Post on 23-Feb-2020
O ENSINO SUPERIOR VIGIADO: ATUAÇÃO DOS ÓRGÃOS SEGURANÇA E DE
INFORMAÇÃO EM SERGIPE
JOSÉ VIEIRA DA CRUZ1
Este trabalho examina a atuação dos órgãos de segurança e de informação junto às instituições
de ensino superior em Sergipe no período de 1966, quando localizamos correspondências do
Ministério da Educação solicitando informações sobre os estudantes, até 1988, quando após
aprovação da atual Constituição, parte da legislação da política de Segurança Nacional da
ditadura civil-militar foi desmontada. Em particular, essa documentação, localizada junto ao
arquivo da Universidade Federal de Sergipe, focaliza como esses órgãos mantiveram
constante vigilância sobre os estudantes, professores e técnicos. O estudo desta
documentação, e da legislação a ela relacionada, possibilita compreender alguns dos
meandros dos mecanismos institucionais, de um Estado autoritário, que coloca na alça de mira
e sob vigilância o ensino superior e parte da sociedade. Durante esse período, a ideia de
autonomia e de reforma universitária são (re)pensadas e (re)direcionadas dentro de horizontes
menos humanistas e mais tecnicistas. O golpe civil-militar, incialmente, a ditadura militar, em
sua extensão de 21 anos, e sua posterior transição até a Constituição de 1988, colocaram a
sociedade brasileira frente a um momento de radicalização perpassado por delações,
processos, prisões e perseguições. Neste clima de acusações aqueles que faziam parte do
movimento estudantil, do movimento sindical e ou estavam próximos aos partidos de
esquerda passaram a ser visto como “agitadores”, “subversivos”, “baderneiros”,
“comunistas”. Em Sergipe, como em outros estados, estes órgãos passaram a vigiar as
manifestações políticas e culturais dos estudantes, dos professores e dos técnicos.
Comemorações, passeatas, desfiles, trotes, jornais ou mesmo grupos de estudos passaram a
ser objeto de atenção destes órgãos. O destrinchamento deste olhar institucionalizado e de
seus mecanismos de funcionamento revela particularidades e padrões de vigilância e controle,
como também, cicatrizes de um passado próximo e presente da história política nacional.
Introdução
A ditadura iniciada em março de 1964 e estendida até março de 1985, produziu efeitos sobre a
relação entre o Estado e a sociedade brasileira tanto ao longo dos seus 21 anos de duração
quanto nas décadas seguintes ao seu término. Essa relação revela diferentes níveis de relações
de poder entre militares e civis e destes, uma vez apossados do Estado, sobre determinados
setores da sociedade civil.
1 Professor Adjunto II da UFAL, Doutor em História Social (UFBA), Coordenador do Curso de História da
UFAL\Campus do Sertão, líder do Grupo de Estudos e Pesquisa em História, Sociedade e Cultura
(GEPHISC\CNPq). Autor da tese: “Da autonomia à resistência democrática: movimento estudantil, ensino
superior e a sociedade em Sergipe, 1951-1985”, defendia em 2012. E-mail: jvdcufal@gmail.com
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Dentre estes setores a nova ordem buscou desapoderar do debate político os sindicatos, os
reformistas, os nacionalistas e os estudantes envolvidos nas experiências e movimentos de
educação e de cultura popular, ou seja, todos aqueles que haviam se posicionado ao lado dos
movimentos nacionalistas, reformistas e populares. Fossem eles humanistas cristãos, como
Dom Hélder Câmara, bispo de Olinda, e seu companheiro de fé e de convicções políticas,
Dom José Vicente Távora, bispo da então recém-criada arquidiocese de Sergipe, ou militantes
políticos como o jornalista-sindicalista-estudante Paulo Barbosa, o servidor público e
vereador Agnalto Pacheco, o ferroviário Antonio Bittencourt, ou com os estudantes Mario
Jorge Vieira, Wellington Mangueira, Zelita Correia, entre tantos outros. Em outras palavras,
um dos maiores crimes cometidos pelo golpe e pela ditadura civil-militar foi o de impedir o
direito de reunião e de livre manifestação do pensamento das pessoas e dos grupos.
Embora a sociedade brasileira tenha sentido os efeitos da ditadura com intensidades
diferentes, parte sendo beneficiada e parte sendo alvo de suas ações repressivas, em termos
historiográficos, ainda não existe um consenso quanto a dimensão civil-militar da ditadura.
Feita essa ponderação, é preciso deixar claro que o objetivo desse texto é discutir o ensino
superior em Sergipe, em particular, a partir da atuação dos órgãos de segurança e de
informação.
Este trabalho, portanto, examina a atuação dos órgãos de segurança e de informação junto às
instituições de ensino superior em Sergipe no período de 1966, quando localizamos
correspondências do Ministério da Educação solicitando informações sobre os estudantes, até
1988, quando após aprovação da atual Constituição, parte da legislação da política de
Segurança Nacional da ditadura civil-militar foi desmontada. Em particular, essa
documentação, localizada junto ao arquivo da Universidade Federal de Sergipe, focaliza como
esses órgãos mantiveram constante vigilância sobre os estudantes, professores e técnicos. O
estudo desta documentação, e da legislação a ela relacionada, possibilita compreender alguns
dos meandros dos mecanismos institucionais, de um Estado autoritário, que colocou na alça
de mira e sob vigilância o ensino superior e parte da sociedade. É dentro deste contexto de
experiências, que a ideia de autonomia e de reforma universitária é (re)pensada e
(re)direcionada dentro de horizontes, por um lado, menos humanista e, por outro, mais
tecnicista.
Da DSI à AESI: o ensino superior na alça de mira dos órgãos de segurança e informação
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Examinando a correspondência mantida entre a Divisão de Segurança e Informação (DSI) e a
direção da Universidade Federal de Sergipe (UFS), no período de 1969 a 1972, observa-se
que as constantes cobranças do referido órgão de segurança e de informação à instituição de
ensino superior em Sergipe deviam-se, ao menos em parte, à demora nos encaminhamentos
solicitados, assim como às resoluções que estes encaminhamentos recebiam. Desta forma, o
não atendimento das demandas da DSI/MEC, por parte de alguns órgãos, instituições e
universidades, seja por razões de ordem burocrática ou política – a exemplo da UFSE no caso
da cassação dos direitos representação política dos estudantes em lugar de sua expulsão,
protelando as orientações determinadas pela política de Segurança Nacional –, podem ter
contribuído para a criação de mais um órgão para a comunidade de segurança e informação,
no caso as Assessorias Especiais de Segurança e Informação (AESI), como proposta de
aumentar o controle e eficiência da referida política de vigilância, sobretudo nas universidades
(CRUZ, 2008; 2012).
No caso da UFS, após o cumprimento dos tramites estatutários da instituição a AESI foi
criada em 6 de agosto de 1971, por meio da Resolução do CONSU nº 16/1971, assinada pelo
vice-reitor em exercício, Dr. Luiz Bispo. Entretanto, apesar de criada em 1971, as atividades
dessa assessoria parecem só terem sido iniciadas a partir de 1972, sendo que em 1976 ela
passa a ser denominada de Assessoria de Segurança e Informação (ASI), cujas atividades se
estenderiam até a década de 1980, só deixando de existir após a Constituição de 1988
(CARVALHO, 2008).
A criação dessas assessorias de segurança e informação nas universidades teve, portanto,
como um dos seus efeitos o controle da autonomia dessas instituições frente às políticas e
deliberações estabelecidas pela ditadura civil-militar, sobretudo, no tocante a política de
segurança nacional. Não obstante esse objetivo, a ampliação das instituições que formavam a
comunidade de segurança e de informação, no caso com as AESI/ASI, não impediu que
determinados espaços e mecanismos de negociações fossem utilizados por “alguns dirigentes
universitários [que] se empenharam em proteger certos membros da comunidade
universitária” (MOTTA, 2008:04).
A atuação da AESI/ASI na Universidade Federal de Sergipe
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A atuação da AESI/ASI junto a UFSE foi marcada por proibições, por busca de informações e
por cobranças, cujo objetivo mirava o controle de funcionários, de professores e, sobretudo,
de estudantes. Em relação aos estudantes os documentos eram taxativos quanto ao controle,
vigilância e interferência que a mencionada assessoria deveria exercer. As práticas de controle
e vigilância iam desde o encaminhamento de fichas de qualificação dos discentes candidatos
as vagas de representantes nos órgãos deliberativos da universidade até os casos em que a ASI
não recomendava a posse de estudantes em entidades estudantis para os cargos para os quais
haviam sido eleitos (AESI/UFSE, Of. nº 05/1973).
Ilustra essa discussão o caso da recomendação feita pela ASI, em setembro de 1977, sob a
chefia do Coronel R-1 José Brito da Silveira, de que não havia condições convenientes para
que o estudante José Luiz Gomes tomasse posse na gestão eleita para a direção do Diretório
Acadêmico (DA) Silvio Romero naquele ano. E ainda que a posse da chapa “Atitude”,
possivelmente vinculada ao referido DA do Curso de Direito, estaria condicionada, com a
aquiescência da vice-reitoria, ao “processamento do LDB [ Livro de Dados Biográficos] por
essa Assessoria” (ASI/UFSE, Of. nº 50/1977).
Este fato significava que os membros da referida chapa só poderiam tomar posse após o
levantamento de seus dados biográficos. Segundo Carvalho, essa ficha de Levantamento de
Dados Biográficos (LDB) parece ter sido uma das “mais almejadas pela AESI”, pois
possibilitava a construção de um perfil tanto ideológico quanto das “atividades políticas da
pessoa investigada, fosse estudante, funcionário ou professor, indispensável à nomeação de
alguém para um cargo público” ou, no caso em discussão, a um cargo inerente a representação
estudantil. É preciso registrar que apesar dos esforços envidados não conseguimos localizar o
referido livro ou ficha: LDB. A localização deste tipo registro possibilitaria aos pesquisadores
uma discussão mais ampliada sobre os significados e alcances desta prática de controle,
vigilância e repressão.
Exemplos dessa ordem indicam o poder de interferência dessa Assessoria tanto em relação a
autonomia das entidades estudantis quanto em relação a autonomia da universidade. Esse tipo
de interferência e de controle é claramente explicito na solicitação encaminhada pela AESI,
através de ofício circular, ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/FUFSE, transmitindo
as “instruções recebidas da DSI/MEC” quanto a necessidade de controle do processo eleitoral
que estava ocorrendo no Diretório Acadêmico daquele Instituto (AESI/UFSE, Of. cir. nº
01/1973). Neste documento, observa-se que a AESI mantinha constante correspondência
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oficial com a reitoria, sobretudo a vice-reitoria e os institutos de ensino que constituía a
universidade. Essa correspondência, em regra, era classificada em vermelho como
confidencial, reservada ou sigilosa, conforme orientação do Regulamento para Salvaguarda de
Assuntos Sigilosos (RSAB). Instruções quanto ao uso dos dispositivos desse regulamento
foram transmitida aos institutos de ensino da UFS em correspondência expedida em 01 de
junho de 1977 (ASI/UFSE, Of. cir. nº 01/1977).
A estruturação dessas práticas de vigilância e ainda a infiltração de agentes da Polícia Federal
em meio a comunidade universitária faziam com que professores, funcionários e estudantes
mantivessem certa cautela e desconfiança, afinal ninguém sabia ao certo com quem estava
falando. Ao recordar esse cotidiano, Antônio Porciano Bezerra, então estudante do curso de
letras entre 1969 e 1971, atualmente professor do curso de letras da UFS, enfatiza que naquele
momento “a universidade era uma instituição vigiada, você não sabia ao fundo com quem
você estava falando” e “a sua vida era colocada em um cartão, numa ficha, em um processo,
qualquer coisa assim, nas mãos do SNI...” (BEZERRA, 2008).
Ruy Belém de Araújo, estudante de história entre 1974 e 1979, militante do movimento
estudantil, professor do curso de história da UFS, liderança sindical do magistério, menciona
que a AESI e depois a ASI ficava localizada no prédio da Reitoria situado na rua Lagarto,
centro de Aracaju, só passando para o atual campus universitário a partir da década de 1980,
após o término de sua construção. Nesse período, conforme seu relato sabia-se que o
cotidiano da comunidade universitária era acompanhado através de fichas de identificação e
de relatórios. Segundo Araújo, “tinham professores que eram delatores, que faziam parte da
ADESG [Associação dos Estagiários da Escola Superior de Guerra] e esses professores
passavam informações. A gente desconfiava de muitos... [o] duro [era] provar!”. Araújo
também relata ação de polícias federais infiltrados em eventos e na própria sala de aula.
(BELÉM, 2018).
Além dessas práticas de controle e vigilância, a AESIs/ASIs produziam e divulgavam uma
espécie de “informativo/boletim” com as suas respectivas ações entre os órgãos dessa
comunidade instalados em universidade de várias partes do país. A este respeito, Motta, chega
a classificar, segundo o mencionado tipo de correspondência recebida pela AESI/UFMG de
AESIs de outras partes do país, a AESI/UFS como uma das mais organizadas (2008: 39).
Essa organização pode ser traduzida no empenho que a AESI/UFS procurava demonstrar no
trabalho de controle e de vigilância para com os membros da comunidade universitária. Em
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particular, no tocante a coleta de informações quanto a circulação de publicações proibidas,
quanto as programações dos eventos estudantis, quanto as possíveis viagens ou
relacionamentos de professores ou de alunos com pessoas ou com países socialistas, entre
outros. Como fica evidente nas informações requeridas pela AESI/UFS ao diretor do Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas, prof. Fernando de Figueiredo Pôrto, solicitando com
urgência informações que viessem a confirmar ou não a participação que professores ou
estudantes estavam recebendo informações “oriundas da “Cortina-de-ferro” (AESI/UFSE, Of.
cir. nº 01/1974).
Ainda em relação a essa correspondência entre a AESI e a UFS, chama atenção um relatório
baseado em documentos supostamente apreendidos em um aparelho do Partido Comunista
Brasileiro (PCB). Este relatório foi divulgado pela referida assessoria com a intenção de
informar às autoridades acerca do grau de organização do movimento estudantil e de como os
movimentos de esquerda estavam infiltrados no Movimento Universitário (MU). Mas o
conteúdo deste relatório, feitas a devidas ponderações em razão da finalidade de sua
divulgação, também revela como quadros do PCB estavam avaliando o movimento estudantil,
a partir da conjuntura política naquele momento.
O mencionado relatório informa o fechamento de diretórios acadêmicos, o fechamento da
UNE, a aposentaria de professores e o desmonte da imprensa estudantil. Essa é a avaliação
produzida pelo PCB nos documentos apreendidos e sintetizados no documento divulgado pela
AESI/ASI. Estas informações, mesmo que filtradas e manipuladas, revelam não só a intenção
dos militares em informar a situação em que se encontrava o movimento estudantil
universitário, como também deixa escapar a leitura do PCB a respeito daquele período
histórico, em particular, a respeito do movimento estudantil. Entre as discussões que esse
relatório deixa sobressair a crítica do PCB às tendências que enveredaram pela luta armada, as
quais o partido também atribui parte da responsabilidade pelo enrijecimento imposto pela
ditadura contra os movimentos de massas.
Nesse período, portanto, além das orientações e cobranças constantes – cujo objetivo era que
as universidades controlassem os estudantes, impedindo-os de realizar atividades
classificadas, pelos órgãos de segurança e informação, como “agitações subversivas” –, foram
divulgadas informações sobre livros que não deveriam ser lidos, os perigos da imprensa
estudantil, a exemplo do jornal “Movimento”, a necessidade de proibir a participação dos
estudantes em encontros, numa clara referência à então recente memória do XXX Congresso
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da UNE, realizada em Ibiúna, São Paulo, em 1968, além do controle da atuação de
funcionários e de professores.
A atuação velada da ASI
As fontes sobre o período da ditadura, em particular as relacionadas ao controle que os órgãos
de segurança e informação impuseram à comunidade universitária, sofreram de problema
semelhante com aquele atribuído a Ruy Barbosa. O então Ministro da Fazenda do Governo
Republicano Provisório, que havia mandado queimar a documentação referente à mancha
representada pela escravidão na história nacional. Este fato serviu, por algum tempo, como
alegação de que não se podiam estudar determinadas questões sobre a escravidão no Brasil
por falta de documentos escritos, argumento que tem sido contestado e enfrentado, sobretudo
a partir da década de 1980, por inúmeras pesquisas realizados em arquivos os mais diversos
(SLENES, 1983).
Algo parecido ocorre com a documentação relacionada aos órgãos de segurança e informação,
parte dela parece ter sido filtrada pelas autoridades responsáveis à medida que o processo de
redemocratização avançava no país. Essa hipótese parece se comprovar quando se examina os
dossiês dos estudantes fichados pelo DOPS em Sergipe, neles encontra-se pouca ou nenhuma
informação. Esta constatação alimenta a suspeita de que esses dossiês passaram por um
processo de esvaziamento e filtragem.
A outra parte, a referente à documentação produzida pela AESI/ASI junto a UFSE ou UFS,
como é conhecida, foi alvo dos protestos estudantis que estavam sendo deflagrados em várias
partes do país contra esses órgãos e suas documentações. Ilustra esse contexto, o episódio em
que os estudantes da Universidade Federal do Ceará (UFC) descobriram os arquivos da ASI,
que funcionavam junto aquela universidade e promoveram uma invasão com a intenção de
interromper as atividades daquele órgão de vigilância que se mantinha em funcionamento, em
pleno período de transição democrática, desativando suas atividades.
Nesse sentido, a invasão da ASI, na UFC, não parece ter sido um caso isolado. A análise da
entrevista de Gisela Mendonça, então presidente do UNE, intitulada a “UNE segue os
rastros”, revela que o movimento estudantil universitário se colocava, naquele momento, entre
1982 e 1988, de modo engajado contra o Sistema Nacional de Informações (SNI) e as ASIs
que continuavam funcionando nas universidades (MENDONÇA, 1987).
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Em Sergipe, pelos menos dois fatos ilustram esse posicionamento: A denúncia de que agentes
da Polícia Federal e funcionários da ASI/UFS estavam (re)ativando as atividades da política
de segurança nacional, em pleno contexto de abertura política; e a outra relacionada a invasão
e destruição dos arquivos da ASI por estudantes, sob a liderança do DCE/UFS.
O primeiro fato, reveste-se de uma denúncia feita ao jornal Gazeta de Sergipe, em 01 de
outubro de 1982, pelo presidente licenciado do DCE/UFS – o então estudante de direito
Marcelo Déda Chagas, a época candidato pelo recém fundado Partido dos Trabalhadores (PT)
as eleições para o legislativo estadual. A denúncia em questão dizia respeito à ação de agentes
da Polícia Federal e de servidores da ASI que, agindo em conjunto, coletavam informações
das entidades sindicais e estudantis no campus universitária da UFS (GAZETA DE
SERGIPE, 01/10/1982).
O fato novo dessa denúncia não era a ação em conjunto de agentes da Polícia Federal com os
funcionários da ASI/FUFSE, essa relação já existia desde a década de 1970, conforme relatos
já discutidos de Ruy Belém de Araújo e por Antônio Porciano Bezerra. Mas sim ao fato de
que após um breve período de “suposta” desativação da ASI, ocorrido nos últimos anos da
década 1970, em concomitância com o processo de abertura política, a partir dos primeiros
anos da década de 1980 a comunidade universitária passou a verificar de forma invasiva o
retorno das atividades vigilância e controle dos agentes dos mencionados órgãos.
Para Marcelo Déda Chagas, essas ações representavam “mais uma prova da falta de
autonomia da Universidade Brasileira e um afronte a comunidade universitária”, e
complementa, “que enquanto o presidente João Batista Figueiredo, discursa na ONU falando
em ‘liberdade para os pobres’, no Brasil se vê cidadãos com suas liberdades ameaçadas pelos
serviços de informações do Regime Militar” (GAZETA DE SERGIPE, 01/10/1982).
Neste sentido, não obstante o uso político dessa denúncia, realizado em um contexto de
campanha eleitoral, ela revela o sentimento da comunidade universitária em face da incomoda
atuação da ASI e de agentes da Polícia Federal a serviço da política de segurança nacional.
Situação comparável a avaliado na entrevista de Gisela Mendonça, presidente da UNE em
1986/1987, em relação à campanha que a UNE promoveu contra o SNI e os demais órgãos da
comunidade de segurança e informação que continuavam a desenvolver suas atividades em
meio o processo de transição democrática que o país atravessava.
Já o segundo fato, relacionado à resistência estudantil frente à ASI/UFS, ocorreu de forma
muito semelhante aos acontecimentos transcorridos com a invasão pelos estudantes da UFC a
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ASI daquela universidade. Os estudantes da tendência Viração, que reunia em seus quadros
estudantes do Partido Comunista do Brasil (PC do B), sob o mote de “desmoralizar a
ditadura”, além de promoverem pichações de muros contra a ditadura, contra o aumento das
passagens de ônibus, entre outras bandeiras, no período de 1982 a 1985, invadiram a sala da
ASI no prédio da Reitoria da UFS, “onde estavam dois funcionários, recolheram os
documentos à vista, colocaram em sacos, conduziram-nos para fora do prédio e incineram-nos
ao lado”. E ainda teriam ficado em volta do túnel em chamas “festejando em algazarra a
destruição de grande parte da memória da repressão na Universidade Federal de Sergipe”
(DANTAS, 1997:258).
Ao escrever o livro “A tutela militar em Sergipe. 1964-1984: partidos e eleições num estado
autoritário”, publicado em 1997, Dantas, após avaliar as entrevistas a ele concedidas por
Frederico Lisboa Romão, conhecido como Fredão, e por Carlos Roberto dos Santos,
conhecido como Cauê – que juntamente com Álvaro Vilela e Edvaldo Nogueira, entre outros
–, participaram da operação estudantil de invasão a ASI/UFS, argumentou em tom de
desaprovação o ato que estes estudantes praticaram. Segundo Dantas, sob “a alegação de
desmoralizar a ditadura, [estes estudantes] privaram assim a sociedade de um patrimônio
documental, gerado durante o regime autoritário, que certamente muito ajudaria a
compreender o período” (DANTAS, 1997:258 e 276). E ainda que, após essa operação os
funcionários da mencionada Assessoria trataram de recolher os documentos restantes dando
destino até o momento ignorado.
Após a publicação do mencionado livro, Carlos Roberto da Silva, Cauê, uma das lideranças
estudantis entrevistadas por Dantas sobre a referida operação dos estudantes da UFS que
invadiram e queimaram os arquivos da ASI, lamentou e discordou da versão apresentada pelo
citado historiador, tendo por causa dessa divergência publicado uma resenha no jornal Folha
da Praia, periódico alternativa que circulava no estado na década de 1990, no qual ele afirma
que o fato não tinha ocorrido bem assim, ao contrário os militantes de esquerda e os DCEs em
várias partes do Brasil, após terem conhecimento dessa documentação procurá-lo
salvaguardá-la. Neste sentido, segundo a versão de Silva, a esquerda após “fim do regime
militar, procurou reaver em diversos lugares a documentação - em grande maioria secreta, que
os órgãos de informação haviam acumulado”. E que em ralação aos documentos da ASI\UFS
“resolvemos convocar os estudantes, rapidamente, para uma investida na reitoria a fim de
salvaguardar a documentação que, aliás, nos interessa de perto”, mas ressalta que haviam
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chegado tarde “para nossa frustração, o que havia era um amontoado de papéis picados
longitudinalmente” (CAUÊ, 1998:11).
A versão apresentada por Cauê, uma década depois da referida “operação estudantil” ter
ocorrido, e tempos depois da entrevista que ele havia concedida a Dantas, parece refletir mais
os debates e discursos sobre a história e memória da ditadura civil-militar, visto a partir da
década de 1990, que o sentimento político que havia movido as entidades estudantil e suas
lideranças a partir da década de 1980 na luta simbólica contra a comunidade de segurança e
informações e a política de segurança nacional. A respeito deste aspecto simbólico, CAUÊ
lamenta a destruição dos documentos, mas enfatiza que ela foi um ato simbólico de vitória
“pela extinção da ASI, decidimos queimar aquilo que já houvera sido destruído, ou seja
filipetas inaproveitáveis dos documentos que constituíram parte da história repressiva do
regime, na UFS (CAUÊ, 1998:11).
Não obstante a importância simbólica desses protestos, ainda que tenha sido queimada tão
somente filipetas, e mesmo considerando a intenção de apagar os traumas, ressentimentos e
implicações que esses documentos poderiam suscitar no período de sua destruição. Os
registros destes órgãos de segurança e informação configuram-se em importantes fontes de
estudo sobre os estudantes, os professores, os técnicos-administrativos, a universidade e a
sociedade brasileira, no período.
Observa-se, assim, um duplo desmonte desses arquivos: um oficial, ocorrido com o
esvaziamento dos arquivos pelas autoridades, e outro social, decorrente dos protestos
estudantis contra as reminiscências da ditadura. Esses desmontes, por algum tempo,
alimentaram a impressão de que só seria possível trabalhar o assunto através de entrevistas,
notas esparsas de jornais ou acessando arquivos do SNI ou sobre a ditadura localizados no Rio
de Janeiro, São Paulo ou Brasília.
Mas apesar de tudo isso, nos arquivos do Programa de Documentação e Pesquisa Histórica –
PDPH/DHI/UFS – e no Arquivo Central da UFS, alguns registros sobreviveram e têm sido
trabalhados nas últimas décadas. Dentre esses registros destacam-se: correspondências
expedidas e recebidas, atas de conselhos, peças teatrais censuradas, termos de inquérito e
relatórios, entre outros.
Pioneiro na trilha desses documentos, Dantas, em A Tutela Militar em Sergipe, não apenas
descortinou a importância histórica dessa documentação como também apontou a relevância
que a recuperação desse acervo documental pode revelar para história do período. Uma
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história, da qual ele mesmo, José Ibarê Costa Dantas, foi participe, primeiro na condução de
estudante de história submetido a um inquérito disciplinar e segundo na condição de professor
de ciência política.
Outros trabalhos, sobretudo no campo da arquivística, tem se esmerado na busca e
sistematização dessa documentação a exemplo do trabalho de Carvalho (2005), sobre a
presença dessa documentação no PDPH/DHI/UFS, e o trabalho de Santos e Santos (2009),
sobre os documentos relacionados ao movimento estudantil existentes no Arquivo Central da
UFS. Além desses trabalhos também é importante registrar a pesquisa preliminar de Carvalho
(2008) sobre a história da AESI na Universidade Federal de Sergipe.
Considerações finais
O conjunto dessas pesquisas tem demonstrado que apesar dos documentos destruídos, dos
documentos cujo destino ainda é ignorado é possível com o suporte da história oral, das
pesquisas junto à periódicos e, sobretudo, das pesquisas dos documentos enviados ou
recebidos por outras instituições, a exemplo das universidades, seus institutos e departamento,
e do acervo do projeto Memórias Reveladas, discutir os significados da política de segurança
e informação sobre a autonomia da universidade em tempos de resistência democrática.
Desta forma, o golpe civil-militar, incialmente, e a ditadura civil-militar, em sua extensão de
21 anos, e sua posterior transição até a Constituição de 1988, colocaram a sociedade brasileira
frente a um momento de radicalização perpassado por delações, processos, prisões e
perseguições. Neste clima de acusações aqueles que faziam parte do movimento estudantil, do
movimento sindical e\ou estavam próximos aos partidos de esquerda passaram a ser visto
como “agitadores”, “subversivos”, “baderneiros”, “comunistas”. Em Sergipe, como em outros
estados, estes órgãos passaram a vigiar as manifestações políticas e culturais dos estudantes,
dos professores e dos técnicos. Comemorações, passeatas, desfiles, trotes, jornais ou mesmo
grupos de estudos passaram a ser objeto de atenção destes órgãos. O destrinchar deste olhar
institucionalizado e de seus mecanismos de funcionamento revela particularidades e padrões
de vigilância e controle, como também, cicatrizes de um passado próximo e presente da
história política nacional.
Fontes e Referências
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AESI/UFSE. Of. nº 50/1977, enviada ao Vice-Reitor da FUFSE, 02 de dezembro de 1977.
Fundo Gabinete do Vice-Reitor, GVR/10.
AESI/UFSE. Of. cir. nº 01/1974, 19 de março de 1974. In: PDPH, ofícios recebidos pelo
IFCH.
AESI/UFSE. Of. cir. nº 01/1977, sobre o envio do RSAB nº 10 a diretor do IFCH,01 de junho
de 1977. XXX. In: PDPH, ofícios recebidos pelo IFCH.
AESI/UFSE. Of. nº 05/1973, enviada ao diretor da IFCH, 03 de outubro de 1973. In: In:
PDPH, ofícios recebidos pelo IFCH.
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documentos apreendidos e informações obtidas. In: PDPH, ofícios recebidos pelo IFCH.
ARAÚJO, Ruy Belém de. Entrevistado por Gislaine Santos Carvalho. Aracaju/SE,
08/08/2008.
BEZERRA, Antônio Porciano. Entrevistado por Gislaine Santos Carvalho. Aracaju/SE,
14/08/2008.
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Militar na UFS (1969-1977). São Cristóvão: UFS, 2005 (monografia de graduação).
CARVALHO, Gislaine Santos. Espionagem, vigilância e perseguição: a história da AESI em
Sergipe. São Cristóvão: DHI/UFS, 2008 (monografia de graduação).
CAUÊ, Carlos. “Sobre a tutela militar”. In: Folha da praia. Ano XVII, nº 654, Aracaju, 29
de maio de 1998, p. 11.
CLEMENTE, José Eduardo Ferraz. “Espionagem, vigilância e resistência: o Instituto de
Física da Universidade Federal da Bahia durante a ditadura militar (1964 -1979)”. In: Revista
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CRUZ, José Vieira da. “Estudantes vigiados: órgãos de segurança e informação na
Universidade Federal de Sergipe (1969-1977)”. In: Ponta de Lança, São Cristóvão, v.2, n. 3,
pp. 93-109, out. 2008 – abr. 2009.
____. Da autonomia à resistência democrática: movimento estudantil, ensino superior e a
sociedade em Sergipe. Salvador: PPGH/UFBA, 2012. ( Tese de doutorado).
DANTAS, José Ibarê Costa. A tutela militar em Sergipe. 1964-1984: partidos e eleições num
estado autoritário. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
13
GAZETA DE SERGIPE. Deda denuncia: PF e seguranças do Campos ameaçam estudantes.
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