Post on 23-Nov-2018
O enunciado como unidade real do ensino de língua portuguesa: o papel do estilo em
foco
Solange Ariati1
solangeariati@hotmail.com
UTFPR- Universidade Tecnológica Federal do Paraná
Resumo: Buscamos compreender no presente artigo como é possível, a partir do conceito de
enunciado na teoria bakhtiniana, desenvolver atividades didáticas para o ensino-aprendizagem
de Língua Portuguesa, e como essas podem preencher a laguna existe, em termos
metodológicos, acerca da utilização da concepção de gênero do discurso em sala de aula. Para
isso, evidenciamos o conceito de enunciado concreto e, após, o colocamos como objeto que
precisa ser tomado como meio de ensino-aprendizagem de uma Língua. Os dados foram
selecionados a fim de materializar possíveis atividades que podem vir a compor o repertório
da prática docente e, além disso, evidenciar o que a tomada do enunciado concreto como
unidade real do ensino de Língua Portuguesa pode contribuir para uma formação crítica do
aluno, além do também necessário domínio do código, em termos estruturais. Os resultados
mostram que, além de tomar os elementos estáveis do gênero, é necessário trabalhar o estilo.
Afinal, esse elemento do enunciado funciona como uma reformulação/recriação do gênero
discursivo que é resultante de uma processo de interação e luta entre o “eu” e o “outro” na
disputa por um objeto, tal processo que é constituinte da linguagem e que fica materializado no
estilo do enunciado.
Palavras-chave: Enunciado; dialogismo; ensino.
Abstract: In this paper, we intend to understand how it is possible, from the utterance concept
in the Bakhtin theory, develop didactic activities to improve the Portuguese teaching-learning
and how these can fill the gap exist, in methodological terms, in the use of the speech genres
conception in the classroom. For this, we highlight the concept of concrete utterance and, after,
place it as an object that needs to be taken as a means to teaching and learning a language. The
data was selected in order to materialize possible activities that can come to compose the
teaching repertoire practice and, in addition, highlight what the taking of the concrete utterance
as a real unit of Portuguese language teaching can contribute to a student critical formation, in
addition to the necessary learning of langue code, in structural terms. The results reveal that in
addition to taking the stable elements of the genre, it is necessary to look at the style. After all,
this utterance element functions as a reformulation/re-creation of the discursive genre that
results from a process of interaction and struggle between the "I" and the "other" in the dispute
for an object, process that is constituent of the language and is materialized in the utterance
style.
Keywords: Utterance; dialogism; teaching activity.
1 Mestranda e bolsista CAPES do Programa de pós-graduação em Letras, da Universidade Tecnológica Federal
do Paraná, Câmpus Pato Branco, na linha de pesquisa: Linguagem Educação e Trabalho.
Introdução
Desde a publicação dos PCNs de Língua Portuguesa, em 1997, é prescrito ao professor
dessa disciplina que utilize gêneros textuais como instrumento didático. Porém, entre o que é
prescrito e o que de fato é realizado sempre há uma distância resultante das circunstâncias
concretas da atividade (LIMA, 2010). Nesse caso, essa distância advêm de estratégias próprias
do docente e de inúmeras dificuldades, que vão desde sua formação, passando por condições
precárias de trabalho, as quais ele enfrenta diariamente, até a lacuna, em termos metodológicos,
deixada pelos documentos elaborados pelo Ministério da Educação. Tal distância, entre a
prescrição dos PCNs e o realizado pelo professores, é amplamente discutida por docentes e/ou
pesquisadores que objetivam esclarecer como, na prática, podemos utilizar o gênero textual
como instrumento de ensino. Porém, após quase duas décadas desde a publicação dos PCNs,
as insatisfações advindas dos docentes, principalmente sobre esclarecimentos metodológicos,
ainda se fazem presentes.
Com o objetivo de minimizar tal problemática, propõe-se, neste estudo, que o ensino
de Língua Portuguesa abandone, momentaneamente, o conceito de gênero para tratar do
enunciado concreto, do ponto de vista bakhtiniano, como a unidade real da comunicação e, ao
mesmo tempo, como a unidade real do ensino de língua, seja materna ou estrangeira.
Para isso, nos debruçamos, em um primeiro momento, sobre as teorizações acerca do
tratamento do texto em sala de aula e, após, nos escritos de Bakhtin (2016) sobre o enunciado
como unidade real da comunicação humana. Em um segundo momento, propomos um
exemplo, a partir de um anúncio publicitário, de como utilizar o texto, em sala de aula, como
um enunciado concreto do ponto de vista bakhtiniano.
Fundamentação teórica
Quando um determinado texto é levado para sala de aula, mas tratado como algo
estável, é impossível identificar e compreender suas relações dialógicas, resultando em uma
prática chamada de texto como pretexto (GERALDI, 1984). Com essa prática, o texto é
utilizado como suporte para análises gramaticais e não como produtor de sentidos. Assim,
quando o texto é apenas um pretexto para tratar das formas estanques do gênero que ele
pertence e/ou de seus aspectos puramente gramaticais, o texto é tomado apenas como um
arranjo pacífico de componentes lexicais dispostos em uma ordem estabelecida. Esse
tratamento do texto como algo estável e pacífico resulta em uma formação acrítica dos
estudantes, colaborando para o não domínio da leitura que, no Brasil, ainda é alta. Segundo
Rojo (2008), boa parte dos leitores brasileiros, “na situação de exame, demonstram dominar
apenas as capacidades escolares mais básicas do trato da significação do texto” (p. 90).
Observado que a leitura e, por consequência, a escrita ainda são grandes desafios em
nosso sistema de ensino, público e privado, propomos, neste artigo, visualizar como o
tratamento do elemento estilístico do enunciado pode colaborar para que o trabalho por meio
de gêneros discursivos, ou melhor, por meio de enunciado concretos, em sala de aula, não
ocorra de modo a tratar apenas do que há de estável no gênero, mas do enunciado como
processo de embate entre o “eu” e o “outro” entre diferentes forças sociais que lutam por um
mesmo objeto. Afinal, a palavra, enquanto signo componente de um enunciado concreto, “se
apresenta como uma arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam os valores sociais de
orientação contraditória. A palavra revela-se, no momento de sua expressão, como o produto
da interação viva das forças sociais” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 67).
De acordo com Bakhtin (2016), “o emprego da língua efetua-se em forma de
enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele
campo da atividade humana” (p. 11). Com essa afirmação, o autor, diferentemente de algumas
correntes linguísticas, que tinham ou têm, a palavra ou a oração como unidade, aponta que é o
enunciado que compõe a totalidade das propriedades da linguagem, ou seja, o enunciado
concreto é “real unidade da comunicação discursiva” (p. 22 – grifos do autor).
Bakhtin (2016) não apenas elege o enunciado como a real unidade, mas o descreve.
Para isso, o autor afirma, primeiramente, que enunciado engloba, além da dimensão verbal, a
extraverbal, ou seja, a concretude da situação de interação entre os falantes. Afinal, é “só o
contato do significado linguístico com a realidade concreta, só o contato da língua com a
realidade, contato que se dá no enunciado, gera a centelha da expressão; esta não existe nem
no sistema da língua nem na realidade objetiva existente fora de nós” (BAKHTIN, 2016, p.
51). Com isso, o enunciado abarca a situação concreta de fala e, em caso de “arrancar a
enunciação deste chão real que a alimenta, perdemos a chave que abre o processo de
compreensão tanto de sua forma quanto de seu sentido; em nossas mãos ficam ou uma moldura
linguística abstrata, ou um esquema abstrato de sentido” (VOLOCHÍNOV, 2013, p. 86).
Os enunciados são relativamente estáveis, ou seja, nem estanques e imutáveis, nem
resultantes de uma produção aleatória e caótica. Essa relatividade surge de faceta individual,
já que o enunciado “pode refletir a individualidade do falante (ou de quem escreve), isto é,
pode ter estilo individual” (BAKHTIN, 2016, p. 17), gerando, com isso, certa e necessária
flexibilidade em seu emprego. Porém, ao mesmo tempo, o enunciado é essencialmente social,
pois quando falamos “não vamos de uma palavra a outra” (BAKHTIN, 2016, p. 51), as
selecionando do sistema abstrato da língua. Longe disso, o que selecionamos são enunciados
já nos dados no social, ou seja, no contexto de interação já experimentados com outros.
Fazemos isso pois já existem “formas relativamente estáveis e típicas de construção do
conjunto” (BAKHTIN, 2016, p. 38 – grifos do autor) disponíveis para atender determinadas
demandas comunicativas-interacionais.
Mesmo diante do papel de destaque dado ao elemento estilístico nos textos de Bakhtin,
ou a ele atribuídos, parece-nos que esse elemento do gênero está longe de receber a devida
atenção, ficando, muitas vezes, em segundo plano. Isso, como veremos adiante, acabado
resultando, em alguns casos, em estudos sobre o gênero discursivo como meio de ensino e
aprendizagem de Língua, seja ela materna ou não, pautados em uma suposta estabilidade plena
do gênero. Essa distorção é resultante de um longo processo de didatização que acaba,
inevitavelmente, em algum grau, refratando ideias por meio do chamado filtro pedagógico. De
acordo com Campomori (2004), “a disciplina escolar seria resultado da passagem dos saberes
da sociedade por um “filtro” específico, a tal ponto que, após algum tempo, ela pode não mais
guardar relação com o saber de origem”. No entanto, há um limite que, se chegado, leva a
completa distorção entre a prática didática e ao que a teoria que orienta essa prática propõe.
Para compreendermos como o estilo, que é justamente o que garante a vitalidade do
gênero, isto é, o que lhe permite continuar eficaz frente às mudanças de ordem interacional
entre os sujeitos, nos voltamos à teoria vigotskiana de como o comportamento humano se recria
a fim de atender às demandas do meio. Vigotski (1999) nos apresenta que o comportamento
humano é um processo de equilíbrio do organismo com o meio2. Porém, segundo o autor,
“nunca se pode admitir que essa equilibração se realize até o fim de maneira harmoniosa e
plena, sempre haverá certas oscilações da nossa balança, sempre haverá certa vantagem da
parte do meio ou do organismo.” (VIGOTSKI, 1999, p.311). Tendo em vista esse processo de
equilibração, a atividade do sujeito, seja em termos gestuais ou de uma atividade verbal, como
2 Meio aqui compreendido também como as interações humanas, não apenas do ponto de vista material e físico.
o próprio enunciado, deve estar sempre em renovação para atender às novas necessidades
impostas pelas transformações do meio. Se persistimos na metáfora da balança que o autor faz,
podemos afirmar que quando o meio, ou seja, as situações concretas, incluindo as interações
sociais, se modificam, o outro lado da balança, que corresponde ao sujeito e seu
comportamento, também deve se modificar a fim de garantir a tentativa da estabilidade em
relação ao meio, mesmo que essa instabilidade seja relativa. Por isso, também o gênero, como
atividade humana que é, nunca é completamente estável, apenas relativamente estável
(BAKHTIN, 2016; VIGOTSKI, 1999).
Essa renovação supracitada está justamente na esfera do criado da enunciação, já que,
ao mesmo tempo, o sujeito seleciona e recria uma variante pertencente a um conjunto de
enunciados de uma determinada situação interacional, isto é, de um gênero. No entanto, ao
empregar em um meio específico, um enunciado, em algum grau, se renova.
Para que se possa utilizar a teoria vigotskiana acima colocada, é imprescindível
compreender o enunciado como atividade humana. Para isso, nos pautamos em Lima (2015),
que afirma que “entre as palavras e a atividade linguística em situação real de comunicação
verbal existe a mesma relação extremamente complexa existente entre os instrumentos e a
atividade de trabalho em situação real” (874-875). E também em Clot (2016) que afirma que
“o enunciado é o protótipo de toda atividade humana” (p. 93).
Passamos agora à análise de um enunciado, e, com isso, evidenciar a importância de
trabalhar, além do que estável, a faceta instável do gênero e, com isso, observar o
funcionamento do processo de construção e recontrução do estilo, que, nesta análise, ocorre
em campanhas publicitárias de uma marca de cerveja.
O estilo como resultante de um processo de interação e luta
Para materializarmos como é possível construir uma atividade que visa o ensino e
aprendizagem de uma língua, neste caso a de Língua portuguesa, por meio de sua unidade real,
a do enunciado concreto (BAKHTIN, 2016), realizamos a análise de enunciados pertencentes
à uma campanha da Skol3, que circulou durante o carnaval do ano de 2015, veiculada em
outdoors na cidade de São Paulo.
3 Skol é uma marca de cerveja popular no Brasil e que pertence ao Grupo Ambev, que, no ano de 2017, é o
maior fabricante de cerveja e refrigerantes da América Latina.
A referida campanha selecionada traz mensagens como: “Esqueci o não em casa”;
“Topo antes de saber a pergunta”. Podemos conferir uma delas na imagem abaixo:
Fonte: Portal de notícial UOL (2015)
Este anúncio, quando direcionado ao público, gerou polêmica e foi fortemente criticado
por internautas. Segundo o público que repudiou a campanha, as frases remetem à ideia de
que as mulheres estão disponíveis no carnaval e que elas podem ser abordadas e tocadas mesmo
sem consentimento, ou seja, não tem o direito de “trazer o não”. Em um ato de resposta à tal
campanha publicitária, algumas pessoas foram até o local onde esses anúncios estavam e,
abaixo, colocaram a seguinte frase: “e trouxe o nunca”, alterando, com isso, o enunciado do
anúncio. Além disso, também ocorreram fotos divulgadas em mídias sociais nas quais algumas
mulheres demonstram sua insatisfação em relação ao anúncio com um gesto obsceno realizado
em frente a tal anúncio. Como podemos observar na imagem abaixo:
Fonte: Jornal Folha de S. Paulo (2015)
Tamanha foi a reação negativa do público, que o CONAR, Conselho Nacional de
Autorregulamentação Publicitária, abriu um processo contra essa campanha publicitária. No
resumo da decisão do CONAR, que foi julgado em Abril de 2015, é possível acessar o que
motivou a abertura do processo. Como podemos conferir:
Grupo de consumidoras reclamou de publicidade em mídia exterior da Skol,
veiculada às vésperas do Carnaval, com a frase acima. Elas consideraram que
a peça publicitária podia implicar o estímulo ao abuso, constrangimento e
intervenção na liberdade de comportamento e autonomia de decisão, em
especial da mulher (CONAR, 2015).
No mesmo resumo, também é possível conferir o argumento da empresa e de sua
respectiva agência que veiculou a propaganda:
Em sua defesa, anunciante e agência informaram os contornos da campanha em
que a peça publicitária estava inserida e que propõe ao consumidor "aceitar os
convites que a vida faz". Negou a defesa a interpretação dada à frase,
lembrando que não há imagem no cartaz de quem pudesse estar vocalizando-a,
o que, por si só, já deveria afastar qualquer entendimento de que haveria
intenção de tratar de assuntos ligados a sexo (CONAR, 2015).
No julgamento, o relator da representação das reclamações realizadas pelo público
chegou a sugerir a alteração do conteúdo da propaganda por, justamente, considerar que,
quando vista isoladamente, a frase pode dar margem à interpretação que originou a reclamação.
Como pode ser consultado no resumo da ação, o voto do relator foi vencido. O autor do
voto vencedor argumentou que “a frase não é dúbia, não faz insinuações maliciosas, tampouco
é feita como uma recomendação do anunciante” (CONAR, 2015), como a de uma possível
retirada da propaganda ou alguma outra ação que penalizasse a empresa de alguma forma.
Mesmo com essa decisão, a empresa optou pela retirada da referida campanha, e a
substituiu para a seguinte:
Fonte: Folha de S. Paulo (2015)
Como podemos observar, o anúncio “Esqueci o ‘não’ em casa” deu lugar a “ Não deu
jogo? Tire o time de campo”, seguindo da assinatura: “Neste carnaval, respeite”. Essa segunda
campanha trata-se de uma clara resposta da empresa à interpretação não desejada do público
em relação à campanha anterior. Dessa forma, só acessamos o sentido dessa última propaganda
quando conhecemos o embate do qual ela pertence.
Para compreendermos o cronotopo, isto é, “the intrinsic connectedness of temporal and
spatial relationships” (BAKTHIN, 1988, p. 84)4, nos quais esses enunciados: “Esqueci o ‘não’
em casa”, e o enunciado resposta: “esqueci o ‘não’ em casa e trouxe o nunca”, foram preferidos,
observamos a relação dialógica entre eles, e, para isso, as discussões que se faziam naquele
ano, o de 2015, sobre a liberdade e o não cerceamento da mesma realizada pelo homem sobre
o corpo da mulher. Tal debate, que é diferente, por exemplo, daquele realizado a dez ano atrás,
como podemos afirmar isso? Observando outros enunciados que também compõe campanhas
publicitárias da mesma empresa, mas datada do ano de 2005. Para isso, selecionamos uma
propaganda de suas campanhas daquele ano. Essa pode ser observada na seguinte imagem:
4 Tradução nossa: ligação intrínseca das relações temporais e espaciais.
Fonte: Quase publicitários (2010)
No anúncio acima há, no primeiro quadro, da esquerda para a direta, uma mulher
bebendo água do bebedouro, e, acima, o seguinte enunciado: “Se o cara que inventou o
bebedouro bebesse Skol ele não seria assim”. No segundo quadro, o bebedouro referenciado
no primeiro passa a ser em formato redondo e com menor altura, fazendo com que para beber
água a mulher precise se curvar. Observa-se, no segundo quadro, como a mulher está curvada
e também a roupa que a mesma veste, insinuando, claramente, uma posição sexual e, ao mesmo
tempo, expõe mais partes de seu corpo do que na posição com que bebe água no bebedouro
“regular”.
Mesmo com a clara conotação sexual, tal campanha, assim como muitas outras que
oferecem o mesmo produto em questão, a cerveja, no contexto de 2005, ano em que essa foi
veicula, não recebeu a mesma resposta que a campanha do carnaval de 2015, por exemplo.
Para compreender o porquê dessa mudança de postura em termos de aceitação do público, é
importante olharmos justamente para a mudança do cronotopo desses enunciados. Ao
observamos isso, podemos identificar o porquê da transformação, e, com isso, afirmar que as
relações sociais do público destinatário mudou, e com isso, também mudaram as atitudes
responsivas em relações aos enunciados das campanhas supracitadas, a de 2005 e a de 2015.
Com essa alteração do meio, ou seja, das relações sociais, o enunciado, visando atender
as novas demandas oriundas dessa transformaçao social, e continuar eficiente no que se propõe,
que é vender aquele produto, também se modificou, ou seja, se reestruturou, adquirindo novos
contornos estilísticos.
Essa recriação/reformulação pode ser observada, de modo claro, na última campanha
da mesma marca de cerveja que, por querer que suas campanhas tenham maior adesão nesse
público que não é mais o mesmo daquele de 2005, passou a reestruturar de modo amplo o estilo
de seus anúncios publicitários. Por exemplo, a última campanha publicitária até a realização
deste estudo foi intitulada “Skol reposter”, acompanhada pelo seguinte enunciado: “Redondo
é sair do seu passado”. Nessa campanha, há o “convite” para que ilustradoras recriem pôsteres
antigos da marca sob um novo olhar.
No vídeo oficial, denomidado de “Skol reposter”, veiculado na televisão e em mídias
sociais, há, na descrição do vídeo na plataforma youtube5, a seguinte mensagem:
Precisamos falar sobre o passado. Já faz alguns anos que a Skol não representa
as mulheres de forma objetificada em seus pôsters, anúncios e comerciais.
Mesmo assim, volta e meia essas imagens reaparecem nas redes sociais como
se fossem atuais. Olhamos para o passado para reforçar que, seja num pôster
de bar, num comercial de TV ou num post de internet, a única lente que importa
é a do respeito. Hoje e sempre. Para isso, convidamos oito ilustradoras e artistas
plásticas para recriarem alguns pôsters antigos de Skol sob um novo olhar:
atual, poderoso, libertador.
Na imagem abaixo, retirada de uma matéria realizada pela revista Veja sobre a capanha
“Skol reposter”, a revista traz um dos trabalhos realizados pelas ilustradoras que foram
chamadas para recriarem um pôster antigo da marca em questão:
Fonte:Veja (2017)
5 Plataforma de distribuição digital de vídeos.
No primeiro quadro, da esquerda para direita, está o original, já no segundo quadro o
recriado para a campanha em questão.
Podemos então observar que, como comportamento humano que é, o enunciado, ao
enfrentar, no meio no qual é dirigido, algum obstáculo que o impeça de alcançar o objetivo do
qual se propôs, como, nesse caso, vender um produto, ele é reconstruído a fim de atender às
novas exigências desse meio. Foi esse processo de recriação estilistica que evidenciamos na
reformulação das campanhas realizadas pela marca de cerveja Skol.
Considerações finais
Ao colocarmos o enunciado como foco, e, com isso, adentrarmos as relação dele com
o cronotopo, evidenciamos as suas relações dialógicas e como esse enunciado se recria a fim
de atender diferentes objeções e, com isso, gerar diferentes sentidos na busca por continuar
eficaz em seu propósito.
Como atividade humana que é, por mais que seja em grande parte social e por isso
pertencente à esfera do dado (BAKHTIN, 2016), o enunciado não pode, de modo algum, ser
compreendido e tratado apenas pelo levantando mecânico de suas características estáveis ou
elencando, de modo descompromissado, o falante, o destinatário e o modo de organização de
seus elementos composicionais. É necessário ir além, indentificar o embate dialógico e como
esse se realiza em escolhas dos elementos da construção composicional. Uma forma de
observar tal embate é justamente nos atermos ao estilo. Afinal,
o enunciado é pleno de tonalidades dialógicas, e sem levá-las em conta é
impossível entender até o fim o estilo de um enunciado. Porque a nossa própria
ideia – seja filosófica, científica, artística – nasce e se forma no processo de
interação e luta com os pensamentos dos outros, e isso não pode deixar de
encontrar o seu reflexo também nas formas de expressão verbalizada do nosso
pensamento (2016, p.59 – grifos do autor).
Visualizamos a importância de trazer o elemento estilístico do enunciado para uma
discussão metodológica da área de ensino, pois, quando observado o panorama dos últimos
20 anos, ou seja, desde a publicação dos PCNs de Língua Portuguesa, em 1998 e 1997, nos
quais é prescrito ao professor dessa disciplina que utilize gêneros textuais (ou seriam
discursivos?) como instrumento didático, as insatisfações advindas dos docentes,
principalmente sobre esclarecimentos metodológicos, ainda são presentes.
Assim, desde a publicação dos PCNs, nos quais há a marcação explícita em
fundamentar o ensino de língua materna nos gêneros, desencadeou-se uma série de respostas6,
tanto de pesquisadores como de docentes.
De acordo com o documento prescritivo:
Os textos organizam-se sempre dentro de certas restrições de natureza
temática, composicional e estilística, que os caracterizam como pertencentes
a este ou aquele gênero. Desse modo, a noção de gênero, constitutiva do texto,
precisa ser tomada como objeto de ensino (BRASIL, 1998 – grifo meu).
Assim, a partir desse documento, o professor precisa reconfigurar sua prática diária
para atender a tal prescrição. Porém, entre o que é prescrito e o que de fato é realizado sempre
há uma distância resultante das circunstâncias concretas da atividade (LIMA, 2010).
Obviamente, não pretendemos minimizar os esforços já realizados por pesquisadores e/ou
professores para elaborar materiais didáticos que auxiliem o professor em sala de aula,
principalmente aquele da escola pública, que, quase sempre, já encontra-se sobrecarregado.
Há inúmeros artigos, dissertações, livros, teses etc. que visaram sanar tais dificuldades
metodológicas. Não pretendemos desconstruir tais pesquisas já realizadas, mas contribuir
com essas, tendo em vista o enunciado concreto como unidade da comunicação e, por isso,
também do ensino de língua.
Referências
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6 Aqui o termo resposta é entendido dentro da concepção bakhtiniana, como réplica, que não necessariamente
ocorre sob forma de resposta imediata verbalizada, mas como ato responsivo que cedo ou tarde aparece como
resposta nos discursos ou no comportamento subsequente do ouvinte. Afinal, “toda compreensão é prenhe de
respostas” (BAKHTIN, 2016, p.25).
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