O DESENVOLVIMENTO DA NARRATIVA NA ... -...

Post on 04-Dec-2018

217 views 1 download

Transcript of O DESENVOLVIMENTO DA NARRATIVA NA ... -...

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

CENTRO PEDAGÓGICO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

TEREZINHA DA PENHA DE JESUS MANOLA

O DESENVOLVIMENTO DA NARRATIVA NA CRIANÇA PEQUENA

VITÓRIA 2006

TEREZINHA DA PENHA DE JESUS MANOLA

O DESENVOLVIMENTO DA NARRATIVA NA CRIANÇA PEQUENA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro Pedagógico da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre em Educação, na linha de pesquisa de processos instituintes, ação educacional e aprendizagem. Orientadora: Profª.Drª. Ivone Martins de Oliveira

VITÓRIA 2006

Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)

(Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)

_________________________________________________________

Manola, Terezinha da Penha de Jesus, 1966 -

M285d O desenvolvimento da narrativa na criança pequena / Terezinha da

Penha de Jesus Manola – 2006.

187 f. : il.

Orientador: Ivone Martins de Oliveira.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Espírito Santo,

Centro de Educação.

1. Narrativa. 2. Narrativa de ficção. 3. mediação pedagógica. 4.

Literatura Infantil. I. Manola, Terezinha da Penha de Jesus. II. Universidade

Federal do Espírito Santo. Centro de Educação. III. Título.

CDU: 37

_________________________________________________________

TEREZINHA DA PENHA DE JESUS MANOLA

O DESENVOLVIMENTO DA NARRATIVA NA

CRIANÇA PEQUENA

Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Educação do Centro Pedagógico da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre em Educação, na linha de pesquisa de processos instituintes, ação educacional e aprendizagem.

Aprovada em 08 de Dezembro de 2006.

COMISSÃO EXAMINADORA

______________________________________ Profª. Drª. Ivone Martins de Oliveira Universidade Federal do Espírito Santo Orientadora ______________________________________ Profª. Drª. Denise Meireles de Jesus Universidade Federal do Espírito Santo ______________________________________ Profª. Drª. Elizabeth dos Santos Braga Universidade São Francisco ______________________________________ Profª. Drª. Sônia Victor Lopes Universidade Federal do Espírito Santo

À minha mãe - cigarra e formiga, trabalhadora e sonhadora - exemplo de força, coragem e ternura a quem me espelhei para chegar até aqui.

AGRADECIMENTOS

A Deus, em primeiro lugar, por me dar forças para continuar, nos momentos em que

tudo parecia indicar o contrário; e por colocar pessoas na minha vida que direta ou

indiretamente contribuíram para a realização deste trabalho.

A minha família, Lourdes, Altair, Swelem e Swlivam, meu porto seguro. Pelo

sacrifício de se manterem firmes e fortes no apoio, na paciência, na confiança e na

compreensão, para que eu conseguisse realizar esse trabalho, mesmo nos

momentos que me impediram de lhes dar a devida atenção.

O apoio sereno e dedicado da minha professora-orientadora Ivone Martins de

Oliveira, que aceitou o desafio de realizar um trabalho de mediação que significou

não apenas transitar em outros campos de conhecimentos, mas, sobretudo, na

reconstrução do meu próprio conhecimento. A você, minha profunda gratidão pelo

carinho e amizade em todos os momentos partilhados.

Às professoras Drªs. Denise, Sônia pelas valiosas sugestões e indicações e por me

incentivar e tranqüilizar na ocasião do exame de qualificação e a Profª.Drª. Elizabeth

pela disponibilidade de participar da banca.

Aos amigos e amigas, em especial, Waldir, Mariano, Ana Maria, Joelma, Marlene e

Waleska que sempre estiveram do meu lado, torcendo por mim. Deles extraí a

inspiração e o valor da amizade e confiança.

À escola e as professoras que tão gentilmente me receberam para realizar esta

pesquisa e a todas as crianças a quem ofereço esta poesia:

“Grande é a poesia,a bondade e as danças. Mas o melhor do mundo são as crianças”. Fernando Pessoa

“O mundo historicamente construído pelo homem existe pela possibilidade humana de fabular, fantasiar, imaginar, enfim narrar. Há narrativa em tudo. Em toda parte e na modernidade reina o desejo pela narrativa, em todas as potencialidades e pluralidade de sentidos.” Joana Cavalcanti

RESUMO

Esta dissertação objetiva estudar o desenvolvimento da narrativa em crianças da

educação infantil na faixa etária de 1 ano e 7 meses a 3 anos, tendo como lócus um

Centro Municipal de Educação Infantil localizado no município de Vitória. Partindo do

pressuposto de que o desenvolvimento das crianças acontece no meio cultural ao

qual pertencem, através das interações sociais, procuramos realizar esta pesquisa

tendo como referência a perspectiva histórico-cultural, que ressalta a ação dos

sujeitos envolvidos no processo de ensino-aprendizagem e a importância da

mediação nesse processo. Propomos uma reflexão em torno da construção da

narrativa como um aspecto da linguagem oral cujo estágio mais desenvolvido é

adquirido na forma de narrativa de ficção. Nesse sentido, foram destacadas algumas

contribuições da literatura infantil no desenvolvimento da linguagem oral e da

narrativa de ficção, especialmente da contação de histórias, que pode propiciar

condições para que as crianças ampliem sua fala e se apropriem de elementos

necessários à construção da narrativa. Assim, com vistas a apurar o percurso da

criança no desenvolvimento da linguagem narrativa, adotamos o método "genético-

experimental" de Vigotski, que implicou uma participação ativa da pesquisadora,

junto com as professoras da turma e as crianças, de forma a criar condições

apropriadas para que o desenvolvimento da narrativa pudesse ser observado mais

claramente. Diante disso, enfocamos nossas análises nas manifestações verbais e

não-verbais das crianças, ocorridas em situações de contação de histórias pelas

professoras e pesquisadora e de reconto dessas histórias pelas crianças,

procurando identificar os aspectos que contribuíram para o desenvolvimento da

narrativa de ficção. A análise dos eventos observados apontou a possibilidade de se

destacar três momentos significativos na trajetória da criança rumo à essa narrativa:

o predomínio do real; as oscilações entre o real e o imaginário e indícios da narrativa

de ficção. Além disso, a análise permitiu-nos, ainda, destacar aspectos referentes à

mediação pedagógica no desenvolvimento dessa narrativa. Consideramos que a

literatura infantil, com seus mais variados e significativos textos narrativos (contos,

fábulas, poemas, narrativas modernas, narrativas de imagens), e a ação mediadora

do professor são elementos constitutivos do processo de desenvolvimento da

narrativa de ficção na criança.

Palavras-chave: narrativa, narrativa de ficção, mediação pedagógica e literatura

infantil.

ABSTRACT

This study aims at analyzing the narrative skills development in preschool children aged

between 1.7 years old and 3 years old at a Centro de Educação Infantil in Vitoria, ES.

Assuming that the development of children takes place in their cultural milieu through

social interactions, we adopted a historical-cultural approach, which emphasizes the role

of the actors involved in the process and the importance of mediation. We view narrative

development as an aspect of oral language, with narrative fiction marking its most

developed stage. Accordingly, we explored some contributions of children’s literature

towards the development of oral language and narrative fiction. We stressed the role of

story-telling, which may boost oral development and contribute to the internalization of the

structures involved in narrative fiction. To make our observations more accurate, we have

grounded our research on Vigotski’s genetic-experimental method, which calls for a more

active participation of the researcher, who thus works more closely together with teachers

and children. We focused our analysis on the verbal and non-verbal manifestations of

children during the story-telling by the teachers and the researcher, followed by the

retelling of the stories by the children themselves. We could observe three stages of a

skills development continuum in the young children’s journey to the learning of narrative

fiction: the predominance of the real; oscillations between the real and the imaginary; and

finally, their first steps towards narrative fiction. We were also able to detect the

importance of pedagogical mediation in the development of narrative fiction. Our research

points to the fact that children’s literature, with its diversity and richness of narratives

(short-stories, tales, poetry, contemporary narratives, visual narratives) together with the

mediating role of the teacher are structuring elements in the process of acquiring narrative

fiction skills by young children.

Palavras-chave: Narrative, Narrative fiction, Pedagogical mediation, Children’s literature.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..........................................................................................................11

CAPÍTULO I ..............................................................................................................15

1 A LINGUAGEM E A NARRATIVA NA CRIANÇA PEQUENA...............................15

1.1 REVISANDO A LITERATURA.............................................................................18

1.2 DESENVOLVIMENTO INFANTIL: DA NARRATIVA À NARRATIVA DE

FICÇÃO.....................................................................................................................37

1.2.1 Narrativa de Ficção ........................................................................................43

1.2.2 O Desenvolvimento da Narrativa na Criança ...............................................44

1.2.3 O Desenvolvimento da Narrativa de Ficção na Criança Pequena..............51

CAPÍTULO II .............................................................................................................54

2 LITERATURA INFANTIL: ESTUDOS E DEFINIÇÕES..........................................54

2.1 LITERATURA INFANTIL: CONCEITO E FUNÇÕES ..........................................58

2.2 LITERATURA INFANTIL: ASPECTOS HISTÓRICOS E FUNÇÕES...................62

2.3 LITERATURA INFANTIL, IMAGINAÇÃO E FANTASIA.......................................69

2.4 CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS: POSSIBILIDADES PARA O PENSAR ................76

E O FAZER DOCENTE.............................................................................................76

CAPÍTULO III ............................................................................................................81

3 CONTEXTUALIZANDO A PESQUISA ..................................................................81

3.1 A ABORDAGEM HISTÓRICO-CULTURAL E O MÉTODO GENÉTICO-

EXPERIMENTAL.......................................................................................................83

3.2 O CAMPO DA PESQUISA ..................................................................................87

3.3 BERÇÁRIO II: SUJEITOS DA PESQUISA..........................................................92

3.4 OS PROCEDIMENTOS DA PESQUISA .............................................................93

3.5 A CONTAÇÃO DE HISTÓRIA COMO PROPOSTA DE....................................102

INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA .............................................................................102

4 O DESENVOLVIMENTO DA NARRATIVA DE FICÇÃO NA CRIANÇA: SOBRE

O REAL E O IMAGINÁRIO.....................................................................................108

4.1 A NARRATIVA DA CRIANÇA E O PREDOMÍNIO DO REAL............................113

4.1.1 A Narrativa de Ficção e a Oscilação entre o Real e o Imaginário ............132

4.1.2 A Narrativa de Ficção...................................................................................143

4.1.3 Medo e Desenvolvimento da Narrativa de Ficção na Criança Pequena ..154

4.1.4 A Narrativa de Ficção e a Mediação Pedagógica ......................................160

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................173

6 REFERÊNCIAS....................................................................................................178

ANEXO – 1 PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO..............................................................181

ANEXO – 2 QUESTIONÁRIO.................................................................................182

11

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo investigar o desenvolvimento da narrativa na

criança pequena, enfatizando o papel dos mediadores e o recurso da contação de

histórias na construção desse aspecto da linguagem oral.

Ao discorrer sobre os motivos que nos levaram a realizar o presente trabalho de

pesquisa, gostaríamos, antes de tudo, de registrar a paixão pela educação infantil e

pela literatura infantil. É no processo de interação e interlocução com os diversos

sujeitos - processo comum aos seres humanos - que fizeram e fazem parte do nosso

cotidiano pessoal e profissional que se sustenta nosso trajeto de vida, no qual fomos

nos constituindo educadora, sem deixar de assumir outros papéis (homo duplex).

Meu processo inicial de leitura ocorreu bem antes do ensino formal. Atribuo meu

entusiasmo pelas palavras, livros e histórias, primeiramente à minha avó - exímia

contadora de “causos” - que com sua doce voz, embalava meus sonhos com suas

cantigas de ninar, e depois, quando um pouco mais crescida, continuava me

seduzindo com suas histórias na maioria das vezes assustadoras, mas

intensamente encantadoras.

Minha mãe ampliou meu amor pelos livros e pela leitura, colocando-me em contato

com os clássicos infantis, gibis e revistas. Entre um afazer e outro, ela me ensinou a

ler, antes mesmo de entrar para a escola. Sem dúvida, eu a considero minha

primeira professora, entre tantas outras que vieram depois dela, deixando suas

marcas em mim.

Mas foi na Comunidade Eclesial de Base (CEB), precisamente através de um padre

que me apresentou a “Pedagogia do Oprimido” de Paulo Freire, que troquei a

profissão metalúrgica pelo magistério.

O desejo de investigar as implicações das interações verbais no processo da

construção da narrativa pela criança, partiu do confronto entre a minha formação

acadêmica e a experiência profissional.

12

Tentando superar as limitações na tarefa de educar as crianças pequenas, ingressei

no curso de Pedagogia da UFES, abstraindo as primeiras reflexões teóricas que não

só contribuíram para ampliar meus conhecimentos na tarefa de compreender e

educar essas crianças, como também me fizeram sair da zona de conforto e buscar

respostas às contradições entre o dizer e o fazer (teoria e prática) que se instalavam

no âmbito da educação infantil.

O curso de formação de contadores de história, promovido pelo Departamento de

Biblioteconomia da UFES, foi mais uma experiência significativa para minha prática

em sala de aula. Mais do que técnicas, aprendi a relacionar os princípios teóricos às

ações práticas com a literatura infantil. Servindo-me da experiência de contar

histórias para as crianças, foi possível constatar o interesse e o prazer que elas

tinham por esta atividade. Quem tem ou teve (como eu tive) a oportunidade de

vivenciar a rica experiência de ouvir e contar histórias sabe que esse ato se traduz

em linguagem de afeto. Sabe o quanto somos afetados pelas narrativas de ficção -

momentos que nos levam ao encantamento por esse mundo de fantasia, onde

realidade e faz-de-conta se confundem na voz do narrador, na cadência das

histórias, na vida dos personagens e nas próprias experiências de vida.

Por outro lado, causa-me incômodo o nível de contradição que se instaura

cotidianamente em alguns cenários escolares a respeito dessa prática. Ao passar

por algumas instituições infantis pude presenciar, em algumas delas, uma fala geral

de se incluir no planejamento atividades envolvendo a literatura infantil como

justificativa para formar leitores. Entretanto, na prática, negava-se às crianças a

liberdade de escolha, de diálogo, de imaginar e criar, não se permitia nem mesmo o

acesso à leitura (empréstimos de livros) com a família.

Além disso, os momentos estipulados para se contar histórias - casualmente em

datas comemorativas e freqüentemente em horários estratégicos de chegada ou

saída - com o claro propósito de acalmar e disciplinar. Sem contar o despreparo e o

improviso por parte de alguns em realizar a tarefa de ler ou contar histórias às

crianças; o descaso, por parte dos adultos, aos sentimentos que certas histórias

suscitavam nas crianças; os pedidos das crianças (“conta outra”, “de novo”),

dirigidos aos adultos ao final da história, mas, geralmente negados; além de alguns

projetos institucionais que teoricamente apontava para um trabalho intensivo voltado

13

para a literatura infantil e, na prática, a efetivação desse trabalho ocorria

ocasionalmente, sem nenhum grupo de estudo para discussão do tema... Enfim,

tudo isso ia revelando situações intrigantes e paradoxais que foram incitando em

mim, o desejo de querer desvelar essa confusa relação que se processava na

escola e que se refletia no desenvolvimento da criança.

À medida que me ia instrumentalizando teoricamente, apurava o olhar sobre as

práticas educativas em alguns dos Centros Municipais de Educação Infantil (CMEIs)

por onde trabalhei. Na maioria deles, o encontro das crianças com a literatura

ocorria sob a forma de espetáculo, ou seja, através de projetos institucionais e

mostras culturais. Geralmente, esses momentos evidenciavam os resultados finais,

perdendo-se, assim, o processo com suas riquíssimas oportunidades em contribuir

com aprendizagens significativas. Conseqüentemente, a linguagem em seu aspecto

dialógico, ficava comprometida pela supervalorização da imagem em detrimento da

escuta e do diálogo.

As famosas rodinhas, momentos que deveriam propiciar experiências significativas

através da fala e da escuta, convertiam-se em correção, adequação, antecipação

das falas das crianças e repreensão de suas ações. O que mais nos impressionava

era o discurso unânime de se trabalhar com atividades cujos objetivos fossem o de

“desenvolver”, “ampliar” e “estimular” a linguagem. Mas, como atingir tais objetivos

se a linguagem verbal não for respeitada e valorizada?

Foi então que comecei a me perguntar por que a escola não desenvolvia um

trabalho mais sistemático com as crianças e professores em torno dessas atividades

com o propósito de contribuir para o processo de ensino-aprendizagem?

Em função desse interesse, ingressei no Programa de Mestrado em Educação da

UFES a fim de investigar as questões do presente trabalho de dissertação tendo

como objetivo geral: analisar aspectos do desenvolvimento da narrativa de ficção na

criança entre 1 ano e 7 meses a 3 anos.

Nesta direção, nossas questões de estudo estiveram, inicialmente, voltadas para

compreender como a criança, por meio da linguagem, entra em contato com o

conhecimento humano, e organiza o seu pensamento e elabora os conceitos sobre o

mundo que a rodeia: Quais são os aspectos relevantes a se destacar nessas

14

interações, de modo a contribuir com o desenvolvimento da sua narrativa? Seria a

imaginação? A percepção? A sensação? Outros? De que maneira as histórias lidas

e contadas interferem nesse desenvolvimento?

A preocupação em compreender os aspectos do desenvolvimento infantil,

especialmente no que se refere à linguagem, levou-nos a destacar a literatura infantil

no trabalho da sala de aula junto às crianças considerando a importância do seu

gênero de ficção, que pelo seu caráter lúdico, propicia a imaginação. Desse modo,

nos utilizaremos dela como um importante instrumento de mediação e "motivador da

aprendizagem das crianças" (ZILBERMAN, apud FREITAS, 2001).

O avanço nas leituras e a prática pedagógica realizada na pesquisa de campo

levaram-nos a delimitar o foco da pesquisa, permitindo-nos discutir alguns

momentos significativos do desenvolvimento da narrativa de ficção na criança

pequena bem como alguns fatores que interferem nesse percurso.

Assim, no capítulo I - A LINGUAGEM E A NARRATIVA NA CRIANÇA PEQUENA -

apontamos os principais elementos que se destacam na contribuição desse aspecto

da linguagem oral, discutindo a concepção de criança, de narrativa e de seus modos

de apropriação pela criança pequena.

No capítulo II – LITERATURA INFANTIL: ESTUDOS E DEFINIÇÕES -

apresentamos o aporte teórico que justificou a utilização desse importante

instrumento de apoio para realizar nosso trabalho de contação de histórias e

análises dos recontos das crianças.

No capítulo III - CONTEXTUALIZANDO A PESQUISA - expomos a abordagem

metodológica que norteou nosso estudo do começo ao fim, tecendo comentários

sobre o método genético experimental e sobre o Centro de Educação Infantil onde a

pesquisa de campo ocorreu.

No capítulo IV - O DESENVOLVIMENTO DA NARRATIVA DE FICÇÃO NA

CRIANÇA: SOBRE O REAL E O IMAGINÁRIO - analisamos as ações, as

experiências interativas e as interlocuções que perpassam as narrativas das

crianças, evidenciando aspectos relativos ao real e à ficção durante esse percurso.

15

CAPÍTULO I

1 A LINGUAGEM E A NARRATIVA NA CRIANÇA PEQUENA

As linguagens estão no mundo e nós estamos na linguagem

Peirce

A criança é feita de cem... A criança tem cem linguagens (e depois cem cem cem) mas roubam-lhe noventa e nove. A escola e a cultura lhe separam a cabeça do corpo. Dizem-lhe enfim: Que o cem não existe. A criança diz: Ao contrário o cem existe.

Loris Malaguzzi

Neste capítulo, procuraremos apresentar alguns estudos que têm pautado o

percurso que a criança faz para construir seu discurso narrativo, pois acreditamos

que tal narrativa representa um dos aspectos mais importantes e instigantes no

processo da aquisição e desenvolvimento da linguagem. Em seguida,

apresentaremos alguns apontamentos sobre o referencial teórico que embasará a

presente pesquisa.

Se observarmos atentamente o cotidiano da criança, tanto na escola como fora dela,

presenciaremos um universo constituído por múltiplas linguagens (dizeres, olhares,

gestos, desenhos, letras, palavras pinturas, modelagens, recortes e colagens...) que,

permeadas por afetos e emoções, lhe permite desvendar o mundo à sua volta.

Consideramos que, diferentemente do “olhar” daqueles que vêem o processo de

ensino e aprendizagem como uma sucessão de atividades isoladas e sem relações

entre si, a ação e a fala da criança expressa ao seu modo, essas linguagens como

bem retratam o poema de Malaguzzi. Em todos os momentos da vida, desde o

nascimento, a criança está submetida a um sistema de linguagem verbal e não-

verbal que lhe possibilitará, gradativamente, organizar seu pensamento e construir,

no percurso de seu desenvolvimento, diversas formas de linguagens. Isso nos leva a

crer que a linguagem destaca-se dentre os inúmeros elementos que compõem o

16

processo de aprendizagem do ser humano.

No entanto, todo o esforço que a escola deveria desempenhar para enriquecer as

experiências culturais que as crianças trazem do seu convívio social, ainda hoje se

reduz à tarefa de ensiná-la a ler e escrever – a partir de uma concepção restrita de

leitura e de escrita – comprometendo assim, o processo de aprendizagem que, em

qualquer fase, deveria ser sempre significativa. Para Hugo Assmann (1998), “o

conhecimento só emerge em sua dimensão vitalizadora quando tem algum tipo de

ligação com o prazer” (p.30). Através da citação do livro de Luis Carlos Restrepo “O

direito à ternura”, Assmann nos mostra, nas palavras desse autor, como se processa

na escola a tarefa de ensinar - geralmente uma ação pedagógica limitada e

desvinculada do prazer.

A escola, herdeira autêntica da tradição visual-auditiva funciona de tal maneira que, para assistir às aulas, bastaria que as crianças tivessem seu par de olhos, seus ouvidos e suas mãos, ficando excluídos, para sua comodidade, os demais sentidos e o resto do corpo. Se ela pudesse fazer cumprir uma ordem desse tipo, a escola pediria às crianças que viessem à aula somente com seus olhos e ouvidos, talvez acompanhados pela mão na atitude de agarrar um lápis, deixando o resto do corpo bem guardado em casa (RESTREPO, apud ASSMANN, 1998, p.31).

Para ilustrar as palavras de Malaguzzi e de Restrepo, reporto-me à história do

“Menino Quadradinho” - personagem de Ziraldo - cuja linguagem se expressava

através do corpo, do gesto, do desenho, do brincar, imaginar e inventar... Mas a

escola, com sua pressa de enquadrá-lo no mundo “da escrita”, não podia perder

tempo ouvindo suas histórias e invenções. Às palavras que a escola lhe

apresentava, o Menino dizia: “não quero conviver com vocês; só entendo de cor e de

sons, de quadrinhos, de figuras e de balões”. Mas o tom de ordem e seriedade que

vinha da “voz superior”, e a velocidade com que as coisas chegavam a ele, o fez

desistir de questionar. Ao se render a essa voz, as cores, os buns e os balões, os

sons, as linhas e os quadrinhos foram sumindo de sua vida de repente, “não mais

que de repente”. Então ele se viu no meio do mundo preto e branco, onde tudo era

“novo”, “nave”, “névoa”, “nó”, “novidade”. Foi, então, que o Menino percebeu que

havia acordado “do lado de fora da infância”.

A forma poética de Ziraldo expressar como a criança lida com os conflitos na escola,

17

como ela trava sua luta para se fazer ouvida, percebida, entendida, nos desafia a

entender melhor essa situação e pensar possibilidades de mudanças de concepções

e posturas na prática escolar.

Consultando estudos que pudessem melhor esclarecer essa problemática,

verificamos que um dos aspectos a se ressaltar é a concepção de criança e de

linguagem presente nas escolas. A partir do momento histórico em que a criança é

vista como um adulto em miniatura (ARIÈS, 1986), muitas são suas atribuições,

entre elas a responsabilidade pelo seu próprio sucesso ou fracasso escolar

(SOARES, 1997).

O atual cenário em que se apresenta a Educação Infantil nos leva a crer que tal

visão ainda hoje tem se repercutido nas escolas, pois, ao invés de romper com essa

ideologia, essa instituição tem se apresentado como um local de continuidade ao

ignorar suas linguagens (movimento, fala, desenho...), ao julgar de forma

preconceituosa o modo de falar da criança, ao rejeitar sua bagagem cultural, ao

ignorar a importância de um ambiente estimulador no desenvolvimento da linguagem

e outros tantos aspectos que impedem uma interação verbal significativa e

impossibilitam o processo de desenvolvimento da narrativa na criança.

Embora alguns estudos tenham insistido na necessidade de se analisarem as

condições e os contextos em que se dá essa relação - criança/linguagem - o que

ainda se verifica no interior das escolas é a ênfase no trabalho com a linguagem

verbal, trabalho este desprovido de elementos significativos que estimulem, entre

outros aspectos, a criatividade e a imaginação. De modo geral, observa-se que a

fala, quando trabalhada, destina-se à atividade de escrita.

Desse modo, iniciamos nossa busca por dissertações, teses e estudos preocupados

em re-significar as relações de ensino da linguagem, ou seja, teorizações que não

considerem as falas da criança pequena como “imaturas, inadequadas ou erradas”,

mas sim um potencial a se desenvolver a partir “daquilo que ela já domina e é capaz

de comunicar” (SMOLKA, 1985).

O presente trabalho se coloca na perspectiva de contribuir no aprofundamento da

discussão sobre essas questões, possibilitando uma reflexão sobre o

desenvolvimento infantil e sobre propostas que ressaltem a ação do sujeito e a

18

importância da mediação pedagógica no desenvolvimento da narrativa na criança

pequena. Para isto, inicialmente retoma estudos realizados que contribuem para a

discussão sobre o desenvolvimento da narrativa na criança.

1.1 REVISANDO A LITERATURA

Muitos estudos têm demonstrado o quanto de ações inibidoras em relação ao

movimento e linguagens, especialmente na narrativa, vêm se repercutindo nas

práticas educativas, e, o quanto é necessário a existência de relações significativas

entre professor/aluno/conhecimento no interior das escolas. Atualmente tais estudos

têm colocado para a educação desafios que nos levam a refletir sobre o caráter

ilusório das teorias e práticas baseadas na “hegemonia”, geralmente, sustentadas

pela idéia de aluno, escola e ensino “ideal”. Dentre eles destacamos: Garcia (1993),

buscando intervir para superar concepções redutoras como a cultura do silêncio no

interior das escolas e Galvão (1998), revelando-nos a compreensão que se tem do

movimento infantil e do espaço dado a ele no cotidiano escolar.

Se pensarmos que o ensinar e o aprender não se processam de forma isolada,

descontextualizada e fragmentada e sim por meio de uma relação articulada, na

teoria e na prática, com todas as áreas do saber humano, é inevitável considerar as

contribuições críticas e reflexivas desses estudos que nos revelam os valores

impressos pela sociedade nos sujeitos ao longo da história – valores esses que nos

ajudam a compreender, ainda que de forma fragmentada, as marcas que essa

sociedade complexa, contraditória e fragmentada tem deixado em todos os

segmentos sociais.

Desse modo, tendo em vista que o desenvolvimento da narrativa na criança é um

processo eminentemente histórico-cultural, que se realiza por meio de mediações

interativas, elegemos como mais relevantes aos nossos propósitos, os estudos que

evidenciam a narrativa como um dos aspectos importantes nesse processo de

aquisição da linguagem humana, bem como a ação do sujeito e a importância do

contexto nesse processo.

Perroni (1992) amplia os conhecimentos sobre a linguagem narrativa abrindo

19

caminho para novas investigações nessa área que serão aqui desenvolvidas por

(MAC-KAY, 1999; OPTZ, 1999; TAKEMOTO, 2005; SAWAYA, 2000; FREITAS,

2001), e abre a discussão para construir mecanismos que permitam desvelar a

passagem que a criança realiza até chegar a adquirir sua autonomia narrativa. As

contribuições de Perroni serão discutidas com maior profundidade no estudo sobre o

desenvolvimento da narrativa de ficção na criança pequena e nas análises dos

dados.

Tomando como campo de pesquisa a sala de aula e centrando sua atenção sobre o

desenvolvimento da narrativa oral e escrita em alunos da 3ª série, Mac-Kay (1999)

analisa nesse contexto, como se constitui a autoria e a formação de estilo em seis

crianças com faixa etária de 8 a 9 anos, após solicitar a elas que contassem

oralmente e por escrito: a) o que fizeram no domingo; b) uma estória; c) uma estória

engraçada/piada; d) e um sonho ruim/pesadelo. Os aspectos lingüísticos, cognitivos,

culturais e sociais aqui apresentados, revelaram-se importantes para este estudo.

Partindo do princípio de que a criança nessa faixa etária já possui certo

conhecimento e desempenho fluente do discurso narrativo oral, seus objetivos foram

em primeiro lugar, observar como as crianças conferem à narrativa um grau mais ou

menos de coerência, e de quais recursos lingüísticos se utilizam. Para tanto, a

pesquisadora procurou sinalizar os recursos que marcam o processo da autoria e o

estilo do autor. Em segundo lugar, verificar o discurso narrativo (como possibilidade

de comportar diferentes gêneros e mundos) como um recurso utilizado na

construção do(s) sentido(s) que o autor pretende imprimir à sua narrativa. Em

terceiro lugar, observar se ocorre na narrativa escrita a recuperação do discurso

oral, e vice-versa, mediante análise (aspectos lingüísticos) e interpretação (análise

discursiva) das narrativas infantis, orais e escritas. Por último, considerar os

aspectos dialógicos que provavelmente ocorrerão no corpus deste trabalho.

Mac-Kay busca ressaltar a interação social na aprendizagem humana através do

conceito de “tutela”, considerado por ela, um suporte para o processo de

constituição da linguagem nas situações de diálogo. Nessas relações, a autora

analisa ainda, as ações infantis sendo interpretadas pelos valores culturais do grupo

ao qual pertencem.

20

Pautando-se em F. François, cuja filiação teórica é bakhtiniana, a autora encontra a

referência nuclear para a sua pesquisa: a interação verbal e o aspecto dialógico, nas

relações entre interlocutores (adulto-criança). Mac-Kay (1999, p.10) afirma que a

perspectiva teórica apresentada por François sugere o estudo da narrativa infantil

sob novos ângulos e abre caminho para uma análise mais abrangente. Oferece

também a possibilidade de se olhar o gênero narrativo com a característica infantil,

onde a presença de variações não constitui, necessariamente, transgressões ou

inadequações.

Segundo François, o papel de tutor consiste em oferecer ajuda ao outro, na tarefa

que ele ainda não consegue realizar sozinho. Esse papel pode ser desenvolvido

tanto pelo adulto como pela criança. Para a autora, “Esse pressuposto teórico

encontra-se fundamentado na proposta de Vygotsky (1993) quando afirma que a

criança aprende na interação com o outro: à princípio ela aprende com o adulto o

que em breve poderá fazer sozinha” (MAC-KAY, 1999, p.6).

Diferentemente das demais metodologias aqui revisadas, a autora optou por adotar

o método da abordagem natural proposto por Burman e Medeiros. Segundo os

autores (apud MAC-KAY, 1999, p.64) esse método “favorece maior grau de

espontaneidade por parte do sujeito e o acesso ao contexto lingüístico e

extralingüístico da situação de interação”. A autora considera esses fatores

fundamentais para os objetivos de seus estudos, principalmente na análise

qualitativa dos dados coletados.

O estudo procurou explicar como se revelam as marcas de desenvolvimento do

discurso narrativo oral e escrito e como a autoria e os estilos individuais emergem

gradativamente na criança por meio de seleções dos elementos lingüísticos e

discursivos. Para tanto o texto narrativo foi compreendido como o produto da

interação verbal e a formação do sujeito autor, como constitutiva nesse processo.

Os principais elementos que nortearam os resultados das análises evidenciaram que

o desenvolvimento do discurso narrativo oral e escrito das crianças revelam suas

marcas de constituição: a) na apresentação de acontecimentos; b) na utilização dos

marcadores: daí, aí, e... ; c) no ordenamento temporal e seqüencial dos fatos; d) na

recorrência aos tempos verbais; e) na repetição para a confirmação de sentidos; no

21

surgimento do aspecto lúdico... No entanto, foi nas situações de tutela que a

narrativa progrediu de maneira eficaz.

Com base nessas considerações, a autora confirma a necessidade, já enunciada

nos estudos de Perroni (1992), de se levar em conta o sujeito, o seu interlocutor e as

condições de produção da narrativa no processo de aquisição e desenvolvimento do

discurso narrativo oral e escrito tanto no contexto escolar como fora dele. (No

momento de avaliação de linguagem pelo fonoaudiólogo, por exemplo). Ao

considerar as especificidades da narrativa na criança, tanto Mac-Kay como Perroni

instituem um novo olhar sobre seu modo de se expressar, comumente vistos como

erros.

Embora o conceito de tutela apresente elementos interessantes a se destacar em

pesquisas que caracterizam as relações de interação da criança e a linguagem,

preferimos utilizar o conceito de mediação abordado por Vigotski pela ênfase que ele

dá à Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) - definida como a zona onde se

concentram as funções que estão em vias de amadurecimento. Justificamos essa

escolha pelos seguintes pressupostos que a própria autora destacou de Vigotski:

1º) Não é a qualquer momento que a interferência pode ser eficaz. É dentro da

ZDP que a intervenção é mais transformadora;

2º) O observador deve estar atento ao nível de desenvolvimento potencial, pois é

nesse momento que a criança conseguirá resultados mais satisfatórios do que

conseguiria se agisse sozinha;

3º) A mediação apresenta relações com a linguagem e com a língua: a primeira é

desenvolvida, e a segunda, aprendida.

Isso significa que nas relações de mediações, não basta considerar apenas o outro

no processo de aprendizagem; é necessário, além disso, compreender como o outro

se interpõe nessas relações e em que condições. Nesse sentido, penso que as

idéias de Vigotski sobre mediação são mais esclarecedoras.

Encontramos nos estudos de Optz (1999), uma abordagem do desenvolvimento da

narrativa semelhante, em alguns aspectos, e, diferente, em outros, das abordagens

22

acima. Trata-se de uma pesquisa longitudinal do desenvolvimento da narrativa

realizada no período de 1992 a 1996 com sete crianças dos 5 aos 9 anos,

correspondendo à fase de transição entre a família e a escola, em termos de

convivência; e à fase de ingresso ao mundo da escrita e da leitura. O autor que a

motivou desenvolver a pesquisa com criança nessa faixa etária foi Moll (1997), para

quem o sujeito-criança procura desenvolver esquemas para a compreensão das

situações do seu cotidiano, mesmo antes de entrar na escola, através da construção

de seus próprios processos de apropriação da língua escrita.

Seguindo a linha teórica da Análise do Discurso (AD), a autora procura

“compreender o modo como um objeto simbólico produz sentidos, não a partir de um

mero gesto de decodificação, mas como um procedimento que desvenda a

historicidade contida na linguagem, em seus mecanismos imaginários” (FERREIRA,

apud OPTZ, 1999, p.2).

A pesquisadora fundamentou sua dissertação na Teoria do Discurso através dos

seguintes enunciados: a) todo discurso remete a sua exterioridade a outro discurso

(interdiscurso) presente em sua memória discursiva; b) a partir do momento em que

se caracteriza o texto como incompleto, uma multiplicidade de sentidos é propiciado

pela própria língua - Nessa multiplicidade é que se originam a paráfrase e a

polissemia discursivas; c) para que se reconheça um discurso enquanto tal, e não,

enquanto um texto, é preciso que ele aconteça, funcione corretamente como uma

máquina com todas as suas peças nos seus devidos lugares.

Baseando-se nessas premissas a autora afirma que o discurso relatado infantil

(discurso produzido oralmente), “não é simplesmente formado de ‘dados, e sim, de

‘fatos’ devidamente organizados para funcionarem como um discurso, e não como

um conjunto de textos. Cada versão dos sujeitos-criança funciona como uma peça

para uma grande máquina que é o discurso infantil” (OPTZ, 1999, p.49).

A memória discursiva, outro termo bem destacado nessa pesquisa, nada mais é,

segundo a autora, do que “a memória social - uma memória inerente a uma dada

formação social que trabalha com todo tipo de produção histórica do sentido” (OPTZ,

1999, p.49). A autora insere essa definição na análise do discurso afirmando que:

“Os sujeitos-criança, na posição de sujeito-autor, baseiam-se em fatos do cotidiano,

23

na sua seqüência temporal, para contar uma história do interdiscurso, sendo

inevitável a interferência da exterioridade nos textos que produzem...” (OPTZ, 1999,

p.29).

Não poderíamos também deixar de destacar, dentre diversas denominações que a

autora dá aos sujeitos entrevistados, aquelas que elegemos como mais relevantes

para nossa pesquisa:

a) Sujeito-autor - sujeito responsável por seus atos. “O sujeito que, tendo o

domínio de certos mecanismos discursivos, representa, pela linguagem, esse

papel, na ordem em que está inserido” (ORLANDI, apud OPTZ, 1999, p.12). No

trabalho desta dissertação, esse sujeito assume a função de autor da história que

conta, não deixando de lado as características de ser sujeito do seu discurso.

b) Sujeito-narrador-sujeito que assume a função discursiva responsável pela

organização do processo de similação-presentificação no discurso, isto é, ele

distribui tarefas e atribui papéis aos participantes do discurso, assim como

assume para si a função de narrar um fato e causar determinados efeitos de

sentido nos seus interlocutores, autorizado pelo sujeito-autor. É ele quem faz o

elo entre o mundo ficcional e a realidade histórica (OPTZ, 1999, p.28).

c) Sujeito-personagem - refere-se à função/posição de personagem que o sujeito

exerce no seu discurso ou a que se refere no mesmo.

Seus estudos foram norteados pelo conceito de polissemia e o foco de suas análises

foi a instauração do novo a cada recontagem de uma narrativa pela criança da

história de Chapeuzinho Vermelho. Optz (1999) procurou verificar a hipótese

formulada por Orlandi (1996) de que a produção da linguagem se faz na articulação

de dois grandes processos discursivos, a “paráfrase” e a “polissemia”. A autora

apostou na capacidade da criança de romper com o já estabelecido, o repetível (a

paráfrase) e instaurar o novo (a polissemia). Seu objetivo foi analisar a circularidade

do sentido no discurso relatado por crianças através dos processos diferenciados de

leitura.

Segundo a autora, é possível ter-se um sentido dito de diversas maneiras (um

24

exemplo é quando se caracteriza um texto como incompleto. A partir daí uma

multiplicidade de sentidos é propiciada pela própria língua. Nessa multiplicidade é

que se originam a paráfrase e a polissemia discursivas). O sentido é o fio discursivo

condutor de todo o processo. Só há discurso, sujeito e tudo o mais se existe sentido.

Para a autora, ele é circular porque “não possui nem início nem fim, está

(simplesmente!)” (OPTZ, 1999, p.127). Desse modo, “o sentido é concebido como

algo que é produzido historicamente; e o discurso, como o efeito de sentido entre

locutores posicionados em diferentes perspectivas” (OPTZ, 1999, p.14).

Para explicar o sentido que as histórias têm na vida da criança, Optz recorre às

palavras do psicanalista Bruno Bettelheim: “a estória só alcança um sentido pleno

para a criança quando é ela quem descobre espontânea e intuitivamente os

significados previamente ocultos. Esta descoberta transforma algo recebido em algo

que ela cria parcialmente para si mesmo” (BETTELHEIM, 1980, p. 206). Recorre

também a Orlandi que afirma que: “as palavras não significam por si, mas pelas

pessoas que as falam, ou pela posição que ocupam os que as falam. Sendo assim,

os sentidos são aqueles que a gente consegue produzir no confronto do poder das

diferentes falas” (ORLANDI, apud OPTZ, 1999). Portanto, nas palavras de Optz, “O

sujeito-criança deste arquivo conta uma história de nome Chapeuzinho Vermelho,

mas é a sua Chapeuzinho Vermelho! “(OPTZ, 1999, p.47).

Partindo desses pressupostos, a autora optou por trabalhar com a Análise do

Discurso francesa (AD), centrando sua atenção no discurso relatado infantil

(discurso produzido oralmente e depois transcrito), delimitando o espaço discursivo

da análise nas narrativas ficcionais que segundo a autora são relatos geralmente

baseados em narrativas já existentes no interdiscurso. (ex. Chapeuzinho Vermelho).

A análise foi conduzida de forma a realçar as especificidades dos discursos

produzidos por sujeitos-criança, as quais, segundo a autora, diferenciam bastante

dos discursos produzidos por sujeitos em idade adulta.

Optz verificou que o sentido está presente quando a criança produz um discurso e

passa a ser responsável por ele enquanto autor de uma nova versão

Contar lhe permite lidar com suas necessidades, ou seja, a cada recontagem um detalhe é acrescentado e outro é omitido, permitindo uma maior flexibilidade. O lugar de onde fala e as condições às quais é submetido promovem a instauração de novos sentidos...(OPTZ, 1999, p.54).

25

Analisando algumas versões dadas pelas crianças à história Chapeuzinho Vermelho

a autora destaca:

a) Uma primeira criança mudando a versão original onde a vovó não morre para:

“daí um dia o lobo veio, comeu a vovó... e ela morreu...”.

b) Uma segunda criança que ao contar a mesma estória pela segunda vez

acrescenta um fato novo que segundo a autora reflete um amadurecimento na

personalidade da criança acerca da escolha da materialidade lingüística - 1ª vez:

“daí ela não obedeceu à mãe dela...”; na 2ª vez: “daí ela teimou e foi pelo

caminho do lobo mau...”;

c) Uma terceira criança que se caracteriza como sujeito autor ao acrescentar

detalhes advindos de sua realidade, marcando assim a sua subjetividade, sua

maneira de ser criança na narrativa: “Era uma vez uma menina que (es)tava

brincando no pátio aí, a mãe dela...”;

d) e por fim, um outro exemplo que caracteriza uma completa mudança, um outro

olhar em cima do oculto, do inesperado, do não cogitado: “daí ela (Chapeuzinho)

chegou ela encontrou uma árvore falante que na verdade era o lobo dela...”.

Os resultados dessa dissertação mostraram que os sujeitos-criança, em suas

diversas posições e funções que assumem, lêem, absorvem, inventam, criam,

recriam, contam, recontam... várias vezes a mesma história de maneiras diferentes.

Isso levou a autora concluir que o sujeito-criança lê de forma polissêmica. A partir

dessas análises, ela pôde derrubar a hipótese de que os sujeitos-criança constroem

suas narrativas por “tentativas parafrásticas” e confirmar a hipótese da “tendência

polissêmica”, que esses sujeitos utilizam, ao instaurar um novo sentido a cada

recontagem do discurso relatado infantil.

A partir dessa perspectiva, as práticas educativas realizadas com o intuito de

trabalhar a literatura com as crianças da educação infantil não podem mais

subestimar essas crianças na sua capacidade de entendimento, sob o risco de

comprometer o desenvolvimento da imaginação e do sentido que elas constroem na

interação com a literatura e desestimulá-las.

26

A pesquisa contribui para o entendimento de que, o percurso realizado pela criança

para desenvolver sua linguagem até constituir seu discurso narrativo a princípio se

dá pela repetição e imitação da fala dos outros e depois, dependendo do agente

mediador e dos estímulos ambientais, pela criação do seu próprio discurso. É

necessário, portanto, conceber a criança como um sujeito ativo nesse processo.

Takemoto (2005) aprofunda as discussões desses estudos, quando se propõe a

investigar o desenvolvimento do discurso narrativo oral na criança, considerando-a

um ser social por essência que já nasce rodeada pelo mundo da linguagem, através

do choro, dos sons da língua, das ações lingüísticas cotidianas e das atividades

discursivas de seu grupo social. Para a autora a linguagem e o discurso são

anteriores ao sujeito e se constituem na interação entre sujeito e seu horizonte

social:

A aquisição da linguagem e, por conseguinte, o desenvolvimento do discurso narrativo, se constroem paulatinamente sobre uma base em que operam simultaneamente os momentos de interação da criança com os mundos físico e psíquicos à sua volta, sua relação de alteridade e sua exposição a objetos lingüísticos sob a forma de enunciados da língua... (TAKEMOTO, 2005, p.50).

Entendemos assim que o objetivo do ensino da linguagem deva ser o de aperfeiçoar

o sujeito em sua capacidade de se expressar verbalmente, de se comunicar, de

dialogar e de interagir. Esse processo é mais produtivo quando existe uma

consciência por parte daquele que ensina de que a mediação, para ser eficaz, exige

conhecimento dos elementos que fazem parte desse processo: a criança, a

linguagem, o contexto, e outros mais.

Os estudos de Takemoto evoluem nesse sentido, pois, tomando como referência o

processo de aquisição da linguagem, mantém seu foco principal “tanto nos aspectos

relativos à complexidade do sistema lingüístico quanto em outros elementos, de

natureza cognitiva e afetiva, envolvidos no processo de construção do discurso

narrativo e o papel da atividade de reconto neste processo” (TAKEMOTO, 2005,

p.12).

Sua hipótese inicial é a de que a situação de reconto de Contos de Fadas favorece a

emergência de elementos que abarcam questões textual-discursivas imprescindíveis

27

ao processo de construção do discurso narrativo1 pela criança. A autora considera

que essa prática de narrar, constitui uma das mais antigas práticas lingüísticas que

se reporta tanto ao desenvolvimento da criança (ontogênese), quanto ao

desenvolvimento da espécie humana (filogênese). Diante disso, a autora coloca as

seguintes questões: “quais seriam essas contribuições [das narrativas de contos],

como otimizá-las, quem seria o mediador mais indicado para tal atividade, quando

seria o momento mais apropriado, por qual razão um gênero literário antigo se

mantém vivo por tanto tempo, permanecendo forte e inabalável a despeito de todos

os avanços contemporâneos e como se deve lidar com esta tendência

aparentemente escapista em um cotidiano que se apresenta tão distinto das épocas

de outrora” (TAKEMOTO, 2005, p.11).

Para tentar responder todas essas questões e outras mais que foram surgindo ao

longo do trabalho a autora recorre a estudos sobre a aquisição e desenvolvimento

da linguagem discutindo seus aspectos sócio-afetivos e ideológicos nas relações

entre o falante e seus interlocutores; e, em especial, as características próprias da

dupla mãe/criança tendo em vista que esta relação interativa é muito freqüente e é

através dela que, segundo a perspectiva vigotskiniana a criança começa a perceber

o mundo através dos olhos e da fala.

A autora chama-nos a atenção para o cuidado que devemos ter com as concepções

demasiadamente mecanicistas que definem a fala como uma “comunicação oral

auto-expressiva que dispensa atenção especial, por se tratar de uma habilidade de

competência comunicativa exclusiva do indivíduo.”(TAKEMOTO, 2005, p.20).

Aconselha a nos afastarmos delas uma vez que “a constituição do outro, a

historicidade do processo discursivo, o confronto das subjetividades, quando em

interação, não são devidamente tratadas” (TAKEMOTO, 2005, p.20-21). Desse

modo, ela justifica sua opção pela abordagem que defende o processo de aquisição

e desenvolvimento da linguagem como sendo um movimento que parte do macro

para o microcosmo, ou seja, do discurso para a palavra, porque “A criança não

houve sons isolados, mas fonemas articulados conforme as regras da língua, em

uma elaboração discursiva que pode se apresentar tanto sob a forma da linguagem

cotidiana, quanto dentro da estrutura das narrativas oferecidas às crianças”

1 A autora utiliza essa expressão para se referir à atividade da criança em narrar, com suas “próprias palavras” e recursos discursivos, os Contos de Fadas.

28

(TAKEMOTO, 2005, p.50).

Desse modo, a autora destaca os teóricos que tendem a valorizar e explicar, de

maneira bastante consistente, os aspectos culturais durante o processo de

desenvolvimento da fala. Dentre eles: Vigotski, Luria, Souza, Pino, François, Freitas,

entre outros. Para a autora, esses teóricos além de não negarem a ação do sujeito

realizada individualmente na apreensão e elaboração de conceitos, habilidades e

atitudes discursivas, ressaltam a participação do grupo como algo imprescindível ao

desenvolvimento lingüístico. Isso talvez represente a maior contribuição desses

teóricos, no sentido de se desenvolver, de modo sistemático e significativo, um

trabalho voltado para os aspectos da linguagem no interior das escolas. Segundo

Takemoto (2005):

É nesta relação entre o individual e o coletivo que se estabelece o que falar e quando falar é este emaranhado de circunstâncias, necessidades e interesses do falante que vai gradativamente instituindo o jogo oral de pergunta e resposta, uma das principais formas de uso da palavra, que consolida a interação (TAKEMOTO, 2005, p.24).

Takemoto complementa essa idéia enfatizando que: “é assim que simultaneamente

o sujeito vai se constituindo discursivo e desenvolvendo suas habilidades e sua

competência lingüística, ou seja, vai aprendendo como, quando, e para que usar a

língua, na medida em que convive com ela” (TAKEMOTO, 2005, p.74).

Os aspectos metodológicos de sua pesquisa direcionaram-se para um estudo de

caso de uma menina (inicialmente com idade de dois anos), realizado a partir de um

banco de dados constituído por imagens do arquivo familiar e imagens

posteriormente realizadas com o propósito de investigar as questões levantadas

pela pesquisadora. O arquivo contém registros de sessões de narrativas recontadas

por esta criança em situações de interações com a mãe durante a atividade de

reconto que ao longo do processo foram se aperfeiçoando. A criança-sujeito reconta

algumas das histórias mais de uma vez, em diferentes épocas e com materiais

distintos. Na última etapa, a criança então com cinco anos, demonstrou certa

independência da mãe no sentido de narrar e dramatizar os contos de fadas.

O estudo revelou que são muitos os interlocutores que podem interagir, de modo

29

positivo, com a criança em situações de contação de histórias; mas é a díade mãe-

criança, segundo psicólogos, psiquiatras e psicanalistas, que confere maior riqueza

e profundidade nessas relações no sentido de superar os conflitos interiores. Temos

aqui um aspecto a se considerar no âmbito da escola que implica em buscar

parceria mais consistente com a família quando tratarmos desse assunto nos nossos

planejamentos de ensino.

Desse modo, acreditamos que suas hipóteses iniciais e suas questões foram

confirmadas e respondidas e nos instigaram tanto quanto a autora, a desvelar novas

interrogações. Ao concluir que ouvir histórias, narradas oralmente ou lidas, é uma

atividade altamente estimuladora, a pesquisa de Takemoto traz importantes

contribuições no sentido de ressignificar a ação de contar histórias para as crianças.

No entanto, como ela mesma afirma não se trata de uma tarefa simples e

automaticamente realizável, pois, construir o discurso é um processo que requer

esforço, interação e atividade representativa, envolvendo a fantasia e a imaginação,

não sendo, portanto, um processo simples, nem rápido.

As contribuições dos estudos de Sawaya (2000) nos possibilitaram ampliar essas

discussões ao acrescentar novos elementos para reflexão do estudo da narrativa em

questão. Investigando um grupo de crianças de zero a nove anos, tomou como base

a contribuição da Teoria da Narração de Walter Benjamin para discutir o conceito de

experiência nas narrativas orais - algo que segundo a autora, ele considera

fundamental para garantir a identidade de cada um como sujeito histórico.

A perspectiva benjaminiana pronuncia a crise instalada na identidade do sujeito

provocada pelas novas formas de sociabilidades criadas na modernidade que

supervalorizam a imagem e o consumo ao invés das experiências das narrativas

orais e o ser. Nesse estudo, Sawaya identifica, à luz desse autor, as causas para a

morte de uma das mais antigas formas de comunicação - a narrativa - que vem

sendo substituída cada vez mais pela informação. Dentre as causas destacam-se o

jornal e a televisão que na falta de conexão entre uma notícia e outra contribui para

a morte do sujeito que narra.

Atrofiando o sujeito que narra e que, ao narrar, transmite os acontecimentos aos ouvintes, integrando-os a sua vida, a sua experiência. Assim, uma das mais antigas formas de transmissão de um saber, de uma ética, de um

30

conselho, tem perdido seu lugar nos tempos modernos (BENJAMIN, apud SAWAYA, 2000, p.33).

Conforme esses postulados, a “atrofia da experiência” constitui-se em terreno fértil

para a alienação a que está sujeito o homem contemporâneo.

Quando a transmissão de experiência entra em crise, já não oferece uma base segura para a constituição da subjetividade, ou seja, deixa de fornecer as referências que permitem que se compartilhe uma experiência coletiva, isto é, que permitem aos vários sujeitos compartilhar um mesmo universo de prática e de linguagem. [...] Para Walter Benjamin, a degradação da experiência culmina com o fim da arte de contar, ou seja, com a morte da narrativa oriunda de uma organização social que permitia aos vários sujeitos, ao trocar suas experiências, constituir uma memória coletiva, uma história, uma tradição, enfim, uma identidade. A experiência do homem contemporâneo é a do indivíduo solitário da sociedade de massas, que procura reunir seres isolados em sua privacidade mediante a “democratização da informação”, e não pelo compartilhar de experiências comuns (SAWAYA, 2000, p.34).

Em sua pesquisa, Sawaya procurou buscar, dentro desses pressupostos, um

sentido existencial para o grupo de crianças que ela trabalhou tendo como eixo

central “a troca de suas experiências, o contar e o recontar as várias histórias que

vão reunindo no curto espaço de tempo de sua existência” (SAWAYA, 2000, p.32).

Seu objetivo foi o de derrubar a hipótese de que as crianças de classes populares

têm um déficit de linguagem provenientes de suas condições precárias de vida e que

as impede de aprender a ler e escrever, resultando no seu fracasso escolar.

Desse modo, a autora realiza um estudo etnográfico do uso da linguagem verbal das

crianças em um bairro da zona leste, na periferia de São Paulo, buscando observar

as interações verbais de um grupo de catorze crianças com idade entre zero e nove

anos e suas famílias, entrevistando crianças a partir dos três anos de idade.

Segundo a pesquisadora, o limite de nove anos foi imposto pelas próprias crianças

através de fatores, tais como: interesses, brincadeiras diferentes e brigas constantes

com crianças mais velhas. Diante disso, a composição do grupo foi organizada da

seguinte forma: três crianças entre zero e três anos, cinco crianças entre cinco e seis

anos, três crianças entre sete e oito anos e três crianças de nove anos, sendo que

todas as crianças entre sete e nove crianças freqüentavam a escola, mas apenas

uma não era repetente.

31

Um dos aspectos revelados nesse estudo e que se constituiu em objeto de reflexão,

foi o lugar que essas crianças ocupavam no bairro: porta-vozes, informantes,

pombos-correios, testemunhas, memória viva e coletiva da vida do bairro,

representantes vivazes dos velhos contadores de história. Assim, as crianças viviam

em grupo, brincavam, conversavam, perguntavam, aprendiam, contavam histórias,

“intercambiavam suas experiências”, revelando-se mais do que simplesmente um

grupo que se reúne para brincar, mas “um grupo de falantes, um grupo de falador”.

Nesse sentido, o papel social fundamental e bastante complexo dessas crianças foi

determinado pela forma narrativa dos seus relatos.

Conforme os dados da pesquisa, as histórias relatadas pelas crianças têm um misto

de fatalidades e fantasias povoadas pelo imaginário. Entre a realidade e a fantasia

as crianças vão construindo a sua percepção de mundo, desde muito cedo marcada

pelo trágico e pela violência. O que mais lhe chamou a atenção, não foi o modo

como elas falam, mas a luta constante pela atenção dos ouvintes, o que as tornam,

muitas vezes, “falantes perspicazes”.

As crianças fazem do interloculotor depositário das suas angústias, temores, enfim de suas experiências. Sua luta não é apenas pela sobrevivência, mas também por interlocutores, em um mundo difícil, contraditório, em que, a duras penas, vivem e querem compreendê-lo [...] As suas falas, suas músicas, seus gracejos, fazem delas crianças, definem-lhes um lugar: o da memória viva, da esperança e da contradição desses grupos (SAWAYA, 2000, p.46-47).

Os resultados obtidos nessa pesquisa derrubaram as hipóteses descritas pelos

partidários da Teoria de Deficiência Lingüística e apontaram um modo de falar das

crianças que caracteriza a expressão simbólica da vida e da experiência da

comunidade. “Se os índices de reprovação e evasão são a prova do fracasso

escolar, as suas causas estão sendo buscadas no lugar errado” (SAWAYA, 2000,

p.47). Sendo assim, Sawaya faz um alerta para o olhar desacostumado do professor

à arte de intercambiar experiências, de ouvir histórias que tem virado as costas à

fala, à narrativa dessas crianças, São essas posturas que segundo a autora, fazem

as crianças muitas vezes desistirem da escola e voltarem para o bairro, para a rua,

onde sua existência e suas experiências podem fazer sentido.

32

O distanciamento e alienação das experiências entre os vários grupos humanos, transformadas em abismos nos tempos modernos, como aponta Benjamin, têm colocado em risco a possibilidade de comunicação, substituída pela imposição de um discurso único, tomado como legítimo - o do professor, o da escola, que inviabiliza o trabalho da leitura e da escrita em seu sentido pleno - como trabalho de construção de sentido, de interpretação, enfim, de comunicação entre os vários universos de significação: o do autor, o do leitor e o do professor que intermedeia essa relação (SAWAYA, 2000, p.48).

Analisamos assim a problemática do fracasso escolar: Enquanto não nos

empenharmos em conhecer a criança considerando suas especificidades, e

valorizarmos suas falas, se continuará cometendo os mesmos erros, os mesmos

julgamentos. Desse modo a pesquisa contribuiu para revelar a necessidade de

reconstruir a palavra para se garantir uma memória, para impedirmos o fenômeno

que Benjamin caracteriza como esfacelamento social.

A dissertação de Freitas (2001) propõe uma reflexão em torno da temática:

linguagem e literatura extraindo de Vigotski a idéia de linguagem como um produto

histórico e significante da atividade mental dos indivíduos; e a linguagem discutida

por Geraldi como forma de interação e que ela se assemelha à concepção de

Vigotski. Para Freitass, essa concepção lança um novo olhar ao trabalho

pedagógico. Ou seja, ambas privilegiam o sujeito e ressaltam os motivos que

conduzem o processo de interlocução. “Nesses termos, nossa definição de

linguagem orienta-se por uma compreensão desta, como um processo de interação

mediado por signos” (FREITAS, 2001, p.19).

Seu objetivo foi o de estudar a contribuição da produção de reconto de histórias, do

gênero contos de fadas, na estruturação de linguagem em crianças de 5 a 6 anos de

idade. Para tanto, adotou uma abordagem metodológica de natureza qualitativa do

tipo etnográfica, com o uso da estratégia de observação participante, onde

desenvolveu um trabalho de intervenção pedagógica com o texto de literatura infantil

junto aos sujeitos pesquisados. Os recontos foram analisados considerando três

princípios norteadores: a operação de transformação do texto escrito em texto oral, a

escrita colaborativa e a relação entre a linguagem visual e a verbal.

33

Dentre os vários aspectos que Freitas (2001) busca para justificar a relação entre

literatura e linguagem, destaca-se a compreensão de que a literatura infantil aborda

a linguagem nas dimensões oral (ato de contação de histórias), imagética (trabalha

com ilustrações e criações de imagens mentais por parte do leitor), e escrita

(circunscrito à produção textual); e a literatura explorando a linguagem em sua

função estética (conteúdo e expressividade), ou seja, a natureza ludo-comunicativa

do texto literário.

Embora haja um grande número de produções teóricas que defendem e justificam a

literatura infantil no ensino da linguagem, Freitas constatou que a prática escolar tem

se mostrado negligente quanto a esse aspecto pelo fato de utilizar a literatura como

instrumento de controle sobre as crianças; pela realização de um trabalho

assistemático com o texto literário que acaba gerando atividades sem significado e

pela precária relação do professor com a leitura.

Tal como os estudos anteriores, a autora também considera que a mediação pelo

outro requer o conhecimento sobre o objeto a ser trabalhado, sobre os sujeitos que

farão parte da situação de mediação e sobre a relação entre o objeto e os sujeitos.

Nessa relação, torna-se visivelmente destacado o papel de mediador que o

professor ocupa no processo de intervenção.

Para trabalhar esse aspecto da mediação, aluno - literatura infantil - professor, a

autora recorre à experiência de Leitura por Andaime desenvolvida por Bruner, Wood

e Ross; e o elege como princípio metodológico para conduzir a prática de reconto de

histórias. Esses autores utilizaram essa experiência como unidade de análise no

estudo da aquisição da linguagem em contexto familiar. Semelhante aos

pressupostos de Vigotski, essa experiência também parte do princípio de que a

criança aprende em colaboração com um parceiro mais experiente que lhe oferece

ajuda. Sendo assim, essa experiência se realiza sob a orientação dos seguintes

critérios:

� A interação se dá num contexto colaborativo;

� Os pares trabalham na ZDP formulada por Vigotski;

� O andaime deve ser retirado paulatinamente;

34

� A internalização do conhecimento visa a criança desenvolver a atividade de

modo independente.

Essa experiência mostrou-se eficiente na mediação da professora-pesquisadora em

seu trabalho de campo. As situações de intervenções dessa professora (lançar

perguntas, fazer correções, expandir informações...) serviram de andaimes para os

alunos realizarem em colaboração a reconstituição da história, na qual não

conseguiam fazer individualmente.

Na análise dos dados, Freitas (2001) apresentou resultados, desempenhados pelos

sujeitos, que evidenciaram aspectos relativos à memória, estrutura narrativa e

relação entre a linguagem visual e verbal. Com base nessas evidências foi possível

à pesquisadora comprovar que, no trabalho com a literatura, “a ação de recontar

pode trazer contribuições relevantes ao processo de estruturação da linguagem”

(FREITAS, 2001, p.133).

Esse processo vale ressaltar, pode ocorrer com crianças que ainda não dominam o sistema de escrita alfabética, mas que tenham oportunidade de estarem envolvidas em práticas de construção de conhecimento em que haja a colaboração do outro, como sujeito mediador (FREITAS, 2001, p.135).

Baseando-se nos estudos de Perroni (1992), Freitas confirmou alguns modos que

permitem a criança construir seu próprio discurso narrativo. São eles: Os “jogos de

contar” que consiste na construção conjunta da narrativa da criança com seu

interlocutor adulto, em que se percebe que tanto a interpretação do enunciado da

criança por esse adulto, tanto os momentos que colocam a criança em situação de

resposta às perguntas do adulto, constituem os primeiros passos para a construção

de narrativas; a “contação de histórias” para a criança cujo papel é quase

exclusivamente o de ouvinte; e a “combinação livre” que requer um olhar mais

cuidadoso, apurado e intenso do adulto mediador sobre as elaborações narrativas

da criança, pois, trata-se de um tipo de narrativa que se manifesta no nível do

discurso e do léxico2 em que a criança tenta livremente relatar uma experiência

2 Recurso que consiste em combinar fonemas/morfemas do português de tal modo que, embora não violando regras fonológicas/morfológicas da língua, o resultado obtido são formas possíveis, mas não existentes no português. Em outras palavras, são expressões semanticamente não

35

passada, permeada pelo relato discursivo da ficção advindo dos fragmentos de

histórias que já tenha ouvido. Em todos esses casos, é notória a forte dependência

e influência que o outro exerce sobre a criança.

As pesquisas comprovaram que esse percurso que a criança faz para atingir o ponto

culminante do seu processo de aquisição de linguagem - o desenvolvimento do

discurso narrativo - é fundamental para se abandonarem as perspectivas

espontaneistas que trabalham a linguagem como mera verbalização passando a

incorporá-la em contextos de aprendizagens que tenham significados

compartilhados.

De modo geral, as questões assinaladas pelos estudos aqui revisados, tornam

evidente o fato de que a escola é um espaço social com a função específica de

mediar as relações de aprendizagens que ocorrem entre os sujeitos em seu

cotidiano. Outro aspecto que encontramos em comum, às pesquisas aqui revisadas

e que ficou bem marcado, foi o tipo de interferência que fizeram no decorrer do

processo. Ficou explícito que não se trata de qualquer intervenção feita de qualquer

jeito e por qualquer um; mas uma intervenção específica com vistas a ajudar a

criança no seu desenvolvimento mental e, por conseguinte, narrativo. Isso porque

pesquisar linguagem é algo que aponta para muitas complexidades na cultura

escolar, uma vez que pode mexer com toda uma estrutura de base psicológica e

enraigada de saberes historicamente elaborados muitas vezes difícil de mudar, por

uma série de questões e que, portanto, podem se traduzir em movimento de

resistências no interior da sala de aula.

Esses aspectos acenam para a importância e necessidade de se realizarem

pesquisas que se constituam em espaços para a discussão de saberes e que

tenham em vista a construção e ressignificação das práticas pedagógicas, da

relação que se tem com o processo de ensino-aprendizagem da linguagem e dos

conceitos que se tem sobre a criança, bem como tudo que diz respeito ao seu

desenvolvimento.

Como pudemos verificar, a aprendizagem se torna significativa quando o professor

interpretáveis, produzidas aparentemente para preencher espaços gramaticais dentro dos enunciados da criança (FREITAS, 2001, p.109).

36

se propõe sistematizar o conhecimento, considerando as experiências culturais do

aluno e o contexto social de todo o processo educativo.

Diante do que foi exposto, compreende-se que não é mais possível atribuir o

fracasso escolar à incapacidade cognitiva e lingüística dos alunos advindos das

camadas mais pobres, mas, sim, pela incapacidade de se trabalhar com eles as

várias linguagens numa perspectiva emancipadora. Nesse sentido, inspiramos

nossa pesquisa nesses estudos visando a criação de um contexto escolar na

Educação Infantil que propicie as condições favoráveis e que permitam às crianças

pequenas elaborarem as trajetórias e estratégias de construção da narrativa.

Através desses estudos, passamos a indagar: É possível falar de narrativa em

crianças pequenas cuja linguagem verbal limita-se à nomeação de elementos de seu

meio circundante?

Com base nessas premissas, sentimos a necessidade de aprofundar nossos

estudos sobre a linguagem procurando ampliar seu conceito, pois, de acordo com

Possenti (1999) e outros autores, os equívocos da linguagem que se comete nas

práticas escolares são atribuídas ao limitado conceito que tende a desconsiderar a

criança como sujeito da linguagem e a enfatizar como correto “a língua padrão ou

norma culta” e incorreto “as outras formas de falar” (POSSENTI, 1999, p.49).

Esses argumentos convenceram-me da importância de buscar estudos que

enfatizassem as relações interativas e contextuais vividas pelas crianças, em seu

processo de desenvolvimento narrativo, através da literatura infantil. Consideramos

o gênero literário infantil, pelo seu caráter lúdico e propiciador da imaginação, um

dos principais instrumentos de trabalho da sala de aula capaz de transgredir a

linguagem imposta pela educação elitista que mais bloqueia do que incentiva a criar

e imaginar.

Assim, nossa opção em adotá-lo nos leva a pensar na possibilidade de se

estabelecer, na escola, uma relação mais justa, coerente, significativa e prazerosa

entre professores e alunos.

37

1.2 DESENVOLVIMENTO INFANTIL: DA NARRATIVA À NARRATIVA

DE FICÇÃO

No dicionário Aurélio, narrar significa expor minuciosamente, contar, relatar fatos...

Entretanto, quando aprofundamos as reflexões sobre a narrativa e procuramos

abordá-la enquanto prática histórica e cultural, destacando seu papel na constituição

dos sujeitos, constatamos que a narrativa envolve mais do que “narrar fatos...”,

como afirma Girardello (2003):

A narrativa chega cedo à vida da criança, já em seus primeiros dias de vida. Chega através do padrão musical regular dos acalantos, que, como histórias, se abrem e fecham nitidamente, contendo em si um mundo particular. Chega através das letras das cantigas que tantas vezes contam histórias, como O Cravo brigou com a Rosa... e Atirei o Pau no Gato, para ficar nos exemplos mais óbvios. Chegam através das canções que marcam a infância e a juventude da mãe e do pai que a embalam no colo, selecionadas de um arquivo pessoal de favoritas aprendidas também no rádio e na TV. [...] E a narrativa chega através da conversa do adulto que conta ao bebê o que fez e aconteceu, familiarizando-o com os ritmos do relato e com o que eles significam (GIRARDELLO, 2003, p.1). 3

São várias as concepções que se pode encontrar acerca da narrativa. Dentre elas,

selecionamos as que consideramos mais interessantes para o nosso estudo.

Ampliando o conceito de narrativa encontrado no dicionário Aurélio, Seixo (1977)

nos diz que a narrativa se liga preferencialmente à literatura, precisamente ao

romance de ficção, mas considera outras formas narrativas que a integram como o

diário.

Como se vê, a narrativa faz parte da comunicação verbal que utilizamos

cotidianamente seja através da linguagem oral ou escrita. Dentro desta visão torna-

se fácil compreendermos como ela impregna nossa vida “desde a conversa com os

amigos ao filme que se vê, da receita da cozinha à estrutura discursificada de um dia

que se viveu. Tudo o que se conta é narrativa” (SEIXO, 1977, p.15). Conforme essa

3 Esse conceito de narrativa redimensiona a prática do ensino de linguagem para as crianças da educação infantil, pois implica em mudança de postura. Ou seja, para que o professor tenha condições de mediar o processo da construção da narrativa na criança de forma sistemática, é necessário um trabalho de conhecimento específico do professor sobre o desenvolvimento psíquico da criança e sobre a linguagem. Sua tarefa essencial será a de promover condições para que a criança alcance e internalize tais conhecimentos até atingir o grau de independência e organize seus próprios conhecimentos. Nesse sentido, a narrativa possui papel de destaque à medida que possibilitam, através das trocas verbais, inúmeras possibilidades de aquisição/construção da memória, imaginação, afetos, sentidos...

38

autora, a unidade mais importante da narrativa é a seqüência lógica dos fatos

definida como a significação no desenrolar da intriga. Por outro lado, a autora afirma

que narrativa não corresponde só, essencialmente, à necessidade ou desejo de

contar (de informar, seriando logicamente); a narrativa traz, sobretudo, o prazer do

discurso, e por isso a criança pergunta “e depois?” com muito mais ansiedade se

previamente conhece o encadeamento funcional da história que lhe contam.

Assim, Seixo chega à definição que Todorov dá à narrativa: “Texto referencial com

temporalidade representada”. Um conceito mais abrangente do que esse, é

encontrado na obra de Cabral (1989, p.1) intitulada “A Narração”: Segundo a autora:

“Narrar é fazer um relato de determinada seqüência de acontecimentos, reais ou

inventados”. Nesse sentido, uma pessoa que conta uma história fictícia ou relata

acontecimentos e informações, estará narrando. Nesse conceito, o emergir da ficção

passa a ser visível resgatando assim, uma necessidade humana que a cientificidade

tentou abolir – a imaginação.

A necessidade de narrar existe desde os primórdios e está presente em qualquer

lugar do mundo como bem afirmou Barthes (apud D’ONOFRIO, 2001, p.53): “A

narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as

sociedades... internacional, trans-histórica, transcultural, a narrativa aí está, como a

vida”. É preciso esclarecer, portanto, que o papel da narração não é apenas informar

acontecimentos, mas, sobretudo cativar o ouvinte. Como diz Cabral (1989, p. 10):

“um acontecimento só desperta nosso interesse quando ele envolve, de alguma

maneira, os seres humanos”. Isso implica admitir a existência de “algo mais” na

narrativa que naturalmente e diariamente se pratica nas relações sociais que se

utilizam da linguagem verbal para se comunicar. Ou seja, isso ocorre quando se

introduz outros elementos que ultrapassam a informação e a descrição daquilo que é

captado pelos nossos sentidos diante da realidade à nossa volta.

Cavalcanti (2002, p. 19) nos assegura que “desde sempre o homem narrou”. Deste

modo ela caracteriza o homem como “ser narrativo”, antes de se constituir “ser

pensante”; isto porque impulsionado pelo instinto de sobrevivência, o homem, desde

os primórdios, deparou-se com um mundo desconhecido e ameaçador tendo que

lançar mão do universo sagrado para compreender a realidade a ser explorada,

dominada e conquistada. A autora assim relata a passagem do homem em seu

39

estado selvagem para dar os primeiros passos na direção cultural:

Na sua dificuldade de explicar todos os fenômenos que ocorriam no imprevisível mundo selvagem, tais como a chuva, o vento, a chegada do dia, da noite, o nascimento das plantas, as rochas, as águas, os animais, enfim o infinito, dentro e fora dele mesmo, ia se apropriando das coisas, sem explicações lógicas. O mundo das coisas, dos seres e dos fenômenos, faziam parte do evento numinoso, somente alcançado por meio de uma concepção mágica e fantástica da realidade (CAVALCANTI, 2002, p.19).

Este relato marca o momento de inserção do homem no mundo simbólico e

esclarece o sentido da linguagem “como ponto máximo do processo de

humanização [...] que vai provocar a descoberta de uma realidade capaz de ser

narrada e transformada” (CAVALCANTI, 2002, p.20).

Desse ponto de vista a linguagem, na sua especificidade narrativa, constitui uma das

mais valiosas formas de comunicação do homem. Segundo essa autora, “ela está

em tudo e em toda parte como transfiguração do real” (CAVALCANTI, 2002, p.21).

Vieira e Sperb (1998) situam o surgimento do esquema narrativo, no campo da

psicologia, a partir dos trabalhos de três autores: Walter Benjamin, Bartlett e Bruner.

Em Benjamin os autores destacam o papel e o uso da linguagem no mundo

moderno, muito pertinente ao aspecto narrativo da linguagem, pois para Benjamin a

narrativa, cujo primeiro modelo seria os contos de fadas, (narrativas de ficção) tem

origens remotas e corresponde a um tipo de experiência que se realiza com muita

dificuldade no mundo atual.

Além disso, a narrativa para Benjamin (1983) consiste em um trabalho artesanal,

tendo como matéria-prima, as experiências. O percurso por ele traçado permite

identificar, na própria natureza da narrativa, a dimensão utilitária, pois o narrador era

um homem que dava conselhos, tecidos na substância de sua própria vida. Era um

homem que dispunha de sabedoria. Assim, a princípio, as histórias eram contadas

pelos viajantes. Em seguida, os camponeses apropriavam-se delas traduzindo-as

para o povoado e finalmente, a arte de narrar ganha aprimoramento por inteiro, ou

seja, pelas mãos e vozes dos artesãos. Por intermédio desses artesãos, o público

torna-se mobilizado e seduzido. Surge então, a verdadeira narração, que através da

40

mão intervém, decisivamente, com seus gestos apreendidos na experiência do

trabalho, sustentando de cem maneiras, o fluxo do que é dito. Através da

retransmissão da história narrada pelo ouvinte, ia se constituindo a condição

essencial da sobrevivência da narrativa, pois narrar histórias é sempre a arte de

continuar contando-as. Segundo Benjamim (1983): “É assim que adere à narrativa a

marca de quem narra, como a tigela de barro Am N marca das mãos do oleiro”.

Diante disso, o autor nos atenta para a importância de se resgatar a arte da narrativa

na constituição do sujeito. Ele nos faz pensar no papel das narrativas em relação à

função social da escola enquanto espaço educativo de fortalecimento dessa cultura

milenar nos sujeitos e narradores enquanto sujeitos da narrativa. Jobim e Souza

(1994) nos ajudam a esclarecer as principais idéias benjaminianas, sobre a

dimensão mimética da linguagem.

Segundo a teoria mimética que esse autor apresenta, a linguagem teria surgido de

uma mímica gestual primitiva e que, no curso da evolução humana, não

desapareceu; apenas se modificou. Isso pode ser observado na criança perante o

jogo infantil.

Os jogos infantis são impregnados de comportamentos miméticos, que não se limitam, de modo algum à imitação de pessoas. A criança não brinca apenas de ser comerciante, ou professor, não imita somente pessoas, mas também moinhos de vento, trens, cavalos... Por meio da mimese a criança imita o real, sendo verdadeiramente aquilo que sua imaginação deseja - pessoas, animais ou coisas (BENJAMIN, apud JOBIM e SOUZA, 1994, p.188).

De acordo com esse autor, a mimese, que se revela no brincar de faz-de-conta,

assume a dimensão fantasista e isto, para nossa pesquisa, é de fundamental

importância, pois contribui para o desenvolvimento da imaginação e, por

conseguinte, da narrativa de ficção na criança. Mas o que representa a narração

para a “era da informação” a qual estamos vivendo? Ao expor as condições que

conduzem à substituição da narrativa por outras formas de comunicação, Benjamin

caracteriza o homem moderno identificando alguns elementos que contribuem para

o declínio da sua experiência. Se considerarmos a narração como algo inerente à

cultura, como já apontamos através do breve relato da narrativa na história da

humanidade, podemos afirmar, assim como esse autor, que ela vem sendo afetada

41

de maneira acelerada e brutal pelo excesso de informação, transformando assim, o

modo de se transmitir a sabedoria milenar da narrativa às novas gerações algo

estritamente formal. Criam-se barreiras entre a realidade e a ficção. Segundo Jobim

e Souza (1995), uma das conseqüências desse ato apontada por Benjamin é:

[...] a exclusão da imaginação dos limites da experiência, ocasionando um irremediável empobrecimento das formas de se chegar ao conhecimento. Uma vez que imaginação, desejo e paixão estão estreitamente relacionados, cindir imaginação e experiência é colocar de um lado o desejo e a paixão e do outro a necessidade. Esfacelada essa unidade da dimensão humana, como recuperar a experiência pura que se expressa diferentemente da racionalização científica? Ou melhor, como recuperar a imaginação como mediadora entre a experiência sensível e o intelecto possível? (JOBIM e SOUZA, 1995, p.146).

Ainda de acordo com esse autor, o narrador é aquele que dá conselhos ao ouvinte.

Para isso, seria preciso antes de tudo, saber narrar. Diante dessa concepção, o

autor coloca a figura do narrador como professor (figura do sábio). Seu talento

consiste em saber narrar. No entanto, a resposta dada por Benjamin (1983) sobre a

questão apresentada acima não é muito animadora:

A arte de narrar caminha para o fim. Torna-se cada vez mais raro o encontro com pessoas que sabem narrar alguma coisa direito. É cada vez mais freqüente espalhar-se em volta quando se anuncia o desejo de ouvir uma história. É como se uma faculdade, que nos parecia inalienável, a mais garantida entre as coisas seguras, nos fosse retirada. Ou seja, a de trocar experiências (BENJAMIN, 1983, p.57).

Convém esclarecer que narrar, na perspectiva apontada por esse autor, não

significa produzir uma sucessão de enunciados soltos entre dois sujeitos e sim

narrar fatos, desejos, sentimentos, fantasias.

Benjamin nos leva a pensar a construção da narrativa em um processo de

possibilidades para o fluir do pensamento criativo e imaginativo na criança. Assim,

independente do papel que as narrativas desempenham no desenvolvimento

humano, há que se pensar nos frutos que se pode colher dessa experiência.

Bartlett, (apud VIEIRA e SPERB, 1998) estando interessado em estudar os aspectos

psicossociais da memória, chega à conclusão de que o sujeito tem um papel

fundamentalmente ativo na assimilação das narrativas. Isto é, o sujeito reconstrói a

história no ato de recontá-la, a partir de seus interesses e de suas experiências

42

passadas. Assim, segundo Vieira e Sperb, o primeiro "esquema narrativo" elaborado

no âmbito da psicologia foi um modelo de assimilação e de recuperação de histórias

através da experiência passada do sujeito.

Essa abordagem da Psicologia relacionando a narrativa a partir dos estudos sobre a

memória, remonta desde a antiguidade, constituindo-se assim a narrativa como

história, pois, desde a Grécia antiga, Mnemosyne, a deusa da reminiscência era

segundo Walter Benjamin, tida como a musa da poesia épica.

Pode-se dizer que Benjamin (1983) articulou narrativa e memória quando escreveu

que a narrativa tem uma função de transmitir a experiência tanto pessoal como as

experiências coletivas de um povo ou de uma cultura, as quais são expressadas nas

formas de conto ou da saga.

Neste sentido, a narrativa poderia ser definida como a mais legítima portadora das

tradições orais. Para Benjamin, a narrativa tem uma dimensão utilitária, na medida

em que transmite um ensinamento moral, uma sugestão prática, um provérbio ou

uma forma de vida. A narrativa, em sua dimensão coletiva, guarda uma sabedoria

construída na experiência.

Bruner (1997) também ressaltou esta dimensão utilitária da narrativa. Para ele, a

narrativa tem uma função organizadora da experiência.

Começa a ficar claro por que a narrativa é um veículo tão natural para a psicologia popular. Ela lida (quase que a partir da primeira fala da criança) com o material da ação e da intencionalidade humana. Ela intermedeia entre o mundo canônico da cultura e o mundo mais idiossincrático dos desejos, crenças e esperanças. Ela torna o excepcional compreensível e mantém afastado o que é estranho, salvo quando o estranho é necessário como um tropo. Ela reitera as normas da sociedade sem ser didática. Ela pode até mesmo ensinar, conservar a memória, ou alterar o passado (BRUNER, 1997, p.52).

Assim, a narrativa possui uma função histórica e psicológica: a de transmissão das

experiências, a de conservação e mesmo a de transformação da memória e,

também, a da organização da representação da realidade, ou como quer Bruner

(1997, p.12), da "construção do mundo".

43

Diante dessas considerações, indagamo-nos sobre um tipo específico de narrativa: a

narrativa de ficção.

1.2.1 Narrativa de Ficção

Para Held (1980) a narrativa de ficção, que ela denomina “obra fantástica”, é a “obra

imaginável” como se vê na definição de literatura fantástica que ela apresenta:

Em oposição à obra dita “realista”, que descreve o que cada um pode observar, o que cada um pode viver, ela nos propõe o que parece inimaginável e que, no entanto, um dia foi imaginado. O que nos leva, de bom ou de mau grado, a examinar mais de perto as relações entre real e imaginário (HELD, 1980, p.23).

De acordo com essa autora, esse tipo de narrativa tem suas especificidades, pois

materializa e traduz todo um mundo de desejos:

De fato, a narração “realista”, no sentido de ser um conto tornado totalmente objetivo de alguns fatos, um instantâneo fotográfico despojado de qualquer afetividade, de nossos desejos, de nossas emoções e de nossos temores, nos atingiria? Não, sem dúvida. Num grau ou outro, a narração realista nos interessa e nos toca porque apresenta talvez a realidade, mas também porque toda realidade é modelada pelo sonho, e recriada pelo autor (HELD, 1980, p.27-28).

Portanto, as narrativas de ficção têm esse poder de cativar as pessoas, prendê-las

em sua trama até o fim, devido o modo como é apresentada: uma seqüência de

acontecimentos significativos inter-relacionados e que “responde uma necessidade

muito profunda da criança: Não se contentar com sua própria vida” (Held 1980,

p.17). Antes de aprofundarmos na narrativa de ficção, faz-se a necessário um maior

esclarecimento acerca da palavra ficção que acompanha a narrativa tal como foi

definida.

A enciclopédia Einaud apresenta-nos três acepções da palavra ficção: uma mais

geral, ligada à fantasia, outra relacionada à ficção científica e a que se refere à

literatura como uma dimensão da arte. Walty (1985) desenvolve esses conceitos em

seu livro: “O que é ficção”, dando ênfase à dimensão artística. A autora enfatiza a

importância da ficção na vida dos seres humanos trazendo-nos importantes

reflexões para pensar o lugar que ela ocupa na nossa sociedade. Ao discorrer sobre

44

esse assunto, a autora propõe voltar à origem da palavra ficção relacionando-a ao

ato criativo como forma de romper com a visão que se tem reservado à arte - “um

espaço inferior” 4. Portanto, ficção é criação.

Buscando a força do sentido que essa palavra representa em cada época histórica,

ela apresenta o conceito pejorativo que a palavra ficção assumiu em Platão - um

erro, uma cópia desvirtuada do real - e em Aristóteles, uma mimese, uma imitação

da realidade. Para ambos, algo que se distingue do real. Assim é que a concepção

de ficção, forjada naquele pensamento continua vigorando até os dias atuais como

algo completamente oposto do real.

Ficção seria, pois, criação da imaginação, da fantasia, coisa sem existência real, apenas imaginária. É por isso que quando alguém não acredita em algo que você diz, replica logo: - Isso é ficção. Ou: - Isso é poesia! Ficção se confunde com sonho, com utopia e até com loucura (WALTY, 1985, p.15).

Podemos perceber que o real para Platão era o ideal; o que se afastasse disso era

considerado inferior, merecendo ser ignorado ou afastado do convívio cultural.

Diante dessa concepção, a autora faz os seguintes questionamentos: Não seria,

pois, a existência da ficção que nos permitiria pôr em causa a realidade tal como nós

a percebemos? Onde está a ficção? Como convivemos com ela? A criança e o

adulto têm a mesma visão do mundo? Como se desenvolve essa narrativa na

Criança?

1.2.2 O Desenvolvimento da Narrativa na Criança

Conforme visto na abordagem mais abrangente apresentada por Girardello (2003), a

narração de histórias de ficção para crianças pequenas ganha destaque como uma

atividade de grande importância na ampliação do repertório cultural da criança e

para o desenvolvimento da sua subjetividade.

4 Walty (1985, p.30) cita vários exemplos que justificam essa sua afirmação: a redução da carga horária da chamada Educação Artística; a baixa freqüência dos alunos nessa disciplina; as questões de literatura relegadas a segundo plano no vestibular em detrimento das ciências exatas, as falas (que geralmente se traduzem em “coitados”) dirigidas àqueles que se dedicam à carreira artística como algo digno de pena em função da insignificante remuneração.

45

Segundo Girardello, a professora que se senta junto à criança para contar uma

história, está se dispondo a uma interação que vai muito além do plano verbal. A

entrega a essa atividade começa pela atitude corporal (de aproximação) tanto da

professora como dos alunos - o momento de contar histórias para as crianças será

tão mais rico quanto mais próximo desse “estado de presente” encontrar-se o adulto,

tenha a idade que tiver.

Destacando o papel que a narrativa assume no desenvolvimento da criança,

Girardello afirma que:

A criança já chega ao mundo com um ou mais papéis atribuídos a ela, [...], e o único modo pelo qual pode saber o que fazer (ou não fazer) a partir deles é através do estoque social de histórias. E, acrescentamos, através dos ensaios narrativos em que vai tecendo as histórias da cultura aos fios de sua experiência (GIRARDELLO, 2003, p.2).

E conclui:

[...] é ouvindo histórias (lidas e também contadas livremente, inspiradas na literatura ou na experiência de vida)... que elas aprendem desde muito cedo a tecer narrativamente sua experiência, e ao fazê-lo vão se constituindo como sujeitos culturais. Na entrega ao presente do jogo narrativo no âmbito da educação infantil, professoras e crianças ampliam um espaço simbólico comum, pleno de imagens e das reverberações corporais e culturais de suas vozes. Tornam-se seres narrados e seres narrantes, com todas as implicações favoráveis para a vida pessoal, social e cultural de cada um e do grupo. (GIRARDELLO, 2003, p.10).

Portanto, a vivência da narrativa contribui para o desenvolvimento do pensamento

lógico das crianças e também de sua imaginação. Girardello aponta, ainda, a

existência de dois modos básicos de pensamento: o modo lógico e sistemático -

“que usamos para testar hipóteses e construir explicações” - e o outro modo,

narrativo - “dedicado aos irreprimíveis atos da imaginação que permitem tornar

nossa experiência significativa” (2003, p.2). É no modo narrativo que se destaca a

imaginação, pois, escutar uma história implica envolver-se, ir à frente, antecipando a

ação, fazendo conexões e produzindo sentidos - esse impulso de querer saber o que

vem depois aproxima conceitualmente a narrativa da imaginação.

No nosso entendimento, a narrativa de ficção, envolvida nas diversas formas de

46

linguagens (palavras, imagens, gestos e sons), seria uma das possibilidades de

resposta para as diversas questões formuladas ao longo deste trabalho, já que é

nesse tipo de narrativa que se baseiam nossas necessidades e experiências

significativas.

A concepção teórica de Vigotski (1998a; 1998b) contribui para essa discussão ao

apresentar a história do desenvolvimento humano. De acordo com esse autor, desde

o nascimento a criança desenvolve a capacidade de assimilar a representação

simbólica do mundo, por meio dessas interações. Na relação com seus pares e com

o mundo, o sujeito pensa e elabora suas idéias e dá forma ao seu pensamento. No

decorrer desse desenvolvimento, os processos mentais superiores vão se

manifestando formando-se por meio da ação compartilhada entre sujeitos. O homem

se torna humano quando imerso no mundo da cultura.

Nessa dinamicidade, ou seja, nessas relações sócio-culturais, o psiquismo nasce e

se desenvolve. O sujeito vai construindo conhecimentos através de um processo de

interiorização, no qual assimila, gradativamente, as orientações advindas do meio

social. É importante também esclarecer que Vigotski não concebe a idéia de

desenvolvimento como algo linear e sim como um processo de interação contínuo

que sofre influência das condições sociais alteráveis e da base biológica do

comportamento humano.

Desse modo defende que a aprendizagem da criança em determinada faixa etária

não ocorre de modo idêntico para todas, embora possa haver semelhanças em

certos estágios de desenvolvimento. Entretanto, defende a lei geral de que qualquer

função no desenvolvimento cultural da criança aparece primeiro no plano social

(interpsicológico) e depois no individual (intrapsicológico). Nessas relações vamos

formando nossa subjetividade, vamos nos tornando nós mesmos.

Para ele, a questão fundamental da linguagem, refere-se ao significado das

palavras: “uma palavra sem significado é um som vazio; portanto o significado é um

critério da palavra um seu componente indispensável” (VIGOTSKI, 1998b, p.159). A

linguagem constitui-se em um processo vivo, que se constrói e se modifica de

maneira constante e permanente no âmbito das relações humanas, o que lhe

confere o caráter dialético.

47

Vigotski (1998b) aborda o significado das palavras a partir da relação entre

pensamento e linguagem.

[...] a relação entre o pensamento e a palavra não é uma coisa mas um processo, um movimento contínuo de vai-vem entre a palavra e o pensamento; nesse processo a relação entre a palavra e o pensamento sofre alterações que, também elas, podem ser consideradas como um desenvolvimento no sentido funcional (VIGOTSKI, 1998b, p.165).

Nesse processo, as palavras – signos – têm um papel fundamental: “As palavras

não se limitam a exprimir o pensamento: é por elas que este acede à existência”

(VIGOTSKI, 1998B, p.165).

Sua teoria acerca do desenvolvimento humano - especificamente o infantil – é muito

importante para o desenvolvimento dessa pesquisa, pois contribui para o

entendimento do papel da mediação, da linguagem e da imaginação que

utilizaremos ao longo do nosso trabalho.

Vigotski deu uma posição de destaque à linguagem por acreditar que o processo de

desenvolvimento e funcionamento mental é determinado pela linguagem. Os signos

carregam em si, os conceitos generalizados e elaborados pela cultura humana e

intervêm na formação e funcionamento de todas as funções psicológicas.

Nessa idéia, Vigotski expressa o mecanismo do processo de internalização, que

intervém no desenvolvimento das complexas funções psicológicas.

Para esse teórico a linguagem tem uma participação efetiva na constituição da

imaginação da criança, uma vez que a linguagem libera a criança das impressões

imediatas oferecendo-lhe a oportunidade de pensar e representar objetos que

estejam fora de seu campo visual. Ou seja, à medida que a linguagem se

desenvolve na criança, desenvolve-se também uma imaginação, cada vez mais

independente das situações concretas.

De acordo com Vigotski (1996), podemos sintetizar alguns aspectos centrais do

desenvolvimento da linguagem nas crianças nos primeiros anos de vida, do seguinte

modo:

48

• A linguagem tem a função de comunicar, indicar, porém não tem a

possibilidade ainda de substituir objetos.

• As palavras dessa linguagem possuem características peculiares que se

diferenciam das palavras do adulto, tornando-se comunicáveis pelo

significado. Mesmo fazendo uso dessa linguagem, as crianças entendem a

linguagem dos adultos, que têm participação ativa em sua constituição.

• Nessa fase, sua característica fundamental, portanto, é a percepção. A

criança tem dificuldade de imaginar situações que não acontecem.

• O estreitamento da relação entre pensamento e linguagem possibilita à

criança ir além da percepção imediata. Ampliam-se as possibilidades de

generalização. A generalização é o prisma no qual se refratam todas as

funções da consciência. Em sua tese geral Vigotski afirma que a

transformação do sistema de inter-relações das funções se faz estreita e

diretamente vinculado com o significado das palavras, com o fato de que os

significados das palavras começam a mediar os processos psíquicos.

Nesse desenvolvimento, o papel mediador do outro é fundamental. Na escola, a

mediação, adequadamente organizada, contribui para o aprendizado que por sua

vez tem sua origem no processo que parte do interpsicológico – apropriação de

conhecimentos históricos e culturais compartilhados – para o intrapsicológico –

abstração e internalização desses conhecimentos. Esse processo resulta em

desenvolvimento mental que põe em movimento elementos que seriam impossíveis

de acontecer sem esse aprendizado.

Podemos concordar com Vigotski quando diz que, a aprendizagem é um processo

essencialmente histórico e cultural mediado pelas interações com as pessoas e

objetos; o desenvolvimento é resultado desse processo e a escola é o lugar

privilegiado para sistematizar e desenvolver esse processo - aprendizagem e

desenvolvimento são processos indissociáveis. Nesse sentido:

49

Cuanto más vea, oiga y experimente, cuanto más aprenda y asimile, cuantos más elementos reales desponga en su experiencia, tanto más considerable y productiva será a igualdade de las restantes circunstancias, la atividade de su imaginación (VIGOTSKI, p.18, 1987). 5

Essa posição de Vigotski revela a importância e o cuidado que o mediador, no caso

o professor, deve ter ao formar as ações pedagógicas no sentido de contribuir para o

desenvolvimento da imaginação na criança, outro aspecto de fundamental

importância para nossa pesquisa. A imaginação de acordo com essa perspectiva,

não se origina de processos maturacionais; ela se constrói à medida que a criança

atribui significado à ação ou atividade que realiza. “A ação numa situação imaginária

ensina a criança a dirigir seu comportamento não somente pela percepção imediata

dos objetos ou pela situação que afeta de imediato, mas também pelo significado

dessa situação” (VIGOTSKI, 1998, p.127).

A atitude do adulto faz uma grande diferença para a criança desenvolver-se nesse

aspecto do imaginário, quando se planeja um ambiente favorável ao faz-de-conta.

Uma possibilidade de contribuir com esse faz-de-conta é introduzindo a narrativa de

ficção (através das atividades criativas, estimuladoras que permitem à criança

brincar com as palavras, inventar: jogos, brincadeiras, conto e reconto de histórias,

dramatização...) pois ela constitui o elo de ligação entre a imaginação e a cultura -

dois conceitos fundamentais na teoria vigotskiniana.

Vigotski (1982) esclarece que a imaginação - base de toda a atividade criadora - se

manifesta em todos os aspectos da vida cultural. “Todos os objetos da vida diária,

sem excluir os mais simples e habituais, vem a ser algo assim como fantasia

cristalizada” (VIGOTSKI, 1982, p.10). Portanto, o mundo cultural é produto da

criatividade humana baseada na imaginação. Suas pesquisas mostraram que “...

não só o aparecimento em si da linguagem, mas também os momentos cruciais mais

importantes em seu desenvolvimento são ao mesmo tempo momentos cruciais

também no desenvolvimento da imaginação infantil” (VIGOTSKI, 1998c, p.122-123).

Daí nossa responsabilidade em oferecer à criança uma literatura de qualidade, que

5 Quanto mais veja, ouça e experimente, quanto mais aprenda e assimile, quantos mais elementos reais disponham em sua experiência, tanto mais considerável e produtiva será a igualdade das restantes circunstâncias, a atividade de sua imaginação. (tradução nossa).

50

instigue sua imaginação.

Ao elaborar suas teses acerca da linguagem, Bakhtin (1992a – 1992b) complementa

significativamente os pressupostos vigotskianos, em sua Teoria da Enunciação, ao

ressaltar, dentre outros aspectos, o papel da palavra na constituição do sujeito.

Afirma que:

Tudo o que me diz respeito, a começar por meu nome, e que penetra em minha consciência, vem-me do mundo exterior, da boca dos outros (da mãe, etc.), e me é dado com a entonação, com o tom emotivo dos valores deles. Tomo consciência de mim, originalmente, através dos outros: deles recebo a palavra, a forma e o tom que servirão para a formação original da representação que terei de mim mesmo. [...] É mais tarde que o indivíduo começa a reduzir seu eu a palavras e categorias neutras, a definir-se enquanto homem, independentemente da relação do eu com o outro (BAKHTIN, 1992a, p.378).

O autor destaca ainda que a importância da linguagem não está tanto nas palavras,

mas no sentido que elas possuem. E este sentido se configura no contexto da

interação verbal como afirma o autor:

[...] A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua (BAKHTIN, 1992b, p.123, grifo do autor).

Portanto, em sua teoria destaca-se, o dialogismo como aspecto fundamental na

compreensão da linguagem. Bakhtin (1992b, p.123) entende o conceito de diálogo

não apenas como “uma comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a

face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja”.

Nesse sentido até a própria compreensão ou interpretação de um enunciado (uma

contrapalavra), constitui-se em um diálogo.

Para esse autor, na relação dialógica encontram-se, em toda sua integridade,

posições, pessoas, vozes, ecos, lembranças e por isso, todo o enunciado é

dialógico, ou seja, é sempre acompanhado de uma atitude responsiva e ativa de

audição e compreensão em que o sujeito concorda, discorda, completa ou adapta.

Ainda de acordo com suas idéias, nesse princípio dialógico ocorre o processo de

internalização do discurso do outro, ou seja, há a incorporação/apropriação das

51

palavras alheias, que gradualmente se transformam em palavras-alheias-próprias e

por fim em palavras próprias.

Para Bakhtin, os sentidos não existem como algo já dado, mas são constituídos por

meio de enunciações concretas. “[...] Os indivíduos não recebem a língua pronta

para ser usada; elas penetram na corrente da comunicação verbal; ou melhor,

somente quando mergulham nessa corrente é que sua consciência desperta e

começa a operar” (BAKHTIN, 1992b, p.108). As enunciações, por sua vez, fazem

parte de um diálogo estabelecido na relação social entre pelo menos dois sujeitos:

locutor e interlocutor. Os sentidos se delineiam nas trocas verbais entre os sujeitos e

são, em parte, “daquele” que dirige a palavra a alguém e, em parte, do “outro” que a

recebe.

Por todas essas razões, o dialogismo em Bakhtin é perpassado por muitas vozes no

mesmo enunciado. Bezerra (2005, p.191-199) esclarece melhor sobre o conceito de

polifonia desenvolvido por Bakhtin. Segundo esse autor, Bakhtin não constrói suas

concepções de monologismo, dialogismo e polifonia como abstrações desprovidas

de conteúdo histórico, social e ideológico.

O dialogismo, da forma proposta por Bakhtin, é extraído de seus estudos sobre o

romance de Dostoievski e procura construir a imagem do homem num processo de

interação comunicativa, no qual eu me vejo e me reconheço através do outro, na

imagem que o outro faz de mim, pois, para Dostoievski, não há como conhecer-se a

si próprio, sem o outro.

O que caracteriza a polifonia, então, é a posição do autor como regente do grande

côro de vozes que participam do processo dialógico. “A polifonia se define pela

convivência e pela interação, em um mesmo espaço do romance, de uma

multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis...” (BEZERRA,

2005, p.194).

1.2.3 O Desenvolvimento da Narrativa de Ficção na Criança Pequena

Muitos autores têm discorrido sobre a compreensão da linguagem oral em seu

aspecto narrativo. Apresentaremos o percurso da criança na construção da narrativa

52

até alcançar o aspecto mais amplo dessa linguagem – a narrativa de ficção.

Perroni (1992) em estudo longitudinal procurou analisar as interações informais de

duas crianças, no período de dois aos cinco anos de idade, com o adulto interlocutor

em diversas situações do cotidiano familiar. Nessas interações, a autora procurou

destacar o processo de desenvolvimento do discurso narrativo dessas crianças.

Para compreender como as crianças pequenas chegam a dominar a estrutura e o

funcionamento do discurso narrativo oral, ela investiga: a estratégia ou recurso que

se deve optar para a realização desse processo; o papel das histórias tradicionais

(clássicos infantis) e dos adultos nesse desenvolvimento; e a partir de que idade

pode-se supor que uma criança consiga construir uma narrativa coerente. Tal

processo inicia-se bem antes da criança verbalizar as palavras, ou seja, antes

mesmo de seus textos serem reconhecidos. Segundo a autora, na fase da

“linguagem natural”, antes de dois anos, a criança emite sons e palavras soltas que

se situam no contexto do aqui-agora. Portanto o seu “discurso” apresenta-se preso

ao momento presente que faz parte da sua realidade imediata.

Através desse estudo, Perroni observou que em contextos onde as narrativas são

produzidas, as crianças, desde a idade de dois anos, realizam suas primeiras

tentativas de narrar em conjunto com o adulto. Ou seja, à medida que o outro

interfere nos enunciados da criança interpretando, corrigindo, confirmando,

negando... a linguagem oral vai se internalizando até chegar à fase (que na pesquisa

foi identificada aos quatro anos de idade) na qual a criança se constitui como

narrador, sujeito do enunciado.

Perroni mostra duas situações em que o adulto pode contribuir para a construção da

narrativa na criança: a primeira é através de perguntas em situações de

complementaridade; e a segunda é quando o adulto lhe conta estórias. Apoiada nos

estímulos lingüísticos da própria narrativa de ficção que se utiliza de expressões de

abertura e fechamento do tipo “era uma vez, viveram felizes para sempre...” a

criança percebe as relações temporais, deslocando-se para o passado e presente e

evolui através desses textos narrados pelo interlocutor.

[...] à medida que a criança vai construindo sua narrativa, com a presença dos marcadores da narrativa (verbos de ação empregados no perfeito ou no imperfeito – era, daí, foram...) que dão sentido ao que se narra, ela avança

53

em sua trajetória para a autonomia narrativa tanto no nível do léxico quanto no nível do discurso” (PERRONI, 1992, p.228).

O estudo comprovou que a criança possui um papel ativo na própria constituição da

narrativa. Para a autora, a dinâmica interativa, o “contexto” onde ocorre a “interação

da criança com o mundo físico; com o mundo social, ou com o outro que o

representa, e com os objetos lingüísticos, isto é, com enunciados efetivamente

produzidos”(PERRONI, 1992, p.15), constitui o conceito-chave para a análise

lingüística. Baseando-se na fala de Lemos (1981), a autora fundamenta a idéia de

que as pesquisas que analisam o processo de aquisição da linguagem deveriam

extrapolar o contexto em que se dá a interação verbal entre crianças e

interlocutores:

Não se trata agora de considerar o contexto de interação funcionando como o “lugar” especial do aprendizado de certas formas lingüísticas, mas, mais do que isso, é preciso relacionar a interação social ao desenvolvimento da linguagem, vistos como processos interdependentes (cf. LEMOS 1981, apud PERRONI, 1992, p. 15).

Suas conclusões apontam para a necessidade de se compreender como a criança

representa em cada fase de seu desenvolvimento sua narrativa em relação ao seu

interlocutor e à situação de interlocução a qual se insere, pois, “a estrutura narrativa

a cada passo de seu desenvolvimento depende da construção pela criança de seu

interlocutor, da situação de interlocução e da própria função do discurso, fatores

esses independentes” (PERRONI, 1992, p.232-233). Entendemos, através desse

estudo, que devemos apurar nosso olhar para o caminho que a criança traça na

construção de seu discurso narrativo em sua relação com a linguagem e com os

fatores acima citados.

54

CAPÍTULO II

2 LITERATURA INFANTIL: ESTUDOS E DEFINIÇÕES

De todos os materiais de estudo, o conto popular maravilhoso é justamente o mais amplo e mais expressivo. [...] revela informação histórica, etnográfica, sociológica, jurídica, social. É um documento vivo denunciando costumes, idéias, mentalidades, decisões e julgamentos. Para todos nós o primeiro leite intelectual.

Câmara Cascudo

Santos (2002), em um dos seus artigos, apresenta uma proposta de valorização da

literatura infantil, desde a educação pré-escolar, tendo como justificativa, a seguinte

argumentação:

O trabalho com a literatura infantil deve permanecer como centro das preocupações das escolas e dos adultos, por uma questão política e cultural, dando ênfase ao processo de desenvolvimento do indivíduo como ser apto e capaz de discernir o real do imaginário (SANTOS, 2002, p.57).

Os intensos debates sobre a educação infantil ocorridos desde a década de 80

contribuíram para formar a idéia consensual de que hoje, mais do que nunca, as

instituições infantis, em suas funções de educar e cuidar precisam (re)orientar seu

processo de ensino e aprendizagem em direção de uma coexistência da dimensão

afetiva e cognitiva no contexto escolar. Nessa constante caminhada, o professor tem

diante de si desafios e tarefas que conciliados aos objetivos maiores, irão auxiliar as

crianças na construção da narrativa e, segundo Girardello (2003), a narrativa

“contribui para o desenvolvimento do pensamento lógico e da imaginação”. Entre as

tarefas e desafios destaca-se a preparação do ambiente para despertar na criança o

desejo de imaginar, fantasiar, criar e aprender.

O ambiente escolar é, portanto, considerado o lócus ideal para as investigações do

cotidiano infantil tanto no plano psicológico quanto no pedagógico. As pesquisas que

55

enfocam a criança no contexto escolar revelam a importância de se considerar a

estrutura e a organização do tempo e do espaço como um dos fatores de

interferências no seu desenvolvimento. No entanto, por inúmeras razões também já

explicitadas, isso nem sempre acontece no interior das instituições infantis e o

desenvolvimento da criança acaba sendo prejudicado.

Compreendemos que a literatura infantil, pela sua magia e encanto, possui a força

de despertar na criança o seu potencial criativo. Nesse sentido, concordamos com

as autoras acima citadas, e reiteramos; a literatura infantil pode sim contribuir de

forma lúdica e prazerosa para o processo de aquisição e apropriação de

conhecimentos pelo fato de oferecer às crianças diversas possibilidades de criação.

Este estudo sobre a literatura infantil surge da necessidade de fornecer subsídios

teóricos e criar condições para valorizar e incentivar uma prática literária mais

sistemática e significativa. A necessidade de oferecer referenciais teóricos é fruto

das observações feitas como docente nas instituições de ensino, da auto-reflexão

sobre essa prática, das diversas leituras e também dos depoimentos de colegas de

trabalho.

Entendemos que somente através de uma sólida formação e permanente

capacitação docente é que teremos condições de exigir das administrações públicas

o cumprimento de seu papel na implementação de ações voltadas, de fato, para o

desenvolvimento pleno das crianças. Ou seja, a partir do momento em que o

educador tiver clareza de seu papel, terá condições de melhor exercer sua ação na

instituição educativa, exigindo até mesmo dela, melhores condições para expandir e

pôr em prática as inúmeras possibilidades de colaborar na formação da criança,

através da literatura.

Segundo Coelho (1987, p.12), “A valorização da literatura infantil, como fenômeno

significativo e de amplo alcance na formação das mentes infantis e juvenis, bem

como dentro da vida cultural das sociedades, é conquista recente”.

Teóricos em literatura infantil vêm despertando a atenção de professores,

pedagogos, pais, psicólogos e psicanalistas, para a importância dessa área no

desenvolvimento do psiquismo humano. Consequentemente, a literatura infantil vem

ganhando espaços nos congressos, seminários, encontros de formação profissional

56

e no mercado editorial.

No entanto é preciso investigar, também, a forma que a escola vem desenvolvendo

a literatura infantil em suas práticas pedagógicas: um mero entretenimento para as

crianças, reduzindo-a em atividade banal dentro da rotina escolar, ou um recurso

que oferece ricas possibilidades para despertar, desenvolver e aprimorar o interesse

da criança pela literatura? É possível concebê-la numa prática que permita adotá-la

como fonte inesgotável de prazer e entretenimento e, ao mesmo tempo, como fonte

de conhecimento?

FREITAS (2001) nos revela uma prática escolar negligente em relação à literatura:

O fato de a literatura ser utilizada como instrumento de controle sobre as crianças e meio de garantia de silêncio em sala de aula; o trabalho assistemático com o texto literário; a precária relação do professor com a leitura, sendo o gênero informativo preferido por ele; o descrédito do professor, principalmente o da área de linguagem, pela leitura de literatura, sendo essa atividade considerada sem significado, se não vier acompanhada de um objetivo técnico, que vise à obtenção de algum conhecimento (FREITAS, 2001, p.21).

Somam-se a isso um outro agravante - o econômico - como principal fator que afeta

os educadores, desmotivando-os quanto ao uso da literatura. Oliveira (1996, p.35)

afirma que: “O baixo salário leva o professor a trabalhar mais horas, acumulando

jornada em mais de uma escola. Com isso não lhe sobra tempo para ler e conhecer

melhor a literatura infantil”. Desse modo, a autora defende a realização de um

trabalho sistematizado e permanente de literatura infantil no espaço escolar e

propõe a preparação específica do educador nessa área, incluindo-a nos currículos

de habilitação e ao longo de sua própria formação. Segundo Oliveira (1996, p.35),

“uma formação defasada e sem condições de auto-cultivo leva o professor a não

desenvolver o gosto nem o hábito de leitura; torna-se, portanto, um não-leitor”.

Conseqüentemente, uma coisa puxa a outra. Essa falta de estímulo à literatura

infantil, vai se constituindo no despreparo em lidar com os desafios e revelando uma

carência de conhecimento nessa área por parte do professor. Nesse sentido,

professor precisa atualizar-se e sensibilizar-se, buscando assim, novos

conhecimentos.

Porém, no que se refere ao estudo em questão, o interesse pela literatura não é

57

inato e sim um aspecto que envolve ensino e aprendizagem. Como interessar-se,

valorizar, incentivar e praticar algo de que não se tem muito conhecimento? Por

outro lado, como lidar com o excesso ou a escassez de informações? Como

selecionar aquelas obras que nos fazem perceber e compreender as múltiplas

visões sobre a literatura e diferenciar os tipos de narrativas, sua origem, sua

influência na vida das pessoas, sua importância para a formação da criança? Ao que

tudo indica, estamos diante da complexa e velha questão de relação entre teoria e

prática.

Para o enfrentamento dessa problemática questão, Ezequiel Silva (1989), assim

como Oliveira (1996), defende uma formação profissional que seja mais consistente.

Para ele, há um abismo entre a teoria e a prática acerca da psicologia do

desenvolvimento infantil e a realidade do cotidiano escolar vivido pelas crianças e

isto se deve à fragmentação do conhecimento que o professor recebe ao longo de

sua formação tanto inicial quanto continuada. Segundo o autor:

De nada adianta ao professor ser um grande conhecedor das produções literárias infantis e acompanhar os últimos lançamentos, se ele não tiver sensibilidade e compreender, pelo estudo da teoria e pela vivência da prática, os processos subjacentes ao desenvolvimento biológico, psicológico e social das crianças (SILVA, 1989, p.45).

No entanto, a tarefa de aprofundar tais conhecimentos não é algo que se realiza

unicamente por esforços pessoais; escola e professores precisam percorrer e

descobrir juntos os caminhos da literatura e tudo o que ela propicia ao

desenvolvimento humano. Considerando que “não existe natureza humana e sim

condição humana”, como afirma os pressupostos teóricos da abordagem histórico-

cultural, uma possibilidade de mudança a ser dado pelo professor e pela escola,

seria o de refletir sobre a própria prática e sobre as ações implementadas pelas

políticas públicas nas instituições de ensino.

Nesse sentido, as universidades também precisam cumprir com seu papel formador

e oferecer oportunidades para que os alunos conheçam, com profundidade, a área

de literatura e sintam-se aptos e seguros em praticá-la tanto em nível pessoal

quanto profissional.

58

Neste estudo, optamos por adotar uma abordagem que pudesse, muito mais do que

esclarecer, lançar dúvidas para que os professores sintam-se impulsionados a

buscar, no seu próprio processo de formação (acadêmica ou continuada), a

motivação necessária para ressignificar suas relações com a literatura. Nesse

sentido, quais pressupostos teóricos têm permeado a prática educativa no trabalho

com a literatura em crianças de 0 a 6 anos na Educação Infantil? O que é literatura

infantil? Como surgiu? A que veio? A quem se destina? Por que e para que trabalhar

literatura infantil na educação infantil? O que contar e como contar histórias?

2.1 LITERATURA INFANTIL: CONCEITO E FUNÇÕES

A literatura infantil, como uma linguagem específica dentre as múltiplas linguagens

que permeiam o trabalho da educação infantil, tem como nos ensina Junqueira Filho

(2005, p.10), “seu conjunto de regras e princípios de funcionamento próprios”. Ela

expressa as experiências humanas e tem como matéria-prima as paixões (amor,

ódio, amizade, medo, desejos...) e as necessidades vitais (respirar, alimentar,

dormir...). Esse tem sido um dos principais motivos de ela vir a se tornar, atualmente,

objeto de análise de muitos estudiosos em suas diversas áreas de atuação.

Segundo esse autor, exatamente por ser uma linguagem diferenciada, ela requer um

investimento também diferenciado para ser apropriada por crianças e professores.

De acordo com os estudos que vêm sendo desenvolvidos no campo da literatura, as

polêmicas discussões acerca dela tiveram sua origem em Platão e Aristóteles.

Dentre essas discussões, a definição de literatura tem se configurado como um dos

principais pontos de divergências e impasses de difícil resolução a começar pela

própria palavra que tem sua origem do latim: littera=letra. Com o passar dos tempos

o termo foi adquirindo vários sentidos e, hoje, quando se fala em literatura, os

estudos literários abordam a linguagem como matéria-prima da literatura. São

próprias dessa linguagem a polissemia, a ficcionalidade e o estranhamento que é

capaz de causar no leitor. Desse modo, a literatura é a arte verbal que se vale de

uma linguagem literária como meio de expressão.

Dada as limitações de espaço-tempo desse trabalho de dissertação, nos limitaremos

a apresentar, de forma sucinta, alguns aspectos da literatura que consideramos

59

relevantes para os propósitos dessa pesquisa.

O termo “infantil”, agregado à literatura, não tem sido visto com bons olhos por

alguns autores. Os que não concordam com esse adjetivo justificam-se dizendo que

isto promove uma queda na qualidade dos textos por se basearem na simplificação

e empobrecimento da linguagem. A origem dessa idéia encontra-se no fato de

muitos acharem que as crianças não entendem uma linguagem muito sofisticada

como certas literaturas apresentam e, por esta razão, a infantilizam. Como

conseqüência, impõe-se uma delimitação de público a que se destina tal modalidade

literária.

A escritora Tatiana Belinky (2005) não considera a literatura “infantil” um gênero

dirigido exclusivamente ao público infantil e juvenil. Certa vez, em entrevista, ela

declarou: “Não escolho meu público nem faixas etárias, deixo que eles me

escolham”. Talvez seja esse modo de pensar a explicação para o fato de essa

escritora chegar a uma idade tão avançada seduzindo e provocando o imaginário

das crianças e adultos através de suas histórias.

Coelho (2002), em seu livro “Contar Histórias - Uma Arte Sem Idade” afirma que:

Geralmente, uma boa história agrada a todos. Ocorre entretanto que, no caso de uma narrativa para crianças pequenas, é necessário respeitar-lhes as peculiaridades, sobretudo seu estágio emocional. [...] A história é um alimento da imaginação da criança e precisa ser dosada conforme sua estrutura cerebral. Sabemos que o leite é um alimento indispensável ao crescimento sadio. No entanto, se oferecermos ao lactente leite deteriorado ou em quantidade excessiva, poderão ocorrer vômitos, diarréia e prejuízo da saúde... A história também é assimilada de acordo com o desenvolvimento da criança e por um sistema muito mais delicado e especial (COELHO, 2002, p.14-15).

Tendo em vista que a criança não se desenvolve de modo linear é preciso ter

cuidado com as generalizações e desenvolver um trabalho com a literatura que não

subestime as capacidades criativas das crianças, pois, segundo Pondé (1985, p.80),

“[...] a literatura é uma manifestação cultural única que não distingue a idade do

público a que se destina enquanto arte da palavra. A adequação ao leitor é um

procedimento necessário para que haja comunicação e identificação”. Portanto, ela

não é privilégio do público infantil.

60

Diante dessa linguagem multifacetada e complexa que se apresenta a literatura, é

importante nos indagarmos com que finalidade oferecemos esse alimento à criança:

seria para instruí-la? Educá-la? Diverti-la? Ou tudo isso ao mesmo tempo?

No que diz respeito à funcionalidade da literatura, alguns defendem que esta deveria

ter o propósito de divertir; outros que ela deveria informar e instruir; outros ainda

reconhecem como literatura, somente aquela que consegue penetrar nos

sentimentos dos seres humanos, levando-os a se emocionarem através do choro, do

riso, da raiva. No entanto, Jesualdo (1993) nos diz que:

Determinar a função que a literatura infantil tende a realizar na alma e no cérebro da criança é configurar, de certo modo, todo o problema partindo de sua necessidade. Aparentemente este não é o único aspecto analisável, haja vista a sua importância também como instrumento de educação (JESUALDO, 1993, p.24).

Sendo assim, o modo como a literatura infantil é compreendida implica práticas

pedagógicas diversificadas. Ricardo Azevedo (2005) aponta dois modos pelos quais

a literatura infantil tem sido abordada: a literatura infantil utilitária, ligada ao

didatismo e ao conservadorismo; e a literatura infantil literária, poética, ligada à

ficção e à estética.

Estudos têm apontado que, no âmbito da educação, o trabalho com a primeira

concepção tem se repercutido numa prática de ensino reducionista com relação à

literatura. Alessandra Freitas (2001) revela que dentro dessa concepção, a relação

do professor e da criança com a literatura ocorre de maneira difusa, vaga,

assistemática e sem significado. Já a segunda a concepção traz outras

possibilidades, mais interessantes e mais amplas, pelo fato de explorar a riqueza e a

complexidade de sua linguagem na relação constituída com os sujeitos que dela se

utilizam.

De modo geral, autores que fundamentam seus pressupostos teóricos na segunda

perspectiva têm enfatizado a necessidade de se desenvolver um trabalho

distanciado da intenção utilitária e resgatar a dimensão literária repleta de

simbolismo. Dentro dessa concepção, Jesualdo (1993) identifica quatro elementos

característicos na constituição da literatura infantil:

61

Esses quatro elementos (o caráter imaginativo, o dramatismo, a técnica do desenvolvimento e a linguagem), sem sombra de dúvida constituem a base de sustentação dessa literatura chamada infantil. [...] A capacidade de combiná-los numa forma artística e sábia para realizar, no transcorrer da leitura, a integridade da personalidade da criança é que é o mais difícil (JESUALDO, 1993, p.40).

Ainda nessa perspectiva, Coelho (1987) considera que a literatura infantil é antes de

tudo literatura, “é arte, fenômeno de criatividade que representa o mundo, o Homem,

a Vida, através da palavra. Funde os sonhos e a vida prática; o imaginário e o real,

os ideais e sua possível /impossível /realização...” (COELHO, 1987, p.24).

Da mesma forma, para Yunes e Pondé (1989, p. 39): ”A literatura é a porta de um

mundo autônomo que ultrapassa a última página do livro e permanece no leitor

incorporado como vivência”.

Alguns autores, sem desconsiderar o caráter artístico da literatura, consideram

também sua importância para realizar um trabalho de mediação pedagógica. Entre

esses citamos: Rego (apud FREITAS, 2001, p.20), que a concebe como

“instrumento pedagógico que antecede o período formal de alfabetização” e

Zilberman (apud FREITAS, 2001, p.19), que compreende a literatura como

“motivadora da aprendizagem da criança”.

Nesses autores, o conceito de literatura amplia-se à medida que não restringe sua

função social, nem a delimita a um determinado público. Para Chiappini (apud

YUNES e PONDÉ, 1989, p.44), “Não importa que muitas pessoas não consigam

chegar à publicação de suas obras; modernamente se tem considerado como co-

autoria o ato de ler e interpretar a obra, atribuindo-lhe sentido e relacionando-a com

a realidade”. Dessa forma, a autora afirma que se pode considerar como literatura

qualquer texto que tenha a tensão da arte, esteja publicado ou não. Esse “novo

olhar” sobre a literatura poderá contribuir de forma positiva para uma prática que

considere e valorize as produções realizadas pelas crianças na sala de aula.

Nesse sentido, as mais belas narrativas orais recolhidas do repertório popular,

transformadas em “clássicos universais” e repassados de geração a geração se

ajustam com perfeição a esse conceito. Essas narrativas continuam sendo

62

apreciadas, admiradas e repassadas desde os primórdios da humanidade, podendo

ser lidas e relidas várias vezes, sem perda de interesse. Ou seja, as histórias ainda

têm assegurado o seu lugar mesmo com todo o atrativo que os avançados meios de

comunicação têm oferecido; isto porque elas possuem uma linguagem repleta de

significado que satisfaz os mais íntimos desejos do ser humano; e, também, pela

voz dos narradores.

Para concluir essa questão da funcionalidade da literatura, encontramos em

Jesualdo (1993), uma resposta que em parte, nos satisfaz momentaneamente:

A função da literatura tem por si mesma, estimular nas crianças, interesses adormecidos que esperam que essa espécie de varinha mágica os desperte para os aspectos do mundo que os rodeia: age sobre as funções do intelecto, como a imaginação ou o senso estético, que precisam do impulso de correntes externas para adquirir pleno desenvolvimento na evolução psíquica da criança (JESUALDO, 1993, p.29).

Constatamos que, para o autor, a literatura infantil apresenta-se como uma espécie

de varinha mágica que desperta a criança para o mundo, aguçando seu intelecto,

sua imaginação e, acrescentamos nós, organizando aspectos de sua afetividade.

2.2 LITERATURA INFANTIL: ASPECTOS HISTÓRICOS E FUNÇÕES

Perde-se na noite dos tempos - ou seria da madrugada? a origem da arte de narrar.

Betty Coelho

Para muitos estudiosos, o séc. XVII (época da reorganização do ensino e da

fundação do sistema educacional burguês), constitui o marco histórico do

surgimento da literatura infantil. Ricardo Azevedo (2005) nos assegura que a origem

da literatura infantil está necessariamente ligada ao surgimento da escola burguesa,

com intuito pedagógico, ou seja, como instrumento de apoio ao ensino. A

especialista no assunto, Katia Canton (2005), concorda com essa data se

pensarmos em termos de sistematização, mas afirma que as histórias infantis e os

contos populares existem desde que o ser humano adquiriu a fala. Para Nelly

63

Novaes Coelho (2005 p.10), “o ato de contar histórias é tão antigo quanto a

humanidade.” Também para Cavalcanti (2002, p.19), “As narrativas sempre se

constituíram relato essencial da capacidade humana de fabular, fantasiar e criar.

Desde sempre o homem narrou”. Assim é que o “ser narrativo”, inerente ao homem,

seja por contemplação ou por instinto de sobrevivência, foi se constituindo

historicamente, passando de seu estado selvagem em direção à existência de uma

espécie mais complexa, imersa em um mundo cultural construído pela possibilidade

humana de fabular, fantasiar, imaginar, enfim narrar.

Barcellos (2002) nos fornece em seus relatos, dados para a compreensão e reflexão

desse importante fenômeno histórico e cultural que é a literatura infantil e que

consideramos importante destacar aqui, ainda que de forma sucinta. Segundo a

autora, a literatura infantil origina-se na Idade Média com caráter moralizante, sendo

utilizada inicialmente pela igreja e, posteriormente, destinada às escolas. Nesse

período, as fábulas ganham destaque como gênero literário mais apropriado para

atender aos objetivos sociais da época.

Com o fim do período medieval e o advento do renascimento, surge a imprensa e

consequentemente o aparecimento do livro, que garante o registro das tradições

orais populares. Nesse período - séc. XVII - começa a ascensão da burguesia e a

educação - elitista e aristocrática - postula uma literatura culta como condição de

humanização para os homens (litterae humanae). A concepção de beleza e estética,

que predominava na época, encontrava dificuldade de ser absorvida pela cultura

popular.

É na França, na segunda metade do séc. XVII, que surgem os primeiros livros

infantis: As Fábulas de La Fontaine, Os Contos da Mamãe Gansa de Perrault e os

Contos de Fadas. Contudo, a riqueza dos escritos literários desses autores acabou

por se perder nas várias traduções e, principalmente, pelas adaptações. A

linguagem poética, bem como o argumento ou a moral, foi adulterada para adequar-

se aos valores, costumes e moral da antiguidade clássica. Desse modo, o que

permaneceu foram os dilemas humanos reinterpretados de acordo com o

pensamento de cada época, sendo totalmente distintos das idéias originais e

intenções dos autores.

64

Para ilustrar o fato, Coelho (apud BARCELLOS, 2002, p.107) diz que “[...] as

traduções e adaptações torcem a seu bel-prazer a “moral” dessas fábulas, a ponto

de as tornarem o oposto do que pretendia o autor, originalmente. Como exemplo

veja-se a mais conhecida delas, ‘A Cigarra e a Formiga’. Enquanto La Fontaine,

verdadeiro aristocrata, pretendia valorizar a cigarra (= o valor e a beleza da Arte), a

maioria das versões que chegaram aos nossos dias (e já adaptadas pela

mentalidade pragmática, burguesa) enfatizam a prudência e a diligência da formiga

e não o canto, a função não utilitária e bela da cigarra, que é vista, afinal, como uma

irresponsável, vagabunda e preguiçosa”.

Os clássicos literários como: O Pequeno Polegar, A Bela Adormecida, Chapeuzinho

vermelho e Cinderela, entre outros, encontraram seu apogeu na figura de Fénelon

que produziu manuais em cima dessas obras com a intenção de formar o caráter do

educando. Filho de nobres e profundamente religioso, Fénelon tornou-se padre aos

24 anos dedicando-se “às coisas do espírito e do intelecto”. A partir de sua

experiência como preceptor das filhas do rei, privilegiava em seus escritos, a

educação de meninas que deveriam ser preparadas para serem esposas e mães.

Seus manuais são considerados um marco na gênese e no desenvolvimento da

literatura infantil, pelo fato de aliá-la às preocupações pedagógicas com a educação

formal das crianças.

Durante o séc. XVIII, a literatura infantil - também chamada de “literatura cor-de-

rosa” - será marcada pela transição do período clássico para o romantismo,

culminando com o aparecimento da infância no séc. XIX. Nesse contexto surge o

conceito de criança e em função disso, a escola e a literatura passaram a atender as

mínimas necessidades das crianças. Atendendo aos objetivos pedagógicos do

momento, surge a preocupação com a literatura que lhe serviria para a leitura

informativa, ou seja, que pudesse oferecer a criança os mais diferentes

conhecimentos para a formação de sua mente e personalidade.

Resumidamente, a literatura infantil dessa época - mesclada à cultura popular e ao

culto - era caracterizada pelos valores éticos, políticos, sociais, culturais e cristãos

demarcados pela sociedade burguesa que se encontrava em plena ascensão e

comunhão com o espírito do romantismo e do realismo humanitário. Portanto, os

livros infantis dessa época continuavam a seguir o mesmo padrão das obras de

65

Fénelon: instruir divertindo. Nessa atmosfera, surgem os manuais dos mais variados

tipos para meninas e meninos, que reúnem as fábulas de Esopo ou contos

filosóficos. As estórias voltadas para as crianças deveriam ser simples, suscitando-

lhes a piedade ou a caridade.

Repetindo o movimento literário da Europa - o desenvolvimento da literatura atrelado

à educação - o Brasil introduz, no final do séc. XIX, a literatura destinada para jovens

e crianças. Os valores explicitados nos textos literários tinham como objetivo

incentivar o nacionalismo, valorizar o saber por meio da literatura clássica com o

intuito de formar o caráter através da moral religiosa e, assim, preparar o indivíduo

para a vida e para ser cidadão.

Na década de 40, com a decretação da Lei Orgânica do Ensino Primário, a produção

literária se rende ao pragmatismo, refletindo uma literatura mais didática. Os textos

literários direcionados por pedagogos e professores não tinham o objetivo de

despertar a imaginação. Desprovidos do caráter ficcional esse tipo de literatura, de

cunho mais didático, não permitia que a literatura fosse aceita como arte.

Nesse contexto, a fantasia e a realidade se apresentam como duas categorias

opostas e inconciliáveis. Em prol do realismo, o conteúdo ficcional passa a ser

considerado maléfico ao bom desenvolvimento da criança e, desse modo, a beleza

da fantasia, da imaginação é ofuscada. Surge o livro para a informação (biografias,

documentários, enciclopédias) e para as questões do cotidiano (a criança e a escola,

a criança e o lar). No dizer de Coelho (apud BARCELLOS, 2002, p.248), os livros

para as crianças passam a apresentar: “uma linguagem edulcorada e artificial. Ao

mesmo tempo, incentiva-se a obediência, a ordem e a permanência (pelo

desestímulo às situações aventurescas que levam ao rompimento das estruturas já

estabelecidas)”.

Nos anos 60, com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), a literatura

ressurge com ênfase na leitura que é tida como habilidade formadora básica para os

vários saberes, passando então a ser o livro um auxiliar didático do professor

utilizado amplamente na escola. Por conta dessa demanda, nos anos 70, a

produção literária expande-se, instaurando o mercado consumidor de livros infantis.

Dessa forma, confirmando as palavras iniciais de Azevedo (2005) sobre a origem da

66

literatura infantil, verificamos que, no Brasil, ela se popularizou graças à escola que,

por sua vez, passa a ditar as regras de utilização desse gênero literário.

Yunes (1985) nos ajuda a entender essa súbita expansão da produção literária

brasileira e dá maiores detalhes deste cenário histórico ao recolher depoimentos de

autoras que participaram, naquela época, de propostas para melhorar a qualidade

dos textos e ilustrações dos livros infantis. Dentre esses depoimentos, destacamos o

da Ana Maria Machado:

[...] Na década de 70, com a repressão, ficou muito difícil falar do real, mas por isso mesmo, mais do que nunca, isso era necessário. E era preciso driblar a repressão... jogar com as ambigüidades, com a possibilidade de diversos níveis de leitura, com a polissemia e a multivocidade... uma pesquisadora argentina dizia que, ao lado da literatura infantil inglesa, atualmente a mais vigorosa do mundo é a brasileira, fascinante sobretudo por saber fundir realidade e fantasia com grande originalidade (MACHADO, apud YUNES e PONDÉ 1985, p.68).

O depoimento da escritora Ruth Rocha, recolhidos por Yunes, nos revela que, a

partir da década de 60, as editoras perceberam uma mina a explorar nos levando a

constatar que as crianças eram vistas como um grande filão de dinheiro para o

mercado editorial, sendo esse o motivo de tamanho investimento nessa área.

No entanto, Yunes, aponta outras possíveis causas dessa expansão literária: a) a

formação de autores que passaram a reagir contra os textos infantis estereotipadas,

de cunho moralista, preconceituoso e alienante que contribuíam para a formação de

leitores passivos e acríticos; b) a criação da lei de ensino 5692/71 que recomenda a

leitura em sala de aula de autores nacionais. Yunes demonstra, assim, que diante

daquele contexto, a preocupação de alguns autores em relação à literatura era com

a questão política.

Voltando às analises de Barcellos (2002), temos uma informação complementar a

essa: na década de 80, o gênero literário brasileiro, já então firmado e em franca

expansão, passa a gerir um mercado especializado em literatura infantil que se

equipara aos dos países desenvolvidos.

Reportando-se à atual conjuntura do sistema educacional, Barcellos não vê com

bons olhos o lugar que a literatura ocupa na escola. De acordo com essa autora,

atualmente, nas escolas esse gênero literário foi reduzido a um objeto pedagógico

67

que procura remeter a criança a uma adaptação ao meio familiar e social. Mesmo os

clássicos infantis, ao entrarem na escola, acabam tendo suas intenções subvertidas

pela ação pedagógica que tende adequar os conteúdos literários às necessidades

sociais representadas pelo sistema educativo.

Em suas investigações a autora detectou situações em que a literatura era utilizada

para diferenciar a fantasia da realidade com o objetivo de se ensinar às crianças a

valorizar o real. Isso fez com que ela concluísse, em suas análises, que “o lugar

ocupado atualmente pela literatura infantil dentro da escola é a de um recurso

textual utilizado para a adaptação das crianças às exigências de um mundo

globalizado” (Barcellos, 2002, p.12).

Sua crítica em relação aos rumos da literatura nos mostrou que as marcas

ideológicas e as determinações históricas, impostas desde a sua origem, têm

permanecido nas escolas, comprometendo o trabalho com a literatura através das

práticas docentes em diversas situações: quando se enfatiza as lições moralizantes;

quando não se trabalha a criticidade do texto; quando se reduz a escrita literária em

detrimento de uma linguagem simplista, óbvia e infantilizada e quando se realiza um

trabalho com a literatura apenas para complementar o currículo ou atender às

exigências pedagógicas de se adequarem aos projetos escolares e mostras

culturais.

Por outro lado, Barcellos apresenta-nos a possibilidade de ruptura desses vínculos

instrutivos e moralizantes da literatura destinada às crianças, à medida que

concebermos a dimensão estética e artística da literatura em sua função.

É o que veremos a seguir, através de outras abordagens que vislumbram o

rompimento de tais vínculos e apresentam outras possibilidades de convivência da

esfera artístico/educativo na literatura infantil.

Candido (1972), por exemplo, não vê nenhum problema em se destacar a função

educativa na literatura, desde que não reforce as concepções de verdadeiro, falso,

bom, mau, belo e feio. A literatura pode formar, educar e divertir com todo o seu

simbolismo inerente à vida; ou seja, com as ideologias, ambigüidades, desvios, ditos

e não-ditos. No caso da escola, a legitimidade da literatura, enquanto conteúdo

estético e formativo é garantida quando o mediador disponibiliza à criança uma

68

variedade de gêneros literários, possibilitando-lhe interagir com os livros e as

histórias de qualidade, permitindo-lhe escolher, criar, recriar, produzir e transformar;

e não pela quantidade de informações contidas nos livros infantis.

No entender de D’Onófrio (1995):

Mais certo do que limitar o papel da literatura na vida social, é admitir sua plurifuncionalidade. Além da função estética (arte da palavra e expressão do belo), uma obra literária pode possuir, concomitantemente a função lúdica (provocar prazer), a função cognitiva (forma de conhecimento de uma realidade objetiva ou psicológica), a função catártica (purificação de sentimentos) e a função pragmática (pregação de uma ideologia) (D´ONÓFRIO, 1995, p.28).

Como vimos as discordâncias entre os críticos da arte em relação às funções da

literatura não têm razão de ser, pois o próprio autor nos assegura que a criação

artística é autônoma em relação às demais atividades humanas e por não ter um

conteúdo definido, ela não rejeita as outras funções sociais, mas as engloba.

Ainda, de acordo com D’Onófrio, essas discussões são bem antigas; remetem aos

primeiros teóricos: Platão e Aristóteles se constituem o ponto de partida para as

duas teorias que disputaram a supremacia no decorrer da história literária: a teoria

formal ou hedonística (baseada no conceito de “arte pela arte”) e a teoria moral ou

utilitarista.

Para a primeira, a arte não tem outra finalidade a não ser provocar o prazer estético;

a segunda, ao contrário, possui uma finalidade pedagógica e educativa. D’Onófrio

não considera as duas teorias contrastantes, mas sim complementares.

O signo literário é um compositum, em que não podemos isolar o significante do significado, o plano da expressão do plano do conteúdo. Por um lado, não é possível deliciar-se com a forma estética sem atender, consciente ou inconscientemente, ao seu conteúdo; por outro lado, preocupar-se apenas com a significação da obra literária, sem analisar-lhe a feição artística, seria não considerar o objeto artístico como tal e, portanto, negar a especificidade de sua natureza (D´ONÓFRIO, 1995, p.26).

Acreditamos que a literatura como toda forma de pensamento, de arte, de expressão

tem uma linguagem plena de significados e simbolismos que podem tocar em

questões essenciais para a construção da narrativa e do desenvolvimento do leitor

e, portanto, ser vista como um investimento afetivo e cognitivo que deve ser iniciado

na educação infantil com as crianças pequenas.

69

Partindo desses pressupostos, entendemos que as histórias podem ser usadas com

as mais diversas intenções e, diante de toda essa complexidade que a literatura

apresenta, elegemos como essencial buscar um diálogo com todos aqueles que

defendem sua utilização como uma proposta estética, educativa e existencial, com o

intuito de despertar na formação humana o raciocínio lógico, a sensibilidade e a

imaginação. Pois, segundo Held (1980) o imaginário consiste em ser um poder que

comanda todos os outros aspectos da vida humana.

Poderes múltiplos, poderes de sonho. Esses poderes, a criança os possui através do primeiro de todos, o poder do próprio imaginário. Inventar uma história. Ultrapassar o agora, o dado, o imediato. Poder que já exerce sobre amigos fisicamente mais fortes, no pátio da escola ou no centro de férias, a criança franzina que não possui grossos punhos mas que pode prender a atenção do grupo com tal história em capítulos. Pois, como dizia Paul Valéry, “o homem inventou o poder das coisas ausentes [...] Por isso se tornou poderoso e miserável. Mas, finalmente, e só por causa delas que é homem” (HELD, 1980, p.140).

Nesse sentido, nosso propósito, nesse primeiro momento, foi o de apresentar um

aporte teórico que incentive um trabalho com a literatura infantil como arte,

conhecimento, cultura e prazer, no sentido de contribuir para ampliar o mundo

simbólico e, consequentemente, o desenvolvimento da narrativa na criança.

2.3 LITERATURA INFANTIL, IMAGINAÇÃO E FANTASIA

A literatura é uma necessidade vital para a criança. É uma forma de sistematizar a

fantasia, tornando-se um espaço amplo de significações, aberto às emoções aos

sonhos e à imaginação, favorecendo o conhecimento de si mesmo, o conhecimento

social e a construção de conceitos durante toda a infância.

Cavalcanti (2002) nos alerta para a necessidade de se considerar a importância do

imaginário na literatura e sugere que, além do aprofundamento nesses

conhecimentos, haja maior sensibilidade do educador em sua tarefa de educar a

criança, pois, a nossa relação com o mundo estabelece-se a partir da nossa entrada

no simbólico. Há um período na vida da criança - correspondente à sua inserção na

educação infantil - em que se desenvolve a capacidade para assimilar a

representação simbólica do mundo. Durante esse período, o professor que lê ou

conta histórias para a criança de forma interativa, estará permitindo a ela, construir

70

sentido naquilo que ouve e vê, e desta forma, estará contribuindo para enriquecer

seu imaginário e desenvolver sua criatividade.

Para que nos tornemos leitores simbólicos, capazes de buscar o texto no “não-dito” explicitamente, naquilo que está impresso na própria produção do sujeito-leitor, é necessário que alimentemos no indivíduo o permanente desejo pela descoberta do mundo, e isso somente conseguiremos quando o caminho é apresentado e provocado no período da infância (CAVALCANTI, 2002, p.17).

Essa idéia do uso da literatura fundamentado em necessidades humanas básicas é

encontrada também em Nelly Coelho (1991). Ela nos assegura que o desejo da

expressão pelo desconhecido é uma forma de vencer e ultrapassar os limites

humanos.

A literatura é, sem dúvida, uma das expressões mais significativas dessa ânsia permanente de saber e de domínio sobre a vida que caracteriza o homem de todas as épocas. Ânsia que permanece latente nas narrativas populares ligadas pelo passado remoto. Fábulas, contos, lendas, mitos, sagas, parábolas... fazem parte dessa heterogênea matéria narrativa que está na origem das literaturas modernas e guardam um determinado saber fundamental (COELHO, 1991, p.11).

Entendemos que essas necessidades são atendidas pela ficção e pela fantasia

presentes na obra literária. Candido (1972) nos diz que todo ser humano necessita

dessa dose de fantasia para formação do imaginário. Assim, quando uma criança,

ou mesmo um adulto, pede para contar ou ele mesmo relê várias vezes a mesma

história, estão se alimentando dessa matéria-prima contida nas histórias. As vitórias

e as misérias humanas estão ali e embora retratadas de maneira mágica, fantasiosa

e ficcionista, elas seduzem e convencem, pois atuam em nível inconsciente na

resolução dos problemas e aspirações pessoais e coletivos do ser humano.

Portanto, queremos afirmar que é no campo do imaginário ou da fantasia que a

literatura infantil presta sua grande contribuição no desencadeamento do processo

da narrativa e da criatividade. Uma vez instalados os laços afetivos com a literatura

nesse período da infância, ela deverá ser incentivada e consolidada de maneira

intensa e eficiente ao longo da vida escolar; isso nos leva a crer que talvez seja esse

o motivo pelo qual as histórias permanecem no nosso imaginário e nos identificamos

tanto com elas, pois de acordo com Cavalcanti:

O texto literário é mais do que suas estruturas discursivas, ele extrapola esse universo concreto para adentrar-se nas construções do imaginário de

71

cada leitor. [...] A linguagem é transgressiva porque fala diretamente do nosso desvio da natureza e, conseqüentemente, da nossa entrada no simbólico (CAVALCANTI, 2002, p.13-14).

É a porta de entrada da criança para o mundo do simbolismo. Para Macedo (2004,

p.12), “símbolos é qualquer palavra, imagem, gesto, objeto ou índice que tem a

propriedade de reunir, de recuperar aquilo que partiu, que não é ou está presente”.

À medida que a criança desenvolve a capacidade simbólica, substituindo objetos ou

ações - palavras e imagens que não estão presentes e antecipando ações futuras

pela representação verbal, estará ampliando seu mundo, seus conhecimentos, para

além do seu próprio corpo. A partir daí, “pode encurtar tempos, alargar espaços,

substituir objetos, criar acontecimentos” (MACEDO, 2004, p.12). Além disso, pode

entrar no universo de sua cultura ou sociedade aprendendo costumes, regras e

limites.

Segundo esse autor, é o faz-de-conta presente nas brincadeiras, nos jogos, na

literatura que permite à criança jogar simbolicamente. O autor reporta o faz-de-conta

ao mundo do imaginário e da fantasia, e elabora o seguinte conceito:

Fantasia é “criar pela imaginação”, trata-se de algo ficcional, sem ligação estreita e imediata com a realidade. Do ponto de vista etmológico, faz-de-conta é sinônimo de quimera, “monstro mitológico que se dizia possuir cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente e lançar fogo pelas narinas” (MACEDO, 2004, p.12).

Vários pensadores contemporâneos atribuem à imaginação, um papel crucial nesses

nossos tempos.

Girardello (1999) nos afirma ser possível educar a imaginação infantil e cultivá-la

como se faz com a inteligência ou a sensibilidade. Encontramos essa mesma

afirmação, nas palavras de Held (1980, p.46): “a imaginação, como a inteligência ou

a sensibilidade, ou é cultivada, ou se atrofia”. A autora afirma que ninguém inventa a

partir do nada e propõe, tal qual Rodari (1982) em sua “Gramática da Fantasia”, uma

Pedagogia da Imaginação.

Esses autores enfatizam a educação da imaginação como sendo a tarefa primordial

e mais importante dos educadores e nos dão pistas para criarmos as condições

necessárias para favorecer o desenvolvimento da imaginação na criança. Algumas

72

dessas pistas já foram identificadas no momento que propomos o encontro da

criança com a literatura no campo da arte, sendo a narrativa de ficção um dos

estímulos mais importantes que se pode oferecer à imaginação. Para Girardello tal

narrativa representa a ponte entre a imaginação e a cultura.

Barcellos (2002) em um estudo sobre o processo de (de)formação cultural, revela o

papel que a literatura infantil vem assumindo no atual contexto de degeneração da

cultura, fazendo uma análise crítica da sociedade à luz dos autores frankfurtianos.

De Adorno a autora retira a idéia de que “a produção cultural se constitui num dado

historiográfico da humanidade”, sendo assim:

A cultura é o conjunto das produções elaboradas pela humanidade que tem como finalidade o cultivo do espírito. Ela foi pensada como condição para a elevação do humano, um momento de êxtase espiritual que inspirasse a criação de um outro mundo em oposição à materialidade das condições objetivas de vida. Seu corolário são os objetos artísticos que, por sua perenidade, se constituem em patrimônio da humanidade. Assim, através da produção cultural obtemos um retrato, além de uma perspectiva, dos modos de organização da vida social (BARCELLOS, 2002, p.2).

Com o passar dos tempos, o que há de mais essencial nessa idéia de cultura vai se

perdendo, dando lugar a outros valores e assim novos conceitos vão surgindo:

O conceito de formação cultural surge com a burguesia, emancipando-se de seus lugares originários no clero e na nobreza, para ser uma instituição independente que correspondesse às aspirações de uma sociedade formada por indivíduos livres e pensantes. Por meio dela, o indivíduo se tornaria autônomo e também toda a sociedade (BARCELLOS, 2002, p.2).

No entanto, o projeto fracassou e utilizando-se desses autores, Barcellos pôde

comprovar em seus estudos que a cultura contemporânea se caracteriza pela

ditadura da mesmice produzida pela tecnologia e mantida pelo poder absoluto do

capital: uma verdadeira indústria cultural. Nesse contexto, os indivíduos são

destinados a serem trabalhadores e consumidores.

As muitas reformas pedagógicas, apesar de imprescindíveis, não conseguiram

reverter a condição de degeneração em que se encontra a atual formação cultural,

nem deram conta de explicá-la. Com isso, a crise que se estabeleceu aí, vai além

dos aspectos metodológicos, não cabendo aqui explaná-los.

O objetivo de trazer esses conceitos, nesse momento, foi para explicar a

73

necessidade de se investigar as origens históricas do pensamento hegemônico, que

se instalou em nossa sociedade acerca da cultura popular das narrativas de ficção,

já que a cultura contemporânea não tem dado o devido valor ao papel dessas

narrativas no desenvolvimento da criança.

Ao que tudo indica, o problema parece estar na dualidade das categorias:

realismo/fantasia; real/imaginário; realidade/ficção, que atravessa a constituição da

literatura.

Dentre tantos dualismos paradigmáticos apontados ao longo da história da

humanidade, Kirinus (1998) destaca que a dicotomia entre o real e o imaginário -

que na criança é espontâneo e natural - constitui-se em uma das mais graves

assumidas pelo mundo adulto. Utilizando-se do recurso da metáfora, a autora

associa a fábula da cigarra e da formiga para explicar a dissociação que a cultura

ocidental faz entre o lazer (cigarra) e o trabalho (formiga).

Procurando fazer uma reconstituição histórica desse pensamento que se posicionou

contra a natureza humana, ela se reporta à República de Platão que expulsa as

cigarras (poetas e artistas) de sua cidade utópica, sob o pretexto de garantir a

verdade; e depois encontra a continuidade desse ato em Descarte e seu

cartesianismo (séc.XVII) e Comte, o pai do positivismo (séc.XVIII). Ambos

extremamente preocupados com a funcionalidade, com o utilitário, o burocrático e o

tecnocrático, ganham ainda mais força no séc. XX.

E é assim que, segundo a autora, o imaginário, fonte do mítico e do poético, vive por

longo tempo mal-dito e encontra refúgio apenas nos artistas que se revelam as

cigarras do mundo, nas figuras dos poetas, pintores e músicos e representam o

papel do vadio, preguiçoso, do inútil, do boêmio, da criança, enfim, do ser taxado de

imprestável.

Sobre isso nos diz Rodari (1982):

Se uma sociedade baseada no mito da produtividade (e na realidade do lucro) precisa de homens pela metade - fiéis executores, diligentes reprodutores, dóceis instrumentos sem vontade própria - é sinal de que está mal feita, é sinal de que é preciso mudá-la. Para mudá-la, são necessários homens criativos, que saibam usar sua imaginação (RODARI, 1982, p.139 -140).

74

Para tanto, Rodari afirma ser necessário conhecer um pouco mais sobre a

criatividade - o que o levou a apresentar o seguinte conceito:

Criatividade é sinônimo de pensamento divergente, isto é, capacidade de romper continuamente os esquemas da experiência. É criativa uma mente que trabalha, que sempre faz perguntas, que descobre problemas onde os outros encontram respostas satisfatórias (na comodidade das situações onde se deve farejar o perigo), que é capaz de juízos autônomos e independentes (do pai, do professor e da sociedade), que recusa o codificado que remanuseia objetos e conceitos sem se deixar inibir pelo conformismo. Todas essas qualidades manifestam-se no processo criativo (RODARI, 1982, p.140).

É obvio que a cultura social, pressentindo o perigo que representaria para a

sociedade uma literatura que suscitasse no homem pensamentos considerados

subversivos para a ordem das coisas ditas normais e naturais, tratou logo de tentar

eliminar esse ser pensante, separando da literatura, o real e o imaginário, e gerando

uma classificação excludente e preconceituosa quanto aos gêneros literários.

Gênero literário é o conjunto de obras dotadas de características comuns. Esta é a

definição mais simplista que extraímos das diversas teorias que há em torno dos

gêneros literários. Desde Platão, os três gêneros fundamentalmente estabelecidos

são: o lírico, o dramático e o narrativo. Cada um deles atende às necessidades

humanas expressas pela sensibilidade, vontade e inteligência. Conseqüentemente,

surgem respectivamente as três funções da linguagem: a expressiva (sensibilidade),

a apelativa (vontade) e a informativa (inteligência).

Para alguns, essa classificação é errônea e reducionista, pois, os gêneros literários

não se excluem, ao contrário, incluem-se. Em certas obras pode acontecer a

predominância de um gênero sobre o outro, mas nunca haverá a expressão

puramente de um só gênero. Cada obra da literatura seja ela fictícia, realista, ou sob

o nome que a quisermos chamar, é uma obra singular e difícil de classificar. Held

(1980, p.28) considera que “Todos os gêneros são portadores de imaginário para

quem souber fazê-lo aflorar” ou “Toda literatura é fantástica, pois o real nos atinge já

penetrado de sonho” (HELD, 1980, p.30).

A diferenciação social dos gêneros que se estabeleceu no Renascimento, conferiu

ao gênero literário um preconceito em relação à cultura popular. O lírico e o

dramático foram considerados estilos de alto padrão e, portanto destinados à

75

nobreza, enquanto o gênero narrativo, por ser a representação popular, classificado

como gênero inferior aos demais.

Porém, convém esclarecer que o texto literário não se distingue de outras

modalidades discursivas pela superioridade de suas mensagens ou nobreza dos

seus conteúdos veiculados. O valor social e humano da literatura não reside sobre o

que é dito, mas sobre aquilo que o texto muitas vezes não diz, e que mesmo assim a

alma humana consegue captar.

Ou seja, reside no gênero literário denominado narrativa de ficção que, de acordo

com o dicionário, é o tipo de literatura que se ocupa da narração de acontecimentos

imaginários, inventados, fingidos, com ou sem a intenção de enganar.

Para Yunes e Pondé (1989, p.39) a literatura “é a arte de inventar, de fingir, de

enganar e ao mesmo tempo mostrar o engano. É, portanto, uma linguagem

instauradora de realidade e exploradora dos sentidos, a qual possui uma capacidade

de gerar inúmeras significações a cada leitura”. Este tipo de literatura permite

interpretar a vida por meio da palavra.

Se considerarmos que tanto a ficção quanto o real estão ligados à vida humana,

perceberemos que, na verdade, ambas são dependentes e complementares e não

antagônicas. Conseqüentemente teremos uma literatura mais rica, pois, recorrer à

ficção (inventando-a, ou usufruindo de invenção alheia) é alargar, por um momento,

o espaço do real, é dirigir os nossos passos para zonas normalmente vedadas,

então, a ficção literária pertence, em larga medida, a repertórios afins. Concluímos

conforme Zilberman (1985, p.22), que “a literatura infantil sintetiza por meio do

recurso de ficção, uma realidade, que tem amplos pontos de contato com o que o

leitor vive cotidianamente”.

76

2.4 CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS: POSSIBILIDADES PARA O PENSAR

E O FAZER DOCENTE

Nas minhas tradições, existe um legado entre os contadores, através do qual um contador transmite suas histórias a um grupo de sementes. Clarissa Pinkola

O ato de contar ou ler histórias, que também pressupõe o ato de ouvir, constitui-se

em um processo que aciona, em nosso organismo, uma complexa atividade mental,

envolvendo entre outras coisas, a imaginação, a criatividade, a memória, a

linguagem.

Toda criança chega à escola sabendo relatar e contar histórias de algo que ouviu,

viu, experienciou. No entanto, será na escola que ela terá a oportunidade

desenvolver as habilidades básicas para se tornar uma narradora possuidora das

características específicas que a linguagem formal exige. Desse modo, a escola não

pode deixar essa oportunidade passar, pois o destino da narração de contos é o de

ensinar a criança a escutar, a pensar e a ver com os olhos da imaginação.

Tendo em vista que o papel do professor, como educador e mediador da cultura, é o

de introduzir experiências significativas no mundo do aluno, é preciso que ele se

conscientize do quanto é importante sua atuação em sala de aula, pois sua

mediação despertará ou não, na criança, o gosto em ouvir, ler e contar histórias.

Antes, porém, é necessário que ele também esteja motivado, que ele goste,

conheça e leia diferentes gêneros literários como: romances, contos de fadas,

fábulas e lendas, bem como perceba os diferentes valores contidos em cada um

deles para iniciar um trabalho significativo nessa área.

Passaremos, então, a justificar o trabalho com a contação de histórias na educação

das crianças, à luz de uma produção teórica que defende entre outras coisas, a sua

importância para a estruturação da linguagem e a inserção da criança no mundo

simbólico. Nosso interesse, portanto, será o de trabalhar com uma perspectiva

literária dentro da educação infantil que promova uma intervenção pedagógica

significativa: diversificação de textos literários com a utilização de recursos e

77

estratégias de apresentação, possibilitando à criança a liberdade de escolha para a

aquisição e domínio da narrativa na sua formação gradativa de leitor crítico.

Vargas (2005) nos diz que a formação desse tipo de leitor é um processo que se

inicia bem antes de se conhecer e aprender a decodificar a escrita:

O início desse caminho e a sedução para o mesmo se dão ainda no berço, através dos acalantos e parlendas e, claro, da ambiência de afeto que este momento propicia. [...] A partir das cantigas de ninar, a criança vai criando ferramentas para se tornar leitor e identificar a espinha dorsal de uma narrativa (VARGAS, 2005, p.1).

Da mesma forma Abramovich (1993), ressaltando a importância de se “ouvir muitas

e muitas histórias para a formação de qualquer criança”, afirma:

O primeiro contato da criança com um texto é feito oralmente, através da voz da mãe, do pai... contando contos de fadas, trechos da Bíblia, histórias inventadas (tendo a criança ou os pais como personagens), livros atuais e curtinhos, poemas sonoros e outros mais... contados durante o dia - numa tarde de chuva, ou estando todos soltos na grama, num feriado ou domingo - ou num momento de aconchego, à noite, antes de dormir... para um sonho rico embalado por uma voz amada (ABRAMOVICH, 1993, p.16).

Segundo Albergaria (1999), a voz humana - importante veículo de comunicação -

recentemente vem ganhando espaço e atenção na prática de ensino, pelo fato de

considerá-la um ”componente afetivo” que provoca resposta e diálogo na interação

do bebê com o mundo ao longo de seu desenvolvimento humano. Portanto, a voz

de quem narra constitui-se em um ato fundamental de comunicação. A voz do

narrador implica no ato de escutar e nos remete a sensações de conforto e

tranqüilidade. Nessa perspectiva, a escuta se tornar um requisito fundamental para a

aprendizagem e aquisição de conhecimento; e isso, quem propiciará aos ouvintes,

são: os narradores e as suas narrativas.

Tendo em vista que essa forma de narrativa, ou como dizia Câmara Cascudo, esse

“primeiro leite intelectual”, tem se tornado escasso ou ausente, por conta da

mudança de hábitos culturais que a família tem enfrentado na modernidade, torna-se

necessário resgatar os narradores e as narrativas e introduzi-los novamente nas

relações interativas de socialização primária e secundária (família e escola). Sendo

assim, a escola deve realizar sua parte e cumprir com o seu papel de promover uma

proposta educacional sistemática e intencional sobre a literatura infantil relacionando

78

suas funções sociais (comunicativa, cognitiva, educativa, política, artística), às

especificidades das crianças de 0 a 6 anos.

Dependendo das condições e da forma como o professor conduz o trabalho em sala

de aula, entende-se que a literatura, enquanto produto cultural, tem muito a

contribuir, pois possui qualidades formativas e lúdicas que interferem na cultura das

crianças, favorecendo o intercâmbio das trocas interativas, ampliando

conhecimentos acerca do mundo que as rodeia e provocando-as novas descobertas.

Tendo em vista a importância dessa contribuição que a literatura oferece ao

desenvolvimento da criança, é necessária a presença de um profissional com ampla

formação nessa área para que essa atividade não fique no plano da improvisação,

mas que, de fato, seja planejada.

Para Betty Coelho (2002, p.13), o sucesso da narrativa de histórias depende de

vários fatores interligados. Entre eles, aponta como fundamental, a elaboração de

um plano, um roteiro. É esse roteiro que possibilitará transformar o improviso em

técnica, fundir a teoria à prática e, assim, organizar o desempenho do narrador

garantindo-lhe segurança e naturalidade nessa ação. Na elaboração do roteiro, a

autora sugere alguns passos a se seguir que incluem desde a preocupação e o

cuidado que se deve ter com a escolha das histórias, até com a forma de contação e

a pós-contação.

Machado (1996) nos dá a garantia de que esse tipo de prática - sistemática,

intencional e reflexiva - rompe com a ação assistencialista, espontaneista e

compensatória que tanto subestimam as capacidades das crianças. “O sentido da

instituição educativa está em assumir sua condição de veiculadora de

conhecimentos específicos que se tornarão objeto de apropriação para as crianças.

A intencionalidade educativa deve assumir um caráter de premeditação”

(MACHADO, 1996, p.39). A autora aposta nas interações participativas como um

possível caminho para a desconstrução dos saberes estereotipados que muitas

vezes se instalam no âmbito escolar. Adverte-nos, ainda, que tais práticas requerem

dos profissionais uma capacidade permanente de compreensão e reflexão sobre

suas ações.

Também, para Jesualdo (1993), o domínio desse conhecimento, por parte do

79

professor, é fundamental para se evitar um trabalho com a literatura desvirtuado de

sua verdadeira função.

Assim como é necessário conhecer e considerar a origem e a evolução da linguagem da criança para criar - em relação a uma teoria do menor esforço - os instrumentos que a capacitem para o aprendizado da leitura, dizemos também que é necessário conhecer o mecanismo mental e sensitivo da criança e, portanto, analisar sua evolução nas diferentes etapas atravessadas por sua psique, para saber dessa maneira qual a literatura mais conveniente... e em que quantidade e oportunidade servirá aos diferentes interesses e tendências da criança. Sem um conhecimento, ao menos sintético da evolução dessas tendências e interesses; da ordem de seus valores no desenvolvimento mental; da maneira como funciona sua inteligência, em relação a esses interesses e tendências; do caráter de alguns de seus poderes psíquicos como a imaginação, especialmente a criadora; da função da linguagem e de suas formas originais, etc. Sem tais conhecimentos é impossível alcançar o ajustamento pretendido, no que toca à literatura a serviço da criança... a educação literária, para acompanhar mais exatamente o desenvolvimento natural da criança, deverá ser especializada, por assim dizer, segundo cada uma de suas faculdades, pois a condição essencial de uma educação literária consiste em ser oportuna. O talento do professor de literatura se limita a ser o mestre da oportunidade (JESUALDO, 1993, p.54).

Mediante essas contribuições e, também, das experiências pessoais que

vivenciamos com crianças da educação infantil, entendemos que o preparo do

professor para uma efetiva prática de literatura infantil na sala de aula passa,

primeiramente, pela compreensão desse fenômeno, desde sua origem até o seu

processamento na mente humana, antes de se estabelecer qualquer prática nas

escolas.

Diante desses intensos debates e diversidades de opiniões sobre a literatura, é

possível que os sentimentos de insegurança, dúvida e temor se instalem no âmbito

escolar, causando o distanciamento de uma efetiva prática com a literatura por conta

de sua complexidade. No entanto, convém lembrar mais uma vez: uma discussão

acerca do que significa a literatura infantil e como trabalhá-la corretamente na

educação infantil pode ser um dos caminhos para ultrapassar as barreiras que

impedem a realização de uma prática prazerosa para o professor e o aluno.

Segundo Reily (2004), uma das condições para que a criança obtenha sucesso

escolar, seria o de propiciar-lhe uma vivência oral rica no período pré-escolar.

Entende-se como vivência oral rica as práticas sociais nas quais a criança tenha uma efetiva participação: conversas e diálogos em que ela é ouvida, onde tem espaço para relatar coisas que aconteceram com ela, conversas em que o tema é de escolha e interesse da criança e diálogos dirigidos por

80

ela. [...] Entre as vivências lingüísticas essenciais para a formação do futuro leitor e escritor constam: a prática social de “contar casos”, em que uma pessoa assume o papel de contadora e as demais ouvem atentas, reagem duvidam, antecipam o que vai acontecer e se surpreendem com o final inesperado;ouvir e contar piadas; fazer música em grupo. A vivência do livro de história, na hora de dormir ou em outro momento consagrado da rotina familiar, rodas para ouvir histórias da carochinha, histórias das lembranças da infância contadas pelos mais velhos - tudo isso representa rica vivência lingüística oral (REILY, 2004, p.94).

Assim, podemos concluir que quanto mais rica for a experiência humana na

educação infantil, mais rica será a imaginação da criança, conseqüentemente, mais

rápido se apropriará da linguagem oral e da escrita; mais amplos serão seus

horizontes culturais.

81

CAPÍTULO III

3 CONTEXTUALIZANDO A PESQUISA

A pesquisa realizada em sala de aula pressupõe uma atividade humana

contextualizada historicamente, e requer múltiplos olhares e vozes sobre a

complexidade do processo para que se permita vislumbrar, numa perspectiva

emancipatória, possibilidades de intervenções nas ações pedagógicas. Para isso, o

sujeito pesquisador precisa conscientizar-se do seu papel e assumir um

compromisso político-pedagógico com a pesquisa. De acordo com Joanir Azevedo

(2003):

A pesquisa do cotidiano nos desafia à imperiosa busca de outras formas de pesquisar/escrever a escola, em sua realidade, que, longe de ser linear e de poder ser captada por categorias, produz descontinuidades, sinuosidades e espaços de fuga, exige a agudez dos sentidos, da sensibilidade, da intuição, e a fruição dos insights, das sínteses. Exige, também e principalmente, conhecimentos teóricos e complexos. É ilusão considerar que se possa captar o cotidiano desprovido de sólidos ferramentais teóricos. Sua complexidade não se oferece gratuitamente à apreensão nem à compreensão (AZEVEDO, J, 2003, p.119).

Fica evidenciado a emergência de se construir conhecimentos que atenda às

necessidades complexas, que ocorrem no ambiente escolar. Nesse sentido, espera-

se que o pesquisador consiga sintetizar tais conhecimentos, direcionando-os

criticamente para os resultados obtidos na pesquisa, pois, como afirma Demo (2000,

p.14), “quem ensina carece pesquisar; quem pesquisa carece ensinar”. Ou seja:

“não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino” (FREIRE, 1998, p.32). O que

esses autores estão nos dizendo é que a prática da pesquisa é indissociável à

prática do ensino e requer de nossa parte o abandono do comodismo e a inserção

de um compromisso político e epistemológico. Para isso, é fundamental olhar o

cotidiano escolar, constituído por diferentes sujeitos, sob vários ângulos, na tentativa

de compreendê-lo e, assim, construir conhecimentos que permitam outras formas de

intervenção, atribuindo-lhes uma dimensão humana, histórica e cultural; e ao sujeito,

sua condição de autor.

Para a investigação dessa natureza, como a que se pretende realizar nessa

pesquisa, pensamos ser necessário uma abordagem metodológica que leve em

conta os vários aspectos, dentre os quais, se destaca: os caminhos que nos levam a

82

atingir os objetivos, a definição do objeto da pesquisa, a escolha dos métodos e

técnicas, a delimitação temática, além das condições relacionadas ao contexto da

investigação. Todos esses aspectos que apontam para uma reflexão crítica sobre a

prática docente e se relacionam diretamente com a concepção de mundo, com o

modo de se olhar a realidade e no nosso entender, só é possível dentro de uma

perspectiva dialógica como a histórico-cultural vem demonstrando.

A reflexão crítica sobre a prática docente é muito bem destacada por Freire (1998)

em seu texto: “Pedagogia da Autonomia - saberes necessários à prática educativa”.

Dentro dessa perspectiva, encontramos orientações básicas para desenvolver as

práticas da nossa pesquisa assumindo-a como uma atividade dinâmica e dialógica,

de constante busca, que nos possibilitou articular teoria com fatos reais.

Em seus postulados, Paulo Freire confere ao ato de conhecer a dimensão

fundamental do processo educativo. De acordo com esse autor, é preciso que se

percebam dois momentos desse processo: o do conhecimento que a criança traz

como fruto do seu convívio sócio-cultural, e o da produção de um novo

conhecimento que estimule, promova e desenvolva a criatividade, a imaginação, a

reflexão crítica, a inquietação, a incerteza, a ação.

Para Freire, conhecer é manter uma relação ativa com o mundo. O conhecimento

começa pela indagação, pela curiosidade e se estende pela reflexão diante do seu

fazer e estar no mundo. Sendo assim, devemos questionar as relações de ensino e

aprendizagem que não provoquem no outro a curiosidade, o desejo de buscar

compreender aquilo que faz e porque faz. Nesse sentido, os movimentos de

confrontos, resistências e conflitos são visto por Freire como algo necessário porque

são eles que vão gerar interlocução, problematização e a partir daí, a busca dos

possíveis caminhos para se chegar aos objetivos.

Dentre os principais postulados defendidos por Freire nessa obra, destacamos:

ensinar exige rigorosidade metódica; ensinar exige pesquisa; ensinar exige respeito

aos saberes dos educandos; ensinar exige criticidade; ensinar exige respeito à

autonomia do ser do educando; ensinar exige humildade, tolerância e luta em defesa

dos direitos dos educadores; ensinar exige curiosidade; ensinar exige saber escutar;

ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica e ensinar exige disposição

83

para o diálogo.

Diante de cada um desses postulados contidos em sua proposta de ensino, surge

também o grande desafio que se constitui em uma das tarefas mais importantes

para a escola e que, para esse autor, consiste em “propiciar as condições em que os

educandos em suas relações uns com os outros e todos com o professor ou a

professora ensaiam a experiência profunda de assumir-se” (FREIRE, 1998, p.46).

No entanto, como ele mesmo complementa, “A assunção de nós mesmos não

significa a exclusão dos outros” (FREIRE, 1998, p.46), ao contrário, em sua

perspectiva dialógica, essa ação corresponde ao ato de saber escutar.

Não é falando aos outros, de cima para baixo, sobretudo, como se fôssemos os portadores da verdade a ser transmitida aos demais, que aprendemos a escutar, mas é escutando que aprendemos a falar com eles. Somente quem escuta paciente e criticamente o outro, fala com ele, mesmo que, em certas condições precise de falar a ele (FREIRE, 1998, p.127-128).

Essas idéias também auxiliaram na orientação da nossa pesquisa. Buscamos nelas

elementos para clarear nosso posicionamento diante dos sujeitos da pesquisa, para

realizar o planejamento das atividades de intervenção e os acordos. Nesse sentido,

utilizamos instrumentos e procedimentos de pesquisa que apontam para a promoção

coletiva de conhecimento, destacando-se a observação participante e a intervenção

pedagógica.

3.1 A ABORDAGEM HISTÓRICO-CULTURAL E O MÉTODO

GENÉTICO-EXPERIMENTAL

Para investigar o desenvolvimento da narrativa, tomamos como referência os

estudos que nos permitiram captar as interações e as interlocuções no espaço

escolar, estabelecendo um constante diálogo entre a realidade percebida e as

teorias revisadas. O contato com esses autores nos faz repensar a educação infantil,

não apenas do ponto de vista da prática, mas também, como campo de

conhecimento.

A proposta metodológica de Vigotski (1998a) - de caráter dialético e mediador -,

84

apresenta-se a nós como a mais adequada para estudar o desenvolvimento da

narrativa na criança, sobretudo, pela sua ênfase no processo. Segundo Vigotski

(1998a, p.85:86), “[...] estudar alguma coisa historicamente significa estudá-la no

processo de mudança; esse é o requisito básico do método dialético”. Para Vigotski,

somente por intermédio de um estudo histórico, é possível desvendar a natureza e a

essência dos fenômenos psicológicos.

Esse método, também denominado de “método experimental” ou “genético-

experimental,” difere-se da concepção dos psicólogos americanos que

desenvolviam, na época, práticas experimentais centradas no desempenho em si. A

sua preocupação foi encontrar a definição de um método que pudesse investigar o

desenvolvimento das funções psicológicas superiores, pois, segundo esse teórico:

Para que um experimento sirva como meio efetivo para estudar “o curso do desenvolvimento de um processo” ele deve oferecer o máximo de oportunidades para que o sujeito experimental se engaje nas mais variadas atividades que possam ser observadas, e não apenas rigidamente controladas (VIGOTSKI, 1998a, p.16).

Em consonância com este método, encontram-se os estudos de Leontiev, quando

se refere ao desenvolvimento psicológico da criança atrelado aos mecanismos intra

e extra escolares, nos processos reais que constituem sua vida:

Ao estudar o desenvolvimento da psique infantil, nós devemos, por isso, começar analisando o desenvolvimento da atividade da criança como ela é construída nas condições concretas de vida. Só com este modo de estudo pode-se elucidar o papel tanto das condições externas de sua vida, como das potencialidades que ela possui. Só com esse modo de estudo, baseando-se na análise do conteúdo da própria atividade infantil em desenvolvimento, é que podemos compreender de forma adequada o papel condutor da educação e da criação, operando precisamente em sua atividade e em sua atitude diante da realidade, e determinando, portanto, sua psique sua consciência (LEONTIEV, 2001, p.63).

Desse modo, optamos por investigar o desenvolvimento da narrativa na criança

pequena no espaço escolar, em um centro de educação infantil de Vitória. Fomos

seduzidos a pesquisar a construção da narrativa na criança, através do recurso da

narrativa de ficção que muito contribuíram nesta tarefa, pelo fato de conterem em

suas estruturas, “uma seqüência de acontecimentos significativos inter-relacionados”

(CABRAL, 1989, p.12), que se constituem em elementos construtores de uma

narrativa.

85

Nesse estudo, investigar o desenvolvimento da narrativa implicou adotar a

seqüência de procedimentos e princípios formulados por Vigotski (1998a, p.81-86),

tendo como base os seguintes pressupostos metodológicos contidos no quinto

capítulo ”problemas de método”:

1º ) Analisar os processos e não os objetos - esse princípio requer do

investigador um esforço em analisar o todo como um processo dinâmico em

diferentes momentos;

2º ) Buscar uma explicação do fenômeno psicológico em sua essência, levando

em conta os fatores internos e externos, ao invés de simplesmente descrevê-

los na forma como aparecem aos olhos do pesquisador;

3º ) Compreender a gênese de um fenômeno psíquico, necessitando, para isso,

analisar os elementos que estão em jogo nos processos de desenvolvimento

das funções psíquicas superiores, abandonando as práticas de investigação

que visam apenas o produto final.

Diante dessas orientações metodológicas, procuramos compreender a linguagem

oral da criança no contexto interativo do cotidiano escolar rumo à narrativa de tal

forma que pudéssemos identificar as mudanças que ocorrem no decorrer desse

processo, inserindo nele, nossa intervenção pedagógica. Para que isso pudesse

ocorrer, procuramos oferecer às crianças um encontro íntimo e prazeroso com a

literatura infantil, oportunizando-lhes contatos com diferentes textos narrativos

(contos, fábulas, poemas, narrativas modernas, narrativas de imagens), através da

contação de histórias, a fim de estimular a habilidade de ouvir, contar e recontar.

Buscamos assim, conhecer melhor a escola (como se organiza, quem são os

autores e atores, no que acreditam...), a família (qual o olhar sobre esse espaço

educativo, como participam, qual a cultura e os valores que expressam seus

pensamentos e ações) e a turma do berçário (seu modo de ser, de agir, se

expressar, suas necessidades, suas preferências...).

Góes (2000), em sua abordagem microgenética na matriz histórico-cultural, ajudou-

nos a esclarecer sobre os procedimentos metodológicos que deveríamos adotar em

nossas análises para acompanhar minuciosamente o processo dessa construção da

86

narrativa na criança (detalhando as ações dos sujeitos e as relações interpessoais,

dentro de um curto espaço de tempo) sem que nos perdêssemos no caminho. A

autora caracteriza esse método como uma espécie de “estudo longitudinal” (GOÉS,

2000, p.14), afirmando resumidamente que:

[...] essa análise não é micro porque se refere à curta duração dos eventos, mas sim porque se orienta para minúcias indiciais (fragmentos e recortes) –daí resulta a necessidade de recortes num tempo que tende a ser restrito. É genética no sentido de ser histórica, por focalizar o movimento durante processos e relacionar condições passadas e presentes, tentando explorar aquilo que, no presente está impregnado de projeção futura (GOÉS, 2000, p.15).

Desse modo, para garantir uma melhor apreensão e compreensão dos aspectos que

intervinham no desenvolvimento da narrativa de ficção entre as crianças do berçário,

nos voltamos, inicialmente, para alguns aspectos gerais da organização desse

cotidiano. Utilizamos como procedimentos de coleta: a observação, a intervenção,

as conversas informais com as professores, o contato com os pais, as fichas das

crianças; e, como forma de registro das situações observadas: a máquina filmadora,

a câmara fotográfica, o gravador e o caderno de registro. As transcrições e as

produções das crianças constituem a fonte de dados para a análise desta pesquisa.

O caderno de registro foi um importante instrumento de avaliação da prática de

pesquisa, visto que nos possibilitou sentir a receptividade das atividades propostas e

também nos perceber como professora/pesquisadora na medida em que nos

forneceu parâmetros acerca dos princípios estabelecidos. Nele registramos não só

os planejamentos e as atividades, mas também os desabafos. A partir dele e dos

diálogos estabelecidos com os sujeitos, fomos avançando ou re-significando nossa

prática.

A partir daí, procuramos apurar nosso olhar no processo de desenvolvimento

narrativo da criança, conforme organizávamos os experimentos que estimulassem

sua narrativa, que no nosso caso, constituiu-se na contação de histórias.

Esta pesquisa envolveu os procedimentos de observação e intervenção pedagógica

com as narrativas de ficção contadas para as crianças e recontadas por elas.

Primamos, em nossas análises, as interações entre os sujeitos e as histórias na

construção de sentidos sobre o narrado.

87

3.2 O CAMPO DA PESQUISA

A pesquisa, iniciada no primeiro semestre de 2005, foi realizada no turno matutino

em um Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) da rede pública de ensino de

Vitória - ES, localizado em um bairro da periferia. Considerando que o cotidiano

escolar é feito por muitas pessoas que, ao longo da história de suas vidas pessoais,

são constituídas por diferentes concepções e práticas culturais, tornou-se

fundamental o olhar de vários ângulos sobre esse cotidiano.

Na ocasião o CMEI atendia, em média, 325 crianças sendo 161 crianças no turno

matutino que funciona das 07h00min às 12h00min, e 164 no turno vespertino das

13h00min às 18h00min. Seu espaço físico é considerado amplo e dispõe de uma

organização interna e externa, compondo-se por:

� 7 salas de aula com 47m², em média, para atender de 25 a 30 alunos;

� 1 secretaria;

� 1 sala para o professor e 1 sala de café para funcionário;

� 1 sala para a diretora conjugada com a sala da pedagoga;

� 6 banheiros, sendo 3 para alunos e 3 para funcionários;

� 1 cozinha que dá para o corredor adaptado para refeitório;

� 3 depósitos, um para guardar material pedagógico, outro para material de

limpeza e outro para merenda;

� 1 laboratório de informática;

� 1 auditório;

� 1 biblioteca;

� 3 pátios (1 de areia, 1 de grama artificial e 1 playground exclusivo para as

turmas de berçário e maternal);

Os pátios se localizam logo na entrada das laterais do CMEI. Um deles é totalmente

cimentado, tendo nos fundos uma goiabeira e em uma das laterais, dois chuveiros.

Os brinquedos que fazem parte desse pátio são: um escorregador, dois balanços e

alguns velotrols. Há também duas mesinhas e banquinhos de cimento. O pátio

gramado é parcialmente coberto e há somente um túnel de plástico colorido e no

pátio de areia, que fica posterior a este, existe um brinquedo 3 em 1; ou seja, é ao

mesmo tempo uma casinha contendo embaixo dela, um escorregador e vários

88

balanços. Na parte central do CMEI, há um borboletário desativado e uma área que

seria destinada ao plantio de flores e hortaliças, mas que, também, encontra-se em

desuso.

Quanto aos recursos humanos, o CMEI possuía um quadro de funcionários

composto por 33 profissionais da Prefeitura Municipal de Vitória (PMV), 6

profissionais de uma firma terceirizada (vigias e pessoal de limpeza) e 1 estagiária

da Educação Especial. Das 8 professoras do turno matutino, 6 eram efetivas. O

Corpo Técnico-Administrativo (CTA) era formado por uma diretora, duas pedagogas

e duas secretárias. Existia ainda, um profissional em cada turno denominado

“professor dinamizador”, antigo “professor de projetos”.

A escolha desta escola se deu devido ao seu Projeto Institucional - “Literatura:

Encanto e Magia” parecer adequado aos objetivos desta pesquisa, e também pela

singela participação que tivemos em sua elaboração, pois, quando o projeto estava

em fase de construção (7/05/04), convidaram-nos a proferir uma palestra para os

professores sobre a importância de contar histórias para as crianças.

Naquela ocasião, tivemos acesso às avaliações dos funcionários a respeito da

nossa apresentação sobre o trabalho com a literatura infantil e a contação de

histórias. Tais avaliações serviram-nos de estímulo para detectar nossas

capacidades, falhas e limitações redimensionando-as, e incitando-nos a iniciar, ali,

uma investigação que pudesse aprimorar a nossa prática e subsidiar, por meio de

uma metodologia apropriada, o trabalho docente possibilitando conhecer melhor a

criança e sua linguagem, em situações reais de interação verbal.

A justificativa que o CMEI utilizou para desenvolver tal projeto era baseada no poder

que a mídia exercia sobre as crianças, afastando-as do hábito de leitura. Sendo

assim, seu grande desafio consistia em trabalhar com a literatura, tornando-a uma

atividade prazerosa, interessante, criativa e muito atraente, no intuito de despertar

na criança o gosto pela leitura.

Seus principais objetivos se traduziam em: habilitar professores a melhor

compreenderem o alcance do texto literário no processo de formação do aluno-leitor;

envolver as famílias nas ações desenvolvidas no projeto, estimulando-os, dessa

forma, a vivenciar o prazer da leitura; promover o desenvolvimento gradativo das

89

competências lingüísticas básicas: falar, escutar, ler, escrever; proporcionar a

ampliação e expressão de acesso ao mundo letrado.

A construção teórica do projeto institucional deste CMEI pautou-se no livro da Fanny

Abramovich (1993): “Literatura Infantil, gostosuras e bobices”. A sistematização do

trabalho com a literatura tinha como propósito oferecer subsídios teóricos/suporte

pedagógico aos professores através de grupo de estudo e formação em serviço para

que eles tivessem acesso à leitura, pesquisa e relatos de experiências e, desse

modo, pudessem fundamentar sua atuação junto às crianças e à

família/comunidade. Para alcançarem os resultados esperados, o projeto procurou

firmar parcerias entre outros CMEIs, Escolas Municipais de Educação Fundamental

(EMEFs), contadores de histórias, escritores, músicos e famílias/comunidade.

Os gêneros literários tiveram a seguinte distribuição: Berçário e Maternal - Contos de

fadas; Jardim I - Fábulas; Jardim II - Lendas e Pré - Poesias. No entanto,

ressaltaram a importância de cada professor trabalhar os vários gêneros literários

em sala de aula.

O projeto apresentava ainda as seguintes expectativas: a) Em relação às crianças -

maior cuidado e conservação dos livros; reconhecimento da leitura de histórias como

momentos de prazer; maior desenvolvimento da oralidade (expressão do

pensamento); capacidade de perceber as características marcantes dos vários

personagens presentes nas histórias, contos, lendas; reconhecimento de sua

capacidade como autor, produzindo suas próprias histórias. b) Em relação aos

professores e funcionários - maior interesse pela leitura como fonte de informação e

lazer; aperfeiçoamento das estratégias metodológicas para o trabalho pedagógico;

maior domínio de critérios para seleção de histórias e das técnicas para ler e contar

histórias. c) Em relação à família/comunidade - percepção da importância de ler e

contar histórias para as crianças; maior interesse pela leitura como fonte de

informação e lazer; participação mais efetiva nos eventos do CMEI (oficinas,

apresentações, passeios, visitas, contação e leitura de histórias, teatro); maior

participação na vida escolar de suas crianças.

Ao retornar em março de 2005 para apresentar nossa proposta de estudo à diretora

e à pedagoga, o projeto encontrava-se em fase de reformulação e suas principais

90

metas eram: envolver as famílias; organizar, inaugurar e dinamizar a Biblioteca;

realizar a Ciranda do Livro, Oficinas Literárias e visitas às livrarias e Biblioteca

Pública; contar histórias para as crianças, profissionais e famílias, promovendo

recontos, dramatizações de histórias, Sarau de Poesia e produção de livros feitos

por crianças e famílias. O ano de 2005 foi escolhido, por essa instituição infantil,

para trabalhar com o escritor Hans Christian Andersen, em comemoração ao

bicentenário do seu nascimento. Segundo o texto informativo repassado no grupo de

estudo, esse escritor dinamarquês é considerado o mago dos contos por ser o

criador da literatura para crianças e jovens do mundo todo. Acredita-se que

Andersen tenha se inspirado na sua própria vida para criar os contos. Por tudo isso,

essa data é considerada um marco na história da literatura.

A escola mostrou-se bem receptiva à nossa pesquisa. Porém, não foi possível

realizar atividades nos dois turnos, como era desejado pela diretora. Firmamos um

acordo de que, na medida do possível, estaríamos contribuindo para o

desenvolvimento do projeto institucional de alguma forma, com alguns dos eventos

realizados pela escola como: a inauguração da Biblioteca, o encontro com as

famílias, contação de histórias para os dois turnos e outros. Em face disso, algumas

vezes éramos apontada pelas turmas maiores como “a tia que conta histórias” e por

diversas as crianças nos abordavam e nos recebiam com abraços, beijos e

perguntas: “Você vai contar histórias hoje?”, “ Você é aquela fada da história, não

é?”

Foi então que nos tornamos, além de professora-pesquisadora, a contadora de

histórias daquele CMEI. Volta e meia a diretora e a pedagoga assim nos

apresentavam, antes de iniciar um evento na escola que contasse com a nossa

participação. Sentimos uma expectativa muito grande daquela equipe em relação à

nossa presença naquele espaço e uma responsabilidade enorme sobre nossas

atribuições que agora não se limitavam a pesquisar as crianças do berçário.

Restava-nos, então, mergulhar nessa habilidade, entregando-nos à fantasia e à

imaginação, procurando despertar não só nos sujeitos da pesquisa, mas também

naquela comunidade escolar, o potencial que existe em todos nós de resgatar essa

cultura milenar que é a narração de histórias.

Em relação ao espaço físico do berçário, principal lócus da nossa pesquisa,

91

obtivemos informações das professoras de que ele era um local adaptado sendo

originalmente, uma área de serviço. Devido à grande demanda de crianças de 1 ano

e 7 meses a 3 anos, a diretora viu-se diante da necessidade de transformá-lo em um

espaço para atender as crianças do berçário.

No entanto, precisava ser repensado para melhor atender as necessidades daquelas

crianças. O ambiente requeria mais elementos atrativos como brinquedos e móveis6,

mais luminosidade e ventilação. As paredes, que na ocasião, eram pintadas com

cores fortes e diferentes, tornavam o ambiente um pouco carregado. Além disso,

existia o problema das interferências externas - o excessivo barulho que atrapalhava

o bom andamento das atividades.

Além da sala do berçário, a biblioteca, apesar de ser um espaço bem reduzido,

constitui-se no ambiente muito apropriado para o que se propõe esta pesquisa. No

entanto, pelas nossas observações, muito pouco valorizada e utilizada. Foi

inaugurada oficialmente em 04/05/05, com o nome de uma servidora do CMEI já

falecida. Nessa ocasião, nos vestimos de fada, contamos histórias e enfatizamos a

importância daquele local e do seu acervo para todos nós. Conversamos sobre o

cuidado e preservação dos livros e daquele ambiente. A comunidade também se fez

presente naquele evento que aconteceu nos dois turnos. A família da homenageada

se emocionou com a criação daquele espaço e com a consideração dada a ente tão

querida por todos e fez um apelo para que todo o CMEI utilizasse a biblioteca com

muito carinho, procurando sempre preservá-la.

No dia da inauguração, a biblioteca estava toda decorada, possuía um acervo bem

diversificado e apresentava certa organização baseada nos seguintes critérios

estruturais de classificação: poesias, animais, lendas, fábulas, clássicos infantis, etc.

Embora houvesse todo o esforço da parte de seus organizadores em tornar aquele

local atraente e estimulador para ser visitado, isso não aconteceu na prática. 6 Os poucos brinquedos existentes, que se mostravam interessantes às crianças, raramente eram disponibilizados, por não serem em número suficientes, o que causava muitos transtornos e conflitos. Como exemplo desses brinquedos, citamos a piscina de bolas e um carro dirigível pelas crianças. Quanto aos móveis, a sala contava com dois armários de aço (um para cada turno) que se constituíam no único lugar para guardar os materiais das professoras e objeto da sala. Havia também um aparelho de som que não funciona e duas mesas, sendo uma delas utilizada pelas professoras no seu dia-dia.

92

Passado o momento de empolgação, o local se tornou pouco utilizado.

Nosso olhar sobre esse espaço permitiu-nos descrever uma escola que tem tentado

realizar uma proposta de sistematização do conhecimento, mas que tem se

deparado com algumas questões que inviabilizam e impedem a efetivação das

propostas educativas para as crianças de 0 a 6 anos. Dentre elas, o descaso das

políticas públicas, a falta de verbas e gerenciamento, a formação permanente de

professores e gestores.

Em função disso, acreditamos que a escola precisa criar um espaço organizado de

modo que propicie à criança, além do cuidado, a prática pedagógica intencional

voltada para os momentos de interação, que tenham sentido, que sejam desafiantes

e estimulantes. Nesse sentido, produzir subsídios para conhecer e mediar o

processo de desenvolvimento da narrativa tornou-se uma de nossas tarefas nesse

campo de pesquisa. É na trama desse contexto que a investigação sobre a narrativa

foi se configurando, ganhando sentido e forma.

3.3 BERÇÁRIO II: SUJEITOS DA PESQUISA

A contação de histórias é uma atividade que envolve adultos e crianças. Neste caso,

constituíram-se em sujeitos significativos deste cenário as crianças de 1 ano e 7

meses a 3 anos, que fazem parte da turma do berçário II. As duas professoras da

sala - ambas formadas em Pedagogia e efetivas da rede, a auxiliar de serviços

gerais (ASG) e os familiares das crianças, também tiveram sua importância, atuando

ativamente como mediadores em alguns momentos.

Conhecer a forma como a criança aprende e desenvolve sua fala é condição

indispensável para que o professor provoque avanços no desenvolvimento da

criança, para além do momento atual em que ela se encontra, tendo em vista o que

está por acontecer na sua trajetória de desenvolvimento psicológico. Segundo

Vigotski (1989), no período que se inicia por volta de dois anos, a criança, que já

adquiriu a linguagem oral, desenvolve a capacidade para assimilar a representação

simbólica do mundo. Daí a pertinência do nosso estudo em investigar a narrativa em

uma faixa etária envolvendo crianças tão pequenas.

93

Na época da pesquisa de campo estavam matriculadas na sala do BERÇÁRIO II, 24

crianças sendo 15 meninos e 9 meninas. No entanto esses dados não se

mantiveram constantes, devido a grande movimentação de permanência e saída

dessas crianças no berçário, por vários motivos: transferência para outro CMEI mais

próximo de casa, grande número de atestado médico, condições climáticas (no

período de inverno as faltas se intensificavam), não ter quem traga e busque a

criança... Destas crianças, duas passaram para a turma do maternal, uma menina se

desligou do CMEI no início do ano, outra no meio do ano e outra, na metade do

segundo semestre, ocupando suas vagas, duas meninas e um menino. Duas

crianças permaneciam no CMEI em período integral, totalizando 10 horas.

Segundo informações da pedagoga, em geral, a renda familiar daquela comunidade

equivalia, na época, de um a dois salários mínimos. Isso quando estavam

empregados de carteira assinada. A maior parte das mães eram diaristas ou

domésticas e os pais, autônomos; alguns inclusive viviam da pesca. O nível sócio-

econômico relativamente baixo dessa comunidade era considerado a principal

dificuldade que a maior parte enfrentava para garantir e manter a vaga de seus filhos

no CMEI.

A pesquisa envolveu dois momentos: observação e intervenção pedagógica. No

primeiro momento nossa postura resumiu-se em observar o cotidiano do campo de

pesquisa no que se refere ao conhecimento do espaço físico, o conhecimento da

equipe pedagógica e docente e dos sujeitos pesquisador e seus familiares.

Procuramos escutar o grupo e entender suas práticas dentro do contexto escolar. O

segundo momento envolveu nossa participação efetiva no trabalho de intervenção

pedagógica mediante o desenvolvimento de um pequeno projeto de contação de

histórias junto aos sujeitos pesquisador e as professoras da sala.

3.4 OS PROCEDIMENTOS DA PESQUISA

As primeiras impressões sobre as crianças do Berçário II nos revelaram sujeitos

ativos, falantes, capazes de pôr em movimento todas as formas superiores de

pensamentos. O modo de se expressarem verbalmente ou não, e de se

movimentarem pelo CMEI, iam refletindo a cultura, a história de vida e a própria

94

identidade de cada criança: havia criança que ao longo da pesquisa, não chegamos

a conhecer os pais; criança que chegava sempre atrasada, que quase nunca faltava,

fizesse frio, calor, ou estivesse doente e que jamais chegamos a conhecer a figura

da mãe; havia aquelas, em número menor, que os pais se revesavam para levar e

buscar fazendo questão de participar das atividades escolares, das reuniões; Havia

também crianças que utilizavam o transporte escolar. Algumas já chegavam

batendo, brigando, outros chegavam sorridentes, felizes, cumprimentando colegas,

beijando as professoras, outras ainda, recusavam-se a entrar, permanecendo

caladas, paradas, aparentando fisionomia de assustadas ou tristes.

O espaço predileto dessa turma era o pátio de areia denominado “Playground”. Lá,

além de brincarem com os brinquedos disponíveis, utilizavam, eventualmente,

alguns brinquedos como bolas, bonecas e sucatas (copinhos de iogurtes, garrafas

pet, etc.). Qualquer um que se dispõe a observar as crianças pequenas reconhece

que, para elas, tudo pode se tornar brinquedos. Foi o que constatamos nessas

crianças; a freqüente disputa por brinquedos terminando em agressões físicas. Mas

também, por inúmeras vezes, presenciamos essas crianças imitando brincadeiras

que aprendiam com as crianças de outra turma e adaptavam entre si - fazer

comidinha utilizando as folhas das árvores caídas no chão para servir de utensílios

(colher, prato) e de alimento; a areia do pátio e as sucatas, serviam para o mesmo

propósito; brincavam também de casinha, desempenhando o papel de mãe;

inventavam formas de alcançar o chuveiro e tomar banho no pátio. Diante disso é

preciso investir em atividades educativas que dê vasão às ações e atitudes

impulsivas da criança ao invés de tentar reprimi-las.

Assim, fomos percebendo que, no dia-dia, as crianças vão estabelecendo, através

de suas brincadeiras, seu modo de agir, uma relação com o mundo, transformando a

realidade à sua volta. No entanto, nem sempre esse modo de se expressar é visto

positivamente pela escola, pois, na maioria das vezes, as crianças são

caracterizadas como desatenciosas ou levadas.

Estudos sobre o predomínio da motricidade das crianças pequenas nas suas

principais atividades de interação com o meio social afirmam que o movimento é

“uma importante dimensão do desenvolvimento e da cultura humana” (RCNEI, 1998,

vol.3, p.15). No entanto, elas eram vistas como crianças muito agitadas, carentes e

95

que não tinham apoio e nem estímulo familiar, como revela o depoimento de uma

professora a seguir:

[...] to tendo, né, essa oportunidade de trabalhar no BERÇÁRIO II no turno matutino e vespertino e pra minha surpresa, essa... a turma é completamente diferente uma da outra... A turma do turno vespertino corresponde a todas as nossas expectativas, principalmente na história, nas rodinhas, às vezes me surpreende com as perguntas... tem sempre um aluno que se destaca mais.... enquanto a turma do matutino, mal eu consigo fazer uma rodinha, já começa: um pra lá, outro pra cá... eu vou, chamo, eu levanto, chamo de novo... aí começo a contar uma história e não consigo terminar... e fico cansada. Mas quando chega à tarde o cansaço some, porque tudo que eu dou é correspondido... Eu já parei para pensar e analisar o porquê disso aí. Eu penso, não tenho certeza porque não fiz nenhuma pesquisa profunda e tal, mas eu penso que tudo parte da família... esse menino que eu to falando pra você, eu procurei saber como é em casa... são muitos livros, muitas histórias, muito filme de DVD infantil. Às vezes fico animada... vou puxar a turma do matutino também, porque... assim, prá mim tem que ficar igual, tem que ficar melhor... porque são crianças da mesma faixa etária e tal. Aí pego o lençol, coloco na cabeça e faço aquela doideira e tal... mas é só naquele momento, depois eu não vejo uma resposta. Quando eu vou perguntar e aí? Como é? Quem gostou? Eu não vejo uma resposta que me satisfaça (informação verbal).

No decorrer da pesquisa essa e outras imagens sobre a criança foram se alterando:

”Tenho expectativa de que elas (as crianças) avancem ainda mais. São crianças

estimuladas somente na escola. É possível desenvolver um trabalho pedagógico

com essas crianças, mesmo com as dificuldades enfrentadas na administração: falta

de apoio pedagógico, falta de material, além do professor não ser valorizado e

estimulado, ao contrário, ele é desestimulado a fazer o seu trabalho”, diz uma

professora.

Através das observações, compreendemos que a rotina escolar é feita por

movimentações das quais podemos retirar significações expressivas sobre as

inúmeras situações que se expressam nas palavras, ações e omissões e que vão

constituindo os significados que nos ajudam a obter valiosos esclarecimentos sobre

as crianças.

Antes de iniciarmos o trabalho de pesquisa de campo, conversamos com as

professoras que, por sinal, mostraram-se dispostas a colaborarem com a pesquisa.

O primeiro contato com as crianças ocorreu no dia 13/04/05, numa manhã de

quarta-feira, precisamente às 07h00min horas. Embora não tenha sido apresentada

formalmente às crianças, elas se aproximaram como se já nos conhecêssemos há

tempos. Nesse dia, nos limitamos a observar a rotina da escola em geral e

96

especificamente dessa turma, que tinha as seguintes atividades diárias:

Entrada 07h00min às 07h25min

Lanche 07h30min

Almoço 10h40min

Saída 11h40min

Quanto ao planejamento semanal destacavam-se as atividades:

Segunda-feira Pátio 08h00min às 09h00min

Planejamento 08h00min às 09h00min Terça-feira

Playground 08h00min às 09h00min

Quarta-feira Pátio 09h40min às 10h00min

Informática 08h00min às 09h00min

Biblioteca 08h00min às 09h00min Quinta-feira

Playground 09h40min às 10h10min

Vídeo 08h00min às 09h00min Sexta-feira

Playground 09h40min às 10h00min

No entanto, durante o período de observação, constatamos que a rotina não seguia

essa orientação, se constituindo basicamente em: receber as crianças, lanchar, ir

para o parquinho, retornar para o almoço, lavar as mãos, retornar à sala, se

prepararem para a saída. Salvo em dias chuvosos em que as crianças ficavam na

sala assistindo vídeo. Às crianças do período integral era reservado, no momento da

saída, um cantinho na sala constituído por um colchão forrado com lençol, para

repousarem. Os contatos desta turma com outras crianças do CMEI, aconteciam

esporadicamente nos momentos do parquinho e eventualmente, nas apresentações

culturais do CMEI.

O convívio que se estendeu por quase um ano, rendeu-nos fortes vínculos afetivos

com as crianças, familiares, professoras e a equipe pedagógica. No primeiro

momento, procuramos superar o olhar sobre a pesquisadora que geralmente é vista

como sendo uma “intrusa”. Uma das formas que encontramos para romper com esse

97

olhar e adquirir a confiança do grupo foi participando das atividades de rotina:lavar

as mãos das crianças, levá-las ao refeitório, trocar suas roupas... Aos poucos, o

envolvimento com as professoras e com as crianças foi crescendo, tomando

intimidade e criando laços afetivos positivos para o desenvolvimento do estudo em

questão.

No pátio, as crianças iam revelando pistas, através do modo de se expressarem,

que muito contribuiriam para nossa atuação em relação às futuras atividades a

serem desenvolvidas com elas, junto às professoras. Corriam, brincavam em grupo,

sozinhas, brigavam, falavam. Volta e meia uma criança conduzia-nos pela mão até o

pé de goiabeira para mostrar a fila de formigas e outros bichinhos que apareciam.

Aproveitávamos essas ocasiões para estabelecer um jogo dialógico com elas,

introduzindo aos seus enunciados, alguns elementos no diálogo, a fim de ampliar

sua linguagem oral: cantávamos, subíamos no pé de goiaba, brincávamos de roda...

Uma das professoras que estava no pátio enquanto a outra lanchava, veio em nossa

direção, e, em conversa informal, explicou-nos que era dali que surgiam as

inspirações para trabalhar com eles em sala de aula. “Os temas eram estudados a

partir dos interesses das crianças. A criança não era forçada a nada; tudo era

espontâneo”, ou seja, “as atividades eram livres”.

O relato da professora se confirmou durante a maior parte da nossa observação. No

próprio cronograma de rotinas, não se contemplava um horário para realizar as

atividades planejadas de forma sistemática. De fato, as crianças ficavam livres a

maior parte do tempo. Não havia uma rotina de atividades como: rodinha para

conversar, cantar, contar histórias, levar as crianças a realizar suas produções

(desenhos, colagem, pintura...).

Diante desse contexto, nosso trabalho baseou-se na necessidade de

desenvolvermos um papel ativo e atuante, enquanto pesquisadora, junto às

professoras e com as crianças, mantendo um diálogo com as professoras e

pedagoga, procurando ouvi-las e entender suas concepções e práticas e também,

organizando um contexto propício ao desenvolvimento da narrativa.

Considerávamos que isso auxiliaria na promoção de um ambiente mais favorável ao

98

desenvolvimento da pesquisa permitindo o estabelecimento de ações que

desencadeassem e/ou estimulassem a emergência da narrativa de ficção, entre as

crianças.

Os diálogos estabelecidos contribuíram não só para nossa própria reflexão, mas

também, conforme relatos das professoras, para a reflexão sobre suas ações e a

busca do redimensionamento das mesmas. Esses momentos reflexivos nos

auxiliaram, também, para que houvesse maior compreensão dos nossos objetivos a

serem alcançados nas atividades trabalhadas com as crianças. Procuramos, assim,

firmar nossos objetivos para este trabalho de pesquisa, seguindo a direção da linha

teórica aqui apresentada.

Redefinimos assim nosso percurso metodológico levando em conta os seguintes

fatores: a) o tempo de permanência no CMEI que a princípio acontecia em dias

alternados (três vezes por semana), passando a se intensificar, chegando a

acontecer quase todos os dias da semana em virtude da greve de motorista, da

semana de capacitação de professores, dos eventos extra-classe, etc.; b) a

transformação do espaço físico dentro da sala de aula, que levou tempo para torná-

lo propício às questões a que se propunha; c) o papel do mediador em relação ao

trabalho pedagógico, tendo em vista o que planejar para dar andamento ao processo

investigativo.

Procuramos não perder de vista nossos objetivos e as orientações de Vigotski, e

autores que seguem a matriz histórico-cultural, para nos ajudar a compreender a

centralidade de nossas ações nesse contexto, através dos conceitos de zona de

desenvolvimento proximal e mediação.

Assim, priorizamos algumas ações consideradas essenciais para o desenvolvimento

do projeto. A primeira providência tomada foi realizar uma reunião com os pais

esclarecendo-lhes sobre a nossa presença junto às crianças do berçário e o nosso

papel ali, enquanto pesquisadora. Organizamos um pequeno questionário para

sondar o contato e a freqüência deles com a literatura. O retorno foi de 40%, sendo

que a maioria dos que responderam diziam ter vivenciado na infância, momentos

com as histórias de ficção e de alguma forma, procurava repassar esses momentos

para a criança.

99

Conseguimos o apoio dos pais para realizar nossa pesquisa através da autorização

para sair com as crianças (visitar outros espaços) e também para divulgar esse

trabalho de pesquisa com seus filhos por escrito e por imagens, caso necessário.

Em conversa informal, alguns pais mostraram-se satisfeitos com esse trabalho e

revelaram ser comum e rotineira a prática de contar histórias para os filhos. Dentre

os relatos colhidos nessa reunião, um deles, particularmente, muito nos emocionou;

um dos pais falou que em função de seu trabalho, às vezes tinha que ficar dias fora

de casa, mas mesmo assim, por telefone, contava histórias para o filho antes de ele

dormir.

A segunda providência foi alterar o quadro de rotina, introduzindo nele, um horário e

um cantinho específico para contação de histórias. Todos os dias após o lanche das

crianças, passamos a convidá-las a se sentarem para ouvir histórias. Antes, porém,

procuramos selecionar as histórias, priorizando aquelas em que a criança pudesse

estabelecer alguma relação com as situações reais de seu cotidiano.

As observações iniciais e o permanente diálogo com o CMEI e os familiares,

permitiram-nos conhecer melhor sobre o cotidiano dessas crianças na escola e na

família, facilitando, assim, a tarefa de escolha e adequação do material a ser

empregado junto às crianças. Dada a grande dificuldade que havia em introduzir

essa nova rotina para as crianças: (sentarem na rodinha para conversarem, ouvirem

histórias ou realizarem outro tipo de atividade...), fomos obrigadas a fazer algumas

alterações na sala; retiramos a piscina de bolas e a colocamos no pátio cimentado

criando no lugar da piscina um cantinho mais acolhedor e propício ao

desenvolvimento de outras atividades.

Observando o interesse das crianças por bichinhos (geralmente insetos achados no

pátio e os comentários sobre os animais na hora do recreio) fizemos um painel bem

atrativo com a figura de um grande sapo para realizar a chamadinha. Neste cantinho

cantávamos a famosa música: “O sapo não lava o pé” alterando a trocando a

palavra “sapo” pelo nome de cada criança. Fizemos carimbo com seus pés,

distribuíamos as fichas com seus nomes e as figuras de bichinhos feitos com os

carimbos de seus dedinhos.

Em um outro canto da sala, organizamos um local bem aconchegante e atrativo,

100

colocando um tatame colorido, e construindo aos poucos, um painel em toda a

parede com a participação das crianças. Com a permissão da diretora, da pedagoga

e das professoras do berçário, reorganizamos a sala, introduzindo alguns móveis

que estavam em outras localidades da escola, sem muita utilização: Uma estante

serviu de divisória para o cantinho da contação de histórias e para o cantinho das

atividades no qual aproveitamos uma mesa que também serviu para comemorar os

aniversariantes do mês (uma prática comum do CMEI, que consistia em socializar

com a família o aniversário das crianças, desde que não atrapalhasse o almoço e

que os membros da família se dispusessem a limpar a sala após a comemoração).

Logo acima desta mesa introduzimos um painel para colocar os nomes dos

aniversariantes do mês. Em um outro cantinho colocamos ao alcance das crianças

alguns brinquedos e livros que ficavam no alto do armário, dentro de caixas.

A mudança foi bem receptiva pelas crianças, que passaram a querer ficar mais

tempo na sala de aula e participarem com mais entusiasmo das atividades

propostas. As próprias professoras, em conversas informais, diziam se sentirem

mais estimuladas a desenvolverem as atividades com as crianças. A mudança foi

notada por todo o CMEI. Alguns pais vinham nos procurar para entender melhor as

histórias que seus filhos lhes contavam. Sentimos um esforço da parte das

professoras e das crianças em preservar todo aquele cenário que havia sido

construído em ação conjunta.

Tendo por objetivo desenvolver a linguagem oral da criança rumo à construção de

sua narrativa, buscamos realizar a proposta de contação de histórias através das

narrativas de ficção, pois, a partir da observação da rotina dessas crianças,

percebemos que as narrativas são vistas como uma forma de brincar. Basta apenas

alguém sentar e começar o “era uma vez”, que as crianças vão se achegando, basta

um tom de voz diferenciado para provocar risos, correrias, basta distribuir-lhes os

livros que eles passam a ser casinhas, objetos voadores, passam a correr atrás dos

colegas com o livro aberto na página do bicho papão, do lobo mau... Assim é que as

crianças que têm contato com livros e com narrativas de histórias, vivem todas essas

emoções, passando a reelaborá-las e entendendo a vida.

Não foi possível utilizar todas as histórias que havíamos intencionado incluir no

repertório da contação dada a limitação do tempo. Entre as histórias trabalhadas

101

tivemos: “A Festa no Céu”, “Chapeuzinho Vermelho”, Os Três Porquinhos” e “O

Patinho Feio”. A primeira história foi uma escolha nossa. Apostamos na riqueza do

seu conteúdo e no que havíamos observado nas características dessas crianças

para introduzi-la em nosso repertório de contação. Consideramos ter acertado na

aposta, uma vez que essa história foi a mais pedida, a mais contada e a mais

explorada. Sua temática possibilitou-nos organizar a sala, montando um painel bem

colorido, com bastantes personagens contidos nessa história, em uma das paredes

da sala. O entusiasmo das crianças por essa história foi tamanho que planejamos

culminar o projeto de contação de histórias realizando uma festa encenada e

cantada pelas crianças no final do período da nossa pesquisa convidando os pais

para prestigiarem as crianças. As outras duas, foram escolhas das crianças e

também se constituiu em material interessante para nossas análise, pois delas foi

possível extrair a temática do medo que tanto se repetiu nas manifestações das

crianças.

Além dessas, outras histórias também foram trabalhadas à medida que as crianças

traziam de casa pequenos livrinhos e pediam para que contássemos a elas as

histórias desses livrinhos, e também nos livros que iam nos finais de semana dentro

de uma pasta com o nome de cada criança, para ser devolvido na segunda-feira.

Porém, as mais enfatizadas foram essas quatro narrativas e as análises mais

relevantes foram recolhidas nas situações de conto e reconto da história “A Festa no

Céu” e “Chapeuzinho Vermelho”.

Houve momentos em que não havíamos planejado e as manifestações ocorriam

revelando-se muito interessantes para nossas análises. Entre esses momentos

relatamos relevantes para nossas análises as cenas flagradas das crianças fazendo

suas próprias escolhas no montante dos livros que se encontravam expostos na

sala. Daí se pôde perceber um fato interessante sobre as preferências das crianças

em relações as histórias, uma vez que eram sempre os mesmos livros as causas

das disputas e conflitos na sala. Geralmente os livros preferidos eram os clássicos

infantis e as literaturas mais recentes contendo personagens assustadores: bruxa,

lobo mau, monstros.

Optamos por cultivar essas histórias em crianças pequenas, pois tal como Bruno

Bettelheim (1980), também acreditamos que elas são significativas e primordiais

102

para o desenvolvimento saudável da personalidade da criança na vida adulta. Esse

tipo de ficção auxilia as crianças a elaborarem seus conceitos permitindo-lhes

descobrir meios para resolverem seus conflitos na vida real. Segundo esse autor:

Para que uma estória realmente prenda a atenção da criança, deve entretê-la e despertar sua curiosidade. Mas para enriquecer sua vida, deve estimular-lhe a imaginação: ajudá-la a desenvolver seu intelecto e a tornar claras suas emoções; estar harmonizada com suas ansiedades e aspirações; reconhecer plenamente suas dificuldades e, ao mesmo tempo, sugerir soluções para os problemas que a perturbam. Resumindo, deve de uma só vez relacionar-se com todos os aspectos de sua personalidade - e isso sem nunca menosprezar a criança, buscando dar inteiro crédito a seus predicamentos e, simultaneamente, promovendo a confiança nela mesma e no seu futuro (BETTELHEIM, 1980, p.13).

3.5 A CONTAÇÃO DE HISTÓRIA COMO PROPOSTA DE

INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA

Vigotski (2001) nos fala que as maiores aquisições que futuramente tornarão o nível

básico de ação real para a moralidade de uma criança é conseguida no brinquedo.

A ação na esfera imaginativa, numa situação imaginária, a criação de intenções voluntárias e a formação dos planos da vida real e motivações volutivas - tudo aparece no brinquedo, que se constitui, assim, no mais alto nível de desenvolvimento infantil. A criança desenvolve-se essencialmente através da atividade do brinquedo (VIGOTSKI, 2001, p.117).

Os professores que compreendem isso desenvolvem a capacidade de transformar

os objetos de interesses das crianças - incluímos aí os livros, as histórias infantis -

em instrumentos essenciais para suas aprendizagens e crescimentos.

Tomando como referência essas propostas metodológicas, buscamos analisar como

a interação verbal que ocorre no contexto educativo da contação de histórias

contribui para o desenvolvimento da narrativa na criança do berçário. Desse modo

realizamos, em parceria com as professoras da sala do BERÇÁRIO II, algumas

práticas educativas e intencionais, através de situações e atividades envolvendo a

contação de histórias, com o intuito de propiciar condições para investigar e registrar

o processo do desenvolvimento da narrativa. Entendemos que a perspectiva

103

adotada por esta pesquisa exige entre outras atitudes, uma intervenção pedagógica

que privilegie a atividade interativa centrando a atenção não apenas em uma das

partes do processo (criança, professor, narração de histórias...), mas no todo.

Durante o trabalho de pesquisa de campo previmos realizar as atividades de

contação em três momentos, procurando seguir, em nosso planejamento, o modelo

de Freitas (2001), com algumas adaptações:

Pré-Contação

Consistia em realizar uma rodinha de conversa antes e depois das histórias para

ativar nas crianças a expectativa das histórias que seriam narradas e incentivar

nelas, o gosto de recontá-las. Apresentávamos um livro de histórias para as

crianças, informando o título, o nome do autor, do desenhista e incentivávamos para

falarem o que será que a história iria contar. Após criar expectativa e suspense em

torno da história, passávamos imediatamente para o momento de contação, uma

vez que as crianças se mostravam ansiosas para ouvirem a história.

Contação de Histórias

Após a pré-contação procedíamos à contação de histórias para as crianças, que

ouviam e participavam atentamente em cada uma das histórias narradas,

chamando-lhes a atenção para as imagens enquanto líamos ou contávamos a

história, passando página por página vagarosamente. As interferências das crianças

e as intervenções dos adultos no ato da contação se tornaram constantes e

produtivas.

Pós-Contação

Compreendia o reconto de histórias narradas pelas crianças, logo após a contação

feita pelos adultos. Como as pesquisas enfatizaram, o jogo de recontar histórias

aperfeiçoa a linguagem oral porque promove uma interação maior da criança e seus

104

pares com os elementos contidos na narrativa. No ato de recontar procuramos

detectar nas crianças elementos estruturantes de uma narrativa. Nessa atividade

percebemos que eram poucas as crianças que participavam demonstrando certo

conhecimento e intimidade com as histórias e os personagens, sobretudo, os

clássicos infantis. Para maior parte das crianças faltavam estimulação e repertório

de leituras. Isso serviu para confirmar a importância de se trabalhar com a literatura

na escola.

Nossa grande dificuldade ao optamos em trabalhar com as narrativas de ficção foi

criar nas crianças o hábito de sentar para ouvir e conversar. Foi preciso então

redimensionar essa atividade, utilizando recursos que chamassem a atenção das

crianças para esse momento. Dentre os vários recursos, utilizamos a música, a caixa

surpresa, o baú de fantasias, os fantoches e a própria distribuição dos livros.

Procuramos organizar a sala com um cenário propício à imaginação e eliminar

brinquedos que dispersassem a atenção das crianças como a piscina de bolas e um

carro grande que as crianças dirigiam.

Assim, ler, contar, recontar ou ouvir histórias, transformou-se na principal atividade

desenvolvida no berçário, bem como o fio condutor para as demais propostas de

ensino. O trabalho com a obra literária não se esgotava no mesmo dia. Na maioria

das vezes, sentimos a necessidade de retomar a história anterior para que as

crianças pudessem relembrar e explorar a história de outra maneira, com outras

versões, outras vozes. Cada professora tinha um jeito próprio e diferente de contar a

mesma história.

As atividades diversificadas foram realizadas por meio de brincadeiras, de imitações,

de manipulações de fantoches, fantasias, desenhos, pinturas, confecção da

tartaruga. Nenhuma dessas atividades foi tomada como mero entretenimento e sim

com o propósito de não perder de vista nossos objetivos traçados: investigar a

narrativa da criança em situações de conto e reconto.

Como já dissemos, procuramos escolher as histórias, não pela classificação de

idades como alguns autores sugerem, mas pelas suas características e, sobretudo

por aquilo que elas apreciavam e traziam do seu cotidiano.

Desse modo, não tivemos dúvida em iniciar nossa atividade com a história “Festa no

106

105

Céu”, cujo enredo é permeado por vários bichinhos e o personagem principal é uma

tartaruga. Essa história foi apresentada às crianças em três versões. As professoras

se revesavam nos momentos de contação dessa história, apoiando-se nas imagens

do livro da Ângela Lago. A primeira versão foi contada resumidamente assim:

A FESTA NO CÉU

Vou te contar uma história muito engraçadinha de uma tartaruguinha. Houve uma festa lá no céu, e o céu era distante. Só os animais que voavam podiam ir a essa festa A tartaruguinha resolveu ir à festa, dentro da viola de um urubu. Chegando lá se divertiu bastante. Acabou adormecendo dentro da viola. Ao perceber que a tartaruga estava lá dentro, o urubu sacudiu a viola e a tartaruga foi caindo, caindo e se esborrachou. Os animais ficaram com pena, se uniram e colaram o casco da tartaruga. E a tartaruga acabou ficando mais bonita ainda com seu novo casco.

Em nenhum momento essa história foi lida. No começo ou final da narrativa dessa

história, as professoras cantavam:

Ouvi contar uma história / uma história engraçadinha / da tartaruguinha / da tartaruguinha. Houve uma festa lá no céu / mas o céu era tão longe / e a tartaruguinha viajou / na orelha do elefante. E quando a festa terminou a bicharada se mandou / Quem viu a tartaruguinha, quem viu? / Lá do céu ela caiu. São Pedro o céu varreu / e da pobrezinha se esqueceu. Ela disse: eu quebrei toda, o meu corpinho está de fora / como vou viver assim, Pai do Céu? O que vou fazer agora? Pai do céu juntou os caquinhos e colou / mais bonita ela ficou.

“Os Três Porquinhos” e “Chapeuzinho Vermelho”, dois clássicos da literatura infantil

também muito conhecidos e narrados, foram escolhidos para trabalharem com a

questão do medo com a turma do berçário, pelo fato de ambos terem em comum um

personagem fascinante e apavorante, ao mesmo tempo, que habita o imaginário das

crianças: O Lobo Mau. O primeiro clássico era constantemente visto pelas crianças

através do vídeo. O segundo clássico foi apresentado por diferentes recursos:

fantoches, narração oral com auxílio de livros de imagens e sem o livro. Nessas

histórias, grande parte das crianças divertia-se representando o lobo. Outra pequena

parte tinha verdadeiro horror, chegando inclusive a esconder o rosto com as mãos e

procurar, chorando, a proteção do adulto mais próximo.

OS TRÊS PORQUINHOS

Era uma vez, três porquinhos que resolveram construir suas próprias casas. O primeiro porquinho construiu uma casa bem resistente e isso levou tempo. Os

106

outros dois, na pressa de acabar logo para se divertirem, utilizaram materiais menos resistentes. O lobo que vivia pela redondeza, derrubou com seu sopro as casas desses dois porquinhos, mas se deu mal ao tentar derrubar a última casa. Acabou queimando seu rabo. Assim, os porquinhos passaram a morarem juntos outra vez.

CHAPEUZINHO VERMELHO

Era uma vez uma menina que se chamava chapeuzinho vermelho, por causa do gorro e da capa vermelha que não tirava para nada. Certa vez sua mãe lhe pediu para levar uma cesta de docinhos para a avó que morava do outro lado da floresta e se encontrava doente. Seguindo a recomendação da mãe, a menina obedeceu e partiu em direção da casa da avó. No meio do caminho é abordada pelo lobo que a engana e chega antes que a Chapeuzinho, devorando a avó e fica esperando a menina. Ao chegar, ela começa a indagar, o porquê dos olhos, nariz, orelhas e boca tão grandes e é surpreendida pelo salto que o lobo dá em sua direção para lhe devorar. Nesse momento é salva pelos caçadores que matam o lobo cerrando-lhe a barriga e retirando assim, a avó ainda com vida.

O PATINHO FEIO

Era uma vez uma pata que havia chocado cinco ovinhos. Ao nascerem os patinhos, um deles foi rejeitado pelos irmãos e pela mãe por ser diferente. Com profunda tristeza o patinho afastou da família e num belo dia olhando sua imagem refletida na lagoa percebeu que na verdade ele não era um patinho e sim um lindo cisne. Daí por diante encontrou sua verdadeira família e passou a viver mais feliz.

A narrativa “De fora da Arca” - Uma história com várias imagens de seres

mitológicos - é classificada como uma narrativa moderna e foi uma escolha de duas

crianças do berçário. Decidimos incluí-la em nossa proposta pelo fato curioso

dessas mesmas crianças disputarem o mesmo livro diante da diversidade e

possibilidade de outras escolhas. Em contato com esse livro as crianças

manipulavam-no e narravam, do seu jeito, tendo como referência as imagens que

apareciam. Por outro lado, este livro de literatura nos exigiu certos esforço em

nossas análises, fazendo-nos pensar, questionar e decifrar o que havia por trás

dessa disputa entre essas crianças, o que essas imagens suscitavam nas crianças.

Em relação às professoras da sala procuramos assumir nosso papel enquanto

professora, em atividades que envolviam a ação de planejar e executar tarefas,

organizar situações e esclarecer dúvidas, na medida do possível, em situações de

ensino. E, em outros momentos, definimos uma diferenciação da nossa postura de

professora, quando selecionávamos e anotávamos, gravávamos, fotografávamos e

filmávamos as expressões que considerávamos mais interessantes das interações

entre as crianças e os adultos para nossas análises. Tendo em vista que essas

107

funções, conforme Demo e Freire inicialmente explicitaram, não são dissociadas da

prática da pesquisa, as professoras também desempenhavam esse papel quando

diziam: “grava isso”, “pega a máquina”, “vamos fotografar”, “copiou?”; e também

quando faziam seus registros.

108

CAPÍTULO IV

4 O DESENVOLVIMENTO DA NARRATIVA DE FICÇÃO NA

CRIANÇA: SOBRE O REAL E O IMAGINÁRIO

Faz de Conta

Aqui está minha boneca,mas faz de conta que é uma princesa... A árvore lá do quintal, faz de conta que é um castelo, com

muitas luzes acesas. A caixa de sapatos, faz de conta que é uma cama...

e, faz de conta, que a comidinha é a grama... O príncipe é invisível mesmo, mas faz de conta que ele é

lindo... - Agora chega Mariazinha, Vá tomar seu banho!

Ah, mamãe... faz de conta que eu já fui...

Cris Cesar

“Mariazinha (explicou o poeta Cris Cesar) é a vizinha da minha imaginação”.

Neste capítulo, analisamos as produções orais e as narrativas das crianças com

seus interlocutores em situações de conto e reconto de histórias, de modo a analisar

não só o produto - resultado final dessas interações - mas o próprio processo

interativo. Retomando nossos objetivos, tomaremos como foco a narrativa da

criança em situações de conto e reconto de histórias analisando as ações, as

experiências interativas e interlocuções que atravessam as narrativas, as quais são

perpassadas pela fantasia, criatividade e imaginação.

No processo de análise dos dados, foram se destacando situações desde a fase de

observação até as produções narrativas das crianças, durante o projeto de histórias

desenvolvido junto com elas. Para a análise dessas situações, retomaremos

algumas idéias apresentadas anteriormente pelos estudos histórico-culturais trazidas

por PERRONI (1992), TAKEMOTO (2005), e outros, que muito contribuíram para a

elaboração desta pesquisa. Também recorreremos aos “grandes achados” que

foram surgindo no decorrer desse estudo que colaboraram de maneira expressiva

para este trabalho. Entre eles destacamos: DIATKINE (1993), HELD (1980),

OLIVEIRA e FRAGA (2003) e outros. Como eles, também consideramos a criança

sujeito ativo que se constitui na interação com os outros e que dialoga com a

realidade para construir sua linguagem narrativa.

109

De acordo com os estudos histórico-culturais, apresentados nesta pesquisa, junto ao

processo de aquisição da linguagem oral tem início também o percurso de

desenvolvimento da narrativa na criança. Essa atividade, fundamental para o

processo da constituição humana, inicia a partir das relações que as crianças

estabelecem com os outros e segue em direção ao individual (intrapsicológico). É

quando se encontra com a linguagem que o pensamento torna-se mais sofisticado,

permitindo ao sujeito libertar-se da realidade perceptual imediata para desenvolver a

capacidade de raciocínio abstrato e, por conseguinte, as demais funções

psicológicas superiores: entre elas, a imaginação.

Neste estudo, a imaginação é relevante, sobretudo por sua participação no

desenvolvimento da narrativa de ficção na criança pequena. Conforme visto, ainda

dentro da abordagem histórico-cultural e dos autores da literatura aqui revisada, tal

como ocorre com a linguagem e os demais processos psicológicos superiores, a

constituição da imaginação não é um processo exclusivamente maturacional; ela é

construída “conforme a criança se torna mais capaz de operar no campo de

significados” (LIUBLINSKAIA, apud ROCHA, 1997, p.71). Góes (2000), citando

Bontempo, chama a atenção para o campo do significado nesse processo,

afirmando que a capacidade de imaginar que a criança vai construindo envolve “uma

mistura de realidade e fantasia, em que o cotidiano toma outra aparência, adquirindo

um novo significado” (BONTEMPO, apud GÓES, 2000, p.3).

Dentro dessa perspectiva, além dos trabalhos de Vigotski que tratam das relações

entre o pensamento e a linguagem e, sobretudo o desenvolvimento da imaginação,

bem como os demais seguidores dessa linha de pensamento, foram, também,

extremamente relevantes para o entendimento de nossas análises, outros dois

teóricos que muito contribuíram para iniciar nossas análises: inicialmente Bakhtin

(1990, p.41), para quem “As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios

ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios”.

Bakhtin vê a palavra como “arena de luta”, na qual se entrecruzam diferentes

sentidos e concepções de mundo. Em nossas análises, procuramos olhar as

narrativas das crianças levando em conta esse caráter polissêmico das palavras e

seu papel no desenvolvimento da consciência.

Benjamin (1983) também traz a sua colaboração ao destacar a narrativa (cujo

110

primeiro modelo seria o conto de fadas) como expressão de um trabalho artesanal

(que deixa a marca do narrador na narrativa, assim como o oleiro deixa a marca de

suas mãos na tigela de barro) que se realiza sobre a matéria-prima da experiência.

“O narrador colhe o que narra na experiência, própria ou relatada. E transforma isso

outra vez em experiência dos que ouvem a sua história” (BENJAMIN, 1983, p.60).

Por outro lado, ao desenvolver seus estudos acerca da narrativa na criança, Perroni

(1992), observou que a sua capacidade de fantasiar tem origem aos dois anos

através do que ela denomina de protonarrativas. Segundo Perroni (apud FREITAS,

2001):

Um texto será classificado como narrativo se apresentar os seguintes critérios lingüísticos: existência de dependência temporal entre os eventos narrados; orações constituídas por verbos de ação, de modo a expressar a dependência temporal e uso de tempo perfeito (PERRONI, apud FREITAS, 2001, p.61).

No entanto, como Freitas (2001) assinala:

O tempo nos contos de fadas não é marcado cronologicamente, como no nosso cotidiano, existindo em função das ações realizadas pelos personagens, o que dificulta a apreensão do tempo por parte do leitor principiante. Nos contos de fadas, o tempo predominante é o do fluir contínuo das ações, que acarreta mudanças de ordem psicológica nos personagens. A marca determinante desse tempo é o uso do verbo no pretérito perfeito, que representa ação já executada (FREITAS, 2001, p.102).

Tendo em vista que as crianças com as quais trabalhamos não conseguem ainda

atingir esse nível de narrativa, compreendemos que os seus avanços, em termos de

estrutura do discurso narrativo, ocorrem à medida que ampliarem as palavras e

expressarem seus pensamentos articulando-os à seqüência de eventos narrados no

momento de reconto de histórias e produções orais. Prosseguindo com seus

estudos, Perroni encontra em Applebee a confirmação de que este processo “parte

de um contínuo que começa no mundo da experiência imediata, passa através de

terras distantes e reinos imaginários” (APPLEBEE, 1978, apud PERRONI 1992,

p.33).

Portanto, de acordo com esses estudos, até a idade dos cinco anos, tudo seria

aceito como real e cada passo da criança sofreria uma mudança gradual que iria

aumentando a complexidade de seu mundo “passando de mundos completamente

‘realistas’, no início, a intermediariamente distantes e finalmente à fantasia pura”

111

(APPLEBEE, 1978, apud PERRONI 1992, p.33). Através de Perroni vimos que o

autor explica o fato de a criança, nessa fase, conferir veracidade às narrativas de

ficção através do princípio daquilo que chamou de “imutabilidade das histórias” e

“rigidez dos enredos”. Desse modo, a criança interpreta uma história como algo que

realmente aconteceu no passado, não uma ficção. “Para que o conceito de estória

possa se tornar mais complexo, a criança tem que reconhecer que a ficção e não o

fato é uma das convenções do contar estórias” (APPLEBEE, 1978, apud PERRONI

1992, p.30).

Isso nos leva a crer que o que constitui o material da imaginação e, por conseguinte

da narrativa, origina-se das experiências vivenciadas na concretude do cotidiano e

também nos remete ao que Vigotski mencionou em seus estudos sobre o

desenvolvimento do pensamento e a internalização da linguagem: é por volta dos

2 anos que se pode perceber alterações significativas na relação entre pensamento

e linguagem, manifestando-se na criança a função simbólica. Nesse momento ela

começa a representar então, uma coisa (mesmo na sua ausência), por meio de

outra, dando origem, além da comunicação, a outra função básica da linguagem - a

generalização.

A linguagem é para Vigotski, o sistema simbólico básico entre os seres humanos

repleto de signos (símbolos: palavras, gestos, atos...) construídos socialmente e se

constitui no elemento mediador nas interações humanas. Neste caso, o significado é

que seria responsável pelo processo de comunicação e generalização, pois, de

acordo com esse autor, ele é quem define o modo de organização do real realizando

a mediação simbólica entre o indivíduo e o meio físico social. Ou seja: “o homem

realiza ações externas que são interpretadas de acordo com seu grupo sócio-

cultural. À sua ação é atribuído um significado que está no externo – no social – e

que, gradualmente, é internalizado, incorporado” (VIGOTSKI, apud MAC-KAY, 1999,

p. 32). Portanto, sem essa mediação semiótica os demais elementos da função da

linguagem perderiam seu sentido e sua coerência.

Takemoto (2005), tendo como ponto de partida os estudos de Perroni, percebeu, ao

acompanhar uma criança desde essa fase das protonarrativas até a idade de 5

anos, que na verdade essa definição de idades não é rígida; vai depender das

“variações das vozes, de lugares, discursos e conteúdos” (TAKEMOTO, 2005, p.48).

112

Nossas análises reafirmam os achados de Takemoto. Constatamos indícios de

atuação no plano imaginário ao nos determos nas narrativas de crianças de dois

anos. É nesse percurso da criança rumo à narrativa de ficção que nos deteremos,

nesse momento.

Os episódios selecionados para a análise giram em torno de quatro narrativas de

ficção: “A Festa no Céu”, “Os Três Porquinhos”, “Chapeuzinho Vermelho” e “De Fora

da Arca”, já descrito neste trabalho e das produções orais decorrentes dessas

narrativas. No decorrer desses episódios, chamamos a atenção para as mudanças

sutis que gradativamente ocorrem nas crianças, à medida que vão se

desenvolvendo, aprendendo e externalizando os significados e os sentidos daquilo

que ouvem, sentem, vêem e falam. Na descrição dos episódios, a professora será

referida como Profª., a pesquisadora como Pesq. e as crianças, por nomes fictícios,

a fim de manter a integridade dos sujeitos envolvidos.

Durante o processo de análise das situações que envolviam a narrativa de ficção

das crianças foi se evidenciando a configuração de conjuntos de produções orais

com características diferenciadas. Algumas dessas produções orais apontavam

pouquíssimos indícios de ação da imaginação; outras apresentavam uma oscilação

entre o imaginário e o real e algumas evidenciavam a imaginação em pleno

processo de desenvolvimento. Com base nessas constatações, as produções orais

foram analisadas procurando abordar o percurso da criança na construção da sua

própria narrativa, partindo das suas percepções imediatas (o aqui/agora), passando

para o período de transição e chegando à narrativa de ficção. Nesse percurso

procuramos nos deter nos desempenhos das crianças envolvidas nos diferentes

episódios, evidenciando as características de suas produções orais, os aspectos

relativos à estrutura narrativa, gestos, entonações... Destacaremos assim, a

trajetória da criança do real ao imaginário, organizados nos seguintes tópicos: a) a

narrativa e o predomínio do real; b) a narrativa e as oscilações entre o real e o

imaginário; c) a narrativa de ficção; d) a narrativa de ficção e a mediação.

113

4.1 A NARRATIVA DA CRIANÇA E O PREDOMÍNIO DO REAL

A realidade possui dois lados: o interno e o externo. Ambos estão no agora.

Muniz

O autor dessa citação afirma que se quisermos adentrar ao universo interior,

precisamos aprender a vivenciar o presente com profundidade cada vez maior. “O

presente fornece a porta de entrada em todos os reinos da consciência que está

além das nossas atividades cotidianas normais. Estar aqui exige uma fixação da

mente, uma concentração e uma atenção” (KORNFIELD, apud MUNIZ, 2006,

p.160).

Moyles (2002), em concordância com os pressupostos histórico-culturais, sugere

que passemos a observar as crianças em um contexto significativo, isto é, em

situações em que estão se comunicando (em casa, na escola, no parquinho, nas

brincadeiras...) para verificarmos os mais variados aspectos da interação lingüística

que ocorrem nesses momentos. Segundo essa autora:

As atuais teorias sobre o desenvolvimento da linguagem enfatizam claramente seus aspectos comunicativos: a linguagem não ocorre em um vácuo. Ela tem a ver com a reconstrução de significados e particularmente com a construção de significados compartilhados. Os aspectos comunicativos ocorrem em todas as situações da vida de uma criança pequena, e muito antes de entrar na creche ou na pré-escola a criança já está imersa em um sistema de linguagem em casa, construído com base na negociação de significados por meio de canais verbais, e não verbais desde o nascimento (MOYLES, 2002, p. 51).

Dando procedimento a essa idéia, Optz (1999) enfatiza as narrativas infantis

trazendo uma definição desse aspecto da linguagem na ótica de um outro autor que

afirma ser a narrativa “uma forma de representação de experiências passadas por

uma seqüência de frases ordenadas que apresentam seqüência temporal destes

eventos por aquela ordem” (LABOV & FANSHEL, apud OPTZ, 1999, p. 29).

Evidenciando essa fala, Optz destaca as narrativas infantis do sujeito-criança na

posição de sujeito-autor afirmando que tais narrativas:

Baseiam-se em fatos do seu cotidiano, na sua seqüência temporal, para contar uma história..., sendo inevitável a interferência da exterioridade... Portanto, é preciso reconhecer a necessidade de considerar a situação de interlocução... e o papel de textos modelos (presentes no interdiscurso e no

114

imaginário do próprio sujeito-leitor-autor), na produção de narrativas (OPTZ, 1999, p.29).

Para Perroni (1992), aos 2 anos de idade - fase das protonarrativas – as primeiras

tentativas da criança narrar, quer experiências pessoais, quer contos de fadas, não

são consideradas narrativas propriamente ditas. Para essa autora o tipo de discurso

que a criança dispõe nesse momento, constitui-se do aqui/agora: ou se trata de um

comentário do que está ocorrendo no momento da interação ou da programação

daquelas ações que a criança pretende realizar em seguida.

O sistema de expressões de relações temporais no léxico da criança é caracterizado nessa fase pela presença exclusivamente de agora, ao lado das expressões aspectuais: já, pronto, outra vez e ainda. Esta é a fase em que a expressão agora é predominantemente empregada pelas crianças como índice de atualidade, em relação ao momento da interação, dos eventos/ações objeto de comentário (PERRONI, 1992, p.40).

Baseando-nos nas orientações desses autores, analisaremos, nesse momento, a

produção oral de algumas crianças do berçário em cinco episódios envolvendo as

histórias: “Os Três Porquinhos” e “A Festa no Céu”; as ações das crianças em

atividades que foram previamente planejadas (utilizando materiais diversificados:

desenhos, pinturas, manipulação fé fantoches...) e as ações espontâneas das

crianças em contato com livros de história de ficção. Esses episódios são bastante

instigantes, pelo menos para nós adultos, pois nos levam a olhá-los do ponto de

vista das crianças, tal como Held (1980) nos ensinou. Ou seja, olhar através da

“perspectiva em que o cotidiano toma outra aparência, em que vemos todas as

coisas de maneira diferente” (HELD, 1980, p. 39). Na tentativa de nos inserirmos na

lógica da criança em relação aos seres e às coisas que habitam as narrativas de

ficção, levantamos, nesse primeiro momento, os seguintes questionamentos: Como

compreender as reações, expressões e dizeres dessas crianças diante das histórias

de ficção? Para elas, onde começa o real? Onde termina? Quais as características

de sua narrativa?

Para auxiliar na abordagem dessas questões, destacaremos um episódio ocorrido

no dia 19/09/2005. Neste dia, planejamos realizar atividades com materiais

diversificados (papéis, giz colorido, canetinha...) para pequenos grupos (cinco

crianças de cada vez). Davi (2 anos), que já havia participado do primeiro grupo,

chega do parquinho correndo e entra pela sala, dando gargalhadas, abrindo os

115

braços e anunciando bem alto que havia chegado. Em seguida chega a ASG,

explicando que ele inventou que queria beber água só para ficar na sala. Davi

acabou ficando na sala. Naquele momento, estávamos utilizando fantoches. Davi

aponta para um deles e fala com a voz bem grossa:

Davi: Lobo mau, mau, mau. (sai correndo e gritando pela sala) olha o lobo mauuuu!

(as crianças se agitam).

Pesq: Você tem medo, Davi? Do lobo mau?

Davi: não.

Pesq: Então, segura ele.

Davi: Não.

Pesq: Conta a história dele, Eu sou o lobo mau... (Davi corre). Volta aqui, Davi!!!

(No momento seguinte a pesquisadora consegue fazer com que Davi sente e

desenhe.)

Pesq: O que você desenhou aí?

Davi: É o bicho papão. Oh! O bicho papão aqui (se afasta) aí, aí, aí...

Pesq: Você tá com medo do bicho papão que você tá fazendo?

Davi: Tem medo.

Nesse episódio, indagamo-nos sobre como compreender a fala de Davi, pois, suas

poucas palavras e reações parecem indicar que em sua narrativa há o predomínio

do real, do “aqui/agora”, conforme aponta Perroni (1992). Sua produção oral é

marcada por poucas palavras, sendo estas, em sua maioria, respostas a perguntas

feitas por um adulto. Assim, como compreender seus enunciados ou ações que

aparecem justapostos nesse evento? Perroni (1992) e Freitas (2001) contribuem

para nossa análise ao apontarem a dinâmica pergunta-resposta como estratégia

significativa para o desenvolvimento do discurso narrativo.

Perroni (1992) esclarece que a atuação ativa do adulto, principalmente ao dirigir

perguntas à criança, é fundamental para favorecer o surgimento desse discurso. A

fala da criança apóia-se na fala do adulto. “A função das perguntas é, dessa forma,

antes de obter um relato informativo, levar a criança a organizar lembranças sob

forma de discurso narrativo, isto é, aprender a contar” (PERRONI, 1992, p.55).

Freitas (2001) também assinala a relevância de se recorrer a essa estratégia como

elemento estruturante e provocador da construção e reconstrução de sentidos sobre

116

o narrado. Estruturante pelo fato do questionamento possibilitar aos sujeitos

indagados, a ordenação de suas idéias e de se “tecer as sentenças que configuram

a produção final do reconto”; provocador por ser a pergunta um “incentivo ao

desenvolvimento das habilidades de ouvir, pensar e dizer” (FREITAS, 2001, p.85-

86).

Por outro lado, se a produção oral de Davi caracteriza-se por um número reduzido

de palavras, o desenho se constitui em outro elemento que contribui para essa

produção oral. Através do seu desenho foi possível constatar que Davi amplia sua

comunicação com o adulto, elaborando e expressando suas idéias e emoções,

principalmente o medo do lobo mau.

Mèredieu (1974) e Freitas (2001) apontam o desenho como referência importante

nas primeiras produções de histórias das crianças. O primeiro autor nos alerta para

os equívocos que podemos cometer ao interpretarmos o desenho da criança.

Segundo Mèredieu, “A interpretação de um desenho – isolado do contexto em que

foi elaborado e da série dos outros desenhos entre os quais se inscreve – é portanto

nula” (MEREDIEU, 1974, p.18). Para esse autor, por volta dos dois anos a criança

põe fim ao rabisco e passa a “traçar signos sem desejo de representação, descobre

por acaso uma analogia formal entre um objeto e seu traçado. Então,

retrospectivamente, ela dá um nome ao seu desenho”( MEREDIEU, 1974, p.20).

Isso se confirmou quando se pergunta a Davi sobre seu desenho e ele responde: “É

o bicho papão. Oh! O bicho papão aqui”. Entendemos que, nesse momento, ele

poderia estar fazendo uma analogia entre o seu traçado e o momento anteriormente

vivenciado – correr pela sala toda ao se deparar com o fantoche em cima da mesa.

Freitas (2001), ao discorrer sobre o desenho, apresenta-o articulado ao pensamento,

afirmando que as primeiras produções de histórias das crianças têm o desenho

como referente: “[...] por meio do desenho a criança representa personagens,

cenários e ações narrativas” (FREITAS, 2001, p. 55). De fato, isso se verificou em

outros momentos em que o desenho se articulou à fala da criança. Fora do contexto,

os desenhos não produzem muito sentido; mas quando falam dele, as crianças

expressam cenas narrativas, ou seja, enquanto desenham descrevem a ação. Esse

fato se repetiu em outros episódios de forma significativa que nos levou a

redirecionar nosso olhar sobre o desenho com mais cuidado em nossas análises, de

117

modo que retomaremos esse aspecto da linguagem gráfica no último item deste

capítulo.

A enunciação, produzida na interação verbal, constitui, para Bakhtin (1997), a

realidade fundamental da língua. Perroni (1992) reafirma tais palavras alertando-nos

para o fato de ser necessário, também, considerar todo “o contexto de interação”.

Procuramos então, à luz dessas premissas, verificar as mediações ocorridas no

cotidiano infantil que afetam o percurso que segue a narrativa dessa criança.

Encontramos um outro episódio envolvendo Davi que traz pistas para aprofundar

essa discussão.

Esse episódio ocorreu no dia 10/06/05 e teve como foco o vídeo “Os três

Porquinhos”. O dia do vídeo era uma atividade bastante esperada pelas crianças

que, por sinal, queriam ver sempre a mesma história: “Os três Porquinhos” - uma

reprodução da Walt Disney. Foi muito interessante e divertido observar as diversas

reações das crianças diante da trama que ia se desenrolando perante a tela da

televisão, quando o lobo tentava devorar cada um dos porquinhos, derrubando suas

casas. A última feita de material mais resistente, ele não conseguiu derrubar e

passou a desenvolver outras estratégias para conseguir entrar na casa, porém,

todas as tentativas foram fracassadas.

Na primeira vez em que o lobo apareceu anunciando que iria derrubar uma das casas com seu sopro, a sala de aula ficou silenciosa; duas crianças correram para o colo de um adulto mais próximo, a maioria permaneceu imóvel, com o olhar fixo na tela, como se estivesse hipnotizada. Das outras duas vezes em que essa cena se repetiu, as crianças reagiram com gritos e correria, colocando-se no lugar dos porquinhos. Airton (3 anos), de pé o tempo todo e bem próximo à tela, chamava os coleguinhas para ver mais de perto a cena em que o Lobo sobe na chaminé (essa parte representa o momento de maior tensão. Nem se ouve as crianças respirarem. Algumas se abraçam). Airton, já sabendo o que irá acontecer, antecipava a cena narrando-a baixinho para si próprio e para o colega mais próximo. Quando o Lobo cai na lareira, as crianças cantam em côro: “Bem feito, bem feito...”, e na parte em que os porquinhos cantam: “Quem tem medo do Lobo Mau, Lobo Mau...”, algumas fazem rodinha e acompanham a música. Davi (2 anos) e Tânia (2 anos e 10 meses) nos chamam a atenção, pelo fato de suas reações diferenciarem-se das demais crianças, diante desse personagem fictício - o lobo. Enquanto a maioria diverte-se com a história (rindo, brincando, aproximando-se e até mesmo tocando a tela da televisão), Davi e Tânia permanecem afastados durante todo o tempo do filme, procurando estar sempre perto de um adulto. Durante a apresentação do filme, essas duas crianças, ora tapam os olhos, ora viram o rosto, os membros do corpo se contraem.

118

O conjunto de indícios gestuais (tapar os olhos, virar o rosto, contrair os músculos...)

apresentados por essas duas crianças, permite-nos inferir uma reação de medo em

suas expressões. As referidas crianças aparentemente não conseguem entender

que aquelas cenas são fictícias, que não correspondem à realidade, mesmo com a

intervenção de uma das professoras incentivando-as a olharem para a televisão

porque “o lobo não iria conseguir sair da tela para pegá-las”. Diante disso,

indagamos se essas duas crianças apresentam uma produção oral que poderia ser

considerada como narrativa de ficção. É importante trazer informações sobre Davi

para entendermos seu comportamento diante das histórias que evocam o medo.

A presença de Davi (2 anos) no CMEI destacou-se, inicialmente, pelo movimento

marcante (GALVÃO, 1998). Do momento que chegava até a saída, era constante

encontrá-lo em plena atividade motora. Sua principal dificuldade era sentar para

ouvir e utilizar a linguagem oral para se comunicar com as pessoas. Nesse primeiro

momento, sua linguagem era bastante personalizada ou infantilizada (aca=água,

pepeta= chupeta, lubu=urubu, aiaia=arara...), reduzindo-se à emissão de palavras

soltas e pouco compreensíveis pelas professoras, com exceção de sua tia (irmã da

mãe de Davi) que também era a professora dessa turma do BERÇÁRIO II. Por conta

disso, sua forma de se comunicar geralmente se fazia quase sempre através de uma

ação física: bater, empurrar, apontar e subir em cima de móveis, quando queria algo

que lhe fosse muito interessante. Os comentários dessa tia/professora sobre o modo

de se comportar de Davi foram se tornando positivos no decorrer das ações

sistemáticas dirigidas a essa criança nas atividades de contação de histórias. Em um

desses relatos, a tia comentou que, no início, Davi assistia muitos filmes infantis com

muita ação em casa e só após iniciar o projeto de contação de histórias na sala de

aula que ela percebeu a importância de um adulto conduzir esse processo, contando

e selecionando histórias educativas. A partir daí, passou a recomendar aos pais que

mudassem de atitude, chegando a “proibi-los” de deixar que o filho assistisse a tais

filmes.

Cercado de certos “cuidados” familiares, Davi trazia a marca da autoconfiança e

auto-estima, mostrando-se autônomo e valente para determinadas situações, mas

119

quando em contato com narrativas de ficção que envolve personagens que

provocam medo (bruxa, monstro, lobo...), torna-se amedrontado, buscando inclusive

a presença de um adulto mais próximo. Ou seja, de acordo com sua expressão

facial, aparentando medo, e as suas reações como o afastamento e o choro, Davi

parece apresentar indícios que nos fazem pensar que ele ainda não faz distinção do

que é real e do que é fictício, pelo menos em determinadas situações. Embora

acostumado a assistir filmes infantis que envolvam outros personagens, inclusive tão

ou mais horripilantes que a figura do lobo, Davi apresenta dificuldades em ouvir

particularmente as histórias envolvendo os “três porquinhos” e o “lobo mau”.

Para tentar explicar essa complexa situação na qual volta e meia nos deparamos,

trouxemos parte de uma entrevista de um psicanalista francês - René Diatkine -

concedida à revista Veja e publicada em 17 de março de 1993. Nessa entrevista,

Diatkine discorre sobre o personagem “Lobo Mau”7 e os novos personagens

japoneses e americanos que invadem os programas de televisão.

Há séculos já não existem lobos nas ruas de Paris e, no entanto, ele é um animal familiar à criançada. O lobo mau e personagens similares permaneceram no imaginário infantil, por décadas, transmitidos pelos contos de Charles Perrault e dos Irmãos Grimm e amplificados por Walt Disney... Nunca ouvi uma criança dizer que sonhara com o super-homem da TV ou com seus inimigos. Esses desenhos modernos têm um grave problema: seus personagens são simplistas demais, sem personalidade. Além disso, são personagens mutantes, que se transformam a toda hora. As crianças não conseguem conservá-los na memória por muito tempo. Nos contos clássicos, os personagens são menos volúveis, as narrativas mais ricas. As crianças são obrigadas a pensar e gostam de fazê-lo.

Nesse fragmento, o autor sintetiza a importância de se contar esse tipo de narrativa

para que a criança consiga lidar com seus sentimentos e desenvolver sua narrativa.

Acreditamos que, conforme Sunderland (2005), os sentimentos precisam ser

digeridos, metaforicamente como os alimentos, senão poderão passar a nos

assombrar e a interferir em nossas ações, modos de pensar, prejudicando, desse

modo, nossos relacionamentos.8

7 Convém ressaltar que, dada essa importância do papel que as narrativas de ficção desempenham no desenvolvimento infantil, muitos autores (JESUALDO, 1993; COELHO, 1991; YUNES e PONDÉ, 1989) têm discorrido sobre esse assunto, mostrando-se favoráveis a introdução dessas narrativas para as crianças desde a mais tenra idade.

120

Para Held (1980, p.50), “a ficção se revela como fonte de reflexão sobre o

imaginário, sobre o real, sobre o possível”. Segundo a autora, o perigo maior que

tais narrativas oferecem reside nos pólos extremos em relação à família: ou sua total

ausência ou sua presença abstrata.

Os pais, na vida real, são mais ou menos “positivos”: têm suas qualidades, seus defeitos, suas pequenas falhas e suas fraquezas, tudo isso em dosagens muito diversas. E por que a criança não deveria encontrar nos livros essa diversidade que pode, ao contrário, em muitos casos, auxiliá-la a viver e a superar suas próprias dificuldades (HELD, 1980, p.35) ?

A terapeuta Sunderland (2005, p.16), afirma que “para as crianças, a linguagem

cotidiana não é a linguagem natural do sentimento. Para elas, a linguagem natural

do sentimento é a da imagem e da metáfora, como em histórias e sonhos”. Isto

porque, segundo essa autora, a linguagem do cotidiano é a linguagem do

pensamento e muitas dessas palavras se apresentam às crianças de maneira

confusa, vazia, demasiadamente generalizada, complexa e acabam se constituindo

em “um terrível empobrecimento da experiência real” (HILLMAN, apud

SUNDERLAND, 2005, p.20); enquanto que a linguagem das histórias, e tudo o que

elas propiciam (o pintar, o desenhar, o encenar...), é a linguagem da imaginação. E

é exatamente essa linguagem, pela sua surpreendente riqueza, que consegue

atingir a criança, prendendo sua atenção, pois, “A história fala às crianças num nível

muito mais profundo e imediato do que a linguagem literal cotidiana”

(SUNDERLAND, 2005, p.18).

Tanto Diatkine como os demais autores acima, apontam a presença de um elemento

mediador para ajudar a criança a transitar entre o real e o imaginário, que acabam

gerando conflitos. De fato é conflitante para a criança lidar com determinadas

situações (perda, abandono, indiferença...) que perpassam o mundo real sem a

ajuda das narrativas de ficção e de alguém que conduza essa narrativa de forma

afetiva.

Ainda que Davi se fizesse sujeito ativo através de suas ações, constatamos a falta

de elementos que lhe permitissem ampliar sua linguagem verbal para se fazer

entender e superar conflitos oriundos de um predomínio do campo perceptual

imediato. Sua narrativa apresentava, até aquele momento, poucas palavras. Desse

modo, Davi fazia uso de elementos visuais (traço e cor) expressos pelo desenho

121

para representar a figura do personagem que provocava medo; e de ações

expressas por movimentos e gestos (apontar, correr, bater...) para mostrar suas

necessidades, desejos e emoções. No entanto, é perfeitamente compreensível a

presença desses elementos na produção oral de Davi para comunicar e externalizar

seus sentimentos, já que possuía poucos recursos para expressar-se verbalmente.

Encontramos na narrativa de Tânia (2 anos e 10 meses) alguns aspectos que se

assemelham à narrativa de Davi. Esse fato pode ser constatado através do episódio

descrito a seguir.

No dia em que o episódio ocorreu (19/09/05), as crianças estavam tendo contato

com atividades e materiais diversificados (livros, fantoches, papéis, giz de cera,

canetinhas, lápis de cores...). Enquanto a maioria das crianças permanecia no pátio

com as duas professoras, a pesquisadora ia levando, com a ajuda da ASG, um

grupo de cinco crianças de cada vez para a sala, a fim de dar continuidade à

atividade que havia planejado. À medida que as crianças manipulavam livremente os

diversos materiais, a pesquisadora ia retirando das mochilas, com o consentimento

das professoras, as pastas do “baú de histórias” que as crianças levavam para casa

às sextas-feiras, conforme combinado previamente em reunião com os pais, para

atender o projeto institucional do CMEI. Os pais deveriam ler junto com a criança a

história e depois incentivá-la a falar e registrar (se possível) esse momento através

de desenhos para, na segunda-feira, conversarmos com elas a respeito dessa

atividade.

Pesq: O que você desenhou?

Tânia: desenhei um escrevido (mostra o desenho para a pesquisadora).

Pesq: Você sabe escrever seu nome?

Tânia: ao mesmo tempo balança a cabeça e responde verbalmente - “sabe”.

A pesquisadora retira de sua pasta o livro “O jabuti e a Lebre” e pergunta quem lhe

contou aquela história, ela responde dizendo que tinha sido o pai. Ao pedirmos para

Tânia recontar a história, ela o faz contando trechos da história “Festa no Céu”.

Nesse momento Airton (3 anos e 3 meses) interrompe-a, mostrando-lhe a capa do

livro em que aparece o Lobo e os Três Porquinhos e Tânia reage dando um tapa no

livro, jogando-o longe.

Airton: tia, ela tá com medo!!!

Pesq: Você tá com medo do Lobo Mau?

122

Mostrando-se irritada, Tânia responde em alto e bom tom: Eu não to.

Um aspecto que consideramos importante na produção oral de Tânia é a linguagem

pela qual ela se expressa: “desenhei um escrevido”, que, tal como aponta Moyles

(2002) parece ser uma tentativa de experimentar e produzir novas palavras. Através

de estudos que relacionam essa inventividade da criança com a capacidade que ela

tem de brincar, Moyles aponta ser de vital importância para o desenvolvimento

lingüístico da criança, motivar a “inventividade no discurso infantil”, através do uso

de “suas próprias formas de vocabulário” (ROSEN e ROSEN, apud MOYLES, 2002,

p.61).

Portanto, o que poderia ser visto por alguns como um “erro ou desvio” de linguagem,

na verdade representa “um sintoma de que a criança já começa a se descentralizar

do aspecto da linguagem comunicativa da língua em direção a uma tomada de

consciência do objeto lingüístico” (LEMOS, apud PERRONI, 1992, p.16). Além de

constatar, na produção oral de Tânia, iniciativas no sentido de produzir palavras

novas, percebemos também o predomínio de uma fala em grande parte incentivada

por perguntas do adulto e as tentativas de produzir palavras.

O relato descrito a seguir, ocorreu na biblioteca do CMEI no dia 02/06/05 e nos traz

novas pistas para compreendermos a possibilidade de Tânia estar se apropriando

da narrativa de ficção.

Por ser um espaço físico pequeno, optamos por levar as crianças à biblioteca em

grupo de cinco. Enquanto orientávamos as crianças sobre os cuidados com os

livros, com o espaço físico, e as convidávamos a se sentarem no tapete para

ouvirem algumas das histórias previamente selecionadas, Tânia, (2 anos e 10

meses), já estava com um livro na mão acompanhando com o dedinho, a leitura que

fazia em voz alta:

“Quando o Lobo Mau chegou... (daí por diante não dá para ouvir sua voz, pois as crianças começam a falar mais alto). Ao ver que me aproximava dela, finaliza: “... foi embora. Agora acabou” (fecha o livro).

Pesq: Conta!!!

Tânia: Eu já acabei.

Pesq: Então conta de novo, eu não ouvi.

123

Atendendo ao pedido ela recomeça com uma voz bem baixa:

Tânia: Uma vez, o Lobo Mau foi por aqui (aponta para a janela, como se o Lobo

estivesse saltando do livro para a janela da biblioteca). Aí a mãe chamou e fez

assim (sinal de chamado com a mão)... o papai foi matar ele.

Pesq: E aí?

Tânia olha para a figura do cavalo no livro e diz: Pegou o cavalo e foi por aqui

(novamente aponta para a janela).

Pesq: Fugiu?

Tânia: Fugiu.

Pesq: E aí?

Tânia vira a página e fala parecendo estar irritada: e aí o boi, aí, ó.(mostra outra

figura).

Pesq: To vendo... E o que é isso?

Tânia: Tubarão. (fecha o livro, vai em direção à estante de livros e pega outros

livros).

O livro que ela estava “lendo”, era sobre animais, porém não havia figura de lobo.

Provavelmente ela estava olhando a figura do cão e esta lhe lembrou do lobo.

No episódio descrito constatamos que em relação à situação de interação discursiva

entre Tânia e a pesquisadora predominou a dinâmica pergunta-resposta, de forma

semelhante a que envolveu Davi. O papel do adulto é importante para manter a

produção oral de Tânia. Porém, no início da pesquisa de campo, já havíamos

percebido que Tânia possuía uma linguagem mais elaborada, marcada por um

vocabulário mais amplo e sentenças mais extensas.

Um outro aspecto a ser destacado na produção oral de Tânia é a presença de

gestos, sinais e imagens para explicar o que lhe é perguntado: “Uma vez o Lobo

Mau foi por aqui” (aponta para a janela); “Aí a mãe chamou e fez assim” (sinal de

chamado com a mão); “Pegou o cavalo e foi por aqui” (novamente aponta para a

janela); “e aí o boi, aí, ó” (mostra outra figura).

Não é apenas através da fala que a criança pode construir narrativas. Para Benjamin

(1983) o gesto assume dimensão significativa na própria construção da narrativa. O

autor afirma que:

No autêntico ato de narrar intervém a atividade da mão que, com os gestos aprendidos no trabalho, apóia de cem maneiras diferentes aquilo que se

124

pronuncia. Aquela velha coordenação de alma, olho e mão, que aparece nas palavras de Valéry, é a coordenação artesanal que encontramos no habitat da arte de narrar (BENJAMIN, 1983, p.74).

Percebemos que essa tendência ao uso de gestos acompanhando a fala também é

comum em outras crianças. Assim como o desenho, os gestos acompanham e

completam a fala da criança, dando sentido a essa fala. Bruner (1997) também

ressalta que não é apenas através da fala que a criança pode construir narrativas. A

função comunicativa já está estabelecida na criança mesmo antes do domínio formal

e de sua expressão lingüística: “Uma apreensão protolingüística da psicologia

popular já está presente como uma característica da práxis, antes mesmo que a

criança seja capaz de expressar ou compreender as mesmas questões através da

linguagem” (BRUNER, 1997, p.70).

Discorrendo sobre o papel dos gestos no pensamento do homem, Wallon (1989)

aponta como possibilidade a participação dos gestos no processo de constituição de

alguns símbolos. Estes símbolos derivariam “em parte, dos atos através dos quais

se operava a passagem concreta da coisa à imagem. O gesto, após ter sido

complementar da coisa a ser modificada, tornou-se complementar da coisa a ser

expressa” (WALLON, 1989, p.217).

Como ele mesmo afirmou, aspectos dessa evolução podem ser observados no

desenvolvimento da linguagem da criança pequena: muitas vezes os gestos

acompanham sua produção verbal, possibilitando compreendê-la.

Ainda sobre a produção oral de Tânia, é possível verificar as marcas da realidade

impressa no discurso do cotidiano no qual ela convive. Desse modo ela traz

elementos que se confundem e se misturam simultaneamente à realidade e à

imaginação: a presença do lobo mau, da violência (... foi matar ele), do pai, da mãe,

dos objetos da biblioteca, da imagem do livro... Para compreender os sentidos que

atravessam sua produção oral, consideramos relevante apresentar algumas

informações sobre essa criança:

Tânia foi avaliada pelas professoras como uma criança de personalidade marcante e

temperamento difícil em certas situações. Segundo o relato de uma das professoras

da turma, “Tânia é uma criança que não aceita ser chamada à atenção, não aceita

que os colegas riam dela e não aceita perder. Em qualquer uma dessas situações,

125

ela parte para o ‘abraço’: começa a bater, gritar e jogar nos outros o que encontra

pela frente. No entanto, torna-se tímida quando um adulto procura conversar com

ela”.

Assim como Davi, Tânia tinha pai e mãe, mas, era a presença constante de outros

entes familiares que se destacavam no cotidiano do CMEI. No seu caso, era a avó

que a conduzia para o CMEI e era também a mesma que a buscava e participava

dos eventos (reuniões de pais, festas...), de modo que para Tânia, era a avó a

referência mais presente em sua vida. Em conversas informais, a avó se dizia

responsável pela educação da neta enquanto os pais trabalhavam. Ela nos contou

ainda, sobre sua dificuldade em desempenhar essa tarefa, pela sua idade avançada,

uma vez que a neta tinha muita energia e um gênio muito forte. Mas, segundo a avó,

sempre que possível contava histórias para a neta “do seu jeito”. Interessamo-nos

em saber qual seria esse “seu jeito” de contar histórias para a neta e descobrimos

que eram os “causos”89que essa avó lembrava que se contavam no interior onde ela

morava misturados aos que ela hoje inventava para a neta se comportar.

Perguntamos se a neta não sentia medo dessas histórias e a avó respondeu: ”Nada,

minha filha, ela até pede pra contar mais... só assim é que ela fica mais quieta e me

deixa fazer o serviço”.

Entretanto, nossos dados levam a questionar a afirmação da avó de Tânia. As

reações e comentários de Tânia, em diferentes situações evidenciam que alguns

personagens de histórias de ficção a afetam. Em alguns momentos ela sente medo.

Diante disso, o que daria sustentação à manifestação e reação de Tânia, descrita

acima, em relação às histórias que evocam o medo? Em nossos registros,

descobrimos alguns elementos que possivelmente contribuíram para esse processo

de internalização do “medo” no contexto real e imaginário. Tânia apreciava

manusear livros de histórias e ouvir alguém narrando-as, desde que o narrador não

estivesse manuseando fantoches ou caracterizado por algum personagem

assustador (lobo, saci, cuca, mula-sem-cabeça...). Era comum flagrarmos Tânia, em

algum cantinho, “lendo”, atendo-se em uma única página por muito tempo,

compenetrada na figura de algum personagem que lhe causasse medo (bruxa,

8 Os causos que essa avó se refere são as narrativas inventadas que habitam o imaginário popular: homem do saco, mula-sem-cabeça...

126

monstro, lobo...).

No que se refere ao episódio transcrito, Tânia parece encontrar no próprio diálogo

que estabelece com os personagens contidos no livro, e que tanto a atemoriza, uma

forma de se relacionar com o medo, enfrentando-o, criando outra situação, outro

significado. Ao recontar, ela se torna a dona da história, ela tem o comando e o

poder de mandar embora esses personagens ou dar fim à história a hora que ela

quiser. Assim, no plano imaginário Tânia vai “ensaiando” o desempenho que lhe

permite o enfrentamento, o confronto com essas situações que no plano real lhe

trazem certos constrangimentos. Ou seja, ela vai construindo uma forma de lidar e

controlar as suas emoções.

De acordo com Perroni (1992, p.39), a criança envolvida nesse episódio, estaria em

plena fase das protonarrativas - o discurso do aqui/agora. Ou seja, ela ainda não

teria a capacidade de sozinha construir e externalizar verbalmente os seus

pensamentos e sentimentos, por não ter o domínio da narrativa. Como já foi

discutido por essa autora, o discurso da criança encontra-se preso à sua realidade

imediata, ao momento presente, ao aqui-agora: “Na verdade, agora é a única

resposta dada pela criança a qualquer pergunta do adulto que exija conhecimento,

ainda que incipiente, de relações temporais entre eventos” (p.41). Isso pode se

comprovar pelas quantidades de expressões de relações temporais que Tânia utiliza

em sua linguagem cotidiana e na linguagem literária (de ficção) que trouxemos

acima: “agora acabou”, “foi por aqui”.

Ao desenvolver essa idéia Takemoto (2005, p.69) conclui que, “As protonarrativas

seriam, então, fragmentos de enunciados relacionados a uma experiência prévia da

criança e concretizadas por estruturas embrionárias que, em pouco tempo, darão

origem ao discurso narrativo”. Isso se tornou evidente no decorrer da nossa

pesquisa de campo em que acompanhamos a evolução desse processo nas

crianças, sobretudo em Davi e Tânia.

O episódio a seguir, ocorrido em 18/08/05, continua destacando narrativas com

predomínio do campo perceptual imediato. Da mesma forma que nas outras

crianças, a manifestação do medo em Tiago diante dessas narrativas de ficção, são

para nossas análises, indícios desse predomínio.

127

Uma das professoras recontava a história da “Festa no Céu”, quando de repente

Tiago (2 anos e 9 meses) repete insistentemente, quase sussurrando: “tem jacaré

na minha casa, tem jacaré na minha casa !!!

Profª.: (interrompe a história e começa a dialogar com o aluno) - É mesmo?

Tiago: É.

Profª.: Nós vamos lá na sua casa ver esse jacaré.

Tânia (3 anos) e Kátia (2 anos e 8 meses) falam juntas : Eu também!

Profª.: Você não tem medo desse jacaré não?

Tiago balança a cabeça afirmativamente, com olhar sério.

Profª.: E o jacaré fica aonde?

Tiago: embaixo da minha cama... Outro dia ele foi me mordê.

Profª.: Você vai levar o jacaré para a festa no céu?

Tiago: NÃO.

Profª.: ah! Convida ele, lá tem tanta coisa para ele comer...

O aluno fica olhando bem sério por alguns instantes para a professora e depois

responde dando bastante ênfase à frase: “ele vai comer você”.

Profª: (fingindo estar assustada): Me comer? Ai, ai, ai (sai correndo pela sala. As

crianças riem, mas Tiago continua sério).

Profª: volta e pergunta: “E aí Jonas, na sua casa também tem jacaré? O Tiago

falou que na casa dele tem”.

Jonas (3 anos e 1 mês), franze a testa e balança a cabeça dizendo que não.

Professora: O quêêê? Na sua casa tem o quê, Vânia?

Vânia (2 anos e 5 meses): Bicho-Papão!!!

Tânia fala bem alto: Tem nããão!!!

Vânia (fala mais alto ainda): Tem simmm!!!

E a confusão começa envolvendo outras crianças. Quando a professora consegue

contornar a situação, Tânia entrega-lhe o livro de histórias e pede para ela contar

de novo. A professora recomeça de onde parou.

As palavras de Tiago a respeito do jacaré nos fizeram pensar em que plano

representacional ele teria se baseado para trazer esse personagem no momento da

contação de história, já que segundo os pressupostos teóricos aqui apresentados,

ninguém cria algo do nada e esse personagem inusitado - o jacaré - não havia sido

citado em nenhum momento na narrativa “A Festa no Céu”. Teria sido de algum

filme ou alguma outra história narrada pela mãe ou irmão?

128

Tiago era uma criança muito faltosa porque a mãe não tinha com quem deixá-lo, e

também pelo fato dele adoecer constantemente. De acordo com as conversas

informais que tivemos com a mãe, ela nos relatou que não tinha muito tempo para

dar a devida atenção aos filhos, por ter que “se virar sozinha” para cuidar de tudo,

mas, fazia questão de educá-los de forma “rígida”, sem dispensar o “carinho”. De

fato, sempre que a mãe nos entregava Tiago, ele estava bem agasalhado,

perfumado e a mãe ficava um bom tempo passando-lhe as recomendações para se

“comportar com as tias e com os coleguinhas”. Na despedida, ela o cobria de beijos

e abraços. Quando vinha buscá-lo, quase sempre lhe entregava algo para degustar:

uma bala, um pirulito, um pacote de biscoito, chips ou pipoca... Antes, porém,

procurava saber como o filho havia se comportado: o que fez, o que deixou de fazer,

se almoçou...

Não nos foi possível obter maiores informações sobre a origem da preocupação ou

do interesse de Tiago pelo “jacaré”. Entretanto, Held (1980, p.72) afirma que, a

presença de elementos extraordinários no universo da criança, é algo muito comum.

“Qualquer história, para ser ‘compreensível’, comunicável, supõe um mínimo de

referências à experiência comum do escritor e do leitor...”. Também para Perroni,

devemos considerar válido para as análises do discurso narrativo da criança, o

universo sociocultural em que a criança é imersa.

O segundo ponto que nos chamou a atenção, e que desenvolveremos melhor

quando formos tratar da narrativa de ficção e a mediação, foi a forma como a

professora conduziu a situação: ao entrar no jogo imaginário, a professora provocou

o riso através de uma situação engraçada e permitiu à criança a possibilidade de

romper com o medo real contribuindo para o desenvolvimento da imaginação e da

narrativa de ficção. Por hora, basta-nos compreender que a introdução de um

personagem improvável num contexto real, não pode ser ignorada pelos adultos,

muito menos ser visto como uma “mentira” como bem afirmou Held (1980, p.43): “É

preciso tomar cuidado para não confundir mentira com representação imaginária”.

Quando Tiago afirmou, com tanta convicção, que tinha um jacaré embaixo de sua

cama é porque acreditava nisso. A recomendação que Held nos deixa, é que não

nos assustemos ou fiquemos desconfiados, inquietos e na defensiva, pois, a criança

estaria realizando um exercício de imaginação. “Por que se assustar quando a

129

criança sonha e brinca? Ela experimenta suas forças novas. Exercita sua

imaginação, assim como exercita seus músculos, ou descobre e constrói, pouco a

pouco, os mecanismos lógicos (HELD, 1980, p.45)”.

Esse episódio contribui sobremaneira para discutir as protonarrativas, uma vez que,

como Perroni (1992, p.16) apontou, nessas “primeiras fases, o que a criança

exercita em sua atividade lingüística dialógica são procedimentos comunicativos e

cognitivos ainda não analisados, só justapostos, não coordenados entre si”.

Entende-se que, as primeiras narrativas de Tiago neste episódio, embora

fragmentadas, podem ser vistas, dentro desses pressupostos, como primeiros

esboços de construção de narrativas imaginárias através de justaposição de relatos

que são fragmentos de algum tipo de experiência pessoal: “tem jacaré na minha

casa”; o jacaré fica “embaixo da minha cama”; “outro dia ele foi me morde”; “ele vai

comer você”. Para Perroni, essas primeiras tentativas não são consideradas como

narrativas propriamente ditas; são “precursores da narrativa” (PERRONI, 1992, p.51)

e originam-se da “interação da criança, que aos poucos vai assumindo seu lugar na

comunidade lingüística, com um adulto interlocutor” (PERRONI, 1992, p.50), que no

caso do episódio acima, tinha a professora como interlocutora.

Dada as nossas limitações, apresentaremos apenas mais um episódio, abordando a

fase das protonarrativas referidas por Perroni (1992), nas quais parece se encontrar

algumas das crianças citadas nesses episódios.

Como já havíamos dito, algumas histórias foram contadas e recontadas várias

vezes, como foi o caso desta história - A Festa no Céu. Apresentaremos aqui,

fragmentos das manifestações das crianças em decorrência dessa narrativa de

ficção.

No final da narrativa, como de costume, a professora convidava todos a cantarem “a música da tartaruguinha” que a maioria dos alunos já sabia de cor. Na parte musicada que pergunta: “Quem viu a tartaruguinha, quem viu?”, a professora pergunta, sem cantar, e as crianças respondem em côro: “Eeeeuu”. Nesse momento, Tânia (2 anos e três meses), empurra o colega do lado e diz bem zangada: “você não, eu não vi você lá”. E assim começa a discussão e o empurra-empurra entre as crianças. (25/05/05)

Ao se zangar e empurrar a outra criança dizendo: “Eu não vi você lá”, Tânia parece

acreditar mesmo na situação posta pela história fictícia (a festa no céu) e irrita-se

130

com a outra criança que também afirma ter ido a tal festa, possivelmente, por achar

que a colega esteja “mentindo”, pois, ela - Tânia - “esteve lá” e não a viu no local da

festa.

Diante deste cenário, torna-se necessário retomar Perroni (1992) que, dispondo-se a

explicar o processo de desenvolvimento do discurso narrativo da criança, postula

que, inicialmente, por volta dos dois anos, a criança relata experiências pessoais,

baseadas em fatos vivenciados por ela. Ou seja, eventos que realmente ocorreram.

Nesta fase, denominada pela autora de protonarrativas, a criança não consegue,

sem a ajuda de um mediador mais experiente, construir textos que possam ser

reconhecidos pelo fato de seu discurso apresentar-se preso à sua realidade imediata

(aqui), e ao tempo presente (agora).

Dentro desta fase das protonarrativas, a linguagem da criança se constitui em

fragmentos de enunciados, em forma de estruturas embrionárias, que, ligadas à

suas experiências, pouco a pouco vão se desenvolvendo, até constituir-se em

discurso narrativo. Perroni explica ainda que esse processo surge das relações entre

adultos e crianças através do diálogo e do jogo verbal. Se este for o caso, Tânia

poderia estar nos revelando indícios que demonstram sua dependência com o

campo perceptual imediato.

Por outro lado Vigotski nos aponta alguns elementos que possibilitam aprofundar

essa discussão, quando discute sobre o sincretismo e as características da lógica

infantil. Para o autor, “[...] a criança pensa de forma sincrética sobre assuntos de que

não tem conhecimento ou experiência, mas não recorre ao sincretismo com relação

às coisas familiares ou que sejam de fácil comprovação prática [...]” (Vigotski, 1998,

p.27).

Vigotski chama a atenção para algumas características fundamentais do

pensamento da criança, as quais devem ser levadas em consideração, na discussão

sobre o desenvolvimento de sua narrativa. Além de considerar o papel da

experiência nos relatos da criança até os dois anos, como destacou Perroni,

devemos realçar também as características de seu próprio pensamento: produções

sincréticas, marcadas por uma outra lógica, atravessa seu pensamento e sua fala,

especialmente em situações em que a experiência é restrita.

131

No entanto, a trama dessa manifestação de Tânia coloca-nos, ainda, muitas outras

questões que nos obriga a examinar mais de perto, as relações entre o real e

imaginário. Sua análise se faz por inúmeras possibilidades de interpretações que o

contexto nos oferece: A que festa Tânia estaria se referindo? Seria, talvez, a

lembrança de uma festa de aniversário, marcante para ela, ocorrida no próprio CMEI

(prática comum daquele cotidiano escolar), e nesse dia, a criança que ela empurrou

teria faltado? Ou tudo isso não passaria de uma fantasia, um reflexo de um “desejo”

de suas necessidades e experiências vivenciadas com a realidade, como nos diria

Held (1980, p.25), reunidos em “um real psíquico”?

O conjunto dos episódios apresentados apontou alguns aspectos que se destacaram

na narrativa dessas crianças tais como: a quantidade de palavras que a princípio,

caracterizaram-se como produções orais mínimas de algumas crianças; a

interferência do adulto na dinâmica pergunta-resposta contribuindo para ampliar a

interação verbal; o uso de gestos, expressão facial, entonação, também como forma

de colaborar na interpretação (atribuir significados); e, a relação com o medo

permeando os episódios.

A configuração deste e outros episódios nos levam a concordar com os caminhos

apontados pela revisão teórica e pelos estudos acerca do desenvolvimento da

narrativa. Ou seja, uma ação educativa, no sentido de contribuir com a trajetória em

que a criança se lança dentro do contexto imaginário, implica se investir no jogo de

faz-de-conta, o que supõe um trabalho específico de mediação nessa área.

Foi no conjunto desse cenário que as pistas para a análise das narrativas foram se

revelando e impulsionando-nos a avaliar outros aspectos fundamentais no

funcionamento lúdico-imaginário como a afetividade e a participação dos outros, que

dão sustentação à passagem da narrativa marcada pelo predomínio do “aqui/agora”

para imaginação criadora.

132

4.1.1 A Narrativa de Ficção e a Oscilação entre o Real e o Imaginário

A realidade é contínua, múltipla, simultânea, complexa, abundante e parcialmente invisível. Só a imaginação

pode compreendê-la e revelar suas profundezas.

Winterson

Nada é rígido, para quem alternadamente pensa e sonha.

Bachelard

Em alguns episódios, constatamos que, no processo de desenvolvimento da

narrativa, as ações e a produção oral de uma mesma criança ora sugeriam

predomínio do real, ora o predomínio do imaginário. Isto nos levou a uma reflexão

mais aprofundada sobre a relação entre o real e o imaginário.

Em que momento adentramos no reino da imaginação, sem nos desprendermos da

realidade que nos circunda? Held (1980) nos responde:

Tudo começa como numa história “realista”. Estamos na vida banal, cotidiana. O desenvolvimento da história parece normal, linear... Até o momento em que, seja de maneira nítida – pela introdução de nova personagem, de objeto estranho, de elemento imprevisto da paisagem -, seja por passagem insensível de atmosfera, o desconhecido e o estranho irrompem, embora tudo fique “diferente” (HELD, 1980, p.65).

Assim, procuramos inserir a criança no reino da imaginação, tendo em vista os

pressupostos teóricos aqui abordados e os objetivos pretendidos nesta pesquisa,

pois acreditamos que “Uma vida humana é uma ficção que o homem inventa à

medida que caminha” (HELD, 1980, p.18). Dentro dessa perspectiva, Held afirma

que a imersão da criança no mundo da imaginação, da fantasia, está repleta de

“impregnação cultural” (HELD, 1980, p.54), e que a tarefa do educador em conduzi-

la neste caminho, não é simples; requer uma “pedagogia do imaginário” (HELD,

1980, p.46).

Quando damos a uma criança um urso ou uma boneca, ela encontra, certamente, o uso “razoável” que a sociedade previu e espera, uso já complexo: papel passivo de consolador, papel ativo “maternal” que prepara, desde a mais tenra idade, para a atitude parental e, especialmente, nas estruturas tradicionais, para a futura mãe. Mas a criança descobre, também, outros empregos imprevistos e fantasistas: senta o urso no sofá para contar-lhe uma história. Faz com que ele viva mil aventuras imaginárias palpitantes. Joga-o ao ar, o mais alto possível, para ver o que acontecerá, e pelo prazer de realizar o que teme e não pode fazer com seu próprio corpo, de viver em seu lugar experiências de gravidade e de levitação. Em todas

133

essas atividades, o despertar da inteligência e o de imaginação caminham juntos e constantemente se enriquecem (HELD, 1980, p.48).

Portanto, para essa autora, “razão e imaginação não se constroem uma contra a

outra, mas, ao contrário, uma pela outra” (HELD, 1980, p.48). Para essa autora, “A

linha de divisão real-fictício só será traçada pouco a pouco” (HELD, 1980, p.49),

quando a criança em constante contato entre um e outro, (vai e vem contínuo),

aprenderá paulatinamente a situá-los de maneira consciente. Para ajudar à criança

que transita entre esses dois mundos paralelos, a autora sugere a mediação do

adulto através de diálogos e de atividades que a auxiliem a manipular a imaginação

criadora. Entre essas atividades ela destaca: a ficção da brincadeira, pois, à medida

que inventa sua brincadeira a criança estaria exercendo sua autenticidade criadora;

e a leitura da história em voz alta, isto porque:

É a voz do adulto que não só informa a criança quando poderá haver inquietude, mas a auxilia também, por suas entonações, a traçar a linha de demarcação entre o real e o ficcional, a aprender o humor de um texto em vez de tomá-lo “ao pé da letra”, que prepara, enfim, esse verdadeiro leitor que será capaz de uma leitura “entrelinhas”, que é a verdadeira leitura (HELD, 1980, p.49).

Também para Vigotski (1998), a imaginação “[...] constrói novas séries, a partir das

impressões anteriormente acumuladas” (VIGOTSKI, 1998, p.107). Podemos

confirmar através dos episódios que de fato, como Vigotski havia apontado

anteriormente, a criança se apropria do seu mundo físico, povoado por fantasias,

para estabelecer relações entre as pessoas, objetos, e assim, por meio do

desenvolvimento do pensamento mais elaborado, distanciar-se da realidade e agir

de maneira criativa através da imaginação. Ou seja, diante de uma situação

imaginária a criança aprende não somente através do contato com os objetos mas,

sobretudo, “pelo significado dessa situação” (VIGOTSKI, 1998, p.127).

Como se pode perceber, a construção de uma narrativa pela criança requer a

mediação do professor e que este tenha conhecimentos mais aprofundados sobre o

desenvolvimento, especialmente das diversas formas de linguagem pela qual a

criança expressa seu pensamento, sua fala, sua ação.

As palavras que surgem no contexto interativo desses episódios, reiteram o

pensamento de Vigotski (1998b) em um outro estudo, e também de Bakhtin (1976)

134

ao dizerem que o significado é parte inalienável da palavra e como tal, pertence ao

domínio da linguagem e do pensamento, sendo ambos gerados por motivações,

desejos, necessidades, interações e emoções. Desse modo, as narrativas de ficção

constituem-se bastante significativas para o universo infantil, pois, permitem à

criança libertar-se dos domínios do real e, pela própria natureza da sua linguagem

de faz-de-conta, adentrar-se no plano imaginário.

Urban confirma o valor e o significado das narrativas de ficção para o

desenvolvimento e fortalecimento da imaginação destacando em tais narrativas, a

fantasia como elemento propulsor.

A fantasia – irracional a ponto de permitir que a vovó engolida pelo lobo mau permaneça viva em sua barriga até ser salva ou que a Bela Adormecida durma enfeitiçada, um sonho de cem anos, ou que João suba num pé de feijão até alcançar no céu um castelo de um gigante – justamente pelo inverossímil que expõe, provoca uma reviravolta em nosso mundo psíquico que, estimulado, aguça-se na tentativa de compreendê-la. E não há como explicá-la pelos padrões da razão metódica. A história de fadas é por si só, sua melhor explicação; do mesmo modo que as obras de arte encerram aspectos que fogem do alcance do intelecto, já que suscitam emoções capazes de comover os que diante dela se colocam. O significado desses contos está guardado na totalidade de seu conjunto, perpassados pelos fios invisíveis de sua trama narrativa. 910

Diante das afirmações feitas pelos diversos autores citados, percebemos que, as

narrativas de ficção, pela sua linguagem envolvente e estruturada no plano

lingüístico, cognitivo e do sócio-afetivo, permitem à criança brincar com a fantasia,

mergulhar nela, e “construir uma ponte no tempo, repetindo o passado, vivendo o

presente e projetando o futuro, transitando entre o mundo inconsciente e a

realidade, pois fantasia e realidade se complementam: fantasia sem realidade seria

associal e caótica, enquanto realidade sem fantasia seria fria, desagradável”

(EMERIQUE, 2003, p.18).

Cabe lembrar mais uma vez, a imensa contribuição da narrativa de ficção na relação

real-imaginário. Segundo Held (1980, p.53), esse tipo de narrativa fornece às

crianças, “não apenas materiais para a construção de sua brincadeira e para a

invenção de regras internas dessa brincadeira, mas também materiais para suas

construções de história”. O exemplo abaixo ilustra as palavras de Held, pois

9 Artigo disponível em http://www.amigodaalma.com.br/conteudo/artigos/contos_fadas.htm; acessado em 02/08/2006.

135

conseguimos captar nas manifestações das crianças diante do contexto de

brincadeiras suscitadas pelas histórias, a ampliação da atividade de brincar, de

fazer-de-conta, em um grupo de crianças. Percebemos nessas manifestações que a

criança é capaz de desenvolver conexões entre as coisas que observa no seu

cotidiano e os fatos ocorridos nas histórias de ficção, oscilando suas ações entre

uma fronteira e outra.

O episódio ocorrido em 22/08/05 surgiu de uma ação inesperada, ou seja, sem que

houvéssemos planejado, antes de iniciarmos nossa atividade de contação de

história. Nesse dia, havia vários livros expostos pela sala de aula. Algumas crianças

se dispuseram a manipulá-los, outros preferiram realizar atividades comuns: correr

pela sala, brincar com os brinquedos da caixa (carrinho, boneca...). Entre os livros,

existe particularmente um que é de interesse comum para duas crianças: Marcos e

Jonas. Ambos o disputam, na maioria das vezes, a tapas. Trata-se do livro da Ana

Maria Machado – “De Fora da Arca” - onde ela apresenta imagens de animais da

mitologia grega e conta o que aconteceu com os animais que ficaram de fora da

arca na passagem do dilúvio relatado na Bíblia. Nesse dia Jonas não compareceu

ao CMEI. O livro encontrava-se aberto em cima da mesa e Davi (2 anos e 2 meses),

mantendo uma certa distância, se dispôs a olhá-lo, fixando-se na imagem de um

desses animais que na verdade, mais se parecia a de um “monstro”.

Pesq: “Que isso?”

Davi: É o Bicho-Papããão!!! (fala com bastante entonação na voz).

Pesq: É o bicho-papão?

Davi: É.

Pesq: Que que ele faz?

Davi: A boca. (aponta para a sua boca).

Pesq: Como que ele faz?

Davi: rrrrrrrrr (mostrando os dentes e as mãos em forma de garra).

Pesq: (tenta uma maior aproximação do aluno com o livro): Ele morde?

Davi: (balança a cabeça que sim).

Pesq: Cadê? Bota o dedo aí prá eu ver. (ele se afasta ainda mais).

Marcos: (2 anos e 8 meses), põe o dedo na boca da figura do monstro e grita: Aiiiiii

Pesq: Mordeu?

Marcos: Mordeu ai, ai... (outras crianças se aproximam querendo por o dedo

também. Cada um que põe sai balançando a mão dizendo: ai, ai, ai, ai...)

136

Pesq: O bicho mordeu gente?

Davi: Ai, Bi-Papão (todo eufórico, toma coragem e põe o dedo rapidamente na

figura também).

Nesse momento Marcos vira a página.

Davi: (chora querendo ver o “Bicho-Papão”): Qué o Bicho-Papããão. (os dois

começam a brigar pela posse do livro). Marcos leva vantagem.

Davi: (sai choramingando): “O jacaé tá lá dentro...”. A pesquisadora o acolhe em

seu colo.

Marcos: traz o livro de volta, mostra uma figura e diz: “mamãe, mamãe”

Pesq: Cadê? (Marcos aponta com o dedo para uma figura mostrando um grande

par de seios).

Pesq: E o que é isso?

Marcos: (tira a chupeta e diz): Mamá.

O evento chama a atenção para a oscilação entre o real e o imaginário expressos

pelas ações e palavras de Davi e Marcos em uma situação conflitante de disputa por

um livro. Por outro lado, também indica o momento em que Marcos inicia um jogo no

plano do imaginário que acaba envolvendo outras crianças na brincadeira, inclusive

Davi, ampliando assim, o campo de atividades desse cenário.

Davi, mantendo certa distância, observa demoradamente a imagem contida na

página do livro. Sua postura corporal e sua fisionomia (mãos atrás, franzimento da

testa...) parecem indicar, de sua parte, um esforço para compreender tal gravura. No

momento em que toma coragem para entrar em contato físico com o personagem do

livro, é interrompido por outra criança e passa a viver outros sentimentos: raiva,

tristeza, frustração...

Se antes, não se cogitava a hipótese de Davi sequer se aproximar de qualquer

personagem que lhe incitasse o medo; agora já o vemos mais próximo, porém com

certo receio ou dúvida de colocar o dedo na boca da figura. O que já caracteriza um

avanço. Consideramos fundamentais nesse processo vivenciado por Davi, o papel

dos colegas no sentido de ajudá-lo a vencer o medo, pois esse momento representa

a possibilidade de Davi vencer o medo e finalmente conseguir dar um passo além no

sentido de atuar no plano imaginário. O ato inicial de Marcos e de outras crianças de

colocar o dedo em cima da boca do “monstro” encoraja Davi e desencadeia as

brincadeiras com outras crianças no plano imaginário. Compreendemos que isso

137

poderá trazer contribuições para o desenvolvimento de sua narrativa de ficção como:

fazer-se entender melhor pelos colegas e adultos através de sua narrativa,

expressar suas idéias claramente para o grupo social ao qual pertence, enfim,

tornar-se um narrador.

Desse modo, enquanto brincavam, as crianças simulavam estar com medo

manifestando reações de euforias, gargalhadas, correrias. Tais reações não

passaram despercebidas por Davi que acaba se contagiando pela alegria, supera o

medo e se rende ao prazer de brincar com a situação que provocava medo. Ao que

tudo indica, as ações de Davi apontam uma atuação no plano imaginário, o que

possivelmente contribuirá para o desenvolvimento de sua narrativa, em especial, de

ficção.

No episódio descrito a seguir é possível notar alguns progressos no percurso do

desenvolvimento de Davi. O evento ocorrido em 20/06/2005 mostra uma atividade

de contação de história realizado pela professora/pesquisadora junto às crianças,

para demonstrar suas manifestações no decorrer da história. Após a contação, as

crianças dão continuidade a uma brincadeira que estimula a imaginação.

A professora/pesquisadora retira de dentro de uma caixa um fantoche (3 em 1) que,

de acordo com a sua posição, vai se transformando nos principais personagens da

história da Chapeuzinho Vermelho (Chapeuzinho, Vovó e o Lobo Mau), e inicia

uma técnica de apresentação que consiste em dar as pistas que caracterizam os

personagens, perguntando em seguida às crianças, os respectivos nomes dos

personagens. As crianças, já conhecendo a história, ficam imóveis, atentas... Em

relação ao lobo mau – último personagem – a pesquisadora se detém mais,

fazendo todo um clima de suspense. A expectativa das crianças cresce; as crianças

ficam em silêncio, porém, de acordo com o tom da contação, a expressão facial e

corporal das crianças se altera: o sorriso vai se abrindo, olhos se arregalam, o

corpo se prepara para correr. Ao apresentar o último personagem (o lobo), o tom da

voz torna-se mais forte. A maioria se levanta sai correndo e gritando pela sala.

Imediatamente o fantoche é virado transformando-se no personagem inicial

(Chapeuzinho) e dá-se o inicio à contação de história começando pela canção da

Chapeuzinho: “ Pela estrada a fora eu vou bem sozinha...”. Aos poucos as crianças

voltam, sentam, ouvem e participam da história batendo palmas, acompanhando a

música, perguntando. No ápice da história (momento em que a vovozinha é

138

engolida pelo Lobo e a Chapeuzinho chega fazendo as perguntas para a

“vovozinha”, que na verdade é o Lobo disfarçado), a cena se repete: as crianças

emudecem e logo após, saem correndo, gritando e só voltam a se sentar, quando o

Lobo desaparece.

Chapeuzinho: vovó, porque esses olhos tão grandes?

Lobo disfarçado: São para te ver melhor, minha neta.

Chapeuzinho: E essas orelhas tão grandes?

Lobo: São para te escutar melhor.

Chapeuzinho: E o nariz?

Lobo: Serve para te cheirar. (as crianças dão um passo para trás)

Chapeuzinho: Para que serve essa boca tão grande?

Lobo: Para te comerrr! (gritaria e algazarra pela sala)

Uma das professoras que acompanha a cena no canto da sala, ri de Davi (2 anos)

que, nesse exato momento, se afasta do grupo e a procura. O final da história

culmina com a partilha de um “lanche fictício” entre a turma. Vânia (2 anos e 3

meses) imediatamente pega a cesta da Chapeuzinho, sai cantando e perguntando

quem quer docinho. Outras crianças, inclusive Davi, passam a também distribuir os

docinhos de “faz-de-conta” assumindo, desta vez, o papel da personagem

“Chapeuzinho”. No decorrer da brincadeira, o fantoche vai passando de mão em

mão permanecendo, pela maioria das crianças, como o personagem “lobo mau”,

enquanto as demais crianças (as chapeuzinhos), “fogem” do lobo.

Vejamos, então, quais foram as evidências que nos permitem dizer que Davi

progrediu em relação aos aspectos imaginários. No inicio ele ouve a história

juntamente com outras crianças, o que anteriormente só fazia no colo de um adulto.

Depois, no momento em que as crianças correm, torna se afastar do grupo à

procura de um adulto para ampará-lo, dando indícios de ainda não ter processado a

questão do que é real e do que é fictício. Finalmente, rende-se à brincadeira no

plano do imaginário, passando também a distribuir docinhos e fugir do lobo, desta

vez, na direção da maioria das crianças. Consideramos esse momento em que ele

consegue participar das brincadeiras com as crianças, como algo “mágico” na vida

de Davi, pois, de acordo com o que temos visto até aqui, sua participação

apropriada nessa brincadeira se constitui em um indício de que ele atua também no

plano imaginário.

139

De fato, isso pôde ser confirmado no episódio do dia 29/11/2005.

Trouxemos o baú de fantasias para a sala e alguns CDs de música infantis. Dissemos que iríamos nos arrumar para dançar na festa dos bichos. Deixamos as crianças escolherem suas próprias fantasias. Neste dia Davi nos surpreendeu ao colocar a máscara do lobo e sair correndo atrás das crianças gritando, rindo, pulando e dizendo, de vez enquanto, a frase: “vou pegar você”!. Aproveitamos então para colocar a música “Nós vamos passear no bosque enquanto seu lobo não vem”. Davi se divertiu sendo o personagem principal desta brincadeira, porém se recusou a tirar a fantasia e dar a vez aos outros de serem o lobo.

Embora os episódios envolvendo Davi não demonstrem um aumento significativo

das suas produções orais que pudessem confirmar um avanço em relação à

linguagem narrativa é possível detectar indícios que comprovem esses avanços ao

acompanharmos e comparamos suas reações e ações ao longo desse percurso. No

primeiro episódio analisado, vimos que as condições circunstanciais que Davi se

encontrava (medo do lobo) o impedia de aventurar-se no mundo da imaginação. Era

notório o predomínio do aqui/agora em suas produções verbais e não verbais (fala,

desenho, gesto, expressão facial...). Num momento posterior, ele já consegue

transitar entre o plano real e fictício no vai e vem continuo de suas ações. Nesse

movimento, suas palavras se ampliam, possibilitando a formação de frases como:

“Vou pegar você”.

Por outro lado, em relação a Marcos, pode-se dizer que, se sua participação ativa no

jogo imaginário instaurado pelas crianças diante da figura de um ser que provocava

medo aponta a possibilidade de ele atuar plenamente no plano imaginário, sua

atitude de tirar a chupeta para mamar ao ver a figura de um ser com seios e a

enunciar “Mamá” leva-nos a questionamentos sobre o modo como lida com o real e

o imaginário e sobre os elementos que estão em jogo nessa relação. Em um

momento, ele parece perceber que a figura assustadora não é “de verdade” e

interage com ela, em outro momento uma outra figura com um par de seios provoca

nele o desejo de mamar. Como compreender esse gesto e a palavra enunciada?

Teria ele a clareza de que a figura não era real ou o afetivo se mostrou mais forte,

quebrando as barreiras entre o real e o imaginário, nesse momento?

Esse episódio chama a atenção para um aspecto que se tem discutido sobre a

literatura infantil – uma forma de linguagem que tem o poder de criar laços afetivos e

atender às necessidades do ser humano, tendo como base os sentimentos como

140

amor, raiva, paixão, medo... A trama dos contos, suas imagens, a entonação de voz

de quem conta... podem suscitar esses sentimentos nas pessoas e ajudá-las a lidar

com seus conflitos internos. Desse modo, a reação de Marcos diante da imagem

sinaliza para a possibilidade de estar reelaborando seus sentimentos e emoções (a

saudade da mãe, a vontade de mamar, as lembranças e o prazer que esses

momentos lhe proporcionam...).

O episódio ocorrido em 26/08/05 que relataremos a seguir mostra a participação

ativa de Marcos (2 anos e 8 meses) inclusive trazendo na sua fala, fragmentos da

história que ouviu contar.

Conforme nosso planejamento, combinamos nesse dia, repetir a atividade da “caixa

surpresa” que consistia em trazer dentro de uma caixinha algo para a criança tentar

adivinhar. Nessa atividade, resolvemos trazer um bichinho de brinquedo para

representar o principal personagem da história “A Festa no Céu”. Enquanto uma das

professoras conduzia a atividade, nos atentamos para as manifestações das

crianças, em especial Marcos, que nesse dia estava bem mais participativo e atento

do que nos momentos anteriores: cantava, interferia, perguntava.

Profª.: O quê que tem aqui dentro? (mostrando e balançando uma caixa)

Crianças: Passarinho!!!

Marcos: Pintinho!!! (falando ainda mais alto que as outras crianças)

Profª.: Pintinho ou passarinho? (começa a discussão entre as crianças: umas

afirmam ser o pintinho, outras, o passarinho).

Marcos: (se levanta aponta para a caixa e diz): Aqui pintinho, abre.

Profª.: Abre? Abre! Abre! (incita as crianças repetirem o refrão. Em seguida pede

silêncio com gesto: colocando o dedo na boca, sussurrando e arregalando os olhos.

As crianças silenciam. Após todo esse suspense ela diz): Vamos fechar o olhinho,

1,2,3... já! Êeeee (tira a tartaruguinha).

Profª.: Oh!!! Quem é? (as crianças não respondem cm palavras. Dão pulinhos,

gritinhos e batem palmas. A professora insiste): Quem é? Quem é?

Marcos: Tartaruga (fala quase gritando, pega o brinquedo da mão da professora e

sai correndo pela sala. A outra professora apanha de volta, antes que as crianças

se levantem).

Profª.: Ela veio de onde? Ela tá tão tristezinha? Que que ela quer?

Tânia (2 anos e 10 meses): Ela veio daqui (aponta para a caixa).

141

Airton (3 anos e 3meses): Ela quer ir lááá, na festa no céu (aponta para cima).

Marcos: Não!!! Ela caiu, ó (mostra o casco). Ela vai com o passarinho.

Profª.: Então vamos falar pra ela? Olha, D. Tartaruga a senhora vai prá festa com o

passarinho. Vamos cantar a música dela? (Todos cantam e a satisfação de Marcos

é notória).

Era comum flagrarmos Marcos brincando com bonecos e objetos pelo CMEI que

costumava trazer de casa e não dividir com ninguém. Em função disso, as brigas e

conflitos eram constantes. Apesar de ainda chupar chupeta, Marcos era uma criança

muito comunicativa e conseguia se fazer entender através de suas manifestações

verbais e das interações com seus pares. Na maioria das vezes, demonstrava

gestos de carinho com os professores e colegas, e cuidados com os mais novos. A

presença constante dos pais parecia revelar uma ligação muito saudável com o filho.

No episódio acima, observamos a estratégia da “caixa surpresa” como tentativa de

introduzir elementos que possam servir de estímulo à imaginação das crianças em

suas produções narrativas. Marcos se destaca ao fazer uso da memória por duas

vezes. Primeiramente ao dizer: “pintinho” (em um momento anterior, lembramos que

realizamos essa atividade da caixa surpresa, colocando dentro um pintinho que

poderia ser dado corda para que ele se locomovesse, enquanto cantávamos a

música “Pintinho Amarelinho”); e depois, ao contestar os colegas dizendo: “Não!!!

ela caiu, ó” . Essa última fala parece indicar que ele estaria se reportando a história

“A Festa no Céu” o qual ele tinha ouvido várias vezes, mas somente agora se

manifestou verbalmente.

O ato de retomar informações de uma história contada para se expressar,

acrescentando novos elementos (o passarinho), já é indício de avanço na

perspectiva dos autores aqui apontados a respeito do desenvolvimento da narrativa

na criança.

Entretanto, “A dependência temporal entre um evento e outro é apontada como uma

das características definidoras do discurso narrativo, ao lado da causalidade e do

uso do verbo de ação no tempo perfeito”, como aponta Perroni (apud, FREITAS,

2001, p.88).

Do mesmo modo que Davi, embora Marcos ainda não apresente uma estruturação

142

do discurso narrativo conforme o modelo apresentado por Perroni pelo fato de, entre

outros fatores, ainda se encontrar, em alguns momentos, preso ao aqui/agora; ele

apresentou neste episódio manifestações predominantes no campo do imaginário,

ou seja, na sua imaginação, a tartaruga vai à festa com o passarinho. Held (1980)

nos lembra que:

[...] várias fronteiras permanecerão na criança, frágeis e fluidas, por longo tempo: certamente, a que separa do imaginário o que chamamos de “real”. Mas também a que delimita o eu e o opõe ao não-eu. A tomada de consciência de si, a construção da personalidade, se iniciadas na infância, representam um caminho longo e lentamente percorrido. Donde a atração e, ao mesmo tempo, a “normalidade” que vão ter para a criança as transformações do conto (HELD, 1980, p.42).

Para Góes (2000a), o cenário do faz-de-conta é constantemente reelaborado e

transformado pela criança: “O tempo todo, o campo da atividade imaginativa

transforma esse cenário através das ações dos participantes, e essas

transformações repercutem, por sua vez, nas possibilidades de desdobramento

temático do faz-de-conta” (GÓES, 2000a, p.5); o que se confirmou em nossas

análises, através desses episódios.

Diante do que foi exposto até aqui, verificamos que a transição entre ficção e

realidade, particularmente para as crianças, parece se revelar de forma difusa,

oscilante e sutil. As narrativas de ficção, quando bem mediadas, possibilitam às

crianças manipularem a imaginação pelo tipo de estrutura que possuem e pela

abertura ao jogo imaginário que suscita nas crianças.

Portanto as crianças desenvolvem sua narrativa de ficção à medida que vivenciam

situações imaginárias em que lhes é permitido observar, ouvir, experienciar e

interpretar, criando novas situações dessas experiências vividas.

143

4.1.2 A Narrativa de Ficção

A ficção se assemelha a um brinquedo... responde a uma necessidade muito profunda da criança: não se contentar com sua própria vida. Uma vida humana é uma ficção que o homem inventa enquanto caminha. Jacqueline Held

Como já foi apontada, a narrativa do ser humano parte, a princípio, daquilo que lhe é

tangível, daquilo que ele pode ver, tocar, apontar..., até chegar à narrativa de ficção

que é a capacidade de falar de algo que não se encontra diante do seu campo

perceptual concreto. O próprio Luria (1994) no volume IV da obra “Curso de

Psicologia Geral - Linguagem e Pensamento”, sob orientações de Vigotski,

empreendeu uma série de investigações experimentais para compreender o

processo de desenvolvimento da linguagem e descobriu que as crianças pequenas

vão assimilando as palavras através das relações circunstanciais, ou seja, num

processo de experiência prática para só então, internalizá-las através das relações

lógico-abstratas, ou seja, operações lógico-verbais.

Vigotski (1982) postula que a imaginação, atividade do cérebro humano que se

baseia no ato de criação humana, é responsável por este mundo cultural - mundo

criado pela mão do ser humano - que nos rodeia. “Todos os objetos da vida diária,

sem excluir os mais simples e habituais, vem a ser algo assim como fantasia

cristalizada” (VIGOTSKI, 1982, p.10). A imaginação ou fantasia permite ao homem

projetar-se no futuro modificando a realidade presente. Uma das maneiras de se

efetuar essa atividade altamente elaborada na criança, que é a imaginação, seria de

acordo com esse autor inserir no universo infantil os contos, os brinquedos e as

brincadeiras.

Para Sarmento (2003), a dimensão fantasista está presente no jogo simbólico das

crianças, sendo um mundo de faz-de-conta, no qual o que é verdadeiro e imaginário

se confunde de forma estratégica, transformando a brincadeira numa gostosura.

Deste modo o autor considera que ao entrar nesse mundo, o tempo da criança é

deslocado da realidade cronológica para uma temporalidade diferida da situação

144

imaginária. O real torna-se segmentado, recriado e posicionado de forma inovadora

e imaginária pela ação da interpretação da situação vivenciada. Isso torna a vida

uma aventura repleta de possibilidades. O autor se utiliza das idéias de Benjamin

para descrever esse momento em que a criança, através do jogo simbólico, tende a

repetir suas experiências, “começar tudo de novo” (BENJAMIN, apud SARMENTO,

2003), a jogar o jogo outra vez, para alcançar um meio, seja pelo domínio dos

recursos ou pela linguagem adequada, de dominar a situação.

A criança constrói os seus fluxos interativos, numa cadeia potencialmente infinita, onde se estabelece os rituais, se enraízam as lengalengas, os refrões, as palavras repetidas dos códigos e das senhas, os vocábulos abracadábricos das soluções mágicas. Nesses fluxos, estruturam-se e reestruturam-se as rotinas de acção, estabelecem-se os protocolos de comunicação, reforçam-se as regras ritualizantes das brincadeiras e jogos adquiri-se a competência da interacção: trocam-se os pequenos segredos, descodificam-se os sinais cifrados da vida em grupo estabelecem-se os postos de relações de pares (SARMENTO, 2003, p.3).

De acordo com esses pressupostos entende-se que o ponto de partida para a

criança adquirir a linguagem narrativa encontra-se nas relações cotidianas partindo

das interações verbais e dos signos, até alcançar seu nível mais elevado de

compreensão: “A orientação da atividade mental no interior da alma (a introspecção)

não pode ser separada da realidade, de sua orientação numa situação socialmente

dada... o signo e a situação social em que se insere estão indissociavelmente

ligados” (BAKHTIN, 1992, p.62).

Esses autores concordam que a criança que atingiu esse nível de desenvolvimento

psicológico consegue se envolver ativamente nos jogos simbólicos, imaginando-se

estar no lugar dos personagens, de transformar as coisas em outras coisas sem, no

entanto, deixar de ser elas mesmas, ou de saber que as coisas que toma

emprestado para fazerem suas representações, são as próprias coisas. Isso porque

“aprende que um objeto pode se transformar e que há continuidade na existência

das coisas apesar de sua diferença de aspecto” (WALLON, apud HELD, 1980, p.43).

As crianças desenvolvem sua narrativa de ficção à medida que vivenciam situações

imaginárias em que lhes é permitido observar, ouvir, experienciar e interpretarem,

criando novas situações dessas experiências vividas. Os episódios a seguir, ilustram

nossa fala, pois mostram que, no decorrer das ações, a linguagem vai se integrando

ao brinquedo simbólico fazendo emergir a linguagem como uma estrutura narrativa

145

que ordena as ações construídas no brincar.

Neste momento, acompanharemos e analisaremos a narrativa da criança Tainara (2

anos e 2 meses) em situação de reconto da história “Chapeuzinho Vermelho e o

Lobo Mau” e nos próximos episódios, destacamos também, a narrativa dessa

criança que a princípio, vivia pelos cantos calada, sempre tendo como sua principal

referência e apoio, a chupeta e a mochila. No entanto, tinha uma convivência familiar

rica em estímulos visuais e narrativas orais. Ao contrário de muitos pais que

permitem à criança um contato diário e sem acompanhamento aos estímulos visuais

modernos veiculados pela mídia (desenhos animados, filmes, novelas...) e muito

criticados por desviarem a atenção das crianças em relação aos livros; os pais de

Tainara eram exímios contadores de histórias clássicas como Chapeuzinho,

Cachinhos Dourado, Os três porquinhos, Rapunzel e outras histórias. Além de lê-las

todos os dias, forneciam-lhe também, um rico acervo de narrativas de ficção

tradicional (clássicos infantis) em livros e DVDs, os quais ela tinha muito cuidado. É

importante ressaltar que, em relação aos livros, nunca presenciamos, em Tainara,

uma atitude de rasgar, amassar, levar à boca, atirá-los ao longe, ou utilizá-los para

bater nos colegas. Era comum presenciarmos a menina folheando as páginas dos

livros realizando suas “pseudo leituras” acompanhadas pelo dedinho.

O seguinte episódio apresenta Tainara se dispondo a recontar uma história com a

interferência do outro.

No momento do reconto da história “Chapeuzinho Vermelho”, Tainara (2 anos e 2

meses), foi logo puxando o fantoche da mão da professora/pesquisadora e

iniciando a história assim: “O Chapeuzinho comeu o docinho...”, antes mesmo que

pudesse dar continuidade à história foi logo corrigida por Tânia (2 anos e 10

meses) que falou alto e em bom tom, balançando a cabeça: “não é assim que

começa...”

Pesq: Começa como?

Tainara: Era uma vez, O lobo mau vai pegá vocêêê... (muda a voz e projeta o

fantoche em direção das crianças, sobretudo em direção daquelas que aceitam

participar da brincadeira - fugindo, se escondendo, gritando...). (20/06/05)

A partir daí, as crianças foram se revesando, se divertindo, se desentendendo e se

entendendo nessa atividade de recontar histórias com o recurso de fantoches que

durou quase uma manhã inteira.

146

Nesse episódio não percebemos a composição de cenas da história “Chapeuzinho

Vermelho”, de modo a representar um desenvolvimento da ação narrativa. Mas é

possível identificar a introdução de elementos da narrativa, no momento em que a

colega (Tânia) interfere dizendo: “Não é assim que começa”.

Desse modo foi possível confirmar o que os autores como Diatkine, Perroni, Held e

Sunderland, disseram anteriormente sobre a forma como as crianças entendem a

linguagem da narrativa de ficção. Todos eles concordam que a criança pequena

consegue distinguir a linguagem do cotidiano e a linguagem das narrativas de ficção.

De fato, embora ainda não empreguem em suas narrativas de reconto os elementos

que estruturam uma narrativa de ficção - (tempo, lugar, ordem cronológica...) - elas

demonstraram, como no caso da interferência de Tânia - “não é assim que começa”

- ter conhecimento de narrativas estruturadas e dos elementos que as compõe - os

personagens. A própria Tainara responde reiniciando a história do seu jeito, porém,

do modo que ela entende ser o correto para se começar a contar: “Era uma vez” e

também introduzindo os personagens correspondentes à história que ela estava

narrando naquele momento: “O Chapeuzinho comeu o docinho...” e depois, “O lobo

mau vai pegá vocêêê...”

Neste episódio também se tornou evidente a contribuição da interação do outro, no

caso, a interferência da menina Tânia, no sentido de colaborar na construção de

uma narrativa mais rica, utilizando as noções de seus elementos estruturais que a

compõem.

O próximo episódio contribui para nossas análises, uma vez que nos revela a

construção de elementos que vão auxiliar Tainara (2 anos e 5 meses) a avançar na

narrativa de ficção.

De acordo com os diversos estudos aqui revisados, são muitas as possibilidades

que a narrativa de ficção pode suscitar no imaginário infantil. Nesse sentido,

procuramos desenvolver, após a contação e a apresentação das imagens dos

personagens da história “Os três Porquinhos”, uma atividade com as crianças,

colocando-as em contato com diversos tipos de materiais para que elas pudessem

147

realizar suas representações. Os materiais foram organizados e divididos em três

partes, próximos um dos outros, ao redor de um tapete para que a pesquisadora

pudesse acompanhar a movimentação das crianças: fantoches e livros; jogos de

memória; papéis, canetinhas hidrocores, giz de cera e lápis de cores.

A intenção era saber qual deles despertaria maior interesse na criança, antes de

fazermos as propostas de atividades e as possíveis intervenções. A maioria das

crianças passou por todos os cantinhos, porém o primeiro (fantoches e livros) ficou

mais concentrado de crianças. Tainara foi a única que não saiu do cantinho dos

livros, a não ser para mostrar aos outros, algo que lhe parecia interessante.

Propusemos às crianças, que escolhessem então, o material de sua preferência.

Tainara (2 anos e 5 meses) optou pelos livros e desta vez, para nossa surpresa, sua

escolha não foi direcionada aos clássicos como comumente fazia. Encantou-se com

um livro que não havíamos contado às crianças: “Bruxa não”, cuja capa aparecia a

figura de uma bruxa voando na vassoura. Permaneceu ali por um bom tempo, sem

falar, folheando-o várias vezes, entretida com suas imagens. Até que novamente

nos surpreendeu com sua entonação de voz:

Tainara: Olha aquiii! Que que eu achei!!!!

Pesq: Que isso que você achou?

Tainara: Um negóóócio (voz grossa).

Nesse momento uma criança mostra o desenho que havia feito.

Airton (3 anos e 3meses): Um caracolzinho!!! (se referindo ao seu desenho).

Pesq: É meeesmoooo!!!

Imediatamente Tainara rebate pensando que estivéssemos falando do “seu

achado”.

Tainara: Não é não. É um negócio doido (voz de quem parece assustada - ou quer

assustar - olhos bem arregalados). Em seguida, sai correndo pela sala com as

mãos em forma de garra e a voz grossa dizendo: Eu vou pegá vocês!!! Somente

duas crianças a acompanham nessa brincadeira. (19/09/05).

Embora Tainara não apresente informações sobre a história para que se pudesse

nesse momento, caracterizar sua fala como sendo uma narrativa, destacamos,

nesse breve diálogo entre a pesquisadora e as crianças, os gestos, a expressão

148

facial, a entonação da voz e outras manifestações passíveis de análise.

Consideramos que esses elementos compõem a narrativa de ficção.

Atualmente alguns autores têm destacado a contribuição que as imagens dos livros

trazem para o desenvolvimento da narrativa na criança (VIEIRA & SPERB, 2006;

BREVES, 2000). Esses autores se destacam nessa área porque acreditam que a

noção de consciência corporal e contar histórias com o auxílio das imagens,

estimulam a capacidade imaginativa na criança e estimula o desenvolvimento da sua

linguagem narrativa.

Os primeiros autores afirmam que as imagens, pelas suas características, são

capazes de sustentar uma narrativa e essa “narratividade” que a imagem apresenta

é passível de interpretação. 1011

Tal capacidade imaginativa tornou-se visível, em Tainara ao fixar seu olhar na

imagem que a encantou, demorando-se nela. Esse espaço de tempo em cima da

imagem parece ser necessário para ela perceber, internalizar e conscientizar-se de

suas formas, sensações e expressões, e assim, realizar sua atuação, interpretando-

as com seus movimentos, expressões faciais, timbre de voz, como bem fez.

Chamou-nos a atenção o fato de Tainara enfatiza a expressão: “Um negóóócio”,

chegando até mesmo a repeti-la: “um negócio doido”. Essa expressão pode

demonstrar a percepção que Tainara tem nesse momento de que a linguagem da

narrativa de ficção não pode ser algo comum. Tem que revelar a magia, o encanto,

tem que ser inusitado “um negócio doido”. Para isso, ela reúne todo um conjunto de

que dispõe (tom de voz, expressão facial, gesto), para externalizar esse momento,

essa descoberta.

O que diferencia a produção oral de Tainara expressa nesse momento dos

momentos anteriores analisados, são as características desse tipo de narrativa: mais

10 Além disso, a imagem não é nem verdadeira nem falsa; a imagem é incapaz de negar, de emitir um enunciado negativo, sendo assim, ela não é refutável. Por isso a imagem tem sobre nós um efeito de realidade e de presença. [...] A imagem, entretanto, pode ser interpretada. Segundo Debray (1993), “não há percepção sem interpretação, não há grau zero do olhar” (p.60). Esta interpretação quase que imediata e sempre necessária da imagem se deve à analogia entre imagem e objeto. Segundo Caprettini (1994), a analogia entre a imagem e o objeto é regulada por “regras convencionais de similitude na base das quais se estabelece que qualquer coisa é modelo doutra coisa qualquer” (p.186). Sendo assim, o significado de imagem irá depender de uma dupla referência funcional, tanto ao objeto como à cultura (SPERB & VIEIRA, 2006, p.10).

149

voltada para a ficção e, conseqüentemente aberta ao jogo imaginário. O fixar-se à

imagem tentando relaciona-la à sua narrativa, constituiu num elemento de destaque,

pois, despertou a possibilidade de olhar-mos a imagem do livro como importante

material de apoio para a criança sustentar uma narrativa mais criativa e

enriquecedora.

No episódio do dia 19/09/2005, apresentado a seguir, encontramos outros

elementos para aprofundar a discussão sobre os conteúdos dessa narrativa. Nesse

episódio Tainara (2 anos e 5 meses) se aproxima da pesquisadora com o mesmo

livro: “Bruxa Não”.1112

Tainara: “Qué vê outra bluxa?”... e começa a narrar:“Ó, era uma vez, uma bruxa

Keka”.

Pesq: Onde você viu a bruxa Keka?

Tainara: Na minha casa.

Pesq: É? Você viu ela aonde?

Tainara: Na minha casa, ela me pegou.

Pesq: A bruxa te pegou? E você fez o quê?

Tainara: Ó... ó... eu morriu.(estende as duas mãos à frente, balança-as, muda a

fisionomia facial, parecendo estar triste).

Pesq: Você morreu? E aí? O que que aconteceu?

Tainara: Ela correu.

Pesq: A Bruxa correu? Por quê?

Tainara: Porque matou a bruxa.

Pesq: Quem matou a bruxa?

Tainara: um homem. (...) “Ó a bruxa Keka aqui” (mostra o livro: “Bruxa Não” cuja

capa aparece a figura de uma bruxa na vassoura. Em seguida folheia algumas

páginas que se detém em outra imagem – um homem conversando com a bruxa –

e diz:) “Ó aqui, achei um homem”.

Como podemos verificar aqui, Tainara traz alguns elementos significativos das

imagens apreendidas, para representar a história que escolheu e pretendeu contar.

11 Trata-se de uma narrativa de autoria de Mara Monteiro ilustrada por Jótah que conta a história de um ilustrador de livros infantis interagindo com sua própria criação - no caso, uma bruxa que queria ser fada.

150

Nesse momento, sua narrativa se organiza a partir de uma articulação de fatos da

narrativa de ficção do livro, com os fatos cotidianos vivenciados através do cenário

que faz parte do seu convívio social.

Ao analisar as narrativas de crianças, Sawaya (1992) salienta a questão do aspecto

cultural como fator de interferência na construção da narrativa de ficção. Segundo

essa autora: “As histórias têm sempre algo de trágico e fantástico, aspectos todos

que povoam o imaginário dessas crianças e que lhes permite construir a sua

percepção de mundo, desde muito cedo marcada pelo trágico e pela violência”

(SAWAYA, 1992, p.196).

Girardello (2003), ao discorrer sobre os aspectos da construção da narrativa nas

crianças pequenas, aponta a prática narrativa como um ato de recreação em

permanente processo de reimaginação, pelo fato delas introduzirem temas e

gêneros aprendidos com os adultos, porém filtrados pelas suas próprias

perspectivas subjetivas. Para melhor explicar, recorrem às seguintes palavras: “a

criança, ao inventar uma história, retira os elementos de sua fabulação de

experiências reais vividas anteriormente, mas a combinação desse elementos

constitui algo novo” (JOBIM e SOUZA, apud GIRARDELLO, 2003, p.9).

Assim, a narrativa de Tainara traz as marcas das experiências recolhidas no seio da

família e do espaço escolar; que lhe permite criar um estilo próprio e peculiar de

narrar histórias. Nesse episódio Tainara parece fazer questão de esclarecer que não

se trata da mesma bruxa: “Qué vê outra bluxa?” Talvez esteja diferenciando a

imagem e característica de bruxa moderna com a dos clássicos infantis os quais

tinha contato: A bruxa da “Branca de Neve”, “João e Maria”, “Rapunzel”.

Possivelmente o nome “Keka” dado a bruxa que viu no livro é devido a essa

diferenciação, ou seja, ela não sabe o nome da bruxa dessa história, mas sabe, pela

suas características, que também não se refere a nenhuma daquelas bruxas que

estão dentro da colação de seus livros (clássicos infantis) desse modo chama-lhe

pelo nome que lhe parece mais familiar, ou mais propício àquele contexto narrativo –

“bruxa Keka” - (mesmo nome que as personagens têm, representado pela

apresentadora de programa infantil – Xuxa Meneguel). Desse, modo Tainara

expressa assim sua narrativa de ficção: “Ó era uma vez uma bruxa Keka” e, mais

adiante, confirma a sua fala apontando para a imagem da Bruxa e do homem, como

151

quem diz: “viu, é verdade o que eu falei”. Pudemos perceber que essa criança traz,

em sua narrativa, elementos que consegue captar da realidade e assim, vai

desenvolvendo sua narrativa.

”Era uma vez” – expressão de abertura de uma história - complementada pela

expressão de fechamento - “E foram felizes para sempre” – caracterizam, para

muitos autores, “a porta de entrada” para o mundo imaginário que originará na

criança, em pouco tempo, o seu discurso narrativo.1213Portanto, as ações, os gestos,

as expressões faciais e a entonação de Tainara, podem ser consideradas indícios

do desenvolvimento da imaginação e narrativa de ficção como formas de linguagens

presentes nessas narrativas, mas que, no entanto, prescindem de outros elementos

mediadores para se estruturarem enquanto tal, como veremos no item 4.1.5. que

trata especificamente da mediação.

Por outro lado, o episódio apresentado a seguir é interessante para mostrar os

avanços no desenvolvimento do conteúdo da narrativa da Tainara. Ao introduzir

mais elementos à narrativa e misturar outros trechos de histórias à história da “Festa

no Céu”, ela demonstra ter adquirido um maior amadurecimento sobre a narrativa de

ficção. Para Held (1980), a criança que chega a essa fase (que ela denomina de

narrativa fantástica) está prestes a tomar decisões conscientes na relação real-

imaginário. A linguagem narrativa de Tainara revela sua relação com o mundo

imaginário.

Vejamos quais foram os indícios que nos permitiram dizer que Tainara (2 anos e 4

meses) progrediu ao recontar a história “Festa no Céu”, tendo como apoio as

imagens do livro que retrata essa história:

“Era uma vez, o Lobo Mau. Toda festa vai na casa dele... e ele queria, queria...

(gesticulando com a mão). E, olha ele na festa!!! (aponta para o painel da sala que

constitui o cenário da história “ Festa no Céu” o qual contém diversas figuras de

animais) O pintinho tava na festa, o cocó, o boizinho. A tartaruguinha caiu, o Lobo

Mau caiu, o cachorrinho foi na festa, o pintinho foi na festa... e tava lá na festa, a

12 Yunes e Pondé (1989), ao explicarem como a ficção opera com o imaginário, apontam a linguagem literária como “instauradora de realidades e exploradora dos sentidos, a qual possui uma capacidade de gerar inúmeras significações a cada nova leitura” (p.39). A linguagem parece tornar-se literária quando seu uso instaura um universo, um espaço de interação de subjetividades.que escapa ao imediatismo, à predictibilidade e ao esteriótipo das situações e usos da linguagem que configuram a vida cotidiana.

152

festa láááá no céu (aponta para o alto). Vira a página e pergunta: A tartaruguinha

tava brincando de roda? Olha aqui, a outra também. Sem finalizar recomeça a

história: (...) Era uma vez, um pintinho, tudo foi lá em cima. (Na gravura do livro

aparece a garça comendo um docinho. Tainara também faz o gesto de pegar o

docinho introduzindo-o na boca e diz):

Tainara: ai, ai, ai... ade a boca.

Pesq: Arde a boca?

Tainara: Arde.

Pesq: E o que é isso? (apontando para o bolo)

Tainara: É bolo. Vou comer. Come!!! (finge comer, olha para mim e ri).

Pesq: Peguei um.

Tainara: Eu peguei tlês (mostra os dedinhos).

Pesq: É? Me dá um pedaço.

Tainara: come tudo!!! Vou cantar parabéns (depois de cantar vira a página e

aponta para o rabo do pavão:)

Tainara: Que isso?

Pesq: é o pavão. (Ela contesta): É folha... (vira a página)

Tainara: olha aqui... (mostra o urubu no momento em que ele descobre que está

carregando a tartaruga dentro do violão).

Pesq: Ele tá bravo.

Tainara: Qué vê o outro? (volta à página mostrando outra expressão do urubu).

Pesq: Aqui ele tá dormindo. (19/08/05).

Neste episódio, destacamos a introdução de novos elementos que indicam os

avanços de Tainara em sua narrativa. Ela continua utilizando o livro para apoiar sua

narrativa, retirando dele as informações necessárias e a compartilha com o adulto. É

possível ver a ampliação de suas palavras, ainda que não apresente um esquema

narrativo como propõe Perroni. Ou seja, não há ainda em seu relato, uma seqüência

narrativa linear do tipo estruturante (início, meio e fim). A criança inicia a história

várias vezes “era uma vez o lobo mau... era uma vez o pintinho” mas não consegue

prosseguir no enredo. Não estabelece uma relação temporal entre os eventos

através dos marcadores de tempo. Alguns autores têm evidenciado a dificuldade

153

que as crianças pequenas apresentam em entender o fator tempo. Freitas (2001)

afirma ser esse aspecto, algo que a criança tem dificuldade de desenvolver na fase

inicial de seu discurso narrativo. “Pode-se dizer que o tempo não existe por si...

surge em função de outros elementos” (COELHO, apud FREITAS, 2001, p.102).

A autora apresenta resultados de uma pesquisa realizada por Rego, analisando 70

histórias produzidas por crianças recém-alfabetizadas sendo que apenas 52,8%

desses textos aproximaram do esquema narrativo. “Esses estudos explicitam que a

aquisição do esquema narrativo pelas crianças é resultante de um processo que

parte da identificação e expressão de partes da história até se chegar ao todo, uma

construção narrativa de história propriamente dita” (p.110).

Perroni (1992) nos ajuda a entender o modo como a criança vai constituindo sua

autonomia narrativa, utilizando a presença dos marcadores1314, isolando alguns

elementos que fazem parte da trama de uma estrutura narrativa e introduzindo

outros que considera importantes para dar sentido à narração. A autora sugere que

os primeiros passos da criança para constituir-se sujeito-narrador autônomo

acontecem quando começa a incorporar em sua “longa falação cheia de colagens e

combinações livres”, outros discursos provenientes de outras histórias.

As colagens, tanto de fragmentos textuais, quanto de excertos de diálogo, são evidência de que nesse momento o discurso do adulto não é tomado como um discurso autônomo, mas entra na narrativa da criança como “forma” de narrar. O objeto lingüístico é, então, parte da situação que é narrada, sem o estatuto de algo dito por alguém (PERRONI, 1992, p.227).

Percebemos essas “colagens” na narrativa de Tainara quando muda de enredo, ou

seja, começa contando a história do lobo mau e de repente introduz personagens

que fazem parte de outra história., nesse caso, ”A Festa no Céu”. Compreendemos

a produção oral de Tainara como parte do processo de produção da narrativa de

ficção. Ainda que essa produção não possa ser classificada uma narrativa conforme

os parâmetros apresentados anteriormente, neste trabalho, aponta indícios de que

essa narrativa encontra-se em vias de desenvolvimento.

13 Como já foi destacado no primeiro capítulo, os marcadores se referem aos elementos que fazem parte da

estrutura de uma narrativa e lhe dão sentido quais sejam: expressão de abertura e fechamento ou seqüência temporal que marcam os fatos de um enredo ligados ao tempo cronológico e psicológico (Era uma vez, Foram felizes para sempre...), elementos gramaticais - pronomes, advérbios, numerais e verbos - que conferem coesão ao texto, além é claro da presença de um narrador que é o elemento estruturador da narrativa.

154

Assim, concluímos que Tainara encontra-se construindo, paulatinamente, noções

sobre essa linguagem narrativa e, gradualmente, procura incorporá-las em sua

própria narrativa; parece perceber que se encontra diante de uma narrativa de ficção

e sente prazer em narrá-la.

Desse ponto de vista, torna-se evidente que Tainara reflete um desenvolvimento em

sua narrativa, quando amplia o ato de contar, trazendo alguns detalhes advindos da

sua realidade e que vão tornando sua narrativa mais rica e interessante. As

expressões faciais e gestuais de Tainara, suas nuances de vozes, o prazer em

contar histórias, são expressões de sua subjetividade que a tornam uma narradora /

autora participante da narrativa de ficção, à medida que estabelece um diálogo

interno com a obra que lhe narraram; acrescentando-lhe detalhes e criando relações

dialógicas, com outras crianças e a pesquisadora à medida que produz sua própria

narrativa. Apontando a presença de produção a nível do imaginário os dados

indicam que, por volta dos três anos de idade, a criança já é capaz de perceber a

ficção antes dos cinco anos.

Antes de analisarmos o último tópico – a narrativa de ficção e a mediação - faremos

uma breve reflexão a respeito do medo com um dos aspectos de maior incidência ao

longo das manifestações das crianças que interferiram no desenvolvimento da

narrativa.

4.1.3 Medo e Desenvolvimento da Narrativa de Ficção na Criança

Pequena

MEDO é uma palavra que arrepia o corpo, arregala os olhos ergue os fios do cabelo, bate queixos e dentes, bambeia as pernas e molha as calças. MEDO é uma palavra que tem a cara fria da morte, olhos de mula-sem-cabeça transparência de fantasmas e corpo de alma do outro mundo.

Carvalho e Lins

A temática do medo não poderia deixar de ser abordada, ainda que minimamente,

neste trabalho, uma vez que ela permeou a maioria das ações e falas das crianças.

155

Foi possível observarmos o emergir do medo nas crianças do BERÇÁRIO II,

expresso em suas manifestações verbais e não verbais, bem como nas primeiras

tentativas de narrativa de ficção. Em situações de brincadeiras, notamos que elas

utilizavam linguagem, brinquedos, objetos que estavam disponíveis ao seu redor, no

aqui/agora, para externalizarem seus sentimentos e emoções.

Em situações de reconto nos quais permeava a linguagem da narrativa de ficção, o

medo real e imaginário também se fazia presente tanto nas falas quanto nas ações:

“o bicho vai te pegar”, “tô com medo”. No entanto, o que poderia ser visto como um

processo negativo ao desenvolvimento infantil e gerador de conflitos foi se revelando

como algo propício à investigação. Em situações de jogos e brincadeiras em que as

crianças corriam do fantoche que representava o lobo mau, faziam barulhos

assustadores com a boca, modificavam a expressão facial, na verdade, estavam,

além de elaborar sentimento e emoções ligados ao medo, ampliando sua linguagem

e narrativa, externalizando o real através do simbólico, procurando entender o

cotidiano da vida.

São muitos os autores que analisam o medo tendo como referência a Psicologia e a

Psicanálise. O ponto de concordância entre elas é o fato de reconhecerem que o

medo faz parte do processo de aprendizagem humana, não podendo ser ignorado

ou supervalorizado. Lovecraft (apud Prieto, 2002, p.315) nos diz que “a emoção

mais forte e mais antiga do homem é o medo, e a espécie mais forte e antiga do

medo é o medo do desconhecido [...]”. Prieto (2002), afirma que o medo nos

acompanha ao longo da vida e vai adquirindo novas dimensões e características.

“Nossos monstros de hoje estão baseados em arquétipos antigos, mas mudaram de

forma e até de endereço. Temos, por exemplo, os alienígenas e até os psicopatas,

bem verdadeiros, que passeiam pelas cidades ferindo ou matando” (PRIETO, 2002,

p.318). Diante disso, nossa intenção foi trabalhar o medo com as crianças, por meio

da linguagem de ficção das histórias narradas. Dentro da literatura infantil existem

muitas histórias que trabalham esse aspecto na linguagem infantil. No caso desta

pesquisa, nosso tempo disponível só nos permitiu analisar as narrativas das

crianças sobre esse aspecto através das histórias “Chapeuzinho Vermelho”, “Os

Três Porquinhos”, “Bruxa Não” e “De Fora da Arca”.

O estudo sobre “Afeto, emoção e linguagem na brincadeira da criança” desenvolvido

156

por Fraga e Oliveira (2002) apresenta elementos para compreendermos as

manifestações das crianças diante de histórias de “medo” e distinguirmos suas

ações e reações, desencadeadas no processo de desenvolvimento da imaginação.

Pesquisando outros autores que abordam tal temática, essas autoras nos trazem

algumas características que definem o medo, de modo a nos fazer entender o

aumento das alterações e reações que ocorrem no organismo humano como suor,

batimento cardíaco, tremores e outros, diante de certas situações que

desencadeiam o medo.

O indivíduo com medo apresenta-se totalmente incapaz de reagir às excitações, entregando-se à sua própria sensibilidade, sem apresentar uma atitude que assegure a continuidade de sua atividade. O medo nasce da incapacidade de reagir e da ausência de controle das atitudes (ALMEIDA, apud OLIVEIRA & FRAGA, 2002, p.5).

A partir dessa definição de medo, passamos a entendê-lo como uma representação

“real” que pode, a princípio, se manifestar em algumas crianças como no caso de

Daniel e Tânia que se recusam a ver e ouvir a história; mas esse medo também

pode se tornar um “medo fictício”, ou seja, as crianças podem não sentir medo, mas

fazer de conta que estão com medo. Ao caracterizar esse tipo de manifestação de

medo, o qual o denominamos de “medo irreal”, as autoras destacam o fato das

“ações das crianças assumirem uma forma exagerada, quase caricaturada”

(OLIVEIRA e FRAGA, 2002, p.5). Neste caso, as crianças tendem a correr, gritar e

abraçar o outro, fazendo de conta que estão com medo, como foi o caso da maioria

das crianças que assistiram ao vídeo dos “Três Porquinhos”. Em suas reações às

cenas que foram se desenrolando no decorrer do vídeo, foi possível identificar que

as manifestações apresentadas pelas crianças, conforme Oliveira e Fraga (2002,

p.5) abordaram, “não surgem do medo real, mas sim de uma situação imaginária”.

É também no contexto das narrativas de ficção, através de uma situação imaginária,

que, segundo essa abordagem, as crianças aprendem a lidar com situações que

representam algum tipo de ameaça para seu universo imaginário ou real, trazendo

novos sentidos na externalização dos seus sentimentos e emoções. De acordo com

essas autoras:

O domínio de uma situação que provoca medo, ainda que no plano imaginário, aponta para outras possibilidades de relação com o objeto do medo e com o próprio medo. Produz certo tipo de satisfação, de bem-estar. Novos sentimentos emergem. O temor pode se deslocar para outros

157

objetos, outros seres, outras situações. Pode diminuir. Pode desaparecer (OLIVEIRA & FRAGA, 2002, p.8).

Nesse sentido, as narrativas de ficção assumidas pelas crianças no contexto das

suas brincadeiras muito contribuíram para que esse tipo de manifestação (o medo

real) fosse aos poucos diminuindo, dando lugar às manifestações criativas da

imaginação, uma vez que elas (as narrativas de ficção) permitem às crianças,

colocarem-se no lugar dos personagens, representando as ações que expressam

seus sentimentos, temores, bravuras... Assim, quando estão brincando, as crianças

vivenciam situações do plano imaginário que lhes possibilitam lidar com diversas

situações dramáticas vivenciadas por elas no plano real. Isso porque, como as

próprias autoras afirmaram, diferentemente da vida real, o faz-de-conta pode parar

quando a criança assim o desejar. Assim:

Brincar com situações que podem causar medo parece possibilitar à criança um novo tipo de relação com o próprio medo e com o objeto do medo. Novos sentidos são agregados àqueles que ela já possui a respeito de um objeto, uma situação ou um determinado ser - fruto de fantasia ou pertencente ao mundo real (OLIVEIRA & FRAGA, 2002, p.8).

A maior contribuição desse estudo se faz no sentido de ver com outros olhos a

questão do medo e não mais como algo apenas negativo que se deve evitar no

período da infância, adiando para outro momento, possivelmente quando a criança

já tenha “amadurecimento suficiente para entender as coisas”. O medo acompanha

os seres humanos desde a infância. Esse e outros estudos aqui apontados nos

levam a concluir que o fato de a criança pequena ainda não possuir condições

emocionais para enfrentar o medo, não é razão para não trabalhá-lo. Ao contrário, é

necessário avaliá-lo, levando em conta os aspectos culturais que permeiam a

infância, como a postura da família, da escola e da mídia. Atualmente, a cultura tem

disseminado a idéia de que o homem não precisa temer nada, que ele pode tudo.

Tal como o jovem da história dos irmãos Grimm1415, que se tornou um homem infeliz,

por não ter conhecido esse sentimento, o homem contemporâneo não tem sido

muito feliz. Por não conseguir externalizar, processar ou dominar seus sentimentos

acaba por canalizá-los para ações contra a natureza que na verdade, se voltam

14 Trata-se de um jovem que nada temia neste mundo; nem a escuridão, nem espíritos e fantasmas, tampouco os maiores perigos. Por causa de seu destemor, até conquista uma princesa e se torna rei. Mesmo assim, não se sentia feliz, pois não conhecia a sensação do arrepio. Foi preciso que sua esposa o instigasse a descobrir, no plano imaginário, o prazer que tal sensação evocava.

158

contra ele mesmo.

Portanto, sentir medo pode ser algo saudável quando passa a ter significado de

proteção ou precaução, ou seja, quando serve para nos alertar dos perigos comuns

(atravessar a rua, estar em locais muito alto, distanciar-se dos locais rasos na

praia...) mas, em contrapartida, pode ser prejudicial quando se torna excessivo, pois

pode paralisar as ações que permitem ao homem buscar soluções e avançar diante

de perigos que podem ser superados. Para que o medo não se instale de forma

negativa na infância e ganhe dimensões patológicas (síndromes, pânicos) na vida

adulta, é necessário a mediação de um adulto que lhe inspire segurança.

De fato, após várias recorrências das mesmas narrativas que suscitavam a

manifestação do “medo” no contexto do imaginário, foi possível presenciar a

evolução gradativa dessa manifestação na criança, a partir do momento em que ela

assumiu o papel dos personagens; ora assustando os outros (papel de lobo), ora

fingindo-se assustada (papel dos três porquinhos), e também, quando se colocou

em contato direto com o objeto do medo estabelecendo com ele, uma íntima relação

de diálogo.

Diatkine (1993) é outro autor que também auxilia a compreendermos essa complexa

relação da criança com o medo. Ele considera que a tradição oral do adulto em

narrar histórias às crianças em torno do medo, não constitui nenhum dano

psicológico para elas; ao contrário, personagens como lobo mau, bicho-papão, boi

da cara preta... ajudam as crianças a se tornarem adultos mais seguros, que sabem

lidar com os temas mais angustiantes da humanidade: a origem da vida, a morte, o

abandono, a perda dos pais... enfim, com os medos do cotidiano. Para Diatkine

(1993):

A criança sabe distinguir muito bem a linguagem do cotidiano da linguagem das narrativas. Ouvindo histórias, ela cria um espaço em sua cabeça para um mundo mágico fabuloso. Ela aprende a reagir a situações desagradáveis e a resolver os seus conflitos pessoais (DIATKINE, 1993, p.9).

Desse modo, o autor, em entrevista acima citada, afirma que “Ensinar a criança a

controlar seus medos e emoções através dos contos é protegê-la. A entonação

tranqüila da voz que narra faz do suspense um imenso prazer” (DIATKINE, 1993,

p.9). Portanto, a educação do imaginário de uma criança, passa pelos clássicos

159

infantis, pelos acalantos como boi da cara preta, cuca e outros e também, por

algumas literaturas modernas narrados pela voz de alguém que lhe inspire

confiança. Todas essas formas narrativas, pela sua linguagem poética, pela

sonoridade de suas palavras, possibilitam à criança projetar nos temidos

personagens, seus medos mais comuns.

Em consonância com essa idéia, Held (1980) também concorda que, embora

histórias como a do lobo mau, mula-sem-cabeça, bicho-papão e outras desse tipo

sejam assustadoras, elas não devem ser proibidas ou censuradas, pois, com o

tempo, elas se tornarão prazerosas e despertarão na criança, o “falso medo para

brincar” (HELD, 1980, p.91). A autora também afirma que esse tipo de narrativa não

causa mal à psique da criança; ao contrário, enriquece o seu imaginário, pois, caso

contrário, muitas brincadeiras que encantam as crianças tipo as das avós que

“fazem medo” à criança causar-lhe-iam trauma; no entanto, ao que tudo indica,

essas histórias, dependendo dos narradores e da forma em que são narradas,

podem auxiliar as crianças a lidar com algumas de suas emoções.

Rodari (1982) também se enquadra entre os teóricos favoráveis à introdução desse

tipo de narrativa no desenvolvimento da criança. Esse autor acredita que tais

narrativas “constroem as estruturas mentais para estabelecer relações como eu/os

outros, eu/as coisas, coisas verdadeiras/coisas inventadas, perto/longe e no tempo”

(RODARI, 1982, p.116). Talvez seja essa a razão, segundo o autor, que as crianças

ao invés de evitá-las, por lhes causarem medo, solicitam aos adultos a repetição

dessas mesmas narrativas.

Held (1980) nos lembra que uma narração considerada realista, ou seja,

completamente objetiva, sem afetividade e subjetividade emocional, não nos

atingiria. Concordamos com essa sua posição, pois acreditamos que esse tipo de

narrativa seria demasiadamente enfadonha, superficial, empobrecedora tanto para

quem conta, quanto para quem ouve, porque não haveria nela, poesia, sonhos,

prazer.

Dessa forma, retomamos as palavras de Held (1980, p.99) que nos diz: “Auxiliar a

criança a crescer jamais quis dizer preservá-la de qualquer choque, nem pô-la ao

abrigo de tal ou tal forma do real, mesmo que seja real elaborado pelo espírito

160

humano”; ao contrário, complementa a autora, significa “facilitar” essa abordagem do

imaginário, dosando-a “de certas realidades, de certos problemas, tentar torná-la

progressiva, proporcional às forças, à resistência de uma criança”. Para isso, ela

defende uma forma de iniciação da criança, desde a infância, ao fantástico porque,

nas palavras dessa autora, é esse o papel que preenche o conto, no plano da

linguagem, quer seja antigo ou moderno. Afinal, não teríamos nós, enquanto

educadores, o mesmo papel da rainha da história dos irmãos Grimm, a

desempenhar junto às crianças? Ou seja, despertar a vontade de nos aventurar nas

histórias de ficção, com todas as possibilidades que elas têm a nos oferecer (medo,

alegria, tristeza...).

4.1.4 A Narrativa de Ficção e a Mediação Pedagógica

Como vimos, a narrativa de ficção costuma povoar nossa mente com seres

fantásticos, criando um imaginário que nem sempre conseguimos enfrentar sem

uma preparação adequada e o apoio de alguém que nos dê segurança. Assim,

quanto mais desconhecido esse mundo imaginário, mais medo sentimos,

conseqüentemente, mais do outro precisamos.

Isso implica dizer que a instituição escolar, sobretudo na modalidade em que presta

atendimento às crianças de zero a seis anos, não pode prescindir da base criativa

que sustenta o imaginário infantil em seus currículos formais, tendo em visto os

trabalhos de mediação pedagógica.

Rego (1995) vem aprofundando o conceito de mediação destacando que:

O desenvolvimento do psiquismo humano é sempre mediado pelo outro, que indica, delimita e atribui significados à realidade. Por intermédio dessas mediações, os membros imaturos vão pouco a pouco se apropriando dos modos de funcionamento psicológico, do comportamento e da cultura, enfim, do patrimônio da história da humanidade e de seu grupo cultural (REGO, 1995, p.61).

Na revisão de literatura, vimos como essa e outras idéias vigotskianas impregnaram

os trabalhos de diversos autores dentro da abordagem histórico-cultural aqui

161

apresentado e observamos também, como todos foram unânimes em destacar a

importância da mediação para o desenvolvimento da narrativa.

A pesquisa recentemente desenvolvida por Takemoto (2005), considera como

mediadores do processo de aprendizagem - no qual a criança adquire a linguagem

para constituir seu discurso narrativo - tanto a estrutura das narrativas dos contos,

quanto a pessoa do narrador. “Ambos, conto e contador são referenciais que

permitem à criança um processo dinâmico de construção de seu próprio discurso”

(TAKEMOTO, 2005, p.71). Para que possamos compreender a atuação simultânea

e igualmente importante desses dois mediadores, a autora aconselha-nos recorrer a

“um dos conceitos basilares da teoria vigotskiniana que é o conceito de ZDP”

(TAKEMOTO, 2005, p. 66), assinalando que:

Os Contos de Fadas podem ser consideradas atividades mediadoras que atuam na ZDP devido ao auxílio que prestam às crianças em fase de aquisição de linguagem, através do modelo da língua, da presença do interlocutor e do incentivo à superação das suas dificuldades... A criança entra no contexto da história e, ao mesmo tempo se desliga das pressões do mundo real, tem nos Contos de Fadas o fio condutor que lhe orienta sobre o funcionamento da realidade e lhe prepara para lidar com as questões de difícil compreensão até aquele momento. Esta situação estabelece uma rica ZDP (TAKEMOTO, 2005, p.70-71).

Rocha (2000) amplia essa discussão ao destacar o conceito de mediação social e

mediação pedagógica. A primeira, como já foi explicitada, busca compreender como

o outro afeta a constituição do sujeito no seu processo de desenvolvimento, sendo

assim, os dois processos pelos quais ela opera são: através da atividade conjunta

com o objeto e a comunicação através da linguagem.

Da mesma forma que Takemoto (2005), Rocha (2000) também organiza suas idéias

em torno do conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal para falar sobre o

conceito de mediação social. “Falar sobre este conceito é, então, também falar sobre

internalização, mediação social e semiótica, desenvolvimento” (ROCHA, 2000, p.39),

argumenta a autora.

A atividade da criança na zona de desenvolvimento proximal é uma atividade complementada pelo adulto ou pelo companheiro mais competente, que lhe empresta (ou de quem ela toma emprestado) os instrumentos que já possui (materiais e psíquicos (ROCHA, 2000, p.41).

Porém, é dentro do contexto da ZDP que, segundo Rocha (2000), se situa o

162

conceito de mediação pedagógica - indicado pela matriz histórico-cultural como uma

das instâncias fundamentais para o desenvolvimento, pela sua capacidade de

produzir alterações na atividade mental.

O conceito de mediação pedagógica surge como contraponto ao que se chama mediações cotidianas e diferencia-se destas, basicamente por duas características específicas: a intencionalidade e a sistematicidade (ROCHA, 2000, p.42).

Nesse sentido, o professor é o sujeito especialmente capacitado para produzir, de

forma intencional, mudanças no processo de elaboração conceitual cotidiana do

aluno deslocando-o para níveis mentais de abstração cada vez mais complexos.

Essas idéias encontram-se em harmonia com as de Held (1980). Em resposta às

preocupações de alguns educadores de sua época que vinham assistindo à

imaginação infantil sendo estancada por atividades pedagógicas demasiadamente

racionalistas, Held é bem específica ao afirmar que a mente infantil não poderia ser

condicionada a processos de ensino e aprendizagem que primassem somente pelos

fatos reais, pois, “o imaginário é o motor do real” (HELD, 1980, p.18); e mais: “toda

literatura é fantástica, pois o real nos atinge já penetrado de sonho” (p.30); e ainda,

“A leitura do real passa pelo imaginário” (HELD, 1980, p.17). Desse modo, a poesia,

os contos, os desenhos, as músicas, as expressões corporais, seriam a “descoberta

dos diversos caminhos do imaginário na pessoa” (HELD, 1980, p.17). Nesse sentido,

ela propõe em sua obra “O Imaginário no Poder: as crianças e a literatura infantil”,

que se trabalhe com o aluno por inteiro; com sua afetividade, cognição, percepção,

enfim, com todas as linguagens, para que ele possa assim, ampliar sua visão de

mundo. Dizia ela, “A imaginação - como a inteligência ou a sensibilidade - cultiva-se

ou atrofia-se” (HELD, 1980, p.14).

Sua proposta revolucionária, para aquela época, exigia um profissional bastante

qualificado para dar conta de todos aqueles desafios. Sabia muito bem a autora que

é na infância que se estabelece o mecanismo do imaginário, pelas mãos de um

mediador que fosse no mínimo também criativo:

O que é o contador, quer se trate da história oral, quer da escrita, senão aquele que não deve se esquecer de sua infância, que recusa a esquecê-la e deixar-se “normalizar” completamente? Aquele que, por isso mesmo, se torna cúmplice da criança, que a auxilia a prolongar sua brincadeira, a

163

construí-la, a enriquecê-la, que a faz passar da brincadeira de símbolo comum para o que já toma forma de criação (HELD, 1980, p.221).

Ciente da influência que o mediador (social e/ou pedagógico) exerce sobre o outro,

Held assinala que: “a criança, por muitas razões, torna-se aquilo que fazemos dela,

evolui em função do alimento que lhe propomos” (HELD, 1980, p.229). Em razão

disso, dedicou-se ao estudo e à pesquisa de uma literatura que instigasse o

imaginário na criança.

A confusão que tende a dar à literatura papel pedagógico elementar, em vez de fazer dela essa grande educadora indireta que é, essa confusão não é apenas perigosa para a literatura: permite também utilizar a literatura para a desfiguração dos fatos e para a imposição da utopia, os desejos dados para a realidade (HELD, 1980, p.18).

Torna-se evidente que, para a autora, as produções literárias, os livros, são

importantes mediadores uma vez que eles, indiretamente, também educam. São

suas próprias palavras que expressam a grandeza dessa mediação:

O livro é um segundo caminho, como o sonho, mas é sonho que dura, pois, sendo legível, tem o poder de se repetir. Ao me representar eu me crio, ao me criar eu me repito. Donde a evidência de que a imaginação é tanto o instrumento da criação quanto da experiência interior, donde a necessidade de reconhecer que o imaginário é o motor do real, o que o movimenta (HELD, 1980, p.18).

Mas, claro também está que o papel de mediador primário deve ser assumido por

educadores e familiares, pois, são eles, os responsáveis pelo critério e escolha da

literatura que irá despertar ou atrofiar a mente infantil. “A imaginação, como a

inteligência ou a sensibilidade, cultiva-se ou se atrofia” (HELD, 1980, p.14). Desse

modo a autora indica “Histórias em que o sonho se mistura, muito naturalmente, com

o real, como o que acontece na imaginação da criança” (HELD, 1980, p.18).

É disso que trataremos nos episódios que compõem esse ítem: de como a ação

mediadora dos outros e pela literatura infantil ajudam a desbravar esse campo da

narrativa na criança.

Para iniciarmos as análises referentes a esse tópico, trouxemos uma das atividades

que planejamos para começar nosso projeto de contação de histórias: convidar uma

contadora de histórias, que além de narrar e de se caracterizar durante a contação

com fantasias, ia estabelecendo uma interação entre as crianças e as histórias

164

narradas utilizando outros recursos além da voz que são muito apreciados pelas

crianças como: fantoches, dedoches, imagens... Neste dia, as crianças não se

intimidaram com a presença de uma contadora de histórias na turma do BERÇÁRIO

II, ao contrário, algumas disputavam entre si o aconchego do colo ou um lugar mais

próximo possível da contadora.

Após uma sessão de histórias, Tainara (2 anos e 1 mês) se aproxima da contadora

com sua chupeta e com um livro na mão, retirado de sua própria mochila. Retira a

chupeta da boca e diz:

Tainara: Esse aqui ó, esse aqui.

Contadora: Conta!

Tainara: Ó, o chapéu da buuxa (fala com bastante ênfase esta última palavra)

Contadora: Cadê?

Tainara: aí, aí, aí... (aponta para a figura do Lobo): “Esse aqui, ó...”

Contadora: É o quê?

Tainara: É o bicho!!! (arregala bem os olhos)

Contadora: Ééé? Tinha bicho nessa história? (Tainara com os olhos arregalados

balança a cabeça afirmativamente).

Contadora: Conta a história, quero ouvir!!!

Tainara: Ela uma vez, o bicho pegá ocê. AÍ ele falou assim: Vou pegar aquela

cliança (eleva as mãos em forma de garras, dá bastante entonação à fala e muda a

expressão do rosto: franze a testa e mostra os dentes).

Contadora: Ééé? Por quê?

Tainara: Porque é o Lobo Mau e vai vi a essa queche (fala quase sussurrando)

Contadora: (fingindo estar assustada) O Lobo vai vir nessa creche? Quem falou

isso? A história? Tá escrito isso aí?

Tainara olha por alguns instantes séria para a contadora, depois se levanta

subitamente, aponta para a porta e, pulando no mesmo lugar, diz bem alto: “A lá, a

lá...e sai correndo dando risadas. (16/05/05).

Neste episódio, constatamos o que Sawaya havia observado e dito em sua

pesquisa: “As crianças fazem do interlocutor depositário de suas angústias, temores,

enfim, de suas experiências” (SAWAYA, 1992, p.45). No nosso caso, como muitas

dessas crianças não conseguiam expressar verbalmente essa necessidade de

atenção, entendemos que, um dos possíveis meios que elas utilizavam eram as

ações corporais que na maioria das vezes são interpretadas como desvio de

165

conduta comportamental (empurrar, bater, chorar, gritar).

Nesse primeiro contato, a única criança que se dispôs a contar espontaneamente

uma história foi Tainara. As demais se interessaram pelos recursos que a Contadora

trazia em sua caixinha contentando-se em manipulá-los livremente. Volta e meia a

Contadora interferia, no sentido de apaziguar os conflitos que surgiam entre as

crianças.

Podemos observar que a narrativa inicial realizada por Tainara ainda não se

encontra bem estruturada, conforme o modelo da literatura infantil exige, mas ela era

a única criança da sala a empregar a expressão “Era uma vez” para marcar o início

de uma história. O que nos leva a crer que apesar da pouca idade Tainara, pela sua

história de vida familiar cercada de estímulos, consegue perceber e distinguir a

linguagem de uma narrativa de ficção e a linguagem cotidiana. A atenção da

Contadora voltada para Tainara - sua postura de insistência estimulando-a a contar

sua história e também sua postura indagadora sobre cada enunciado de Tainara,

fazendo com que a história tivesse seqüência e ganhasse sentido - serve de

estímulo para que a menina inicie a narrativa com a palavra mágica de abertura “Era

uma vez” que tão bem caracteriza uma narrativa de ficção.

Assim, Tainara, uma menina inicialmente considerada tímida, apegada aos seus

dois objetos de apoio - chupeta e mochila - e que ficava quieta no seu canto apenas

ouvindo, pôde entrar em contato com alguém que a ouvisse e se interessasse por

sua história na sala, desencadeando também o gosto por narrar histórias.

Consideramos que esse tipo de mediação, aparentemente simples, dá à criança a

oportunidade de elaborar seu pensamento; no caso da menina Tainara, pode ter

contribuído para que, no CMEI, ela também se tornasse uma narradora como,

segundo os pais afirmavam, costumava ser em casa. Daí podemos concluir que a

contadora de histórias contribuiu com o trabalho de mediação, fundamental ao

desenvolvimento do pensamento, que teve continuidade pelas demais professoras e

pesquisadora, resultando no desempenho e avanço lingüístico dessa criança, como

pudemos acompanhar ao longo da pesquisa.

Nesse trecho vemos a questão do dialogismo apontado por Bakhtin sendo delineado

pela interação da mediadora e Tainara, demonstrando que o sujeito vai

166

desenvolvendo sua narrativa através das palavras e gestos dos outros. Algumas de

suas palavras, entonação e gestos, foram, antes, da contadora. Expressões verbais

com: “éla uma vez”; expressões faciais como arregalar bem os olhos, ao dizer “é o

bicho”; gestos de elevar as mãos em forma de garra, ao narrar a fala do lobo mau

fizeram a parte do processo de contação de histórias apresentadas, antes, pela

contadora, pelas professoras, pela pesquisadora e pelos pais de Tainara.

No próximo episódio analisaremos a narrativa de ficção das crianças destacando

outros elementos que contribuem para as crianças avançarem no desenvolvimento

da narrativa.

Planejamos, nessa atividade, trazer para a sala de aula um baú de fantasias de

bichos e deixar as crianças manusearem à vontade as fantasias, após certo

suspense. Algumas pediam nossa ajuda para vesti-las. Uma boa parte das

crianças, já fantasiadas, corria para debaixo da mesa.

Pesq: O que vocês estão fazendo aí escondidos?

As crianças gritam se apertam e apontam para uma das crianças fantasiadas: “aí,

aí, aí...” (algumas diziam ser o Lobo).

Pesq: Cadê ele?

Tainara (2 anos e 1 mês): tá ali (aponta para uma criança fantasiada de macaco).

Pesq: Vocês estão com medo dele?

Tainara: Eu tô. (fala rindo ai, ai, ai, ai...).

Mais algumas crianças vão para debaixo da mesa. Algumas choram.

Paulo (2 anos e 8 meses): É o Lobo, tia? É o Lobo? (pergunta com voz de choro)

Uma das professoras afasta a criança fantasiada. A pesquisadora entra debaixo da

mesa e pergunta: “Ele já foi embora?”

Luara (3 anos e 3 meses): Ele tá alí (aponta e chama) Lobo mauuu!!!

A pesquisadora sai e pergunta: Será que ele vai voltar? (A criança fantasiada se

aproxima e todos correm para debaixo da mesa)

Paulo: Vou socá ele.

A criança fantasiada retorna e a brincadeira recomeça desta vez, com a

participação da pesquisadora. (24/05/05).

O trabalho de mediação realizado aqui, pela pesquisadora, permitiu que se

estabelecesse com as crianças uma situação favorável à brincadeira de faz-de-conta

muito oportuna para afugentar o “medo real”, no qual já comentamos anteriormente,

167

comum a muitas crianças dessa faixa etária, à medida que participava da

brincadeira assumindo o papel de quem estava assustada.

Paulo (2 anos e 8 meses) era uma criança que quase sempre trazia um brinquedo

para a sala de aula, apesar de não ser permitido pela escola. Mesmo que isso

acabasse acarretando conflitos, as professoras acabavam permitindo essa prática,

primeiro porque, segundo elas, não adiantava falar; e depois, porque a escola

carecia de brinquedos. No início, Paulo não se separava do seu brinquedo

(geralmente, um daqueles bonecos dos desenhos animados que apresentam

poderes) e não o compartilhava com ninguém. Depois, ele foi ficando um pouco

mais maleável, graças a um trabalho que as próprias professoras fizeram, o qual

não participamos, pois foi logo no início do ano quando instituiu-se no CMEI, “o dia

do brinquedo”. Com o tempo, Paulo foi substituindo os objetos e se caracterizando

como o próprio super herói. Era comum ele aparecer com a camisa do Homem

Aranha - o seu preferido - e se dizer o próprio. Suas brincadeiras eram sempre as de

combater o mal e as vítimas eram as crianças mais quietas da sala. No entanto,

quando se deparava com alguém que o enfrentasse ou tomasse as dores da outra

criança, ele quase sempre acabava chorando. No final do episódio acima, quando

ele se manifesta dizendo “Vou socá ele”, pudemos perceber que ele se mostrou

valente, corajoso, somente quando sente que o perigo se afasta, ou quando um

adulto está próximo dele.

Com base nas discussões de Vigotski (1987) sobre o brincar, podemos afirmar que

o brincar junto com a criança é fundamental para a elaboração de jogos imaginários,

porque permite à criança adentrar no mundo da fantasia, retirando os elementos

essenciais das experiências que colhe da realidade. A participação de um adulto nas

brincadeiras ensina, encoraja e estimula a própria criança criar situações fictícias. A

entrada da pesquisadora no jogo iniciado pelas crianças incentiva a continuidade da

brincadeira e cria condições favoráveis ao avanço das crianças não só no que se

refere ao imaginário, mas também à narrativa de ficção.

Nesse sentido, podemos afirmar que a mediação pedagógica consiste, entre outras

coisas, planejar atividades que promovam brincadeiras, pensando nos objetos

(brinquedos) que servirão de apoio para sustentar o imaginário e brincar junto. Ou

seja, criar ações significativas para a criança e essenciais para o seu

168

desenvolvimento.

O episódio seguinte amplia, em termos de qualidade, o trabalho de mediação

quando introduz outro elemento significativo para o desenvolvimento da narrativa de

ficção na criança.

No dia 08/08/2005, havíamos programado contar a história “A Festa no Céu” para as

crianças com o intuito de despertá-las para o desejo de sentar, ouvir, apreciar e

também contar histórias. A professora, à medida que narrava a história, do seu jeito,

ia apresentando, demoradamente, as figuras do livro às crianças. Ao apontar para a

figura da tartaruga caída ao chão com o casco quebrado, a professora perguntou:

Profª.: Quem foi que a consertou a tartaruguinha?

Jonas: (2 anos e oito meses), prontamente levanta a mão e responde com

bastante convicção: “Meu pai”. A professora continua:

Profª.: “Aí, o pai de Jonas, consertou a tartaruguinha...”. Diante do sorriso e do

olhar de Jonas, a professora obteve a resposta necessária para a narrativa, desta

vez, incluindo as crianças na história, que por sinal, divertiram muito. (08/08/2005)

Nessas circunstâncias, podemos ressaltar a importância da mediação para o

processo de abertura e desenvolvimento da imaginação na criança, pois, uma

simples palavra da professora deu um significado especial para aquelas crianças,

permitindo-lhes iniciarem, naquele momento, um jogo imaginário. A partir daí, outros

desdobramentos ocorreram.

Aqui, nota-se que a mediação da professora ocorreu no sentido de estabelecer uma

relação afetiva bastante positiva com Jonas e as demais crianças, quando ela entra

no “jogo do faz-de-conta” e inclui o pai da criança na história: “Aí, o pai de Jonas,

consertou a tartaruga”. A narrativa tornou-se mais rica e interessante para as

crianças à medida que a professora resolveu inovar, criar, trazendo elementos

significativos para as crianças na história.

O desenvolvimento da história parecia tranqüilo, até o momento em que uma criança

introduziu um elemento imprevisto que parecia estranho para nós, mas foi

extremamente familiar para Jonas: seu pai - que acabou se tornando o herói da

169

história.

Segundo Held (1980):

Essa passagem para o fantástico a partir da vida de todos os dias, a partir de um universo simples, comum, normal... é, talvez, a maneira mais delicada de conduzir e de controlar se se quer que se opere sem quebra, sem impressão de artificial, se se quer que o leitor entre nesse universo novo sem problema, insensivelmente, quase sem aperceber-se (HELD, 1980, p.66).

Held (1980) nos explica que há casos em que essa “intrusão”, é claramente

envolvente e em outros, não. Isto porque: “o fantástico é feito de atmosfera, e o

momento em que se deixa o ‘real’, no sentido estrito e usual do termo, nem sempre

é fácil de ser fixado com precisão” (HELD, 1980, p.67). De acordo com a autora, a

criança, “para quem real e imaginário se tocam muito de perto, se interpenetram”,

considera essa sua atitude de introduzir elementos de seu mundo real, cotidiano,

como um processo normal.

Desse modo, não deveríamos nos surpreender ao nos depararmos com a introdução

de “elementos extraordinários” ou seres fantásticos nas produções infantis. Ao

contrário, as inquietudes das crianças deveriam encontrar, em nós, os estímulos

necessários (como Jonas encontrou na professora) para que pudessem ser

fecundadas como “fonte de reflexão”. No entanto, como nos assegura Held (1980,

p.73) “suas inquietações não cessa de encontrar ecos em nós”.

Portanto, a atuação da professora (sem censura, repreensão, reprovação) fez-se

essencial para que a criança pudesse “alimentar sua imaginação” (Held, 1980, p.46).

Outro “alimento” que pode contribuir para o desenvolvimento do imaginário infantil,

de acordo com Held, seria a ficção literária: “o alimento que constitui para a criança

o conto proposto pelo adulto poderá, em certos casos, servir-lhe de ponto de partida

e auxiliá-la a construir normas-variantes a partir da criação adulta” (HELD, 1980,

p.53).

Nesse caso, podemos afirmar que, particularmente, a história “A Festa no Céu”

constitui-se também como elemento mediador favorável à construção da

imaginação, por conter elementos que perpassam o mundo real e se manifestam de

várias formas no plano imaginário: a trama é constituída por temas comuns que

170

retratam a realidade - festa, etiqueta social, punição, crueldade, solidariedade -

misturados a elementos irracionais - animais que falam, elefante que voa, animal

que ressuscita com outra roupagem.

Este episódio, ocorrido em 19/09/05, narra acontecimentos de uma atividade

prevista para acontecer toda segunda-feira, quando as pastas de literatura contendo

livros retornavam à escola, após ficarem no final de semana com a criança.

Segundo Abramovich (1993, p.23), “O ouvir histórias pode estimular o desenhar, o

musicar, o sair, o ficar, o pensar, o teatrar, o imaginar, o brincar, o ver o livro, o

escrever, o querer ouvir de novo (a mesma história, ou outra)”. Isso foi constatado

na atividade que iremos retratar lobo abaixo e com tantas outras que não foram

possíveis de incluir neste trabalho.

Pesq: Você quer desenhar?

Tiago (2 anos e 10 meses): Quero desenhar o lobo mau.

Pesq: É? Você sabe desenhar o lobo mau, então desenha.

Pesq: O lobo mau é assim, bemmm grande (desenha um círculo)

Pesq: Tá faltando o quê?

Tiago: O lobo mau, a boca é assim, ó (desenha um círculo menor dentro do maior

e alguns pontos).

Pesq: Você sabe onde ele mora?

Tiago: Lá na floresta (pega uma canetinha de outra cor e rabisca todo o desenho).

Pesq: Você quer outra folha? (Tiago não responde, pega o fantoche do lobo e

começa a bater na pesquisadora).

Pesq: Ai, ai, ai, socorro Tiago, me salva, o lobo quer me pegar!

Tiago: Toma lobo! (sem muito hesitar Tiago dá um soco no fantoche e o atira

longe)

Pesq: (pega o fantoche da Chapeuzinho e fala): O lobo caiu, viu Chapeuzinho?

Não precisa ficar mais com medo dele. (e a chapeuzinho agradece: Obrigada

Tiago).

Tiago ri à bessa dessa brincadeira. Em outras ocasiões em que foi solicitada essa

atividade com desenhos, Tiago parece repetir a cena desenhada, mas já consegue

acrescentar um fato novo: o lobo sendo capturado e morto.

No episódio apresentado, a ação mediadora da professora no desenvolvimento da

narrativa de ficção da criança se faz em duas direções: primeiro de forma a

171

possibilitar à criança organizar as idéias e planejar a sua ação, no caso desenhar.

Vemos que a fala e o desenho se articulam na narrativa de Tiago sobre o lobo mau.

A criança desenha um lobo “bemmm grande”... sua boca, desenha uma floresta, o

lugar onde fica o lobo. Conforme mencionado no item sobre a narrativa da criança e

o predomínio do real, o desenho é uma linguagem de suma importância no

desenvolvimento do simbolismo infantil. De acordo com Calkins (apud FREITAS,

2001, p.55), “o desenho pode auxiliar a criança nas etapas de ensaio, esboço,

revisão e edição”. Desse modo, o desenho proporciona uma estrutura de apoio para

jovens escritores.

Assim como os outros, o episódio acima nos remete ao conceito de ZDP,

confirmando a idéia, já explicitada, da importância da mediação pedagógica no

sentido de provocar mudanças e avanços significativos no desenvolvimento e

aprendizado da criança, os quais espontaneamente não teriam o mesmo efeito.

Outro aspecto, a ser destacado, é a ação mediadora da pesquisadora no sentido de

permitir uma ampliação das possibilidades de atuação no universo imaginário à

criança, por meio da instauração de uma brincadeira, em que buscou ressignificar as

ações da criança: “Ai, ai, ai, socorro Tiago, me salva, o lobo quer me pegar!” Com

sua fala, a pesquisadora, além de instaurar a brincadeira, convida Tiago a participar

dela. Atendendo prontamente ao convite da pesquisadora, Tiago dá um soco no

fantoche e joga-o longe. Diante dessa ação, a pesquisadora novamente tenta dar

um outro sentido às ações e fala de Tiago: “O lobo caiu, viu Chapeuzinho? Não

precisa ficar mais com medo dele”. Uma nova forma de se relacionar com os

personagens é apontada pela professora, em contraposição àquela estabelecida por

Tiago.

Por fim ressaltamos que, à medida que se oportunizou as crianças a participação de

recontos, desenhos, brincadeiras, ou seja, atividades realizadas por meio da

mediação, intensificou-se a possibilidade de explorar e ampliar a linguagem verbal.

Teríamos tantas outros episódios para relatar, como a do pai de Airton (3 anos e 3

meses) que se ofereceu para contar as histórias que ele lia para o filho, bem como

as histórias que ele inventava toda noite para fazê-lo dormir e as histórias contadas

pelo telefone para que Airton não se ressentisse de sua falta quando precisava ficar

172

dias fora de casa por conta do seu trabalho. Também a história de Lana (2 anos e 7

meses) contada pela boca de sua mãe, que ,muitas vezes, junto às bonecas e

bichos de pelúcia, ela e o marido precisavam sentar-se para que Lana pudesse

começar a sua atividade de contação de histórias. Porém, como já dissemos, não foi

possível contemplar todas essas ricas narrativas. No entanto, consideramos os

resultados satisfatórios.

Das onze crianças, cujas narrativas orais aparecem expressas nos quinze episódios

relatados durante o percurso deste trabalho, avaliamos como pontos positivos o fato

de uma criança (Tainara) conseguir relatar uma narrativa dentro do esquema

estrutural (começo, meio e fim); duas crianças (Davi e Tânia) conseguirem

ultrapassar o plano do real em direção ao mundo da fantasia de forma lúdica,

vencendo o medo e construindo, de forma quase imperceptível, uma narrativa mais

compreensível; e as demais, embora não expressassem na linguagem oral,

manifestaram avanços na linguagem corporal e em determinadas ações.

Outro momento, que consideramos satisfatório ao avaliarmos os resultados das

análises, foram os depoimentos das próprias professoras, que comparados com o

início de nossas atividades naquele local, mudaram totalmente no final do nosso

trabalho de campo. Em seus depoimentos ficou evidente a vontade de dar

continuidade a esse tipo de trabalho para o próximo ano, dentro daquilo que é

possível e para elas, agora, o real, e não mais o ideal, é possível.

173

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse estudo é significativo para problematizar e discutir os aspectos do

desenvolvimento infantil, na medida em que nos ajuda a compreender aspectos do

desenvolvimento da fala e da narrativa na criança, bem como as condições da

educação para a criança pequena.

A escassez de estudos sobre o desenvolvimento infantil, especialmente sobre o

desenvolvimento da linguagem, da narrativa, da imaginação enfocando as

especificidades de diferentes culturas nesse desenvolvimento foi uma das nossas

maiores dificuldades.

Se considerarmos que o desenvolvimento humano se dá por áreas em contínuo

processo de transformação, é comum a criança apresentar, em determinados

momentos, diferentes níveis de desenvolvimento físico e mental. A relação entre

essas diversas áreas do desenvolvimento é complexa e embora tenhamos tido

alguns avanços, sobretudo no que se refere a linguagem escrita, a ênfase dos

estudos e práticas pedagógicas sobre a leitura e a escrita tem constituído lacunas

sobre as áreas que abrangem o sócio-afetivo, o emocional, o cognitivo, o motor, a

linguagem e o pensamento que constituem processos indissociáveis entre

aprendizagem e desenvolvimento.

Outro aspecto a se considerar é o fato de que a criança de hoje aprende mais cedo

e talvez mais rápido, isso porque muitos fatores da modernidade que permeiam o

social, o econômico e o cultural têm influência decisiva na formação do pensamento

e das ações que constituem o sujeito. Portanto, ao se estudar o desenvolvimento da

criança, é preciso levar em conta todos esses aspectos que se inserem na inter-

relação do aprendizado e do desenvolvimento.

Uma contribuição desse estudo se situa no campo do entendimento de que não há

apenas uma única linguagem, pois, como nos ensinou Malaguzzi, a criança se

comunica, se expressa por muitas linguagens. No entanto, o que se verifica é que

esse universo de linguagens ainda representa um desafio para a educação infantil.

Nossa tarefa enquanto educadores é justamente estimular tais linguagens partindo

174

de uma compreensão mais ampla da criança através das manifestações com as

quais elas se comunicam conosco. Talvez assim, estaríamos contribuindo para o

seu desenvolvimento em todos os aspectos.

Quando nos reportamos ao passado, sobretudo o que se refere ao atendimento da

criança de 0 a 6 anos, podemos entender o porquê de muitas questões como as

diversas denominações dos estabelecimentos que atendem essas crianças –

casulos, creches, pupilos, maternais, jardins de infâncias, pré-escolas – bem como

as pessoas destinadas aos cuidados dessas crianças – babás, pupileiras,

recreadoras, educadoras, tias, professoras... – Essas denominações revelam uma

concepção de criança, de infância e educação infantil.

Ao longo da história, alguns têm retratado as mudanças de concepções que a

infância vem sofrendo. Devemos a Áries (1981) o mérito da diferenciação da infância

e da vida adulta ao relatar a história da criança ao longo de determinados períodos

históricos. Segundo esse autor, até a Idade Média não havia sequer um vocabulário

específico para designar a criança que, por sinal, era abandonada à própria sorte.

Esse relato vem confirmar a seguinte citação: “A infância não existe, nós a criamos

como sociedade, como sujeito público” (RINALD, apud MOSS 2002, p.242).

Nesse sentido podemos constatar a existência de muitas infâncias na nossa

sociedade. Particularmente, no Brasil, a situação e o interesse sobre a criança

pequena é recente e teve seu momento de maior atenção a partir do

reconhecimento da Constituição de 1988, da inserção da educação infantil como

direito da criança, opção da família e dever do Estado.

Desde então, a infância vem sendo compreendida, pelo menos em tese, como um

período marcante e importante para a criança. De modo geral o que se pretende é

privilegiar as funções consideradas indissociáveis: cuidar e educar, procurando

respeitar as especificidades e peculiaridades do universo infantil.

Uma segunda contribuição desse estudo é o de ajudar a entender que a efetivação

dos direitos da criança pequena ainda precisam ser garantidos e que não depende

apenas de um esforço pessoal, mas sobretudo coletivo, pois as nossas ações são,

de certa forma, condicionadas por aspectos culturais, políticos, econômicos, por

conseguinte, históricos.

175

O nosso trabalho pretendeu investigar o processo de construção da narrativa da

criança através das suas produções verbais e não-verbais, em diversas situações;

porém dando ênfase aos momentos de conto e reconto das narrativas de ficção. A

partir delas, tomamos, como linha de análise, o percurso da criança para se chegar

ao discurso narrativo. Na tentativa de analisar o percurso criança rumo à narrativa

de ficção, organizamos suas falas, gestões, manifestações expressivas e ações em

três momentos.

Em um primeiro momento, destacamos a produção oral de crianças que se

aproximava das protonarrativas: período que se caracteriza por poucas palavras,

muitas ações físicas e o predomínio marcante no aqui/agora. Nesse momento, a

ação do adulto mediador se intensificou no sentido de ajudar a criança a se libertar

da realidade conceptual ao qual se encontrava e lançá-la para o imaginário.

Constatamos que deram sustentação à passagem da narrativa marcada pelo

predomínio do real para a imaginação criadora, atividades como a narração de

histórias, suas ilustrações, as atividades que elas proporcionaram, os jogos de

brincadeiras e a dinâmica de perguntas e respostas.

No momento seguinte, apontamos a produção oral que indicava uma oscilação entre

uma narrativa marcada pelo predomínio do real e outra caracterizada pela

imaginação criadora. A brincadeira de faz-de-conta revelou-se como um aspecto

interessante no sentido de contribuir para o desenvolvimento do imaginário e,

conseqüentemente, da narrativa de ficção. As crianças deram um passo significativo

em direção ao imaginário à medida que vivenciaram situações em que lhes foi

permitido atuar no plano do faz-de-conta, ouvir, experimentar, recontar e criar. O

resultado revelou um progresso na ampliação das palavras das crianças e uma

participação maior nos eventos, nas atividades propostas e livres.

Por fim, a produção oral, particularmente de uma criança de 3 anos, permitiu enfocar

a culminância desse processo: a narrativa de ficção. Indícios desse tipo de narrativa

foram encontrados na fala de uma menina em situações de conto e reconto de

histórias; embora não tivesse reproduzido a composição da história de maneira

linear, explorando adequadamente a seqüência temporal, foi possível detectar em

sua narrativa, elementos que nos permitem aprofundar a reflexão sobre a narrativa

da criança em vias de desenvolvimento.

176

Em todos esses momentos, a ação mediadora do outro foi fundamental para que a

criança conseguisse avançar em seu discurso narrativo. Contar histórias, estimular a

criança a contar e recontar histórias, lançar perguntas, fazer correções, expandir

informações e promover situações de ações colaborativas entre os pares foram

ações que se mostraram extremamente apropriadas nesse processo.

Vimos que, através de um bom narrador, as histórias estimulam a fantasia, o sonho,

o conhecimento da criança pelo fato de conterem narrativas que mexem com o

sentir e o pensar. Assim, os diálogos e narrativas dos pais, das professoras, da

contadora de história, das próprias crianças permitiram-nos compreender como vão

se construindo o conhecimento e a narrativa, como vão se definindo os papéis,

lugares e valores sociais, por meio dos contos.

Os achados apontam para o fato de que atividades inseridas no plano do imaginário,

quando devidamente mediadas por adultos cientes de seu papel na escolha de

narrativas de qualidade, constituem-se no elemento propiciador para o

desenvolvimento de forma mais elevada da linguagem oral e da narrativa da criança.

Ao atuar no plano imaginário, a criança se beneficia de um ambiente favorável ao

seu faz-de-conta que por sua vez, amplia sua visão de mundo e sua linguagem.

De modo geral, após o trabalho de contação de histórias, que incluíram

pesquisadora e professores da sala, as crianças habituarem-se a sentar e ouvir

histórias, o que antes era feito com muita dificuldade; mostraram-se mais

participantes após a criação de um ambiente temático, ensaiando situações de

reconto de histórias; habituaram-se a pronunciar a expressão “Era uma vez” com

mais freqüência ao entrar em contato com livros de literatura, em situações de conto

de histórias e até mesmo nas narrativas verídicas de suas histórias.

Timidez, agressividade, insegurança, indisciplina... foram algumas dificuldades

amenizadas e superadas após essa experiência. Mesmo diante de um contexto

favorável, um cenário propício à imaginação e à narrativa, as relações nem sempre

são tranqüilas. Na maior parte do tempo elas são marcadas por disputas: disputa

pela palavra, disputa pela atenção, disputa pelo brinquedo, enfim disputa que geram

clima de tensão. O desenvolvimento da imaginação e da narrativa na criança não é

um processo solitário. O caminho é mediado por outros sujeitos (familiares,

177

professores, colegas...) e está envolto por um contexto valorativo e afetivo.

Constatamos que o desenvolvimento da narrativa de ficção na criança apresenta

uma relação de dependência com o meio em que a criança se encontra e das

oportunidades que lhes são dadas para experimentar, conhecer e explorar os

elementos ao seu redor. A implementação efetiva desse processo passa pela

discussão de um conjunto de fatores que inclui desde o espaço físico, a quantidade

de crianças, a valorização do magistério e até a construção de um currículo

especificamente voltado ao desenvolvimento infantil.

Esse desenvolvimento relaciona-se, ainda, às relações de ensino que se

estabelecem no espaço escolar. O professor deve mediar a relação do aluno com a

literatura infantil. Para isso, precisa organizar o ambiente e propiciar atividades

criativas e estimulantes ao desenvolvimento desses aspectos na criança. Entretanto,

para isso se efetivar é necessário que o profissional conheça de forma aprofundada

aspectos do desenvolvimento, aprenda a observar como os alunos interagem em

diversas situações e desenvolva condições necessárias e propícias, a fim de que o

processo de ensino aprendizagem se efetive de acordo com posições claramente

definidas e teoricamente fundamentadas.

Assim, os resultados da pesquisa apontam para a necessidade de se investir na

formação inicial e continuada do profissional da educação infantil – um profissional

que exija seus direitos de terem atendidas suas solicitações de recursos e de uma

formação continuada, que lhe possibilite desenvolver seu trabalho de modo a,

efetivamente, permitir o avanço de seus alunos em todos os planos.

178

6 REFERÊNCIAS

ABRAMOVICH, Fanny. Literatura Infantil – gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione, 1993.

ALARCÃO, Isabel. Professores reflexivos em uma escola reflexiva. São Paulo: Cortez, 2004.

ALBERGARIA, Lino de. Os contadores estão de volta, nos trazendo sua voz e suas histórias. In: Releitura 12 – Março, 1999.

ALGEBAILE, Maria Angélica P. Entrelaçamento de vozes infantis: uma pesquisa feita na escola pública. Texto baseado na dissertação de mestrado: “A polifonia de Bakhtin nas vozes infantis – o reatar dos laços. p.121–147. Rio de Janeiro: UERJ, 1995.

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar, 1978/1986.

ASSMANN, HUGO. Reencantar a educação: rumo à sociedade aprendente. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.

AZEVEDO, Joanir. Itinerâncias da pesquisa. In: GARCIA, Regina leite. Método: pesquisa com o cotidiano. RJ: DP&A, 2003.

AZEVEDO, Ricardo. Literatura infantil: origens, visões da infância e certos traços populares. Disponível em: <http://www.ricardoazevedo.com.br/Artigo07.htm> . Acesso em: 15 dez. 2005.

BAKHTIN, Mikhail Estética da criação verbal. 1. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992a.

________ Marxismo e filosofia da linguagem. 6. ed. São Paulo: HUCITEC, 1992b.

BARCELLOS, Carine. O processo de (de)formação cultural: um estudo sobre o papel da literatura infantil como um dos mediadores no processo de semiformação. Caderno do Programa de Pós-Graduação da UNIMEP, Piracicaba: vol. 9, nº1, p.99-114, jun./2002. Disponível em:

179

<http://www.unimep.br/fch/revcomunica/ano9n1/05-artg.htm>. Acessado em 5 mar. 2006.

BELINKY, Tatiana. A contadora das histórias. Páginas Abertas nº. 25, São Paulo, p.6-8, 2005.

BENJAMIN, Walter. O narrador: Observações sobre a obra de Nikolai Leskow. Trad. M. Carone. In: BENJAMIN, W.; HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W.; HABERMAS, J. Textos escolhidos. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1983.

________ Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus,

1984.

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fada. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005.

BRAGA, Elisabeth dos Santos. O trabalho com a literatura: memórias e histórias. In: Cadernos CEDES nº.50, 2000.

BRASIL. MEC/SEF. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. Vol. 3, 1998.

BREVES, Maria Teresa P. O livro de imagens: um (pré) texto para contar histórias. Dissertação de mestrado em educação, UFSC: São Paulo, 2002.

BRUNER, J. Atos de significação. Porto Alegre: Artmed, 1997.

CABRAL, Isabel Cristina Martelli. A Narração. São Paulo: Atual, 1989.

CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. São Paulo: Ciência e Cultura, 1972.

180

CANTON, Kátia. Era uma vez... o maravilhoso mundo dos contos de fadas e seu poder de formar leitores. In: Revista Nova Escola. Set/2005.

CAVALCANTI, Joana. Caminhos da literatura infantil e juvenil: dinâmicas e vivências na ação pedagógica. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2004.

CESAR, Cris Teodosio. Poesia na sala de aula – leitura, interpretação, produção – uma perspectiva antropofágica. Espírito Santo: Resplendor, 2004.

COELHO, Betty. Contar histórias, uma arte sem idade. São Paulo: Ática, 1989.

COELHO, Nelly. Literatura infantil - teoria, análise, didática. São Paulo: Ática, 1993.

________ Literatura infantil: história, teoria, análise. 4. ed. São Paulo:.Quiron, 1987.

________ O conto de fadas. São Paulo: Ática, 1991.

________ O conto de fadas: O imaginário infantil e a educação. In: Revista Criança, nº38, p.10 a 12. Ministério da Educação, Jan./2005.

________ Panorama histórico da literatura infanto-juvenil. São Paulo: Quiron,

1985.

CRUZ, Maria Nazaré da, SMOLKA, A. L. B. Gestos, palavras, objetos: uma análise de possíveis configurações na dinâmica interativa. In: OLIVEIRA, Z.R. de. (org.) A criança e seu desenvolvimento: Perspectivas para se discutir a educação infantil. São Paulo: Cortez, 1995.

________ Multiplicidade e estabilidade dos sentidos na dinâmica interativa: a

convencionalização das primeiras palavras da criança. Campinas, São Paulo: Papirus, 1997.

DEMO, Pedro. Pesquisa: princípio científico e educativo. São Paulo: Vozes, 2000.

DIATKINE, René. Histórias sem fim. In: Revista Veja, (entrevista concedida a Fabio Altmam por René Diatkine), São Paulo, p.7-9, 17 mar.1993.

181

D’ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto I. São Paulo: Ática, 2001.

EMERIQUE, Paulo Sérgio. Brincaprende: dicas lúdicas para pais e professores. São Paulo: Papirus, 2003.

FÁVERO, Leonor Lopes et al. Oralidade e escrita - perspectiva para o ensino de língua materna. São Paulo: Cortez, 2002.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.

________ Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São Pualo: Paz e Terra, 1998.

________ Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro; Paz e Terra, 1975.

________ Educação e Mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

________ A importância do ato de ler em três artigos que se completam. São

Paulo: Cortez, 1985.

________ e FAUNDEZ, Antônio. Por uma pedagogia da pergunta. Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1985.

FREITAS, Maria T. de Assunção. O pensamento de Vygotsky e Bakhtin no Brasil. Campinas: Papirus, 1994.

FREITAS, Alessandra Cardozo de. Os filhos da carochinha: a contribuição da literatura infantil na estrutura da linguagem em crianças de educação infantil. vol.1.169f. Dissertação de Mestrado em educação. UFRGN, 2001.

GADOTTI, Moacir, FREIRE Paulo e GUIMARÃES, Sérgio. Pedagogia: diálogo e conflito. São Paulo: Cortez, 1985.

GALVÃO, Isabel. A questão do movimento no cotidiano de uma pré-escola. Cadernos de Pesquisa nº. 98, Fundação Carlos Chaga, 1998.

182

GARCIA, Regina Leite (org.), et al. Revisando a pré-escola. São Paulo: Cortez, 1993.

GIRARDELLO, Gilka. Voz, presença e imaginação: a narração de histórias e as crianças pequenas. Relato de trabalho de dissertação ao GT: 7/ ANPED, 2003.

GÓES, Maria Cecília Rafael de. A natureza social do desenvolvimento psicológico. Caderno CEDES nº. 24, ano XX, julho/2000.

________ A abordagem microgenética na matriz histórico-cultural: uma perspectiva para o estudo da constituição da subjetividade. Caderno CEDES nº. 50, ano XX, julh. 2000.

GOULARD, Cláudia Maria Teixeira e SPERB, Tânia Mara. História de criança: as narrativas de criança no brincar. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/prc/v16n2/a16v16n2.pdf..htm>. Acesso em: 5 mar. 2006.

HELD, Jacqueline. O Imaginário no poder: as crianças e a literatura fantástica. São Paulo: Summus, 1980.

JESUALDO. A literatura infantil. São Paulo: Cultrix, 1993.

JOBIM e SOUZA, Solange. Infância e linguagem: Bakhtin, Vygotsky e Benjamin. Campinas: Papirus, 1994.

JUNQUEIRA FILHO, Gabriel de A. Conversando, lendo e escrevendo com crianças na educação infantil. In: CRAIDY, Carmem Mª e KAERCHER, Gládis Elise P. S. (orgs). Educação infantile: pra que te quero? Porto Alegre: UFRGS, 1998.

KIRINUS, Glória. Criança e poesia na pedagogia Freinet. São Paulo: Paulinas, 1998.

KRAMER, Sônia. Por entre as pedras: arma e sonho na escola. São Paulo: Ática, 1994.

LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: histórias e histórias. São Paulo: Ática, 1989.

LAPLANE, Adriana L. F. de. Interação e silêncio na sala de aula. In: Caderno CEDES nº.50, 2000.

183

LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 1991.

LEONTIEV, Aléxis N. Uma contribuição à Teoria do Desenvolvimento da Psique Infantil. In: VIGOTSKI, L. S. Linguagem, Desenvolvimento e Aprendizagem. São Paulo: Ícone, 9. ed., 2001.

LURIA, A. R. e YODOVICH, F. Linguagem e desenvolvimento na criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.

LURIA, Alexandr R. Curso de psicologia geral: linguagem e pensamento. vol. IV. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994.

MACEDO, Lino de. Faz-de-conta na escola – A importância do brincar. In: Revista Pátio Educação Infantil. Ano I, nº. 3, dez. 2003/mar. 2004.

MAC-KAY, Ana Paula M. G. Fala e escrita nas narrativas infantis: diferença e integração. Tese/Doutorado apresentada ao Departamento de Lingüística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – USP, 1999.

MACHADO, Ana Maria. Contracorrente: conversas sobre leitura e política. São Paulo: Ática, 1999.

MACHADO, Maria Lucia de A. Educação infantil e sócio-interacionismo. In: OLIVEIRA, ZILMA M. R. Educação Infantil: muitos olhares. São Paulo: Cortez, 1996.

MÉREDIEU, Florence de, O desenho infantil. São Paulo: Cultrix, 1974.

MOYLES, Janet R. Só brincar? O papel do brincar na educação infantil. Porto Alegre: Artmed, 2002.

MUNIZ. Sonhos lúcidos – O presente como porta para a realidade onírica. Disponível em: <http://paginasterra.com.br/educacao/eon/presrealid.htm>. Acesso em: 20 maio 2006.

OLIVEIRA, Ivone Martins de. O processo de construção de conhecimentos sobre a prática docente: um estudo com professores que atuam na educação infantil. Relatório do projeto de pesquisa: UFES, Vitória – ES, 2006.

184

________ e FRAGA, Zínia. “Afeto, emoção e linguagem na brincadeira da criança.” Relatório do projeto de pesquisa: UFES, Vitória – ES, 2003.

OLIVEIRA, Maria A. de. Leitura prazer: interação participativa com a literatura infantil na escola. São Paulo: Paulinas, 1996.

OLIVEIRA, Marta K. de. Vygotsky, aprendizado e desenvolvimento: uma perspectiva sócio-histórica. São Paulo: Scipione, 1993.

________ O pensamento de Vygotsky como fonte de reflexão sobre a educação. In: Cadernos CEDES nº.35, 1995.

OLIVEIRA, Zilma Ramos de. Educação infantil: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2002.

________ Interações sociais e desenvolvimento: a perspectiva sócio- histórica. In: Caderno CEDES nº.35, 1995.

________ Interações infantis em creche e a construção de representações sociais de gênero. In: Coletâneas ANPEPP; vol1, n.4, 1996.

OPTZ, Ana Cristina. Era uma vez... análise do discurso relatado infantil. Dissertação/Mestrado. UFRGS. Porto Alegre, 1999.

PALANGANA, Isilda C. A função da linguagem na formação da consciência: reflexões. In Cadernos CEDES nº.35, 1995.

PELLEGRINE, Tânia. Narrativa verbal e narrativa visual: possíveis aproximações. In: Enciclopédia Einaudi.

PENIN, Sônia. Cotidiano e escola. São Paulo: Cortez, 1989.

PEREIRA, Maria Izabel Galvão Gomes. Emoções e conflitos: análise da dinâmica das interações numa classe de educação infantil. Tese/Doutorado, Faculdade de Educação - USP, 1998.

PERRONI, Maria Cecília. Desenvolvimento do discurso narrativo. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

185

PINO, Angel. Constituição e modos de significação do sujeito no contexto da pré-escola. In: coletâneas ANPEPP; vol1, nº. 4, 1996.

PRIETO, Benita. O fascínio pelas histórias de medo. In: Temas em educação I. Livro das jornadas 2002. Congressos e eventos futuro; p. 315-320.

REGO, Teresa C. Vygotsky: uma perspectiva histórico-cultural da educação. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.

REILY, Lúcia. Escola inclusiva: linguagem e mediação. Campinas – S.P.: Papirus, 2004.

ROCHA, Maria Silvia P. de M. L. da. Não brinco mais: a (des)construção do brincar no cotidiano educacional. Rio Grande do Sul, Unisul, 2000.

________ O real e o imaginário no faz-de-conta: questões sobre o brincar no

contexto da pré-escola. In: Góes, Maria Cecília R. e SMOLKA, Ana Luiza B. e outros. A significação nos espaços educacionais: interação social e subjetivação. São Paulo: Papirus, 1997.

RODARI, Gianni. Gramática da fantasia. São Paulo: Summus, 1982.

SANTOS, Ivete Hipólito Pereira dos. Literatura infantil na pré-escola: por quê e para quê? In: Série Estudos nº.13 p.53-64, Campo Grande Mato Grosso do Sul, 2002.

SARMENTO, Manoel Jacinto. Imaginário e culturas da infância. Disponível em: <http://www.google.com/search?/projectos.iec.uminho.seminarioacores.pdf+manoel+jacinto+sarmento+imaginaçao.htm>. Acesso em: 15 dez 2005.

SAWAYA, Sandra Maria. Narrativas orais e experiência: as crianças do jardim Piratininga. In: OLIVEIRA, Z. de M. (org.). A criança e seu desenvolvimento: Perspectivas para se discutir a educação infantil. 1992.

SEGRE, C. Ficção. In: Enciclopédia Einaudi, vol. 17.

SEIXO, Maria Alzira. Romance, Narrativa e Texto (notas para a definição). In: Categorias de Narrativa. Lisboa: Arcádia, 1976/1977.

186

SILVA, Ezequiel T. da. Partilha e conflito de interpretações - um caminho para o desenvolvimento da linguagem do leitor infantil. In: SMOLKA, A. M. et al. Leitura e desenvolvimento da linguagem. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1989.

SMOLKA, Ana Luiza B. A linguagem como gesto, como jogo, como palavra: uma forma de ação no mundo. In: Leitura, Teoria e Prática, nº. 5, Junho/1985.

________ A atividade da leitura e o desenvolvimento das crianças. In: SMOLKA, A. L. B. et al. Leitura e desenvolvimento da linguagem. Porto Alegre: Mercado Aberto,1989.

SOARES, Magda. Linguagem e escola: uma perspectiva social. São Paulo: Ática,1997.

SPERB, Tânia Mara e VIEIRA, André Guirland. O brinquedo simbólico como uma narrativa. Disponível em :<http:/www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-79721998000200005&script=sci_arttext&t...> .Acesso em 26 julh 2006.

STEFANI, Rosaly. Leitura: que espaço é esse - uma conversa com educadores. São Paulo: Paulus, 1997.

________ Referencial e Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) - a leitura de

uma contadora de histórias. São Paulo: Paulus, 2000.

SUNDERLAND, Margot. O valor terapêutico de contar histórias: para crianças: pelas crianças. São Paulo: Cultrix, 2005.

TAKEMOTO, Cristiane de Moura Leite. O discurso narrativo oral: um estudo do papel do reconto. 125 f. Universidade Federal de Pernambuco, 2005.

TUNES, Elisabeth. Os conceitos científicos e o desenvolvimento do pensamento verbal. In: Cadernos CEDES nº.35, 1995.

URBAN, Paulo. Psicologia dos contos de fadas. In: Revista Planeta, nº.345/junho/2001.

________ Psicologia dos contos de fadas. Disponível em: <http://www.amigodaalma.com.br/conteudo/artigos/contos_fadas.htm> Acesso em: 02 agos 2006.

187

VALMASEDA, Mirian. Os problemas de linguagem na escola. In: COLL, César et al. Desenvolvimento psicológico e educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.

VARGAS, Laerte. Contar histórias – uma linguagem de afeto. Disponível em: <http://www.qdivertido.com.br/verartigo.php?codigo=21>. Acesso em: 15 dez 2005.

VIGOTSKI, Lev S. A formação social da mente. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998a.

________ Pensamento e linguagem. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998b.

________ O desenvolvimento psicológico na infância. Trad. Cláudia Berline. SP: Martins Fontes, 1998c.

________ O problema da idade. In: Obras escolhidas IV, p. 251-412, 1996.

________ et al. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. 9. ed. São Paulo: Ícone, 2001.

________ El arte e la imaginación em la infância. Madrid: Akal, 1982.

________ La imaginacion y el arte em la infancia. (ensaio psicológico). México: Hispânicas, 1987.

WALLON, Henri. As origens do Pensamento na criança. Trad. Doris S. Pinheiro, Fernanda A. Braga. São Paulo: Manole, 1989.

WALTY, Ivete Lara Camargo. O que é ficção. São Paulo: Brasiliense, 1985.

YUNES, Eliana e PONDÉ, Glória. Leituras e leituras da literatura infantil: por onde começar? São Paulo: FTD, 1989.

________ A arte de fazer artes – como escrever histórias para crianças e

adolescentes? Rio de Janeiro: Nórdica, 1985.

________ O real e o imaginário no faz-de-conta: questões sobre o brincar no

188

contexto da pré-escola. In: Góes, Maria Cecília R. e SMOLKA, Ana Luiza B. e outros. A significação nos espaços educacionais: interação social e subjetivação. São Paulo: Papirus, 1997.

ZILBERMAN, Regina; LAJOLO, Marisa. Um Brasil para crianças: para conhecer a literatura infantil brasileira. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1984.

________ A literatura infantil e o leitor. In: Literatura infantil: Autoritarismo e emancipação. São Paulo: Ática, 1982.

189

7 REFERÊNCIAS EM LITERATURA INFANTIL

AMORIM, Patrícia. et al. Coleção: a turma do bicho papão. Santa Catarina: Valedasletras.

_______ Coleção: perdendo o medo. Santa Catarina: Valedasletras.

CARNEIRO, Angela. Caixa surpresa. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

CARVALHO, Tônio e LINS, Guto. O menino que tinha medo de tudo. São Paulo: Melhoramentos, 1988.

DOMÍNIO POPULAR. Coleção: ciranda de cantigas. Ciranda Cultural/Severa Ilustrações.

FINZETO, Ângela. et al. Coleção: poesias para crianças. Editora Brasileitura.

MACHADO, Ana Maria. Festa no céu – conto popular recontado. São Paulo: FTD, 1999.

_______ De fora da arca. Editora Salamandra.

MONTEIRO, Mara. Bruxa não. São Paulo: Paulinas, 2001.

PINTO, Ziraldo Alves. O menino quadradinho. São Paulo: Melhoramentos, 1988.

ANEXO – 1 PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO

ANEXO – 2 QUESTIONÁRIO