Post on 21-Oct-2020
Trajetórias de meninas que pintam: a etnografia e a história oral no graffiti da Grande
Belém
THAYANNE TAVARES FREITAS
Introdução
Este artigo faz parte da minha pesquisa de mestrado que se encontra em andamento
sobre as Freedas Crew, um coletivo de mulheres que grafitam na Grande Belém. A pesquisa
foi iniciada em 2014, ao conhecer Michelle Cunha – artista visual e grafiteira –, período este
que a artista resolveu propor uma oficina de graffiti somente para mulheres, na qual me inscrevi
e participei de todo o processo. O coletivo das Freedas foi criado logo após a oficina, como uma
proposta de finalização da atividade, pois a ideia era que a formação de um grupo só de
mulheres grafiteiras incentivassem outras a vivenciar a rua a partir desta arte.
A pesquisa tem como principal metodologia a experimentação, na qual tive a
oportunidade de estar perto das integrantes e não só, mas em experenciar o que elas estavam
vivenciando. Busquei no decorrer da pesquisa ser a mais respeitosa possível com minhas
interlocutoras, aguardando um bom momento para realizar as primeiras “entrevistas informais
gravadas” e somente após um ano de pesquisa em campo e mantendo contato frequente por ser
uma ‘freeda’, compreendi que este seria o momento, após a construção e manutenção do afeto
criado entre as integrantes da crew.
Inicio o texto apresentando alguns fatos etnográficos que envolvem a oferta de uma
oficina de graffiti que deu origem posteriormente ao coletivo. A partir destes fatos apresento o
desenvolvimento da oficina concomitante com o tomar corpo da pesquisa, diante das
possibilidades que o próprio campo me ofereceu. Nessa perspectiva ao mesmo tempo que eu
me aproximava como pesquisadora-antropóloga, o aprendizado do graffiti me tornava a cada
dia mais grafiteira, pois ao me inscrever na oficina juntamente com as demais meninas me inseri
no circuito de aprendizado e nas consequências que dela decorreu nos meses seguintes.
Apresento estes fatos iniciais para alicerçar o relato oral das integrantes, pois traz uma
base de compreensão de como tudo ocorreu para que atualmente eu tenha tido acesso às
informações que trago neste artigo. Sendo assim, a pesquisa é uma etnografia que dialoga com
a história oral para desvelar trajetórias de duas mulheres do graffiti, Ester (Bisteka) e Karina
(Ka), ambas das Freedas Crew. Não faço história oral, a minha aproximação com ela ocorre a
UFPA – Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia.
2
partir de um “experimento em igualdade” (PORTELLI, 1997:10), procurando fazer da escuta
uma postura ética e política para com as interlocutoras da pesquisa.
Freedas Crew: Vivências
Às 14h24 do dia 21 de outubro de 2014 Michelle Cunha anunciou em uma rede social
digital a seguinte proposta: “Vou começar a oferecer aulas de graça de pintura na rua só para
mulheres que querem aprender a grafitar. Basta trazer seu material e ajudar a descolar o muro.
Quem pilha?”. Esse foi o primeiro chamado para a realização de uma oficina de graffiti para
mulheres realizada na casa-ateliê Sopro da artista e que atraiu o interesse de muitas pessoas que
acompanhavam sua página digital.
Após essa postagem, a proposta da oficina foi se estruturando e ganhou o nome de
“Vivência para mulheres – introdução ao graffiti e outras formas de intervenção urbana”.
Michelle criou um evento virtual e apresentou com mais detalhes como seria, cobrou uma taxa
de inscrição de valor simbólico para a compra de parte do material necessário para o andamento
das oficinas, como: tinta à base d’água, rolinhos, papéis, compensados, pincéis e canetas
coloridas. O único material solicitado para as possíveis participantes foi uma lata de spray a
partir do segundo encontro.
A oficina teve um grande número de interessadas, mas só foram ofertadas 15 vagas
que rapidamente foram preenchidas, inclusive criando-se uma lista de espera caso houvesse
desistências. A primeira aula ocorreu no dia 31 de outubro e finalizou no dia 28 de novembro
de 2014, totalizando quatro encontros. Como primeiro contato com as aprendizes, Michelle
sugeriu uma breve apresentação de cada aluna expondo seus interesses para com a oficina. As
garotas apresentaram diversas expectativas, Ester, por exemplo, relatou que tinha contato com
o graffiti por meio de seu companheiro que já grafitava há anos, mas que ela por um longo
tempo só o acompanhava nas intervenções e que havia chegado o momento dela aprender
também. Outras diziam ter interesse, por que achavam instigante a arte urbana e como tinham
habilidades com o desenho encontraram na oficina a grande oportunidade de praticar. No
momento da apresentação expus o meu interesse como possível pesquisadora – pois estava em
meio ao processo seletivo de mestrado – interessada no graffiti realizado por mulheres
juntamente com a minha curiosidade em aprender aquele tipo de intervenção urbana que
naquele instante se mostrava misteriosa.
3
Os ensinamentos iniciais incluíram uma introdução ao vocabulário básico do graffiti
(‘bomb’, ‘tag’, ‘cap’, ‘rolê’1...) e uma das principais regras de convivência que é a do
‘atropelo’2. Alguns exercícios de desenho com tinta ‘PVA’ a base d’água, spray e canetinhas
hidrocor e lápis de cor. Em outro dia de oficina ela se concentrou em ensinar como desenvolver
sua própria ‘tag’ e a afirmação de identidade na rua, neste aprendizado Michelle incentivou a
construção de assinaturas com letras diferenciadas e a criação de um nome ou pseudônimo que
poderia ser usado na rua. E no fim deste dia utilizando um compensado forrado com um papel
pardo e canetões (uma espécie de canetinha, porém com a ponta grossa é muito utilizada para
soltar ‘tags’ em qualquer superfície discretamente) na mão foram feitas diversas ‘tags’, algumas
com estampas, outras com sombreamento, noções de profundidade, geralmente construindo
letras gordas, entrelaçadas e multicoloridas.
No terceiro dia os exercícios foram utilizar a tinta ‘PVA’ para colorir os papeis A4,
posteriormente com cortes aleatórios e de diversos tamanhos e cores, colamos em um papel em
branco construindo formas, seres, paisagens, deixando livre a imaginação. A ministrante da
oficina incentivava a nossa criatividade partindo da perspectiva que aquela colagem poderia
estar em um muro, por meio da mistura de cores e de formas geométricas3. Já no quarto encontro
seria uma aula utilizando spray, Michelle solicitou que levássemos papelão, spray e estilete. O
objetivo era que cada aluna elaborasse um ‘stencil’4 na forma desejada e que no final da tarde
faríamos nosso primeiro ’rolê’, sairíamos pelo bairro da Campina atrás de um muro,
preferencialmente de uma propriedade abandonada, para deixarmos nossas primeiras
intervenções.
1 Bomb é a assinatura do artista que pode ser em forma de letras (gordas) ou personagens. São feitos sem autorização e por isto são de rápida execução. Tag é a assinatura da(o) grafiteira(o) geralmente é um pseudônimo.
Cap é uma espécie de “bico” acoplado na latinha de spray para que a tinta seja expelida. Existem diversos modelos
que alteram a espessura do risco. Rolê é a busca de muro para intervenção que pode ser em local autorizado ou
não. 2 Ao menos aqui em Belém o ‘atropelo’ é visto como um desrespeito ao graffiti ou pixo. Mas já encontrei um
relato em um vídeo referente ao graffiti realizado em Lisboa em que o ato de ‘cobrir’ o trabalho de outro artista
significa reconstruir aquele graffiti. 3 Como o graffiti feito por Criola, uma grafiteira de Minas Gerais. Ver perfil em: facebook/criolagraff 4 Stencil Técnica realizada com um papelão ou lâmina de raio-x com cortes em formatos variados em que um jato
de spray ultrapassa os recortes e deixa a imagem na superfície.
4
Na Rua Ferreira Cantão encontramos um muro de um prédio abandonado mesmo
repleto de graffitis, ‘pixos’5, imagens feitas a ‘stencil’ encontramos alguns espaços e deixamos
nossas primeiras marcas na cidade. Somente após a convivência com o grupo e relembrando
esses fatos percebo que neste momento foi iniciado por algumas meninas uma criação de
‘personagens’6 que mais tarde tornaram-se suas principais artes no muro, ou melhor, a ocasião
criou a primeira relação entre as aspirantes do graffiti e as suas possíveis marcas na rua
incluindo ‘personagens’ e ‘bombs’. Mas sobre este assunto discutirei melhor no terceiro
capítulo deste texto.
Neste dia em especial éramos sete meninas: Walquíria, Michelle, Ester, Camila,
Karina, Luana e eu. As meninas demonstraram segurança, principalmente porque estávamos
sob a orientação e companhia de Michelle que era a mais experiente e escolheu o local de
intervenção. Relembrando com algumas delas (via rede social digital) sobre o que sentiram
naquela primeira experiência nas ruas e já praticando o ‘vandal’7, pude verificar o quanto foi
marcante para cada uma delas e com diferentes perspectivas.
Luana quando nos encontrou ficou muito feliz e ao mesmo tempo desconcertada por
não ter preparado nada (‘stencil’ou ter levado material), mas se animou ao ser incentivada pelo
grupo para escrever algo no muro “Vai! Pega! Manda uma frase!”, “porque sempre que vou
fazer algo com material assim que não é meu, fico cheia de medo de 'ai, estou desperdiçando,
não sei fazer isso, estou estragando’ sabe? Mas eu enfrentei isso, porque vocês me
incentivaram”.
Ester (Bisteka), relembrando, disse que ficou nervosa principalmente porque o muro
não era autorizado. Pensou na possibilidade “de alguém mandar a gente parar”. Os transeuntes
que ali circulavam demonstraram o seu espanto em se deparar com um grupo de meninas
intervindo em uma parede em plena luz do dia. Muitos ao passarem de carro gritavam: “deixem
de pixar, suas pixadoras!!”8.
5 Pixação/Pixo – Geralmente são letras, símbolos ou grafismos, monocromáticos e que podem revelar as iniciais
do autor ou pseudônimo, o nome do grupo a qual pertence ou inúmeras formas de comunicação ilegíveis aos que
não pertencem ao seu contexto. Para a lei, a pixação é crime. 6 Personagem/persona – Ilustração desenvolvida pela(o) grafiteira(o) e que contem características (técnica, traço,
cores, estética...) que são associadas ao estilo de seu autor. 7 Vandal é realizar um pixo ou graffiti sem autorização. 8 Em um encontro recente com as Freedas, Ester refletiu que um grupo de meninas fazendo intervenções
geralmente intimida os policiais.
5
Já a Karina (Ka), por exemplo, relatou que sua vontade foi de “chegar no local e fazer”,
não se sentiu nervosa em intervir em um lugar público e de certa forma numa parede não
autorizada, “eu achava que seria sempre tranquilo, eu senti muita tranquilidade, eu queria
interagir com tudo!”.
Essa conversa foi realizada alguns meses depois pela internet a partir de mensagens
individuais9 e não tive acesso as sensações de todas sobre aquele momento em forma de relato,
mas ao estar com elas percebi o quanto estavam atentas ao fluxo de pessoas, à divisão de espaço
na parede, na utilização de materiais (de acordo com o que aprenderam nas aulas), na interação
entre elas ao se ajudarem com o ‘stencil’, por exemplo. Porém, das que conversei, foi possível
trazer perspectivas diferentes sobre aquela ocasião e que abordaram pontos importantes, como
o apoio que Luana recebeu das outras meninas mesmo que não tenha participado da aula de
‘stencil’ e que não tenha levado material para usar; o medo de Ester com a possibilidade de
sermos interrompidas a qualquer momento e a coragem de Karina em estar tranquila mesmo
sendo uma ocasião nova para muitas meninas que ali estavam presentes.
Aquele primeiro ‘rolê’ foi uma experiência específica por ter sido feita em grupo, por
um coletivo de mulheres. Foi uma ação planejada e tinha o intuito de mostrar essa roupagem
do graffiti que é o chamado ‘vandal’ e o ‘rolê’. Para meninas iniciantes se mostrou bastante
desafiador e instigante também, confesso que para mim foi um momento muito transgressor
ampliando novas possibilidades de estar na rua e interagir com ela. Naquele cenário urbano
deixamos de fazer parte da massa de pessoas em movimento e nos colocamos como
protagonistas naquele cenário que era a rua, na qual estávamos interferindo artisticamente no
seu aspecto visual10.
9 Em uma época específica utilizei como metodologia a construção de um caderno de campo digital (Achutti e
Hassen 2004) e na época em que tive essa conversa o grupo já havia sido criado. Atualmente a página não está
atualizada, mas pretendo continuar com o procedimento. Para acessá-lo: arriscandonorisco.blogspot.com.br. 10 Nesse sentido, pareceu-me que esse ato de desviar o comportamento cotidiano da rua, isto é, de apenas
movimentar-se por ela; o “vandal” rompe com o sentimento blasé, essa determinada incapacidade de reagir a todos
os estímulos que as grandes cidades fazem aos seus moradores, tal como descrito por Georg Simmel: “A
incapacidade, que assim se origina, de reagir aos novos estímulos com uma energia que lhes seja adequada é
precisamente aquele caráter blasé, que na verdade se vê em todo filho da cidade grande, em comparação com as
crianças de meios mais tranquilos e com menos variações.” ([1903]2005:581)
6
A oficina previa um ‘mutirão’11 como atividade de fechamento dos ensinamentos. Em
conversas no decorrer de uma das aulas da oficina, Michelle retomou a questão do ‘mutirão’
falando que existia uma chance de ele ser realizado na escola em que Walquíria lecionava como
professora de artes. A integrante ficou responsável em agilizar a negociação com o colégio,
pois a ação seria em parceria com os alunos como atividade extracurricular.
No dia 06 de dezembro de 2014 ocorreu o ‘mutirão’ em parceria com a Escola Pública
Antônio Gomes Moreira Junior, localizada no bairro do CDP. Os alunos juntamente com a
professora de Artes passaram a ‘PVA’ no muro utilizando diversas cores, divididas em blocos
de parede. Isso faz parte do preparo prévio do muro, é de praxe no graffiti que o muro já esteja
com alguma camada de tinta antes do processo da pintura com spray, mas há casos em que o
muro está somente no cimento, com manchas de lodo ou com cascas de tintas soltas, sendo
assim, é preciso que se passe uma lixa para tirar o excesso e assim, iniciar a base com tinta. O
‘mutirão’ foi organizado pela Walquíria e mobilizado por Michelle por meio das redes sociais
digitais. Michelle preparou um flyer convocando grafiteiros a participarem da ação coletiva e
essa articulação com os demais grafiteiros da ‘cena’ local foi muito importante para a realização
do evento.
Antes de terminarmos o graffiti fomos convidadas para almoçarmos no interior do
colégio. A feijoada foi feita e servida por alguns professores e foi o momento para conversarmos
um pouco, já que na pintura nos falamos somente para troca de alguns materiais, pedidos de
empréstimo da única escada disponível e outros assuntos que ficaram restritos ao grafitar.
Foi interessante perceber os olhares de surpresa – dos grafiteiros ali presentes –, ao ver
meninas organizando e participando de um ‘mutirão’ de graffiti. Era claro perceber que o
‘mutirão’ tinha em sua maioria grafiteiros do gênero masculino e que não estavam acostumados
em ver tantas meninas grafitando juntas. Também foi possível observar que alguns sabiam da
existência da oficina e, que ali, estariam presentes as meninas que a fizeram juntamente com a
Michelle.
Este evento foi importante também para o grupo de meninas por ter sido uma
oportunidade de interação com os outros artistas, por ter sido um ‘mutirão’ planejados por
11 Mutirão é um painel de graffiti feito em conjunto com vários outros artistas da cidade. Além disso, é de praxe
que as(os) organizadoras(es) ofertem uma feijoada no almoço e tenha música tocando. Existem mutirões que a
comunidade ao redor também colabora com o evento.
7
mulheres, além de ter sido uma experiência diferente no graffiti – como o tamanho do muro, o
fato de ser liberado e aceito pelas pessoas que da escola usufruem. Todas essas questões
intensificaram a vontade de pintarmos juntas e o próximo passo foi dado logo em seguida: a
criação da crew.
O “Mutirão de graffiti por sonhos de paz e amor”, que acabei de descrever, foi o
estopim para indicar a necessidade da criação de um grupo. Não que isso já não fosse previsto,
mas o pintar compartilhado, a parceria no processo criativo do graffiti, a mobilização de cada
integrante para a efetivação do muro foi determinante para a concretização das Freedas Crew.
O ‘mutirão’ ocorreu no dia 06 de dezembro, alguns dias depois Michelle sugeriu a
criação de uma crew, a escolha do nome ocorreu no dia 09 do mesmo mês. Fomos incentivadas
a pensarmos em vários nomes e assim, votarmos no que mais representasse o grupo e suas
pretensões no graffiti. Surgiram nomes como “Crew das Créus”, “Pupilas Crew”, “Vemtimbora
Crew”, mas não tiveram o voto da maioria. A sugestão escolhida pelo grupo foi o “Freedas
Crew”. Esse nome foi pensado para simbolizar resistência, superação e a liberdade de mulheres
artistas. É uma espécie de anglicismo, com a junção da palavra free com o primeiro nome de
Frida Kahlo, a qual se tornou nossa principal inspiração12.
Gostaria de reforçar mais uma vez que as minhas contribuições para com o grupo
foram autorizadas e incentivadas pelas próprias meninas que não só me viam como
pesquisadora, mas principalmente como integrante e por este motivo esperavam que eu somasse
de alguma forma para o crescimento do grupo, seja nos momentos de ações artísticas, seja dando
opiniões diversas inclusive em alguns casos de conflitos (comum em qualquer meio social).
É importante salientar também que não somos a primeira crew de meninas na cidade,
pois desde 2007 existe um outro grupo (totalizando quatro integrantes) chamado “Ratinhas
Crew”13 que foi criada pelas grafiteiras Marcely Feliz (Cely é formada em Artes Visuais pela
UFPA) juntamente com Érika Pimentel (Kika).
Portanto, desde a criação do nome o grupo passou a se organizar enquanto coletivo,
realizando ações e participando dos processos criativos em conjunto. Logo, a página da crew e
um grupo virtual foram criados na internet, pois dessa forma, os muros poderiam ser divulgados
12 Para ter acesso a um texto sobre a criação da ‘crew’, consultar Freitas (2015). 13 Para ter maiores informações ler a monografia de conclusão de curso de Marcely Feliz (2014), intitulada Cely
Feliz: nem todo risco no muro é masculino.
8
e a articulação com as integrantes – em prol de novas intervenções na cidade – poderia fluir
com mais facilidade.
Das quinze meninas inscritas na oficina somente nove delas participaram das aulas e
destas, todas contribuíram para a formação da ‘crew’ exceto uma. Sendo assim, as Freedas
inicialmente são formadas por: Camila, Ester (Bisteka), Isabella (Bel), Karina (Ka), Luana (Lu),
Michelle Cunha (Mic), Thayanne (Petit) e Walquíria (Kika). Desde sua formação muitas
situações ocorreram constituindo a história do grupo, como: os ‘salves’ entre ‘crews’ ou entre
grafiteiras(os), casos de muros apagados por seus proprietários, a rejeição de personagens, uma
situação de ‘atropelo’, abordagem policial em ‘rolês’, conflitos no próprio grupo, entrada e
saída de integrantes e tudo o que a formação de um coletivo de graffiti comumente está
vulnerável a passar. Atualmente o coletivo tem sete integrantes, Walquíria saiu da crew,
Michelle Cunha se distanciou tornando-se a principal parceira do grupo e a Juh foi convidada
para compor as Freedas.
Pretendi delinear a formação e configuração das Freedas Crew com os fatos
etnográficos apresentados, para assim, trazer as entrevistas realizadas com as integrantes.
Utilizei a técnica da entrevista informal gravada, na qual não se limitou a questões e respostas,
mas a uma conversa com as interlocutoras de forma não direcionada. Sendo assim, as
informações que surgiram foram referentes a vivências anteriores a oficina de graffiti e algumas
temáticas ficaram mais evidentes, como: as motivações que as levaram a se escreverem na
oficina e a leitura de seus próprios personagens. Diante disso, os relatos se enveredaram para
outras direções. Das sete meninas, obtive dois relatos que serão expostos nas próximas páginas.
O olhar das Freedas sobre os acontecimentos
Ressalto que por causa do tempo escasso para a elaboração deste artigo e a
metodologia escolhida para a realização da pesquisa de modo geral, que é a etnografia baseada
na experimentação, o conviver com as interlocutoras e a busca de um momento adequado (por
meio da construção de uma maior interação e confiança) para uma abordagem mais incisiva
como a realização de entrevistas, estas só foram feitas recentemente.
Portanto, a escuta foi realizada com duas das integrantes da crew, Karina mais
conhecida como Ka e Ester que assina seus trabalhos como Bisteka. A entrevista informal
gravada foi iniciada apenas com uma pequena intervenção que apresentou qual seria o objetivo
9
daquela conversa, na qual expus o interesse em saber quais foram suas trajetórias antes se
inscreverem na oficina de graffiti. A construção do texto e a análise das entrevistas será feita a
partir das ideias comuns e divergentes de ambas.
Inicialmente o primeiro contato com o spray das duas integrantes teve um ponto em
comum que foi a presença masculina. Ester ao conhecer Marcelo – grafiteiro e seu atual
companheiro –, percebeu no graffiti a possibilidade de expor e traduzir suas revoltas e
sentimentos, pois alcançaria o maior número de pessoas, pois o graffiti na rua chama a atenção
dos transeuntes. Já Karina em algumas saídas pela cidade deixou alguns ‘riscos’ juntamente
com amigos skatistas. Nesta época, mesmo utilizando algumas técnicas do graffiti, como o
‘stencil’, ela não tinha consciência, conforme me contou, que aqueles ‘riscos’ já faziam parte
do universo do graffiti.
Nos relatos a seguir, é possível perceber que ambas tiveram motivações diferentes para
se aproximarem do graffiti, mas que de certa forma compreendiam que era uma atividade
artística capaz de capturar olhares e de comunicar. Ester ao contextualizar sua aproximação
com tal arte de rua, relembra que ela está intrínseca à várias situações de violência. A integrante
conta que
[...] a nossa vida toda a gente passa por um monte de situação machista, mas que as
vezes a gente não percebe que a gente tá passando por aquilo, porque o mundo é
dominado, a estrutura toda do sistema é feita por homens. [...]Eu tive um
relacionamento com um homem violento, né!? Como eu já tinha ti falado. Aí, esses
relacionamentos são sempre assim: a pessoa depois que faz a merda, aí, vem no outro
dia pedir milhares de desculpas, traz flores manda até carro som na frente da casa
pra pedir desculpa. Éé...aquilo também vai te prendendo numa situação que só depois
que a sua autoestima já está destruída que tu vai se tocando que tudo aquilo que
aconteceu também, porque o mundo tem um sistema, e a estrutura do sistema toda é
machista. Foi nessa hora muito que a minha ficha foi cair sabe?! A minha ficha foi
cair...e eu fui percebendo... Por mais que a mulher possa trabalhar, estudar, a
estrutura do sistema continua a mesma, sexo continua tabu, eu tenho um filho, porque
EU fiz uma coisa errada, a errada fui eu, eu que fui a errada, ele não tá errado em
nada, sexo é errado pra mulher e a consequência disso é ter um filho e o filho é o
castigo, é o castigo dela ter feito aquilo, agora atura! Tu que pariu o Matheus que o
embale! Depois que o Matheus nasceu é que eu comecei sim, a de fato militar pelo
feminismo, sabe!? Porque antes disso eu não via muito que motivo nem causa apesar
de passar por essas situações, eu não via muito motivo e causa pra militar por isso,
pela causa das mulheres, sabe!? Foi aí, que entrou o graffiti, eu conheci o Marcelo,
ele fazia graffiti, só tinha a Cely que pintava, sabe!? Ééé...e aí, eu fui vendo isso, né!?
Que no muro eu poderia ir extravasando toda essa revolta que ficou se acumulando
anos e anos e anos situações após situações sabe?! (Ester - Bisteka, 17 de fevereiro
de 2016).
10
O graffiti aqui está associado a uma história de violência contra a mulher e assume o
papel reivindicador, comunicador e via de protesto. É o desabafo de uma mulher vítima da
violência masculina e doméstica que vislumbra no graffiti a possibilidade de atingir e chamar
a atenção dos transeuntes por meio da arte de rua. O graffiti em suas primeiras aparições teve
um papel importante de denúncia e um caráter político forte. Como está ligado ao movimento
Hip Hop por ser um dos quatro elementos14 que o compõe, o graffiti também adquire essa
relação com as causas das minorias étnicas e da crítica social, apesar de existir intervenções que
almejam somente a democratização da arte. Baseado em autores que tratam o assunto e por
meio do campo de pesquisa é possível perceber que tanto o graffiti quanto a pixação possuem
conjuntamente um caráter crítico social e político. Ester também acredita que a arte precisa
expressar uma posição política, crítica e na fala seguinte clarifica mais seu posicionamento
Eu via o Marcelo fazendo, aí, o que que acontecia... eu percebia que toda aquela
revolta que eu tinha dentro de mim, eu poderia, é.. extravasar no muro. Porque aí a
arte ela é... eu acho que arte não precisa ser só estética, ela pode ser política, aliás,
eu acho que ela deve ser política. A arte tem que ter posicionamento político, então,
quando eu via, assim, ele fazendo... todo mundo olhava aquilo, todo mundo olha
quando o graffitti tá na rua, se eu fizer alguma coisa ligando a questão da mulher, eu
posso pegar todos aqueles sentimentos de revolta que eu tenho dentro de mim e
extravasar no muro. (Ester - Bisteka, 17 de fevereiro de 2016).
Ester ao falar sobre suas primeiras experiências com o spray aponta outras
problemáticas:
Acontece que assim, no início as primeiras vezes que eu fui começar a pintar, tá, foi
tudo de boa. Só que aí, como eles já grafitam há muito tempo, aí, tem sempre aquela
história... De ver a técnica “ah, ajeita isso”, “ah, ajeita aquilo”. E aí, surgem alguns
conflitos. (Ester - Bisteka, 17 de fevereiro de 2016).
No relato de Ester ela aborda uma questão comum no meio do graffiti que é a constante
interferência do grafiteiro na arte executada pela grafiteira. Posso inferir que existe uma
necessidade de impor uma certa superioridade de técnica e desenvolvimento do graffiti feito
por mulheres, mesmo que a artista já esteja em um estágio mais avançado de aprendizado, e
14 O hip-hop é formado por elementos expressivos distintos, a música rap, a dança, conhecida como break ou street
dance e o graffiti, que é a expressão visual. Configuram-se então os quatro elementos do hip-hop: o MC, ou mestre
de cerimônias, que é o cantor do Rap; o DJ ou disk jóquey, que comanda as bases musicais, através de toca-discos,
sobre a qual os MC’s ritmam suas letras; o B.Boy ou break boy e a B. girl, são os que dançam; e o grafiteiro
propriamente dito, que é quem intervém através da arte visual (FERREIRA, 2007:24).
11
experiência. Estas situações estão relacionadas a representatividade significante do masculino
tanto no Movimento Hip Hop, quanto mais especificamente no graffiti, o que já foi apontado
por várias pesquisas sobre a relação de gênero presentes nessas atividades artísticas (Viviane
Magro 2003). Neste caso, a interferência constante em seu trabalho fez com que parasse
momentaneamente de intervir artisticamente na cidade.
Já a aproximação que Karina teve com o graffiti foi de outra natureza, estava
circundada pela admiração daquele tipo de arte e que a fez acompanhar alguns trabalhos
realizados na cidade por artistas locais e admirar as intervenções de grafiteiros de outras cidades
como o caso dos “Gêmeos”, por exemplo.
[...] o que me levou a fazer graffiti mesmo foi mais... nunca imaginei que eu iria fazer
graffiti, foi mais uma aventura, querer experimentar e ter a sensação, a sensação que
eu tinha quando eu via o graffiti, eu comecei a pensar: qual era a sensação se eu
fizesse o graffiti e outra pessoa visse? Aí, eu comecei a pensar nisso...admirava
muito... (Karina – Ka, 17 de fevereiro de 2016).
Foi possível perceber que nos relatos expostos, a presença masculina na iniciação com
o spray foi recorrente, mas que as experiências foram diferentes e tiveram também motivações
diversas. Ester viu no graffiti a oportunidade de falar sobre o que lhe afligia levando em
consideração a sua vivência pessoal, além disso, existiu também os conflitos relacionados ao
pintar com homens, a questão da imposição de técnicas e formas de pintar, o que fez com que
Ester se retraísse momentaneamente. Enquanto Karina tinha a curiosidade em experimentar
aquele tipo de intervenção urbana como mais um conhecimento sobre a arte. Por mais que
ambas sejam mulheres, as experiências estão ligadas a diversos outros fatores que as fizeram
se interessar pelo graffiti.
A oficina de graffiti ofertada por Michelle Cunha também foi relatada pelas integrantes
como uma oportunidade de maior aprendizado e aproximação com essa arte, como veremos a
seguir:
Aí tá, a Michelle resolve se revoltar também, por causa daquele evento e tem pouca
mulher pintando, porque as que estavam na atividade não tavam muito indo pra rua.
‘Vou fazer uma vivência pra mulheres’, tipo, eu acho que é minha oportunidade de
eu aprender mais, algumas técnicas com pessoas que também não tem muito
conhecimento como eu, talvez até tenham algum conhecimento, mas que também
querem aprender mais e, só com mulheres, porque não está dando certo em pintar
com eles, sabe!? (Ester - Bisteka, 17 de fevereiro de 2016).
No relato de Karina, ela destaca a indicação de um amigo para o interesse em realizar
a oficina
12
Conheci o Ricardo, ele faz Design também. A gente se conheceu e a gente conversava
muito sobre graffiti. Ele já conhecia a Michelle. Teve um dia que ele falou assim:
‘olha Karina, vai abrir uma oficina de graffiti e é só para mulheres’. Aí eu fui, mas
eu não fui pensando “aah, eu vou ser uma futura grafiteira”, eu fui mais para
experimentar... e comecei a...aí, quando começou a oficina, tudo que foi vivenciado
lá, mais sobre os estudos, analisando os graffitis, aí, eu comecei a gostar, né!? Me
apaixonar pelo graffiti. Foi desde aí, que eu comecei a pensar que era aquilo que eu
queria, fazer graffiti. (Karina – Ka, 17 de fevereiro de 2016).
As integrantes consideram a oficina como oportunidade de aprenderem mais sobre
essa arte urbana. Ester ressaltou o fato de que era uma oficina só para mulheres, assim como a
fala do amigo que sugeriu à Karina. Para Ester que vivenciou um histórico violento de relação
de gênero é possível inferir que a característica da oficina em delimitar seu público ao feminino
foi determinante para seu interesse em se escrever na oficina, bem como pela experiência inicial
que teve em pintar com grafiteiros. Somado a isto, é possível que a integrante tenha esperado
que o pintar com outras mulheres que não demonstrassem uma superioridade técnica – por
serem também aprendizes –, fosse uma experiência mais agradável.
Baseadas nas expectativas, tanto de Ester, quanto de Karina em relação ao graffiti,
ambas desenvolveram seus personagens com intensões diferentes. Apresento primeiramente o
processo de elaboração do personagem de Ester
Eu queria mesmo só fazer frase de protesto inicialmente, só que aquilo não seria
socialmente aceito, seria considerado pichação. E se eu associasse o personagem
com alguma fala, né!? A caveirinha falando alguma coisa, aí já seria socialmente
aceito, né!?Tanto que é, né!?Todo mundo: ‘ai, que bonitinho!’, mesmo quando é
alguma coisa forte que eu escrevo ‘ai, que bonitinho!’ Aí, o personagem...pra eu
pensar no personagem foi aquilo que eu já tinha falado, né!? Eu gosto de rock, a
caveira sempre teve assim no mundo do rock, nas estampas desses negócios de rock.
Éé... aí, foi disso o personagem, a caveira simboliza a morte, então é uma coisa que
conversa com a questão da mulher, da violência contra a mulher, porque apesar da
violência contra mulher nunca ter diminuído, ela só aumenta, quando aquilo não
acontece com a gente é como se aquilo pra gente não existisse ou as vezes até
acontece, mas tu não quer muito se ligar naquilo, porque mesmo quando aquilo me
aconteceu e que tu tens acesso, por exemplo, aquelas estatísticas de cada 10 mulheres
8 no mundo vão sofrer algum tipo de agressão, seja ela física ou, seja ela verbal em
algum momento da vida. “8 em cada 10 mulheres?” é simplesmente 80% das
mulheres no mundo. (Ester – Bisteka, 17 de fevereiro de 2016).
Ficou evidente que seu personagem foi pensado para comunicar e chamar a atenção
da sociedade para a violência contra as mulheres. O graffiti adquire um caráter político, ao
retratar as violências vivenciadas pelo gênero feminino. Destaco também a preocupação que a
artista teve em não associar sua arte a algo ilegal e “não aceito socialmente” como ela mesmo
afirma. Apesar de muitas vezes as pessoas direcionarem seus olhares somente a estética da
13
caveira e não percebendo o quão forte são as frases atreladas a ela. Eis, que quando a Ester
mescla as duas características, ela mantém o seu objetivo que é usar a palavra como forma de
protesto e a “legaliza” quando atrela a imagem (graffiti), evitando algumas retaliações sociais.
Segundo Gitahy (1999), existem alguns elementos que diferenciam o graffiti da
‘pixação’. O graffiti tem uma ligação com a arte plástica e prioriza a imagem como forma de
comunicação, enquanto a ‘pixação’ tem sua predominância na palavra ou letra, portanto, o perfil
de ambos influencia drasticamente a aceitação ou não da sociedade como um todo. Sobre este
mesmo assunto, Pereira (2005) levando em consideração o contexto paulistano em que surgiu
a ‘pixação’, aborda uma fase em que o graffiti inicialmente não foi bem aceito socialmente
sendo visto como uma arte plástica deslocada de seu habitat (a galeria). O ‘pixo’ surge como
mais uma maneira de se expressar, porém foi associado a sujeira, “o rótulo de sujeira, antes
também atribuído ao grafite, ficou reservado apenas para a pichação” (PEREIRA, 2005:19). O
que resultou em uma maior aceitação do graffiti agora como arte em detrimento do ‘pixo’.
Já no caso da Karina seu personagem foi desenvolvido da seguinte forma
(...) eu comecei a imaginar assim, que eu queria jogar características minhas no
muro, mas não coisas que lembra a mim, mas coisas assim, que eu criei. (...) eu tinha
que ter alguma coisa criada por mim sem ser parecida das outras pessoas, por mais
que ela seja nua e tenha os cabelos grandes, mas foi algo que foi criado por mim e
também o bomb pode não tá dentro do padrão dos bombs, né!? Só é uma letra, mas
eu também acho que ele é mais parecido comigo ainda mais quando eu jogo essas
coisas assim...essas características da mandala, porque eu gosto da mandala e tal,
quando eu jogo essas coisas dentro, eu acho ele bem parecido comigo, bem a minha
cara. Aí, foi assim que eu comecei a me encaixar no graffiti. (Karina – Ka, 17 de
fevereiro de 2016).
Karina ao desenvolver seu personagem vislumbrou a possibilidade de deixar sua
identidade na sua ilustração. Buscou elementos que a representasse e firmasse sua criatividade
e inovação diante dos personagens já existentes de outros artistas locais. A integrante destaca
mais sobre sua personagem na fala abaixo
Sobre a personagem eu já havia desenhado ela antes do graffiti, já desenhei mulheres
com cabelos grandes, e até achei um desenho, ia te mostrar depois, que eu achei um
desenho antigão, que eu acho que deveria tá no ensino fundamental, e era uma mulher
com um bracelete no braço, aí eu fiquei pensando “caramba! Parece que é uma coisa
meio que já tá dentro da gente, uma coisa subliminar”. Aí, eu fiquei pensando, porque
o bracelete para mim...quando eu botei o bracelete, eu queria botar uma coisa
regional, por exemplo, aquelas grafias e também é um bracelete de ouro com as
grafias marajoaras, tipo como se fosse o valor da grafia marajoara e também tem
algumas grafias que são no braço, né!? No lugar do bracelete foi mais por causa
disso. Mas aí quando eu vi esse desenho eu fiquei imaginando, “égua! Eu já tinha
desenhado isso! Eu já tinha imaginado isso!”. (Karina – Ka, 17 de fevereiro de 2016).
14
Karina ressalta o quanto o(a) artista está intrínseco(a) à própria criação, ao
personagem. Percebeu que existe uma ligação muito intensa no processo criativo, ao relatar que
já havia feito sua personagem há algum tempo atrás e que atualmente a fazia em seus graffitis,
ela reforça esse estreitamento. Na personagem está contido todas as expectativas que a artista
espera repassar (por mais que essa intenção não fosse clara incialmente), seria a valorização da
cultura paraense representado mais claramente pelo bracelete e o grafismo marajoara.
A minha personagem, quando eu comecei a fazer eu não tinha uma ideia “ah, eu
quero passar isso” na minha personagem. Eu queria passar uma mulher que, no
primeiro momento, eu queria passar uma mulher diferente, mas que fosse com uma
cor bem... Bem paraense. (...) Pra mim ela é uma mulher que é diferente, por causa
da cor do cabelo, porque o cabelo, eu acho o cabelo grande, no meu particular eu
acho os cabelos grandes bonitos e eu acho que ela muda sempre a cor do cabelo,
como se ela tivesse sempre mudando. (...) Assim, as coisas que eu queria dar mais
destaque pra ela era o cabelo, a cor e o bracelete. (...) Mas pra mim ela, ela tá mais
ligada a isso... Aos indígenas e a liberdade e ... o espirito feminino. (Karina – Ka, 17
de fevereiro de 2016).
Outros elementos também foram agregados, como: a cor de pele que também remete
especificamente aos nativos do Pará; o cabelo longo e colorido que traz a ideia de diversidade;
a nudez que transmite sentimentos de liberdade. Todos estes elementos em um só personagem
reúnem fatores que trazem uma representatividade da população da Região Norte e em especial
do estado do Pará.
Figura 1: Personagem da Ka em destaque na quadra de Figura2: Bisteka deixou seu personagem e
esportes na Praça Doroty Stang. a frase: Antes puta que submissa!.
.
Ao falarem sobre seus personagens verifiquei que ambas buscaram associar, tanto
temáticas, quanto fragmentos que as representassem. Temáticas estas que circundaram sobre a
violência contra a mulher e as várias formas de opressão e, no caso de Karina a artista
direcionou seu personagem a valorização de elementos que se aproximam da população de seu
15
Estado, o Pará. Ester trouxe na caveira a simbolização do rock (estilo de música que aprecia) e
a morte retomando a questão da relação de gênero, enquanto Karina introduz os traços da
mandala (símbolo que tem apreço) – seja no cenário para seu personagem, seja como estilo de
preenchimento do seu ‘bomb’ –, e as referências à cultura paraense.
Últimas palavras
Este texto apresenta uma proposta experimental. Pretendo desenvolver alguns aspectos
aqui ensaiados, intensificar as entrevistas com Ester e Karina, além de fazer entrevistas de
profundidade com as outras integrantes das Freedas, valorizando o diálogo constante com as
interlocutoras também no processo da escrita e utilização de imagens. A partir da conversa
gravada, transcrição das falas, restituição destas para as entrevistadas e, as eventuais alterações
dos trechos feitas por elas é que foi possível a construção desse texto. O intuito era de fazer um
escrito que não prejudicasse as interlocutoras e que produzisse algum efeito positivo para elas.
Além disso, não era propor uma “dispersão da autoridade” (CALDEIRA, 1988:156)
do texto antropológico, mas conforme já foi dito, produzir um experimento em igualdade
(PORTELLI, 2005), a partir do diálogo contínuo e do comprometimento ético (PORTELLI,
1997). Por conta de minha condição de mulher e interesse em comum no graffiti como
expressão artística e política, acredito que esse experimento foi possível de ser realizado com
as interlocutoras da pesquisa.
Referências
Achutti, L. E; Hassen, M. N. Caderno de campo digital – antropologia em novas mídias.
Horizontes antropológicos 10(21):273-289, 2004.
Caldeira, T.P. do R. A presença do autor e a Pós-Modernidade em Antropologia. Novos
Estudos CEBRAP nº21, Julho de 1988, pp. 133-157.
Feliz, M. G. Cely feliz: nem todo risco no muro é masculino. Trabalho de Conclusão de
Curso. Faculdade de Artes Visuais, Universidade Federal do Pará, Belém, 2014.
Ferreira, L. T. O traçado das redes: etnografia dos grafiteiros e a sociabilidade na metrópole.
Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Federal de São Carlos, São
Carlos: UFSCar, 2007.
Freitas, T. T. Freedas Crew: mulheres livres para pintar. Revista DR – Divas Revolucionárias
2, 2015. Disponível em: Acessado 10/12/2015 às 15h.
Gitahy. C. O que é graffiti. São Paulo: Brasiliense, 1999.
http://www.revistadr.com.br/posts/freedas-crew-mulheres-livres-para-pintarhttp://www.revistadr.com.br/posts/freedas-crew-mulheres-livres-para-pintar
16
Magro, V. M. Meninas do graffiti: educação, adolescência, identidade e gênero nas culturas
juvenis contemporâneas. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Educação,
Universidade de Campinas, Campinas, 2003.
Pereira, A. B. De rolê pela cidade: os pichadores em São Paulo. Dissertação (Mestrado em
Antropologia Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo: USP, 2005.
Portelli, A. Forma e significado na História Oral. A pesquisa como um experimento em
igualdade. Proj. História, São Paulo, (14), fev. 1997.
_____. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre a ética na História Oral.
Proj. História, São Paulo, (15), abr. 1997.
Simmel, G. As grandes cidades e a vida do espírito. MANA 11(2):577-591, 2005.