Post on 11-Feb-2019
Traduzido do inglês por Cristina Rodriguez e Artur Guerra
O AJUSTE DE CONTAS
Jacob Soll
The ReckoningFinancial Accountability and the Rise and Fall of Nations
Índice
Prefácio :: Ajuste de contas: o marquês de Pombal e o problema
da responsabilização financeira :: 9Introdução :: 15
1 :: Breve história dos primórdios da contabilidade, da política
e da responsabilização :: 25
2 :: Em nome de Deus e do lucro: os livros segundo São Mateus :: 41
3 :: A magnificência dos Médicis: uma história de ensinamentos :: 57
4 :: O matemático, o cortesão e o imperador do mundo :: 79
5 :: A auditoria holandesa :: 104
6 :: O contabilista e o Rei Sol :: 124
7 :: O primeiro resgate financeiro :: 140
8 :: “Fama e lucro”: contabilidade na cerâmica Wedgwood :: 158
9 :: Dívidas grandes, números grandes e a revolução francesa :: 175
10 :: “O preço da liberdade” :: 193
11 :: Nos carris :: 214
12 :: O dilema de Dickens :: 228
13 :: Dia do julgamento :: 240
Conclusão :: 259
Agradecimentos :: 263
Notas :: 267
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Introdução
Em setembro de 2008, precisamente quando eu estava a acabar um livro
sobre o francês Jean-Baptiste Colbert, o famoso ministro das Finanças
do rei Luís XIV, descobri uma coisa extraordinária: Colbert encomen-
dou livros de contabilidade em miniatura e com caligrafia dourada para
que o Rei Sol os transportasse no bolso do casaco. Duas vezes por ano,
com início em 1661, Luís XIV recebia as novas contas dos seus gastos,
da sua receita e do seu património. Era a primeira vez que um monarca
desta envergadura revelava um tal interesse pela contabilidade. Foi este,
ao que parece, o ponto de partida da política moderna e da responsa-
bilização*: um rei que trazia consigo o livro de contas de modo a que
pudesse estar a qualquer momento a par dos teres e haveres do seu reino.
Fiquei igualmente admirado ao descobrir a curta existência que esta
experiência teve. Pois assim que Colbert morreu, em 1683, Luís XIV –
constantemente no vermelho devido à sua predileção por guerras dispen-
diosas e palácios como Versalhes – desligou-se dos livros de contas. Em
vez de os considerar ferramentas de sucesso administrativo, Luís XIV
acabou por vê-los como ilustrações dos seus erros como rei. Ele criara
um sistema de contabilidade e de responsabilização e agora destruía a
administração central do seu reino. Isto fez com que fosse impossível
unificar a contabilidade de cada ministério num registo central e trans-
parente, como Colbert fizera, e de qualquer um dos ministros poder cri-
ticar, muito menos compreender, a gestão financeira do rei. Se uma boa
* Accountability é um termo da língua inglesa sem tradução exata para português. É um conceito da esfera ética da governação e da administração. Tem vários significados, entre os quais responsabilização, obrigação de prestar contas, transparência. É a obrigação de uma pessoa ou entidade prestar contas perante outra. Decidimos, assim, optar pelo termo responsabilização ao longo do livro, na certeza, porém, de que será sempre incompleto. (N. dos T.)
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O AJUSTE DE CONTAS
contabilidade significava enfrentar a verdade quando as notícias eram
más, o rei, aparentemente, preferia agora a ignorância. Quando pronun-
ciou as suas famosas palavras, “l’Etat c’est moi”, queria mesmo que fosse
esse o significado. Um estado funcional deixava assim de interferir na
sua vontade pessoal. No seu leito de morte, em 1715, Luís XIV admi-
tiu que efetivamente levara a França à bancarrota com os seus gastos.
Em vez de ser uma relíquia de uma época já passada, a história da
ascensão e do declínio de Luís XIV pareceu-me demasiado familiar à
medida que ia digerindo a parábola dos livros de contas dourados do Rei
Sol. Nessa mesma semana de setembro, aconteceu uma história espan-
tosamente paralela durante o colapso do Lehman Brothers Bank. Um
monumento do capitalismo americano e mundial, o Lehman era agora
repentinamente exposto quase como uma miragem. Tal como Luís XIV
garantira o poder através da rejeição de uma boa contabilidade durante
a sua governação, assim fizeram os bancos de investimento norte-ame-
ricanos construindo riquezas imensas ao mesmo tempo que destruíam
as suas próprias instituições, adulterando os livros de contas através da
comercialização de muitas hipotecas imobiliárias de risco sobrevalori-
zadas e de swaps* com risco de incumprimento de crédito. Um sistema
financeiro, que fora considerado saudável tanto por contabilistas como
por reguladores, revelava-se agora disfuncional na conceção.
Tal como Luís XIV tinha preferido não saber, ao que parece Wall
Street e os seus reguladores tinham escolhido negligenciar todo o sis-
tema financeiro ameaçadoramente podre. O presidente da Reserva
Federal de Nova Iorque, Timothy Geithner, devia ter pelo menos um
conhecimento aprofundado dos mercados financeiros; no entanto, pare-
ceu não saber, ou não saber totalmente, o que estava a acontecer ape-
nas a alguns quarteirões do seu gabinete. A Securities and Exchange
Commission (Comissão de Valores Mobiliários), cuja responsabilidade
é supervisionar as boas contas das empresas, foi também apanhada des-
prevenida, tal como as quatro grandes firmas de auditoria: Deloitte,
* Os swaps são contratos de cobertura de risco, através dos quais se tenta proteger os financiamentos da variação da taxa de juro, permitindo a troca (swap ) de uma taxa variável por uma fixa (e vice-versa) (N. do R. T.)
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INTRODUÇÃO
Ernst & Young, KPMG e Price WaterhouseCoopers. Ninguém, ao
que parecia, tinha efetivamente feito a auditoria dos livros de contabili-
dade dos bancos. Escapou-lhes o facto mal escondido de que o Lehman
Brothers praticou fraude contabilística para manipular as suas contas
e parecer solvente.1
Pouco depois do Lehman Brothers ter colapsado, em setembro de
2008, outros bancos de investimentos norte-americanos começaram a
cair, e o sistema financeiro mundial ficou sob ameaça de ruir. Em outu-
bro, a administração Bush saiu em socorro dos bancos para poder ati-
rar uma boia ao sistema financeiro. Foi assim que surgiu o programa
Troubled Asset Relief (TARP), que concedeu fundos em massa aos ban-
cos com problemas e colocou a economia capitalista norte-americana
num sistema governamental de suporte vital. Em 2009, Barack Obama
foi eleito presidente, promovendo Geithner a secretário do Tesouro.
No entanto, apesar das promessas de Obama de uma nova era de res-
ponsabilização nas contas, manteve-se a sensação de impunidade em
Wall Street. Os 350 mil milhões de dólares de recapitalização dos bancos
norte-americanos conseguiram impedir o caos financeiro que amea çava
desgastar a economia mundial. Porém, o dinheiro não implicava com-
promissos. Nunca se fizeram auditorias para ver como é que os bancos
o gastavam. A economia norte-americana oscilara, mas os banqueiros,
pelo menos, tinham evitado a averiguação das contas.
Seis anos depois, não são só os bancos a estarem ameaçados pela
crise financeira criada pela má gestão das contas. As nações líderes – os
Estados Unidos, os países europeus e a China – encontram-se perante
as suas potenciais maiores crises de contabilidade e responsabiliza-
ção nas contas. Dos bancos opacos e das dívidas soberanas da Grécia,
Portugal, Espanha e Itália, ao financiamento de municipalidades em
todo o mundo, parece haver pouca certeza nos balanços e nos relató-
rios de níveis de dívida e obrigações ao nível das pensões. A confiança
nos auditores privados e nos reguladores públicos também é cada vez
menor. No preciso momento em que mais precisamos de auditorias cui-
dadosas que confirmem os balanços, a SEC mantém-se lamentavelmente
subfinanciada, e a regulação governamental limitou a capacidade das
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O AJUSTE DE CONTAS
Quatro Grandes empresas de auditoria de fazerem auditorias agressi-
vas às grandes firmas.
O protesto tem sido pouco ou nulo relativamente à responsabiliza-
ção financeira, quer pública quer privada. Ouvem-se queixas acerca da
impunidade dos bancos, por um lado, ou uma versão qualquer de indig-
nação relativamente à interferência governamental quanto à liberdade
de Wall Street, por outro. No entanto, não tem havido qualquer dis-
cussão séria acerca do que é exatamente a responsabilização financeira,
como é que funciona, de onde é que vem e porque é que as sociedades
modernas se encontram mergulhadas em crises não só de responsabi-
lização financeira, mas também política, à medida que os governos e
os cidadãos parecem incapazes ou sem vontade de exigir prestação de
contas quer às empresas quer a si próprios.
O Ajuste de Contas pretende intervir olhando retroativamente para
setecentos anos de história de responsabilização financeira, para com-
preender porque é que esta é tão difícil de alcançar. A contabilidade está
na base da construção dos negócios, dos estados e dos impérios. Ajudou
os líderes a elaborar as suas políticas e a medir o seu poder. Contudo,
quando praticada mal ou de forma negligenciada, a contabilidade tem
contribuído para séculos de destruição, como vimos muito claramente
na crise financeira de 2008. Desde a Itália renascentista, do império
espanhol e da França de Luís XIV até à república holandesa, ao império
britânico e aos Estados Unidos iniciais, a contabilidade eficaz e a res-
ponsabilização política fizeram a diferença entre a ascensão e a queda
da sociedade. As boas práticas contabilísticas deram azo muitas vezes
aos níveis de confiança necessários para fundar governos estáveis e socie-
dades capitalistas vitais, e as más práticas e consequente falta de res-
ponsabilização têm levado ao caos financeiro, aos crimes económicos, à
instabilidade civil e pior até. Tudo isto é tão verdade nas nossas dívidas
atuais de vários biliões de dólares e nos gigantescos escândalos finan-
ceiros como foi na Florença dos Médicis, na Era de Ouro da Holanda,
no auge do império britânico e, é claro, na Wall Street de 1929. Ao que
parece, o capitalismo e os governos prosperaram sem crises maciças
apenas durante diferentes e até limitados períodos de tempo quando a
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INTRODUÇÃO
responsabilização financeira funcionou. Há quase um milénio que se
sabia como fazer boa contabilidade, mas muitas instituições e regimes
financeiros simplesmente escolheram não a fazer. As sociedades que
tiveram sucesso foram não só as que enriqueceram em contabilidade
e cultura comercial, como também as que conseguiram construir um
enquadramento sólido, moral e cultural, de modo a gerir o facto de os
seres humanos terem geralmente o hábito de ignorar, falsificar e falhar
na contabilidade. Este livro pretende examinar porque é que uma lição
tão simples tem sido aprendida tão raramente.
As primeiras sociedades capitalistas de sucesso desenvolveram siste-
mas de contabilidade e correspondente responsabilização financeira e
política. Em 1340, a República de Génova manteve um grande registo
no gabinete governamental central. Registava as finanças da cidade-
-estado através de livros de contabilidade por partidas dobradas. Esta
prática trouxe consigo uma forma fundamentalmente diferente de pensar
a legitimidade política: os livros com balanço significavam não só bons
negócios como também uma boa governação. A qualquer momento, a
república marítima sabia o estado das suas finanças e podia até fazer
planos para dificuldades futuras. Os genoveses, os venezianos, os flo-
rentinos, e outras repúblicas mercantis, ou pelo menos as suas classes
governamentais, podiam esperar um certo nível de responsabilização.
Isto foi o início da governação moderna como idealmente a imagina-
mos: semirracional, bem ordenada e geralmente contabilizada.2
E, no entanto, por mais sucesso que tenham tido, as sociedades e os
governos responsáveis mostraram ser difíceis de manter. No século
XVI, com o declínio das repúblicas italianas e a ascensão das gran-
des monarquias, o interesse pela contabilidade desvaneceu-se. Apesar
de os comerciantes estarem cada vez mais familiarizados com a prá-
tica da contabilidade por partidas dobradas, esta acabou por desapa-
recer como ferramenta administrativa fora da Suíça e da Holanda,
bastiões do republicanismo num mundo de monarquias. No auge do
Renascimento e da revolução científica que dele emergiu, entre 1480
e 1700, os reis interessaram-se verdadeiramente pela contabilidade.
O rei Eduardo VII, de Inglaterra, o rei Filipe II de Espanha, Isabel I,
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O AJUSTE DE CONTAS
os grandes imperadores austríacos, Luís XIV e os reis alemães, suecos
e portugueses examinaram contas e mantiveram tesoureiros e livros
contabilísticos. No entanto, nenhum conseguiu, ou em última aná-
lise desejou, criar o tipo de sistema contabilístico estável, centralizado,
de partidas dobradas, tão cuidadosamente controlado pelos genove-
ses do século XIV e outras repúblicas do norte de Itália. Na verdade,
manter livros razão em bom estado implicava que o rei respondesse à
lógica dos livros de balanço. Por mais que tentassem reformar as suas
administrações, os monarcas acabavam por se ver a prestar contas a
Deus e não a contabilistas. Este conflito inerente entre monarquia e
responsabilização financeira ajudou a causar séculos de crise finan-
ceira europeia.
Os monarcas consideravam que as práticas transparentes de contabi-
lidade eram perigosas e, na verdade, podiam sê-lo. Em 1781, oito anos
antes da Revolução Francesa, o ministro das Finanças de Luís XVI, o
conde de Vergennes, descobriu que o seu país se abatia sob o peso das
dívidas da Guerra da Independência Americana. Contudo, estas dívi-
das, avisava ele, nunca poderiam ser reveladas, pois a exposição pública
das contas reais iria certamente minar a religião mais crítica da monar-
quia: o secretismo. Afinal, Vergennes sabia pouco de finanças – a França
estava nesta altura perto de uma bancarrota – mas estava certo acerca
da monarquia. Abrir os livros era abrir as portas à responsabilização.
Quando as contas reais e a profundidade das dificuldades financeiras da
coroa foram discutidas pela primeira vez durante os debates políticos da
década de 1780, Luís XVI perdeu parte do seu mistério real. Por isso,
e por uma série de razões relacionadas, perderia mais tarde a cabeça.
No entanto, mesmo com o aparecimento de governos nominalmente
abertos e eleitos, no século XIX, a responsabilização ainda era muitas
vezes inatingível. Durante o século XIX, quando a Inglaterra gover-
nava o seu império e estava no centro do mundo financeiro, a corrup-
ção e a irresponsabilidade contaminaram a administração financeira.
Quando a América do século XIX cuidadosamente concebia mecanis-
mos de contabilidade financeira, também ela foi mergulhada em frau-
des financeiras e contabilísticas constantes, em escândalos e em crises
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INTRODUÇÃO
dos “robber barons”* da Era de Ouro. Nunca houve um modelo perfeito
de um estado continuadamente contabilístico. A contabilidade finan-
ceira, tanto empresarial como governamental, ainda permanece fugi-
dia mesmo nas sociedades democráticas.
Ameaçados como estamos agora pela atual crise financeira, este
parece ser o tempo certo para examinar a história da responsabiliza-
ção financeira. Estranhamente, poucos historiadores escolheram fazê-
-lo. Examinaram a história financeira das nações ao mesmo tempo que
quase não reconheceram o papel central da contabilidade e da respon-
sabilização na ascensão e queda de grandes nações. Seria natural colo-
car a contabilidade por partidas dobradas – uma verdadeira invenção
ocidental – no centro da história económica europeia e norte-ameri-
cana. O estudo da contabilidade e da responsabilização permite-nos
compreender como é que as instituições e as sociedades tiveram sucesso
e falharam a nível mais básico. Reconhecemos que o Banco Médicis, o
domínio holandês do comércio e o império britânico foram sucessos,
no entanto, é claro, já não existem. Por isso, se cada uma destas insti-
tuições conheceu o enorme sucesso, também conheceu o declínio e a
queda, e a responsabilização teve um papel central em cada uma des-
tas histórias. Vista pelas lentes da história da responsabilização finan-
ceira, então, a história do capitalismo não é simplesmente uma história
de ascensão nem um ciclo de expansões e contrações. Pelo contrário,
o capitalismo e a moderna governação têm uma fraqueza inerente: em
momentos cruciais, a contabilidade e os mecanismos de responsabili-
zação quebram, juntando-se às crises políticas e financeiras, se não as
criam até. O sucesso de uma sociedade, pelo menos financeiramente,
é, em grande parte, o domínio da contabilidade, da responsabilização
e a luta consequente para as gerir com sucesso.
Sem a contabilidade por partidas dobradas não poderiam existir nem
o capitalismo moderno nem o estado moderno, pois é a ferramenta
essencial no cálculo dos ganhos e das perdas, a base da gestão financeira.
* “Robber Barons” é uma expressão utilizada para classificar de forma pejorativa os principais capitalista ou mag-natas que surgiram no séc. XIX. (N. do R. T.)
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O AJUSTE DE CONTAS
As partidas dobradas surgiram na Toscana e no norte de Itália por volta
de 1300. Até então, as grandes sociedades antigas e medievais sobre-
viveram sem elas. Com efeito, o advento da contabilidade por parti-
das dobradas marca o começo da história do capitalismo e da política
moderna. Então, o que é exatamente a contabilidade por partidas dobra-
das? A contabilidade por partidas simples, como fazer o balanço de um
livro de cheques, controla apenas o que entra e sai de uma única conta.
A contabilidade por partidas dobradas, por contraste, é um método de
controlo minucioso e de cálculo rigoroso de débitos, créditos e de valor
patrimonial. Separa os créditos dos débitos com uma linha vertical a
meio da página. Por cada crédito que entra em conta, tem de haver um
débito. Coloca-se o rendimento e as despesas em cada coluna e vai-se
somando. Os créditos têm de ser iguais aos débitos. Por exemplo, de
cada vez que uma cabra é vendida, o lucro vai para a esquerda, e a mer-
cadoria vendida vai para a direita. Depois compara-se os ganhos e as
perdas, ou seja, faz-se o balanço. Assim que este fica apurado, a tran-
sação está concluída e os dois lados são atravessados por uma linha.
Os ganhos e as perdas são do conhecimento de todos os tempos.3
O método das partidas dobradas para o capitalismo pode também
ser conhecido como aquilo que os contabilistas chamam a equação fun-
damental da contabilidade: os ativos controlados por uma organização
são sempre exatamente iguais aos créditos (passivos) devido aos seus
credores e proprietários. Isto permite aos negócios e governos saber os
seus ativos e passivos, a fim de prevenir e detetar o roubo. Estas medi-
das de desempenho – riqueza e rendimento e, acima de tudo, lucro –
fazem da contabilidade por partidas dobradas uma ferramenta para o
planeamento financeiro, gestão e responsabilização.4
Os fundadores do pensamento económico moderno – desde Adam
Smith a Karl Marx – consideravam a contabilidade por partidas dobra-
das essencial para o desenvolvimento de economias de sucesso e do capi-
talismo moderno. Em 1923, Max Weber, o sociólogo alemão pioneiro
e teórico do capitalismo, escreveu que a empresa moderna está ligada à
contabilidade “que determina a sua capacidade de geração de rendimen-
tos através do cálculo segundo os métodos da moderna contabilidade e
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INTRODUÇÃO
atingindo um equilíbrio”. Weber considerava a contabilidade como um
dos muitos elementos culturais necessários ao crescimento do capita-
lismo complexo, colocando-a inequivocamente entre as características
fundamentais da ética do protestantismo, que ele acreditava ter per-
mitido aos primeiros norte-americanos dominar a cultura capitalista.5
O influente economista alemão Werner Sombart foi ainda mais direto:
“Não conseguimos imaginar o que seria o capitalismo sem a contabili-
dade por partidas dobradas: os dois fenómenos estão tão intimamente
ligados como a forma e o conteúdo.” O austríaco-americano Joseph
Schumpeter, economista, cientista, político e criador do termo “destrui-
ção criativa”, não só achava a contabilidade fulcral para o capitalismo
como até lamentava que os economistas não lhe tivessem devotado mais
atenção: só através da compreensão histórica das práticas contabilísti-
cas, escreveu ele, é que se pode formular uma teoria económica efetiva.”6
Estes pensadores encaravam a contabilidade como um ingrediente
para o sucesso económico e a chave para compreender a história econó-
mica. Contudo, aquilo que eles não viram, foi a forma como a estabili-
dade política se baseia em culturas de responsabilização, que assentam
em sistemas contabilísticos por partidas dobradas. Estes sistemas eram
importantes não só para calcular o lucro, mas também porque implica-
vam um conceito central do balanço, que podia ser usado para julgar e
responsabilizar uma administração política. Na Itália medieval, as con-
tas equilibradas não só espelhavam o aspeto divino do julgamento de
Deus e o registo dos pecados como também acabaram por representar
negócios sólidos e boa governação. Claro, uma coisa é ter um conjunto
de valores; o desafio de conseguir assegurá-los e manter uma respon-
sabilização financeira foi e é uma luta constante. O que este livro mos-
tra é que a responsabilização financeira funcionava melhor quando a
contabilidade era vista não simplesmente como parte de uma transa-
ção financeira, mas também como parte de um enquadramento moral
e cultural. Desde a Idade Média até ao início do século XX, as socieda-
des que conseguiram aproveitar a contabilidade e as tradições a longo
prazo de responsabilização e confiança financeiras fizeram-no graças a
um compromisso totalmente cultural: as cidades-estado republicanas
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O AJUSTE DE CONTAS
de Itália, como Florença e Génova, a Holanda na sua Era de Ouro e
a Grã-Bretanha e a América dos séculos XVIII e XIX, todas integra-
ram a contabilidade no seu currículo educacional, no seu pensamento
religioso e moral, na arte, na filosofia e na teoria política. A contabili-
dade tornou-se o tema dos trabalhos teológicos e políticos, dos grandes
quadros, das teorias sociais e científicas e dos romances, desde Dante e
os Mestres Holandeses a Auguste Comte, Thomas Malthus, Charles
Dickens, Charles Darwin, Henry David Thoreau, Louisa May Alcott
e Max Weber. Num ciclo virtuoso, a elevação da matemática prática,
centrada no negócio, até às esferas do pensamento nobre e humano,
permitiu a estas sociedades maximizarem o seu uso da contabilidade,
mas também construírem culturas complexas de responsabilização e
de consciência das dificuldades colocadas por uma cultura assim. Com
esta cultura de responsabilização surgiram o capitalismo e o governo
representativo.
O jogo delicado entre contabilidade e responsabilização pode decidir
o destino de uma empresa ou mesmo de uma nação. A história finan-
ceira, portanto, não trata apenas de crises cíclicas ou de tendências em
números. É também uma história sobre indivíduos e sociedades que
se tornaram adeptas do domínio do jogo entre contabilidade e vida
cultural, mas que muitas vezes perdem esta capacidade e dão consigo
em crises financeiras inesperadas, evitáveis e por vezes cataclísmicas.
Nesta longa história, contabilidade e responsabilização financeira sur-
gem simultaneamente como mundanas e ao mesmo tempo difíceis de
controlar. O que é notável é que as lições básicas de contabilidade ita-
liana medieval – que são essenciais à riqueza e à estabilidade política,
mas incrivelmente difíceis, frágeis e até perigosas – ainda são hoje tão
pertinentes como eram há setecentos anos.
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CAPÍTULO 1
Breve história dos primórdios
da contabilidade, da política
e da responsabilização
As decisões do [Livro do Juízo Final] como as do Julgamento Final são inalteráveis.Richard Fitznigel, bispo de Ely, 1179
O imperador Augusto é hoje famoso pelos seus edifícios e pelas suas
estátuas e é também a personagem abertamente modesta e paternal que
se encontra nas histórias antigas e no romance de Robert Graves, Eu Cláudio. Afirmava ter encontrado Roma como uma cidade de tijolos e
tê-la deixado como uma brilhante cidade de mármore. Mas a chave para
o poder de Augusto pode encontrar-se no seu próprio relato do seu reino,
o Res gestae divi Augusti, “Os Atos do Divino Augusto” (cerca de 14 a.C.).
Nele, ele descreve edifícios, exércitos e façanhas. Também inclui mui-
tos números. Na realidade, ele mediu o seu sucesso através deles, van-
gloriando-se de ter pago aos soldados romanos vitoriosos 170 milhões
de sestércios dos seus próprios cofres. Os números financeiros, os sím-
bolos das grandes realizações de Augusto, foram tirados de registos de
livros de contabilidade rudimentares. O verdadeiro fundador da dinas-
tia Júlio-Claudiana e pai do império romano combinava a contabilidade
e a transparência dos números com legitimidade política e sucesso1.
Como é típico na história da contabilidade, ninguém se apercebeu.
Augusto, o contabilista imperial, não é uma história que alguém conte.
E de todos os príncipes e reis que se seguiram e emularam o pai do
império romano, nenhum copiou alguma vez a forma exata do Res ges-tae. Mesmo que tivessem conhecido ou compreendido os números das
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O AJUSTE DE CONTAS
suas contas, muito poucos os teriam publicado como medidas do seu
poderio real.
Augusto vinha de um mundo em que as contas eram acessíveis e
até preponderantes e no qual um homem com a educação romana de
Augusto como pater famílias e patrício não sentia qualquer vergonha
em mostrar que sabia como usá-las. No entanto, apesar do uso que
Augusto deu à contabilidade como ferramenta de gestão e legitimação,
seriam necessários 1700 anos para os líderes legitimarem o seu poder e
ações políticas através da publicação de números financeiros dos livros
de contabilidade. Demorou mais de um milénio para que aquilo que
parecia ser uma boa prática para Augusto e que é agora uma prática
comum se afirmasse. A contabilidade desenvolveu-se lentamente nas
antigas Mesopotâmia, Grécia e Roma até os italianos medievais a terem
transformado numa contabilidade por partidas dobradas, uma ferra-
menta poderosa do lucro para os empreendimentos capitalistas e para
a administração governamental.
Durante milhares de anos, o mundo antigo esteve mergulhado em con-
tas, mas quase não havia inovação e poucos usaram as ferramentas à
sua disposição como Augusto fez. A contabilidade por partidas sim-
ples existiu na antiga Mesopotâmia, em Israel, Egito, Grécia e Roma.
Os gregos, os egípcios ptolemaicos e os árabes alcançaram níveis esplen-
dorosos de civilização e dominaram os números na geometria e na astro-
nomia, mas não chegaram a criar a contabilidade por partidas dobradas,
tão essencial para o cálculo exato dos lucros e das perdas.2
As finanças antigas estavam limitadas às contas de aprovisionamento,
isto é, ao inventário básico. Max Weber defendia que isto se devia à sepa-
ração do negócio e da casa, à falta de conceito de lucro e de avaliação
do ativo total de uma empresa durante o período, por exemplo, de um
ano. No entanto, apesar da ausência de uma compreensão moderna de
capital e de lucro, houve uma cultura e uma mentalidade contabilística
com lugar destacado na vida pública da Antiguidade.3
Em qualquer lugar onde se mantivessem registos, faziam-se cálculos
ou contas rudimentares. Na Mesopotâmia, os contratos, os armazéns e
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CAPÍTULO 1
os registos de comércio, tudo entrava para os cálculos das contas, mui-
tas vezes do inventário das padarias. A contabilidade era utilizada para
fazer inventários, mas também para calcular os excedentes de cereal, a
própria semente da civilização, que trouxe consigo as aldeias sedentárias,
a agricultura e os mercados. Em 3500 a.C., os sumérios criaram placas
de argila para fazer as contas, e que representavam os bens que saíam
ou entravam. Estes símbolos em breve deram lugar a tábuas de argila
finas com contas escritas de inventário básico e que se tornaram obje-
tos comuns dos assírios e sumérios. O Código de Hamurábi, conjunto
de leis babilónicas (cerca de 1772 a.C.), é famoso não só pela sua regu-
lação de “olho por olho, dente por dente” (contabilidade na sua forma
mais rudimentar), mas também pelas suas regras contabilísticas bási-
cas e pelas regulações de auditorias estatais nas transações mercantis.
A Lei 105 estipula que qualquer agente que não tenha selado e assinado
a receção de dinheiro não pode registar a transação no seu livro de con-
tas. O estado mantinha um inventário das reservas monetárias, que os
escribas assentavam na Casa Prateada do Tesouro, e até mantinham
registo dos cereais e lojas de pão através de contas de inventário básicas.4
A partir da altura em que o estado se envolveu nas contas e na audi-
toria, os números e a moral misturaram-se com a política. Na Atenas
Antiga, a contabilidade era vista como ligada à responsabilização polí-
tica. Desde o início que havia no coração do governo democrático um
sistema complexo de contabilidade e auditoria públicas. O tesouro
ateniense era considerado sagrado e guardado em Delos sob o olhar
atento dos seus tesoureiros. Os cidadãos humildes e os escravos eram
educados e empregados como guarda-livros. A maioria dos atenien-
ses preferia escravos públicos como controladores e auditores porque
podiam ser torturados e os homens livres não. Havia funcionários supe-
riores e inspetores de livros de contas que vigiavam as contas públicas.
Ao contrário das oligarquias – em que os poderosos em número redu-
zido governavam e não havia sistemas de responsabilização financeira –,
a Atenas democrática tinha sistemas de responsabilização. As contas
de todos os funcionários públicos atenienses eram sujeitas a audito-
rias de acordo com a filosofia política basicamente democrata. Até os
28
O AJUSTE DE CONTAS
membros do Areópago senatorial (o supremo tribunal de apelações),
bem como sacerdotes e sacerdotisas, tinham de fazer a contabilidade
total dos fundos, e não só das contas da sua profissão oficial mas tam-
bém das ofertas. Nenhum cidadão de Atenas podia sair para o estran-
geiro, consagrar propriedade a um deus, ou fazer um testamento sem
antes apresentar uma completa prestação pública de contas ao estado.
Os logistae – os funcionários de contabilidade pública descritos por
Aristóteles no último livro do seu estudo da Constituição Ateniense
– faziam auditorias aos livros dos funcionários públicos e magistrados
da cidade. Antes de ouvirem qualquer caso de corrupção, estes fun-
cionários de contas faziam uma auditoria pública aos livros do fun-
cionário em questão.5
No entanto, mesmo com este sistema de responsabilização na manu-
tenção de contas, a corrupção grassava e os atenienses lutavam pelo con-
ceito de responsabilização. O venerado general e estadista Aristides
(530-468 a.C.) queixava-se dizendo que era considerado uma má prá-
tica os logistae fazerem auditorias rigorosas. Era esperado e tolerado um
certo nível de fraude e as auditorias agressivas eram vistas como amea-
çadoras para o status quo. O historiador Políbio fez notar que mesmo
que o estado tivesse dez auditores e outros tantos selos oficiais e tes-
temunhas públicas, não se poderia garantir a honestidade de alguém.
Os espertos, queria ele dizer, podiam sempre falsificar os livros.6
Honesta ou não, a contabilidade floresceu como a base da econo-
mia doméstica romana. Aristóteles tinha um conceito para a gestão
das finanças públicas, uma casa ou propriedade, a que ele chamou
Oikonomia, a raiz do termo “economia”. Oikonomia não queria dizer
gestão financeira com jeito para o lucro no moderno sentido de eco-
nomia, mas sim uma boa administração na governação e nos lares.
Os romanos adotaram o conceito de Aristóteles e a contabilidade come-
çou nas casas particulares, onde o pater famílias era encarregado pelo
estado de manter os livros de contas da casa, que podiam ser audita-
dos por cobradores de impostos. O chefe da casa tinha um livro de des-
pesas (um registo diário de todos os documentos), que depois iria dar
entrada mensalmente num registo de rendimentos e despesas, muitas
29
CAPÍTULO 1
vezes registando receitas futuras bem como empréstimos e dívidas
extraordinários. Os banqueiros mantinham os mesmos livros básicos
de partidas simples. Os banqueiros e por vezes os cidadãos tinham de
fazer a contabilidade dos seus livros a fim de serem auditados pelo pre-
tor, um magistrado da cidade ou da província.7
A república romana e o império romano inicial eram geridos por
um grupo de auditores chamados quaestores oerarii, funcionários que
supervisionavam os cofres públicos. Na sua História Natural, Plínio
declara que em 49 a.C., o ano em que César atravessou o Rubicão, o
tesouro romano continha 17 410 libras de ouro, 22 070 libras de prata
e, em moeda, 6 135 400 sestércios. Os contabilistas do tesouro comu-
nicavam com os contabilistas da moeda e seus assistentes para garantir
que havia numerário suficiente para pagar as despesas estatais e prin-
cipalmente militares.8
Os questores de Roma guardavam as chaves do tesouro público no
Templo de Saturno, agora o local sagrado mais antigo de Roma, que
também continha as tábuas romanas da lei. Os escribas que trabalha-
vam no tesouro também mantinham registos mensais de entradas e
saídas de dinheiro com os nomes, as datas e o tipo de cada transação.
Havia registos separados para dívidas e para contas correntes dos ques-
tores militares e provinciais. O arquivo central da contabilidade – o
tabularium – era controlado por um superintendente e dotado de pes-
soal como supervisores, escribas, contabilistas e caixeiros.9
Tal como em Atenas, a contabilidade estatal em Roma era pouco cri-
teriosa e a fraude era vulgar. No seu Filípicas (44-43 a.C.), Cícero quei-
xou-se de más contas nos seus ataques a Marco António, conhecido pelas
suas dívidas e negócios financeiros sombrios. Acusou Marco António
de ter viciado os seus livros de contas e, ao fazê-lo, ter “esbanjado incon-
táveis somas de dinheiro” roubado a César e de até ter forjado contas e
assinaturas. Apesar de Cícero ter denunciado a sua contabilidade ludi-
briada, o vice-cônsul Marco António não foi para a prisão. Quando vol-
tou ao poder mais tarde, nesse mesmo ano, integrando o triunvirato com
Lépido e Octávio, o futuro imperador Augusto, Marco António perse-
guiu Cícero e mandou que lhe cortassem a cabeça e as mãos, exibidas
30
O AJUSTE DE CONTAS
depois no Fórum. Isto demonstra dramaticamente uma máxima cons-
tante: os poderosos não respondem bem àqueles que pedem que os seus
livros sejam abertos.10
No entanto, a contabilidade falsificada tem uma forma de retorno per-
seguindo aqueles que a praticam. Augusto, por sua vez, matou Marco
António (cujas capacidades de organização militar se assemelhavam à
sua contabilidade), assumiu o poder, tornou-se imperador e trouxe ordem
ao império caótico e aos novos livros de contas imperiais. Ao contrá-
rio do seu rival, Augusto manteve uma boa contabilidade – o rationa-rium. Com efeito, Tácito, historiador romano, diz que Augusto tinha
os livros sempre à mão, mesmo quando já era imperador (27-14 a.C.).
Continham um sumário das condições financeiras do império, esta-
tísticas acerca dos projetos militares e de construção, e as quantias de
dinheiro nos cofres com os impostos das províncias.11
Augusto usou até informações destas contas pessoais para escrever o
seu Res gestae divi Augusti, que foi gravado em paredes inteiras dos edi-
fícios públicos e publicado em pedras por todo o império. Mesmo com
ganhos anuais de 500 milhões de sestércios, Augusto tinha o cuidado
de anotar que a maior parte das suas realizações – edifícios, exércitos
e, mais importante ainda, os pagamentos pessoais feitos aos soldados
– eram pagos dos seus próprios cofres. Também revelou como é que
contabilizava a sua fortuna pessoal, pagando às cidades pelos bens usa-
dos pelos seus soldados, e revelou as somas para fazer propaganda à sua
largueza. Augusto pensou ativamente como gerir o império, usando os
seus próprios livros de contas como ferramenta para idealizar e planear
projetos, bem como para propaganda.12
Tornou-se uma tradição publicar dados dos livros contabilísticos
imperiais. Embora o imperador Tibério não tenha continuado a tradi-
ção, Calígula, apesar de tudo, publicou o estado geral das contas impe-
riais. Nero (37-68 d.C.), conhecido pelo seu interesse particular pelo
ouro, nomeou alguns senadores pretorianos para gerirem o tesouro do
Templo de Saturno. Há ampla evidência de que o gabinete que Augusto
criou, na secretaria financeira do império, continuou a trabalhar pelo
menos até ao reinado de Diocleciano (244-311 d.C.).13
31
CAPÍTULO 1
Embora este sistema contabilístico servisse como ferramenta central
para a administração imperial, e até para a sua legitimidade, mesmo
assim tinha grandes falhas. Os livros eram mantidos e as contas audi-
tadas, no entanto a fraude era uma coisa esperada (e sistematica-
mente tolerada, em especial no que dizia respeito às figuras de chefia).
Ao mesmo tempo, as práticas económicas do império romano não se
focavam no lucro nem nos ganhos futuros, a principal função da conta-
bilidade por partidas dobradas. O mar Mediterrâneo sustentava o impé-
rio romano através da navegação e do comércio, no entanto, não havia
um conceito ou sistema global através do qual se teorizassem todas as
práticas de comércio. Em vez disso, os empréstimos eram feitos num
modelo de penhora, retardando o desenvolvimento de uma cultura de
crédito. A riqueza nos palácios e o ouro acumulado adquiriam prece-
dência sobre a ideia de riqueza como capital de investimento para o
lucro. Apesar de uma série de trabalhos práticos e teóricos, nunca sur-
giu um conceito económico para os negócios.14
O gabinete central dos questores ia mudando periodicamente, refle-
tindo os interesses dos imperadores. Com o declínio do império, as
contas públicas foram ficando cada vez mais sob a alçada pessoal do
imperador, de modo a que, como Edward Gibbon fez notar, toda a gente
tivesse inculcada a noção de que todos os “pagamentos fluíam da gene-
rosidade do monarca” e não do estado. Os últimos imperadores consi-
deravam o tesouro sagrado, e no tempo de Constantino (325 d.C.) e na
sua nova capital romana do Bósforo, o chefe do tesouro era um conde
aristocrata em vez de um funcionário burocrático profissional.15
Com a queda de Roma, em 476 d.C., o estado foi passando para o
feudo pessoal de imperadores, reis e senhores, o que significava que
não podia ser auditado, pois estas nobres personagens suplantavam o
estado burocrático e só respondiam perante Deus. Mas mesmo com
o desmoronar do Império do Ocidente, a sua herdeira, a Igreja Católica e
os seus imensos mosteiros, continuou a administrar terras, bens e paga-
mentos através de contabilidade básica e de auditoria. E com a invasão
de Godos, Francos e Viquingues, os novos reis, desde Carlos Magno
32
O AJUSTE DE CONTAS
(742-814 d.C.) e o imperador Oto (912-973 d.C.) até Guilherme, o
Conquistador (1028-1087 d.C.), preocuparam-se novamente em esta-
belecer regras legislativas para melhor extrair a riqueza e administrar
as suas terras conquistadas. Um dos grandes paradoxos do feudalismo
– o sistema de constante mudança de senhores, vassalos e servos que
surgiu da fusão dos reinos e condados germânicos e antigos sistemas
estatais romanos – é que a posse pessoal de terra pública acabou por
trazer uma subida lenta, mas consistente, de burocracia e contabili-
dade. A espinha dorsal da Idade Média não foi só o cristianismo nas-
cido dos padres da Igreja e a sua tradição monástica, mas também o
conceito de imposto e propriedade consagrado nas Leis Capitulares de
Carlos Magno, o seu registo administrativo. A contabilidade manteve-
-se a ferramenta central da governação, mas para os mosteiros ricos,
para os reis e senhores franceses não haveria revelações financeiras
augustinianas.
Na viragem do milénio, o comércio aumentou, tal como a escrita, os
registos, as transações legais e a importância da contabilidade. Quando
Guilherme, o Conquistador, invadiu a Inglaterra, em 1066, foi-lhe dada
uma nova oportunidade. Ao submeter todo o país de uma só vez, pôde
escrever todos os documentos feudais desde o início, dando a si mesmo o
domínio do país inteiro sem as complicações inevitáveis do modelo feu-
dal mais convencional: as heranças e casamentos dinásticos que com o
tempo iam dividindo a posse da terra, deixando miscelâneas de territó-
rios em disputa. A conquista normanda da Inglaterra, com a sua opor-
tunidade de centralizar o seu próprio sistema administrativo, trouxe
a proliferação de novos contratos feudais da terra, necessitando tanto
de governantes seculares como de eclesiásticos para manter os registos
financeiros mais claros. O Domesday Book (1086), o registo pessoal de
Guilherme ou levantamento dos direitos de propriedade, privilégios
legais, obrigações e direitos eclesiásticos, também determinou quais os
impostos que Guilherme podia cobrar à luz dos anteriores acordos reais.
O seu título, que significa “Dia do Juízo Final”, equiparava muito cla-
ramente as auditorias com o Juízo Final de Deus, afirmando que nin-
guém lhe podia escapar.16
33
CAPÍTULO 1
No século XIII, com o recrudescimento do comércio e dos fluxos
financeiros, os estados e donos das terras dedicaram mais atenção aos
livros de contas e proliferaram os registos escritos à mão: cartas e decre-
tos, certificados, missivas, despachos, relatórios financeiros, inspeções
financeiras e contratos de renda, registos legais, anuários, crónicas, car-
tulários (títulos de propriedade feudais e eclesiásticos), registos (legais
ou administrativos, muitas vezes exarados por cortes e parlamentos),
e obras doutas e literárias. Todos estes bocadinhos de papelada esta-
vam relacionados com a manutenção de livros contabilísticos. A lei, a
propriedade e os impostos exigiam contabilidade e registos – a base de
qualquer rede de informação estatal – onde fossem registados, coligidos
e guardados. Em Inglaterra, o exchequer, ou tesoureiro real da receita,
começou a manter contas de forma altamente detalhada – a que se cha-
mava rolos de tubo, devido à forma de rolo do pergaminho – que regis-
tavam a receita, as despesas e as multas. Eram usadas de início mais
para a cobrança real das receitas do que para extrair lucro do investi-
mento ou do trabalho.17
Os documentos estatais eram guardados não só nas chancelarias e
sedes de municípios mas também em casas legais e parlamentares, onde
eram mais abertas à consulta por parte de advogados, e nas coleções
particulares de magistrados, ministros e príncipes. As casas senhoriais,
pontos centrais do senhorio feudal e da economia medieval, tornaram-
-se centros de contabilidade. Embora os senhores feudais não tivessem
qualquer conceito de lucro, administravam os seus feudos de forma a
produzir excedentes. Era um privilégio ter uma escrita contabilística,
pois o pergaminho era caro e, quando era feita em qualquer tipo de
escala, o registo também o era. Os escribas experientes eram poucos e o
seu ensino era caro. Muitas contas eram feitas simplesmente para gerir
as despesas de cada dia e não se conservavam registos de longo prazo.18
Em Inglaterra, os oficiais da justiça, as entidades de custódia ou os
gestores legais da terra aprendiam contabilidade por partidas simples,
o que implicava registar todas as cartas de quitação, escrever correta-
mente os cabeçalhos para transações e propriedade (tal como cavalos),
e fazer cálculos básicos. De início, o oficial da justiça teria de fazer uma
34
O AJUSTE DE CONTAS
declaração de dívidas em atraso; tinha de dar entrada das receitas, bem
como de outras formas de riqueza. Depois fazia uma lista de despesas
em materiais em falta na propriedade e em custos laborais.19
A auditoria era central no trabalho de notários e xerifes, que veri-
ficavam as contas dos funcionários governamentais, em especial dos
cobradores de impostos e dos tesoureiros. A palavra “auditar” provém
de um tempo em que os governantes e os senhores ouviam mais do que
viam as suas contas. Deriva da palavra auditio, uma audição, em que o
soberano ou senhor verificava as contas à medida que iam sendo ver-
balmente apresentadas. No século XIII, os funcionários que faziam
auditorias eram chamados Auditores comptorum scaccarii, Auditores
das Contas do Tesouro. As despesas estatais inglesas e as receitas fis-
cais foram ficando cada vez mais sob escrutínio parlamentar. Poder-
-se-á dizer que as constituições de governo misto tinham práticas de
auditoria internas, pois as finanças estatais tinham de ser verificadas
pelos diferentes ramos do governo. Contudo, as despesas do rei e os ren-
dimentos pessoais, que podiam ser enormes, permaneciam muitas vezes
secretos. Embora ele apresentasse ao Parlamento contas rudimentares
das suas despesas, isto era um acontecimento raro, e não havia um sis-
tema de auditoria efetivo. Eduardo III (reinou entre 1327 e 1377) afir-
mou aquilo que outros reis continuariam a insistir até ao século XIX:
os reis só prestam contas a Deus.20
Todos estes livros de contas e rolos imploravam a pergunta: pelo
menos trabalhavam bem? Certamente que um bom e diligente conta-
bilista, que mantivesse os seus registos diários, devia ter sido capaz de
chegar a um certo nível de domínio das contas. Era o que acontecia na
administração do dinheiro e no inventário, mas mesmo aqui não podia
ser exato. Sem os números árabes e, portanto, sem frações, havia erros
internos construídos com o sistema numeral romano. Por mais dili-
gente que um contabilista fosse, a quantidade de X, de L e de I tornava
um número como DCCCXCIII (893) muito pesado e não deixava espaço
para as frações. Era necessário haver novos números e um novo método
de contabilidade financeira para fazer florescer o comércio complexo e
o desenvolvimento.21