Nabuco e Alencar

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    Nabuco e Alencar

    Eduardo Vieira Martins

    Universidade de So Paulo

    Resumo: O objetivo deste artigo analisar as ideias desenvolvidas por JoaquimNabuco e Jos de Alencar na polmica travada em 1875, especialmente suasconsideraes sobre dois gneros, o romance e o teatro.Palavras-chave: romance, teatro, polmica literria.

    1

    Quando se enfrentaram na polmica travada nas pginas de OGlobo, em 1875, Joaquim Nabuco e Jos de Alencar se encontravam em posies

    e momentos opostos no que diz respeito a suas vidas particulares e a suas carreiras

    profissionais. O jovem Nabuco, filho do eminente senador Jos Toms Nabuco de

    Arajo, chegara havia um ano de uma viagem Europa e procurava, um pouco a

    esmo, iniciar uma carreira na corte, buscando alternativas poltica, na qual seu pai

    insistia que ele ingressasse. Anos depois, ao recordar essa fase de sua vida, observou

    que a experincia europeia havia arrefecido seu interesse pelas disputas partidrias,

    dando asas s veleidades literrias: Como se v, bem pouco do poltico dominante

    restava depois dessa primeira viagem Europa; eu trocara em Paris e na Itlia a

    ambio poltica pela literria: voltava cheio de ideias de poesia, arte, histria,

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    literatura, crtica, isto , com uma espessa camada europeiana imaginao, camada

    impermevel poltica local [...].

    1

    Com esse esprito, de volta ao Rio de Janeiro,fez palestras sobre arte, procurando apresentar o que tinha visto e aprendido no

    Velho Mundo, e, a seguir, comeou a escrever textos de crtica nO Globo.2

    O velho conselheiro Alencar, que iniciara sua carreira literria em

    1856-57, com a polmica sobreA confederao dos Tamoiose a publicao de

    seus primeiros romances, Cinco minutose O guarani, havia se firmado no correr

    dos anos como um dos mais importantes escritores do pas, sendo visto por muitos

    admiradores como o chefe da literatura brasileira. Simultaneamente atividade

    literria, desempenhava as funes de advogado, jornalista e poltico; era deputado

    pelo partido conservador e, por um breve perodo, foi ministro da justia do gabinete

    ultraconservador capitaneado por Itabora. Contudo, desde o comeo da dcada

    de 1870, a posio de destaque que ele logrou atingir mostrou o seu reverso e

    Alencar tornou-se alvo de questionamentos nos campos poltico e literrio: no

    primeiro, teve sua candidatura ao senado barrada por Dom Pedro II e, em 1871,

    foi duramente atacado por se colocar contra a lei do ventre livre; no segundo, sua

    obra era criticada por escritores da nova gerao, que, a exemplo de Franklin

    Tvora, autor das Cartas a Cincinato(1871-72), arguiam o que lhes parecia excesso

    de imaginao e descuido na observao das paisagens e tipos humanos

    representados em seus romances. O prprio Alencar, sentindo a mudana dos

    ventos, que comeavam a bater contra ele, assinou O gacho, publicado em 1870,

    com o pseudnimo de Snio, justificando a escolha com o argumento de que

    havia se tornado um anacronismo literrio.3

    As vidas de Alencar e Nabuco se cruzam em setembro de 1875,

    opondo, de um lado, um homem abatido pela tuberculose, que se sentia

    prematuramente envelhecido e que via suas concepes polticas e estticas sendo

    paulatinamente postas de lado num mundo em rpida transformao, onde tudo

    parecia estar ruindo; e, de outro, um jovem recm-chegado da Europa, informado

    sobre as novidades dos centros irradiadores de cultura, que voltava para casa sedento

    1. NABUCO. Minha formao, p. 71.

    2. Segundo Brito Broca, depois de Machado, Nabuco [foi] o primeiro afazer crtica literria no rigor da palavra entre ns [...]. Ver BROCA.

    Romnticos, pr-romnticos, ultra-romnticos, p. 319. Sobre o percurso

    de Nabuco, ver ALONSO. Joaquim Nabuco.

    3. ALENCAR. O gacho. O tronco do ip, p. 2.

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    por se afirmar e por ver o seu talento publicamente reconhecido. Os dois se

    encontram quando Ismnia dos Santos, atriz e empresria do Teatro So Lus,solicita a Alencar uma pea para ser representada por Jos Dias Braga, jovem ator

    portugus radicado no Brasil. Sem nada de novo para lhes oferecer, Alencar tira da

    gaveta O jesuta, drama histrico de feio romntica composto muitos anos antes.

    As duas apresentaes, ocorridas em 18 e 19 de setembro de 1875, foram um

    fracasso to grande que a empresria se viu obrigada a tirar a pea de cartaz. Na

    imprensa da corte, as opinies se dividiram: enquanto a maior parte dos comentaristas

    elogiou as qualidades dO jesuta, lamentando a ausncia do pblico, alguns artigos,

    principalmente de pequenos jornais satricos, aproveitaram a oportunidade para

    espicaar o estridente deputado do partido conservador.4

    No obstante a acolhida favorvel da imprensa, Alencar, ofendido

    pela indiferena do pblico e por algumas crticas feitas ao seu trabalho, publicou

    nO Globoum conjunto de quatro artigos que visavam no apenas a defender e a

    explicar a pea, mas tambm a fustigar a sociedade carioca que, segundo ele,

    havia desertadoda apresentao. No primeiro, estampado em 26 de setembro,

    afirmava que o episdio foi ocasio de se exibirem teorias dramticas, inteiramente

    avessas aos princpios da arte moderna e alegava escrever com o intuito de

    rebater essas concepes equivocadas, que poderiam corromper ainda mais a

    literatura do pas.5O intrito magnnimo, contudo, no bastava para encobrir o

    despeito do autor, que acusava o pblico de ser estrangeirado e indiferente a tudo

    o que nacional, chegando ao extremo de qualificar a sociedade da corte como

    smia (PAN, p. 24). Investigando os motivos do fracasso, considera que o fato de

    O jesutater sido levado ao palco poucos dias depois do desenlace da questo

    religiosa teria atiado a fria dos liberais e dos maons, parcela da sociedade que,

    iludida pelo ttulo do drama, voltou-lhe as costas com frio desdm (PAN, p. 24).

    Mesmo que a mgoa do escritor ferido em seus brios seja perceptvel ao longo dos

    quatro artigos, esse sentimento no o impede de desenvolver com clareza suas

    idias sobre o drama histrico, gnero a que pertencia O jesuta.Explicando a

    4. Para a histria da representao de O jesuta, ver as biografias deAlencar por Raimundo de Menezes, Magalhes Jr., Lus Viana F ilho e Lira

    Neto. Para a anlise da pea e das concepes teatrais de Alencar, verDcio de Almeida Prado (1996), Flvio Aguiar e Joo Roberto Faria.

    5. ALENCAR. O Teatro Brasileiro. A propsito do Jesu ta . In: COUTINHO.(Org.). A polmica Alencar-Nabuco, p. 23. Daqui em diante citado como

    PAN.

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    gnese da pea, escrita em 1861 para atender a uma encomenda de Joo Caetano,

    Alencar recorda o processo de composio, especialmente a dificuldade paraencontrar o tema adequado, e discute aspectos tcnicos importantes, como a

    construo dos personagens, os modos de exibio cnica e o problema da relao

    entre imaginao e histria.

    Em 3 de outubro de 1875, um dia antes da publicao do quarto

    artigo de Alencar, Joaquim Nabuco entra na lia para rebater seus argumentos. J

    de sada, repudia a atitude do dramaturgo com relao ao pblico e afirma que ele

    no tem [...] o direito de instaurar aos que no foram ouvir oJesuta, um processo

    de ausncia (PAN, p. 44). Nabuco aponta com clareza a contradio do escritor

    que, diminuindo o seu pblico, [...] mutila-se a si [...] (PAN, p. 45). Considerando

    que Alencar ainda no havia sido objeto de uma crtica isenta, prope-se a analisar

    sua obra, abarcando os diversos gneros que ela comporta, dos folhetins deAo

    correr da penaao conjunto dos romances, das cartas sobreA confederao dos

    tamoioss peas de teatro e aos escritos polticos de Erasmo. Ironicamente, Nabuco

    sugere que o autor de uma obra to vasta e aparentemente diversificada, ainda

    no conhecia sua prpria vocao: A srie de estudos que hoje comeo sobre o

    Sr. J. de Alencar tem exatamente por fim descobrir a incgnita de sua vocao

    literria [...] (PAN, p. 48). Esse artigo o incio do confronto entre os dois escritores,

    que at 21 de novembro iro escrever colunas semanais estampadas nas pginas

    de O Globo: Nabuco, aos domingos; Alencar, s quintas. Como Nabuco tentou

    abarcar a obra completa de Alencar, as questes debatidas por eles cobrem um

    espectro muito amplo. Para tentar sistematiz-las, vou centrar esta exposio sobre

    dois gneros, discutindo, num primeiro momento, as idias dos polemistas sobre o

    teatro, e, a seguir, sobre o romance.

    2

    O principal ataque de Nabuco s peas de Alencar incidia sobre a

    explorao da temtica escrava em O demnio familiare em Me, escolha que lhe

    parecia inadequada, pois fazia da escravido o caracterstico do teatro brasileiro

    (PAN, p. 48). Quanto a O demnio familiar, considerava a figura de Pedro, o

    pequeno escravo responsvel pela intriga, inverossmil e mal construda. Para

    Nabuco, o maior defeito da personagem residia na sua linguagem, que no apenas

    falseava a verdade, como feria as normas do teatro, no devendo, por isso, ser

    levada aos palcos:

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    Essa linguagem de telegrama no falada entre ns; mas se o fosse,

    ainda no teria o direito de passar da boca dos clowns, pintados de

    preto, dos nossos circos para a dos atores. [...] J bastante ouvir nas

    ruas a linguagem confusa, incorreta dos escravos; h certas mculas

    sociais que no se devem trazer ao teatro, como o nosso principal

    elemento cmico, para fazer rir. O homem do sculo XIX no pode

    deixar de sentir um profundo pesar, vendo que o teatro de um grande

    pas, cuja civilizao proclamada pelo prprio dramaturgo escravagista

    [...] acha-se limitado por uma linha negra, e nacionalizado pela escravido.

    Se isso ofende o estrangeiro, como no humilha o brasileiro! (PAN, p. 106)

    Ao falar de Me, Nabuco afirma que o horror da situao da escrava

    herdada pelo prprio filho, que, posteriormente, se v forado a vend-la, deveria

    ter impedido o dramaturgo de lev-la ao palco: A arte nada tem que ver nesse

    mercado de carne humana, que o autor ps em cena (PAN, p. 111). Para ele, o

    tema escravo feria o decoro teatral, devendo, portanto, ser evitado: Tudo o que

    h de triste, de raro, de extraordinrio, de inverossmil nesse fato, devia impedir o

    Sr. J. de Alencar de explor-lo e de carregar ainda de cores to sombrias a escravido,

    j de si to triste (PAN, p. 110-11). Alm da inconvenincia do tema, outro defeito

    da pea era o desrespeito estrutura do gnero dramtico: No drama h uma

    ao que se desenvolve e de que sai o desenlace, uma cena para a qual convergem

    todos os efeitos; uma situao que o autor prepara, que o pblico espera. O drama

    a luta, o esforo, a paixo, no a desgraa nem a loucura (PAN, p. 110).

    Citando Taine, Nabuco avalia que em Meo drama no se concretiza porque o

    suicdio da protagonista, que deveria ser o desenlace da ao, um incidente que

    no decorre do seu desenvolvimento e, portanto, no se reveste do carter de um

    acontecimento inevitvel, adequado ao gnero, causando, pelo contrrio, um efeito

    de surpresa no espectador. Comentando a censura utilizao do escravo no

    teatro alencariano, Roberto Schwarz destaca a contradio do abolicionista Nabuco,

    incomodado pela explorao teatral do escravo: Nabuco pe o dedo em fraquezas

    reais, mas para escond-las; Alencar pelo contrrio incide tenazmente, guiado pelo

    senso da realidade, que o leva a sentir, precisamente a, o assunto novo e o elemento

    brasileiro.6

    6. SCHWARZ. Ao vencedor as batatas, p. 32.

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    folhetim que redigiu em resposta a Nabuco, Alencar afirmara que nem nos meus

    discursos, nem nos meus escritos aplaudi a escravido; respeitando-a, como lei dopas, manifestei-me sempre em favor de sua extino espontnea e natural, que

    devia resultar da revoluo dos costumes, por mim assinalada (PAN, p. 58-9). Ao

    propor essa extino espontnea e natural, agia no interesse dos que pretendiam

    adi-la indefinidamente. Antes da sua atuao contrria lei do ventre livre, Alencar

    j havia se firmado como importante terico da manuteno do sistema escravocrata

    no Brasil, cuja extino lhe parecia uma ameaa ao Imprio.8Segundo Jos Murilo

    de Carvalho, as Novas cartas de Erasmo, redigidas em 1867, num momento em

    que o sistema j era questionado por membros da elite poltica, representam a

    mais completa formulao do pensamento escravista elaborada no perodo posterior

    independncia: Quando a defesa da instituio se limitava em geral ao argumento

    do pragmatismo, ele tentou justific-la tambm em termos filosficos e histricos.9

    No campo teatral, Flvio Aguiar retoma a anlise dO demnio familiarfeita por

    Dcio de Almeida Prado e afirma que o dramaturgo pensava o problema da servido

    de perspectiva conservadora, preocupado no com o escravo, mas com os males

    (no apenas relativos segurana fsica, mas tambm de ordem moral) que ele

    podia acarretar para o senhor e sua famlia.10

    O principal argumento de Alencar em defesa da utilizao do tema

    escravo no teatro a premissa de que a arte deveria lanar razes no ambiente

    cultural, geogrfico e humano em que florescia: Que idia faz este senhor de

    literatura, e sobretudo de literatura nacional? Acaso est ele convencido de que a

    arte e a poesia podem existir em um estado de completa abstrao da sociedade

    em cujo seio se formam? (PAN, p. 121). Lanando mo das idias de Littr, prope

    que as obras de arte [...] encerram primeiramente o que do lugar e do tempo,

    depois, se elas so criao do gnio, uma parte que destinada a todos os lugares

    e tempos (PAN, p. 121). Os dois elementos apontados pelo crtico francs estariam

    presentes em O demnio familiare Me, embora no sejam criao do gnio:

    Encerram os costumes criados pela escravido, elemento local e contemporneo,

    e combinam esse elemento com as aspiraes nobres da pureza da famlia e da

    regenerao da sociedade (PAN, p. 122). Ao lado da necessidade de fixar a cor

    8. Ver ALENCAR. Cartas a favor da escravido.

    9. CARVALHO. Escravido e razo nacional. In: Pontos e bordados, p. 55.

    10. AGUIAR. A comdia nacional no teatro de Jos de Alencar, p. 74.

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    local, o que justifica a presena do escravo nas duas peas a perspectiva

    moralizadora pela qual o problema abordado: Se a literatura de todos osmonumentos e arquivos humanos, o que melhor reflete a fisionomia de um povo

    e de uma idade: quem, a no ser o Sr. Nabuco, imputar como pecha e mcula, ao

    teatro de um pas de escravido o terverberado esse vcio poltico e social? (PAN,

    p. 122. Grifo meu).

    Concebendo a comdia como um daguerretipo moral,11afirma

    que a finalidade de O demnio familiar era mostrar os inconvenientes da

    domesticidade escrava (PAN, p. 124). A opo de abordar o problema pelo seu

    lado mais inocente, colocando em cena um pequeno escravo, cujas intrigas no

    eram motivadas pela perversidade, mas pela travessura e pelo desejo de ser

    cocheiro, no dissiparia a nitidez da tese defendida: o escravo era uma ameaa

    pureza da famlia e deveria ser afastado do seu convvio (PAN, p. 124). Quanto

    linguagem falada por Pedro, Alencar a defende a partir de dois argumentos:

    primeiro, a sua fidelidade ao modelo observado (PAN, p. 122), e segundo, a sua

    validade como recurso de caracterizao da personagem: sobretudo no teatro

    onde as figuras apresentam-se por si e no precedidas de descries do autor, que

    elas devem falar, cada uma a linguagem peculiar, prpria de sua profisso, de sua

    ndole, de sua individualidade (PAN, p. 123).

    As censuras de Nabuco a Meincidiam sobre dois aspectos: a escolha

    de uma escrava para enaltecer o sentimento maternal e a inpcia do desfecho,

    que no lhe parecia decorrer dos sucessos que o precederam. A primeira crtica

    certamente desgostou o dramaturgo, que, numa pgina encharcada de

    sentimentalismo, havia dedicado a pea a sua prpria me.12Tanto na dedicatria

    do livro quanto na resposta a Nabuco, Alencar argumenta que, se escolheu uma

    mulher da mais baixa extrao social como protagonista, foi para realar, por

    contraste, a sublimidade da sua abnegao (PAN, p. 126). No tocante ao desfecho

    do drama, o suicdio de Joana justificado como decorrncia natural do seu carter

    e da intriga, o que lhe conferia o estatuto de um acontecimento fatal, indeclinvel,

    produzido pela convergncia da ao (PAN, p. 125). No que dizia respeito aAs

    asas de um anjo, como Nabuco apenas repetira as crticas feitas na poca da

    proibio policial, Alencar retoma os mesmos argumentos que j havia utilizado

    11.A expresso empregada por Alencar em A comdia brasileira, p. 45.

    12. ALENCAR. Me, p. 293.

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    para defend-la,13reafirmando a validade da cena em que o pai de Carolina a

    assediava e insistindo no intuito moral da pea: No conheo na literatura antigae moderna, uma obra em que o vcio fosse mais implacavelmente flagelado do

    que nasAsas de um anjo (PAN, p. 127).

    3

    Quanto ao romance alencariano, as crticas de Joaquim Nabuco

    retomam diversas questes que j haviam sido levantadas nas Cartas a Cincinato,

    de Franklin Tvora, como a falta de observao da realidade e o abuso da

    imaginao, o uso de neologismos e a imitao de escritores estrangeiros,

    especialmente de Chateaubriand, Fenimore Cooper e Balzac. Diferentemente deTvora, que centrara suas crticas em O gachoe Iracema, Joaquim Nabuco procura

    recensear diversas obras, investigando, numa ordem aproximadamente cronolgica,

    desde O guaraniat Senhora.

    Atacando um dos pontos centrais da esttica alencariana, Nabuco

    questiona o carter nacional da falsa literatura tupi de O guarani, Iracemae

    Ubirajara(PAN, p. 84), e critica a ideia de que a fundao da literatura brasileira

    dependesse da explorao dos costumes selvagens:

    Essa literatura indgena tem certa pretenso a tornar-se a literatura brasileira.

    Sem dvida quem estuda os dialetos selvagens, a religio grosseira, osmitos confusos, os costumes rudes dos nossos indgenas, presta um

    servio cincia, e mesmo s artes. O que porm impossvel, querer-

    se fazer dos selvagens a raa, de cuja civilizao a nossa literatura deve

    ser o monumento.

    Ns somos brasileiros, no somos guaranis; a lngua que falamos,

    ainda a portuguesa. (PAN, p. 190)

    Como se v, o folhetinista refuta a linhagem romntica que pretendia utilizar o

    indgena como fonte de sugestes e imagens para a construo da literatura nacional.

    Segundo Roberto Ventura, a postura de Nabuco decorria do fato de ele conceber

    a arte como expresso idealizada da sociedade branca e cosmopolita, o que,

    13. Ver ALENCAR. As asas de um anjo. Advertncia e Prlogo da 1. Edio,p. 924.

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    consequentemente, o levou ao desejo de excluir o negro e o ndio da sua

    representao literria.

    14

    Da perspectiva do crtico, os contos indgenas de Alencarerravam no apenas ao identificar nos povos autctones um dos elementos

    formadores da civilizao brasileira, mas tambm na caracterizao dos personagens

    (que no eram verdadeiros selvagens PAN, p. 189) e na pintura da natureza:

    A natureza americana ele estudou-a nos livros; [...] o escritor no conhece a

    linguagem que fala a natureza [...]. Quem l os romances do Sr. J. de Alencar, v

    que ele nunca saiu do seu gabinete e nunca deixou os culos (PAN, p. 209).

    O problema da observao do espao e dos tipos humanos

    representados por Alencar em seus romances j havia sido levantado por Franklin

    Tvora na polmica de 1871-72: Snio tem a pretenso de conhecer a natureza,

    os costumes dos povos [...] sem dar um s passo fora do seu gabinete. Isto o faz

    cair em freqentes inexatides, quer se proponha a reproduzir, quer a divagar na

    tela.15Retomando a ideia de que Alencar era um escritor de gabinete, Nabuco

    questiona a verossimilhana dos seus romances. J no segundo folhetim, datado

    de 17 de outubro, afirma que no poderia [...], sem escrever um livro to grande

    como oGuarani, notar tudo o que nele parece-me ofender a histria, a verdade, a

    arte, e as leis da composio literria [...] (PAN, p. 86). Seguindo o exemplo de

    Franklin Tvora, Nabuco parafraseia passagens do romance (a cena em que Peri

    luta com a ona ou o episdio em que bebe o curare para envenenar os inimigos

    no ritual de canibalismo, por exemplo) pontuando-as de comentrios que visavam

    a ressaltar suas incongruncias. Um exemplo dessa atitude pode ser visto na

    avaliao do episdio do curare: baseando-se na descrio que Humboldt faz da

    sua ao, Nabuco considera inexequvel o episdio em que Peri ingere o veneno

    para exterminar os aimors (PAN, p. 90). Como se v, assim como ocorria nas

    Cartas a Cincinato, Nabuco compreende o verossmil primordialmente como

    fidelidade a um modelo extraliterrio, passvel de ser conhecido pela cincia, pela

    historiografia ou, simplesmente, pela observao objetiva da realidade.

    O mesmo defeito de falta de observao apontado em O guarani

    marcaria tambm as narrativas alencarianas de ambientao urbana. Numa avaliao

    que resume sua posio sobre elas, Nabuco considera Senhoracomo um romance

    em que

    14. VENTURA. Estilo tropical, p. 44.

    15. TVORA. Cartas a Cincinato, p. 15.

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    tudo, absolutamente tudo, falso, contrrio realidade das cousas, pobre

    de fantasia, e em que parece-nos que o Rio de Janeiro uma cidade de

    lunticos. [...] no a fantasia que excessiva, no a imaginao que

    exuberante, o senso moral que nulo. [...] o Balzac brasileiro ver-se-

    ia em grandes dificuldades para dizer-nos em que parte da nossa sociedade

    achou um dos seus perfis fluminenses; Senhoratem a mesma cor local

    que o Gachoe Iracema; tudo est fora do seu verdadeiro meio, nada

    existiu (PAN, p. 184-85).

    A par da deficincia da representao do ambiente social da corte, o

    que mais incomoda o crtico nessas narrativas a construo das personagens, que

    lhe parecem incoerentes. Analisando Lucola, no aceita a dualidade do carter

    da protagonista, dividido entre a virgem e a messalina (PAN, p. 135). O mesmotipo de ciso se manifestaria em outros personagens, como Loredano, em O guarani,

    ou Emlia, em Diva, nos quais a rpida mudana na linha de ao compromete a

    pintura:

    O que preciso que uma dessas naturezas caprichosas seja coerente

    consigo mesma e que a diversidade dos seus atos, e dos seus sentimentos,

    as transies bruscas de seu corao, as contradies aparentemente

    inconciliveis de sua vontade, a constante instabilidade de seu esprito,

    tudo seja referido de um modo ou de outro a um carter sempre o

    mesmo (PAN, p. 155-56).

    Agora formulado em termos de coerncia interna, o verossmil concebido como

    a lgica que remete os atos do personagem a um centro moral capaz de explicar

    a multiplicidade de comportamentos aparentemente contraditrios, conferindo-

    lhes uma unidade que, da perspectiva de Nabuco, falta s fisiologias traadas por

    Alencar e converte suas criaes em monstros morais, como ocorre com Lcia,

    Emlia Duarte, Aurlia e Seixas.

    Outro elemento importante da crtica de Nabuco aos romances de

    Alencar que ele mantm-se fiel idia de que o gnero possua finalidade

    moralizante. Ao analisar Lucola, por exemplo, Nabuco faz um longo discurso a

    favor do casamento, instituio que lhe parecia ameaada pelo exemplo da

    prostituta redimida (PAN, p. 136-38). A defesa da idealizao da natureza

    representada no romance, que deveria ser depurada de aspectos baixos, como a

    lascvia corruptora de Lucola, aproxima-o novamente de Franklin Tvora, que,

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    apesar de proclamar o primado da observao da realidade em suas cartas, concebia

    a busca do ideal como finalidade maior do escritor. Para Joaquim Nabuco,

    o romance tem menos influncia do que o teatro, mas tanto no romance

    como no teatro o Sr. J. de Alencar perdeu de vista o ideal; por isso a sua

    influncia em nossa literatura, se ele no vier a ter um sentimento diverso

    da misso do escritor, manifestar-se- por uma poesia, artificial e extica,

    emprestada a raas que no pensaram nem sentiram como a nossa, e,

    paralelamente, por um realismo sem elevao e sem verdade, para o

    qual a arte a surpresa, a sensao e o escndalo (PAN, p. 139).

    Defrontando-se novamente com questes havia muito levantadas

    pela crtica, Alencar retoma argumentos j desenvolvidos em outras ocasies pararesponder a Joaquim Nabuco. Refuta que Chateaubriand tenha sido o fundador da

    poesia americana e, mais uma vez, nega que seus romances de tema indgena

    fossem uma imitao do mestre francs ou de Fenimore Cooper. Quanto acusao

    de plgio, queixa-se que Nabuco fazia observaes genricas e exige que o crtico

    aponte as passagens onde haveria cpia.

    Um dos aspectos mais interessantes das consideraes desenvolvidas

    por Alencar ao responder aos ataques de Nabuco reside na defesa da verossimilhana

    de seus romances. Traando um movimento perceptvel em outros textos crticos,

    Alencar formula o problema a partir de duas ordens distintas de argumentos: na

    primeira, o verossmil concebido de perspectiva referencial, na segunda, como

    efeito discursivo interno ao texto. A primeira atitude pode ser percebida quando

    procura assegurar a plausibilidade de personagens e episdios, alegando sua

    verdade histrica ou cientfica, sempre de modo a destacar sua fidelidade ao modelo

    extraliterrio. Dessa maneira, para rebater a censura de paracronismo feita por

    Nabuco, que questionava a utilizao de pistolas em O guarani, apresenta um

    dado histrico que aponta o uso dessas armas em 1544 e cita uma tragdia redigida

    em 1603 na qual elas eram mencionadas (PAN, p. 94). Em outro momento da

    polmica, quando Joaquim Nabuco lana mo do relato de Humbold para questionar

    a descrio do efeito do curare em O guarani, Alencar, aceitando o debate no

    terreno cientfico, recorre autoridade do Dr. Sigaud, cujo parecer havia sido

    citado numa nota ao romance, para confirmar o efeito da droga, validando, ento,

    a estratgia de Peri para envenenar os guerreiros aimors que sitiavam a casa de

    Dom Antnio de Mariz (PAN, p. 144). Pautando-se pela mesma ordem de raciocnio,

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    procura garantir a veracidade de personagens e episdios dos romances urbanos,

    defendendo sua fidelidade em relao aos modelos observados.Em todos esses argumentos, o verossmil formulado em termos

    referenciais e sustentado pela conformidade da narrativa com a realidade

    extratextual. A atitude de Nabuco e dos outros crticos que se orientavam pela

    idia de observao (e mesmo a de Alencar, quando ingressa nesse tipo de disputa)

    faz lembrar a postura de Bouvard e Pcuchet, que, diante do romance histrico,

    exigiam a conformidade com a crnica e com a cincia, sendo que o segundo, a

    certa altura das suas leituras, consultava a Biografia universale empreendia a

    reviso de Dumas, do ponto de vista cientfico.16

    Em Alencar, entretanto, a par desse tipo de raciocnio, encontra-se

    uma outra ordem de argumentos, na qual o problema da verossimilhana formulado

    em termos de coerncia interna. Assim, aps defender a veracidade da descrio

    do efeito do curare com base na autoridade cientfica do Dr. Sigaud, sustenta sua

    validade em termos das necessidades de composio internas narrativa:

    insensato o projeto? No foram bem calculadas as probabilidades?

    Ser burlada a esperana do selvagem? O drama no se ocupa com isto;

    apresenta o heri no relevo de seu carter, no assomo de sua paixo.

    Sai-lhe, porm, ao encontro o crtico e fazendo gala de seus

    conhecimentos toxicolgicos sobre o curare; trata de convencer a Peri

    que ele no deve sacrificar-se [...]. (PAN, p. 98)

    Mais do que adequar-se verdade cientfica, o episdio tem a finalidade de colocar

    diante dos olhos do leitor a coragem e a abnegao do heri do romance, disposto

    a todos os sacrifcios para salvar a sua senhora.

    Em outra passagem, Alencar sustenta a verossimilhana deA pata da

    gazelano a partir de uma pretensa fidelidade ao modelo observado, mas com o

    argumento de que o romance uma fantasia, e portanto, livre dos

    constrangimentos da vida comum:

    No me ocuparei em defender o plano e a idia da Pata da gazela. Este

    livro uma fantasia, ou como o chamam os franceses, uma bluette. Tem

    esta espcie de escritos, ou devaneios literrios, a mesma natureza dosarabescos na pintura e das variaes em msica.

    16. FLAUBERT. Bouvard e Pcuchet, p. 118.

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    Se deleitam o esprito, se nos causam uma impresso agradvel e nos

    distraem por alguns momentos, preencheram seu fim [...]. (PAN, 198-99)

    Pensado internamente como gnero, o romance transcende os limites do real,

    criando um universo pautado por regras prprias. Argumento semelhante havia

    sido apresentado em Como e porque sou romancista, pequena autobiografia

    intelectual redigida em 1873, mas publicada postumamente. Nesse texto, ao

    defender-se mais uma vez da acusao de imitar Fenimore Cooper, argumenta

    que, ao contrrio do que ocorria com o escritor norte-americano, em O guaranio

    ndio era pintado de perspectiva potico-idealizante, e no realista.

    Perceptvel em outros textos crticos de Alencar, esse movimento

    entre duas concepes de verossmil acabou fornecendo argumentos para crticos

    que, como Tvora ou Nabuco, apontavam em suas narrativas a contradio entre

    a fantasia e o desejo de redigir romances de costumes representativos da vida

    nacional. Nas Cartas a Cincinato, Franklin Tvora utilizou as notas e o argumento

    histrico de Iracemapara, a partir de dados divergentes, arguir sua verossimilhana.

    Da perspectiva alencariana, contudo, no h contradio entre a base histrica e o

    exerccio de imaginao, pois, como explicitou ao discutir a escolha do tema de O

    jesuta, o escritor deveria partir de um fato registrado pela primeira e, por meio da

    segunda, completar os aspectos deixados na obscuridade pelos cronistas e elev-

    los ao nvel de grandiosidade conveniente ao gnero (PAN, p. 29-31). A leitura do

    drama permite perceber a larga extenso na qual, para Alencar, o autor podia

    exercer sua atividade criadora: sobre o pano de fundo relativamente restrito deum acontecimento histrico definido (a expulso da Companhia de Jesus) e com

    o concurso de alguns personagens histricos (o Conde de Bobadela, Baslio da

    Gama), o dramaturgo tece um vasto painel da nacionalidade para celebrar o dia da

    independncia.

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    Alm de questes concernentes ao teatro e ao romance, outros temas

    foram debatidos pelos dois polemistas, desde problemas literrios relevantes at a

    miualha sem qualquer importncia que sempre se levantava nesse tipo de debate,

    apenas com o intuito de dar quinau no oponente e afirmar a prpria superioridade.

    No sculo XIX, a polmica era um gnero prestigioso e uma forma socialmente

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    reconhecida de um escritor projetar-se na arena pblica, angariando o

    reconhecimento dos leitores. esse, indubitavelmente, o principal intuito do jovemNabuco ao investir contra a figura vetusta de Alencar, o que no passou despercebido

    ao experiente romancista:

    H dois meses um moo, desejoso de mostrar-se, apareceu na imprensa

    fazendo a crtica de minhas obras.

    Dei-lhe uma prova de considerao, que outros escritores, mais modernos

    lhe recusaram, o que ele no me agradecer. Respondi a seus artigos.

    (PAN, p. 219. Grifo meu.)

    Alencar sabia bem do que estava falando, j que ele prprio utilizara

    a polmica para conquistar notoriedade e desenvolveu, do incio ao fim de suavida pblica, uma trajetria intelectual pontuada por confrontos: A mim deleitam

    os certames literrios, chegou a declarar, respondendo a uma crtica a Sonhos

    douro.17Polemista incansvel, debateu os principais temas em pauta no seu tempo,

    abarcando questes polticas e jurdicas. No terreno literrio, das cartas sobreA

    confederao dos tamoios(1856) at o embate com Joaquim Nabuco (1875),

    envolveu-se em inmeras disputas, como a controvrsia a propsito da censura

    deAs asas de um anjo, as discusses decorrentes de crticas a aspectos gramaticais

    de suas obras ou o debate das Questes do dia, com Jos Feliciano de Castilho e

    Franklin Tvora. Nessas polmicas, ora os contendores utilizaram a forma epistolar,

    criando personagens como Ig, Semprnio e Cincinato, que assinavam as cartas; oraadotaram a forma do artigo crtico, subscrito por pseudnimos ou pelo prprio

    nome, como no caso da polmica com Nabuco. Segundo Magalhes Jr., esse ltimo

    debate chamou a ateno dos contemporneos pela peculiaridade de se desenrolar

    nas pginas de um nico jornal, que abrigou os dois oponentes:

    Nunca o meio literrio brasileiro tivera espetculo to sensacional como

    o que deram Joaquim Nabuco e Jos de Alencar ao se engalfinharem

    pelas colunas de O Globo. Em geral, as polmicas dessa espcie eram

    travadas com cada contendor barricado num jornal diferente. Mas, dessa

    vez, a briga era dentro da mesma trincheira, um dos briges escrevendo

    aos domingos e o outro s quintas-feiras.18

    17. ALENCAR. Os Sonhos douro, p. 128.

    18. MAGALHES Jr. Jos de Alencar e sua poca, p. 355.

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    A polmica se estendeu at o dia 21 de novembro de 1875, quando, no seu

    stimo folhetim, Nabuco enveredou pelo terreno da poltica. A partir da, sem darqualquer explicao aos leitores, Alencar retirou-se da arena. Numa nota manuscrita,

    que no chegou a ser publicada na poca, mas integra a edio preparada por

    Afrnio Coutinho a partir de recortes colecionados pelo romancista, Alencar explica

    que depois de ter debatido os grandes temas nacionais com os principais polticos

    da poca no poderia perder seu tempo com um filhote: A poltica estou

    habituado a discuti-la com seu pai (PAN, p. 219).

    Alencar morreu dois anos depois do confronto com Nabuco, mas

    ainda teve tempo de publicar dois romances (O sertanejo, em 1875, ao qual ele

    chega a se referir durante o debate, e Encarnao, que apareceu no folhetim do

    Dirio Popularem 1877) e de deixar uma srie de projetos inacabados. Morreu

    amargurado, perseguido pela ideia de que sua obra e seu nome seriam esquecidos

    pela posteridade. Nabuco, por seu turno, se no conseguiu se firmar como poeta

    ou romancista, notabilizou-se na luta pelo abolicionismo e logrou realizar suas

    veleidades de escritor, no no campo das belles lettres, mas no gnero histrico,

    no qual deixou uma das mais slidas e importantes obras do sculo XIX, com

    destaque para Um estadista do imprio. Anos depois, arrependeu-se do tom

    desabrido com que, quando jovem, tratou o velho Alencar. Numa passagem de

    Minha formao(1900) sempre citada pelos estudiosos da polmica, ao falar das

    suas atividades depois do regresso da primeira viagem Europa, expressa esse

    sentimento com clareza:

    fui colaborador literrio do Globo e travei com Jos de Alencar uma

    polmica, em que receio ter tratado com a presuno e a injustia da

    mocidade o grande escritor (digo receio, porque no tornei a ler aqueles

    folhetins e no me recordo at onde foi a minha crtica, se ela ofendeu

    o que h profundo, nacional, em Alencar: o seu brasileirismo).19

    Menos conhecidas, mas orientadas no mesmo sentido de rever a atitude assumida

    quando jovem, so duas cartas pessoais, escritas em 1905, nas quais Nabuco

    justificava seu voto a favor de Mrio de Alencar na eleio para a Academia Brasileira

    de Letras. Na primeira, destinada a Carlos Magalhes de Azeredo, dizia: Pago

    assim a minha dvida, ou antes expio a minha falta para com o pai. Na segunda,

    19. NABUCO. Minha formao, p. 74.

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    respondendo indagao de Oliveira Lima, explica sua atitude: Votei pela dvida

    em que estava com o pai, Jos de Alencar, por o ter atacado, quando jovem, comtanta falta de venerao nacional.

    20Alm da retratao, a passagem autobiogrfica

    e o testemunho a Oliveira Lima importam por mitigar a oposio local/cosmopolita,

    to acentuada na polmica e na sua recepo: ao final, o que o estrangeirado

    Nabuco reconhece de positivo na obra do nacionalista Alencar justamente o seu

    brasileirismo.

    Nabuco and Alencar

    Abstract: This paper aims at analysing the notorius polemics among Jos deAlencar and Joaquim Nabuco, which took place in the Brazilian newspaperO Globo, from September to November 1875, specially focusing on theconcepts of novel and play as literary genres developed by those authors.Keywords: Novel, Play, Literary Polemics.

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