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unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTAJLIO DE MESQUITA FILHO
Faculdade de Cincias e LetrasCampus de Araraquara - SP
VIVIANE DA COSTA - LOPES
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ARARAQUARA S.P.2010
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VIVIANE DA COSTA LOPES
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Tese de Doutorado apresentada ao Programade Ps-Graduao em Educao Escolar daFaculdade de Cincias e Letras Unesp/Araraquara, como requisito paraobteno do ttulo de Doutora em EducaoEscolar.
Linha de pesquisa: Estudos histricos,filosficos e antropolgicos sobre escola ecultura
Orientador: Prof. Dr. Marcus Vinicius daCunha
Bolsa: CAPES
ARARAQUARA S.P.2010
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VIVIANE DA COSTA LOPES
OOO CCCEEETTTIIICCCIIISSSMMMOOO EEEMMM JJJOOOHHHNNN DDDEEEWWWEEEYYY:::A BUSCA DA CERTEZATese de Doutorado apresentada ao Programade Ps-Graduao em Educao Escolar daFaculdade de Cincias e Letras UNESP/Araraquara, como requisito paraobteno do ttulo de Doutora em EducaoEscolar.
Linha de pesquisa: Estudos histricos,
filosficos e antropolgicos sobre escola eculturaOrientador: Prof. Dr. Marcus Vinicius daCunhaBolsa: CAPES
Data da aprovao: 08/02/2010
MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA:
Presidente e Orientador: Prof. Dr. Marcus Vinicius da Cunha
Livre-Docente em Psicologia da EducaoUniversidade de So Paulo (Ribeiro Preto)
Membro Titular: Prof. Dr. Luiz Henrique de Arajo DutraDoutor em Lgica e Filosofia da CinciaUniversidade Federal de Santa Catarina
Membro Titular: Profa. Dra. Paula Ramos de OliveiraDoutora em EducaoUniversidade Estadual Paulista (Araraquara)
Membro Titular: Profa. Dra. Ana Raquel Lucato CianfloneDoutora em PsicologiaUniversidade de So Paulo (Ribeiro Preto)
Membro Titular: Profa. Dra. Vera Teresa ValdemarinLivre-Docente em Filosofia da EducaoUniversidade Estadual Paulista (Araraquara)
Local: Universidade Estadual PaulistaFaculdade de Cincias e LetrasUNESP Campus de Araraquara
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Agradecimentos
Ao Prof. Dr. Marcus Vinicius da Cunha, que um dia me escolheu para ser sua
orientanda de iniciao cientfica. Obrigada por ter acreditado em mim, por tudo que me
ensinou e ainda ensinar, pela pacincia infinita, enfim, por ter sido meu orientador e
amigo por todo esse tempo e por outros que viro.
Ao Prof. Dr. Tarso Mazzotti e ao Prof. Dr. Luiz Henrique Dutra, pelas inmeras
contribuies que ofereceram para a realizao deste trabalho.
Profa. Dra. Vera Valdemarin, a quem eu tanto admiro, que me aceitou como
sua estagiria por dois anos seguidos, por fazer parte da banca de minha defesa e pelos
ensinamentos que ultrapassam o campo acadmico.
Profa. Dra. Paula Ramos de Oliveira, por ter me ensinado a admirar a
Filosofia e por participar de minha defesa.
Ao Mateus, meu marido, e Jane, minha me e amiga, pela pacincia e carinho
que tiveram comigo ao longo desse tempo e por tudo mais que significam em minhavida.
Profa. Dra. Miriane da Costa Gileno, minha irm, que sempre me motivou a
estudar, a fazer pesquisa e a seguir em frente nos meus sonhos.
minha famlia, inclusive Belinha, por estar sempre presente em minha vida.
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Aos companheiros do Grupo de pesquisa Retrica e argumentao na
Pedagogia, pelos nossos encontros e dilogos.
Profa. Dra. Ana Raquel Lucato Cianflone, ao Prof. Dr. Denis Domeneghetti
Badia e ao Prof. Dr. Antnio dos Santos Andrade, por terem aceito o convite de
membros suplentes de minha defesa.
Capes, pelos auxlios concedidos.
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Se me disponho a filosofar, porque busco compreender ascoisas e os fatos que me envolvem, a Realidade em que estouimerso. porque quero saber o que posso saber e como devoordenar minha viso do Mundo, como situar-me diante do Mundofsico e do Mundo humano e de tudo quanto se oferece minhaexperincia. Como entender os discursos dos homens e meuprprio discurso.(PORCHAT PEREIRA, Rumo ao ceticismo, 2007, p. 41).
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RESUMO
O presente trabalho analisa as concepes filosficas de John Dewey, tomando como
principal referncia o livro The quest for certainty: a study of the relation of knowledgeand action, publicado em 1929, no qual o autor prope utilizar o mtodo das cinciasexperimentais no campo das cincias humanas, em especial para o exame dos juzosmorais. Nesse livro, Dewey defende o rompimento da dicotomia entre teoria e prtica eatribui carter probabilstico aos conhecimentos advindos da investigao cientfica,tomando como exemplo a mecnica quntica. Os referenciais metodolgicosempregados na anlise do discurso deweyano advm da nova retrica, teoria propostapor Cham Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca em Tratado da argumentao. Oobjetivo do trabalho mostrar a proximidade entre Dewey e o ceticismo, tomando porbase as concepes de Pirro de lis sistematizadas por Enesidemo e Sexto Emprico,bem como desenvolvimentos recentes dessa filosofia. A inteno mais ampla do
trabalho contribuir para a discusso de teses que divergem em relao ao temafocalizado nesta pesquisa: de um lado, as que responsabilizam o ceticismo deweyanopelos males da educao contempornea, e, de outro, as que atribuem a Dewey a origemde importantes progressos na pedagogia.
Palavras-chave: John Dewey Ceticismo Pirronismo Anlise Retrica
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ABSTRACT
The present study analyses the philosophical conceptions of John Dewey presented in
the book The quest for certainty: a study of the relation of knowledge and action ,published in 1929, in which the author proposes to use the method of experimentalsciences in human sciences, specially to the examination of moral judgments. In thisbook, Dewey defends the disruption of the dichotomy between practical and theory andattributes a probabilistic character to the scientific inquiry knowledge, citing as anexample the quantun mechanics. The methodology adopted to analyze deweyandiscourse is the new rhetoric, based upon Treatise of argumentation by Cham Perelmanand Lucie Olbrechts-Tyteca. The objective of the this work is to show to the proximitybetween Dewey and the skepticism, having as a basis the conceptions of Pyrrho fromlis systematized by Aenesidemus and Sextus Empiricus, as well as recentdevelopments of this philosophy. The work also intends to contribute for the discussion
of theses which diverge on the theme of this work: on the one hand, the ones that blameDeweys skepticism for the harmfulness of contemporary education; and, on the other,those which attribute the origin of important progress in pedagogy to Dewey.
Key words: John Dewey Skepticism Pyrrhonism Rhetorical analysis.
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SUMRIO
Introduo ...................................................................................................................... 11
Captulo 1 Conceituao e histria do pirronismo...................................................... 26
1. As bases do pirronismo................................................................................... 27
2. O pirronismo na filosofia moderna................................................................. 33
3. Vises contemporneas do pirronismo........................................................... 38
Captulo 2 Cincia e moral em Dewey ....................................................................... 46
1. A proposta de um nico mtodo para todas as cincias................................. 472. Tcnicas argumentativas na defesa do mtodo nico.................................... 55
Captulo 3 Dewey e o conhecimento provvel ......................................................... 68
1. A unio entre teoria e prtica como fundamento do mtodo nico................ 69
2. A associao de noes tradicionalmente dissociadas................................... 74
3. A defesa de conhecimentos provveis............................................................ 83
Captulo 4 O pirronismo em Dewey ........................................................................... 94
1. A oposio aos dogmatismos e a unio entre teoria e prtica ....................... 95
2. A suspenso do juzo e a continuidade da investigao ................................ 97
3. O discurso antinmico e a interveno na realidade ..................................... 99
4. Falibilismo e conhecimento ......................................................................... 101
5. O pirronismo como parmetro ..................................................................... 103
Consideraes finais..................................................................................................... 107
Referncias .................................................................................................................. 115
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Introduo
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Na rea da educao, as ideias do filsofo e educador americano John Dewey
(1859-1952) so objeto de acirrada discusso desde os anos de 1930, pelo menos,
quando se firmaram entre as concepes fundamentais do movimento denominado
Escola Nova.1 A controvrsia extrapola o mbito estritamente pedaggico, incidindo
sobre as bases filosficas do pensamento deweyano, bem como sobre as definies
relativas s finalidades da educao.
Em pesquisas realizadas anteriormente,2 pudemos observar que as primeiras
apreciaes negativas da Escola Nova e da filosofia de Dewey, em particular, foram
elaboradas entre 1930 e 1950 por intelectuais catlicos, principais opositores do
movimento escolanovista (CUNHA; COSTA, 2002).3 Autores como Frans De Hovre,
Jacques Maritain, Theobaldo Miranda Santos, Leonardo Van Acker, Suzanne Marie
Durand, John D. Redden e Francis A. Ryan difundiram a tese de que a nova pedagogia
desprovida de fins, ocasionando danosas consequncias, no s educacionais, como
tambm sociais (COSTA, 2005). No discurso desses autores, Dewey aparece como
incapaz de fornecer quaisquer princpios morais slidos, sendo ento responsvel pelo
esvaziamento das finalidades do processo educativo (CUNHA; COSTA, 2006).
Os catlicos no foram os nicos a levantar questionamentos acerca da filosofia
deweyana e suas decorrncias educacionais. Na dcada de 1950, a Revista Brasileira de
Estudos Pedaggicos publicou vrios artigos em que Dewey associado a uma
pedagogia espontanesta, contrria a qualquer iniciativa de planejamento, posto que,
1 Em mbito internacional, a Escola Nova surgiu entre o final do sculo XIX e o incio do sculo XX. NoBrasil, suas concepes foram introduzidas na dcada de 1920 (NAGLE, 1974), sendo expressas em 1930no livro Introduo ao estudo da escola nova de Loureno Filho (1974) e no Manifesto dos Pioneiros daEducao Nova, em 1932. Sobre o Manifesto, ver a coletnea organizada por Xavier (2004).2 Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao Escolar daFaculdade de Cincias e Letras de Araraquara (UNESP), sob a orientao do Prof. Dr. Marcus Vinicius
da Cunha.3 Ver tambm o trabalho de Carvalho (2003). Sobre o conflito entre catlicos e liberais, acirrado pelapublicao do Manifesto dos Pioneiros da Educao Nova, ver Cury (1986).
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segundo a opinio corrente, disseminava prticas escolares baseadas na simples
improvisao (CUNHA, 1999b, p. 51). Joo Roberto Moreira (1954, p. 36) descreveu
o pragmatismo como avesso possibilidade de conhecer a realidade material do
mundo e favorvel a uma interpretao subjetiva, utilitarista, em consonncia com o
modo de vida americano e os interesses particularistas de uma classe social.
Atualmente, o pragmatismo deweyano apontado, direta ou indiretamente,
como causador da desvalorizao das teorias educacionais e do fortalecimento da
tendncia que leva a substituir certezas tericas por mero praticismo. A origem do
problema localizada no movimento escolanovista, sobretudo nas correntes de
inspirao deweyana, descritas como responsveis por desfigurar a proposta de uma
cincia pedaggica unitria e incentivar a substituio da filosofia da educao por
um cientismo pedaggico, como sugere Jos Carlos Libneo (1996, p. 112).4 Autores
que debatem as implicaes educacionais negativas do chamado modelo neoliberal de
sociedade, como Dermeval Saviani (1997, 1980) e Newton Duarte (2000, 2001),
sugerem que as propostas da Escola Nova e a influncia de Dewey abriram caminho
para uma antipedagogia de base espontanesta que nada ensina e deixa as crianas
descobrirem o mundo sua maneira (CUNHA, 2001a, p. 18).
Saviani (1996, p. 176-177) descreve a filosofia educacional pragmatista como
uma corrente que governa o processo educativo de modo imperscrutvel, uma vez que
se deixa permear por certa desconfiana na razo, promovendo, por suas bases
experimentais, a dissoluo da teoria na prtica, em vez de estabelecer a unidade
essencial entre teoria e prtica. Dentre as causas do que denomina recuo das teorias
frente s prticas e experincias individuais, Maria Clia de Moraes (2003b, p. 153)
4 O movimento escolanovista aglutinou diversas orientaes pedaggicas e filosficas, dentre as quais adeweyana, cujo principal representante foi Ansio Teixeira (CUNHA, 2000).
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situa a concepo educacional pragmatista como propulsora do saber fazer, uma
tendncia que posiciona a teoria como perda de tempo ou especulao metafsica.
Segundo a avaliao de Marcus Vinicius da Cunha (2007b), os problemas da
nova pedagogia sobressaem quando os crticos a comparam com a solidez apregoada
pelos mtodos que antecederam a Escola Nova. O escolanovismo o deweyano, em
particular no oferece a mesma segurana que se encontrava no mtodo intuitivo, ou
lies de coisas, criado no sculo XIX sob a inspirao do empirismo de Locke e
Bacon e introduzido no Brasil por intermdio de Rui Barbosa, como bem descreve Vera
Valdemarin (2004). O cerne da questo, portanto, a mudana no paradigma de
orientao das prticas pedaggicas, pois o rol bem definido de procedimentos advindo
da filosofia moderna foi substitudo por um conjunto de princpios que pouco auxilia o
professor em sua atuao concreta na sala de aula (VALDEMARIN, 2006).
Vrios outros posicionamentos semelhantes poderiam ser aqui citados como
representativos de questionamentos ao pensamento deweyano, vinculados ou no
esfera educacional.5 Cabe observar, porm, que um nmero igualmente significativo de
apreciaes favorveis tambm pode ser arrolado. Nesse ltimo conjunto, as teses
deweyanas, bem como as suas contribuies nova pedagogia, so julgadas
positivamente, com argumentos que mostram Dewey como responsvel por um
empreendimento educacional e moral valioso que, para ser bem compreendido, deve
levar em conta a totalidade de suas originais concepes de comunidade e democracia
(JOHNSTON, 2006; PAPPAS, 2008). De acordo com Maria Nazar de Amaral (2007,
p. 98), o motor do pensamento deweyano a necessidade de reconciliao entre o
mundo da cincia e o mundo da moral, o mundo dos fatos e o mundo dos valores;
Dewey quer justificar racionalmente a adeso crena fundamental na democracia,
5 Ver, por exemplo, o trabalho de Johnston (2006), que apresenta as avaliaes de Bertrand Russell,Morris Cohen e John Patrick Diggins, entre outros.
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trazendo para o debate a relao entre cincia, filosofia e educao (AMARAL, 2007, p.
56-57).
Segundo observa David Hansen (2007, p. 25-26), a educao defendida por
Dewey diz respeito a um conhecimento moral que abarca um sentimento de justia,
liberdade e virtude, fundamentando o conhecimento acadmico em um sentimento
duradouro de suas consequncias para a vida humana. por isso que, segundo
Kliebard (2004, p. 61), Dewey sugere que o currculo seja elaborado em torno de
ocupaes sociais,6 para que a criana se torne gradualmente familiarizada com a
estrutura, os materiais e os modos de operao de uma grande comunidade, ao mesmo
tempo em que se capacite a controlar suas prprias potencialidades.
Hansen (2006b, p. 3) acrescenta que Dewey exprime uma averso emocional,
intelectual e moral a todas as formas de pensamento que isolam a mente e impedem
uma resposta construtiva aos assuntos humanos. Seja no campo das aes polticas, da
cincia ou da tecnologia, Dewey pe em pauta objetivos e mtodos educacionais que
so efetivos para a construo da democracia, o que explica sua nfase na aplicao do
mtodo experimental s teorias do conhecimento e da moral, caminho mais propcio
para a consecuo do modo de vida democrtico. Nessa perspectiva, o qualificador
moral fator decisivo no questionamento de Dewey educao e aos princpios
essenciais vida democrtica. Referenciando a obra Democracia e educao,7 Hansen
(2006a, p. 184) afirma que o cerne da educao deweyana reside na aprendizagem de
todos os contatos da vida, de uma vida moral, o que expressa a noo de arte da
democracia. Assim segundo Hansen (2006a, p. 185), Dewey funde a individualidade, o
interesse, o crescimento e o projeto democrtico, projetando uma moral autnoma
6 Neste trabalho, todos os grifos no interior de transcries so dos autores citados.7
Dewey finaliza o livro Democracia e educao afirmando que toda educao que desenvolve o poderde compartilhar efetivamente a vida social moral e que o interesse em aprender com todos os contatosda vida o interesse moral essencial (DEWEY, 2007, p. 131).
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elaborada por uma avaliao profunda dos modos de pensar e fazer, tendo em vista os
melhores critrios, seja nas cincias naturais, seja nas cincias humanas.
Hansen (2005, p. 107) avalia tambm que, das formulaes educacionais e
estticas inspiradas em Dewey, resulta uma potica do ensino cuja instrumentalidade
consiste em reconhecer o valor da metfora, em termos epistmicos, morais e
estticos, para o enriquecimento das linguagens da investigao e da compreenso do
trabalho educativo. Sob uma viso holstica, a educao concebida como processo
que no comporta uma definio final e inabalvel, mas compartilha uma busca
contnua pela verdade; a potica do ensino constitui um ponto de vista dinmico que
auxilia os educadores a cumprir a incumbncia nunca-finalizada de articular a natureza
e o significado do ensino (HANSEN, 2005, p. 123).8
Na opinio de Marcus Vinicius da Cunha (2007b, p. 363), Dewey um
questionador dos limites do fazer pedaggico na ordem social contempornea, por
delinear diretrizes para a reconstruo de concepes e prticas pedaggicas e, ao
mesmo tempo, por criticar a possibilidade de efetivar essas mesmas diretrizes na
sociedade atual. Desse modo, Dewey define a pedagogia no s como um conjunto de
mtodos ocupados com a segurana do fazer docente, mas primordialmente como um
composto de reflexes crticas sobre a educao e sobre a filosofia como teoria geral da
educao (CUNHA, 2007b, p. 372). Sendo assim, as elaboraes deweyanas no
promovem nenhum tipo de afastamento entre educao e formao moral (CUNHA,
2001a), uma vez que, em sua filosofia, a educao um importante meio de transmisso
de valores e conhecimentos, propiciando a difuso da experincia socialmente
acumulada e integrando os indivduos comunidade democrtica (CUNHA, 2005a).
8 Para uma apreciao da proposta de Hansen luz da retrica, ver o trabalho de Pimenta (2008).
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Ainda segundo Cunha (2008, p. 175), as ideias deweyanas enfatizam a
possibilidade de princpios reguladores do mundo, dependentes exclusivamente das
circunstncias sociais e das experincias associativas; sendo tais circunstncias e
experincias elaboradas em dado momento histrico, no h, para Dewey, valores
imutveis ao longo do tempo, inclusive no que tange educao. Os princpios
normativos existem, mas no podem ser estabelecidos em definitivo, j que a realidade
algo em permanente movimento (CUNHA, 2001a, p. 97), e o conceito de verdade
diz respeito diretamente a uma busca permanente dos critrios, dos valores, da moral e
da tica (CUNHA, 1999a, p. 83).
Com base nessa breve reviso de argumentos que se opem reciprocamente,
acreditamos que a mais completa expresso filosfica dos autores que exprimem
posicionamentos desfavorveis Escola Nova e pedagogia contempornea, bem como
a Dewey, encontra-se na seguinte manifestao de Maria Clia de Moraes (2003b, p.
154): existe um ceticismo epistemolgico responsvel pela degradao terica que
sustenta a prtica desprovida de reflexo; na educao, impera um modo de pensar
que descarta a necessidade de indagar sobre a verdade, a objetividade ou sobre o que
seria uma interpretao ou apreenso corretas da realidade (MORAES, 2003a, p. 174).
Seguindo esse ponto de vista, Dewey deve ser considerado um ctico, o que bastaria
para justificar as demais imputaes que lhe so feitas, como a responsabilidade pelo
esvaziamento do processo educativo, pelo empobrecimento da cultura escolar e
pelo deslocamento da preocupao do como ensinar para o como aprender, como
resume Cunha (2007b, p. 358). No linguajar de seus opositores, cujo pensamento
sumariado por Cunha (2008, p. 174), a recusa de Dewey em assumir norteamentos
absolutos para a vida humana seria a explicao para a derrocada de diretrizes seguras
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para a renovao da ordem social e da educao escolar por ele supostamente
promovida.
A apresentao de Dewey como ctico no incomum, pois, como assinala
Gregory Pappas (2008, p. 6), o pragmatismo costuma ser visto, de fato, como totalmente
desvinculado de uma tica normativa, recebendo denominaes como ceticismo
tico e relativismo tico.9 Marcus Vinicius da Cunha prope incluir Dewey na
categoria dos cticos moderados, j que suas ideias no se alinham nem aos
dogmticos, que aceitam a noo de verdade absoluta, nem s formas extremas de
ceticismo, que negam qualquer forma de conhecimento.10 Segundo Cunha (2006, p. 56),
porm, essa caracterizao no implica julgar negativamente as teses deweyanas, pois,
para o filsofo americano, o conhecimento no requer verdades transcendentais, mas
busca apoio em verdades convincentes ou provveis; em Dewey, a mente no uma
instncia de representao do real, qual espelho fiel do mundo, mas as operaes do
intelecto constituem fontes de certezas, viabilizando aes fundamentadas em
crenas acerca do real, as quais permitem planejar a mudana da ordem vigente.
Desse modo, diferentemente da opinio que caracteriza o ceticismo deweyano
como fonte de transtornos para a educao, deveramos enxergar o mesmo ceticismo
como fonte de inovaes saudveis pedagogia. Em vez de prejuzos, desnorteamentos
e incertezas, o posicionamento ctico de Dewey traria consigo uma nova e promissora
maneira de definir a educao, especialmente as finalidades educacionais, que passam a
ser vistas no como advindas de um plano absoluto, mas como resultantes de uma busca
por consensos possveis, em ambiente democrtico (CUNHA, 2006, 2008).
9 No presente trabalho, todas as transcries de obras estrangeiras inditas no Brasil resultam de traduolivre.10 Conforme veremos no primeiro captulo deste trabalho, o ceticismo moderado aceita a possibilidade do
conhecimento, mesmo colocando em dvida nossa capacidade para fundament-lo. Sua origem relacionada com a retomada do ceticismo grego no sculo XVI, tendo como principal representante MarinMersenne (POPKIN, 2000).
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Quatro problemas de pesquisa emergem da discusso aqui desenvolvida.
Primeiro, investigar se Dewey pode ser, de fato, considerado um ctico; segundo, sendo
positiva a resposta a essa questo, em qual tipo de ceticismo classificar sua filosofia;
terceiro, qual texto de Dewey tomar como objeto de estudo para obter alguma concluso
a esse respeito; quarto, se o iderio deweyano, sendo ctico, apresenta contribuies ou
prejuzos educao. A investigao que deu origem ao presente trabalho consistiu em
responder s duas primeiras questes que, por serem interligadas, assumem grande
complexidade por meio de um quadro de referncias relativo histria do ceticismo,
segundo o qual examinamos o discurso deweyano.11 Para elaborar o presente texto, no
entanto, optamos por uma estratgia diferente; elegemos considerar as bases tericas do
pirronismo como referncia histrica central, tomando por eixo as formulaes de Sexto
Emprico, para assim enunciar nosso problema de investigao: desejamos saber se h
elementos do ceticismo pirrnico em John Dewey. Acreditamos que, desse modo,
conseguiremos desvendar, com maior clareza e preciso, nossos dois primeiros
problemas de pesquisa.
O terceiro problema igualmente complexo, dada a grande quantidade de textos
produzidos por Dewey e a extensa variedade de assuntos por ele abordados. Escolhemos
focalizar a pesquisa no livro The quest for certainty, cujo subttulo a study of the
relation of knowledge and action.12 A razo dessa escolha reside nas caractersticas
dessa obra, resultante dos pronunciamentos feitos por Dewey em 1928 e 1929 no ciclo
de conferncias denominado Gifford Lectures, cujo objetivo era discutir teologia
natural, ou seja, temas de interesse da filosofia e das cincias naturais tratados parte
11
Nessa trajetria de estudos, publicamos alguns trabalhos sobre o tema (CUNHA; COSTA-LOPES,2008; COSTA-LOPES; CUNHA, 2009).12 Em traduo livre, A busca da certeza: um estudo sobre a relao entre conhecimento e ao.
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de vnculos religiosos ou ideolgicos (NORTHROP, 1999).13 Segundo analisa James
Garrison (2006, p. 19), The quest for certainty foi escrito para refutar a busca filosfica
da certeza, j que, na concepo deweyana, nenhuma coisa, fim ou essncia eterno,
imutvel ou necessrio.14
Alm disso, o referido livro ocupa posio privilegiada no conjunto dos
trabalhos de Dewey. Em 1929, quando veio a pblico, boa parte da obra deweyana,
particularmente no campo da educao, j se encontrava publicada: os ensaios The
child and the curriculum e Interest and effort in education so de 1902 e 1913,
respectivamente; a primeira verso de How we think de 1910;15 Democracy and
education, de 1916; Reconstruction in philosophy, de 1920; Human nature and conduct,
de 1922. The quest for certainty discorre sobre assuntos j abordados em alguns desses
escritos e tambm examina temas que foram aprimorados mais tarde; o pensamento
reflexivo, por exemplo, que j havia aparecido em How we think, ressurgiu depois em
Logic: the theory of inquiry, de 1938.
Alm dos problemas de pesquisa acima indicados, acrescenta-se outro, referente
metodologia de anlise das ideias expressas em The quest for certainty. Um dos
principais desafios enfrentado pelos que estudam Dewey distinguir entre as suas
formulaes e a recontextualizao de suas teses, fenmeno que, segundo Cunha
(2005c, p. 191), consiste em retirar uma ideia de seu tempo e lugar originais para
recoloc-la em outro tempo e lugar. Esse fenmeno explica as inmeras formas de
desleitura do pensamento deweyano, as variadas interpretaes que no conseguem
alis, nem sempre pretendem apreender o conjunto das formulaes do filsofo
americano (CUNHA, 2007b).
13 Todas as obras relacionadas s Gifford Lectures, inclusive The quest for certainty, podem ser acessadas
no endereo eletrnico http://www.giffordlectures.org.14 Essa obra tambm analisada por Rorty (1994), Johnston (2006) e Amaral (2007).15 Uma nova verso desse livro foi publicada em 1933.
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A alternativa terico-metodolgica que apresentamos para tentar superar essa
dificuldade advm dos estudos de Cham Perelman (PERELMAN, 1999; PERELMAN,
1982; PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002), os quais integram o movimento
de reviso da obra de Aristteles empreendido desde o sculo passado (BERTI, 1997;
MAZZOTTI, 2007). Esse referencial permite examinarmos textos impressos como
componentes de uma situao retrica, o que envolve analisar as ordenaes discursivas
do escrito (logos), isto , sua formulao lgica e as estratgias argumentativas que o
compem; compreender as disposies do auditrio (pathos), que so os leitores a quem
se destina a mensagem; e situar os traos constituintes do orador (ethos), que o autor
do impresso em questo.16
A peculiaridade desse mtodo reside em reconhecer que a interpretao
filosfica de qualquer filosofia torna-se invivel se permanecer no exterior de seu
universo de discurso prprio, e se no fizer, do seu interior, o movimento de
pensamento que a articula como doutrina (PORCHAT PEREIRA, 2007, p. 17); a
aceitao de uma filosofia depende, precisamente, do endosso do leitor (o ouvinte)
argumentao que o filsofo expende para sustent-la (PORCHAT PEREIRA, 2007, p.
220). A abordagem elaborada por Perelman (1999, p. 191) sustentada no
reconhecimento de que a eficcia dos argumentos depende das premissas admitidas e
compartilhadas pelo auditrio, como tambm da situao argumentativa em que se
encontra o orador. Como o objetivo de todo discurso argumentativo provocar ou
aumentar a adeso s teses que so propostas ao assentimento de um auditrio, a
argumentao eficaz aquela que consegue aumentar essa intensidade de adeso de
forma que se desencadeie nos ouvintes a ao pretendida (ao positiva ou absteno),
16
Essa metodologia vem sendo desenvolvida pelo Grupo de Pesquisa Retrica e Argumentao naPedagogia (USP/CNPq), conforme se pode ver, por exemplo, em Cunha (2004), Cunha (2005b), Cunha eCosta (2006), Cunha e Sacramento (2007), Sircilli (2008), Andrade (2009) e Arajo (2009).
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ou, pelo menos, crie neles uma disposio para a ao, a qual poder manifestar-se no
momento oportuno (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 50).
Pertencendo esfera do provvel, e no ao campo do necessrio, a
argumentao se desenvolve por meio de entimemas, ou silogismos retricos, os quais
so construdos com base em valores e prticas de determinado auditrio; assim, certas
premissas e ocasionalmente a concluso no precisam ser enunciadas, pois quem
expe o raciocnio conta com a disposio dos ouvintes para reconhec-las como
vlidas (WOLFF, 1993). Para reforar a adeso que a argumentao entimemtica
enseja, o orador recorre a premissas comumente aceitas, denominadas lugares, dos
quais derivam os Tpicos, ou tratados consagrados ao raciocnio dialtico
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 94).17
As tcnicas argumentativas variam conforme as especificidades do auditrio, o
que confere fora persuasiva ao discurso. Quando se conta com a inrcia psquica e
social da audincia (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 119), o orador
pode explanar sobre modelos de prticas e concepes futuras que do sustentao ou
permitem a continuidade de determinado ato, obtendo assim o efeito de veracidade que
viabiliza a aceitao de sua tese. Vrios recursos retricos so apresentados no Tratado
da argumentao de Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002), como o argumento de
prestgio, a tcnica da coisa julgada, a dissociao das noes, os exemplos, os modelos,
as definies, as analogias e as metforas, e todos eles podem ser empregados pelo
orador para persuadir seu auditrio e assumir a liderana que anseia.
17 Nos Tpicos de Aristteles so apresentados os seguintes lugares que servem de premissas para ossilogismos dialticos: lugares do acidente, do gnero, da propriedade e da definio. Nesse tratado,Aristteles define o raciocnio ou silogismo dialtico como aquele no qual se raciocina a partir deopinies de aceitao geral (100b18); diferente do silogismo cientfico ou demonstrativo, que procede de
premissas verdadeiras e primrias (100a25). Sobre a relao entre dialtica e conhecimento cientficoem Aristteles, ver Porchat Pereira (2001). Neste trabalho, utilizamos a traduo de Edson Bini dorganon (ARISTTELES, 2005).
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No tocante anlise de discursos pedaggicos, os estudos da argumentao
contribuem para esclarecer que as teorias educacionais se apresentam por meio de
enunciados que se propem como verdadeiros para serem aceitos; as doutrinas
pedaggicas, como diz Mazzotti (2008, p. 111), so proposies a respeito da
educao escolar que procuram convencer ou persuadir as pessoas a respeito do que
prprio da educao. Seguindo esse referencial, metodologicamente, nosso primeiro
passo consiste em estudar o texto (logos) neste caso, The quest for certainty de Dewey
mediante os instrumentos analticos da retrica, buscando elucidar as estratgias
discursivas, as razes e os pressupostos que constituem o discurso do autor na exposio
de suas teses. Nosso objetivo atingir o contexto em que o texto se insere, o que
implica compreender a situao do autor (ethos) ante as disposies do auditrio
(pathos); sendo o contexto a relao efetiva entre esses dois elementos da situao
retrica, para conhec-lo precisamos apreender as condies concretas ideias,
experincias, condutas que unificam autor e leitores, pois isso o que confere
sentido e veracidade anlise do logos (CUNHA, 2007a, p. 49).
Como caracterstico das doutrinas e teorias filosficas apresentarem solues
incompatveis umas com as outras (PORCHAT PEREIRA, 2007), consideramos que, no
ciclo de conferncias que deu origem a The quest for certainty, Dewey tinha em vista
dois auditrios: um, composto por filsofos e cientistas que compartilhavam concepes
opostas s suas, identificados com os dualismos racionalista e empirista e a noo de
verdade absoluta, dogmtica; outro, formado por filsofos e cientistas que adotavam
premissas semelhantes s suas. O discurso que se encontra no referido livro exibe essa
duplicidade da audincia: Dewey firma suas ideias contra o primeiro auditrio,
contando com a anuncia do segundo.
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Neste trabalho buscaremos expor grande parte das ideias contidas em The quest
for certainty, mas no o faremos seguindo a ordem em que se desenvolvem os
captulos.18 Privilegiaremos, outrossim, o argumento que entendemos ser o essencial da
obra, o qual se articula em torno de uma discusso acerca de valores absolutos e da
dicotomia entre teoria e prtica, envolvendo o uso da fsica contempornea como
cincia exemplar para a caracterizao do que Dewey denomina investigao
reflexiva. Acreditamos ser esta a melhor maneira de buscar resposta nossa indagao
relativa ao suposto ceticismo deweyano, uma vez que o referido argumento visa afirmar
a noo de verdades probabilsticas, ou seja, verdades sobre as quais impossvel
oferecer certezas absolutas.
Considerando os problemas de pesquisa j especificados, o presente estudo
encontra-se elaborado em quatro captulos. No primeiro, apresentaremos as formulaes
centrais do ceticismo pirrnico, no intuito de compor um conjunto de parmetros para
analisar o discurso de Dewey no livro The quest for certainty. Nesse captulo, veremos
que tais formulaes atingiram as discusses da filosofia moderna, fazendo-se ainda
presentes na era contempornea. O segundo captulo ser dedicado a analisar as
asseres deweyanas que defendem o mtodo investigativo no campo dos juzos
valorativos; seguindo a metodologia da anlise retrica, nesse mesmo captulo
apresentaremos as principais estratgias argumentativas utilizadas por Dewey na defesa
de um mtodo universal e na definio de conhecimento moral e cientfico. No terceiro
captulo, analisaremos a proposio deweyana que nega a dicotomia entre teoria e
prtica nos processos investigativos, exprimindo um modo de ver o mundo que se
fundamenta no equilbrio de noes tradicionalmente dissociadas; veremos tambm o
18 O livro possui onze captulos, assim nomeados: A evaso do perigo; A filosofia em busca do imutvel;
Conflito de autoridades; A arte da aceitao e a arte do domnio; Ideais em ao; O jogo das ideias; Asede da autoridade intelectual; A naturalizao da inteligncia; A supremacia do mtodo; A construo dobem; e A revoluo copernicana.
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argumento pelo qual Dewey pretende defender, tanto no campo cientfico quanto no
filosfico, a existncia de verdades probabilsticas, mostrando-se favorvel tese do
falibilismo do conhecimento. No quarto e ltimo captulo, tomaremos por base os
parmetros explicitados no captulo inicial para discutir a aproximao entre o discurso
deweyano e o ceticismo pirrnico, focalizando os seguintes temas: a oposio s
filosofias dogmticas e essencialistas, a relao entre teoria e prtica, a concepo de
investigao contnua e falibilista, o emprego do discurso antinmico e o falibilismo
como atitude competente para produzir conhecimento. Por fim, procuraremos mostrar
que a adoo do pirronismo como parmetro de anlise contribui para esclarecer os
temas centrais da filosofia de Dewey democracia, cincia e educao.
Na seo final, retomaremos os principais indicativos da proximidade entre
Dewey e o pirronismo, no intuito de discutir se as formulaes deweyanas, uma vez
compreendidas segundo o ceticismo pirrnico, podem ser vistas como favorveis ou
prejudiciais educao.
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Captulo 1
Conceituao e histria do pirronismo
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1. As bases do pirronismo
O termo ceticismo costuma ser utilizado para denotar recusa generalizada de
qualquer forma de crena, conhecimento ou certeza, como observa Porchat Pereira
(2007, p. 302). No entanto, para caracterizar uma filosofia ou uma proposta pedaggica
como ctica, preciso considerar que o aludido termo assume diversos significados no
vocabulrio dos filsofos e na histria do pensamento filosfico (PORCHAT
PEREIRA, 2007, p. 296). Como mencionamos anteriormente, na Introduo deste
trabalho, neste captulo examinaremos os significados de ceticismo tomando como
parmetro a conceituao oriunda do pirronismo.
O pirronismo, originalmente decorrente de Pirro de lis (360-275 a.C.), cuja
enunciao terica atribuda a Enesidemo (100-40 a.C.), considera a impossibilidade
de afirmar, seja em favor de que podemos, seja em favor de que no podemos conhecer
(POPKIN, 2000).19 Acerca de quaisquer evidncias em conflito, sobre toda e qualquer
opinio ou assero que se pretenda verdadeira, ou capaz de dizer as coisas como elas
realmente so, o pirrnico defende a suspenso do juzo (epok), sem desistir, no
entanto, de continuar investigando (PORCHAT PEREIRA, 2007, p. 74).
Na passagem do II para o III sculos da era crist, o pirronismo ressurgiu por
intermdio de Sexto Emprico, que se tornou, ento, a principal referncia histrica doceticismo pirrnico (DUTRA, 2005; PORCHAT PEREIRA, 2007). Em sua obra
Hipotiposes Pirronianas, Sexto estabelece a distino entre as concepes dogmtica,
acadmica e propriamente ctica, considerando que, em toda busca ou investigao,
temos que a verdade procurada e encontrada, o que caracteriza a perspectiva do
19 Embora Pirro no tenha deixado nenhum escrito, seu pensamento conhecido pelos fragmentos
registrados por seu discpulo Tmon de Flios (325-235 a.C.) (MARCONDES, 2002). Tambm possvelencontrar informaes biogrficas sobre ele em Vidas e doutrinas dos filsofos ilustres de DigenesLarcio (1977).
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dogmtico; ou temos negada a possibilidade de encontr-la, o que constitui a viso do
acadmico; ou temos a atitude de persistir na busca da verdade, o que define a posio
do ctico.
O resultado natural de qualquer investigao que aquele queinvestiga ou bem encontra aquilo que busca, ou bem nega que sejaencontrvel e confessa ser isto inapreensvel, ou ainda, persiste nabusca. O mesmo ocorre com as investigaes filosficas, e provavelmente por isso que alguns afirmaram ter descoberto averdade, outros que a verdade no pode ser apreendida, enquantooutros continuam buscando. Aqueles que afirmaram ter descoberto averdade so os dogmticos, assim chamados especialmenteAristteles, por exemplo, Epicuro, os esticos e alguns outros.Clitmaco, Carnades e outros acadmicos consideram a verdadeinapreensvel, e os cticos continuam buscando. Portanto, parecerazovel manter que h trs tipos de filosofia: a dogmtica, aacadmica e a ctica. (SEXTO EMPRICO, 1997, p. 115)
Por dogmtico, entende-se o discurso que se julga capaz de dizer
adequadamente o que o caso, exprimir um conhecimento definitivo sobre algo no-
evidente (PORCHAT PEREIRA, 2007, p. 224); o dogmtico assume ser capaz de
oferecer a expresso verdadeira de um conhecimento real (PORCHAT PEREIRA,
2007, p. 126). O ceticismo acadmico deve sua formulao terica aos sucessores de
Plato (427-347 a.C.) na Academia, Arcesilau (315-241 a.C.) e Carnades (213-129
a.C.), para quem os dados que obtemos atravs de nossos sentidos so pouco
confiveis, o que conduz tese de que no possumos nenhum critrio ou padro
garantido para determinar quais de nossos juzos so verdadeiros e quais so falsos
(POPKIN, 2000, p. 13).20 Os acadmicos defendem que o conhecimento no possvel,
porque nem a razo nem a sensao constituem um critrio de verdade absoluta
(VERDAN, 1998, p. 27).
20
Os argumentos dos acadmicos foram divulgados por Ccero em Academia e Sobre a natureza dosdeuses, por Santo Agostinho em Contra os acadmicos, e tambm por Digenes Larcio (POPKIN,2000).
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A reconstituio da filosofia carnediana complexa e polmica. Para alguns
estudiosos, conforme observa Verdan (1998, p. 27), Carnades, a exemplo de Arcesilau,
recorre noo de probabilidade ao declarar que no prprio nvel do conhecimento
existem representaes provveis, s quais o sbio est no direito de conceder sua
aprovao, eximindo-se, contudo, de lhe atribuir um carter de verdade infalvel, de
certeza. Carnades e Arcesilau desenvolveram inicialmente a prtica dialtica das
antinomias, mostrando que possvel propor argumentaes igualmente boas em
direes opostas e contraditrias, de onde precisamente resulta a impossibilidade de dar
assentimento a qualquer uma das teses conflitantes (PORCHAT PEREIRA, 2007, p.
282). Ainda que a filosofia da Nova Academia parea historicamente discutvel, o
pirronismo preferiu consider-la uma outra forma de dogmatismo, como um
negativismo epistemolgico que asseria a inapreensibilidade da verdade (PORCHAT
PEREIRA, 2007, p. 150); o acadmico seria uma espcie de dogmtico s avessas,
por sustentar, tambm dogmaticamente, a negao da possibilidade do conhecimento
(DUTRA, 1993, p. 42).
Por fim, Sexto reservou o nome de cticos aos pirrnicos. A palavra
ceticismo (skeptiki) deriva do termo grego skptomai, que significa aqueles que
observam, que examinam (PORCHAT PEREIRA, 2007, p. 296). Com Sexto
Emprico, especialmente, o ceticismo antigo definiu-se como uma investigao
continuada e incansvel, uma filosofia zettica, como afirma Porchat Pereira (2007,
p. 42).21 Por no sustentarem nem mesmo a veracidade de suas prprias formulaes,
porque no se pretendem capazes de estabelecer definitivamente nenhum ponto, nem
mesmo a inapreensibilidade da verdade, os pirrnicos se condenam a uma
21
Zettico decorre de zetein: perquirir, ter dvida, investigar. Reale (1995, p. 270) designa zettica aatitude prpria do ctico, que um homem que investiga e faz pesquisa (sem nunca encontrar averdade).
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investigao filosfica permanente, de onde vem a denominao zettica com que
intitulam a sua prpria escola (PORCHAT PEREIRA, 2007, p. 77).
Se o ctico pirrnico caracteriza sua filosofia como zettica,como uma investigao permanente, porque o renascerfrequente do desafio dogmtico e a mesma impossibilidade deuma soluo pretensamente definitiva para tal desafio precisamente porque ela seria tambm dogmtica deixam aproblemtica filosfica necessariamente em aberto, convidandocontinuamente o ctico ao exerccio de sua investigao crtica.(PORCHAT PEREIRA, 2007, p. 226)
Segundo Verdan (1998, p. 37), as palavras cticos e zetticos no carregam,
etimologicamente, nenhum valor negativo, significando examinadores,
investigadores. A conduta pirrnica definida por Sexto Emprico como
investigativa, em contraste com a dogmtica, que julga ter encontrado a verdade, e em
contraste tambm com a acadmica, que diz ser impossvel faz-lo. O ctico, ento,
seria aquele que evita dar assentimento a coisas no aparentes, preferindo manter acesa
a chama da investigao (DUTRA, 1997); o discurso pirrnico busca descrever como
as coisas lhe aparecem (DUTRA, 1993, p. 39).
A atitude ctica pirrnica no almeja que seus argumentos sejam conclusivos,
pois pretend-lo seria um dogmatismo s avessas; seu objetivo mostrar que seus
pontos de vista so equiparveis, em fora argumentativa, aos argumentos das
filosofias dogmticas e a quantos se podem construir em defesa de formulaes
assertivas quaisquer (PORCHAT PEREIRA, 2007, p. 76). Para isso, o pirrnico utiliza
o princpio das antinomias, que consiste em opor a todo discurso um discurso de
igual fora persuasiva (PORCHAT PEREIRA, 2007, p. 74).
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A concepo ctica defendida por Sexto traz elementos da dialtica
argumentativa e antinmica, bem como a valorizao antidogmtica do fenmeno
defendida por Pirro e, tambm, as reflexes oriundas das escolas Empirista e Metdica
de medicina, que valorizavam a empiria, em oposio tradio racionalista
(PORCHAT PEREIRA, 2007, p. 286).22 Sexto organizou e exps as figuras gerais da
argumentao ctica mediante os tropos elaborados por Agripa (I-II d.C.) e
Enesidemo (I a.C.) em favor da suspenso do juzo.23 O pirrnico utiliza o princpio das
antinomias porque no considera possvel a existncia de uma tese qual no se possa
opor uma anttese, uma vez que no h argumento que no possa ser derrubado por um
argumento contrrio, igualmente convincente (VERDAN, 1998, p. 38). Diferentemente
do dogmtico, que voluntariamente adere a uma das teses em diafonia, o ctico
suspende o juzo e continua investigando (DUTRA, 2005, p. 40).
A prtica de discursos antinmicos remonta aos sofistas, que, embora recusando
o dogmatismo e todo pensamento metafsico, no contestavam a possibilidade de
estabelecer o que algo por meio do discurso (MAZZOTTI, 2008, i). Seus
ensinamentos visavam mostrar que a argumentao envolve a antilgica, que consiste
em opor um logos a outro logos ou descobrir ou chamar ateno para a presena de
uma oposio em um argumento, ou em uma coisa ou situao (KERFERD, 2003, p.
109). Considerando que o verdadeiro sempre, para cada homem, o que tal lhe
parece, Protgoras (490-421 a.C.) reduziu a ideia de Verdade s verdades
particulares, afirmando que as opinies sempre divergem, que os homens so
persuadidos pelo discurso e que sempre possvel opor persuasivamente um
22 Por volta de 250 a.C., Filinos de Cs fundou a medicina emprica, assim chamada por atribuir experincia papel fundamental no diagnstico e no tratamento das doenas (VERDAN, 1998). Emcomum com o pirronismo, os metdicos entenderam que tudo que de interesse para a medicina sepassa no domnio do observvel (PORCHAT PEREIRA, 2007, p. 280).23 Segundo Verdan (1998, p. 39-41), os modos de Agripa so: discordncia, regresso ao infinito,
relao, postulado, e dialeto ou crculo vicioso. Enesidemo, por sua vez, considera: as diversidades dosanimais, dos homens e dos sentidos; as circunstncias; os costumes, leis e opinies; as misturas, situaese distncias; as quantidades ou composies; a freqncia e a raridade; e a relao.
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argumento contrrio ou tornar mais forte a razo anteriormente mais fraca (PORCHAT
PEREIRA, 2007, p. 14). O interesse de Grgias (485-380 a.C.), por sua vez, era voltado
principalmente para as declaraes acerca de fenmenos, argumentando que no h
como aplicar o verbo ser a um sujeito sem que surjam contradies (KERFERD,
2003, p. 164).
Na filosofia platnica recorria-se ao princpio das antinomias para preparar a
intuio das essncias ou Formas e para combater o apego dos interlocutores de
Scrates a seus dogmas e preconceitos. Na dialtica aristotlica, os discursos
construtivos e destrutivos, que so mutuamente contraditrios, eram propostos
como arte propedutica dos princpios verdadeiros e indubitveis, como se l nos
Tpicos.24 Com o pirronismo, o princpio das antinomias perde esse carter
propedutico, como tambm a inteno platnica de intuir as essncias. Conservando os
ensinamentos da Sofstica de que a todo discurso possvel opor um discurso de igual
fora persuasiva, os pirrnicos concebem o princpio das antinomias como instrumento
de denncia e desmistificao dos discursos dogmticos e de suas pretenses
(PORCHAT PEREIRA, 2007, p. 157).
Na concepo sextiana, mesmo as frmulas cticas de argumentar no escapam
dvida (VERDAN, 1998, p. 38). At os argumentos que parecem assertivos, como
todas as coisas so indeterminadas ou a todo argumento ope-se um argumento
igual, devem ser entendidos como enunciados que apenas dizem o que aos cticos
parece, como anncios de suas humanas afeces (PORCHAT PEREIRA, 2007, p.
76). Nas Hipotiposes Pirronianas, Sexto explica que o pirronismo se limita ao
conhecimento dos fenmenos, sem aferir sobre a realidade em si (VERDAN, 1998). A
24 No livro I dos Tpicos, Aristteles diz que O propsito deste tratado descobrir um mtodo que nos
capacite a raciocinar, a partir de opinies de aceitao geral, acerca de qualquer problema que seapresente diante de ns e nos habilite na sustentao de um argumento, a nos esquivar da enunciao dequalquer coisa que o contrarie (100a18).
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fenomenicidade que o ctico confessa no ter como recusar o que se pode chamar de
experincia-de-mundo (PORCHAT PEREIRA, 2007, p. 263), sob a qual possvel
introduzir a noo de verdade fenomnica (PORCHAT PEREIRA, 2007, p. 204).
Desse modo, no faz parte do posicionamento pirrnico discutir sobre o
fenmeno, propriamente, mas sobre a sua interpretao. A dvida ctica pirrnica,
portanto, incide sobre um discurso humano que se prope como interpretao da
aparncia fenomnica e como desvelamento do discurso interno do objeto com a
pretenso de manifestar o serpara alm do aparecer (PORCHAT PEREIRA, 2007, p.
93).
2. O pirronismo na filosofia moderna
O ceticismo pirrnico foi decisivo na criao da atmosfera intelectual de que
resultou a formao da filosofia moderna (PORCHAT PEREIRA, 2007, p. 81). Popkin
(2000) explica que a problemtica do conhecimento se consolidou, de fato, no sculo
XVI, a partir da redescoberta dos escritos de Sexto Emprico, os quais forneceram
argumentos para as lutas religiosas que levaram Reforma Protestante. Os critrios
defendidos pela Igreja passaram a ser contestados pelos reformadores, despertando
questionamentos acerca do padro correto a ser adotado para compreender as verdades
da religio, favorecendo a retomada do problema prprio dos pirrnicos, o critrio de
verdade.
O desafio de Lutero e Calvino tinha dado origem busca de uma garantia dacerteza de nossas crenas e princpios bsicos. Tanto os reformadores
quanto seus adversrios podiam cada um mostrar que a viso do outro notinha fundamentos defensveis e podia estar contaminada por dificuldades
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cticas. A extenso deste tipo de problema para o campo do conhecimentonatural revelou que o mesmo tipo de crise ctica existe tambm a. Qualquerfundamento filosfico poderia ser questionado, um fundamento exigiria umnovo fundamento e assim por diante. (POPKIN, 2000, p. 297)
Levantado primeiramente em disputas teolgicas, o problema de encontrar o
critrio de verdade desencadeou uma crise nas principais correntes da filosofia moderna,
levando alguns pensadores a duvidarem da possibilidade de o homem conhecer de
forma certa e definitiva o real (MARCONDES, 2002, p. 162). Na poca, diversos
pensadores se destacaram, sendo Michel de Montaigne (1533-1592) o que mais se
deixou influenciar por Sexto Emprico, afirmando que a anlise da experincia sensvel,
base de todo conhecimento que podemos ter, revela que nenhum de nossos pontos de
vista tem qualquer certeza ou fundamento confivel; sua concluso, portanto, que o
nico caminho seguir o pirronismo antigo e suspender o juzo (POPKIN, 2000, p.
103).25
Em vez de tentar encontrar uma soluo para as dvidas aparentemente
insolveis sobre nossa capacidade de encontrar bases certas e indubitveis para o
conhecimento que possumos, Marin Mersenne (1588-1648) procurou salvar o
conhecimento, enunciando que sua confiabilidade e utilidade no dependiam da
descoberta de fundamentos para toda a certeza (POPKIN, 2000, p. 225). Diante da
crise pirrnica, Mersenne buscou estabelecer um tipo de conhecimento no sujeito aquestionamento, como a efetivao de dados sobre as aparncias, hipteses e
previses sobre as conexes entre eventos e o curso da experincia futura (POPKIN,
2000, p. 213). Assim, Mersenne deu origem ao ceticismo mitigado ou construtivo,
que consiste em aceitar o conhecimento como possvel, mesmo que todo conhecimento
25 Verdan (1998) sugere que Ensaios de Montaigne a principal obra dedicada temtica do ceticismo.
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esteja aberto a algum tipo de dvida e que nenhuma crena seja adequadamente
fundamentada (POPKIN, 2000, p. 222).
O ressurgimento do pirronismo deu origem a outras tentativas para salvar o
conhecimento humano, ento ameaado (POPKIN, 2000, p. 153). Francis Bacon
(1561-1626) empregou as teorias de Aristteles para rejeitar as concepes dos cticos,
por ele criticados por apresentarem erroneamente os problemas envolvidos na obteno
do conhecimento atravs dos sentidos (POPKIN, 2000, p. 207). Para Bacon, os
obstculos suscitados pelo ceticismo seriam ultrapassados pela elaborao de
instrumentos e critrios cientficos, uma vez que a verdadeira causa dos erros humanos
so os dolos, as iluses ou distores que impedem o verdadeiro conhecimento.26
O auge das tentativas modernas de refutao do ceticismo foi o fracasso
herico de Descartes (1596-1650), como afirma Popkin (2000, p. 153). Os
desenvolvimentos propiciados por Nicolau Coprnico (1473-1543), Giordano Bruno
(1548-1600) e Galileu Galilei (1564-1642) foram decisivos para que o filsofo
reconhecesse a necessidade de uma nova cincia da natureza, a ser implementada por
meio de um exame do prprio saber, uma investigao sobre o conhecimento
humano; um mtodo, portanto, capaz de esclarecer o que nos faz acertar ou errar
quando conhecemos (DUTRA, 2000, p. 23). Para encontrar uma certeza bsica que,
imune s dvidas cticas, levasse construo dessa nova teoria cientfica em bases
slidas, o critrio adotado por Descartes foi reconstituir um mundo que abriga trs
substncias: Deus, a alma e a matria. Nessa viso, explica Dutra (2000, p. 26), o ser
humano resulta, ento, da unio da alma e do corpo; participando das duas substncias,
26 Bacon categoriza os dolos em quatro tipos: da tribo, resultantes da prpria natureza humana; da
caverna, consequncias das caractersticas individuais e das influncias do meio; do foro, resultado dasrelaes comunicativas e discursivas entre os homens; e do teatro, doutrinas filosficas e cientficasantigas que regem mundos fictcios e teatrais (MARCONDES, 2002, p. 178-179).
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o homem se torna semelhante a Deus, por um lado, mas semelhante ao mundo, por
outro.
Na resposta de Descartes ao ceticismo, Popkin (2000, p. 298) v o mesmo tipo
de articulao feita pela Reforma, a mesma tentativa de objetificar a certeza subjetiva
unindo-a a Deus. A base dessa ideia que, em um mundo sem Deus, qualquer verdade
pode ser considerada duvidosa e nenhuma cincia verdadeira pode ser descoberta. A
dvida cartesiana conduz regra da verdade, e esta, a Deus, o que fornece a garantia
objetiva de nossa certeza subjetiva (POPKIN, 2000, p. 299). Por essa via, Descartes
acreditou ter conseguido uma completa reverso do ceticismo, marchando da dvida
total para a certeza total (POPKIN, 2000, p. 295). Mas o recurso cartesiano afirmao
da existncia de Deus um pressuposto que a tradio ctica sempre recusou, por tratar-
se de um dogma. Por isso, Cunha (2006, p. 54) diz que o drago ctico no foi
aniquilado, e nem poderia s-lo, uma vez que o argumento da afirmao inquestionvel
um guerreiro que, embora imbatvel segundo a mentalidade dogmtica, no cabe no
repertrio intelectual do ctico.
Ao assumir o objetivo de derrubar os questionamentos dos cticos, Descartes
percorre metodologicamente uma primeira etapa ctica quando coloca em dvida os
dados da percepo sensorial, a prpria existncia de uma realidade exterior, a verdade
de nossas ideias em si mesmas, as prprias noes matemticas. No entanto, com o
propsito de manifestar a certeza indubitvel do Cogito e permitir, uma vez obtido um
critrio de verdade, edificar o sistema metafsico e o sistema fsico do conhecimento
verdadeiro, o cartesianismo acaba por preservar o ceticismo mediante um recurso
prprio dos cticos, a dvida (PORCHAT PEREIRA, 2007, p. 82).27
27 Para Porchat Pereira (2007, p. 83), o ceticismo metodolgico de Descartes tornou-se um paradigma
onipresente e oculto, porque adotado inconscientemente pelo pensamento moderno. Essa atitudefoi assimilada de tal modo que a filosofia no mais se detm em rediscutir e reavaliar a velhaargumentao ctica que a justificou historicamente (PORCHAT PEREIRA, 2007, p. 86).
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Dutra (2005, p. 26) esclarece que Descartes utiliza a atitude dubitativa como
ferramenta metodolgica ao afirmar que, na medida em que a qualquer momento
nossas opinies podem ser motivos de dvida, o mais prudente , de antemo, duvidar
de todas elas, colocando-as todas em confronto e confiando que aquelas que
realmente forem expresso do que o caso vo resistir a toda dvida. A estratgia
dubitativa adotada por Descartes assemelha-se atitude ctica, mas no o suficiente
para denomin-lo um ctico, propriamente;28 o tipo de ceticismo compatvel com essa
estratgia, presente nos filsofos modernos, possui carter meramente metodolgico, e
est voltado para os objetivos tericos de suas filosofias (DUTRA, 2005, p. 20).
Segundo Verdan (1998, p. 80), Descartes no contesta, de fato, a existncia da razo
humana e sua eficcia para alcanar a verdade absoluta, admitindo a capacidade da
razo para elucidar os problemas fundamentais que se apresentam reflexo filosfica:
a existncia e a essncia da alma, de Deus, do mundo sensvel.
Pode-se dizer que os filsofos do sculo XVIII aproximaram-se do pirronismo,
na medida em que tomaram conscincia dos limites do conhecimento, como explica
Verdan (1998, p. 96-97). O prprio Hume (1711-1776), observa Smith (1995, p. 71),
afirma que a reduo de quase todos raciocnios experincia um dos aspectos do
seu ceticismo. Hume coloca-se contra um ceticismo que nega toda possibilidade de se
descobrir a verdade, pois o seu objetivo confesso , se possvel, alcan-la (SMITH,
1995, p. 32). Para Smith (1995, p. 143-144), o empirista escocs defende uma
concepo mais moderada de dvida, com o objetivo de manter a imparcialidade em
nossos julgamentos e afastar os nossos preconceitos que derivam da educao e da
opinio precipitada. A proximidade de Hume com os cticos antigos decorre da nfase
28 Sobre os crticos que vinculavam o cartesianismo ao pirronismo no sculo XVII, ver o captulo X dePopkin (2000).
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na prtica e na vida comum que o filsofo situa em oposio ideia de contemplao da
verdade (SMITH, 1995, p. 294).29
Na anlise de Dutra (2000, p. 28), Hume certamente o primeiro autor da nova
tradio epistemolgica a pr em questo a doutrina de que a cincia da natureza
repousa em fundamentos seguros e indubitveis, mas sem abrir mo, no entanto, da
ideia de correspondncia entre nossas ideias e as coisas do mundo. Segundo Verdan
(1998, p. 104), a filosofia humeana no descarta o conhecimento dos fenmenos
naturais a partir da observao cientfica e da experincia; sua oposio contra a
existncia de certezas rigorosas que repousam sobre um fundamento racional, uma
vez que Hume concebe as certezas como simples probabilidades.
Verdan (1998, p. 107) tambm analisa que Kant (1724-1804) foi ao encontro da
discusso pirrnica acerca da impossibilidade de a razo humana estabelecer uma
cincia metafsica rigorosa, ultrapassando o campo da experincia sensvel, dos
fenmenos, para alcanar realidades absolutas. Kant pretende mostrar que da
prpria natureza do esprito humano no poder alcanar o ser-em-si, sendo unicamente
possvel conhecer os fenmenos. Contudo, o criticismo kantiano contraria a posio
pirrnica ao defender um idealismo transcendental em que os objetos devem se
conformar ao nosso conhecimento.
3. Vises contemporneas do pirronismo
A influncia do pirronismo no ficou restrita ao passado. As concepes de Pirro
percorreram todo o sculo XX e so, ainda hoje, retomadas por diversos estudiosos.
29 Porchat Pereira (2007, p. 295) considera que o ceticismo, o naturalismo e o empirismo encontram-seintimamente associados na filosofia humeana.
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Dois filsofos brasileiros examinam sua ocorrncia na atualidade: Luiz Henrique de
Arajo Dutra (2005, p. 12), que apresenta uma verso construtiva do pirronismo, e
Oswaldo Porchat Pereira (2007, p. 227), que se prope a repensar e reelaborar a
atitude pirrnica, no intuito de desenvolv-la, atualiz-la e adapt-la reflexo de
nossos dias.
Tendo como referncia o pensamento de Pirro de lis e de Sexto Emprico,
Dutra (2005, p. 21) define o ceticismo como um posicionamento intelectual crtico que
nos convida a tomar conscincia das limitaes de nossas concepes e teorias, sem
que isso implique o abandono de todas elas. O autor desenvolve seus argumentos a
favor de um pirronismo que visa verdade, podendo, por isso, ser chamado de
ceticismo altico (DUTRA, 1996).30 Nessa verso, torna-se possvel buscar a verdade
sem ser dogmtico, mantendo o desejo de encontrar a verdade e posicionando-se de
modo construtivo, mas dubitativo ao mesmo tempo; ao investigar segundo o modo
altico, simulamos o dogmatismo, construindo tambm teorias, mas suspendemos o
juzo depois de tentar multiplicar as hipteses e estabelecer a equipolncia, como faria
o pirrnico diante de uma tese dogmtica (DUTRA, 1997, p. 46-47).
Dutra (1997, p. 51) v o ceticismo altico como uma habilidade de lidar com
hipteses e gerir programas de pesquisa, produzindo conhecimento sem dogmatizar.
Reside a um benefcio para o campo da investigao, uma vez que se atesta o valor
heurstico das hipteses, das teorias ou doutrinas tomadas provisoriamente (DUTRA,
1995, p. 279). Trata-se de um ganho pragmtico, pois ficam preservadas as vantagens
do dogmatismo, sem as suas desvantagens, que remetem aceitao precipitada de teses
30 A palavra altico deriva do termo grego alethia, que significa verdade (REALE, 1995, p. 267-268). Em grego, verdade uma palavra que se diz negativamente, por isso a proposio a antes dotermo lthe, que significa a gua do esquecimento na filosofia platnica. (CHAUI, 2002, p. 41). Plato
emprega essa acepo na Repblica, especificamente no mito da reminiscncia, quando afirma que asalmas dos homens sbios no beberam as guas do rio lthe as guas do esquecimento sendo capazes,por isso, de lembrar-se das ideias que contemplaram no mundo real.
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que desviam a rota daquilo que se procura a verdade. O filsofo altico, ou
construtivo, adota uma doutrina tentativamente, para test-la, estando disposto a deix-
la ou a reformul-la e torn-la melhor. Ele a assume apenas, portanto, como hiptese
(DUTRA, 1993, p. 57).
Na perspectiva altica, complementa Dutra (1998, p. 33-34), o que aparece o
que aparece a algum em determinada circunstncia, havendo circunstncias em que
existe mesmo um conflito no que aparece, um conflito no interior do mundo
fenomnico. A atitude do filsofo altico decorre, pois, do aparecer de situaes
cruciais: Trata-se sempre de examinar duas alternativas plausveis e contraditrias,
duas coisas que nos aparecem e que esto em conflito, consistindo todo o problema em
saber como se sai de uma situao crucial, isto , como escolhemos (ou no
escolhemos) uma das alternativas.
Tambm chamada de filosofia zettica ou filosofia de investigao permanente,
a verso pirrnica analisada por Dutra (1993, p. 48-49) contraria o posicionamento
dogmtico, pois sempre a primeira a desfazer-se de suas certezas. O altico no
anuncia, pois, teses (como faz a filosofia dogmtica), mas apenas hipteses; alm
disso, investiga contra suas hipteses, do mesmo modo como faz a filosofia ctica.
Dutra (1993, p. 51) explica que o objetivo principal do filsofo de investigao
permanente dar continuidade s suas tentativas de reelaborar doutrinas e investigar
contra elas sem ser acusado de proceder irracionalmente, o que mantm sempre aberta
a possibilidade de reelaborar a doutrina e submet-la de novo investigao.
Exatamente por serem as hipteses apenas provveis, afirma Dutra (1997, p. 55-56), o
altico ensina a investigar contra elas, ou seja, coloc-las a prova. O que leva o
dogmatismo a paralisar o conhecimento dar por terminado o trabalho de investigao
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em um momento qualquer, e no prosseguir no exame perene das hipteses; a isso
que se ope o ceticismo altico.
Dutra (2000, p. 107-108) afirma que, na pragmtica da investigao, conserva-se
a ideia de continuidade entre cincia e tcnica, adotando-se certa postura
instrumentalista que busca superar o divrcio entre teoria e prtica, concebendo as
teorias cientficas e a prpria atividade cientfica, cognitiva e investigativa como
instrumentos de predio e controle de fenmenos indissociveis da prtica de
resolver problemas. A pragmtica da investigao desconsidera a separao entre
teoria e prtica, ou entre pensar e agir, rejeitando esses termos como atividades
separadas ou distintas, uma vez que toda atividade investigativa ao mesmo tempo
fsica e mental; toda atividade ligada investigao ou averiguao uma forma de
ao (DUTRA, 2001, p. 136).
De acordo com Dutra (2005, p. 45), se esse neopirronismo vai alm do
pirronismo antigo, isso talvez se deva apenas ao fato histrico inegvel de que a cultura
atual contm elementos realmente dspares daqueles presentes na cultura antiga. O que
autor defende, enfim, uma formulao pragmtica do pirronismo, uma perspectiva
investigativa em que o conhecimento uma crena (ou hiptese) em processo de
averiguao (DUTRA, 2001, p. 147), em que a noo de verdade como acordo atua
como ferramenta indispensvel da prpria investigao, isto , como um elemento
essencial da pragmtica da investigao (DUTRA, 2001, p. 148). O objetivo da
investigao constatar se h ou no um acordo entre uma hiptese e os dados
reunidos na base de dados, por meio de experimentos e outros procedimentos
investigativos (DUTRA, 2001, p. 149).
Segundo o posicionamento de Dutra (2001, p. 149), no processo investigativo a
verdade torna-se ineliminvel, sendo um constituinte essencial da investigao,
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um elemento operativo, revelado pela anlise da pragmtica da investigao.
Considerando que uma investigao que no visa a verdade no realmente uma
investigao, a verdade como acordo o conceito chave revelado pela pragmtica da
investigao, na qual investigar procurar a verdade, isto , procurar estabelecer um
acordo, averiguar. O que permite sustentar que nunca lidamos com sistemas
fechados ou acabados, mas com sistemas abertos, isto , sistemas que sempre podem
ser socorridos por novos acrscimos, novas proposies aceitas (DUTRA, 2001, p.
69).
Oswaldo Porchat Pereira (2007, p. 259), por sua vez, define-se como ctico
pirrnico, esclarecendo que emprega os termos ceticismo e pirronismo como
sinnimos, embora considere mais adequado o termo neopirrnico, propondo-se a
repensar as concepes bsicas do pirronismo segundo a problemtica filosfica
moderna e contempornea. Porchat Pereira (2007, p. 69) sugere haver um carter
positivo na filosofia ctica. Seu argumento que a histria da filosofia marcada por
grandes sistemas filosficos incompatveis que partilham da mesma pretenso de
representar a verdadeira soluo dos problemas do ser e do conhecer (PORCHAT
PEREIRA, 2007, p. 15):
a filosofia aparece-nos como uma multiplicidade historicamente
dada de filosofias, identicamente empenhadas, todas elas, naelucidao da prpria noo de filosofia e identicamenteconfiantes na prpria capacidade de resolver essa questo deprincpio e de executar de maneira adequada o programa que omesmo empreendimento de autodefinio implicitamente lhestraa. Essa pretenso, que lhes essencial, leva-asnecessariamente, ento, a uma mtua e recproca excomunho eexcluso, na mesma medida em que pertence a cada filosofia odever impor-se como a nica e verdadeira Filosofia.(PORCHAT PEREIRA, 2007, p. 16)
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O autor dirige suas crticas s filosofias que fizeram da verdade seus temas
preferenciais, e argumenta que um bom nmero de filsofos pretendeu ter estabelecido
verdades definitivas e absolutas, cujo reconhecimento se exprime ento em seus
discursos verdadeiros (PORCHAT PEREIRA, 2007, p. 174). O que Porchat Pereira
(2007, p. 219) almeja chamar a ateno para as condies de aceitabilidade intrnsecas
a todo discurso filosfico: Nenhuma tese filosfica se avana sem que se vise sua
aceitabilidade, pois todo discurso filosfico se quer aceitvel e, no limite ideal,
aceito pela comunidade dos seres racionais. Perguntar pela legitimidade dos
problemas filosficos, segundo Porchat Pereira (2007, p. 220), o mesmo que perguntar
pela sua aceitabilidade, enquanto problemas, pelo auditrio formado pela comunidade
racional a que o filsofo sempre se dirige, porque os filosofemas somente se podem
propor como aceitveis porque estabelecidos por argumentaes aceitveis.
Diante do conflito das filosofias, Porchat Pereira (2007, p. 273) afirma que
ainda preciso ser ctico:
Enquanto tanto os que julgam ter encontrado a Verdade quantoos que pretendem ter estabelecido que ela inapreensvel pem,de algum modo, um fim ao seu filosofar, os cticos continuamincansavelmente a filosofar. Pois sua epoch, sempre provisria,traduz apenas o que, no momento, lhes parece. (PORCHATPEREIRA, 2007, p. 77)
Para Porchat Pereira (2007, p. 260), o ceticismo exibe duas faces
complementares. A primeira lida com a razo terica e o dogma, e a segunda, com o
mundo das aparncias e a vida comum; ambas, porm, so intimamente
interligadas. Em sua primeira face, descrita por Porchat (2007, p. 262) como
dimenso negativa e dialtica, o ctico experiencia a dessacralizao do lgos ao
descobrir o carter antinmico da razo terica e a natureza eminentemente retrica
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O ceticismo se define, pois, como uma teraputica que se serve do discurso
para curar os homens de sua propenso ao dogmatismo, mas no se trata de uma
teraputica contra a filosofia e, sim, de uma teraputica filosfica, de uma filosofia que
se assume como tal (PORCHAT PEREIRA, 2007, p. 77). Trata-se de uma atitude
crtica e rigorosa, em contraposio aos fantasmas do Absoluto; um modo de
pensar que Porchat Pereira (2007, p. 270) caracteriza como voltado para a vida dos
homens e que permite considerar as razes histrico-filosficas, valores culturais,
influncias da metodologia das cincias da natureza, resultados obtidos pelas cincias
sociais e humanas, os quais so decisivos condicionamentos scio-histrico-
econmicos, em todo estudo que se proponha crtico.
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Captulo 2
Cincia e moral em Dewey
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(...) Se os homens tivessem sido educados a pensarnos valores humanos como agora tm apreendidoa pensar a respeito das artes tcnicas, toda nossa
situao poderia ser diferente. (DEWEY, 1929, p.46-47)
1. A proposta de um nico mtodo para todas as cincias
No decorrer dos onze captulos que compem a obra The quest for certainty,
Dewey desenvolve uma discusso cujo objetivo propor a expanso do mtodo
investigativo das cincias experimentais para o campo dos juzos morais. No ltimo
captulo do livro, intitulado A revoluo copernicana, compreende-se que a referida
proposta envolve uma profunda mudana nos critrios pelos quais entendemos o
conhecimento moral e valorativo, sendo preciso, para isso, focalizar a reflexo nas
necessidades congruentes com a vida presente e interpretar as concluses da cincia
em relao s suas consequncias sobre as nossas crenas acerca de propsitos e
valores (DEWEY, 1929, p. 313).
A afirmao de que o mtodo cientfico serve tambm para as cincias humanas
j havia sido delineada por Dewey anteriormente, em Democracia e educao, obra de
1916, na qual se l que a grande quantidade de invenes consequentes ao nosso
domnio intelectual dos segredos da natureza testemunha que a cincia o meio
principal de melhorarmos progressivamente os meios da ao, cabendo educao, em
particular, a responsabilidade de utilizar a cincia de modo a modificar a habitual
atitude de imaginao e sentimento (DEWEY, 1959b, p. 246).32 As questes sociais s
se tornaro inteligentemente resolvidas na proporo em que empregarmos o mtodo
32 Sobre o uso da cincia por Dewey, ver Hansen (2006b), que analisa particularmente os trs ltimoscaptulos de Democracia e educao.
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da cincia, que consiste em colidir dados, conceber hipteses e coloc-las em prova
na atividade (DEWEY, 1959b, p. 314). Nesse mesmo livro, Dewey (2007, p. 83) faz a
defesa de uma filosofia que tenha em vista o atual estado da cincia na indicao da
validade dos valores, considerando os resultados cientficos especializados em suas
relaes com iniciativas sociais futuras. Para reforar seu argumento, analisa as origens
da filosofia, dizendo que os sofistas j buscavam aplicar os resultados e os mtodos
dos filsofos naturais conduta humana, principalmente quando indagavam sobre a
relao entre instruo, conhecimento e virtude (DEWEY, 2007, p. 84-85).33
O ponto central da argumentao de The quest for certainty o posicionamento
da filosofia como possuidora de uma funo instrumental na busca de solues para os
problemas humanos. Dewey concede filosofia um papel sumamente importante na
construo do bem, conforme se encontra explicitado no penltimo captulo da obra. 34
Ali, atribuda filosofia a tarefa de refletir sobre os problemas da humanidade,
conciliar os resultados da cincia natural com a validade objetiva dos valores que
regulam as condutas dos homens (DEWEY, 1929, p. 24). Assim, cabe filosofia
examinar as condies atuais da cincia e da vida, investigando os critrios, juzos e
crenas que dirigem nossa conduta (DEWEY, 1929, p. 67). Desenvolver um sistema
de ideias operantes congruentes com o conhecimento atual e a com as facilidades de
controle dos eventos naturais; conseguir um ajustamento entre as concluses da
cincia natural e as crenas e valores que tm autoridade na direo da vida (DEWEY,
1929, p. 284).
33 De acordo com Kerferd (2003, p. 196), os sofistas foram os primeiros a colocar o problema da relaoentre leis e exigncias da natureza humana. Os termos nomos e physis, tradicionalmente traduzidos porlei e natureza, eram de grande importncia no pensamento dos sofistas, sempre envolvendo oreconhecimento da physis como uma fonte de valores e, portanto, em si mesma, de alguma forma
prescritiva (KERFERD, 2003, p. 194).34 As formulaes apresentadas nesse captulo, intitulado A construo do bem, foram reorganizadaspor Dewey no ensaio Three independent factors in morals, publicado em 1930 (PAPPAS, 2008).
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A proposta deweyana de que o mtodo investigativo das cincias til no campo
da moral sustentada na rejeio do dualismo entre conhecimento e ao, isto , na
ideia de que valores tericos no podem ser separados de valores prticos. Para Dewey,
(1929, p. 36-37), a filosofia deve renunciar a esse dualismo para facilitar a interao
entre nossas crenas cognitivas, que so baseadas nos mtodos de investigao mais
seguros, e nossas crenas prticas acerca dos valores. Como bem observa Dutra
(2001, p. 137), desde os autores modernos, como Locke e Hume, a histria da
epistemologia se confunde com a histria das discusses sobre a noo de crena.
Segundo Amaral (2007, p. 69), o posicionamento de Dewey representa uma rejeio
clssica dicotomia entre conhecimento e crena, a qual remonta aos gregos, pois na
filosofia deweyana todo conhecimento uma crena, no havendo ruptura entre
crenas a respeito dos valores e dos fins, porque todas as crenas intelectuais so como
crenas morais que dizem respeito conduta, atuao prtica. Dewey (1929, p. 48)
busca efetivamente o equilbrio entre a cincia e os valores, afirmando que crenas
autnticas sobre a existncia podem operar fecunda e eficazmente em conexo com
problemas prticos. O homem tem crenas proporcionadas pela investigao
cientfica, crenas acerca da natureza e dos processos reais das coisas, e dispe
tambm de crenas acerca dos valores que devem regular sua conduta (DEWEY,
1929, p. 19).
Dada a complexidade de sua proposta, Dewey (1929, p. 309) considera
necessrio discutir com as correntes da filosofia que no acatam a possibilidade de
expandir o mtodo cientfico ao campo dos valores, pois tais correntes, ao almejarem
uma demonstrao absoluta da certeza, acabam separando conhecimento e ao.
Sustentam que a perfeio moral uma propriedade do Ser ltimo (DEWEY, 1929, p.
53), firmando assim uma relao de completa dependncia de todas as coisas a uma lei
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universal e necessria (DEWEY, 1929, p. 55). Dewey reconhece que a ideia de adotar
o mtodo cientfico nas humanidades provoca uma sensao de abandono de uma
autoridade reguladora (DEWEY, 1929, p. 273); as crenas correntes no campo da
moral, da poltica e da religio exprimem o medo da mudana e o sentimento de que a
ordem e a autoridade reguladora resultam de critrios fixos e antecedentes
realidade (DEWEY, 1929, p. 251). Apesar disso, Dewey (1929, p. 70) argumenta que
no se pode deixar de observar que essas filosofias abrem uma lacuna entre os
princpios fundamentais do mundo natural e a realidade dos valores reguladores.
Enquanto o mtodo da cincia aceito no terreno dos valores intelectuais, no mbito da
moral prevalece a ideia clssica de que autnticos e vlidos so os princpios morais
resultantes das propriedades do Ser, independentemente da ao humana.
Para Dewey (1929, p. 70), somos incapazes de empregar os critrios derivados
do Ser verdadeiro na formao de nossas crenas e juzos prticos, e no conseguimos
aceitar o fato de que o progresso da cincia depende dos mtodos de operao e no
de propriedades intrnsecas de um Ser antecedente. Isso prova que a filosofia, em sua
forma clssica, encontra-se separada dos problemas da vida, sendo no mais que uma
espcie de justificao apologtica da crena numa realidade ltima, na qual os valores
que devem regular a vida e guiar a conduta esto seguramente afirmados (DEWEY,
1929, p. 28-29). A filosofia instrumental defendida por Dewey (1929, p. 69) contrape-
se justamente s filosofias dualistas que buscam no Ser antecedente as propriedades
que podem exercer autoridade na formao de nossos juzos valorativos sobre fins e
propsitos, propriedades a que atribumos o poder de guiar nossa conduta intelectual,
social, moral, religiosa ou esttica. Para ele, os juzos valorativos devem resultar da
investigao reflexiva (DEWEY, 1929, p. 262); isto , devem ser provados e
revisados pela ao inteligente (DEWEY, 1929, p. 299). Devemos compreender que
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a ao inteligentemente dirigida o meio adequado para buscar o conhecimento
moral (DEWEY, 1929, p. 30), uma vez que os instrumentos e operaes da prtica
dirigida permitem sintonizar as cincias da natureza e os propsitos humanos
(DEWEY, 1929, p. 85).
Ao debater as correntes filosficas em Democracia e educao, Dewey (1959b,
p. 366) conferiu um carter mais amplo s referidas dicotomias, situando sua origem nas
slidas e altas muralhas que extremam os grupos sociais e as classes dentro de um
grupo, como as disposies entre ricos e pobres, homens e mulheres, pessoas nobres e
de baixa condio, e entre os que mandam e os que so mandados. Na esfera da
educao, como observa Cunha (2007a, p. 50), a crtica deweyana ao pensamento
dicotmico assume importncia fundamental, uma vez que a pedagogia por ele proposta
s aplicvel onde prevaleam relaes mtuas e igualitrias entre todos os membros
da sociedade, o que exige eliminar as dicotomias que separam as classes sociais.
Esse tema no abandonado em The quest for certainty, uma vez que Dewey
(1929, p. 80), ao examinar as dificuldades que se interpem sua proposta, diz que o
mtodo das cincias naturais no estar ao alcance da prtica social enquanto seus
resultados forem utilizados pelas classes privilegiadas; os obstculos que se apresentam
so de ordem prtica, relacionados com os aspectos organizacionais e econmicos da
sociedade, na qual o conhecimento usado para o bem de poucos e no para o bem
comum. A efetivao da ao inteligente na experincia concreta da vida decorre de
uma distribuio justa dos elementos da inteligncia e do conhecimento, alm de uma
participao mais livre nos resultados da cincia (DEWEY, 1929, p. 81). Em
Democracia e educao, o modo de vida democrtico descrito como aquele em que o
livre intercmbio o meio pelo qual uma experincia proveitosa para dar direo e
significao a outra (DEWEY, 1959b, p. 379). nesse ambiente que, em The quest for
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certainty, Dewey (1929, p. 252) v a educao como a chave para uma reconstruo
social ordenada, base para uma nova integrao da conduta humana e para o
desenvolvimento da inteligncia como um mtodo de ao.
Segundo Hansen (2006b, p. 9), a premissa fundamental que sustenta todo o
pensamento deweyano a crena na possibilidade de uma sociedade democrtica, sendo
a investigao um trao indispensvel democracia; o esprito da investigao,
prprio da atitude cientfica, a caracterstica da autntica democracia projetada por
Dewey. De acordo com Pappas (2008, p. 244), a comunidade democrtica idealizada
por Dewey uma consequncia de sua inteligncia ou confiana no mtodo
experimental. Dewey cr no poder da cincia, segundo Amaral (2007, p. 103),
porque cr no poder do mtodo da inteligncia cooperativa. Cunha (1999a, p. 81)
tambm observa que o conceito de cincia defendido por Dewey encontra-se
intrinsecamente ligado ao de democracia, e que os argumentos por ele articulados
para enfatizar o valor do conhecimento cientfico devem-se sua crena na
cooperao, na capacidade humana para elaborar de modo coletivo e igualitrio os
valores que iro dirigir as prprias realizaes cientficas. Para Dewey, a prtica do
mtodo investigativo da cincia no campo dos valores requer o abandono de verdades
imutveis (CUNHA, 2001b, p. 89), o que diz respeito diretamente a um determinado
modo de atribuir valor.
Em The quest for certainty, Dewey dedica-se a um aprimoramento dessa
discusso mediante o esclarecimento do conceito de juzo valorativo; para isso,
emprega uma definio, recurso argumentativo que visa demarcar as possibilidades de
interpretao sobre o que se discursa (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002).
Dewey (1929, p. 265) define juzos valorativos como juzos sobre as condies e
resultados de objetos experimentados, sobre o que deve regular a formao de nossos
8/7/2019 o ceticiso de dewey
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desejos, afeies e gostos. Essa estratgia discursiva fundamental porque estabelece
parmetros para o que se encontra em pauta: juzos valorativos dizem respeito
especificamente ao que pertence ao campo da experincia, da prtica, da ao; juzos
valorativos so apreciaes feitas no mbito de determinadas condies e que geram
determinados resultados. Essa delimitao torna possvel conceber os juzos morais
como acessveis a um tratamento cientfico, uma vez que tais condies e tais resultados
podem ser investigados e conhecido