. Ao descrever
143
Relatório do Ministério da Guerra de 1858. Op. cit., p.17 144
Augusto Leverger ao ministro da Guerra Manoel Felizardo de Sousa Mello em 19 de janeiro de 1852.
Correspondência oficial da presidência com o Ministério da Guerra 1850-1852 Livro 113, Estante 06, R.27, F07
APMT 145
VOLPATO, Luiza R. Ricci. Cativos do sertão. Op. cit., p. 59
68
as condições em que se encontrava o Forte Príncipe da Beira, o comandante João Magessi de
França nos apresenta a seguinte situação:
As muralhas existem todas cobertas de figueiras, umbauvas, São Caetano,
fedigozo, e capim ate he uma vergonha para os meos antecessores, as figueiras e
umbauvas nascidas entre as pedras das muralhas, já forçarão a desunião das
mesmas; [...] As grandes armazéns, casa de comandante, Quartéis, Igreja, e mais
acomodações, com um sem numero de goteiras, e o telhado em alguns armazéns
com grande falta de telhas, a antiga ferraria já o telhado abateo-se [...]146
A explicação do presidente da província sobre o estado precário do Forte Príncipe da
Beira é de que a má condição desse forte, deve-se ao fato de estar localizado em um município
decadente (Distrito de Mato Grosso) e em uma localidade que não requer tanta atenção (fronteira
com a Bolívia), sendo necessário fazer os reparos que os poucos recursos provinciais
possibilitariam em lugares que requerem mais cuidados e com relevância para a proteção da
província nesse momento.147
Mas, esse estado de ruínas foi algo comum a outras fortificações no
decorrer do período analisado, como o Forte de Coimbra, considerado a fortificação mais
importante da província, estando localizado na região litigiosa com o Paraguai.
Mapa I: Principais pontos militares da Província de Mato Grosso - Século XIX
146
Alferes Comandante do Quartel do Forte Príncipe da Beira João Magessi de França ao presidente da província
Augusto Leverger em 22 de novembro de 1851. Lata 1851 A. APMT 147
Palácio do Governo de Mato Grosso em Cuiabá em 19 de janeiro de 1852. Lata 1852 A1. APMT
69
Mapa elaborado a partir de GARCIA, Domingos Sávio da Cunha. Territórios e negócios na “Era dos Impérios”: os
belgas na fronteira oeste do Brasil. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 2009; SENA, Ernesto Cerveira de. Entre
anarquizadores e pessoas de costumes: a dinâmica política nas fronteiras do Império: Mato Grosso 1834-1870.
Cuiabá: EdUFMT; Carlini & Caniato, 2009.
Embora a maior parte da fronteira da província de Mato Grosso fosse com a Bolívia, este
país não era o centro das preocupações fronteiriças do governo brasileiro. Não era esperado desse
país uma atitude hostil que pudesse colocar em risco a província de Mato Grosso, sendo que as
70
recomendações do governo imperial em relação às reclamações bolivianas direcionadas ao
governo provincial eram que apenas alguns pontos estratégicos, como Corixa e Casalvasco,
fossem mantidos guarnecidos.
As reclamações do governo boliviano sobre a ocupação por forças armadas brasileiras do
território litigioso que a Bolívia considerava como sua posse, como o caso da Corixa Grande
(Tremedal), não eram vistas como uma ameaça que pudesse ser concretizada, sendo que, ao
contrário do pedido de desocupação para evitar maiores reclamações, em alguns momentos, o
governo brasileiro pedia para que fossem reforçadas a guarnição no local a fim de manter a
ocupação brasileira.148
Em instrução a presidência da província sobre o posicionamento frente às reclamações do
governo boliviano, o encarregado dos Negócios do Brasil junto à Bolívia expõe que esses limites
não estariam demarcados e quando questionado sobre a presença de força armada brasileira nesse
local, dizia que não lhe competia discorrer ou decidir sobre tal assunto, como prorrogar a
permanência brasileira nesses pontos.149
Instrução que não era direcionada no caso de reclamações do governo paraguaio, como
pode ser percebida no caso da ocupação do Pão de Açúcar (Fecho dos Morros) por força armada
brasileira. As reclamações do governo paraguaio geravam inquietação e receios às autoridades
brasileiras, pois temiam que os paraguaios viessem a concretizar a invasão da província de Mato
Grosso, mas acreditavam num acordo entre os países.
Em 1847, o ministro da Guerra recomendou ao presidente da província de Mato Grosso
para guarnecer o Pão de Açúcar, mas não foi realizado alegando a falta de recursos humanos e
materiais. A divergência de posicionamento com relação a esse destacamento voltou a acontecer
em 1850, quando o governo da província João José da Costa Pimentel enviou uma pequena
guarda defensiva para se fixar nesse destacamento, sem ter recebido ordens para tal
empreendimento. Tal medida não agradou ao governo imperial, que viu no acontecimento um
risco às negociações, estas referentes à livre navegação e aos limites, que vinham sendo
148
Ministro dos Negócios Estrangeiros Paulino José Soares de Souza ao presidente da província Augusto Leverger
em 27 de outubro de 1851. Livro 119, R.28, F.03 APMT 149
Encarregado de Negócios do Brasil junto a Repuública da Bolívia Antonio José Lisboa em 05 de Junho de 1850.
Registro de Correspondência da Província com o exterior. Livro 086, Estante 06, R024, F05. APMT
71
empreendidas pelo Encarregado dos Negócios do Brasil em Assunção, Pedro de Alcântara
Bellegarde, que pediu que a ordem fosse revogada e caso já tivesse ocupado o ponto que este
fosse evacuado.150
O interesse do Brasil por esse destacamento não era maior que a vontade de
manter uma boa relação com o Paraguai, preferindo não ocupar o Pão de Açúcar sem prévio
acordo com esse governo.
Conforme temia Bellegarde, a ocupação do Pão de Açúcar não agradou ao governo
paraguaio, prejudicando o andamento das negociações. A ordem para a evacuação do ponto não
chegou a tempo de evitar que o destacamento fosse atacado por forças paraguaias em outubro do
mesmo ano, resultou em baixa para a força armada da província. O comandante do Forte de
Coimbra diz o porquê não realizou a desocupação do destacamento a tempo de evitar tal
incidente, pontuando que teria prazer em ter realizado essa ação se a ordem não tivesse chegado
três meses depois de ter ocorrido o ataque:
Teria summo prazer se pudesse cumprir com as sabias determinações de
V. Exª. por que Ex.mo Senr., a sobrestação da marcha do destacamento
destinado para o Pão d‟Assucar, ou a desoccupação delle logo que foi exigida
pelo nosso Encarregado de Negócios, teria-nos poupado algumas vidas,
derramamentos de sangue, e quiçá quebra na Dignidade Nacional; mas
infelizmente o acontecimento teve lugar em 14 de Outubro, e o Officio de V.
Exª. foi-me entregue em janeiro do anno seguinte. Cumpre-me porem assegurar
a V. Exª. que envidarei todos os meus esforços para que voltem as coisas n‟esta
Fronteira ao estado em que ellas se achavão antes do acontecimento acima
referido; por que neste sentido são as ordens que hei recebido do Governo da
Provincia.151
A precariedade da comunicação entre a província e a Corte não ficou restrita a esse
momento, mas o episódio evidencia bem a debilidade de defesa da fronteira e a conturbada
relação com o Paraguai. O próprio João José da Costa Pimentel já havia reclamado da falta de
informações sobre o andamento dos negócios na região do Prata. Possivelmente a medida por ele
150
CORREA FILHO, Virgilio. Op. cit., p. 527 151
Comandante Geral Interino do Quartel do Comando Geral no Forte de Coimbra Antonio Peixoto de Azevedo ao
ministro da Guerra Manoel Felizardo de Sousa e Mello. Lata 1851 A. APMT
72
adotada buscava amenizar o problema sobre o estado precário em que se encontravam as
fortificações, fato vistoriado em sua viagem realizada à fronteira do Baixo Paraguai. Quando
estava aquartelado no Forte de Coimbra, Leverger referiu-se a essa invasão paraguaia ao Pão de
Açúcar para ressaltar a superioridade numérica militar paraguaia em relação à força armada
brasileira.152
Por mais que a província estivesse vulnerável em toda a sua extensão, como nos
considerou Leverger, a preocupação do governo era com a fronteira sul da província, divisa com
a República do Paraguai. A relação do Brasil com o Paraguai era conturbada e nenhum desses
países queria ceder quanto a parte pretendida da região que considerava de sua posse para chegar
a um acordo de limites. A essa localidade fora destinado um maior número de homens e recursos
da província, bem como, reparos de fortes e a criação de colônias militares.
As reclamações dos comandantes do distrito de Mato Grosso, aconteceram em Vila Maria
e nos demais pontos da fronteira com a Bolívia, quanto à insuficiência de força para a guarnição,
a redução da força sem poder colocar outras em substituição para realizar os exercícios com
regularidade, eram as mais comuns. Embora reconhecesse que a força armada presente para
guarnecer esses pontos não era suficiente para fazer a guarnição, o presidente da província
considerava que os destacamentos na fronteira sul eram mais importantes para se preocupar
naquele momento.
Há outros pontos que he de maior urgencia reforçar como v.g. a fronteria
do Baixo Paraguay, da qual parece V. m. fazer idéia pouco exacta. Demais,
tenho de mui brevemente entabolarem-se ajustes diplomáticos entre o nosso
Governo e a República da Bolívia, pouco por ora receio por esse lado [...]153
Augusto Leverger demonstrou preocupação, durante o período em que esteve no governo,
quanto ao andamento da relação do Brasil com o Paraguai, temendo que as ameaças de invasão
viessem a se concretizar, pois segundo ele “esta fronteira o principal theatro da guerra com o
152
CORREA FILHO, Virgilio. Op. cit., p. 538 153
Augusto Leverger ao comandante do distrito militar de Vila Maria em 20 de maio de 1851. Registro de
correspondências entre a província e os comandantes militares 1851-1852. Livro 116, R. 28, F.01 APMT
73
Paraguay o resultado será funesto para o Império.” 154
E procurou reforçar o alerta de que a
fronteira precisava estar preparada para conter um possível ataque do país vizinho.
O alerta de Leverger não foi suficiente para resolver essas questões, pois os presidentes
que o sucederam no governo continuaram pontuando a necessidade de guarnecer a fronteira e
reforçar seu poderio militar, que devido ao estado precário tanto de material, quanto das
fortificações, da força armada sem disciplina e sem preparação militar, a fronteira encontrava-se
vulnerável para uma ação hostil dos países vizinhos.
As forças armadas apresentavam-se como um elemento fundamental para a proteção da
província de Mato Grosso. Os meios para serem empregados na defesa fossem soldados ou
recursos materiais, eram escassos. Responsável por realizar a defesa de Mato Grosso, o Exército
nessa província, assim como, nas demais províncias do Império, sofria com a falta de homens e
com a falta de recursos materiais considerados adequados para atender as necessidades de defesa.
Havendo em depois de assumir o commando desta colonia lido as
instruções, vendo o pessoal de que é composta a força desta, do impróprio e
diminuto armamento que aqui existe, limitada quantidade de munição e sem
equipamento algum, e olhando para esta vastíssima planície sem meio algum de
defeza, e pensando na distancia de vinte cinco leguas que separa o Corpo de
Cavallaria, sem que possa socorrera este ponto senão talvez passando o mal; e a
vista da crise ou ameaça dos nossos mui próximos vizinhos Paraguayos tem me
posto perplexo [...]155
Há registros de reclamações constantes nos relatórios sobre as guarnições e destacamentos
militares, constatando que as forças armadas não eram suficientes, estando cada vez mais
reduzidas por não conseguir substituir as baixas. Era uma situação que não tinham condições de
fazer a defesa e garantir a guarnição dos destacamentos nem prestar auxilio às demais colônias
sem algum prejuízo.
154
Augusto Leverger ao ministro da Guerra Marquês de Caxias em 14 de fevereiro de 1856. Registro de avisos
reservados recebidos dos ministérios. Livro 219, Estante 08, R 40, F 07. APMT 155
Colônia Militar dos Dourados em 16 de março de 1862. Lata 1861 C2. APMT
74
2.2.1 O Exército, a força policial e a Guarda Nacional
O Exército, força de 1ª Linha, estava organizado na província de Mato Grosso em um
Corpo Fixo de Artilharia, outro de Caçadores e outro de Cavalaria Ligeira. Também contava com
uma Companhia de Pedestres, que foi dissolvida em 1861, passando os praças a formarem a 7ª e
8ª Companhia do Batalhão de Caçadores, estando a 7ª Companhia sob o comando de um Capitão
e a 8ª provisoriamente sob o comando do Tenente Ajudante de Pedestre, enquanto não houvesse
um oficial de Caçadores disponível para assumir a função.156
A força armada da província
contava também com forças auxiliares, como o corpo policial e a Guarda Nacional.
Os praças para servirem nas fileiras do Exército eram recrutados entre os homens da
localidade, majoritariamente preenchida as fileiras com aqueles recrutados à força e que não
conseguiam se isentar do serviço militar. Quanto aos oficiais, estes também eram em sua grande
maioria naturais dessa província. Os oficiais que serviam em Mato Grosso recebiam algumas
vantagens adicionais concedidas pela Lei nº 648 de 18 de agosto de 1852, como gratificação
anual dobrada e a contagem mais a quarta parte do tempo de serviço na província para reforma ou
acesso.157
Entre os militares que vinham de outras localidades para servir em Mato Grosso, muitos
acabavam por permanecer nessa província, criando laços com políticos e famílias tradicionais
através do casamento com herdeiras de fazendeiros, proporcionando a oportunidade de tornarem-
se proprietários de terras e mesmo políticos.158
A quantidade de homens para a guarnição da província de Mato Grosso era determinada
anualmente por meio a um Aviso Circular expedido pelo Parlamento, variando em torno de 1.500
a 2.000 praças para todo o período analisado. O ministro da Guerra em 1857, Jerônimo Francisco
Coelho, considerou que “A provincia fronteira de Matto-Grosso precisa ter, ordinariamente, uma
156
Registro de correspondência oficial da presidência com o Ministério da Guerra. Livro 194, R.27, F.06. APMT 157
Relatório do Ministério da Guerra de 1855. Op. cit., p.4 158
PERARO, Maria Adenir. Op. cit., p.35
75
guarnição permanente nunca inferior a 2.000 praças.” 159
Essa meta estabelecida não foi
alcançada, assim como, as demais estabelecidas para essa província, ficando incompleta a
guarnição. O período em que a quantidade de homens ultrapassou 1500 praças foi a partir da
negociação com o Paraguai, período conturbado e que a intenção do governo imperial era que
essa guarnição fosse mantida com dois mil homens.
Quadro IV – Efetivos do Exército em Mato Grosso
ANO Nº DE PRAÇAS
1851 1281
1852 1234
1853 1188
1854 1218
1860 1782
1861 1635
Fonte: Dados fornecidos nos Relatórios de Presidentes de Província entre 1850 a 1864. APMT
Estabelecer um número desejável para a guarnição das províncias não era garantia de que
fosse alcançado. Assim, nem sempre a demanda requisitada pelo governo imperial era bem aceita
na província. Em 1851, Augusto Leverger questionou o pedido do Ministério da Guerra para
elevar o número de praças para a guarnição de Mato Grosso alegando não ser viável buscar
aumentar o número de recrutas, pois nem mesmo havia conseguido completar a cota
anteriormente proposta.
De acordo com Leverger, a província somente teria condições de aumentar o número de
praças por um período curto e em situação extraordinária. Além do que, significaria elevação de
159
Relatório do Ministério da guerra de 1857. Op. cit., p.29
76
gastos provinciais com voluntários e engajados.160
Além de diminuto, os praças que serviam nas
fileiras do Exército eram mal preparados, sendo recrutados sem nenhuma experiência ou
treinamento militar e enviados ao Exército. Essa inexperiência militar, junto com as más
condições a qual eram expostos os recrutas e o desejo de não servir ao Exército, reforçavam as
reclamações por parte dos oficiais, pois propiciavam as deserções.
Com um número insuficiente de homens para a guarnição da fronteira, os praças
recrutados ainda eram empregados para realizar outras atividades, devido à necessidade de mão
de obra nas colônias e nos destacamentos militares. Os praças realizavam tarefas para as quais
não eram pagos, como abertura de estrada, construção de pontes, reparos nos quartéis e
fortificações, condução da mala do correio, serviço de policiamento, corte de lenha, limpeza de
rios, faxina diária etc.
Os praças da Companhia de Pedestres eram constantemente destacados para realizar o
serviço de policiamento, pois o corpo policial da província havia sido extinto em 1840, quando as
disputas políticas ainda representavam um risco à ordem local e não estava bem definido o papel
do Executivo e do Legislativo. A Assembleia Legislativa Provincial tinha receio de que o corpo
policial fosse utilizado por grupos para manobrar a esfera política, pois ficava sob o comando
direto do presidente da província. Com isso, a Assembleia cortou o orçamento destinado à
manutenção do corpo policial, alegando falta de recursos. O policiamento passou a ser feito por
praças do Exército, que além de representar custos mínimos, estavam diretamente sob o comando
de um oficial superior, não sendo submetidos aos mandos de grupos políticos.161
A situação mudou, após o período de estabilidade política alcançada a partir de 1850,
sendo que com os papéis do Executivo e do Legislativo mais bem definidos, a desconfiança da
utilização do corpo policial para fins políticos já não era vista como uma ameaça. Nesse
momento, as preocupações do governo passaram a ser direcionadas para a segurança do
individuo e de seus bens, tornando necessária a presença de um corpo policial. Essa situação
favoreceu a criação do corpo policial na província em julho de 1858, contando inicialmente com
160
Augusto Leverger ao ministro da Guerra Manoel Felizardo de Sousa e Mello. Correspondência oficial da
presidência com o Ministério da Guerra 1850-1852. Livro 113, Estante 06, R.27, F.07. APMT 161
SENA, Ernesto Cerveira de. Entre anarquizadores e pessoas de costumes. Op. cit., p.177
77
um Tenente Comandante, um Sargento, quatro Cabos e vinte soldados.162
O corpo policial
permaneceu até 1865, quando as necessidades da guerra fizeram com que fosse incorporado ao
corpo de voluntários.
Não havia consenso entre os oficiais e o comando das armas sobre a utilização dos praças
em outras atividades, sendo que alguns alegavam que essas atividades sobrecarregavam a
prestação de serviço e prejudicava na atuação militar. A administração militar ficava sob a
responsabilidade do comandante das armas que, na maioria das vezes, era ocupado pelo próprio
presidente da província, tendo de decidir sobre questões como a alimentação, fardamento,
pagamento de soldo, recrutamento e outras questões da alçada militar.
Não acho rasoavel que praças do Exercito sejão obrigadas a se
empregarem em serviço como este para a Repartição da Marinha; mas para
attender á conveniência do serviço público occore-me a providencia de, nos dias
de folga, autorisarem os Commandantes dos ditos destacamentos a que os
soldados vão tirando e amontoando lenha por sua conta para ser vendida aos
Commandante do ponto para que nem os soldados fiquem prejudicados, nem
seja fóra de razão o preço da lenha.163
Outras tarefas, como a condução das malas do correio, eram encarregadas aos praças pelo
próprio presidente da província:
Faça V.S. destacar para Piquim nove praças da Companhia de Pedestre
inclusive hum cabo para serem empregadas, debaixo do comando do Sargento
162
RELATÓRIO do Presidente da Província de Mato Grosso, o Coronel Antonio Pedro de Alencastro, na abertura da
sessão ordinária da Assembléia Legislativa Provincial, em 3 de maio de 1860. Cuiabá: Typ. da Voz da Verdade,
1860. p.9 163
Presidente da província ao comandante do Baixo Paraguai. Registro de correspondência entre a presidência e os
comandantes de corpos, de distritos e de destacamentos militares e os cirurgiões de corpos de saúde 1855-1857.
Livro 151, Estante 07. APMT
78
Felippe Pereira Mendes, na condução das malas do correio entre aquele ponto e
o de Sant‟Anna do Paranahyba [...]164
No ano de 1851, foram destacados oitenta e dois praças da Companhia de Pedestres para
serem empregados no serviço dos correios e no de policiamento.165
Houve um desfalque
significativo, se considerarmos a quantia de homens para a defesa de todos os pontos de
guarnição da província.
Nesse sentido, tirar e amontoar lenha nos dias de folga, tarefas como conduzir as malas do
correio citadas anteriormente, captura de presos, desertores e escravos fugidos, exigiam tempo e
deslocamento do local onde estavam assentados os praças, atrapalhando o serviço na guarnição,
como também, eram motivos indicadores das causas da indisciplina. Quando deslocado para
outro local para prestação de serviço que não era militar, o praça ficava fora do destacamento por
um tempo que poderia estar sendo empregado para instrução militar do mesmo. Além do que,
essas saídas eram aproveitadas pelos praças para desertar.
Apesar do serviço cansativo, os praças tinham que conviver com o atraso no fornecimento
dos gêneros de primeira necessidade para alimentação, sendo que, quando eram comprados na
localidade, o preço excedente local fazia com que a verba destinada para gasto com a alimentação
não fosse o suficiente, não conseguindo cobrir os gastos para fornecer uma refeição diária aos
praças.166
Os recursos básicos para a subsistência dos soldados eram enviados da capital para as
colônias militares e para os destacamentos, sendo que, muitas vezes, eram remetidas as verbas
para que a aquisição fosse feita na própria localidade. Era comum o atraso no envio da verba ou
dos mantimentos, mas esse atraso ia além da demora pela distância da capital.
164
Correspondência oficial entre a Presidência e o Comandante das Armas da província. Ano de 1851. Livro 122,
Estante 06. APMT.
165 Relatório do Presidente da Província de 1851. Op. cit., p.9
166WOJCIECHOWSKI, Eula. Op. cit., p. 57
79
Em outubro de 1863, o comandante do Distrito Militar de Miranda reclamou ao presidente
da província que havia muito tempo que os soldados sofriam com a falta de materiais necessários:
“Continua a divida de calçados e esteiras dos anos 1852 a 1861, divida que se torna sensível às
praças por não haver neste lugar recurso algum de remediar-se tão notável falta.” 167
Desta
maneira, com o atraso no pagamento do soldo e mesmo a constante falta de fornecimento de
viveres e demais mantimentos, faziam com que os praças utilizassem seu tempo de folga para
providenciar caça e pesca para sua alimentação e subsistência.
Quanto ao que diz respeito ao sustento dos Soldados, he a maior barreira
que o Commandante do Forte pode encontrar, por que os viveres sendo
comprados dos Índios Bolivianos a troco de ferramentas e bejoterias, por um
preço exhorbitante, e não tendo o Commandante taes gêneros, vê-se na
impossibilidade de obrigal-os a trabalhar nos dias de sua folga, pois que n‟estes
dias pedem licença para pescarem ou caçarem para o seu sustento.168
A demora ou mesmo a falta de envio de recursos para aquisição de materiais básicos para
as despesas com os praças gerava algumas situações inesperadas como a presenciada pelo
comandante Antonio Peixoto de Azevedo, que ao realizar a revista no Forte de Coimbra169
, se
deparou com praças que não tinham calçados nem roupas para se apresentarem no dia da revista,
comparecendo descalços e com vestimentas inadequadas:
Não acostumado a desembainhar minha espada para Commandar soldados
tão mal vestidos e pessimamente disciplinados foi (e V. Exª. notaria) com
bastante acanhamento que fiz a V. Exª. devida continência por que se acharão
nas fileiras 38 praças em mangas de camisa, chapéos de palha e pés no chão. 170
167
Relatório do mês de setembro do Distrito Militar de Miranda ao presidente da província em 1 de outubro de 1863.
Maço: Miranda. Lata 1863 F. Apud WOJCIEHOWSKI, Eula. Op. cit., p.57 168
Alferes Comandante do Quartel do Forte do Príncipe da Beira João Magesse de França ao presidente da província
Augusto Leverger em 22 de novembro de 1851. Lata 1851 A. APMT 169
A inspeção dos corpos da guarnição da província era realizada por oficiais das respectivas armas de acordo com o
Decreto nº 1879 de 31 de janeiro de 1857. Relatório do Ministério da Guerra de 1856. Op. cit., p.32. 170
Comandante Geral interino Antonio Pedro de Alencastro ao presidente da província Augusto Leverger em 14 de
março de 1851. Lata 1851 A. APMT
80
Apesar de as vestimentas serem precária e inadequadas, os praças se apresentavam para
revista, pois não haviam recebido a remessa de fardamentos, reservando algumas calças e
jaquetas brancas para certas formaturas.
Entre os fatores apresentados nos relatos do presidente da província para explicar o
motivo dessa situação precária dos soldados, estava à prática da traficância, onde as verbas ou os
materiais eram desviados da função ao qual era destinado. A traficância de soldo, alimentação e
fardamento, de acordo com o presidente da província Augusto Leverger, era algo bastante
comum na província, sendo praticado por oficiais. Embora fosse difícil conseguir com que fosse
reprimida tal prática por não conseguir provas contra os envolvidos, uma vez que, os próprios
soldados não denunciavam tal ato por medo de serem castigados pelos oficiais.
Destas traficâncias há muito tempo que tenho pleno conhecimento, e para
reprimil-as não me falta vontade, nem tenho poupado diligencias sem que me de
incorrer na malquerença destes ou daquelles. Porem quasi perco a esperança de
cortar abusos em que há muitos interessados, e cuja prova legal he difficillimo
obter-se, por quanto os mesmos soldados lezados são os primeiros que por medo
do castigo, ou por qualquer dádiva, occultão a verdade do que sabem.171
A falta de pagamento, alimentação precária, má condição de alojamento, falta de
fardamento e vestimentas adequadas, marcaram o cotidiano dos soldados destacados nos diversos
pontos da província de Mato Grosso. Dentre os problemas apresentados, quando os praças de 1ª
Linha não eram suficientes para completar a guarnição e a situação exigia reforço, praças da
Guarda Nacional eram destacados com autorização do Ministério da Guerra para auxiliar o
Exército, sendo pagos com os vencimentos destinados aos praças de 1ª Linha.
171
Augusto Leverger ao ministro da Guerra Manoel Felizardo de Sousa e Mello em 19 de janeiro de 1852.
Correspondência oficial da presidência com o Ministério da Guerra 1850-1852. Livro 113, Estante 06, R.27, F.07.
APMT
81
Por esta circunstancia não posso deixar de respeitosamente insistir na
requisição que tenho feito do augmento da força n‟aquelle Districto (Mato
Grosso), que se pode levar a effeito unicamente com o chamado da Guarda
Nacional a serviço de Destacamento, visto a exigüidade de força de linha que
cada vez mais se disfalca, com as baixas, deserções e o pequeno numero de
recrutas votado para equiparar a grande differença cauzada por aquelles e outros
motivos.172
A primeira Companhia da Guarda Nacional na província de Mato Grosso data de 1832,
criada após a abdicação do Imperador Pedro I, com o objetivo de conter as rebeliões que
eclodiram em vários pontos da fronteira. Segundo Jonh Erick Augusto Silva, embora os Guardas
Nacionais ficassem sobre o comando de um chefe local, devia obediência ao poder central, pois o
artigo 6º da Lei nº. 602 de 19 de setembro de 1850 tornava a Guarda subordinada ao Ministério
da Justiça e aos Presidentes da Província. 173
Em suas atribuições cotidianas, os Guardas Nacionais eram empregados na manutenção
da ordem pública, através do serviço de policiamento, destacamento em vilas, cidades e
fronteiras, e na destruição de quilombos. Jonh Erick Silva ressalva que, mesmo sendo
considerado importante seu papel na defesa da ordem interna da província “devemos ressaltar que
ela enfrentou ao longo de sua existência, muitos problemas, tais como a falta de armamento e
instrutores, o que sem dúvida comprometia sua eficiência.”174
O destacamento de praças da Guarda Nacional causava alguns embaraços, pois embora
estivesse empregado nas mesmas funções que os praças do Exército, ficavam sob o comando e
regulamento da própria Guarda Nacional, não estando submetidos aos regulamentos militares.
Tenho a honra de dirigir-me a V. Exª. pedindo esclarecimento a respeito
dos Guardas Nacionais que aqui se achão em serviço, se estão ou não sujeitos
172
Comandante do Quartel do Comando das Armas de Mato Grosso em Cuiabá, Carlos Augusto de Oliveira ao
presidente da província em 27 de maio de 1864. Lata 1864 F2. APMT. 173
SILVA, Jonh Érick Augusto. A Guarda Nacional na fronteira oeste do Império do Brasil (1850-1864). 2011.
Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Mato
Grosso. Cuiabá, 2011. p.120 174
SILVA, Jonh E. A. Op. Cit., p.133
82
aos Artigos de guerra e as novas Ordenanças, ou se elles tem algum regulamento
especial que os rege ao qual estejem sugeitos quando destacados em Fronteira, e
se devem fazer todas as faxinas necessarias para o concerto do Quartel e todos
os Serviços que se offereção, se devem conduzir a bolça do correio ate Jauru e se
for necessario ate essa Cidade, e marchar em deligencia ao Forte do Príncipe, e
quaes os castigos que devem sofrer quando comettão faltas, pois eu os concidero
sugeitos aos Artigos de guerra, e por isso tem de sofrerem os castigos que o
mesmo aplica as faltas comettidas pelos Soldados de 1ª Linha e fazem as faxinas
e ajudão no concerto do Quartelamento, porem como sou odiado e sençurado
pelos habitantes deste Districto por este meu proceder, e dezejando prevenir
algum resultado dezagradavel por isso roga a V. Exª. se digne ordenar o que for
direito.175
Em vários momentos, os guardas nacionais foram chamados a auxiliar o Exército na
atividade de defesa, inclusive deslocando-se para destacamentos na fronteira. Como no ano de
1852, quando Augusto Leverger recorreu ao governo imperial para lhe autorizar a destacar
guardas nacionais para auxiliar a força militar na proteção dos pontos de guarnição da fronteira e
fazer o serviço de policiamento. Fornecida a autorização, foram destacados quarenta praças para
o Distrito de Mato Grosso, vinte e seis para o policiamento das vilas de Diamantino e Poconé, e
quinze para a guarnição deste último.176
Recorrer a Guarda Nacional para auxiliar no serviço de guarnição ou de policiamento foi
algo constante no período analisado, variando o número de destacados em torno de 50 a 100
guardas. Essa quantia somente foi mais elevada no momento em que a defesa da província
requereu mais atenção e o governo procurou aumentar o número de praças nesses pontos, devido
à relação conturbada com a República do Paraguai.
175
Quartel de o Comando Militar do Distrito de Mato Grosso João Pinheiro Guedes ao presidente da província
Augusto Leverger em 1 de janeiro de 1853.. Lata 1853 D4 APMT
176 RELATÓRIO do Presidente da Província de Mato Grosso, o Capitão de Mar e Guerra Augusto Leverger, na
abertura da sessão ordinária da Assembleia Legislativa Provincial, em 3 de maio de 1852. Cuiabá: Typ. do Echo
Cuiabano, 1853. p.11
83
Segundo Jonh Erick Silva, o principal fator dos requerimentos para o destacamento de
Guardas Nacionais para atuarem no serviço de policiamento derivava da ausência ou
insuficiência das forças de linha.177
Quadro V – Praças da Guarda Nacional destacados para auxiliar o Exército
ANO GUARDAS
DESTACADOS
1852 81
1854 75
1856 235
1858 330
Fonte: Dados fornecidos pelos relatórios dos presidentes da província de Mato Grosso entre 1850 a 1864.
Durante as negociações do acordo de livre navegação, entre 1856 e 1858, o governo
imperial procurou aumentar o número de efetivos para guarnecer a fronteira. Como vimos
anteriormente, os praças da força de 1ª Linha não eram suficientes e para reforçar a força de
guarnição foi destacada uma quantidade significativa de guardas nacionais se comparado com os
anos anteriores. A maioria desses praças destacados da Guarda Nacional eram empregados no
serviço de policiamento da capital e na guarnição da fronteira com a Bolívia, como em Vila
Maria e no Distrito de Mato Grosso. Os praças do Exército dessas localidades eram deslocados
para a fronteira do Baixo Paraguai, por ser o local considerado mais ameaçado.
Em 1857, Augusto Leverger pretendia pedir a dispensa dos guardas nacionais destacados
para o serviço de guarnição em que estavam empregados há mais de dois anos.178
Mas isso não
foi possível, pois a necessidade de guarnecer a fronteira permaneceu e esses guardas só foram
dispensados do serviço de guarnição após o aditivo e o franqueamento da navegação em 1858,
177
SILVA, Jonh E. A. Op. Cit., p.127 178
Relatório do presidente da província de 1857. Op. cit., p.5
84
quando consideravam que o perigoso de uma atitude hostil por parte do Paraguai por hora havia
se dissipado.
A Lei nº. 602 de 19 de setembro de 1850 não estabelecia prazo definido quanto ao tempo
que um Guarda Nacional poderia ficar destacado, podendo “durar em quanto as necessidades
publicas o exigirem”.179
Visando reduzir o destacamento de Guardas Nacionais, o governo
imperial estabeleceu em 1861, que as Guardas Nacionais só poderiam ser chamados para o
serviço de destacamento diante da mais urgente necessidade. Segundo Jonh Erick Augusto Silva,
essa medida fez com que o destacamento de Guardas Nacionais passasse a ser mais diminuto, o
que só veio a ser alterado com o inicio da Guerra do Paraguai em 1864.180
2.2.2 Os constantes receios de uma invasão
Durante as negociações do acordo de livre navegação com o Paraguai não foi descartada a
possibilidade de um conflito armado entre os dois países, sendo visto como necessário o
guarnecimento da fronteira do Baixo Paraguai, sul da província de Mato Grosso. Esse receio
levou o governo imperial a enviar Augusto Leverger, presidente e comandante das Armas na
província, a um aquartelamento na fronteira sul e concentrar nessa localidade a força armada
existente.
Augusto Leverger chegou ao Forte de Coimbra em 12 de fevereiro de 1855 e mesmo sem
saber por quanto tempo teria que passar distante da capital, preferiu transferir a sede do governo
para o Forte de Coimbra a transferir o governo ao vice181
, o liberal Albano de Souza Osório. O
que demonstra a desconfiança em relação aos liberais, embora não tenha deixado de indicar
179
BRASIL. Coleção das Leis do Império do. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1850. p. 352. Apud SILVA, Jonh
E. A. Op. cit., p.136 180
Ibidem, p.138 181
Através do Decreto nº 207 de 19 de setembro de 1841, a nomeação do vice-presidente deixa de ser uma atribuição
realizada pela Assembleia Legislativa Provincial, passando a ser uma atribuição feita via decreto imperial. O vice-
presidente era escolhido entre os políticos locais, sendo ou não um dos nomes indicados a Corte pelo presidente da
província. Era um cargo muito importante, pois na ausência do presidente o vice poderia assumir a presidência
ficando no cargo por até três meses, levando em consideração a distância da província e o tempo gasto para uma
nova nomeação. SENA, Ernesto Cerveira de. Entre Anarquizadores e pessoas de costumes. Op. cit., p. 70
85
liberais para o cargo de vice como tática política para se aproximar e manter a ordem dentro da
conciliação política. Leverger encarregou até as correspondências ao bispo D. José para recebê-
las e entregar aos órgãos correspondentes, além de enviar ao Forte de Coimbra uma cópia dos
ofícios que lhe chegassem.182
Antes de ser enviado para o Forte de Coimbra, Augusto Leverger já havia tomado várias
medidas para guarnecer a fronteira sul da província de Mato Grosso, pois em 1853 as discussões
sobre a navegação fluvial entre o Brasil e o Paraguai chegaram a um ponto elevado de
desentendimento, onde o Paraguai demonstrou elevada capacidade de mobilização militar.
Os recursos militares existentes foram encaminhados para a fronteira do Baixo Paraguai,
com a intenção de “pôr essa fronteira no melhor estado possível de defesa, deveriam preparar-se
para a possível eventualidade de hostilidades com a República do Paraguay”, sendo recomendado
ao comandante do corpo de cavalaria do distrito de Vila Maria que permanecesse com a cavalaria
nessa vila, no Baixo Paraguai, onde já estavam localizados. Recomendou-se ainda enviar para
esse local mais praças e informar a quantidade de canoas existentes e a quantidade necessárias a
se adquirir para fazer o transporte dos praças, bem como, a carga a ser enviada para o baixo
Paraguai. Essas recomendações também foram direcionadas ao comando da Força Naval da
província, para que a pequena força existente estivesse pronta para enfrentar um conflito
próximo.183
Aos distritos do Baixo Paraguai184
foi recomendado que concluísse com brevidade as
obras militares que careciam o distrito, mas de modo que não esgotassem a força dos soldados,
pois estes deveriam entrar em serviço de campanha a qualquer momento. As recomendações do
presidente da província eram objetivas, temendo que a qualquer momento os paraguaios
pudessem romper a fronteira do Baixo Paraguai. Diante dessa possibilidade, Augusto Leverger
procurou direcionar os parcos recursos da província para essa região, tentando amenizar a
precariedade existente nessa localidade com o que a província podia oferecer naquele momento.
182
CORREA FILHO, Virgilio. Op. cit., p.531 183
Augusto Leverger ao Comandante do Distrito militar do Baixo Paraguai em 22 de Novembro de 1853. Registro
de Correspondência Reservada Presidencial com interior e exterior da Província. Livro 123, Estante 06, R 028 F06.
APMT
184 Compreende Coimbra, Albuquerque, Nioaque, Miranda e Dourados.
86
A recomendação ao comandante de Vila Maria para o deslocamento da força armada para o sul
da província fez perceber que não havia medo de que a Bolívia pudesse agredir a fronteira norte
da província; o perigo estava ao sul.
Concluir as reformas nas fortificações, disponibilidade de canoas para transporte, depósito
de lenha em Albuquerque, deslocamento de praças, foram algumas das medidas tomadas pelo
presidente da província, de modo que,
até Janeiro proximo futuro esteja essa Fronteira e sua guarnição promptas para
as eventualidades de huma guerra offensiva e defensiva [...] Estes preparativos
devem fazer-se com todo o possível disfarce, espalhando-se que são medidas de
cautela, e nada mais.185
O próprio Leverger descreve o resultado dessa mobilização:
À Outubro do anno proximo findo recebi Avisos reservados dos
Ministérios da Guerra e da Marinha communicando-me os projectos do Governo
a respeito do Paraguay, prescrevendo-me as medidas q. devia tomar até Janeiro
do anno seguinte, e annunciando-me a proxima remessa de trem de guerra, gente
e dinheiro de que havia grande falta.
Acabou o anno sem que se recebesse cousa alguma. Em Janeiro chegou
huma remessa da Intendencia da Marinha da Corte. O principal artigo era
artilharia. Vierão carretas, palarmenta e munição; os canhões porem havião
ficado na Provincia de S. Paulo! [...] Entretanto, desde logo que recebi os
referidos Avisos, procurei tirar o possível dos mingoados recursos que tinha a
Provincia. Fiz seguir para a fronteira o que tinha disponível em tropa,
armamento e munição, e remetti também copia de viveres. [...] E, no dia 1º de
Fevereiro, parti para este lugar onde determinarão os citados Avisos que eu
estivesse para acautelar qualquer emergencia e esperar ordens. [...] Por espaço
de sete mezes estive esperando cada dia, a cada hora a chegada do vapor que
devia determinar o meo destino e da força que está commigo. [...] Fiquei na
185
Augusto Leverger ao comandante do Distrito militar do Baixo Paraguai Antonio Peixoto de Azevedo em 26 de
outubro de 1854. Registro de correspondência reservada presidencial com o interior e o exterior da província. Livro
123, Estante 08, R. 28, F.07 APMT
87
ignorancia de haver-se ou não a nossa Divisão retirada da foz do Rio Paraguay,
até o dia 25 de Setembro, em que recebi entre os Jornais do Commercio o de 27
de Maio que annuncia a chegada da mesma Divisão a Buenos Ayres. [...] Não
tenho a menor ideia de quaes sejão as intenções do Governo, nem dos motivos
que tem para receiar a invasão do nosso territorio186
As medidas tomadas para guarnecer a fronteira foram quase que exclusivamente no
sentido local. A ajuda não chegou, nem as informações sobre as negociações no Prata. Durante o
período em que esteve aquartelado no Forte de Coimbra, Leverger reclamou da falta de
informações, de materiais e de homens para a defesa. A demora para receber informações sobre o
estado das negociações na bacia do Prata o fazia se sentir isolado em relação aos acontecimentos,
chegando a considerar estar sendo ignorado pelo governo central, sem ao menos compreender o
motivo da sua presença na fronteira do Baixo Paraguai.
Pouco antes de retornar a Cuiabá, Leverger escreve a Paranhos, dizendo ter pensado que
sua permanência na fronteira fosse para mostrar ao Paraguai uma força maior do que a província
tinha, como uma estratégia para intimidar as pretensões de invasão desse país.187
Leverger ficou sabendo da assinatura do acordo entre o Brasil e o Paraguai realizado em
abril de 1856, apenas quatro meses depois, pelo Cônsul Geral do Império na República do
Paraguai, Amaro José dos Santos Barbosa.188
Após a assinatura do acordo ainda teve de
permanecer no Forte de Coimbra e esperar chegar o encarregado para ficar em seu lugar no
comando. O encarregado, Tenente-Coronel Caetano Manuel de Faria Albuquerque, só chegou ao
forte no mês de outubro de 1856, partindo Leverger logo em seguida, no dia 19 do mesmo
mês.189
A assinatura do acordo de navegação em 1856 não dissipou os receios de atitude hostil
por parte do Paraguai, pois os embaraços com a navegação permaneceu e não foi resolvida a
186
Augusto Leverger ao ministro do Império em 1 de outubro de 1855. Registro de avisos reservados recebidos dos
Ministérios. Livro 219, Estante 08, R.40, F.07. APMT 187
Augusto Leverger ao Conselheiro José Maria da Silva Paranhos em 6 de outubro de 1856. Livro 219, Estante 08,
R 40, F 07. APMT
188 Registro de avisos reservados dos ministérios de 1856. Livro 219, Estante 08. APMT
189 SENA, Ernesto Cerveira de. Entre anarquizadores e pessoas de costumes. Op. cit., p. 119
88
questão de limites como pretendia o governo brasileiro. Com isso, manteve-se a necessidade de
guarnecer a fronteira sul, permanecendo a atenção do governo voltada para essa localidade e a
presença dos guardas para auxiliar o Exército.
Nesse contexto, foram mantidas as viagens de vistoria pelas fronteiras. Durante o período
em que esteve no governo da província, Joaquim Raimundo de Lamare conseguiu se ausentar
para realizar viagem de inspeção na fronteira do Baixo Paraguai. Ele realizou duas viagens para
vistoria da fronteira, demorando em média sessenta dias em cada uma. De Lamare compreendia o
real motivo de suas excursões à fronteira do Baixo Paraguai, buscando vistoriar a recém aberta
navegação, sabendo que apesar de firmado o acordo com o Paraguai não havia garantia de que a
navegação não viesse a ser interrompida a qualquer momento.190
As possibilidades de realização dessas viagens indicam que a situação política era estável,
não havendo contendas que colocassem em risco a estabilidade mantida até o momento. Essa boa
relação parecia interessar a todos, contando com ambas as facções políticas para auxiliá-lo na
administração e com remessas de dinheiro do governo central para ser investido na província.191
De Lamare assumiu o governo da província em fevereiro de 1858, com o objetivo de
prolongar a política de conciliação na província, de forma a não suscitar grandes divergências
entre os grupos políticos locais, o que de fato conseguiu durante os quase dezenove meses de
administração. O presidente que o substituiu no governo da província, Antonio Pedro de
Alencastro (1859-1862), conseguiu continuar as viagens ao Baixo Paraguai para vistoriar a
situação da fronteira, mas seu governo não conseguiu manter a continuidade da política de
conciliação na província. 192
O estabelecimento do prazo de seis anos para demarcar limites entre Brasil e Paraguai
ocorreu durante as negociações do acordo de navegação em 1856, a estratégia adotada pelo
governo brasileiro para se preparar e proteger Mato Grosso foi fortalecer a guarnição das
localidades em litígio, explorarem a região fronteiriça e ocupá-la, fundando colônias militares.193
190
Ibidem, p. 129 191
Ibidem, pp. 127-129 192
CORREA FILHO, Virgílio. Op. cit., p. 532 193
Ibidem, p.535
89
A instrução de Augusto Leverger ao major comandante do Baixo Paraguai buscava
ocupar e garantir a posse do terreno litigioso, pois o governo brasileiro não tinha nenhuma
intenção de ceder o terreno ao norte do Apa:
O terreno contestado he pois o que medêa entre o Iguatemy e o Ivinheima,
e entre o Apa e o rio Branco. A sul do Ivinheima temos estabelecimentos ruraes
que não devem ser ocupados, e resolve-o fundar junto ao rio dos Dourados,
affuente meridional do mesmo Ivinheima, huma colonia militar, cujo
adiantamento e estabilidade, e bem assim do estabelecimento entre o Nioac e
Brilhante são de summa importancia. He não menos importante impedir que os
Paraguayos occupem terrenos a Norte do Iguatemy. Devemos deixar como estão
os terrenos pantanosos comprehendidos entre o Apa, o Paraguay e o chamado
rio Branco, desde as cabeceiras deste, tratando porem de povoar os terrenos altos
que dominão esse pantanal conservando-nos a alguma distancia do Apa, tanto
quanto seja preciso para que os Paraguayos não possão allegar que se está
alterando o actual uti possidetis.194
Passou a ser realizado o reconhecimento na fronteira sul da província, procurando
destacar os pontos importantes para serem escolhidos para fundar as colônias militares. Os locais
escolhidos eram pontos na fronteira considerados, sob o ponto de vista militar e estratégico,
conveniente para fortificar e reforçar a defesa.
Assim, as colônias militares de Dourados (1856) e a de Miranda (1859) foram criadas
nesse momento de tensão com a República do Paraguai, estando localizadas na faixa de fronteira
com esses país. Além de apresentar para o vizinho que a área estava sendo ocupada, nessa
localidade era montado um esquema militar para proteção da província.
A colônia militar de Miranda, fundada em 11 de novembro de 1859, estava localizada
num dos pontos estratégicos mais importantes na fronteira sul. Com essa colônia militar
buscaram fechar o círculo de colônias existentes no sul da província (Nioaque, Brilhante e
Dourados) para que pudessem prestar mútuos auxílios e proteção à população, navegação e
ocupação da fronteira com o Paraguai. Essas colônias deveriam servir para fazer a proteção da 194
Augusto Leverger ao comandante da fronteira do Baixo Paraguai em 28 de outubro de 1856. Registro de avisos
reservados recebidos dos ministérios. Livro 219, Estante 08, R 40, F 07. APMT
90
localidade limítrofe com o Paraguai e de seus moradores, como também, servir como ponto de
abastecimento e de auxilio à navegação, além de dar apoio local para catequizar os indígenas
próximos, para servir de auxílio no caso de uma guerra.195
O governo paraguaio agiu diferentemente, investindo na militarização do país, enviando
homens a Inglaterra para treinamento militar, recrutando técnicos ingleses e comprando
armamentos e materiais bélicos.196
Esses investimentos em militarização causava inquietação no
governo de Mato Grosso, que via o Paraguai cada vez mais preparado militarmente e um risco a
integridade da província.
Em 1856, o governo paraguaio adquiriu vários vapores da Inglaterra, o que causou grande
surpresa e inquietação ao governo de Mato Grosso197
:
Causou-me tanto sorpreza como inquietação a noticia, que me dá V. Ex. de ter o
Governo do Paraguay ultimamente mandado vir da Inglaterra quatorze Vapores
pequenos e dezessete engenheiros ou maquinistas: sorpreza, porque estava eu
longe de pensar que os recursos financeiros daquelle Governo lhe permitissem
fazer a despeza que exigem a acquisição e a manutenção desses vapores; e
inquietação, pela triste convicção em que estou de que, com os mesmos vapores,
poderão os Paraguayos, quando o quizerem, explorar em grande extensão o
nosso rio Paraguay e os seus affluentes, em quanto não possuirmos semelhante
elemento de força.198
As informações sobre essas aquisições, assim como os demais direcionamentos desse
país, eram acompanhados na medida do possível pelo governo da província, que buscava estar
atento às movimentações do Paraguai e ao risco que poderia oferecer a província de Mato
Grosso. Ao comentar essa aquisição, Augusto Leverger acrescenta que:
195
Registro de correspondência entre a província e os comandantes de corpos de distritos, de destacamentos militares
e cirurgiões do corpo de saúde 1857-1860. Livro 164, Estante 07, R.33, F.07. APMT. 196
DORATIOTO, Francisco. Op. cit., p.39 197
Até a década a 1860 o Brasil possuía apenas seis vapores Paraguassú, Anhambahy, Paraná, Jaurú, Corumbá e o
Alpha. RELATÓRIO do Presidente da Província de Mato Grosso, o Coronel do Corpo de Engenheiros Antonio
Pedro de Alencastro, na abertura da sessão ordinária da Assembleia Legislativa Provincial, em 3 de maio de 1861.
Typ. da Voz da Verdade, 1861. 198
Augusto Leverger ao Marques de Caxias em 28 de janeiro de 1856. Livro 219, Estante 08, R.40, F.07
91
Na minha humilde opinião, semelhante aquisição [...] com os recursos
primários próprios do Paraguay, he indícios de não limitar se o Governo
daquella Republica a preparar-se para a eventualidade de uma guerra defensiva
que receia ter com o Império, sendo alias esse material mais do que precisa o
mesmo Governo para, com os meios já possue apoderar-se quando quiser dos
Districtos de Albuquerq. E Miranda e da navegação de lado o rio Paraguay e
seos affluentes.199
Para obter informação sobre essas compras ou demais direcionamentos militares dos
governos paraguaio e boliviano, o presidente da província de Mato Grosso realizou incursões na
fronteira, principalmente ao sul, como pontuamos, mas também deixou os comandantes dos
distritos militares encarregados de obter toda e qualquer informação sobre as movimentações
militares, os direcionamentos quanto às delimitações de limites e ocupação das áreas litigiosas de
fronteira.
A espionagem era uma prática comum entre esses países desde o período colonial,
enviando indivíduos para obter informações sobre a fronteira e as pretensões do país vizinho.200
Era realizada de maneira a não acarretar reclamação e nem afetar a relação estabelecida. Essa
vigilância acontecia com as informações de desertores, através de incursões dos indígenas ao
território vizinho ou mesmo com envio de praças para espionar.
No ano em que o Paraguai mandou vir vapores da Inglaterra, o governo da província
informou ao Ministério da Guerra que por meio das informações prestadas por um desertor
paraguaio, pode constatar que o Paraguai estava militarmente bem preparado, sendo que
enquanto a província estava em situação precária de cavalaria, o Paraguai contava com uma
cavalaria bem equipada e completa.201
199
Augusto Leverger ao Conselheiro José Maria da Silva Paranhos em 14 de fevereiro de 1856. Livro 219, Estante
08, R 40, F 07. APMT 200
VOLPATO, Luiza R. Ricci. A conquista da terra no universo da pobreza. Op. cit., p.66 201
Augusto Leverger ao Ministro dos Negócios da Guerra Marques de Caxias em 14 de Fevereiro de 1856. Registro
de avisos reservados recebidos dos ministérios. Livro 219, Estante 08, R 40, F 07. APMT
92
As recomendações enviadas aos comandantes dos distritos militares da fronteira eram
para que buscassem ter conhecimento sobre os pontos fronteiriços que estavam sendo ocupados
pelos paraguaios; observar os procedimentos adotados por eles e o estado em que se encontrava o
corpo militar. O governo contava com a atuação dos comandantes militares para realizar ronda na
fronteira e explorar os campos próximos a essas áreas de divisas para conhecê-las e colocar os
distritos em melhor estado de guarnição. A recomendação era para que fosse informado sobre
qualquer ocorrência, por mais insignificante que pudesse parecer.
Assim, o governo provincial recebia informações sobre as mais diversas ocorrências na
região de fronteira, sendo que os comandantes procuravam informar e buscar comprovar a
veracidade das informações prestadas. Em 1862, o comandante do distrito militar de Miranda
enviou para o presidente Herculano Ferreira Penna, um pedaço de couro em tiras que tinha sido
encontrado durante uma ronda realizada pelo lado do Iguatemi, que segundo ele continha marcas
e nomes de paraguaios.202
A ação do comandante era buscar demonstrar que as ordens recebidas
estavam sendo cumpridas e confirmar a presença dos paraguaios nessa localidade.
As rondas para explorar a região fronteiriça foram sendo realizadas com frequência.
Numa dessas explorações, o presidente da província foi informado que o encarregado da ronda, o
Alferes José Ribeiro do Nascimento, havia encontrado vestígios e estradas abertas pelos
paraguaios em direção a Dourados. Segundo o comandante do Distrito Militar de Miranda, os
paraguaios permaneceram próximos a essa localidade para a extração de erva-mate durante o
período de extração, sendo que só se retiraram após o fim da colheita.203
Segundo Doratioto, a
extração do mercado de erva-mate era um dos motivos de disputas de limites entre o Brasil e o
Paraguai para tentar garantir a posse das áreas de extração.204
A reclamação de comandantes dos distritos militares sobre a presença de paraguaios e
bolivianos que adentravam o território brasileiro para verificar como estava a situação da
província era frequente. Como chegou a considerar Leverger, era quase impossível os paraguaios
202
Registro de correspondência entre a presidência e os comandantes de corpos, distritos e destacamentos militares
1860-1863. Livro 190, Estante 07. APMT 203
Distrito Militar de Miranda em 25 de novembro de 1861. Lata 1861 B1. APMT 204
DORATIOTO, Francisco. Op. cit., p.39
93
não terem conhecimento do que acontecia nessa região, pois possuíam uma fronteira mais bem
guarnecida.205
Em fevereiro de 1862, a ronda da colônia militar de Dourados percebeu a chegada da
força paraguaia, reunindo praças e colonos para esperar sua chegada. A força paraguaia contava
com aproximadamente setenta homens, seguiu até Dourados para intimar o comandante dessa
colônia a se retirar desse ponto, depois seguiu rumo às cabeceiras do Apa.
Nº 9. Illmo Exmo Sr. Em addiantamento ao meu officio nº.6 de 12 do
corrente, cumpre-me levar a consideração de V. Exª. As occurencias havidas
depois da sahida da partida que fiz seguir no referido dia 12, commandada pelo
Tenente Antonio João Ribeiro, que divia ir a Colonia de Miranda para d‟alli
tomar o rumo das cabeceiras do rio Apa, afim de n‟esse transito encontrar com a
força paraguaya, commandada pelo Tenente de nome Pedro Pereira, por
occasião da invasão por elle praticada no nosso territorio pela Colonia dos
Dourados, como consto do officio original junto, do respectivo Tenente
Commandante. Chegando o Tenente Antonio João Ribeiro na referida Colonia
de Miranda, não encontrou a força paraguaya, qual chegou no dia 11, e ahi
passou até a manhã do dia 12, em que se paz em marcha, pafsando o rio
Miranda, e tomando a direcção do rio Apa, que vai dar em frente ao Forte da
Bella-vista como V. Exª. verá da parte também original junto dada pelo Alferes
João Chrisostomo Moreira, Commandante interino da dita Colonia de Miranda,
seguio após pelas pisadas que deixavão, sem que a podefse alcançar, em rasão
não só de estarem as suas praças bem montadas e levarem animaes a destra,
como por fazerem marchas forçadas, como assim se deprehende, por serem
encontrados pela nossa partida, dous cavaclos mortos por cansaços, ponches,
facas e mais objectos, q. pelo caminheo deixavão. Então chegando a nossa
partida aquem do Apa, defronte do Forte da Bella-vista, sem que alcançasse a
paraguaya não poude seguir em rumo da Colonia dos Dourados, como estava
recommendado nas instrucções dadas por este commando, por achar-se na
presente occasião, intransitaveis os campos, voltando d‟alli a este ponto, onde
hoje chegou. Assim pois, está concludentemente recohecido haver sido invadido
o nosso território por força paraguaya, vinda pelas cabeceiras do rio Dourados,
internando-se até o rio do Apa, ainda terreno reconhecido nosso, que disia
aquelle Tenente, assim o fazer, por ordem do Governo de sua Republica, como
assim estou informando 206
205
Correspondência da província. Livro 184, Estante 07, R. 36, F. 05. APMT 206
Quartel do Comando do Distrito militar de Miranda em Nioaque em 24 de fevereiro de 1862. Lata de 1862 D2
94
Segundo Ruy Coelho de Barros, essa investida do Tenente Pedro Pereira no sul da
província de Mato Grosso teve por objetivo realizar uma coleta de dados sobre essa região,
conforme podemos verificar no croqui abaixo, onde é apresentado às localidades percorridas pelo
Tenente paraguaio.207
Croqui elaborado pelo Tenente Pedro Pereira - 1862
207
BARROS, Ruy Coelho de. A Guerra com o Paraguai – aspectos polêmicos: aprofundamentos. 2007. 159 fl.
Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Mato
Grosso. Cuiabá, 2007. p.56
95
FONTE: ANP. SH. Vol.332, nº.10 – 1862 Apud BARROS, Ruy Coelho de. Op. cit., p.57.
Essa ocorrência foi considerada pelo governo brasileiro como um empreendimento do
Paraguai para intimidar e promover a desocupação de uma região que ambos reivindicavam a
posse, além de servir para expor a vulnerabilidade militar da província de Mato Grosso.
96
Segundo Ruy Coelho de Barros, essa não foi a única investida dos paraguaios nesse
período, conforme conhecimento das autoridades brasileiras. No ano seguinte, 1863, chegou a
Corumbá um „fazendeiro‟ paraguaio com carta de recomendação direcionada a um comerciante
da região, alegando interesse em adquirir fazenda de gado na localidade. Durante essa visita,
procurou conhecer o sul da província, mais especificamente Miranda, Bela Vista, Nioac e a
Colônia de Dourados. Quando retornou a Mato Grosso quase um ano depois, foi para fazer a
ocupação do sul da província como Coronel Isidoro Resquin da Cavalaria do Exército
paraguaio.208
As ocorrências na fronteira com a Bolívia eram em sua grande maioria consideradas pelas
ações isoladas de indivíduos moradores da fronteira, do que pelo empreendimento desse governo
contra o Império, e, por mais espinhosa que fosse não era vista como um risco a relação entre
esses dois países. As reclamações de ambos ao governo, nesse sentido, eram comuns quanto ao
roubo de gado e à perseguição de escravos.
Em 1863, o presidente da província de Mato Grosso, Alexandre Manuel Albino de
Carvalho, enviou uma reclamação ao governo boliviano sobre um roubo de gado na Fazenda
Nacional de Casalvasco praticado por um boliviano, sendo tal ato considerado um atentado ao
território brasileiro. O roubo foi efetuado pelo boliviano com a ajuda de um desertor brasileiro e
um indígena, mas isso não foi considerado relevante para direcionar a reclamação. O que está em
discussão entre os dois governos é o desrespeito considerado por ambos, alegando invasão do
território alheio. Isso porque, ao ser informado ao receber o pedido por parte do presidente da
província de Mato Grosso para que fosse tomada providencia a esse respeito, para que tais
ocorrências não voltassem a se repetir, o Subprefeito de Santa Cruz rebateu dizendo que a prisão
teria sido efetuada em território boliviano, requisitando a devolução dos objetos apreendidos,
assim como, seriam necessárias as providencias para evitar casos semelhantes.209
A não demarcação de limites, com território litigioso entre esses países, fazia com que
essas reclamações fossem comuns. Outra situação era quanto à entrada de soldados brasileiros em
208
BARROS, Ruy Coelho de. Op. cit., p.55 209
Alexandre Manoel Albino de Carvalho ao Sub-prefeito de Chiquitos e Guarayos em 26 de Abril de 1864.
Correspondência oficial desta presidência com o exterior da província e do império. Livro 210, Estante 08, R 039
F09. APMT
97
região considerada pelo governo boliviano como de sua posse, para prender escravos e
desertores. É uma situação que resultava em reclamações bem semelhantes como a comentada
anteriormente, com a diferença que não se tratava de roubo ou saque, mas desrespeito aos limites
da vigência do controle do governo brasileiro. Ao receber o pedido de explicação do comandante
da fronteira de Santa Cruz sobre a entrada de soldados brasileiros, o comandante de Vila Maria
alega não ter ofendido as relações amigáveis com a Bolívia, pois a região entre a Corixa e Salinas
não era considerada pelo governo brasileiro como pertencente aquele país.210
O andamento da relação do Brasil com os países fronteiriços, na parte em que estes
delimitam com a província de Mato Grosso, interferiu nos direcionamentos e nas necessidades
militares dessa província. Por ser área de fronteira, os praças do Exército estavam, em sua
maioria, empregados em pontos de guarnição. A precariedade dos destacamentos, a distância da
capital, a dificuldade de comunicação, criavam uma situação singular no cotidiano dos militares.
As dificuldades de mobilização para o serviço militar que apresentamos no primeiro
capítulo deste trabalho eram ainda mais fortes nessa província. Embora a necessidade de efetivos
militares para a defesa da província tenha se elevado na segunda metade da década de 1850, a
capacidade de mobilização não sofreu interferência significativa, ficando o número de efetivos
desfalcado para atender as necessidades da província. Diante dessa situação, foi constante a
reclamação dos presidentes e comandantes dos distritos militares quanto à insuficiência da força
armada e deficiência de matérias para o corpo militar e reparos nos fortes e fortificações.
O Exército em Mato Grosso tinha uma regulamentação específica para os oficiais, que
recebiam adicional por prestar serviço em região fronteiriça. Quanto aos praças, continuavam
sendo recrutados entre os livres e os pobres, sujeitos a situação precária de vida, pela má
condição das acomodações nos destacamentos, baixo soldo, castigos, serviço pesado, além de
ficarem longe das famílias, quando próximos da fronteira. Essa proximidade da fronteira
conduzia o direcionamento militar, exigindo mobilização de um ponto para o outro, ou mesmo o
aquartelamento na parte sul. Os militares estavam diretamente envolvidos nessa relação de
fronteira, seja para defendê-la ou mesmo como opção para deserção. Além disso, o
210
Quartel do Comando Geral da Fronteira de Vila Maria no ponto das Onças em 01 de janeiro de 1851. Lata 1851
APMT
98
direcionamento das negociações com os países vizinhos refletia diretamente no Exército, sob sua
organização e mobilização.
99
CAPÍTULO 3
RECRUTAMENTO E RESISTÊNCIA
A necessidade de mobilização militar na província de Mato Grosso estava diretamente
relacionada com a contenda na região do Prata, frente à necessidade de defesa das fronteiras
ainda litigiosas. Assim como, nas demais províncias do Império brasileiro, a mobilização para o
Exército em Mato Grosso era feito principalmente por meio do recrutamento forçado. Estar em
uma província fronteiriça fazia com que muitos praças fossem destacados para guarnecimento em
algum ponto da fronteira, sendo deslocados do local de origem. A fronteira também se
apresentava como uma possibilidade de fuga para aqueles que desejavam se livrar da fileira do
Exército, tendo sido utilizada com frequência, assim como, houve numerosas estratégias para se
evadir do serviço militar ou mesmo para torná-lo mais suportável.
3.1 Entre malfeitores e desordeiros: o recrutamento para o serviço militar
As reclamações quanto à insuficiência de contingente militar para atender as necessidades
da província e as ameaças de invasão por parte dos países vizinhos foram frequêntes por parte
dos presidentes da província de Mato Grosso. Essas reclamações alertavam quanto a
vulnerabilidade da defesa militar da província e a insuficiência da força de 1ª Linha para defendê-
la. Mas, apesar dessas reclamações, no decorrer do período analisado não aconteceram mudanças
significativas nessa direção.
A guarnição da província de Mato Grosso contava com instalações precárias para
acomodações dos soldados e para os armazenamentos dos materiais bélicos. E essa debilidade
não era apenas material, mas também humana, com insuficiência de praças e despreparo militar.
100
As dificuldades de formar uma força militar capaz de atender as necessidades da província
estavam relacionadas à maneira como era realizado o recrutamento militar. Durante o século
XIX, o recrutamento foi dificultado pelas redes de proteção em torno dos potentados locais e por
numerosas isenções legais, fazendo com que o recrutamento não fosse estendido a todas as
camadas da sociedade, ficando restrito a grupos específicos, ou seja, aos livres e aos pobres
indesejáveis que não contavam com algum tipo de proteção.
Os embaraços em realizar o recrutamento não se restringiam à província de Mato Grosso,
sendo sentida em todas as demais províncias do Império, representando a dificuldade das
autoridades encarregadas na tarefa de estabelecer o controle sobre os meios de violência
legítima.211
O Estado procurou promover o recrutamento de forma a não interferir na estrutura da
sociedade, preservando os privilégios dos proprietários rurais pautados na preservação da mão de
obra escrava. Assim, o regime escravista apresentava embaraços para a realização do
recrutamento, reduzindo o contingente daqueles que poderiam assentar praça na fileira da força
de 1ª Linha.
As principais reclamações dos encarregados eram relacionadas aos embaraços que as
isenções ofereciam para o procedimento do recrutamento, fazendo com que não fosse completado
o contingente militar atribuído a cada freguesia para atender as necessidades militares da
província. Nesse sentindo, João Isidoro Chaves esclarece ao presidente da província o motivo
pelo qual não conseguiu completar a cota que lhe foi atribuída: “deixando de ir o nº completo em
razão da impossibilidade que se encontra; pois quase todos os que estão no caso de serem
recrutados, prevalecem-se com o nome de guarda Nª. e camaradas contractados [...]”.212
As
isenções acabavam por restringir o recrutamento, reduzindo as opções daqueles que poderiam ser
recrutados.
Em maio de 1864, João Isidoro relatou ao presidente da província, que diante da
dificuldade de preencher o número que ainda faltava do contingente militar, procedeu ao
recrutamento de Fausto Anastácio de Oliveira e Benedito Antonio Leite da Rocha, camaradas, no
211
WEBER, Max. Op. cit., p.525 212
2º Tenente encarregado do recrutamento João Isidoro Chaves ao presidente da província Alexandre Manoel
Albino de Carvalho em 13 de março de 1864. Lata 1864 A2. APMT
101
período da noite, para que pudesse “prender e remetter de noite sem ninguém saber, em razão do
muito que há quando aqui se prende qualquer individuo [...]” 213
O recrutamento desses dois
camaradas foi realizado de modo que ninguém pudesse intervir a favor dos recrutados, e para não
alarmar à população. Ambos os camaradas foram considerados aptos para o serviço militar pela
inspeção de saúde, tendo assentado praça no Corpo de Cavalaria.214
Os camaradas realizavam nas fazendas trabalhos que não eram encarregados a um escravo
e firmavam uma relação de dependência com o fazendeiro em troca de proteção.215
Não eram
legalmente isentos, contando apenas com a proteção dos potentados locais. No caso do
procedimento adotado pelo encarregado João Isidoro, se ninguém visse os dois camaradas sendo
recrutados, possivelmente o patrão não iria recorrer ao seu recrutamento por não saber dessa
procedência, podendo pensar que os mesmos tivessem abandonado o trabalho, o que era comum
acontecer. Conforme apresentou João Isidoro Chaves ao presidente da província, além dos
camaradas contratados, aqueles que poderiam estar sendo recrutados encontravam-se alistados na
Guarda Nacional.
Por serem legalmente isentos, os encarregados pelo recrutamento buscavam não estar
recrutando praças da Guarda Nacional:
Remetto Senr. Doutor Chefe de Policia o recruta de nome Francisco de
Paula que será apresentado a V. Exª. o qual é natural d‟esta cidade; tem vinte
dois annos pouco mais ou menos de idade, e não é guarda Nacional, pois que
documento nenhum de isenção apresentou. 216
Uma das principais reclamações dos encarregados pelo recrutamento era quanto às
isenções concedidas aos guardas por reduzir a possibilidade de recrutamento, retirando da fileira
213
2º Tenente encarregado do recrutamento João Isidoro Chaves ao presidente da província Alexandre Manoel
Albino de Carvalho em 20 de maio de 1864. Lata 1864 A2. APMT 214
Lata 1864 F1. APMT 215
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 4 ed. São Paulo: Fundação Editora
da UNESP, 1997. p. 35 216
2º Tenente encarregado do recrutamento João Isidoro Chaves ao presidente da província Alexandre Manoel
Albino de Carvalho em 7 de junho de 1864. Lata 1864 A2. APMT
102
do Exército indivíduos aptos para o serviço militar. A Guarda Nacional era uma opção de isenção
para aqueles que, sendo detentores da renda financeira exigida, não desejavam servir na força de
1ª Linha.
Segundo Jonh Erick Augusto Silva, a qualificação de Guardas Nacionais na província de
Mato Grosso, era um empecilho para o recrutamento do Exército, sendo uma maneira utilizada
por muitos homens para fugir do recrutamento para as forças de linha, onde “após a formação dos
corpos, os soldados ficavam a mercê de um determinado chefe local, devendo a ele obediência
política em troca de proteção contra o recrutamento para o Exército ou Armada.”217
Enviar praças da Guarda Nacional para as fileiras do Exército apresentou-se como uma
opção para livrar-se de presença indesejada aos comandantes da Guarda Nacional. O
recrutamento do guarda José Benedito de Oliveira, é exemplar. Em outubro de 1864, José
Benedito foi recrutado, e ao recorrer à isenção, afirmando pertencer a Guarda Nacional, esta lhe
foi negada, pois o comandante da Guarda Nacional não procedeu a seu favor. Desse modo, não
havia motivos legais a favor desse guarda, conforme se apresenta:
[...] entendo que as faltas e insubordinação por esse Guarda commetidos
no serviço ficarão melhor punidas sendo o mesmo Guarda entregue ao
recrutamento, como meio mais poderoso para se conservar a subordinação e
moralidade no referido destacamento.218
Conforme pontuamos no capítulo anterior, praças da Guarda Nacional eram destacados
com frequência para completar o serviço de guarnição militar, embora se tratasse de um
deslocamento eventual e temporário, estando sob o regulamento da própria Guarda Nacional.
O efetivo militar da província de Mato Grosso foi sendo preenchido durante todo o
período analisado por meio da contratação de voluntários e do engajamento de ex-praças, mas
principalmente pelo recrutamento forçado, pois assim como nas demais províncias do Império, o
217
SILVA, Jonh E. A. Op. cit., p.89 218
Guarnição da Guarda Nacional em Cuiabá em 31 de outubro de 1864. Lata 1864 A2. APMT
103
serviço militar não era um atrativo entre a população, e o voluntariado, por mais significativo que
fosse não foi suficiente para atender as necessidades da província.
Eram noticiadas na província as estratégias elaboradas para atrair efetivos para o serviço
militar, oferecendo as vantagens aprovadas pelo Ministério da Guerra para os que se
apresentassem como voluntários ou para engajar-se.
Um soldado recrutado tem o soldo simples. Se, acabado o tempo a que
está obrigado, se engajar para continuar a servir, deve perceber as vantagens
garantidas pela legislação para os engajados: se, porem, não quer engajar-se e
continuar a servir, porque as circunstancias não permittem que seja escuzo,
recebe somente o soldo simples, que lhe compete, e não outras vantagens, com
se engajado se houvera. O soldado voluntario tem o soldo a mais metade deste.
Acabado o seo tempo, se engaja, abonão-se lhe as vantagens de engajado, isto
he, o soldo dobrado [...], se porem, não quer engajar-se, e continua a servir por
qualquer motivo, percebe somente o soldo e meio de que primitivamente esta de
posse, e nunca os dous soldos, como engajado. O soldado engajado tem soldo
dobrado, e o conserva mesmo depois de completo o tempo do engajamento,
porque já estava na posse d‟essa vantagem.219
Nesse sentido, podemos perceber que o ministro da Guerra, Pedro de Alcântara
Bellegarde, não descarta a prática de retenção de baixa ao expor as vantagens atribuídas àqueles
que se engajam para continuar no serviço militar. Esses soldados que desejavam dispensa depois
de findado o tempo de serviço, continuavam como efetivos até que a dispensa fosse aprovada, o
que não era rápido, além de não receber adicional.
Aqueles que se apresentavam voluntariamente tinham como privilégio o tempo de serviço
reduzido. Um recrutado assentava praça para servir por oito anos, o voluntário por seis anos e o
engajado por quatro anos. Uma das recomendações do Ministério da Guerra era que o tempo de
serviço de um engajado não fosse inferior a quatro anos.
219
Pedro de Alcântara Bellegarde ao presidente da província de Mato Grosso. Registro de avisos do Ministério da
Guerra. Livro 137. APMT. Grifo nosso.
104
Em Mato Grosso essa exigência não se aplicava a todas as guarnições da província, sendo
que aqueles que se engajavam para servir nas colônias militares tinham o tempo de serviço
reduzido pela metade. Esse foi o caso do Sargento João Manoel Henrique, contratado em janeiro
de 1864 para servir por dois anos na Colônia Militar de Miranda. Também, o paisano Manoel
Silvestre de Arruda engajou-se no mesmo período para servir por dois anos na Colônia Militar de
Dourados.220
As colônias militares de Dourados e Miranda foram criadas com o objetivo de proteger e
povoar localidades de fronteira com o Paraguai, além de servir de ponto de apoio para a
navegação. Os militares que serviam nessas localidades contribuíam com a defesa e com a
ocupação dessas áreas fronteiriças, sendo que, a redução do tempo de serviço para os engajados
era uma estratégia do governo para manter nessas localidades os militares que nelas viviam,
perante a necessidade de manter a guarnição das colônias com um número de efetivos militares
suficiente para sua defesa: “Artº. 6 Na falta de praças de 1ª Linha apropriadas para a fundação da
Colonia, a Presidencia engajará os colonos militares, que forem necessários até o necessario n. do
Artº. 5 pelo prazo de 2 annos.”221
No ano de 1864, nove dos militares que estavam em Miranda foram engajados, entre eles
quatro eram casados e residiam na localidade com seus familiares, conforme podemos perceber
no quadro VI. Os militares que eram casados significavam a presença de mais pessoas na colônia
militar e a possibilidade de continuar a residir nessa localidade depois de findado o tempo de
serviço. Como foi o caso do Major Francisco Bueno da Silva, que já havia sido dispensado por
ter completado o tempo de serviço, mas continuava a residir na colônia juntamente com sua
família. Junto com seus familiares, o Major Francisco Bueno também tinha três escravos
domésticos, o que era comum nesse período aos oficiais militares de alta patente.
Quadro VI - Mapa Estatístico da Colônia Militar de Miranda – Março de 1864
220
Lata 1864 A1. APMT 221
Antonio Pedro de Alencastro em 11 de novembro de 1859. Registro de correspondências entre a presidência e os
comandantes de corpos de distritos, de destacamentos militares e os cirurgiões do corpo de saúde 1857-1860. Livro
164, R 33, F 07
105
GRADUA
ÇÃO
ESTA
DO
NOMES FAMI
LIAR
ES
ESC
RA
VOS
SO
M
A
OBSERVAÇÃO
Major
Com.
Casad
o
Francisco Bueno da Silva 6 3 10 Reformado
1º
Sargento
João Manoel Henrique 1 2 Ex-praça do Exército
2º
Sargento
Solteir
o
Francisco Raiz de
Miranda
1 Batalhão de Caçadores
Joaquim Thomas Varella 1 Ex-praça do Exército
Furriel Casad
o
José da Silva Curvo 1 2
Cabo Francisco Ferreira da
Silva
6 7 Paisano contratado
Manoel Francisco das
Neves
1 2 Ex-praça do Exército
Manoel Raiz do
Nascimento
Compl. tempo de
serviço
José Victor de Souza 4 5 Ex-praça do Exército
Solteir
o
Bento de Arruda Botelho 1 1
Adriano Pereira Mendes 1 1
Anspeçada Casad
o
Manoel Lucas Tolentino Compl. tempo de
serviço
Faustino Bispo 1 2 Paisano contratado
João Francisco da Silva 3 4
Solteir
o
José Paulo Raiz 1
Pedro Antonio da Silva 1 Ex-praça do Exército
Colono Adão José Gonçalves 1
106
Soldado Casad
o
Manoel Paes Falcão 1 2 Corpo de Artilharia
José Severino Alves 3 4 2º B. de Artilharia a pé
José Antonio da Rocha 2 3
Antonio Felippe Garcia 2 3 Batalhão de Caçadores
Solteir
o
João da Costa Lopes 1 Corpo de Cavalaria
Euzébio Ferreira Velho 1 Compª. de Artífices
Felicíssimo do Carmo 1 Corpo de Cavalaria
Soma 33 3 56
Fonte: Major Francisco Bueno da Silva, Lata 1864 F1. Existem como agregados quatro paisanos. Um deles é casado
e tem quatro filhos de menor, dois camaradas e quatro agregados.
Além dos militares, havia a presença de agregados na Colônia Militar, sendo que um deles
tinha quatro crianças. Segundo Ednilson Carvalho, a presença de escravos nos estabelecimentos
militares, assim como, a de homens livres e indígenas em seus arredores, possibilitavam a
formação de famílias e mesmo o aumento do número de habitantes nessas localidades.222
As estratégias adotadas pelo governo imperial para aumentar o número de homens para as
fileiras do Exército eram adotadas em Mato Grosso, mas nem todas essas medidas eram
consideradas viáveis para serem realizadas na província.
Em 4 de setembro de 1850, o ministro da Guerra Manoel Felizardo de Sousa e Mello,
emitiu um Aviso Circular aos presidentes de províncias pedindo prestação de informação quanto
ao engajamento de nacionais e estrangeiros. A estratégia do governo imperial era fazer com que
fosse aumentado o efetivo do Exército, buscando conseguir o maior número possível de
engajados, com vantagens adicionais oferecidas tanto aos brasileiros quanto aos estrangeiros que
desejassem se engajar, buscando manter no Exército homens que já possuíam experiência militar.
222
CARVALHO, Ednilson Albino de. A fábrica de pólvora do Coxipó em Mato Grosso (1864-1906). 2005. 180 fl.
Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Mato
Grosso, 2005.
107
Quanto às informações que o Ministério da Guerra pediu através da circular de setembro
de 1850, foi respondida em fevereiro do ano seguinte, por Augusto Leverger:
[...] julgo que nesta Província pouca ou nenhuma applicaçao se poderá
fazer da mencionada medida por causa da sua diminuta população, da sua
situação, e da circunstancia de existirem nella muito poucos estrangeiros; e que
por estes mesmos motivos não tendo elementos que me habilitem a ministrar as
exigidas informações.223
Encontramos situações em que o número de voluntariados era mais elevado do que os
recrutados, mas não o suficiente para completar a necessidade de contingente militar. Em 1853,
os corpos de guarnição da província contaram com 94 voluntários, 43 engajados e 32 recrutados,
para a cota marcada de 240 praças. Mas, essa quantidade foi reduzida, após assentarem praças
ainda faltaram 115 homens para completar a cota anual estabelecida para a guarnição da
província.224
Contar com uma maioria de voluntários não era uma constante, sendo que o
preenchimento do contingente militar era realizado por meio do recrutamento forçado. Podemos
verificar no Mapa Mensal do mês de fevereiro de 1864, que traz informação sobre a necessidade
frequente de praças para completar o contingente militar, mas entre aqueles que assentaram praça
nenhum era voluntário. Esse mapa de recrutamento refere-se apenas às necessidades de praças
para o serviço de guarnição espalhado pela fronteira da província. A concentração maior de
efetivos militares estava no corpo móvel, que ficava estacionado na capital, Cuiabá, com a função
de defender e socorrer toda a província.
223
Augusto Leverger ao ministro da Guerra Manoel Felizardo de Sousa e Mello em 26 de fevereiro de 1851.
Correspondência oficial da presidência com o Ministério da Guerra 1850-1852. Livro 113, Estante 06, R.27, F.07.
APMT 224
Augusto Leverger ao ministro da Guerra Pedro de Alcântara Bellegarde em 31 de dezembro de 1853. Registro de
correspondência oficial da presidência com o Ministério da Guerra. 1853-1855. Livro 135. APMT
108
Quadro VII – Mapa Mensal de Recrutamento - 1864
MÊS DE FEVEREIRO A B C D E F
Freguesias Sé 5 5
Pedro Segundo 3 3
Brotas 2 2
Guia 3 3
Chapada 1 1 1
Livramento 3 1 1 1 1
Santo Antonio do Rio Abaixo 4 2 2 1 1
Diamantino 3 3
Rosário 3 3
Mato Grosso 3 3
Vila Maria 3 1 2
Poconé 4 4
Santa Ana do Paranaíba 2 2
Miranda 2 2
Albuquerque 2 2
Soma 43 4 4 16 23
Fonte: Secretaria de Polícia, Cuiabá em 10 de março de 1864. Caixa 1864. APMT. Grifo nosso. A – número de
recrutas que devem dar; B – recrutas; C – voluntários; D – assentaram praça no mês corrente; E – assentaram praça
no mês anterior; F – falta para completar.
109
A quantidade de homens que assentaram praça no mês de fevereiro foi bem inferior à cota
estabelecida, conseguindo apenas a metade do número considerado necessário. Conseguir
completar a cota estabelecida era um desafio que os encarregados pelo recrutamento, na maioria
das vezes, não conseguiam realizar. Esses desfalques mensais resultavam em um contingente
anual incompleto e insuficiente, inferior ao desejado. Como podemos perceber nos dados de três
anos consecutivos apresentados no quadro VIII.
Quadro VIII – Cota estabelecida para o serviço de guarnição 1852-1854
ANO A B C
1852 240 188 52 A quantidade inicial alcançada era de 224
1853 240 125 115
1854 240 146 94
Fonte: Registro de correspondência entre a presidência e o Ministério da Guerra Livro 135; Lata 1852 E. A – cota
estabelecida; B – quantidade alcançada; C – faltou para completar.
O presidente da província estabelecia a quantidade de recrutas que cada freguesia deveria
fornecer anualmente, cabendo aos comandantes militares de cada localidade fazer cumpri-las.
Essa cota variava de acordo com a quantidade de habitantes de cada freguesia e, como não
existiam dados demográficos precisos, essas estratégias variavam.
Em 1854, Augusto Leverger estabeleceu a cota para as freguesias da província partindo de
dados referentes à quantidade de votantes, buscando ter uma base do número de habitantes de
cada localidade: “guiei-me, na falta de dados estatísticos mais exactos, pelo número de votantes
qualificados nas mesmas Freguesias [...]”. 225
A parte da província mais povoada em 1850 era Cuiabá, em torno de onze mil habitantes,
sendo formada por duas freguesias urbanas: a Sé (compreendendo o núcleo central da cidade) e
225
Augusto Leverger ao ministro da Guerra Pedro de Alcântara Bellegarde em 21 de abril de 1854. Registro de
correspondência oficial da presidência com o Ministério da Guerra 1853-1855. Livro 135. APMT
110
São Gonçalo de Pedro II – o Porto. E, tinha ainda as freguesias rurais: Nossa Senhora das Brotas,
Santo Antonio do Rio Abaixo, Nossa Senhora da Guia, Nossa Senhora do Livramento, Chapada
dos Guimarães. Dentre essas freguesias, a de Nossa Senhora da Guia e Nossa Senhora do
Livramento eram as mais importantes por volta de 1850, servindo de ponto de abastecimento para
as tropas.226
Assim, o maior número de recrutas deveria ser de Cuiabá, estes eram distribuídos
pelas várias guarnições para assentarem praça.
O recrutamento, geralmente, era iniciado nas freguesias no começo do mês de julho, após
o prazo estabelecido para apresentação de voluntários, sendo suspenso nos períodos eleitorais
para que não fosse utilizado nas manobras dos grupos políticos. Essa suspensão não evitava que o
recrutamento fosse utilizado para fins eleitorais, como ocorreu na freguesia de Albuquerque em
novembro de 1852, quando os praças deslocaram-se de Coimbra para essa freguesia, a fim de
ameaçar pessoas da facção contrária quanto ao recrutamento.
Causou-me a mais desagradável sorpresa a noticia que me foi dada de que
V. m com os Alferes Mathias e Coelho, e trinta ou mais praças de prets, estivera
na freguesia de Albuquerque na occasião da eleição primaria de 7 do corrente
mez; e que procurara intimidar as pessoas que não são da sua parcialidade com
ameaças de recrutamento e de embaraçar as expedições que taes pessoas fizerem
para as Salinas desse Districto.227
O recrutamento recaiu sobre aqueles que não estavam diretamente relacionados com as
isenções estabelecidas pelas Instruções de 1822. Em março de 1864, foi preso e enviado a prisão,
Feliciano Gomes Moreira, onde deveria permanecer até que fosse encaminhado para assentar
praça. A intenção do chefe de polícia, Firmo José de Mattos, era encaminhar Feliciano para
assentar praça no Corpo de Cavalaria estacionado em Nioaque, pois “o mesmo, não só presume
ser bom cavalleiro, como mostra desejo de voltar á Goyas, sua província natal.”228
Diante do
226
VOLPATO, Luiza R. Ricci. Cativos do sertão. Op. cit., pp.25-30 227
Augusto Leverger ao Comandante do Distrito militar do Baixo Paraguai em 26 de novembro de 1852. Registro de
correspondência entre a presidência e os comandantes militares. 1852-1855. Livro 128, R 29, F 05. APMT
228 Chefe de polícia Firmo José de Mattos ao presidente da província, em 01 de abril de 1864. Caixa 1864. APMT
111
diminuto contingente populacional da província e a necessidade de efetivos para o corpo militar,
manter Feliciano na província era visto como uma boa alternativa.
Os livres e os pobres eram os principais alvos do recrutamento, além de estarem sujeitos
as ações dos agentes recrutadores. Caso cometessem qualquer deslize, por menor que fosse, era
utilizado como justificativa para enviá-los à prisão, ficando sujeitos a assentarem praça caso
fossem considerados aptos para o serviço militar.
Seu contingente era composto, em grande parte, por homens pobres
[carpinteiros, pedreiros, alfaiates, marceneiros, calafetes], cuja disciplinarização
era necessária para a preservação da ordem; era vistos com receio pela classe
dominante, uma vez que poderiam a qualquer momento se tornar aliado dos
cativos durante uma sublevação. À medida que a ação do livre pobre estava fora
do espaço de atuação do senhor, como era o caso do escravo, cabia ao Estado –
através do Exército e da policia – assegurar sua contenção e disciplinarização. O
recrutamento foi uma das formas preferencialmente utilizadas nesse processo.229
O quartel era visto como um lugar disciplinador dentro das propostas de princípios de
ordem e civilização, por meio de uma ação de vigilância da população livre ou pobre. Um lugar
para aqueles perturbadores da ordem, espaço onde a disciplina poderia ser aplicada através de
normas, instruções, vigilância.230
Com isso, eram enviados para as fileiras do exército os
indivíduos que de alguma forma eram vistos como perigosos ou que ameaçavam a ordem
estabelecida, por envolverem-se em crimes de homicídios, brigas, roubos, embriaguez, porte de
arma, praticar ofensas físicas, ou mesmo por estarem desempregados. Essas infrações comuns no
cotidiano dos moradores da província de Mato Grosso eram utilizadas como justificativa para o
recrutamento.
Cabia aos chefes de polícia prender os indivíduos que se envolviam nessas situações e
encaminhá-los ao recrutamento. Assim, os chefes de polícia aproveitaram do recrutamento para
poder restringir a circulação de indivíduos indesejáveis, considerados como malfeitores e
229
VOLPATO, Luiza R. Ricci. Cativos do sertão. Op. cit., p.205. Grifo nosso 230
WOJCIECHOWSKI, Eula. Op. cit., p.21
112
desordeiros, sendo presos e encaminhados aos quartéis como forma de aumentar o contingente
militar e ao mesmo tempo livrar-se de indivíduos indesejáveis.
A maneira de proceder ao recrutamento, retirando indivíduos do convívio social para
enviá-los aos quartéis, era uma medida disciplinar dos quartéis para reeducá-los, desta maneira
“acabavam fazendo com que as corporações militares ficassem apinhadas de ladrões e maus
elementos” 231
e, em suas mãos, era depositada a defesa da província.
Entregar para o recrutamento os indivíduos considerados turbulentos e perigosos, e,
principalmente, enviá-los para alguma guarnição na fronteira bem distante da capital, era visto
como a forma mais segura e eficaz de disciplina, diante da insegurança representada pelas
prisões. Nesse sentido, o chefe de polícia Silvério Fernandes de Araujo Jorge, encaminhou um
pedido a Augusto Leverger para que o preso, Rafael, fosse enviado para algum ponto na
fronteira, pois “[...] Rafael Pinto Bandeira, tem reputação de muito rixoso, e ameaça a mais de
uma pessoa no Districto da Guia: seria bom que assentando praça fosse mandado seguir, em
segurança, para algum dos pontos da fronteira.” 232
Opinião compartilhada pelo presidente da
província que, em 6 de dezembro de 1851, recomendou ao encarregado do comando da
guarnição, que Rafael fosse mandado assentar praça no corpo militar em algum ponto da
fronteira, partindo dos motivos apresentados pelo chefe de polícia, sendo Rafael considerado
perigoso e uma ameaça aos moradores do Distrito da Guia.233
Os encarregados do recrutamento aproveitavam do movimento das ruas para poder
prender indivíduos que praticavam pequenos delitos, ou mesmo pela intenção de buscar
completar a cota de efetivo. Esse espaço das ruas era usado com mais frequência por escravos de
ganho que saiam para vender produtos nas ruas ou buscar água nas fontes (devido à inexistência
de sistema de água encanada, sendo o fornecimento realizado através de cisternas particulares e
fontes).
O movimento das ruas também era feito por homens livres ou pobres, que vendiam frutas,
peixes, rapadura etc. Nos domingos era comum encontrarem-se para tomar banho no rio ou na
231
MACHADO FILHO, Oswaldo. Op. cit., p.294 232
Chefe de polícia Silvério Fernandes de Araujo Jorge ao presidente da província Augusto Leverger em 6 de
dezembro de 1851. Lata 1851 E1. APMT 233
Augusto Leverger ao encarregado do comando da guarnição em 6 de dezembro de 1851. Correspondência entre a
presidência e o comando das armas da província 1851-1858. Livro 122, R 28, F 05. APMT
113
fonte, prática que o Código de Postura de 1857 tentou eliminar, autorizando banhos em espaços
públicos apenas aos menores de 10 anos.
Apesar de todo o esforço feito pelas autoridades no sentido de conter as
perambulações de escravos e livres pobres, eles continuavam circulando pela
cidade, pelas tabernas, durante o dia e à noite, indo e vindo com seus tabuleiros,
vendendo quitandas ou frutas cumprindo ordens de seus senhores ou patrões,
buscando água, dando recados, trabalhando, divertindo-se, promovendo a
agitação das ruas estreitas calçadas de quartzo, sob o sol inclemente ou durante
as quentes noites cuiabanas.234
Os indivíduos que se envolviam em brigas ou que feriam outras pessoas eram presos e
encaminhados para assentarem praças. Em abril de 1850, José Victoriano da Silva feriu o
cirurgião João Baptista Teixeira com uma bordoada na parte superior da face direita.
Conseguindo evadir-se da força policial, foi preso seu irmão Benedito da Silva Pinto, considerado
como cúmplice. Enviar Benedito para assentar praça era visto pelo chefe de polícia como a
melhor medida a ser tomada, alegando ser: “a penna correspondente [...] insignificante, para
corrigir a estes dous indivíduos, que segundo conta, são turbulentos, pelo que julgo mais
conveniente, que V.EXª mandasse assentar praça [...]”235
Medida que o presidente da província
autorizou, caso fosse considerado apto para o serviço militar. Mas, Benedito não chegou a
assentar praça, pois o chefe de polícia informou ao presidente que:
[...] reconheci que o dito Pinto não só não teve parte no acontecimento da
noute de 7 do corrente, mais ainda tem a seu favor a circunstancia de ser guarda
Nacional Qualificado, fardado [...] pelo que não o julgando em circunstancias de
assentar praça, o mandei por em liberdade.”236
234
VOLPATO, Luiza R. Ricci. Cativos do Sertão. Op. cit., p.34 235
Chefe de polícia Ayres Augusto de Araujo ao presidente da província João José da Costa Pimentel em 8 de abril
de 1850. Lata 1850 A. APMT
236 Chefe de policia Ayres Augusto de Araujo ao presidente da província João José da C. Pimentel. Lata 1850 D.
APMT
114
Para aqueles que já haviam assentado praça e cometeram algum desses delitos, os castigos
físicos eram usados como forma de punição a esses reincidentes. Os castigos eram adotados pelos
oficiais como forma de implantar e manter a disciplina, sendo aplicado de modo a não afetar a
saúde física ou não comprometer o retorno do praça ao serviço militar:
[...] tenho a dizer que os cabeças do motim que se achão presos em ferros
em razão da gravidade do crime que commetterão, e da pouca segurança das
prisões, devem com tudo ser aliviados dos mesmos ferros quando o exigir o máo
estado de sua saúde, como já o declarei a V. S. em anterior officio.237
As reformas na organização militar, que marcaram o início da década de 1850, não
trouxeram mudanças significativas nessa direção.
Até então, surras com espadas de prancha, estanqueamento (pela
sobrecarga de serviços), imobilização em troncos, chibata, algemas, mochila nas
costas, prisões temporárias, jejuns forçados, surras até a pena de morte ou prisão
perpétua com correntes de ferro nos tornozelos (chamadas de carrinhos), pelos
crimes cometidos, entre outras práticas de repressão física, representavam uma
fórmula através da qual se esperava adestrar os soldados, tornando-os
disciplinados, e, conseqüentemente, úteis.238
Os procedimentos eram autorizados pelo presidente da província, como o referente ao
preso Quintino José Parada, soldado da Companhia de Pedestre, preso pelo crime de ferimento ao
1º Sargento José Luiz Beltrão. Quintino foi transferido da prisão do quartel da Companhia de
Pedestre para a prisão do Arsenal de Guerra, por esta ser considerada mais segura e, comentando
237
Augusto Leverger ao comandante das armas da província em 23 de fevereiro de 1852. Correspondência entre a
presidência e o comando das armas da província 1851-1858. Livro 122, R. 28, F 05. APMT 238
WOJCIECHOWSKI, Eula. Op. cit., p.37
115
o caso, Augusto Leverger avisa ao Diretor do Arsenal de Guerra que esse preso “Tem elle estado
em ferros por tornar-se algumas vezes furioso” recomendando que “assim o poderá V. m.
conservar se o julgar necessário, recomendando muito a sua segurança”.239
Manter preso a
corrente era uma maneira de evitar as fugas, devido à falta de segurança das prisões.
Para muitos, ser dispensado do serviço militar representava retornar a uma vida de
misérias ou mesmo ao domínio de um patrão. Entre os que se apresentavam voluntariamente para
o serviço militar, estavam os que buscavam uma alternativa frente às precariedades em que
viviam ou os que buscavam fugir de um contrato de trabalho e livrar-se do poderio do patrão ou
mesmo de dívidas adquiridas.
A baixa do serviço militar de Francisco José da Silva, que havia se apresentado
voluntariamente no ano de 1853, é um exemplo. Francisco apresentou-se voluntariamente após
ter cometido um roubo, buscando nas fileiras do Exército a proteção para não ser preso e, ainda,
para aproveitar-se das vantagens adicionais oferecidas aos voluntários. Conseguiu assentar praça,
mas não demorou muito tempo para que as autoridades militares mandassem dar baixa: “Mande
V. m. annullar a praça dada há poucos dias ao voluntario Francisco José da Silva que, achando-se
indiciado em crime de roubo, deve ser posto á disposição do Chefe de Policia.” 240
Esses
indivíduos não poderiam ser aceitos como voluntários, pois não estavam conforme o atestado de
idoneidade.
3.1.1 Isento, mas praça: recrutamento de menores e escravos
Nos momentos de maiores necessidades militares ou diante da obrigatoriedade em
completar o contingente militar, indivíduos legalmente isentos acabavam sendo recrutados, sendo
239
Augusto Leverger ao Diretor do Arsenal de Guerra em 10 de maio de 1851. Registro de correspondência entre a
província e os comandantes militares 1851-1852. Livro 116, R.28, F01. APMT 240
Augusto Leverger ao comandante interino do Batalhão de Caçadores em 30 de junho de 1853. Registro de
correspondência entre a presidência e os comandantes militares 1852-1855. Livro 128, R. 29, F.05. APMT
116
que, nem os escravos escapavam da ação dos recrutadores, os quais negligenciavam a condição
de cativo e recrutavam-no para poder completar a cota de efetivos.
Da mesma maneira, muitos escravos procuravam no Exército uma fuga da condição de
cativo, fornecendo nome falso e omitindo sua condição, para assentar praça voluntariamente.
Para conseguir reaver esses escravos que assentavam praça, os donos deveriam primeiramente
reconhecê-lo. Com isso, os donos procuravam distinguir seus escravos por meio das
características pessoais, como modo de falar e traços particulares.241
Ao ser colocado em dúvida a condição de liberdade do praça, este era recolhido a prisão
para aguardar as averiguações, como procedeu no caso do soldado José Antonio, do Corpo Fixo
de Caçadores, que após levantada a suspeita de ser escravo foi recolhido a prisão por requisição
do chefe de polícia: “o que verificando-se por averiguação que se precedeu, reiterou o mesmo
Chefe de Policia sua requisição por officio de 22 exigindo que fosse o soldado conservado preso
até ulterior decisão de V. Exª.”242
No caso em que fosse procedente a averiguação, era dado baixa ao assentamento do praça.
Ao reconhecer seu escravo Manoel como praça do Exército, João Fernandes entrou com pedido
de anulação de praça do dito Manoel, procurando comprovar de forma documentada que o dito
escravo era sua propriedade. Seu requerimento foi aceito e o presidente da província, João José
da Costa Pimentel, pediu ao comandante do Corpo Fixo de Caçadores, onde Manoel havia
assentado praça, para que:
[...] se annulle o assentamento de praça do dito seu escravo, pelos motivos
q. allega e forão comprovados; ordeno a V. m. que mande declarar sem effeito a
praça do mesmo, que deverá ser entregue a seu Senhor.243
241
VOLPATO, Luiza R. Ricci. Cativos do sertão. Op. cit., p. 147 242
Quartel militar em Cuiabá ao presidente da província João José da Costa Pimentel em 01 de outubro de 1850.
Lata 1850 D. 243
João José da Costa Pimentel ao comandante interino do Corpo Fixo de Caçadores em 13 de dezembro de 1850.
Registro de correspondência entre a presidência da província e os comandantes militares de diferentes pontos 1849-
1851. Livro 104, R 26, F 06. APMT
117
Após reconhecer e provar a propriedade, o senhor tinha de arcar com os gastos assumidos
pelo Estado, sendo que, “quando sejão entregues convirão que exija do Senhor dos mesmos
escravos a importância da despesa que tiveram occasionado.” 244
Os donos dos escravos deveriam
arcar com a despesa assumida pelo Estado, mesmo que se tratasse da apropriação de propriedade
alheia (nesse caso o escravo) por parte dos encarregados por meio do recrutamento forçado ou
que sabendo da condição de cativo tivesse negligenciado essa informação ao aceitar como
voluntários.
Os senhores que entravam com o requerimento para reaver a posse de escravos que se
encontravam como praça, possivelmente eram senhores de poucas posses, sendo o cativo o bem
mais valioso de que dispunham como propriedade.245
Esses senhores elaboravam os
requerimentos partindo da alegação de que se tratava de um indivíduo que não era livre e de que
seria de sua propriedade. Esses foram os argumentos utilizados por Genoveva Domingos Duarte,
que requereu a dispensa do menor Manoel Baptista da Companhia de Aprendizes, alegando estar
junto com sua mãe respondendo uma ação pendente de escravidão. Apenas livres poderiam ser
matriculados na Companhia de Aprendizes Menores do Arsenal de Guerra, embora não fosse
previsto pela lei que regulamentava o acesso a Companhia.246
Em cumprimento do Despacho de V. Exª. de 3 do corrente, exarado na
inclusa petição de Genoveva Domingues Duarte, em que pede a V. Exª. que
mande eliminar do Livro da Companhia dos Aprendizes menores do Arsenal de
Guerra a praça que se abrio ao menor Manoel Baptista, filho de Antonia Maria
Arcângela, por ter sido a ella admitido illegalmente, contra o art. 3º§§ 1º ao 4º
do Regulamento nº 113 de 3 de janeiro de 1842, por isso que a liberdade do dito
menor, bem como a de sua mãe, está litigioza, e dependente de decizão sobre
uma acção de Libello que ella Supp., e suas irmãs proprozerão: tenho a informar
a V. Exª. que a liberdade do referido menor está na verdade posta em litigio
desde 6 de Dezembro de 1844, dia em que a Supp. e suas irmãs, por seu
244
Augusto Leverger ao comandante de Vila Maria em 10 de junho de 1854. Registro de correspondência entre a
presidência e os comandantes militares 1852-1855. Livro 128, R 29, F 05. APMT. 245
Ao analisar os casos de re-escravidão na Corte de Apelação do Rio de Janeiro ao longo do século XIX, Keila
Grinberg percebeu que os senhores que recorriam à Justiça para poder reaver a posse de um escravo eram senhores
de poucas posses, sendo que possivelmente esse escravo era o bem mais valioso que dispunha. GRINBERG, Keila.
Senhores sem escravos: a propósito das ações de escravidão no Brasil Imperial. Almanack brasiliense, nº 6,
novembro de 2007. 246
CRUDO, Matilde A. Op. cit., p.124
118
procurador, offerecerão em audiência o Libello de escravidão a que, fundadas na
sorte do ventre, o querem chamar.247
A requerente havia entrado na justiça com uma ação de escravidão em 5 de fevereiro de
1844, reivindicando como sua propriedade por herança, Antonia Maria Arcângela e seu filho
Manoel Baptista. Possivelmente, se trata de uma liberdade condicionada concedida pelo
proprietário, o falecido Silvério Antunes de Souza, no qual era concedida liberdade ao cativo
após a morte do dono. 248
Medida que não foi aceita por seus herdeiros.
A admissão do menor Manoel na Companhia de Aprendizes foi requerida por sua mãe,
Antonia Maria, tendo sido o pedido elaborado por uma pessoa bem instruída, como podemos
perceber:
Diz Antonia Maria Arcangela, que alem de um filho que tem de nome
Manoel de idade de oito annos como mostra pela certidão junta, tendo mais uma
filha de nome Anna de idade de quatro para cinco annos, e que não podendo dar
por si só a aquelle seo filho uma educação boa por ser a supp. bastantemente
pobre, como tudo prova pelo attestado tão bem junto, e que desejando ter o
socorro da providencia do Regulamento nº113 de 3 de Janeiro de 1842 recorre
por isso a V. Exª. pedindo a Graça de Ordenar a dmissão do dito seo filho na
Companhia dos Aprendizes Menores do Arsenal de Guerra desta Província,
onde conta a supp. com a proteção para a boa educação do seu filho. A supp.
Exmo., certo da bondade de V. Exª. em obter a Graça que implora espera. A
vogo de Antonia Maria Arcângela – Francisco Ferraz de Camargo.249
A certidão a qual fazem referência, que acompanhou o requerimento para comprovar a
idade do menor, era a certidão de batismo, sendo que o menor teve como padrinho o padre José
Jacinto da Costa, que se apresentou como tutor para o pedido de admissão na Companhia de
247
Juiz de Órfãos Suplente em Cuiabá Henrique José Vieira ao presidente da província Augusto Leverger em 6 de
março de 1851. Lata 1851 B. APMT
248 VOLPATO, Luiza R. Ricci. Cativos do sertão. Op. cit., p.121
249 Lata 1851 B. APMT
119
Aprendizes, assim como, testemunha da sua condição de liberto frente à ação de escravidão
movida por Genoveva Domingues Duarte. Segundo Matilde Crudo, aparentemente, parece que
Genoveva conseguiu recuperar a posse de Manoel, pois o nome deste não consta na lista de
aprendizes que podem passar a macebo no ano de 1856, ano em que completou 16 anos, como
também não há registro de fuga.250
Os laços de compadrio, de preferência padrinhos com prestígio social, era uma das
estratégias usadas pelas mães pobres como forma de proteger e buscar garantir amparo para si e
para seus filhos. Assim, o batismo era o sacramento que possibilitava ampliar o círculo de
parentescos entre as pessoas, como também uma aproximação entre livres e escravos, sendo que,
o nome dos padrinhos era elemento tratado com extrema importância pelos párocos,
“identificando-os com respectivo nome e profissão, e evidenciava preocupação em obedecer ao
que dispunham as Constituições Primeiras do Arcebispo da Bahia [...].”251
Os jovens menores de dezoito anos – legalmente isentos – também eram capturados para
o recrutamento. Os jovens livres ou pobres que não eram absorvidos pela Companhia de
Aprendizes252
, ficavam a espreita de outras ações disciplinadoras, inclusive o recrutamento.
Quando recrutados, era necessária uma testemunha bem conceituada na sociedade, que pudesse
garantir sua menoridade, pois nem todos possuíam certidão de batismo para documentar a
requisição.
A certidão de batismo era uma das estratégias utilizadas pelo Estado e pela Igreja na
busca da normatização da população, a partir do discurso de valorização dos laços
matrimoniais.253
Segundo Quelce Yamashita, a sociedade brasileira do século XIX ainda tinha
estreitos laços com a Igreja Católica, estando submetidas as suas regras, sendo que eram os
250
CRUDO, Matilde Araki. Os aprendizes do Arsenal de Guerra de Mato Grosso: trabalho infantil e educação.
1999. 389 fl. Tese (Doutorado em Educação) – Instituto de Educação, Universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá,
1999. p.125 251
PERARO, Maria Adenir. Op. cit., p. 180 252
O Arsenal de Guerra da província de Mato Grosso foi criado em 1832 e extinto em 1916, como o objetivo de
facilitar o abastecimento de vestuário, armamento e demais equipamentos necessários as tropas militares
estacionadas em Mato Grosso. A Companhia de Aprendizes só começou a funcionar no ano de 1842. CRUDO,
Matilde A. Op. cit., p.52-57 253
Ibidem, p.120
120
registros religiosos que comprovavam a existência social de um indivíduo através da certidão de
nascimento, casamento e óbito.254
Assim, por não ter dados que facilitassem o saber a idade precisa ou mesmo no anseio de
completar o contingente militar, encontramos vários casos de menores que, ou ele ou a família,
recorreriam com pedido de isenção. Esse foi o caso de José Pedro da Silva recrutado na freguesia
de Brotas, que requereu sua liberdade junto ao chefe de polícia alegando ser menor de dezoito
anos, e acrescentando outros argumentos para reforçar seu pedido, alegando ser filho único de
viúva e responsável pelo sustento de sua irmã de onze anos e de sua mãe, viúva, doente e
idosa.255
José Pedro não assentou praça, tendo sido posto em liberdade pelo chefe de polícia. Já no
caso do recruta Manoel Paes do distrito de Livramento, quem recorreu para a dispensa do menor
foi sua mãe, Marcelina de Almeida, pedindo a dispensa do filho alegando ter apenas dezesseis
anos de idade e ser responsável pelo sustento da família, apresentando como prova a certidão de
batismo.256
O pedido de dispensa do serviço militar para seus filhos era uma estratégia muito utilizada
por mulheres pobres na província de Mato Grosso, alegando ser o trabalho do filho responsável
pelo sustento da família:
Requerer a dispensa era um dos recursos não somente de mulheres livres e
pobres, mas também de outros segmentos sociais envolvidos, numa
demonstração de que o recrutamento, que implicava o afastamento dos homens
de seu convívio familiar, não era acatado passivamente pela ocupação.257
254
YAMASHITA, Quelce dos Santos. Práticas matrimoniais na província de Mato Grosso: o discurso moderno e os
casamentos consangüíneos. 2010. 197 fl. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas e
Sociais, Universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá, 2010. p.16 255
Chefe de polícia Ayres Augusto de Araujo ao presidente da província João José da Costa Pimentel, em 30 de
dezembro de 1850. Lata 1850 A. APMT 256
Lata 1864 D1. APMT 257
PERARO, Maria Adenir. Op. cit., p.186.
121
As autoridades nem sempre entravam em consenso quanto ao recrutamento de indivíduos
isentos. Victorino dos Santos e Eduardo Gonçalves de Moraes, ambos menores de idade, foram
recrutados e enviados à prisão, foram considerados aptos para o serviço militar. Mas, o
comandante das armas da província de Mato Grosso entrou em dúvida se devia ou não enviá-los
para assentar praça, reconhecendo serem menores de dezoito anos.258
Victorino dos Santos
apresentou a certidão de nascimento e conseguiu comprovar que tinha apenas quinze anos, sendo
posto em liberdade pelo chefe de polícia Firmo José de Mattos no mês seguinte, por ter em seu
favor as isenções expressas nas Instruções de 1822.259
Os menores de idade só poderiam assentar praça de forma voluntária e na Companhia de
Aprendizes, mediante encaminhamento do requerimento de admissão elaborado com autorização
dos pais ou responsável.
Somente eram admitidos na Companhia meninos pobres, órfãos ou
abandonados de 8 a 12 anos, sob a condição de serem brasileiros natos e de
constituição robusta para suportar o trabalho. Os aprendizes eram recrutados
também entre meninos que, a critério das autoridades competentes, vadiavam
[...]260
Para a matrícula era necessário encaminhar um requerimento ao presidente da província,
juntamente com a certidão de batismo e o nome de um tutor, que ficava responsável por pagar as
despesas adquiridas com o menor caso ele fugisse do Arsenal. Ao analisar a admissão dos
matriculados na Companhia, Matilde Crudo ressaltou que os pedidos de admissão eram
encaminhados alegando pobreza, sendo direcionadas em sua maioria por viúvas, mães solteiras
ou mesmo devido ao falecimento precoce da mãe. Para Crudo “O envio dos meninos por suas
próprias mães não deve ser interpretado como indício de indiferença, mas como falta de
258
Quartel do Comando das Armas de Mato Grosso, em Cuiabá, Carlos Augusto de Oliveira ao presidente da
província Alexandre Manoel Albino de Carvalho em 17 de fevereiro de 1864. Lata 1864 F2. APMT 259
Chefe de polícia Firmo José de Mattos ao presidente da província Alexandre Manoel Albino de Carvalho, em 14
de março de 1864. Caixa 1864. APMT 260
CRUDO, Matilde A. Op. cit., p.12
122
condições econômicas para educá-los”261
, sendo que algumas pediam dispensa para o filho logo
que conseguiam melhorar de vida ou quando os meninos já se encontravam em idade que lhe
permitia trabalhar para ajudar no sustento da família.
Assim, a Companhia de Aprendizes ficava responsável pela criação e pela
profissionalização dessas crianças, fazendo parte do mecanismo de controle da população livre
pobre, aceitando meninos pobres, libertos, descendentes de escravos e de indígenas, todos do
sexo masculino.262
Argumentos no qual foi pautado o requerimento de Marcela Maria do Espírito
Santo, moradora da Rua Boa Morte, pedindo admissão dos netos Joaquim, José e Paulino na
Companhia de Aprendizes, alegando ser pobre e não ter condição de arcar com o sustento e
educação dos mesmos.263
A admissão de indígenas na Companhia de Aprendizes também não era prevista na lei.
Em 2 de março de 1850, o presidente da província, João José da Costa Pimentel, mandou admitir
na Companhia o menor Virgílio, indígena da nação Bororo, filho de Augusta da Silva, que havia
requerido a admissão de seu filho no mês anterior.264
Os indígenas participaram da defesa da
província, não apenas ingressando menores na Companhia de Aprendizes, mas como soldados,
intérpretes, informantes e no povoamento. Essa participação correspondia ao estabelecimento de
uma relação amigável e também aos interesses desses grupos indígenas, que buscavam proteger a
região em que viviam.265
Para fazer parte das forças armadas como soldado, assim como, ser
aceito na Companhia de Aprendizes, era necessário que o grupo indígena fosse considerado pelo
governo como confiável para o uso de armas em prol da defesa dos interesses do Império, como
os Guaná, que em 1855 atuaram como canoeiros na Companhia criada para auxiliar no transporte
de materiais e de pessoas para o Baixo Paraguai.266
261
CRUDO, Matilde A. Op. Cit., p.116 262
VOLPATO, Luiza R. Ricci. Cativos do sertão. Op. cit., p.53 263
Comandante do Arsenal de Guerra Generoso Antonio ao presidente da província João José da Costa Pimentel em
5 de janeiro de 1850. Lata 1850 C. APMT 264
João José da Costa Pimentel ao Capitão Diretor do Arsenal de Guerra em 2 de março de 1850. Registro de
correspondência entre a presidência da província e os comandantes militares dos diferentes pontos 1849-1851. Livro
104, R. 26, F.06. APMT 265
ALMEIDA, Rosely Batista Miranda de. Op. cit., p.92 266
Ibidem, p.36
123
Nesse mesmo ano (1855), também foram admitidos na Companhia os três filhos da
escrava Januária de Moura, falecida, cujo atestado de veracidade foi fornecido pelo Cônego de
Cuiabá, Manoel Gomes de Faria:
Attesto, e faço certo, que Luiz, Manoel e João são filhos da falecida
Januária, escrava, que foi de Manoel de Moura Meirelles, e que Luiz terá
provavelmente a idade mais, ou, menos de Onze annos; Manoel de dez, e João
de oito; e que são pobres; e carecidos de toda proteção: o referido he verdade em
fé do que, e para a todo o tempo constar mandei passar a presente; em que mi
assigno.267
Embora alistados na Companhia por pedido de familiares, a deserção era presente entre
esses jovens. Em julho de 1850, João Capistrano, Candido Porfírio e Manoel da Paixão
desertaram da Companhia de Aprendizes. Em setembro do mesmo ano, João apresentou-se
voluntariamente, enquanto Manoel da Paixão foi capturado e remetido ao Arsenal de Guerra um
mês depois. 268
A deserção foi uma constante em todos os corpos militares, utilizada por aqueles
que não viam sentido em ficar submetido a maus tratos e as condições precárias que a vida nas
fileiras da força de 1ª Linha oferecia.
O recrutamento foi utilizado no decorrer do século XIX como o principal instrumento
para compor as fileiras do Exército e ao mesmo tempo para servir de instrumento coercitivo e
disciplinador, encaminhando para os quartéis livres ou pobres vistos com marginais e
desordeiros.
3.2. Vida autônoma dentro da ordem estabelecida: as práticas de resistências ao serviço
militar
267
Cônego Cura desta Capital Bom Jesus de Cuiabá Manoel Gomes de Faria, em 10 de janeiro de 1850. Lata 1850
C. APMT
268 Generoso Antonio de Morais ao presidente da província João José da Costa Pimentel, em 18 de setembro de 1850.
Lata 1850 C. APMT
124
Foram inúmeras as estratégias de fuga e de resistência usadas pelos recrutas para escapar
do serviço militar: falta de cooperação, desacato as ordens, insubordinação, pedido de isenção,
substituição, deserção.
Os que buscaram no Exército uma possibilidade de melhores condições de vida utilizaram
de estratégias para manobrar o serviço da melhor maneira possível a seu favor. Ao realizar
funções policiais e de vigilância, vivendo próximo dos centros urbanos, principalmente no caso
de cidades de guarnições, os soldados acabavam por fazer parte do cotidiano da sociedade. Como
ficava muito tempo servindo nas mesmas guarnições, inseriam-se na dinâmica urbana, mantendo
certa autonomia, não ficando restritos ao convívio com os oficiais, criando uma vivência social
fora do alcance da disciplina do quartel. Essa aversão da sociedade ao serviço militar incentivava
o apoio da população aos soldados, ajudando-os e dando-os apoio na realização da fuga do
serviço militar. 269
A resistência era expressa de várias maneiras, como deixar de cumprir funções, ausentar-
se do quartel ou do posto de comando, e mesmo, recair na embriaguez. Atitudes que faziam parte
do cotidiano militar, sendo algumas das formas buscadas para enfrentar as dificuldades aos quais
eram impostos, mesmo que isso pudesse resultar em severos castigos. Assim foi o caso do
soldado do 2º Batalhão de Artilharia a pé, Bento Aleixo que aproveitou para embriagar-se no
serviço estando de guarda, além de recusar obedecer às ordens militares, o que o levou a
responder ao Conselho de Guerra “pelo crime de embriagar-se estando de guarda, a ponto de não
poder fazer o serviço; ao recusar obedecer à ordem que teve de prisão, ferindo com uma dentada
ao Cabo da mesma Guarda.” 270
A insubordinação decorria, entre outros motivos, da falta de motivação dos soldados para
com o serviço militar, deixando com isso de cumprir determinadas exigências esperadas pelos
comandantes. Os soldados ausentavam de seus postos nos quartéis ou durante o serviço de ronda
sem autorização superior, seja por negligência ou mesmo para resolver assuntos particulares,
269
KRAAY, Hendrik. O cotidiano dos soldados na guarnição da Bahia (1850-89). Op. cit., pp.246-261 270
Antonio Pedro de Alencastro ao ministro da Guerra Marques de Caxias, em 9 de janeiro de 1862.
Correspondência oficial da presidência com o Ministério da Guerra 1861-1862. Livro 194, R 37, F 06. APMT.
125
sendo que ambas as medidas resultavam em punição. Como a saída do Tenente do Corpo Fixo de
Caçadores, Francisco Bueno da Silva do seu posto de comandante, do destacamento do Pão de
Açúcar, que resultou em um processo no foro militar por desamparo ao destacamento cujo
comando lhe fora confiado.271
Para os que não desejavam assentar praça, as estratégias iniciavam desde o momento em
que eram recrutados. Alguns recrutas aproveitavam da inspeção de saúde para conseguir se livrar
de um recrutamento indesejado, outros buscavam no apadrinhamento essa garantia ou mesmo no
testemunho de pessoa de credibilidade diante da sociedade para alegar boa conduta.
Após ser recrutado, não apresentando comprovante de isenção, o recruta era encaminhado
para inspeção de saúde, e, se considerado apto para o serviço militar, era enviado para assentar
praça em alguns dos corpos da província. A inspeção de saúde também era vista como uma
estratégia para fugir do serviço militar, livrando vários recrutados de um engajamento indesejado.
Esses recrutas buscavam aproveitar das oportunidades apresentadas, alegando doenças ao passar
pela junta de saúde para serem considerados incapazes, sendo uma prática comum entre os
recrutados.
O recruta Benedito Constantino, ao passar pela inspeção de saúde, foi considerado
incapaz para o serviço militar, mas continuou retido, pois o presidente da província não o liberou
por não acreditar que sofresse realmente dos numerosos ataques de que se queixou, além de
parecer “robusto” e bem de saúde, gerando desconfiança do presidente quanto aos males que
dizia padecer:
Entrando em duvida de que realmente soffra de epilepsia o recruta
Benedicto Constantino, á vista das contrariedades que encontrei nas respostas ás
perguntas q. lhe fiz acerca das enfermidades de que se queixa, alem de que não
poderia elle ser Guarda Nacional se padecesse aquella moléstia; mande V. m.
dar-lhe praça em algum dos Corpos da Provª. He o que tenho a dizer-lhe em
resposta ao seo officio de hoje. ”272
271
Augusto Leverger ao ministro da Guerra Manoel Felizardo de Sousa e Mello em 8 de abril de 1851. Registro de
correspondência oficial da província com o Ministério da Guerra 1850-1852. Livro 113, Est. 06, R 27, F 07. APMT 272
Registro de correspondência entre a província e os comandantes de corpos de distritos, de destacamentos militares
e os cirurgiões do corpo de saúde. 1857-1860. Livro 164, Est. 07, R. 33, F. 07. APMT
126
Junto com Benedito foram recrutados mais oito recrutas, sendo que apenas dois foram
considerados aptos para assentar praça, os demais acabaram dispensados por não serem
considerados aptos ou por serem possuidores de algum tipo de isenção.
Aqueles que eram recrutados e podiam arcar financeiramente com sua dispensa, a
substituição era a opção procurada, devendo apresentar em seu lugar um substituto que fosse
robusto e idôneo, ou que fosse considerado apto pela inspeção de saúde. O Aviso Circular nº 237
de 3 de outubro de 1851, divulgou aos presidentes de províncias que os praças que tivessem
concluído o tempo de serviço podiam ser admitidos como substitutos de qualquer indivíduo que
tivesse a intenção de isentar-se por meio da apresentação de um substituto.
Illm. e Exm. Sr. – Sua Majestade o Imperador Ha por bem mandar
declarar que as praças do Exercito, logo que tiverem concluído o tempo de
serviço, a que forem obrigados, poderão ser admitidas como substitutos de
quaesquer indivíduos, que pretenderem exemptarem-se da praça, huma vez que
sejão de boa conducta, e tenhão a conveniente robustez: o que communico a V.
Ex. para sua intelligencia.
A alternativa adotada por Antonio Cerqueira de Caldas, que requereu baixa do serviço
militar para o seu filho Gregório Pires de Camargo, quando foi recrutado e assentou praça como
soldado do Corpo de Cavalaria, “offerecendo como substituto para servir em lugar do mesmo
recruta, o ex-soldado do dito Corpo Barnabé Barbosa”. Ao comunicar a proposta de substituição
ao presidente da província, o Comandante das Armas Carlos Augusto de Oliveira considerou que
tal proposta deveria ser aprovada, por ser vantajosa para a força armada, sendo que:
[...] ha vantagem para o serviço na substituição solicitada, por isso que
com ella faz-se-ha a acquisição de um soldado veterano e de bom
127
comportamento como me consta que sempre foi o mencionado ex-soldado
Barbosa.273
Outros recrutas recorriam ao pedido de isenção, buscando conseguir baixa do serviço
militar, usando das isenções regulamentadas pela Instrução de 1822. Muitos dos pedidos de
dispensa eram elaborados por familiares. De acordo com Maria Adenir Peraro, o recrutamento
atingia o espaço familiar, fazendo com que a ausência do homem levasse mães e filhos a
assumirem as tarefas do lar e no espaço público, como em tabernas, igrejas e campo.274
Os pedidos de isenção eram elaborados por recrutas que alegavam estar amparados pelas
isenções legais, mas que foram recrutados e enviados para assentar praça. Alguns recrutas
conseguiam ser liberados antes mesmo de ser enviados para assentar praça, aproveitando do
tempo oferecido pelo chefe de polícia para comprovar sua isenção. A dificuldade na dispensa
estava nos embaraços em comprovar documentalmente os argumentos utilizados para requerer a
dispensa. Conforme comentado anteriormente, no caso de menores de idade que eram legalmente
isentos, mas com dificuldade em comprovar que eram menores de dezoito anos, num período em
que o documento que poderia ser utilizado era a certidão de batismo, nem todos a possuíam.
A dificuldade em obter a certidão de batismo está relacionada a alguns entraves impostos
pela igreja, como o valor cobrado sobre variados documentos, como no caso da certidão de
batismo, que segundo Quelce Yamashita, custava 1.260 réis no ano de 1850. A cobrança desse
valor não era problema para a elite, mas era motivo de embaraços para a camada mais pobre da
sociedade.275
Os motivos argumentados para a dispensa militar que encontramos eram diversos, entre
os quais o endereçado por João Fernandes Gonçalves, que recorreu para a baixa do filho, o qual
já havia completado o tempo de serviço e que não tinha recebido dispensa. Mas, como reter baixa
era uma prática costumeira, o pedido partiu da argumentação do pai que se declarou dependente
dos cuidados do filho por já ser idoso e quase cego.
273
Carlos Augusto de Oliveira ao presidente da província, em 10 de fevereiro de 1864. Lata 1864 F2. APMT 274
PERARO, Maria Adenir. Op. cit., p. 54 275
YAMASHITA, Quelce. Op. cit., pp.69-70
128
Illmo. e Exmo. Ser. Levo ás mãos de V. Exª. o presente requerimento, em
que João Fernandes Gonçalves, homem muito pobre, septuagenário e quasi
cego, pede a S. M. o Imperador a Graça de mandar escusar do serviço militar a
seu filho Bernardino da Silva, soldado da Companhia de Pedestres desta
Província. O referido Bernardino tem completado o seu tempo de serviço, como
se vê da inclusa certidão de assentamento de praça; mas à vista dos recrutas
apurados, e seguindo a ordem de antiguidade, não póde esta Presidencia usar da
autorisação que lhe concede o Aviso dessa Secretaria d‟Estado do 1º de Abril de
1848, e he a razão porque o supp. se dirige a S. M. o Imperador.276
Partindo desses argumentos, também foi elaborado o requerimento de Quitéria de Sousa,
requerendo a dispensa do filho, o soldado da Companhia de Pedestre Manoel José de Sousa,
alegando ser viúva, pobre e de idade avançada, além de ter outro filho, José Antonio dos Santos,
como praça no Corpo de Artilharia.277
Dessa forma eram elaborados os requerimentos, partindo
do argumento de alguma das isenções legais estabelecidas pelas Instruções de 1822, ficando ao
cargo do presidente da província se aceitava ou não o pedido.
Em agosto de 1850, o presidente da província João José da Costa Pimentel pediu para
anular o assentamento de praça do soldado do Corpo Fixo de Cavalaria, Manoel de Almeida, cujo
pedido tinha sido endereçado por seu pai, Francisco de Almeida Pereira. De acordo com o
presidente, o pai do recruta provou ser lavrador, casado e com numerosa família, o que lhe dava o
direito de ter um filho a sua escolha para auxiliá-lo.278
Era requerida também pelos familiares a dispensa por poucos dias, para que os praças
pudessem ausentar-se para resolver assuntos familiares ou ajudar a família por um curto período.
276
Augusto Leverger ao ministro da Guerra Manoel Felizardo de Sousa e Mello, em 14 de julho de 1852.
Correspondência oficial da presidência com o Ministério da Guerra. 1850-1852. Livro 113, Est. 06, R. 27, F.07.
APMT.
277 Augusto Leverger ao ministro da Guerra Manoel Felizardo de Sousa e Mello, em 17 de abril de 1852.
Correspondência oficial da presidência com o Ministério da Guerra 1850-1852. Livro 113, Est. 06, R 27, F 07.
APMT 278
João José da Costa Pimentel ao Comandante interino do Corpo Fixo de Cavalaria Ligeira, em 15 de agosto de
1850. Registro de correspondência entre a presidência e os comandantes militares dos diferentes pontos 1849-1851.
Livro 104, R 26, F 06. APMT
129
Nesse sentido, foi encaminhado o requerimento de Beatriz Gonçalves de Jesus, pedindo sessenta
dias de licença para seu irmão, o soldado do Corpo Fixo de Caçadores José Gonçalves de
Oliveira, para ajudá-la a buscar bens no Distrito do Livramento da sua mãe que acabara de
falecer.279
3.2.1 Fronteira: uma opção a deserção
Os soldados, quando não conseguiam isenção, buscaram na deserção uma maneira de dar
continuidade aos seus afazeres cotidianos e, assim, poder retornar ao convívio familiar. Embora
tratados como criminosos e castigados com severidade, os desertores, em sua maioria, eram
homens que tinham uma ocupação e uma família.280
Esses homens eram privados do convívio
familiar, sofriam com a falta de abastecimento de viveres e outros gêneros de primeira
necessidade, precárias acomodações, atraso ou falta do pagamento do soldo, castigos
insuportáveis, abuso de autoridade, trabalho forçado, tempo longo para servir e sem a garantia de
que conseguiriam baixa, devido à dificuldade de recrutamento.
A deserção foi uma das estratégias buscada para evadir do serviço militar, representando
perda de investimento, tempo e dinheiro por parte do Estado, principalmente, no caso de deserção
de voluntários, tendo sido estimulada pela precária condição de vida que os soldados enfrentavam
dentro dos quartéis e dos destacamentos.
A proximidade com a fronteira apresentava-se como uma opção para a deserção, assim
como, uma fonte de preocupação e de dificuldade para os agentes recrutadores. A irrisória
distância dos fortes e das guarnições com a fronteira (quando não era o próprio marco limítrofe)
de outros países, aumentava a possibilidade de fuga e também de não ser capturado, tendo sido
constantemente utilizada, principalmente para a Bolívia.
279
Comando do Corpo Fixo de Caçadores, em 01 de março de 1850. Lata 1850 A. APMT 280
NOGUEIRA, Shirley Maria Silva. “Esses miseráveis delinqüentes”: desertores no Grão-Pará setecentista.
CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik (Org.) Nova história militar brasileira. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2004.
130
Uma vez em território vizinho, o desertor ficava fora do alcance da jurisdição do governo
imperial, sendo que dificilmente seria devolvido ao Império, pois não havia acordo de devolução
de fugitivos entre ambos os países. Aconteceu que muitos soldados brasileiros desrespeitaram a
soberania da Bolívia, adentrando em seu território para recapturar escravos e soldados desertores.
Conforme pontuamos no capítulo anterior, quando da reclamação dirigida ao presidente da
província de Mato Grosso, pelo prefeito de Santa Cruz, com relação à entrada de soldados
brasileiros em território boliviano na busca de capturar uma escrava.
Dentre as causas de medo que assombravam as autoridades imperiais, desde o período
colonial, é que os desertores pudessem passar informações sobre o estado da fronteira e das
guarnições para os países vizinhos. O que era feito pelo governo imperial, que buscava conseguir
com os desertores informações sobre os preparativos de guerra e a ocupação da fronteira.
A deserção para a Bolívia era algo comum, não só entre os soldados, mas entre escravos,
devedores ou outras pessoas que buscavam meios para fugir e para procurar uma nova
oportunidade de encaminhar suas vidas. Essa prática era facilitada pelo relacionamento
estabelecido entre os habitantes em áreas próximas à fronteira, marcada por mútuo contrabando,
espionagem, fuga de escravos em busca de liberdade, de criminosos, contrabandistas que temiam
serem presos, e, o que nos interessa nesse momento, a fuga de soldados para se livrar do serviço
militar. Esses laços eram, em algumas vezes, estabelecidos para que a fuga fosse concretizada.
Illmo. e Exmo. Ser. Tenho a honra de passar ás mãos de V. Exª. a inclusa
copia authentica do officio que sob nº. 58 e data de 2 do mez proximo passado
dirigio-me oTen. Cor. Commandante do Districto militar e Villa-Maria
participando-me terem-se passado para o território de Bolívia, pelo ponto da
Corixa, dous desertores do Batalhão de Caçadores acompanhados de huma Índia
e hum escravo do Capitão reformado Joaquim Antunes da Fonseca.
O procedimento do presidente, diante dessa situação, é esclarecer porque a fuga para os
países vizinhos era visto como uma opção à deserção: “Não fiz reclamação alguma ao Chefe
131
Político do Departamento de Santa Cruz de la Sierra, não só porque taes reclamações nunca forão
attendidas, como porque não temos Tratado algum com aquella Republica.”281
Na ausência de um tratado de extradição com os países vizinhos, a devolução de
desertores dependia da boa vontade de cada um dos governos e dos compromissos firmados
periodicamente. Luiza Volpato relata que, no período colonial a devolução de fugitivos, por
vezes, era recíproca entre o domínio espanhol e o português, como no ano de 1772, quando foram
devolvidas num intervalo de menos de dois meses duas remessas em torno de 95 escravos que
haviam fugido para os domínios espanhóis.
A devolução de desertores não era uma situação corriqueira, sendo que ambas as Coroas
buscavam não devolver os indivíduos que haviam adentrado em seu território.282
O episódio
acima apresentado não voltou a acontecer após 1825, pois a Bolívia aboliu o regime escravista, o
que fez com que o Brasil deixasse de valer-se da reciprocidade para recuperar escravos fugitivos.
De acordo com Newman Caldeira, após 1825 não houve nenhum caso de extradição, devolução
ou repatriação de cativos pelo governo boliviano.283
A própria autoridade administrativa local mantinha relações entre si, comunicando com
frequência e pedindo auxílio em algumas situações. No caso de soldados que fugiam para seus
domínios, era enviado um pedido ao comando local para que pudessem capturar os desertores , a
fim de remetê-lo de volta à província. Ao desertar para a Bolívia, o soldado saia da jurisdição
brasileira, não podendo ser capturado por autoridades brasileiras em outro país.
A deserção para a Bolívia ou para o Paraguai também apresentava a possibilidade de
mudança na condição jurídica, pois esses países haviam abolido o regime escravista, sendo que,
um escravo brasileiro ao ingressar na jurisdição desses países deixava de ser considerado como
cativo.
281
Antonio Pedro de Alencastro ao ministro dos Negócios Estrangeiros João Lins Vieira de Sinimbu, em 22 de maio
de 1861. Registro de Correspondência oficial entre a presidência com o Ministério dos Negócios Estrangeiros. 1851-
1870. Livro 124, R 29, F 01. APMT
282 VOLPATO, Luiza R. Ricci. A conquista da terra no universo da pobreza. Op. cit., pp.72-73
283 CALDEIRA, Newman di Carlo. Brasil e Bolívia: fugas internacionais de escravos, navegação fluvial e ajustes de
fronteira (1822-1867) Fronteiras, Dourados, MS. v.11, n.19, pp.249-272. p. 269.
132
Nas províncias fronteiriças do Império do Brasil, mesmo contra a vontade
dos integrantes da Guarda Nacional, do exército, das autoridades policiais, dos
presidentes de província e, principalmente, dos proprietários de escravos, a
noção de territorialidade atrelou-se à possibilidade de mudança de condição
jurídica a partir da concessão de direitos pelos governos dos países limítrofes.284
O governo boliviano pautava-se no argumento de que a devolução de fugitivos acarretaria
punições aos desertores, utilizando desse argumento para considerar escravos fugitivos como
asilados políticos. A extradição com a Bolívia foi regulamentada quando assinado o Tratado de
Ayacucho em 1867, durante a Guerra do Paraguai. Por se tratar de um período turbulento para o
Brasil, e com a necessidade de definir as fronteiras com a Bolívia, diante do receio de que esse
país viesse se aliar com o Paraguai. As cláusulas do acordo de Ayacucho não trás a preocupação
de devolução de cativos, sendo que, a competência de julgar a viabilidade do pedido de
extradição recaia exclusivamente sobre o Estado que recebesse o pedido:
Dessa forma, a concessão do asilo territorial, bem como da extradição dos
cidadãos emigrados foi deixada em aberto, criando as condições ideais para que
cada parte contratante prestasse a interpretação que melhor atendesse seus
interesses.285
Os praças aproveitavam de algumas oportunidades que surgiam, principalmente quando
designados para alguma função próxima da fronteira, como foi o caso de Antonio José Duarte,
soldado do Corpo de Caçadores, que ao ser designado para ir ao destacamento da Corixa,
aproveitou a proximidade com a Bolívia para desertar para esse país.
Participo a V. Exª que no dia 6 do corrente desertou o soldado do Corpo
de Caçadores Antonio José Duarte, estando destacado nas Lages e como o Cabo
mandou o dito trazer-me huma parte onde elle era cumpre lanço-a fora, e
284
Ibidem, p.257. 285
Ibidem, p.268
133
apresentou-se dizendo-me que o Cabo mandava buscar tinta e papel, que não
havia nenhuma, e nesse noute entrou para os estrangeiros vizinhos deste ponto,
mandei procurar e achou-se os vestígios ter tomado essa direção.286
Os soldados brasileiros desertavam para os países vizinhos, na província de Mato Grosso,
mas também apareciam desertores bolivianos e paraguaios. Em setembro de 1864, o paisano João
Gabriel Alves encontrou nos arredores da Colônia Militar de Dourados dois paraguaios que
diziam ser soldados desertores, um por nome de Santiago Ossuna e o outro Felisberto Gayoso,
alegando terem desertado da Vila de São Pedro.287
Illmo. e Exmo. Ser. Tenho a honra de passar ás mãos de V. Exª. a inclusa
copia de hum officio que sob o nº 175 e data de 12 do corrente dirigio-me o
Tenente Coronel Commandante do Districto Militar do Baixo Paraguay, dando
parte de haverem-se apresentado no Forte de Coimbra, donde forão remettidos
para a Povoaçao de Albuquerque (hoje mais conhecida como Corumbá) dous
soldados Paraguayos, que desertarão do Forte Olimpo. Não havendo Tratado de
extradição entre o Império e a Republica do Paraguay, constando-me que o seo
Governo nunca restituio os escravos e desertores desta Provincia que alli se tem
refugiado, não tendo ainda chegado ao meu conhecimento reclamação alguma a
respeito dos dous de que agora trato, e não parecendo, entretanto conveniente a
sua permanência náquela fronteira acaba de ordenar ao mencionado Command.
que na primeira opportunidade os remetta para esta Capital, a fim de terem o
destino que o Governo Imperial houver de determinar, pagando-se pela
Thesouraria de Fazenda a despeza que se fizer com o seo tratamento. O que
levo, como me cumpre, ao conhecimento de V. Exª., esperando que se digne dar-
me as instruçções que julgar convenientes para este caso e outros semelhantes
que por ventura ocorrão.288
286
Quartel do ponto da Corixa Tenente Comandante Tristão de Mello e Cunha ao Capitão Lúcio Ribeiro de Almeida
Raposo, em 11 de abril de 1850. Lata 1850 C. APMT 287
Colônia militar de Dourados, em 30 de setembro de 1864. Lata 1864 F2. APMT 288
Herculano Ferreira Penna ao ministro dos Negócios Estrangeiros Benevinuto Augusto de Magalhães Taques, em
22 de maio de 1862. Registro de Correspondência oficial entre a presidência com o Ministério dos Negócios
Estrangeiros. 1851-1870. Livro 124, R 29, F 01.
134
Nesse contexto, conseguir fugir para outros países era ter a garantia de que não seria
novamente capturado para o serviço militar, embora tivesse que se manter distante da família e
do meio social em que viviam. Nesse caso, aqueles que procuravam desertar-se para retornar ao
convívio familiar não optavam por fugir para os países vizinhos da província, mas para
localidades próximas a capital.
3.2.2 Reduto de desertores
As autoridades dispunham apenas das características físicas para identificar o desertor,
cujas informações passaram a serem escritas na ficha quando assentavam praça, como meio de
manter um maior controle e facilitar a identificação de desertores. Esses dados pessoais são
formais, pois foram regulamentados pelo Aviso do Ministério da Guerra de 7 de fevereiro de
1845, trazendo informações como filiação, nome, estado civil, idade. Segundo podemos perceber
da descrição feita na ficha do recruta Manoel Francisco Geraldo:
Filho de Geraldo Corrêa d‟ Abres, natural da Cidade de Poconé Província
de Mato Grosso, que nasceo em mil oitocentos quarenta e seis, cabellos grenhos,
olhos pardos, sem officio, solteiro e com sessenta pollegadas de altura.289
A prisão de um desertor também era dificultada pelo fato de que o deslocamento de um
ponto para o outro dentro da província era muito difícil e demorado, devido às precariedades nas
vias de comunicação, favorecendo aos desertores em morar e levar uma vida nas freguesias
próximas à capital. De acordo com Oswaldo Machado Filho, as autoridades viam nas regiões que
circundavam a Cuiabá um reduto de desertores, sendo que, algumas regiões eram mais famosas
289
Quartel do Comando do Batalhão de Caçadores de Mato Grosso, em Vila Maria. Lata 1864 A1. APMT
135
por oferecer abrigo a desertores, como as freguesias da Guia, Diamantino, Brotas, Rosário,
Chapada, Poconé, Vila Maria e Livramento.290
Mapa II – Freguesias conhecidas como reduto dos desertores no século XIX
Fonte: elaborado a partir de YAMASHITA, Quelce dos Santos. Op. cit., p.36.
As rondas realizadas pelos encarregados do recrutamento eram aproveitadas na captura de
desertores, criminosos e escravos que viviam pela redondeza da capital.
290
MACHADO FILHO, Oswaldo. Op. cit., p.303
136
Constando-me existir no lugar denominado Capão redondo, doze léguas
mais ou menos distante desta Cidade, grande numero de escravos fugidos,
desertores e criminosos; e sendo de necessidade captural-os; rogo a V. Exª. se
digne mandar pôr a minha disposição uma força de quinze a vinte praças,
Commandadas por um Official de confiança para effectuar-se essa diligencia.291
A ronda exposta na citação acima foi realizada no mês de agosto de 1864, quando
conseguiram capturar vários desertores, inclusive no Capão Redondo, lugar mencionado pelo
chefe de polícia, onde foram presos os soldados desertores Benedicto Antonio da Costa Nunes do
Batalhão de Caçadores e Sebastião Nunes da Silva do Corpo de Cavalaria. Na ronda também foi
capturado mais três desertores no sítio Lages: Francisco José dos Santos e Salvador Soares da
Silva do 2º Batalhão de Artilharia a pé e Claudino Manoel de Arruda do Batalhão de
Caçadores.292
Após ser realizado o recrutamento, os comandantes dos corpos de guarnição
tinham de enviar ao comandante das armas, em Cuiabá, os atestados de apreensão de recrutas,
desertores e voluntários, para que fosse realizado o pagamento das gratificações dos
recrutadores.293
Cabia aos encarregados também prender desertores, escravos e criminosos fugitivos.
Capturar desertores e conseguir preencher a cota de recrutas era um desempenho considerado
louvável pelo Comandante das Armas da província de Mato Grosso, função que foi
desempenhada pelo encarregado do recrutamento Sabino Fernandes de Souza, que durante a
ronda conseguiu prender vários desertores e aumentar o efetivo do Exército:
O Coronel Commandante das Armas tem a satisfação de louvar ao Senr.
2º Tenente do 2º Batalhão d‟ Artilharia a pé Sabino Fernandes de Souza pelo
bem que desempenhou a commissão de que fora ultimamente encarregado pelo
Senr. Dr. Chefe de Policia, trazendo presos a esta Capital nove desertores do
Exercito, um criminoso e um escravo fugido; serviço este devidamente
apreciado pelo Exmo. Senr. General Presidente da Província.294
291
Secretaria da Polícia em Cuiabá, 29 de julho de 1864. Lata 1864 A1. APMT 292
Ordem do dia 238 de 13 de agosto de 1864. Lata 1864 E1. APMT 293
Quartel do Comando das Armas de Mato Grosso, em Cuiabá em 17 de agosto de 1864. Lata 1864 E1. APMT 294
Ordem do Dia 01 de outubro de 1864. Lata 1864 A1. APMT
137
Os recrutas que desertavam procuravam de várias formas camuflar sua condição de
desertor, apresentando-se como camaradas em propriedades rurais ou mesmo nas matas na
extração de poaia, pastoreio de gado etc. Seja vivendo próximo das povoações, adentrado as
fronteiras ou procurando abrigo nos quilombos. Os soldados procuravam evadir-se do controle
das autoridades militares, estabelecendo laços que ajudavam na convivência do dia a dia.
Quando ingressavam no Exército, os soldados adquiriam conhecimento de porte de armas
e por mais restrito que fosse esse conhecimento militar, ao ser levado aos quilombos pelos
desertores servia para seu fortalecimento e para sua resistência. Entre os que desertavam, muitos
acabavam carregando os armamentos e colocando-os a disposição dos novos companheiros.295
No século XIX existiam vários quilombos na província de Mato Grosso que eram
conhecidos pelas autoridades: Sepotuba, Roncador, Jangada, Serra Dourada e Rio Manso.296
O
quilombo era um mecanismo de luta adotado pelos cativos, uma forma de ação planejada diante
do contexto inserido, o que demonstra o posicionamento ativo de ações políticas de luta negra
frente ao regime de escravidão, pois “demonstram como os negros podiam se organizar e,
principalmente, como podiam cooptar outros grupos descontentes no interior do sistema
escravista, como é o caso de desertores e fugitivos.”297
A presença de soldados nos quilombos era forte porque eram organizados nas imediações
da capital, estabelecendo laços com os escravos que fugiam do cativo. Segundo Adiléa
Delamônia, os quilombolas mantinham uma interrelação com os habitantes da cidade, como no
caso do quilombo do Rio Manso, onde havia uma dependência dos habitantes e dos comerciantes
da cidade com relação ao fornecimento feito pelos quilombolas de gêneros de primeira
necessidade, como “farinha, mel, caça, frutos silvestres, peixes, rapadura”. Tal prática demonstra
como os quilombolas “sabiam administrar as relações que desenvolviam fora de seus limites, e
295
VOLPATO, Luiza R. Ricci. Cativos do sertão. Op. cit., p.64 296
Ibidem, p.186 297
DELAMÔNICA, Adiléa Benedita. A “cor do medo” e seus vários significados. Os quilombos mato-grossenses do
rio Manso (1850-1888). In: BORGES, F. T. de M; PERARO, M. A. Sonhos e pesadelos na História. Ed.UFMT,
2006. p.123
138
através desse intercâmbio, adquiriam utensílios necessários para manter-se, e armamentos para
enfrentar os ataques das milícias.”298
A deserção, a aversão ao serviço militar e a falta de meios materiais, estabelecia limites à
aplicação de uma disciplina rígida. Esse afrouxamento da disciplina tornava o serviço nas fileiras
do Exército mais tolerável. Segundo Fábio Faria Mendes, a deserção era, por vezes, considerada
inevitável pelas autoridades militares, o que pode ser considerado, devido às inúmeras anistias
concedidas a desertores, que “emerge como um elemento de negociação contínua a respeito das
condições de existência e formas de autoridade nas guarnições.” 299
No ano de 1846, o governo publicou um decreto perdoando a todos os desertores, desde
que não tivessem cometido outros crimes, buscando fazer com que os desertores retornassem ao
serviço militar, pedindo às autoridades provinciais para fixar na igreja Matriz de cada freguesia
uma cópia do decreto para divulgar em todos os lugares essa decisão. Essa medida procurava
arregimentar de volta ao serviço militar àqueles que procuraram na deserção uma opção ao
serviço militar.
Hei por bem, usando do Poder Moderador, Perdoar aos reos da primeira
deserção, e aos de segunda simples d‟ Armada, e dos Corpos de Imperiais
Mariheiros, e da Artilharia da Marinha, condennados, ou em processo, bem
como aos que se acharem ausentes, e se apresentarem dentro de tres mezes,
depois da publicação do presente Decreto, nas Províncias, e Estações Marítimas
do Império.300
O Conselho Supremo Militar concedia perdão aqueles desertores que se apresentassem
voluntariamente, deste que não tivesse cometido outros crimes. As privações da vida e as
dificuldades enfrentadas pelo desertor faziam com que muitos retornassem para terminar o tempo
de serviço, pedindo perdão pelo crime de deserção.
298
DELAMÔNICA, Adiléa Benedita. Op. cit., p.131 299
MENDES, Fábio Faria. Op. cit., p.43 300
Decreto nº. 483 de 15 de novembro de 1846. Coleção de Leis do Império do Brasil.
139
Communicando a V. Exª. o se haver apresentado espontaneamente o
soldado desertor do 2º Batalhão d‟ Artilharia a pé Roberto Antonio do Rego,
communico igualmente a V. Exª. o tel-o mandado soltar, na forma das Ordens de
V. Exª. por se achar o dito soldado comprehendido no Indulto Imperial de 15 de
Agosto do corrente anno, em conseqüência de ser o seo crime o de 1ª deserção
simples virificado pelo relatório de prevenção remettido pelo mencionado
Batalhão a Secretaria [...]301
No caso dos desertores que eram capturados, os mesmos eram presos e submetidos ao
conselho de Guerra para responderem pelo crime de deserção:
Communico a V. Exª. que o Soldado da Companhia de Artífices
Veríssimo Rodrigues, que se achava desertado desde 3 de Agosto do anno
passado, foi hoje capturado e recolhido ao Xadrez para responder a conselho de
Guerra pelo crime de 1ª deserção simples.302
Muitos desertores quando capturados, por medo de serem submetidos a severos castigos,
acabavam por desertar novamente, como é o caso de Augusto Antonio do Nascimento, preso pelo
crime de 5ª deserção agravada. Outros casos, como o de Candido Bernardo, solto em maio de
1851, após ter cumprindo seis anos de trabalho público pelo qual foi condenado por crime de 3ª
deserção simples, após desertar por três vezes e ser capturado novamente, acabava por cumprir a
pena que lhe fora designada.303
Essas situações deixavam as autoridades sempre com a suspeita
de que o desertor poderia vir a fugir novamente.
Communicando a V. Exª. o revoltante procedimento dos Soldados do 2º
Batalhão d‟ Artilharia a pé, addidos ao destacamento de Caçadores estacionado
301
Quartel do Comando da Guarnição da Cidade de Cuiabá, em 12 de dezembro de 1864. Lata 1864 A1. APMT 302
Quartel do Comando da Guarnição da Capital Luis Francisco Henrique ao presidente da província Alexandre
Manoel Albino de Carvalho, em 16 de novembro de 1864. Lata A1. APMT.
303 Augusto Leverger ao Diretor do Arsenal de Guerra. Registro de correspondência entre a província e os
comandantes militares 1851-1852. Livro 116, R. 28, F.01. APMT
140
nesta Capital = Salvador Soares da Silva e Feliciano José do Espírito Santo,
ambos soltos a 3 do corrente por se acharem comprehendidos no Indulto
Imperial de 15 de Agosto de 1864; o primeiro pelo crime de segunda deserção
simples e o segundo pela de primeira deserção simples, communico igualmente
que havendo os ditos Soldados de novo desertado qualificando o de nome
Salvador = 3ª deserção = e o de nome Feliciano = 2ª simples = mandei proceder
nos termos da Provisão de 10 de Abril de 1843 a inquisição necessária ao
Conselho de Disciplina que tem de ser feito por nomeação do Commandante do
respectivo Batalhão para servir de base ao Conselho de Guerra que tem de
proceder-se a respeito de um dos ditos soldados que já se acha recolhido ao
Xadrez por ter sido capturado.304
O desertor que se encontrava preso era Feliciano José, preso pelo crime de 2ª deserção
“que no acto da prisão recebeo leves ferimentos por haver recusado entregar-se, e tendo chegado
a esta cidade as 11 horas da noite, nessa mesma hora foi recolhido ao seu quartel.”305
Esses “leves
ferimentos” eram cometidos com frequência, sendo que os desertores costumavam serem
conduzidos com os pés acorrentados. Alguns praças chegavam a dirigir queixas ao presidente da
província sobre os castigos severos aos quais eram submetidos, como foi o caso do soldado do
corpo de Artilharia Constantino José Cardoso que enviou um requerimento “queixando-se das
violências que tem soffrido por occasião do seu processo pelo crime de sedição.”306
Em novembro de 1863, o soldado desertor do Batalhão de Caçadores Primo, Eustáquio
Ribeiro dos Guimarães foi preso pelo roubo de gado na Fazenda Nacional de Casalvasco, fato
que já comentamos no capítulo anterior. Ao ser preso, Eustáquio foi enviado à prisão na capital
para ser julgado pelo Conselho de Guerra pelo crime de deserção agravada, mas o julgamento
não aconteceu, pois pouco tempo depois de ser preso, Eustáquio recorreu novamente à deserção,
evadindo-se da prisão em fevereiro do ano seguinte.307
Para conseguir evadir-se da prisão,
Eustáquio contou com a ajuda dos praças que se achavam de guarda na noite em que fugiu,
resultando na tomada de providencias pelo Comandante das Armas para que o praça que estava
de guarda respondessem ao processo por facilitar a fuga de preso.
304
Quartel do Comando da Guarnição da Cidade de Cuiabá, em 21 de dezembro de 1864. Lata 1864 A1
305 Lata 1864 E1. APMT
306 Registro de correspondência oficial da presidência com o Ministério da Guerra 1853-1855. Livro 135. APMT
307 Carlos Augusto de Oliveira ao presidente da província Alexandre Manoel Albino de Carvalho, em 23 de fevereiro
de 1864. Lata 1864 F1. APMT
141
Encontramos no período analisado vários casos de praças que facilitava a fuga de presos,
oferecendo a oportunidade de conseguir livrar-se de possíveis castigos pelos crimes praticados.
Por vezes, os praças de guarda de presos acabavam por evadir-se junto, tornando-se também
desertores, como foi o caso de Benedicto Cardoso que facilitou a fuga dos presos condenados a
galés José de Oliveira Porto e Agostinho da Silva Jarde, que estavam presos na prisão do Arsenal
de Guerra, aproveitando para fugir junto.308
Esse foi o caso também do soldado do 2º Batalhão de
Artilharia a pé José Luiz de Azevedo, que era responsável por vigiar os presos que cumpriam
pena prestando serviços braçais no cemitério, o mesmo fugiu junto com o preso pelo qual era
responsável por vigiar.309
Nesse sentido, há registros de que não era apenas para fugir que contavam com a
cumplicidade de outros homens, mas na vida cotidiana, estabelecendo laços importantes para
garantir a sobrevivência. Quando Eustáquio realizou o roubo de gado de Casalvasco, agiu
acompanhado de Ângelo Mariano Penha (boliviano) e de Simão (indígena), sendo que ambos
conseguiram lograr-se e fugir, indo preso somente o praça desertor.
A fuga era vista por muitos soldados como a melhor opção de retorno à liberdade, frente à
vida de privações que era oferecida no Exército. Esses laços ajudavam desertores a retornarem ao
convívio social e tornar as dificuldades e os embaraços do cotidiano mais fácil de suportar. Esses
buscavam conduzir suas vidas à margem das ações do Estado, que via no envio de livres ou
pobres uma forma de abastecer o Exército de homens, para realizar a defesa da província e ao
mesmo tempo tirar de circulação indivíduos que não faziam parte do processo de reorganização
do espaço social.
308
Registro de correspondência da presidência e os comandos militares 1851-1852. Livro 113 Est. 06, R.27, F07.
APMT 309
Secretaria do Arsenal de Guerra em Cuiabá ao presidente da província Alexandre Manoel Albino de Carvalho, em
9 de abril de 1864. Caixa 1864. APMT
142
CONSIDERAÇÕES FINAIS
[...] foi invadido o Districto do Baixo Paraguay por huma
esquadrilha de vapores paraguayos, conduzindo força
mais que decupla da diminuta guarnição, que,
disseminada por diversos pontos, era apenas sufficiente
para a policia do mesmo Districto em tempo de plena
paz.310
Augusto Leverger, em outubro de 1865.
A facilidade com que as tropas paraguaias adentraram ao sul da província de Mato Grosso
(terreno litigioso entre o Brasil e o Paraguai) expõe a fragilidade militar brasileira em realizar a
defesa de seu território e demonstra também a permanência dos problemas na organização e na
mobilização do Exército que pontuamos no decorrer deste trabalho.
Apesar da tentativa de mobilização empreendida pelos presidentes da província de Mato
Grosso, diante da constante alerta de invasão por parte do Paraguai, as dificuldades e os
embaraços faziam com que pouco pudesse ser feito para amenizar a situação da província.
Alertavam que a província estava vulnerável a uma possível invasão paraguaia e não possuía
recursos locais para impedir uma investida do país guarani. A não delimitação de fronteiras e o
desentendimento quanto a um acordo entre os dois países deixou os governantes da província
sempre com desconfiança das intenções paraguaias.
A defesa da província de Mato Grosso era precária, tendo todos os pontos militares mal
guarnecidos, embora considerados estratégicos do ponto de vista militar. A força militar era
310
RELATÓRIO do Vice-presidente da Província de Mato Grosso, Chefe de esquadra, Augusto Leverger, na
abertura da sessão ordinária da Assembleia Legislativa Provincial em 17 de outubro de 1865. Cuiabá, Typ. de Souza
Neves etc, 1865. p.5
143
insuficiente para realizar a defesa da extensa fronteira dessa província, por falta de homens, de
instrução militar, material bélico adequado, entre outros problemas que não eram específicos a
essa província, mas comum a todas as províncias do Império.
A análise que desenvolvemos pontua que a defesa da província de Mato Grosso, no
período que antecede a Guerra do Paraguai, foi depositada nas mãos de indivíduos considerados
pela elite política como socialmente indesejáveis, que eram recrutados a força, encaminhados aos
quartéis e ao destacamento sem preparação militar ou mesmo sem interesse pelo serviço militar.
E, essa situação não sofreu mudanças significativas naquele período, sendo comum a todas as
localidades do território nacional.
As reclamações quanto à insuficiência de efetivos militares e às dificuldades em mobilizar
homens para servir nas fileiras do Exército foram uma constante. O número de praças mais
elevado estabelecido pelo Parlamento no período analisado foi de aproximadamente dezenove
mil homens no ano de 1856, sendo que as capacidades militares desse período ultrapassaram
pouco mais de quatorze mil praças.
Durante a primeira metade do século XIX, o alto oficialato do Exército era
majoritariamente ocupado por membros da aristocracia, aproveitando de privilégios para acesso
rápido ao oficialato militar. Após assumir o governo no final de 1848, os conservadores
aprovaram várias medidas para organizar as forças armadas, entre as quais foram estabelecidas
regras para regulamentar o acesso ao oficialato de diferentes armas. Essas reformas de 1850 abriu
caminho para o início da profissionalização do Exército, onde a meritocracia veio substituir os
privilégios aristocráticos de acesso à carreira, principalmente após os militares retornarem da
Guerra do Paraguai.
Assim, houve mudança na forma de acesso ao oficialato, privilegiando a
profissionalização. Essas reformas faziam parte das estratégias políticas em ter um Exército com
o mínimo de organização possível, a fim de defender seus interesses quanto à proteção do
território brasileiro, no momento em que o Brasil buscava defender suas pretensões territoriais e
demarcar as fronteiras com os países vizinhos.
O Exército era organizado em diferentes armas, sendo uma parte de força móvel e outra
parte de força fixa. As formas de preenchimento das fileiras do Exército eram variadas, utilizando
144
da contratação de mercenários e deslocamentos de Guardas Nacionais, como de voluntariado,
engajamento e recrutamento forçado. Entre esses recursos, o que predominou durante o século
XIX foi o recrutamento forçado, sendo iniciado após o término do período destinado à chamada
de voluntários. A quantidade de homens a ser recrutados variava de acordo com a necessidade de
reposição das fileiras e as conjunturas políticas.
Como se trata de uma sociedade escravista, o escravismo imprimiu suas bases para
dificultar ainda mais o sistema de recrutamento e a formação de efetivos do Exército. O serviço
na Guarda Nacional também constituiu-se numa rede de proteção legal contra o recrutamento e
isentando seus membros do serviço ativo no Exército. As isenções imprimiam um
direcionamento ao recrutamento, restringindo o serviço militar àqueles que não contavam com
apadrinhamento.
A prioridade do governo imperial com a província de Mato Grosso era a defesa da
fronteira oeste. A província de Mato Grosso estava localizada numa região litigiosa, sendo que as
áreas fronteiriças do Brasil com a Bolívia e o Paraguai só foram delimitadas na segunda metade
do século XIX. As tensões geradas pelas discussões quanto a não delimitação de tratados de
limites e ao acordo de livre navegação deixaram a relação entre esses países tensa e o governo
brasileiro em constante alerta.
Embora a província estivesse vulnerável em toda a sua extensão, a preocupação principal
do governo era com a fronteira sul da província, divisa com a República do Paraguai. A essa
localidade fora destinado um maior número de homens e recursos da província.
Os meios para serem empregados na defesa, fossem soldados ou recursos materiais, eram
escassos. O Exército nessa província, assim como nas demais províncias do Império, sofria com a
falta de homens e com a falta de recursos materiais considerados adequados para atender as
necessidades de defesa.
Os praças para servirem nas fileiras do Exército eram recrutados entre homens da
localidade. A quantidade de homens para a guarnição da província de Mato Grosso era
determinada anualmente por meio a um Aviso Circular expedido pelo Parlamento, variando em
torno de 1.500 a 2.000 praças para todo o período analisado. O período que a quantidade
ultrapassou 1.500 praças foi a partir da negociação com o Paraguai em 1856.
145
Além de serem poucos, os praças que eram enviados as fileiras do Exército eram mal
preparados, sendo recrutados sem experiência ou treinamento militar. Os homens empregados no
serviço militar também eram retirados de suas funções para serem empregados em outras
atividades, o que contribuirá para afetar o andamento e o treinamento militar, a exemplo,
trabalhava em serviço de policiamento, serviço de correio, corte de lenha, construções de pontes,
reparos nos edifícios militares e na abertura de estradas. Esses praças sofriam com a falta de
pagamento do soldo, alimentação precária, má condição de alojamento, falta de fardamento e
vestimenta, problema comum nos diversos pontos militares da província de Mato Grosso.
Diante da quantidade diminuta de praças, em diversos momentos os guardas nacionais
foram chamados para auxiliar o Exército na atividade de defesa, inclusive deslocando-se para
destacamentos na fronteira. Isso foi algo constante, variando o número de destacados em torno de
50 a 100 guardas, sendo que essa quantia triplicou entre 1856 a 1858. Em sua maioria, esses
praças eram destacados para o serviço de policiamento da capital e na guarnição da fronteira com
a Bolívia, sendo os praças do Exército dessas localidades deslocados para a fronteira do Baixo
Paraguai.
Quanto à mobilização militar, as principais reclamações dos encarregados eram
relacionadas aos embaraços que as isenções ofereciam para o procedimento do recrutamento,
fazendo com que não fosse completado o contingente militar atribuído a cada freguesia para
atender as necessidades militares da província.
As vantagens oferecidas aos que se apresentassem voluntariamente para serviço militar
conseguiam atrair uma quantidade até significativa de homens para as fileiras do Exército, mas
não era o suficiente para completar seu contingente. Essas vantagens atraiam aqueles que
estavam na mira do recrutamento ou aqueles que percebiam que não teriam como escapar ao
serviço militar e, para amenizar sua situação, se apresentavam voluntariamente buscando usufruir
das vantagens adicionais oferecidas aos voluntários.
Aqueles que se apresentavam voluntariamente tinham como vantagem a redução do
tempo de serviço. Um recrutado assentava praça para servir por oito anos, o voluntário por seis
anos e o engajado por quatro anos. Mas aqueles que se engajavam para servir nas colônias
militares tinham o tempo de serviço reduzido pela metade.
146
O governo imperial utilizou a prática de recrutar indivíduos indesejados no meio social,
considerados perigosos, buscando enviá-los para servir na guarnição de algum ponto da fronteira.
Tal procedimento era adotado como forma de disciplinar e ao mesmo tempo completar a
guarnição militar para a defesa da fronteira. Assim, os agentes recrutadores aproveitavam do
movimento das ruas para poder prender indivíduos que praticavam pequenos delitos, ou mesmo
pela intenção de buscar completar a cota de efetivos. Mesmos aqueles indivíduos considerados
legalmente isentos, como os escravos e menores de idade, foram alvo dos recrutadores para
completar a cota de efetivos.
A maneira como era procedida o recrutamento através da violência, o longo período em
que ficava prestando serviço militar, a distância da família, principalmente, em se tratando de
uma província fronteiriça como Mato Grosso, fazia com que aumentasse a repulsa pelo serviço
militar. Foram inúmeras as estratégias de fuga e resistência usadas pelos recrutas para escapar do
serviço militar, como a falta de cooperação, desacato as ordens, insubordinação, pedido de
isenção, substituição, deserção.
A província de Mato Grosso, por estar em uma situação de fronteira com a Bolívia e com
o Paraguai, fazia com que parte significativa da força de linha fosse deslocada para fazer o
serviço de guarnição nos diversos pontos das fronteiras, ficando os militares afastados das
cidades e do convívio familiar. Nos pontos de guarnição na fronteira, a condição de vida dos
militares era ainda mais precária, tanto em relação ao alojamento quanto à alimentação precária e
à condição insignificante de armamentos que, na sua maioria, eram velhos ou não inexistentes.
Essa situação agravava ainda mais o preenchimento do quadro de homens para o serviço militar,
aumentando a resistência ao recrutamento.
Muitos soldados, quando não conseguiam isenção, buscaram na deserção uma maneira de
dar continuidade aos seus afazeres cotidianos e, assim, poder retornar ao convívio familiar. A
proximidade com a fronteira, principalmente com a Bolívia, apresentava-se como uma opção
para a deserção, sendo que a irrisória distância dos fortes e das guarnições com a fronteira
aumentava a possibilidade de fuga e também de não ser capturado.
Os praças que desertavam procuravam de várias formas camuflar sua condição de
desertor, apresentando-se como camaradas em propriedades rurais ou mesmo nas matas na
147
extração de poaia, pastoreio de gado etc. Procuravam novas alternativas de sobrevivência, seja
vivendo próximo as povoações ou adentrando as fronteiras ou mesmo procurando abrigo nos
quilombos.
Na província de Mato Grosso os praças tinham a fronteira com outros países como uma
opção a mais para evadir-se do serviço militar, esta foi usada por praças que adentraram pelo país
vizinho em busca de sair da jurisdição brasileira. Situação que preocupava as autoridades, sendo
motivo de reclamações, pois dificultava a captura dos desertores.
Os pontos de guarnição próximos à fronteira nessa província também foi vista como um
lugar para serem enviados os militares que cometiam crimes muito graves ou aqueles que tinham
uma conduta depreciável pelas autoridades militares, funcionavam como uma forma de castigo
exemplar. Estar alistado no serviço militar já não era bem visto, era ainda pior ser deslocado para
servir em uma província fronteiriça, distante da Corte.
Mesmo estando localizado em uma área de fronteira e sendo constante a ameaça de uma
invasão por parte dos países vizinhos, o Exército em Mato Grosso não conseguiu ter uma
organização eficaz frente às necessidades militares, sendo seu efetivo insuficiente para guarnecer
toda a província.
Fica evidente a debilidade de defesa da fronteira, que mesmo com a relação tumultuada
com o Paraguai, país que ameaçava invadir a parte sul da província, e que em vias de fato veio a
acontecer, em dezembro de 1864, naquele momento o Brasil não contou com uma força armada
capaz de atender as suas necessidades de defesa.
A debilidade de mobilização militar para realizar a defesa da província é um problema
que não ficou restrito a província de Mato Grosso, mas como pudemos analisar no decorrer das
leituras realizadas e comentários dos ministros da Guerra, era um problema comum as demais
províncias do Império. Pelo que podemos perceber, essa debilidade está presente antes do inicio
da Guerra do Paraguai, perpassa esse conflito e continua sem ser resolvido. Mas esse é um
assunto que ainda requer pesquisa.
148
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150
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