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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA
CENTRO DE ARTES � CEART
DEPARTAMENTO DE MÚSICA
A música nativista do sul do Brasil: panorama histórico e gêneros de
comunicação com o folclore rio-platense Trabalho de conclusão de curso
Eduardo Hector Ferraro
Orientador: Acácio Tadeu Camargo Piedade
Florianópolis, julho 2006
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EDUARDO HECTOR FERRARO
Trabalho de conclusão de curso de
Licenciatura em Educação Artística
habilitação em Música,
Universidade do Estado de Santa Catarina
Orientador: Prof Dr Acácio Tadeu Camargo
Piedade.
Florianópolis, Julho de 2006
EDUARDO HECTOR FERRARO
A música nativista do sul do Brasil: panorama histórico e gêneros
de comunicação com o folclore rio-platense Trabalho de conclusão de curso
Aprovado em 5 de julho de 2006
_____________________________________________
Orientador: Prof Doutor Acácio Tadeu Camargo Piedade
______________________________________________
Prof Doutor Marcos Tadeu Holler
_______________________________________________
Profa. Tereza Mara Franzoni
Florianópolis, julho de 2006
AGRADECIMENTOS
Este trabalho foi possível não somente pela minha dedicação e empenho, mas
também pela paciência e carinho que algumas pessoas me brindaram durante o
processo de construção da pesquisa, e ao longo da graduação.
Agradeço a minha esposa Neusa, e a minha filha Bia por agüentar toda minha
energia, alegrias e tristezas durante a construção da pesquisa. Por elas me esperar
com amor e carinho na chegada do campo e acreditar que meu trabalho era muito
sério.
Agradeço aos grandes amigos conquistados no decorrer do curso, especialmente a
Deborah Rampinelli, companheira de tantos trabalhos, incansável batalhadora, e a
seu filho Paulo Vinicius, que compartiu tantas apresentações na Universidade e
hoje é meu grande discípulo na música.
Agradeço aos professores do curso de Licenciatura em Música, que me brindaram
informações preciosas e me fizeram gostar da Música ainda mais do que eu
gostava.
Um agradecimento muito especial para meu amigo, grande artista nativista,
Giancarlo Orsoleta, que fez possível a minha pesquisa de campo no Corredor de
Canto e Poesia.
iv
RESUMO
Este trabalho descreve o surgimento do Movimento Nativista e sua interação na modernização
das tradições gaúchas. Tendo como um dos sinais desta modernização, a integração latino-
americana, mais precisamente, com os países limítrofes da Argentina e Uruguai, pretendemos
mostrar através da música nativista este fato. Para direcionar a pesquisa, consideramos
importante o embasamento histórico e geográfico, junto de uma análise dos processos culturais
e, principalmente, artísticos que conduziram ao surgimento do nativismo. A pesquisa de campo
é o centro do trabalho, pois nela encontramos os fortes indícios da integração mencionada, assim
como os gêneros de comunicação com o folclore rio-platense. Finalmente, são abordados os
ritmos e a instrumentação usada na música nativista como traços da modernização e integração
com a cultura platina. Não deixamos de lado o contexto sociológico e o polêmico tema da
ideologia que está embutido nestes movimentos, assuntos que permeiam todo o trabalho,
aprofundados nas considerações finais.
Palavras Chaves Música Nativista � Tradicionalismo Gaúcho � Cultura Rio-Platense
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v
SUMÁRIO
RESUMO...................................................................................................................................... iv
INTRODUÇÃO........................................................................................................................... 07
1. CAPÍTULO I �................................................................................................................ 09
1.1 Cultura gaúcha........................................................................................................... 09
1.2 Referências históricas e geográficas.......................................................................... 12
1.3 Imigrações.................................................................................................................. 18
1.4 Os movimentos culturais no processo histórico......................................................... 19
2.CAPÍTULO II �................................................................................................................. 24
2.1 Movimento Nativista................................................................................................. 24
2.2 Os festivais de música............................................................................................... 26
2.3 Divergências do Tradicionalismo com o Nativismo................................................. 28
2.4 Intervenção da mídia. Divulgação e crescimento do Movimento Nativista através da
Indústria Cultural............................................................................................................. 30
3.CAPÍTULO III � PESQUISA DE CAMPO..................................................................... 36
3.1 Corredor de Canto e Poesia........................................................................................ 36
3.2 Encontro com artistas nativistas de RS...................................................................... 50
4.CAPÍTULO IV �........................................................................................................... 54
4.1 Os gêneros da música gaúcha.................................................................................... 54
4.2 Os gêneros musicais nativistas................................................................................... 57
4.3 Os instrumentos......................................................................................................... 62
4.4 A �Tchê Music�............................................................................................���. 67
CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................................... 69
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................................ 80
vi
PÁGINAS CONSULTADAS NA INTERNET.......................................................................... 82
ANEXOS..................................................................................................................................... 84
Anexo I � Corredor de Canto e Poesia........................................................................... 84
Anexo II � Partituras........................................................................................................ 86
FOTOS
1........................................................................................................................................ 39
2........................................................................................................................................ 39
3........................................................................................................................................ 39
4........................................................................................................................................ 47
FIGURAS
1. Mate........................................................................................................................... 40
2. Faca............................................................................................................................ 43
3. Viola........................................................................................................................... 63
4. Violão........................................................................................................................ .63
5. Gaita de botão............................................................................................................ 63
6. Gaita de teclado (acordeão)........................................................................................ 63
7. Bombo legüero........................................................................................................... 65
8. Cajón.......................................................................................................................... 66
7
INTRODUÇÃO
A questão da tradição no sul do Brasil, e seus movimentos adjuntos, o Tradicionalismo e
o mais moderno Nativismo, foram alvo de pesquisa e ainda são, para sociólogos e antropólogos
devido à riqueza e complexidade existente no assunto. Dentro dos fenômenos culturais desta
região, a música aparece como um dos mais interessantes para ser estudado, criando, assim, um
campo específico a ser desvendado pela etnomusicologia.
O alvo deste trabalho é o Movimento Nativista e seus gêneros de comunicação com o
folclore rio-platense. Para isto, acreditamos que uma passagem pela história explica melhor como
o fenômeno do Nativismo surge no contexto socio-cultural do sul do país. A conformação da
figura do gaúcho, intensamente ligada aos processos históricos e transformações sociais na
região, é relatada no primeiro capítulo. Assim como os traços culturais que se transformaram em
costumes e deram forma à tradição gaúcha, inspiradora de um dos movimentos mais importantes
dentro deste âmbito: O Movimento Tradicionalista Gaúcho.
A aparição do nativismo de forma discreta se dá através dos festivais de música regional
na década de 70. Como movimento toma força nos anos 80, trazendo a modernização da tradição
e uma mensagem de integração com as culturas de países vizinhos, assim como um câmbio no
aspecto ideológico proposto pelos tradicionalistas. O Movimento Nativista e suas idéias
progressistas trouxeram novos ares para a música regional em vários sentidos: nas composições,
nas instrumentações e no refinamento de poesias e letras das canções do movimento. Estes
aspectos são abordados no segundo capítulo do trabalho.
As pesquisas de campo do terceiro capítulo, coincidentemente, evidenciaram uma série de
questões que nos propúnhamos confirmar. A primeira delas foi feita num festival de composição
de música nativista onde participaram somente músicos e compositores. Neste evento, tivemos a
oportunidade de conviver um fim de semana com estes artistas, entrevistá-los, compor e executar
as músicas junto deles, numa estrutura muito similar à dos festivais; estas composições
concorriam a prêmios simbólicos. A segunda pesquisa foi em Florianópolis, no teatro do CIC,
aproveitando a vinda de dois renomados artistas nativistas para fazer show na cidade.
Entrevistamo-los numa conversa informal, porém muito objetiva, através de perguntas simples
sobre os temas específicos que desejávamos colocar no trabalho.
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Para finalizar, no quarto capítulo, a questão dos gêneros da musica gaúcha é focalizada
por épocas, começando pelos tradicionais, adaptados dos gêneros europeus, passando pelo
nativismo e sua integração com a música platina e uma breve menção ao movimento �tchê
music�, como último expoente de modernização e da indústria cultural gaúcha. Também
abordamos o tema dos instrumentos usados na produção musical regional, pontuando as
discrepâncias entre os tradicionalistas e os nativistas a respeito do que pode ou não ser usado para
executar as músicas gaúchas.
9
CAPÍTULO 1
Neste primeiro capítulo descreveremos os processos históricos e culturais acontecidos na
região sul do Brasil, que influenciaram na formação da cultura gaúcha. Trataremos também das
imigrações e seus grupos étnicos, mostrando a participação destas colônias nas posteriores
expressões musicais que deram origem à música gaúcha.
1.1-Cultura gaúcha
Na tentativa de falar na conformação da cultura gaúcha, parece inevitável recorrer a um
retrospecto histórico, que nos guie para entender o desenvolvimento deste intrincado conjunto de
hábitos, forma de vida e expressões artísticas surgidas no Sul do Brasil, na região de fronteira
com o Uruguai, a Argentina e o Paraguai. Ao longo dos anos, desde a época da colonização da
América do Sul, espanhóis e portugueses travaram intensas disputas pelas terras e riquezas
encontradas desde o estuário do Rio de la Plata em direção ao norte, entrando no que hoje é
território brasileiro. O palco principal destas disputas é, geograficamente, o lugar onde se
desenvolveu, com o passar do tempo, a Cultura Gaúcha.
Contribuíram para moldar as características desta singular cultura, inúmeras questões,
como invasões, guerras, revoluções, a tentativa de desenvolvimento comercial da região e as
imigrações de etnias vindas de vários lugares do planeta. Desta maneira, criou-se a imagem de
uma cultura impregnada de fortes transformações sociais, no meio da qual crescia um povo bem
particular e uma figura marcante: o Gaúcho. Esta personagem é, sem dúvida, o centro desta
cultura. Ligada fortemente à vida rural (OLIVEN, 1992, p.100), a figura do gaúcho é a de um
homem rude, que absorveu esse passado de intensas e, às vezes, violentas transformações sociais.
Com o tempo, modificou-se essa impressão sobre o gaúcho e sua cultura, mostrando o
dinamismo existente e a constante evolução na sociedade destes dois elementos.
Para entender um pouco mais sobre este universo, poderíamos analisar em primeira
instância a origem da palavra �gaúcho�, que dá nome à figura central deste movimento cultural.
Vários autores concordam com respeito à etimologia deste termo1. O folclorista Paixão Côrtes
1 Pode-se encontrar uma boa descrição do termo na �página do gaúcho� na internet: http:www//paginadogaúcho.com.br
10
menciona, em uma entrevista de 1981, que o termo aparece pela primeira vez na literatura
brasileira em Coruja (1851)2. Esta definição foi dicionarizada como �índio do campo, sem
domicílio certo� (Paixão Côrtes, 1981, p. 15). Afirma, ainda, que o termo �gaúcho� começa a ser
usado no Brasil depois da metade do século XIX e que, no estudo realizado pelo uruguaio
Fernando Assunção (1963) de nome �El Gaúcho�, está escrito que há uma primeira citação do
termo em um documento que data de 1771, dizendo que a palavra �gaúcho� é �empregada a
homens que viviam em atividade rural, na vasta área que se estendia das bandas Cisplatinas até o
sul do Brasil Colônia� (Paixão Côrtes, 1981, p 15). Há várias versões da palavra, e Paixão Côrtes
oferece uma lista:
Guasso- denominação dada ao camponês chileno. Da forma guassucho;
Gatucho- é a primeira pessoa do presente do indicativo do verbo gaudere, �ter gosto pela
liberdade�
Gaudério- teria se originado de gaudeo, nome atribuído aos homens de campo da banda
oriental (Uruguai);
Galucho- �recruta� em português;
Garrucho- homem portador de �garrocha�ou �garrucha�, que é uma meia lua de metal
na extremidade de uma vara de madeira com a qual se cortava o �garrão� dos animais;
Gahucho- pronúncia de garrucho em tupi-guarani;
Gaudsho- vocábulo idiomático cigano;
Guacho ou Uacho- órfão, bastardo, animal criado sem mãe;
Gauhu-che- vocábulo da língua indígena quechua, combinado de gauhú, �cantar triste� e
che, �gente�;
Chaucho- do árabe chaouch, correspondente a �tropeiro�;
Gatchu- termo indígena em língua aruak: �companheiro�;
Gauche- galicismo, aplicado no sentido de desviado, desgarrado, mal inclinado.
Paixão Côrtes ainda acrescenta alguns outros nomes sem dar especificações sobre as
origens: kaguauchu, gachu, gacho, guancho, gauchori, cauchu, cauchu-k, gaucino, gauk, guaxe
2 Paixão Côrtes não especifica o livro em que Coruja menciona o termo �gaúcho�, mas podemos afirmar que a obra mais famosa de Antônio Alvares Pereira �Coruja� (era seu apelido), é a Coleção de Vocábulos e frases usados na Província de São Pedro de Rio Grande do Sul. As datas da publicação não coincidem com o citado, sendo estas ou de 1852 e outra de 1856.
11
(1981, p. 16). Dentre todas estas versões, autores como Zeno Cardoso Nunes no seu Dicionário
de Regionalismos de Rio Grande do sul ou as fontes consultadas na internet (www.paginado
gaúcho.com.br) não destacam alguma em especial.
Os identificadores desta cultura tão peculiar são muitos, estes elementos todos ligados a
um modo de vida rural que, historicamente, foram se transformando conforme a evolução da
sociedade, sem deixar que a figura do gaúcho, o homem de campo, o centro desta cultura, se
dissolva no meio da modernização.
Elementos como vestimenta, culinária, produção artística, língua, dentre outros, criam em
conjunto o que é chamado de identidade cultural, fenômeno que relaciona o povo de uma região
com o valor cultural desses elementos. Nos seus estudos sobre o tema, Hall define o termo
�identificação� como �uma construção, como um processo nunca completado - como algo
sempre �em processo�, e também pontua que as �identidades são, pois, pontos de apego
temporário às posições-de-sujeito que as práticas discursivas constroem para nós. Elas são o
resultado de uma bem sucedida articulação ou �fixação� do sujeito ao fluxo do discurso� (Hall,
2000, p.116). Já Canclini, numa interessante avaliação, observa que, para um padrão cultural
tradicional, a identidade cultural apóia-se na construção de um patrimônio em dois sentidos: a
ocupação de um território e a formação de coleções, isto é, o conjunto de bens simbólicos
referentes à cultura. Os bens simbólicos são produzidos pela indústria cultural ou derivados da
própria cultura, e são considerados produtos de consumo como os bens materiais. Canclini
aprofunda a idéia dizendo que �ter uma identidade seria, antes de mais nada, ter um país, uma
cidade ou um bairro, uma entidade em que tudo o que é compartilhado pelos que habitam esse
lugar se tornasse idêntico e intercambiável� (Canclini, 2003, p.190). Pode-se entender, portanto,
que a identidade cultural gaúcha, coincidentemente, é formada também pelos valores dos
elementos citados, isto é, vestimenta, culinária, o trabalho no campo e a língua, dentre outros,
conjugados nesta cultura.
Outra questão a salientar é que a cultura gaúcha encontra-se num contexto marcadamente
regional, apesar de alguns sinais de expansão, produto da modernização e das comunicações,
temas que também trataremos ao longo do trabalho. Nilda Jacks aborda a �cultura regional� como
todas as manifestações de uma região que caracterizam sua realidade sócio-cultural, e a coloca
junto às manifestações de caráter �erudito�, �popular� e �massivo�, que, segundo o antropólogo
Jesus Martin Barbero, são instâncias culturais indissociáveis (apud Jacks, 1998, p.15). Por isto,
12
cabe a reflexão de que a cultura regional não é somente �popular�, pois a inserção de cultura de
classes dominantes no contexto regional parece ser uma constante. Esta é uma característica
dentro da cultura gaúcha e seus movimentos ocorridos no estado de Rio Grande do Sul, quase
sempre empreendidos pelas classes dominantes, alguns deles apoiados pelas camadas populares.
Jacks (1998, p.16) ainda cita Anamaria Fadul, que define a cultura regional como a �que se
relaciona como domínio da diferença, do que é específico de uma região�, �da qual a cultura
popular é uma espécie� (Fadul apud Jacks, 1997, p.16).
No que se refere à inserção da cultura gaúcha dentro do âmbito nacional, ela faz parte de
um conjunto de representações que formam a identidade nacional brasileira, e é parte de uma
diversidade cultural, produto das suas muitas identidades regionais. No trabalho de Oliven O
nacional e o regional na construção da identidade brasileira de 1986, o autor considera que a
construção da identidade nacional passa pelo regional. Já, Renato Ortiz em Cultura brasileira &
identidade nacional de 1985, afirma que a construção da identidade passa pelo popular. Ambos
salientam a importância destas categorias culturais, que mostram dinamismo, mesmo vindo de
padrões tradicionais, para poder subsistir às transformações econômicas e sociais (Jacks, 1998,
p.20).
Como colocamos no início de nosso trabalho, um mergulho na história pode nos fazer
conhecer um pouco mais das características e elementos que formam a cultura gaúcha, mostrando
o perfil da sua figura central: o gaúcho. Em época de conquista de territórios, sangrentas lutas
pela demarcação e defesa das fronteiras nacionais, mostras de heroísmo e virilidade engendraram
e enalteceram esta figura mítica. A criação e manutenção do mito na visão de autores e
folcloristas, responde a um caráter ideológico, principalmente sustentado pelas classes
dominantes ligadas ao setor rural. Como veremos no decorrer do trabalho, haverá momentos de
ruptura ideológica, demonstrada pela colocação de questões sociais também referidas ao campo e
sua população menos favorecida.
A seguir, colocaremos alguns dados históricos para esclarecer e conhecer a cultura gaúcha
mais a fundo.
1.2-Referências Históricas e Geográficas Nossa intenção agora é contextualizar geográfica e historicamente os processos que deram
origem à cultura gaúcha. Entrar em detalhes seria tal vez, desviar-se do nosso alvo principal de
13
pesquisa, que é a música nativista no seu processo de formação, como movimento artístico dentro
da cultura gaúcha. Assim, cremos que é pertinente fornecer alguns dados, respeitando uma ordem
cronológica, que vão dar uma idéia da conformação da cultura gaúcha através do tempo.
O epicentro geográfico de nossa pesquisa é o que conhecemos hoje como o Estado do Rio
Grande do Sul, onde a cultura gaúcha nasceu e registra suas maiores expressões, mas poderemos
estender a área de estudo e de acontecimentos para o norte e para o sul. Para o norte, há muitos
acontecimentos importantes registrados em Santa Catarina, e alguns nos estados do Paraná e São
Paulo, que logo mencionaremos. Para o sul, é possível afirmar que os fatos históricos e sociais
acontecidos nos países vizinhos, como Uruguai, Argentina, e ao oeste Paraguai, são de vital
importância na cultura gaúcha, evidenciando fortes influências. A região do Rio de la Plata e dos
rios Paraná e Uruguai na Argentina, passando pelo território do Uruguai e algumas regiões do
Paraguai, podem ser somadas ao cenário das transformações sociais e culturais que interessam
para nossa pesquisa.
Nestas regiões aportaram espanhóis e portugueses desde o ano de 1501 (Fagundes, 1997,
p.12) em diferentes expedições, acompanhadas também de navegantes de outros países da
Europa. As descobertas de terras e as primeiras ocupações ocorreram de forma desordenada, até
que o Tratado de Tordesilhas colocou alguma definição nos limites das ocupações. Para o Brasil,
ficariam estabelecidos os meridianos que passariam pela Ilha de Marajó ao norte, e em Laguna,
Santa Catarina, ao sul. Nestas expedições, espanhóis e portugueses encontraram os primeiros
habitantes da América do Sul: diferentes tribos de índios localizadas por regiões, com
comportamentos diferenciados, alguns povos de espírito guerreiro e muito rebeldes. Além dos
expedicionários, religiosos também vieram para este cenário. Os jesuítas, missionários da ordem
�Companhia de Jesus�, chegaram ao Brasil em 1549 pela primeira vez (Ferreira, 1960, p.21).
Estes jesuítas portugueses espalharam-se em diferentes regiões com o intuito de catequizar e
alfabetizar os indígenas que habitavam esses territórios. Da mesma forma, um pouco mais ao sul,
os jesuítas espanhóis da mesma ordem estabeleceram as suas bases na província Argentina de
Misiones e no sul do Paraguai. Em toda esta região os religiosos construíram pequenas cidades,
chamadas de �missões�, para fazer o trabalho com os indígenas. No Brasil, há dados de que os
jesuítas fundaram dezoito missões na região sul, numa primeira tentativa, isto é, por que os
bandeirantes, vindos de São Paulo, destruíram e saquearam as pequenas cidadelas. Numa segunda
tentativa, fundaram novamente oito missões, das quais só restaram sete, conhecidas
14
historicamente como os �Sete Povos�. Aqui aparecem elementos que os jesuítas iriam explorar
economicamente, e que depois aparecem na cultura gaúcha: o trabalho com o gado bovino que
existia na região, e a exploração da erva mate (Pesavento, 1982, p.11). Um tipo de infusão feito
com a erva já era um costume indígena que agradara também aos brancos e, com o passar do
tempo, ficaria conhecido como chimarrão. Estas missões viveram épocas de prosperidade,
gerando trabalho para os indígenas e funcionando como uma sociedade organizada, mas a partir
de 1730 os �Sete Povos� entraram em decadência econômica e social. Logo seguiu uma série de
ações bélicas, produto das péssimas relações entre Espanha e Portugal, nas quais foram
envolvidos as missões e seus habitantes, tanto índios como religiosos. Nos conflitos morreram
muitos índios e, em menor escala, os brancos que combatiam para ambos os lados. Os jesuítas se
retiraram destes territórios entre 1756 e 1759, ano em que foram expulsos definitivamente do
Brasil.
Os bandeirantes também participaram ativamente na região com suas incursões desde São
Paulo. Tanto nas ações de guerra nas missões, como em outros conflitos com a coroa espanhola,
na tentativa de fixar limites entre as duas colônias, a �hispana� e a portuguesa. No percurso entre
São Paulo e Rio Grande, marcaram rotas para comunicar as regiões, e fundaram vilas que depois
se tornariam cidades, algumas de vital importância para a economia futura de alguns estados. A
participação bandeirante na história é vista de forma controversa pelos diferentes autores: alguns,
como Terra no seu trabalho Raízes da América Gaúcha (1993, p.141), reforçam o valor e o
espírito guerreiro na defesa dos territórios, valores atribuídos muito depois ao gaúcho, outros
como Pesavento, pontuam a cobiça por riquezas e o caráter sanguinário destes conquistadores. De
todas as formas, existe, obviamente, alguma contribuição dos bandeirantes neste processo de
formação social e cultural, por mais que as opiniões dos historiadores sejam desencontradas.
Outra figura importante nesta contextualização histórica é a do tropeiro. Sua participação
é relevante no que respeita ao desenvolvimento comercial da região sul e sudeste, na troca de
costumes e hábitos sociais entre estas e na afirmação de alguns traços culturais que aparecem na
cultura gaúcha. Os tropeiros têm seu nome dado pelas tropas de animais que eles conduziam de
um lugar para outro, principalmente com fins comerciais e de manejo. Segundo um documento
da Fundação Catarinense de Cultura O Caminho das tropas de 1986, um dos motivos do
aparecimento dos tropeiros foi a necessidade de levar animais de carga e de corte para o sudeste,
principalmente para Minas Gerais. Isto foi aproveitado pelos paulistas, estabelecendo o comércio
15
de gado na feira de Sorocaba. O gado, como relatamos anteriormente, foi trazido do Uruguai e da
Argentina pelos jesuítas para o sul do Brasil, e depois levado para o sudeste em tropas. A figura
do tropeiro está ligada intimamente com as atividades do campo, a lida com animais e o domínio
da montaria, já que todas essas atividades eram feitas a cavalo, características encontradas depois,
na figura do gaúcho. Segundo Araújo, o primeiro tropeiro que fez uma longa viagem entre 1731
e1732, por treze meses com tropas de gado, foi Custodio Pereira de Abreu, mas há dados sobre a
formação de tropas para transporte de gado de 1634, conforme anotações feitas por um jesuíta
(Fagundes, 1997, p.30). Mas é nos séculos XVIII e XIX que a atividade dos tropeiros é mais
intensa. Licurgo Costa menciona, no seu livro O continente das Lagens, sua história e influência
no sertão de terra firme, a atuação de tropeiros na região de Lages (S.C) desde aproximadamente
1750. Coloca também que alguns tropeiros ficaram com terras na região do planalto serrano de
Santa Catarina, que se converteram nas fazendas de descanso das tropas. Costa fornece uma lista
de tropeiros com detalhes da origem de cada um e do ano que chegaram na região (Costa, 1982,
p.169). As rotas ou caminhos das tropas são vários, porém coincidem nos pontos extremos, de
São Paulo para Rio Grande do Sul ou Laguna, em Santa Catarina. A atividade também se
expandiu quando começaram as grandes fazendas de café no sudeste: assim, levavam gado do sul
e voltavam de São Paulo com café ou farinha de mandioca. Nesses longos caminhos havia a
necessidade de descanso, tanto para homens como para o gado, feito nos chamados �pousos�.
Nos começos do tropeirismo, os pousos eram acampamentos improvisados feitos com barracas de
lona, em lugares estrategicamente escolhidos, geralmente campos com boas pastagens para os
animais (�coxilhas�)3, lugar que também facilitaria o controle da tropa. Com o passar do tempo,
se estabeleceram algumas fazendas nos caminhos dessas tropas, possibilitando que os �pousos�
fossem feitos nas mesmas. O município de Lages era um dos pontos de �pouso� preferidos das
tropas pelas suas pastagens e pela quantidade de fazendas que permitiam o descanso (Costa,
1982, p.158, p.170). Ainda hoje há propriedades que conservam a disposição arquitetônica e
funcional da época das tropas. Assim, os tropeiros passaram a usar o galpão da fazenda para
pernoite e convívio no descanso. A comida começou a ser feita no �fogo de chão�, no centro do
galpão, e no mesmo fogo se esquentava água para o chimarrão e se fazia o café tropeiro. Todas
estas características da culinária são comuns também à cultura gaúcha. No referido documento da
Fundação Catarinense de Cultura O Caminho das Tropas, aparecem algumas entrevistas feitas
3 Lugares com boa pastagem e de relevo topográfico suave, com poucas elevações no terreno.
16
com tropeiros e outros trabalhadores de fazenda que lidavam com tropas. Podemos dizer que há
detalhes interessantes sobre as vestimentas, que já mostravam semelhança com às do gaúcho.
Sobre a culinária, além dos elementos já comentados, falava-se sobre o churrasco e arroz de
carreteiro, dois expoentes na cozinha gaúcha. E talvez o mais interessante para nossa pesquisa é o
comentário feito sobre o �divertimento�, que eram as festas que o tropeiro participava, com
música feita por gaita, viola e rebeca. Na entrevista são mencionados os ritmos xote, vanerão e a
Ratoeira, que era uma dança. A área das festas era na praça da vila ou na fazenda na qual a tropa
estava �pousando� e a festa era geralmente patrocinada por algum fazendeiro, que fornecia a
comida e o �trago� (cerveja ou vinho).
Pelo exposto, a contribuição do tropeiro para a cultura gaúcha é significativa, por causa do
comércio, em primeira instância, que funcionou como um elo entre o sudeste e o sul do Brasil,
firmando essa cultura do homem do campo na região. Cabe ressaltar que a passagem dos
tropeiros e a posse de terras por alguns deles no Planalto Catarinense, deixaram marcas
significativas no que diz respeito à cultura do homem de campo, sendo hoje o município de Lages
e outros na região fortes seguidores da cultura gaúcha. Segundo o próprio documento da F.C.C, o
tropeirismo proporcionou também uma maior ligação com os vizinhos da região do �Prata� e
pontua sobre as coincidências culturais existentes com essa região, como vocabulário, culinária e
vestimenta.
As hostilidades entre Portugal e Espanha foram a marca destas épocas coloniais,
matizadas com tratados de paz e colocação de limites entre as duas colônias (Ferreira, 1960,
p.42). Inúmeras guerras se sucederam no território que descrevemos anteriormente, desde a época
das missões, aproximadamente 1750, seguindo com as tentativas de invasão por parte dos
espanhóis em territórios da coroa portuguesa, hoje Rio Grande do Sul, a partir de 1760. Anos
mais tarde, os conflitos se centraram na região do Uruguai. A Argentina já tinha formado um
governo independente da coroa espanhola e a Banda Oriental (Uruguai) era uma província que
pertencia ao Vice-reinado do Rio de la Plata. Portanto, o governo argentino assumiu esse
território. A coroa portuguesa também estava interessada nestas terras, mas complicando a
situação, em 1811 um movimento separatista cresceu rapidamente na Banda Oriental, encabeçado
por caudilhos locais, o que gerou vários confrontos militares na tentativa de sufocar o desejo de
independência dos �orientais�. Até que em 1820, o caudilho Artigas é derrotado e a banda
Oriental é anexada ao Império com o nome de Província Cisplatina (Pesavento, 1982, p.34). O
17
cenário político era tão conturbado que Dom Pedro I declarou guerra à Argentina em 1825,
confrontando-se os exércitos em várias batalhas e escaramuças. A paz é firmada em 1828
colocando o Uruguai como Estado �tampão� entre Brasil e Argentina (Fagundes, 1997, p.78).
No que diz respeito aos conflitos internos há um fato determinante para a cultura gaúcha e
seus valores: a Revolução Farroupilha. Este movimento separatista começou em 1835 e culminou
em 1836 com a proclamação da República Rio-Grandense, desligando-se do Império e criando
autonomia. Seguiram dez anos de guerra na tentativa do Império de recuperar o território
separatista, culminando com um tratado de paz em 1835 entre os �Farrapos� e os �Imperiais�, em
termos favoráveis para ambos os lados (Pesavento, 1982, p.37, 38, 39). Este processo, gerado
pela revolução e a guerra posterior, marcou os rio-grandenses, criando um orgulho pela epopéia
guerreira dos �Farroupilhas� e um sentimento de amor pela terra, que até hoje é comemorado em
data oficial no dia 20 de setembro.
Voltando para o cenário internacional, houve mais conflitos com os vizinhos; desta vez,
contra o ditador argentino Rosas e, tempo depois, contra o caudilho paraguaio Solano Lopez no
que se chamou de �Guerra da Tríplice Aliança�. Nesta última, o exército era composto por
brasileiros, argentinos e uruguaios contra as forças paraguaias e acabou aproximadamente em
1870. Em todas estas ações bélicas a participação de soldados nascidos no território do Rio
Grande foi freqüente e massiva, marcando um caráter aguerrido e viril neste povo, que depois
passou para a figura do gaúcho. Como disse o folclorista Paixão Côrtes na entrevista que já
mencionamos, em meados do século XIX a palavra �gaúcho� começa a se usar para denominar
aos habitantes do Estado de Rio Grande, coincidentemente, no período histórico que acabamos de
relatar.
Ainda houve mais um episódio importante na história rio-grandense antes da virada do
século: a revolução de 1893 (Fortes, 1981, p.124). Este processo tem relação com a proclamação
da República e com uma série de lutas internas pelo poder no próprio Estado do Rio Grande. O
saldo foi trágico, foram quase dois anos de combates deixando muitos mortos e uma situação de
caos. A paz foi assinada em 1895, na cidade de Pelotas (Fagundes, 1997, p.113).
No século XX, houve também movimentos sociais e políticos de importância no Rio
Grande, mas é possível colocá-los mais em nível nacional do que nos processos locais. Os
movimentos revolucionários aconteceram desde 1924, tendo uma continuidade que culminaria
18
em 1937 com a intervenção do Estado do Rio Grande e, no âmbito nacional, com a proclamação
do Estado Novo (Pesavento, 1982, p.114).
Apresentamos até aqui um relato sucinto, sem entrar em maiores detalhes, dos fatos
históricos desta região, fundamentalmente para termos uma idéia da formação da cultura gaúcha
e as características sociais e políticas que ajudaram para este processo. Como vimos, uma
constante foi a ocupação dos territórios, as subseqüentes guerras e conflitos diplomáticos que
aconteceram exclusivamente nesta região de fronteira do Brasil. Inegavelmente, através destas
fricções, o convívio entre as culturas indígenas, �hispana�, �lusitana� e �afro�, gerou um marco
social e cultural sem precedentes, no qual surgiu a cultura gaúcha. Os elementos mencionados
anteriormente, como a culinária, a vestimenta, a língua, as expressões artísticas e os costumes da
vida rural são produto desta mescla que a passagem do tempo ajudou a moldar. O caráter altivo,
orgulhoso e aguerrido do gaúcho parece ser produto destas fricções vividas ao longo da história,
principalmente dos permanentes conflitos bélicos que se sucederam desde o século XVII até o
século XX, dos quais o povo rio-grandense foi partícipe ativo.
Para focalizarmos melhor nossa pesquisa sobre uma expressão artística específica da
cultura gaúcha, a Música Nativista, achamos pertinente colocar um outro elemento social e
cultural que foi também de vital importância na história para o seu desenvolvimento: a
participação dos imigrantes.
1.3- Imigrações Várias etnias se conjugaram no sul do Brasil trazendo juntos os costumes e a bagagem
cultural, o que de alguma forma contribuiu com alguns elementos na conformação da cultura
gaúcha. Com o passar do tempo e com as guerras mundiais, estas imigrações se acentuaram,
vindo contingentes da Europa com destino específico para América Latina. Muitos deles se
encantaram com as regiões de Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, outros ficaram mais
ao norte. Os imigrantes que escolheram o sul do país em primeira instância eram alemães, e sua
chegada no Rio Grande do Sul foi em 1824 (Fortes, 1981, p.88). Depois chegaram também
italianos e espanhóis (Fortes, 1981, p.115), e mais tarde contingentes de poloneses, russos,
austríacos, holandeses, judeus, árabes e até japoneses e africanos (Hinerasky, 2002, p.2).
Dos traços culturais trazidos pelos imigrantes, talvez seja a música o mais marcante.
Vários ritmos e danças foram sendo conhecidos em festas e celebrações e alguns destes gêneros
19
foram de grande importância para a música gaúcha, conforme veremos depois. Não há somente
influência, mas a adaptação destes gêneros europeus que darão origem aos seus similares
gaúchos. Não foi só foi a música que os europeus trouxeram: os instrumentos vindos com eles
também causaram uma mudança significativa. Os alemães com o bandoneón e os italianos com o
acordeão, também chamado popularmente de �gaita� no sul do Brasil, revolucionaram a maneira
de fazer música nestas latitudes, questão que analisaremos no próximo capítulo.
A entrada dos imigrantes na região modificou alguns aspectos da cultura gaúcha e da
dinâmica social dos estados do sul do Brasil. Aspectos como a culinária e a língua foram dos
mais influenciados, mas devemos ressaltar que os imigrantes também adaptaram seu modo de
vida, modificando alguns dos caracteres culturais trazidos da Europa.
Para continuar, veremos de que forma neste ambiente sócio-cultural, com mistura de
etnias e grandes transformações ao longo do tempo, os movimentos culturais artísticos ganharam
importância dentro da cultura gaúcha.
1.4- Os movimentos culturais no processo histórico Os fatos históricos de relevância já comentados foram visivelmente moldando a cultura
gaúcha. Tentaremos agora colocar em foco alguns movimentos culturais que serviram para o
desenvolvimento das expressões artísticas desta cultura. As diferentes manifestações abriram o
caminho para chegar no que hoje chamamos de �Música Nativista�, o alvo de nossa pesquisa.
Numa ordem cronológica, citaremos os processos mais importantes para, no próximo capítulo,
analisar mais detalhadamente o fenômeno do �Nativismo�.
Com todos os processos sociais que aconteceram e que descrevemos anteriormente,
houve significativas mudanças até chegarmos a distinguir uma arte de caráter nacional, com
elementos que tendem à valorização do autóctone. Dentro da cultura gaúcha, o antecedente
artístico mais significativo foi talvez a criação da �Sociedade Partenon Literário�, em 1868. Em
plena Guerra do Paraguai, um grupo de literatos começava um trabalho de divulgação através de
diários, revistas, livros e conferências, tentando �ser porta-voz� do telurismo que sentia fazer
parte dos habitantes do Sul do País� (Jacks, 1998, p.29). Segundo Álvaro Santi (2004), este grupo
de escritores e intelectuais, não somente exaltava o heroísmo do gaúcho nas suas publicações,
como também tratava de temas de cunho progressista. Ideologicamente, eles eram republicanos e
abolicionistas fervorosos, românticos defensores dos direitos das mulheres no que tange à
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educação e censura, temas que aparecem em sua �Revista� e tratados em debates públicos por
eles promovidos (Santi, 2004, p.29). A importância da �Sociedade Partenon Literário� como
antecedente artístico revela-se nas poesias e prosas escritas pelos seus membros, compiladas anos
mais tarde, no chamado �Cancioneiro Gaúcho� (Augusto Meyer, 1959). Esta característica da
importância do verso, da letra, é ressaltada também no desenvolvimento da música gaúcha até
chegar no Nativismo. Entrar em detalhes sobre a estilística e influências literárias destes
escritores não seria tão importante neste trabalho, mas podemos citar que, segundo o pesquisador
Athos Damasceno Ferreira, eles teriam uma certa inclinação pelos românticos franceses, como
Victor Hugo ou Lamartine, entre outros, criando uma forma de escrita bem particular por causa
da mistura da temática gaúcha com o estilo refinado do romantismo francês (Santi, 2004, p.34).
Com o pano de fundo da República, recém instalada e tentando a consolidação, surgiram
no Rio Grande do Sul várias tentativas de criação de entidades cívicas que buscariam um
incentivo ao patriotismo e ao cultivo das tradições nacionais e estaduais (Jacks,1998, p.31). Foi
assim que, em 1898, o Major Cezimbra Jaques fundou o �Grêmio Gaúcho de Porto Alegre�.
Segundo Santi, esta agremiação tinha também características de sociedade literária, com
inspiração no antigo �Partenon�, mas citando o historiador Tau Golin, Santi menciona que o
�Grêmio Gaúcho� tem uma forte matriz na �Sociedad Criolla�, criada em Montevidéu, Uruguai,
quatro anos antes (op. cit., p.36). Um dado importante é que, segundo Golin, Cezimbra Jaques já
tinha conhecimento da sociedade fundada em Uruguai e expressava enorme simpatia com os
ideais de manutenção da tradição que esta sociedade pregava. Coincidentemente também na
Argentina e na mesma época surgem as �Sociedades Tradicionalistas� e academias ou centros
�Criollos�, com o intuito de recriar os costumes do �gaúcho�, inclusive música e dança
(Archetti, 2003, p.14). Este fenômeno aconteceu entre 1898 e 1914 em Buenos Aires e seus
arredores. Apesar da proximidade com Montevidéu, não há informações que mostrem alguma
relação dos uruguaios com o �Grêmio Gaúcho�, mas aparece caracterizada a influência exercida
pela �Sociedad Criolla� de Uruguai nas manifestações ideológicas que Cezimbra Jaques
professava e que passaram anos depois, para as gerações que deram continuidade a estes
movimentos (Santi, 2004, p. 38-40).
Em um outro enfoque, Nilda Jacks pontua o claro objetivo cívico da fundação do grêmio,
colocando o comentário do próprio Cezimbra Jaques, que enaltece o patriotismo e fecha dizendo
que era necessário �manter o cunho do nosso glorioso Estado e conseqüentemente as nossas
21
grandiosas tradições� (Jacks, 1998, p.31). A criação da União Gaúcha de Pelotas em 1899, com
uma proposta objetiva focalizada no civismo e patriotismo, mostra o espírito de cultuar as
tradições brotando em todo Rio Grande do Sul. Segundo Jacks (1998), outras agrupações
surgiram nessa época e, anos depois, como o Centro Gaúcho de Bagé (1899), o Grêmio Gaúcho
de Santa Maria (1901), a Sociedade Gaúcha de Lomba Grande (1938) e o Clube Farroupilha de
Ijuí (1943). Destas associações, somente as duas primeiras, o Grêmio Gaúcho e a União Gaúcha
de Pelotas, conseguiram algum resultado nos seus propósitos iniciais (Jacks, 1998, p.32). Esta
fase de exaltação aos valores culturais nacionais e regionais, demonstrada pela aparição destes
grupos, que era vivida no fim do século XIX até quase a metade do século XX, antecedeu a um
importante movimento que iria surgir por volta de 1948: o Tradicionalismo.
O Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) tem como marco de iniciação a criação do
�35 Centro de Tradições Gaúchas� (CTG), em 24 de abril de 1948. O nascimento deste primeiro
CTG se deve à iniciativa de um grupo de estudantes vindos do interior do estado, junto aos
escoteiros, e que iniciaria uma fase do culto às tradições gaúchas como contestação à invasão da
cultura norte-americana que era difundida no Brasil. O nome de �35� se deve ao ano de 1835,
início da Revolução Farroupilha. A partir deste acontecimento surgiram no Estado de Rio Grande
do Sul vários CTGs, copiando o modelo do �35�. Há dados que nos primeiros cinco anos foram
criados 35 CTGs no Estado. Com o passar do tempo os CTGs se espalharam pelo país por causa
da imigração para outros Estados e também para o exterior. Até fins de 1980, existiam mais de
mil CTGs no Rio Grande do Sul e mais de uma centena entre os criados no resto do país e no
exterior (Jacks, 1998, p.35).
Retomando as relações existentes entre o MTG e um dos seus antecessores, o Grêmio
Gaúcho, podemos salientar que há uma mudança significativa entre o caráter elitista do Grêmio,
inspirado na �Sociedad Criolla� uruguaia, e a proposta do 35 CTG, de cunho mais popular. De
todas as maneiras, os criadores do MTG viajaram para Montevidéu para estabelecer contato com
os membros da entidade uruguaia com o propósito de buscar elementos para formular as �danças
tradicionais� (Santi, 2004, p.43). Apesar das mudanças ideológicas mostradas pelos
tradicionalistas, há marca da influência que parecia exercer a cultura �Platina� sobre a gaúcha.
Uma das coincidências possíveis de apontar era a postura dos criadores do MTG com relação aos
imigrantes, que se afinavam com as afirmações colocadas pelos criadores da �Sociedad Criolla� e
as do Cezimbra Jaques. Havia uma mostra de preocupação ao respeito do elemento imigrante,
22
como ameaça ao culto das tradições. Com o passar do tempo, os Tradicionalistas abrandaram esta
postura aceitando as contribuições culturais e tentando trazer os imigrantes e seus descendentes
para a cultura gaúcha.
O crescimento e a importância do Tradicionalismo foi aumentando com a criação dos
GTGs e outras entidades pelo Estado, a ponto de fomentar em 1954 o I Congresso
Tradicionalista, que passou a se reunir anualmente e, na sua VIII edição, em 1961, é aprovada a
Carta de Princípios do Movimento Tradicionalista onde já aparece o termo �nativista� (Santi,
2004, p.49). A popularidade do movimento era notória, reconhecida oficialmente quando o
Governo do Estado se solidariza com algumas das propostas do MTG, a exemplo disto, em 1961,
cria o Instituto de Tradição e Folclore. Em 1964, foi oficializada a Semana Farroupilha,
comemorada anualmente de 14 a 20 de setembro, com envolvimento da rede pública escolar e a
Brigada Militar. A proximidade do movimento com o Governo era notória, tanto que foi doado
um terreno para a construção da sede definitiva do 35 CTG em 1971. Em 1974, constitui-se como
fundação o Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore, ligado à Secretaria de Cultura, Desporto e
Turismo. Na década de 80, institui-se por lei o ensino do Folclore em todas as escolas estaduais,
através da disciplina de �Estudos Sociais�. Mostra da transcendência deste movimento cultural é
a realização do I Congresso Brasileiro de Tradição Gaúcha, que aconteceu em 1988, em Santa
Catarina e que preparou a criação da Confederação Brasileira da Tradição Gaúcha (Oliven apud
Santi, 2004, p.54).
A evolução do culto às tradições está marcada por uma mudança de postura que foi
assinalada por um dos criadores do MTG, Luiz Carlos Barbosa Lessa. Na diferença das gerações
do �Partenon Literário� e do Grêmio Gaúcho, Lessa expressa que, enquanto essas sociedades
procuravam recriar a figura do gaúcho na literatura, a proposta do 35 CTG era de �revivê-lo, na
medida do possível, ainda que simbolicamente� (Santi, 2004, p.44). Para isto, a recuperação de
elementos como a linguagem, a vestimenta e os costumes do gaúcho da campanha eram
fundamentais. Tal evolução é notada também entre as gerações do �Partenon� e do Grêmio,
separadas por trinta anos de diferença.
As críticas fizeram parte do universo, do crescimento e da posterior evolução do MTG. A
reprodução nos CTGs da hierarquia vivida no campo é duramente criticada por alguns autores e
historiadores (Tau Golin, Sandra Pesavento). A existência de um Patrão como presidente do
CTG, de um Capataz como vice-presidente, de Sota-capatazes como secretários, Conselho de
23
Vaqueanos como conselho consultivo, um Agregado de pilchas como tesoureiro e finalmente um
Peão e a prenda como sócios, evidenciam um caráter latifundiário revivido numa época com
outra estrutura social e num meio que não é propriamente o rural (Golin,1983, p. 102). Oliven
pontua a defasagem ideológica existente no movimento, entre as épocas da sua criação e a atual,
dizendo que Rio Grande do Sul já sofreu grandes mudanças sócio-econômicas, por isso diz ser
um movimento anacrônico (apud Jacks,1998, p.36). Ainda Jacks coloca a seguinte reflexão ao
respeito da ideologia do Tradicionalismo:
Com esta perspectiva analítica, o Tradicionalismo é tido por mais autores como uma ideologia destinada a submeter as camadas populares, rurais, e urbanas, aos seus princípios, que enfatizam a harmonia social, o bem coletivo, a cooperação com o Estado, o respeito à lei, etc. (Jacks, 1998, p. 37).
Em defesa destas críticas os ideólogos do movimento dizem que foram criados GTGs que
associam diferentes camadas sociais convivendo na mesma estrutura interna, mas a prática atual
demonstra uma realidade um pouco diferente, encontrando-se discriminação racial e de ordem
social também.
Na seqüência do processo evolutivo da cultura gaúcha, nasce no seio do Tradicionalismo
um movimento que, através da música e da poesia e de alguns elementos sociais e ideológicos,
mudaria o cenário cultural gaúcho: o Movimento Nativista. A descrição que faremos no próximo
capítulo estará baseada nos fatos históricos do surgimento do movimento, numa análise
comparativa sobre a ideologia deste e seus antecessores, e também os seus aspectos musicais e
poéticos, assim como a comunicação existente com as culturas folclóricas limítrofes.
24
CAPÍTULO 2 Descreveremos neste capítulo o surgimento do movimento nativista no contexto da cultura
gaúcha e suas tradições. A participação do movimento nos festivais de música atingindo o auge
na década de 80 e suas disputas ideológicas com os tradicionalistas serão tratados
especificamente. Faremos um relato da intervenção da Mídia no processo de expansão do
movimento nativista para encerrar o capítulo.
2.1 Movimento Nativista
Definir o Movimento Nativista ou o Nativismo Gaúcho, num primeiro momento parece
algo problemático ou confuso, já que sua origem está no seio de outro movimento: o Movimento
Tradicionalista Gaúcho. Hoje, inegavelmente o Nativismo existe como movimento e como uma
das correntes ideológicas dentro da cultura gaúcha. Para identificar o Nativismo como
movimento temos que dar uma olhada nos processos históricos, sociais e culturais que marcaram
sua trajetória até os dias de hoje.
Revisando a seqüência de acontecimentos, a primeira menção do termo �nativista�
aparece na Carta de Princípios do MTG, de 1961, aprovada na edição do VII Congresso
Tradicionalista (Santi, 2004, p.49). A efervescência popular e a vontade de contestação ao regime
militar que governava o país no Rio Grande do Sul foi canalizada revivendo a cultura local,
através do Movimento Nativista (Lucas, 2000, p.48). Chegando na década de 70, a iniciativa de
uma rádio de Uruguaiana de organizar o I Festival da Canção Popular de Fronteira deu impulso
para trazer à região o que era visto pela TV nos festivais do Rio de Janeiro. Este festival de
caráter eclético permitia todos os gêneros, dentre os quais a música regional ou gaúcha faria
parte. Dois compositores da região competiram com uma milonga, que foi desclassificada e que
tinha esse marcado caráter regional. Foram eles, Julio Machado e Colmar Duarte que, depois
desta situação, idealizaram um festival onde �somente aceitassem canções gaúchas� e ainda nesse
ano e com a mesma milonga eles ganharam o I Festival Artístico-Cultural Tradicionalista,
organizado pelo CTG Poncho Verde (Santi, 2004, p54). No ano seguinte, Duarte seria eleito
presidente do CTG Sinuelo do Pago e levaria a cabo, com a ajuda da diretoria, o projeto de
organizar o festival que só concorressem músicas gaúchas. Assim nasceria a I Califórnia da
25
Canção Nativa, nome aprovado por unanimidade pela diretoria do CTG para o festival. O termo
Califórnia �[...] vem do grego e significa �conjunto de coisas belas��, de acordo com o escrito na
contracapa do disco do festival 4. Segundo Santi, a expressão �canção nativa� contida no nome do
evento seria o que originou o termo �nativismo� e este autor define canção nativa como sendo
qualquer canção produzida no Rio Grande do Sul respondendo a um conjunto de gêneros
específicos de canção, dados como característicos do Estado por pesquisadores desta música.
Ainda no regulamento do festival pode-se resgatar a seguinte definição: �Música de RS�: �aquela
que evidencia o tema da terra gaúcha, fundada em seus ritmos folclóricos� (p.56).
A I Califórnia da Canção Nativa teve um sucesso de público muito grande, mas o
resultado do festival foi muito contestado pelos compositores participantes. Há relatos que
mostram a desconformidade dos �tradicionalistas� com a escolha da canção ganhadora, dizendo
que esta era um �samba canção� e que não era �música gaúcha�. Neste relato, encontra-se uma
referência de que os tradicionalistas estariam representados pelo �Grupo Nativista�, de Telmo de
Lima Freitas e outros companheiros, e eles seriam os que encabeçavam o protesto contra o
resultado do festival. Ressaltamos que o relato coloca já o termo �Nativista� como uma tendência
musical que, dentre outras coisas, ainda formava parte do tradicionalismo e estava alinhado com
o pensamento ideológico deste movimento (Ucha apud Santi, 2004, p.22). Como detalhe,
podemos adicionar que a criação da I Califórnia é reivindicada pelo Movimento Tradicionalista
Gaúcho através dos seus idealizadores, principalmente o folclorista Paixão Côrtes.
Em entrevista de 1981, ele declara que não somente esta primeira iniciativa (I Califórnia),
da qual admite ser um dos organizadores, abriu o terreno para a criação de outros festivais.
Também proporcionou o desenvolvimento da música gaúcha e a busca de �Novos Rumos�, da
qual Paixão Côrtes disse ser uma espécie de tendência, em que �a perfeição e a originalidade da
letra, aliada à renovada linha melódica, possa traduzir o Rio Grande do passado, do presente e
também novos horizontes de progresso� (p.34). A efervescência cultural a partir da I Califórnia
foi notória no Rio Grande do Sul, epicentro dos festivais de música que se espalhavam de forma
impressionante.
4 LP da I Califórnia da Canção Nativa do Rio Grande do Sul. São Bernardo do Campo: Copacabana, 1982.
26
2.2 Os festivais de música A partir de 1971, a cultura gaúcha, em particular a música como meio de expressão
artística principal, tomou dimensões impensadas pelos organizadores da I Califórnia da Canção
Nativa, em Uruguaiana. Surgiu desta maneira, uma quantidade de festivais em outras cidades que
dariam continuidade ao sucesso da Califórnia, que se repetia ano a ano em Uruguaiana, com
algumas modificações no regulamento e na sua essência. Os palcos onde os shows eram
montados, em áreas livres ao invés de teatros e a modalidade de acampamentos para participantes
e público em volta dos palcos, passavam a ser uns dos atrativos dos eventos, permitindo o contato
direto entre artistas e público. Atividades paralelas aconteciam nas áreas destinadas ao evento,
como feira de artesanato, torneio de pesca, mas eram as chamadas �tertúlias� as que marcaram o
dinamismo cultural e contato direto do artista com o povo. As tertúlias, reuniões de músicos para
tocar livremente em áreas contíguas aos palcos ou nos próprios acampamentos, atraíam grande
quantidade de público e, em algumas das edições da Califórnia, chegaram a ser proibidas, pois
chegavam a abafar as apresentações oficiais.
O auge destes festivais foi nas décadas de 70 e 80. Dados sobre os calendários de festivais
mostram, por exemplo, que no ano de 1990 havia uma previsão de 40 a 50 eventos anualmente,
sendo que já tinha havido um número maior anteriormente. A diminuição foi devida ao fato de
que alguns festivais não conseguiram se manter (Lucas, 2000, p.49). Os principais eventos que
poderíamos mencionar são: a Tertúlia Musical Nativista (Santa Maria), Festival da Barranca
(São Borja), Coxilha Nativista (Cruz Alta), Musicanto Sul-americano de Nativismo (Santa Rosa)
e a própria Califórnia da Canção Nativa (Uruguaiana). Devemos salientar que, em Santa
Catarina, na cidade de Lages, existe um importante festival realizado há muitos anos, que é a
Sapecada da Canção Nativa, colocado dentro da programação da tradicional Festa Nacional do
Pinhão. Em Lages também, como veremos no capítulo 3, há um festival chamado Corredor de
Canto e Poesia. Trata-se de um evento fechado para artistas compositores, realizado em três dias
no mês de Novembro, do qual participei como pesquisador e músico, cujo relato e detalhes estão
no próximo capítulo. Outro festival somente com artistas e compositores, isto é, sem público, é o
Festival da Barranca de São Borja.
Como observamos nos nomes dos festivais, existe uma tendência de colocar o termo
�nativa� ou �nativista� completando o rótulo do evento. Esta tendência parece enfatizar a
importância que o Movimento Nativista alcançou nestas duas décadas até os dias de hoje, como
27
modernização da tradição, inclusive ameaçando a hegemonia que o �tradicionalismo� ostentava
até então. De todas as formas esta hegemonia �tradicionalista� estava presente de forma contínua,
na conformação dos jurados e na elaboração dos regulamentos dos festivais, a cargo das figuras
mais importantes do MTG.
A crítica aos regulamentos e ao comportamento dos jurados foi uma constante com o
passar das edições da Califórnia e de outros festivais. O crescente Movimento Nativista via
alguns aspectos destes regulamentos com características arcaicas para a proposta que os festivais
traziam através dos artistas. Imposições de vestimenta para as apresentações, língua oficial das
composições, discriminações às interpretações com sotaque espanhol, assim como as
delimitações de gêneros que não fossem de música gaúcha, isto é, ritmos �estrangeiros�
começaram a aparecer em regulamentos de vários festivais. E, evidentemente gerou um certo
desconforto em artistas e compositores que procuravam uma abertura cultural mais abrangente,
que de fato encontravam no novo Movimento Nativista. O Musicanto Sul-americano de
Nativismo que se realiza em Santa Rosa desde 1983, foi um dos primeiros festivais que buscou
uma universalidade maior abrigando manifestações nativistas de toda América Latina (Lucas,
2003, p.66). Neste interessante evento são convergentes as opiniões de tradicionalistas e
nativistas, pois o festival não fere as tradições e por outro lado tem uma abertura cultural,
enquanto as línguas, ritmos, temáticas e instrumentos a serem usados, já sejam eletrônicos ou
acústicos. Esta marca de modernização imposta pelo Musicanto foi passando para outros festivais
e influenciou evidentemente o resto dos eventos. A sofisticação quanto às composições, seja na
poesia, na música e nas instrumentações, foi tomando conta e dando outras características às
novas expressões musicais. A nova música gaúcha, a música nativista, quebrava o estigma que
anos atrás carregavam as composições das décadas de 50 e 60, afastando a idéia de �grossura�5
assinada ao gaúcho e às suas expressões culturais.
Neste cenário de festivais se caracteriza uma disputa entre duas tendências que
basicamente defendem uma cultura que as acolhe no seu seio. Tanto o Tradicionalismo quanto o
Nativismo representam a cultura gaúcha de forma absoluta, mas ambos têm diferenças em alguns
pontos e há ranços ideológicos que acontecem pela dinâmica da própria cultura e pela
modernização da tradição.
5 �Grossura�: termo assinado ao gaúcho, à sua cultura e aos costumes do homem de campo. Segundo Glaucus Saraiva é um neologismo criado pelo Tradicionalismo. Este vocábulo tem caráter pejorativo e se refere ao comportamento do habitante do campo e seus costumes rurais.
28
2.3 As Divergências do Tradicionalismo com o Nativismo
O Movimento Tradicionalista, como já descrevemos, não cresceu somente pelas
manifestações artísticas, também foi através da reprodução dos valores culturais do gaúcho, como
vestimenta, culinária, o linguajar, com misturas de espanhol e os costumes do homem de campo.
Com a criação dos CTGs, o Tradicionalismo concentrou a reprodução dos valores culturais em
zonas urbanas, monopolizando a tradição e o manejo dos bens simbólicos. Este método de
preservação cultural foi bastante discutido por vários autores, que ressaltam as inúmeras
contradições em que os ideólogos do MTG incorreram. Tratados sobre a história da região como
o de Pesavento (1982), ou o trabalho A Ideologia do Gauchismo de Golin (1983), mostram essas
contradições de forma contundente, assim como Olivem no seu livro A parte e o todo (1992),
evidenciam estas controvérsias ideológicas por parte de tradicionalistas.
O Movimento Nativista já se apresenta como um fenômeno cultural que aparece por causa
dos festivais de música a partir da I Califórnia da Canção Nativa em 1971. Poderíamos dizer que
é um movimento musical, mas Dilan Camargo6 na revista Tarca (n.2, p.11) admite que o
movimento saiu do âmbito musical e se expandiu para a área dos costumes e do consumo,
afirmando que foi de fundamental importância a participação da classe média gaúcha, que se
mobilizou em massa, principalmente composta de jovens. Estas afirmações de Camargo parecem
ter um complemento ideal nas conjeturas de Oliven, que diz: �várias explicações podem ser
avançadas. [...] Sem descartar inteiramente nenhuma destas interpretações. É forçoso também
reconhecer que a adesão às coisas gaúchas corresponde à afirmação de uma identidade regional�.
Na seqüência, Oliven diz que �vale lembrar que em época de crise, como a nossa, a identidade
nacional é com freqüência afirmada pela diferença� (apud Jacks,1998, p.47, 48). Com o
Movimento Nativista há uma mostra evidentemente da adesão de uma população urbana, que
passa a se identificar com elementos da cultura gaúcha que tiveram origem na campanha. O
consumo de chimarrão, o uso de bombachas, a colocação de expressões regionais na linguagem,
mostravam um pouco a aceitação desta classe média e, em especial, da juventude com esta
cultura regional (Lucas, 2000, p.51-53).
Os tradicionalistas, nesta espécie de disputa, não reconhecem o nativismo como
movimento, afirmam que é uma continuação do Tradicionalismo. Um dos criadores do MTG,
6 Citado por Jacks (1998, p.48)
29
Barbosa Lessa, admite que houve uma escolha feita pelos jovens entre o hippie e o gaúcho, o que
impulsionou o nativismo e que este movimento é basicamente um acréscimo ao tradicionalismo
na sua música (Jacks, 1998, p. 46). Outro dos fundadores do MTG, Paixão Côrtes, disse que �o
nativismo é uma corrente musical-poética-jornalística e que aparece em decorrência dos hábitos e
costumes que o Tradicionalismo criou para desenvolver� (Jacks, 1998, p.55). Faz também
menção dessa população urbana, principalmente da capital, que gosta de vida noturna e toca em
bares, participa de festivais, se autodenomina nativos, mas não sabe das origens da terra onde
nasceu. Há posturas mais brandas entre tradicionalistas, como a de Milton Souza, que admite o
Nativismo como movimento, dizendo que na atualidade é o movimento artístico-musical de RS7.
Pereira Soares expressa que ainda é possível distinguir Tradicionalismo de Nativismo, dizendo
que ambas correntes pretendem a mesma coisa, por vias diferentes8. Colmar Duarte, uns dos
idealizadores da I Califórnia, acrescenta que �o Tradicionalismo é um movimento radical onde só
é gaúcho quem usa bota e bombachas. O nativista é essa pessoa que se integrou ao Movimento
cultural despreocupado com os aspectos radicais� (Jacks, 1998, p.56).
Os elementos de disputa entre tradicionalistas e nativistas parecem, em primeira
instância, ser de ordem artística e mais estritamente musical. Uma das questões é a utilização de
instrumentos elétricos e eletrônicos, vetados pelos tradicionalistas num primeiro momento, mas
com fortes oposições de alguns dos membros do movimento, que aceitam estas inovações
tecnológicas como decorrência da modernização.
Outro elemento, talvez o de maior importância para este trabalho, alvo de nossa pesquisa
é a utilização de ritmos estrangeiros ou �alienígenas� na música gaúcha. Este tema é centro de
grandes discussões e teorizações entre folcloristas, ideólogos de ambos movimentos, críticos
musicais e jornalistas. Numa primeira análise, poderíamos dizer que a música gaúcha e suas
expressões foram construídas na base de ritmos europeus, como afirma Jayme Caetano Braun
(Tarca, n.8, p.4), referindo-se a mazurca, a rancheira e a vaneira e colocando uma caracterização
do que parece ser o único ritmo autenticamente gaúcho, o bugio, do qual ele disse ser uma
mistura de vaneira ou de rancheira (Jacks,1998, p.57). Fagundes declara que a milonga não é
ritmo de RS e que os ritmos tradicionais do folclore são a valsa, a mazurca, as polcas, o xote, a
rancheira, a habaneira, a marcha e a marchinha. Na opinião de Luiz Carlos Borges, criador do
7 Nilda Jacks cita estes depoimentos publicados na revista Tarca n.14, p8 8 Idem 7, Tarca n.14, p.4-5.
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Musicanto de Santa Rosa, �não existe ritmo gaúcho, todos os ritmos que aqui se toca são
alienígenas, que chegaram e se aculturaram através do tempo e são ditos ritmos gauchescos�
(Jacks, 1998, p.57). Borges também menciona o bugio como ritmo original de RS, mas disse que
ninguém tem prova disso. Os nativistas, na sua maioria, parecem estar alinhados com as
declarações do Luiz Carlos Borges, que ainda afirma que os conservadores não admitem o uso de
baixo elétrico e bateria porque isto descaracteriza a natureza dos festivais. Estes pontos de
discordância ao respeito de gêneros e instrumentos, entre tradicionalismo e nativismo serão
analisados no capítulo 4. Tentaremos elaborar um elo entre os diferentes gêneros musicais
gaúchos e seus correspondentes chamados de �alienígenas� ou estrangeiros, e observaremos até
que ponto existe diálogo entre estes ritmos.
As discordâncias entre estas tendências parecem ser explicadas pela ameaça da hegemonia
que os tradicionalistas viram com o surgimento do nativismo, sua massa de jovens e sua nova
proposta estética para a manutenção e conseqüente modernização das tradições gaúchas.
Fechando esta análise sobre as diferenças entre tradicionalistas e nativistas, mencionamos as
observações de Oliven ao respeito dos dois grupos. Sobre os tradicionalistas, o autor refere-se a
uma certa dificuldade que estes expressam na hora de delimitar e definir certos conceitos como
cultura gaúcha, folclore, tradição, nativismo e fronteira, dentre outros. Afirma também que
estaríamos diante de um grupo de intelectuais que se vale de um certo conhecimento como forma
de poder, exercendo um monopólio sobre o direito de afirmar o que são ou não, os conceitos
acima mencionados, exercendo influência sobre um mercado de bens simbólicos (Oliven, 1992,
p.109). E sobre o Movimento Nativista, Oliven admite que ele existe de fato e que seus
componentes não são dogmáticos, isto é, não estão ligados a critérios pré-estabelecidos.
Referindo-se à música, os nativistas expressam um desejo de experimentar e criar sem proibições
e preconceitos. E quanto às vestimentas, eles querem vestir o que gostam e não de acordo com os
figurinos que os tradicionalistas impõem (Oliven, 1992 p.119).
2.4 Intervenção da Mídia. Divulgação e crescimento do Movimento Nativista através da
indústria cultural
Independente das discrepâncias entre tradicionalistas e nativistas, devemos colocar em
pauta a intervenção da mídia, que ajudou inegavelmente, para a divulgação da cultura gaúcha e
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suas expressões artísticas nas décadas de 70 e 80, e também atualmente. Por mais que haja ranços
entre as tendências, o fato da divulgação feita pela mídia é em favor da cultura gaúcha, já que
para os leigos e desentendidos pode parecer que não há divergências, senão que existe uma
imagem de cultura homogênea. Afinal, tradicionalistas e nativistas se beneficiam da mesma
forma.
Com o aparecimento do Tradicionalismo nos anos 50, a cultura gaúcha ganhava uma
forma, um tipo de organização, enquanto o fenômeno da mídia também estava em crescimento, e
até aí a relação entre ambos era quase imperceptível, somente através de alguns livros e
publicações feita pelos ideólogos do movimento9, e num pequeno espaço dedicado à cultura
regional no rádio. Chegando nos anos 70, nos deparamos com a iniciativa de uma rádio em
Uruguaiana de promover o I Festival da Canção Popular da Fronteira. A pesar deste evento ter
um contexto musical eclético, podemos dizer que é já um antecedente da intervenção da mídia
radialística. Na I Califórnia da Canção Nativa a participação da rádio São Miguel de Uruguaiana
e da Companhia Jornalística Caldas Junior teria sido decisiva, tanto na idealização como na
divulgação (Santi, 2004, p.55). O grande sucesso dos festivais fez que o interesse das emissoras
de rádio aumentasse neste mercado, a ponto de colocar nas suas programações vários espaços
dedicados à música gaúcha e à cultura regional, inclusive nos chamados horários nobres. Sem
dúvida que foi de grande valia a ajuda que o rádio deu para a divulgação da cultura gaúcha e sua
música, e seu fato mais importante foi a cobertura dos festivais, cobrindo desde a 1a edição da
Califórnia (Jacks, 1998, p.65).
Apareceram no RS várias revistas trazendo o tema da cultura regional e evidentemente a
música. De todas, somente duas conseguiram se manter ativas, a Tarca e a Sul. Embora elas
tinham uma linha diferente, a Sul esboçava um tom crítico nas matérias e reportagens, mas o
objetivo de ambas era a cultura gaúcha indiscutivelmente. A Tarca dava cobertura jornalística a
todos os festivais do Estado além de publicar matérias sobre história e cultura rio-grandense.
Em matéria de jornais não há grande diversidade. Somente duas publicações tratavam na
época dos festivais, sobre o tema. O Jornal Tchê que foi especificamente criado para cobrir o
desenvolvimento do Movimento Nativista, e os festivais no Estado, e o jornal Zero Hora, que
continha uma coluna dedicada à cultura regional e dedicava-se, dentre outras coisas, à crítica
9 As publicações começaram a aparecer na década de 60 em diante. Os autores são os ideólogos do Movimento Tradicionalista, dentre eles, Paixão Cortes, Barbosa Lessa e Glaucus Saraiva.
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musical dos festivais e da produção de música nativista, numa sessão específica relacionada à
música em geral. Ambas publicações tinham características bem diferentes. Por um lado o Tchê,
um jornal pequeno, por outro, o Zero Hora, que pertence è Rede Brasil Sul, filiada a Rede Globo.
O jornal Tchê era dedicado ao nativismo, com enfoque crítico e linguagem satírica, abordando
temas culturais de importância regional, numa linha completamente independente de grupos
econômicos, políticos e de uma cultura globalizada.
Depois de um tempo de circulação bastante significativa na praça, o Tchê encerrou suas
atividades transformando-se numa editora. O jornal Zero Hora entre 1980 e 1985 era o único que
circulava no RS. Algumas das matérias e colunas publicadas sobre cultura regional eram uma
cópia da que saía no jornal A Hora, de 1954, e de outra publicação chamada de Diário de
Notícias. Segundo pesquisas, há evidências que mostram a tendência ao tradicionalismo, a mostra
de suas teses, e a colocação de opiniões pessoais por parte do colunista Antônio Augusto
Fagundes. A coluna de crítica musical, a cargo de Juarez Fonseca, era publicada uma vez por
semana e esporadicamente era dedicada à música gaúcha (Jacks, 1998, p.65, 66, 67). Outros
estudos, como o da pesquisadora Ângela Felippi, indicam a contribuição do jornal Zero Hora na
formação da identidade cultural gaúcha (2003). A análise feita por Felippe sobre reportagens
relacionadas a acontecimentos históricos, salienta a contribuição que este tipo de jornalismo faz
na recriação das tradições, como mostra de resistência à homogeneização da cultura através da
globalização.
Em termos de editoras que dedicaram suas publicações à cultura gaúcha distinguimos
duas: Editora Tchê e a Editora Matins Livreiro. Como já vimos, a primeira surgiu com a
dissolução do jornal do mesmo nome, e tem uma linha de publicações que hoje se divide entre
temas regionais e outros. A segunda começou suas atividades como �sebo�, oferecendo uma
grande variedade de livros usados com a temática gaúcha, tornando-se editora em 1980, em pleno
auge do nativismo. A Martins Livreiro têm hoje uma extensa coleção de publicações na área
cultural gaúcha, muitas dedicadas à poesia crioula (Jacks, 1998, p.69).
A mídia televisiva é um dos meios com maior poder de audiência que também contribuiu
para divulgação da cultura gaúcha no auge dos festivais e posteriormente. A programação da TV
foi colocando aos poucos alguns programas sobre tradição, mas a inserção da temática nunca foi
definitiva e hoje podemos afirmar que não foram conquistados espaços suficientes nesta mídia
para a cultura gaúcha. A cobertura dos festivais deu-se timidamente até 1986, onde três canais de
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TV estiveram presentes. Nesse ano também marcaram presença 83 emissoras de rádio, 30 jornais
e 9 revistas (Duarte apud Santi, 2004, p.70). A emissora de TV que mais espaços abriu para a
cultura gaúcha foi a RBS TV, empresa filiada à Rede Globo, e parte de um grupo de empresas de
comunicação que monopolizam este mercado no sul do país. As empresas ligadas à Rede Brasil
Sul de comunicação formam um conglomerado de televisoras no estado todo, junto com várias
emissoras de rádio em AM e FM, dois jornais, uma gravadora de discos e uma de vídeos, e duas
editoras. Os espaços para a programação regional são controlados pela central da Rede Globo que
permitiu aos poucos uma pequena inserção para temáticas de cultura regional, o resto dos espaços
são pequenas intervenções em noticiários locais que cobrem a dinâmica da sociedade e da cultura
em cada cidade. Atualmente, há um programa só, que dedica o seu conteúdo inteiro à cultura e
principalmente a música gaúcha: Galpão Crioulo. Em princípio o programa era veiculado aos
domingo às 10 da manhã, depois foi passando para horários mais cedo e atualmente é mostrada
sua gravação às seis da manhã, aos domingos. Em termos de conteúdo, o programa mostra todo
tipo de música gaúcha, independente de tendências, gêneros, épocas e estilos. O programa
começou a ser produzido em 1983, em pleno auge do Movimento Nativista. Foi escolhido para
ser seu condutor o conhecido tradicionalista Fagundes, o mesmo que estava a cargo da coluna
sobre cultura gaúcha no jornal Zero Hora, também do grupo RBS. Na rede educativa de TV do
Estado, TVE foi lançado também em 1983 Galpão Nativo, um programa que mostrava as
músicas dos festivais, e também outro programa chamado de Invernada Gaúcha, com temática
sobre os CTGs e com participação de artistas amadores. Na mesma emissora ainda existiram dois
programas que duraram pouco tempo: Sem Fronteiras e Debate gaúcho, este último discutia
assuntos sobre cultura regional (Jacks,1998, p.74).
Também no meio televisivo foram produzidos programas especiais citados num
interessante trabalho da pesquisadora Daniela Hinerasky. São eles Sul em canto, Fronteiras,
Nossa Cultura, Talentos do Sul e uma série chamada de Estâncias Gaúchas. Outros programas e
séries foram produzidos a partir de 2000 com temas como a Revolução Farroupilha, ou a
formação geológica do estado, dentro da temática histórico-cultural (Hinerasky, 2002, p.14).
Apesar de que esta produção de programas citada por Hinerasky pareça tão importante, não há
um volume significativo de informações que contenham cultura gaúcha no conteúdo das
programações de TV, talvez explicado pelo depoimento de um ex-funcionário da emissora (RBS)
e pela própria diretora do Galpão Crioulo. Ambos concordam em que a emissora não dá os
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espaços suficientes para a cultura regional e só visa ao lucro, seguindo as tendências que o
mercado televisivo pede. Resgato a seguir um parágrafo no qual Hinerasky resume um pouco a
situação que vem acontecendo na TV com a cultura gaúcha no decorrer destes anos, assim ela
afirma:
Pode-se dizer que, de uma forma geral, a representação do gaúcho da Campanha se mantém em espaço diferenciado, mas sem tanto destaque. Os programas citados enfocam aspectos históricos e culturais do Estado, mas sem se utilizar exclusivamente da imagem idealizada do gaúcho, de �bota e bombacha� (Hinerasky, 2002, p.13).
Segundo Jacks, a indústria discográfica foi o meio mais importante para mostrar o
Movimento Nativista na indústria cultural gaúcha (1998, p.74). Podemos considerar esta fatia de
mercado dentro dos esquemas da mídia, pois sua principal divulgação é feita através das rádios e
das emissoras de TV, acrescentando também que uma das gravadoras que comercializa música
nativista entre outras, pertence ao grupo que monopoliza a informação no sul do país. A expansão
do mercado de discos nas décadas de 70, 80 e 90 foi notória, e em pleno auge dos festivais
apareceram no mercado uma série de gravadoras que se dedicaram a trabalhar somente com
artistas regionais, algumas com sede na capital e outras no interior. Os dados sobre produção não
são precisos, mas os volumes de vendas são significativos, para artistas e para eventos de
repercussão regional como os festivais, cujos registros gravados foram comercializados com
enorme sucesso.
Uma das formas de comunicação e de mídia mais moderna é, sem dúvida, a rede
internacional de computadores: internet. Faremos a seguir uma análise breve de como se
relaciona e se insere a cultura gaúcha no universo da mídia eletrônica. Em primeira instância,
seria importante salientar que existe na rede um número significativo de sites sobre cultura
gaúcha. O conteúdo destes varia, e vai desde o estritamente musical, o literário, e os que
misturam tudo, isto é, música, poesia, tradição e culinária entre outros. O MTG tem seu espaço
reservado na rede com sites do movimento em RS e em Santa Catarina. Parece controvertido que
um movimento que diz conservar as tradições estar tão atualizado, participando das informações
de um meio de comunicação tão moderno, mas o certo é que navegando nas páginas destes
domínios poderemos constatar nos conteúdos a ideologia e um pouco da história da cultura
gaúcha. Claro que o intuito do MTG de estar na rede é de divulgar e mostrar tudo este universo
cultural e, que sem dúvidas, o objetivo é alcançado com os usuários de internet, de fato um
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público mais seletivo. Talvez os dois sites mais completos são a �página do gaúcho� e o �portal
do gaúcho�, cujos conteúdos abrangem uma série de temáticas relacionadas com o �gauchismo�.
Liliane Brignol faz uma análise dos conteúdos e da dinâmica de produção e relacionamento da
�página do gaúcho� em dois trabalhos da sua autoria na área de comunicação (2004). Nestas
análises são colocadas em evidência a estrutura do site e a interatividade dos participantes,
agrupados e diferenciados como num CTG tradicional, com patrão, capataz, conselhos, etc. Cabe
mencionar que um dos trabalhos direciona-se no sentido de esclarecer o espaço na rede como
estratégia de reforço da identidade cultural, mostrando alguns elementos que contribuem para que
isto aconteça, como a linguagem com termos adotados do espanhol, poemas e letras de músicas
gaúchas, discussões sobre o significado de ser gaúcho, sobre idéias de separatismo ou sobre as
disputas entre o tradicional e o novo. Através destes trabalhos, ou simplesmente acessando os
sites mencionados, ou os conhecidos �buscadores� na internet, poderemos ter uma real dimensão
da presença e da divulgação da cultura gaúcha nesta moderna forma de mídia, podendo o volume
de informações nos surpreender pela quantidade e qualidade dos trabalhos.
Depois de todas estas informações sobre vários aspectos do Movimento Nativista,
partiremos para o relato de uma pesquisa de campo para corroborar estes dados, compará-los com
a realidade e detectar coincidências e contradições. No próximo capítulo, colocaremos duas
experiências acontecidas em campo, em momentos diferentes, uma antes de começar este
trabalho e outra com o mesmo em andamento.
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CAPÍTULO 3
Corredor de canto e poesia: a pesquisa de campo.
Há um tempo atrás e por motivo de uma apresentação da Orquestra Sinfônica do Estado
de Santa Catarina, da qual faço parte, conversava com um cantor nativista que participa destes
eventos. Comentei para ele o tema do meu trabalho de conclusão de curso, sobre a música
nativista, e ele se mostrou muito interessado. Falando com muitos detalhes, como gêneros
derivados da música européia, estilos de alguns intérpretes e influências do folclore rio-platense,
ele me comentava sobre a força da música nativista na região de Lages, onde mora e também
trabalha como cantor e professor de violão. Comentei que gostaria de contar com a sua ajuda para
realizar entrevistas e uma pesquisa de campo em algum momento, e foi aí que ele me comentou
do evento chamado Corredor de Canto e Poesia. Disse-me também que iria me convidar para
participar da próxima edição. Este encontro muito peculiar é feito numa fazenda em Lages onde
se reúnem compositores, cantores, poetas e artistas para um fim de semana de criação de músicas,
poemas e arte gaúcha, como o artesanato.
Passado algum tempo nos encontramos, de novo, num outro show da orquestra, e ele
reforçou o convite, me avisando que o iria mandar para mim, impresso. Assim foi, recebi por
intermédio de um colega da orquestra este convite para participar de 4o Pouso na Fazenda da
Ferradura em Lages na localidade de Cajurú. Programado para 18, 19, e 20 de Novembro de
2005, o evento tinha uma interessante programação, com todas as atividades perfeitamente
organizadas: refeições, apresentações, premiação e encerramento.
Um pouco antes do evento, nos encontramos de novo e o Giancarlo10 quase que me
intimou a ir; realmente não poderia perder um momento tão rico para realizar minha pesquisa de
campo.
Depois destes contatos e conversas preliminares veio a preparação da viagem: pensei não
somente em registrar as músicas e as entrevistas com o pessoal, mas também a minha
10 Giancarlo Orsoleta é músico nativista, é a pessoa que me refiro no inicio da pesquisa de campo, que me fez o convite para participar do Corredor de Canto e Poesia.
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participação direta como músico e compositor. Para isto pensei em levar dois instrumentos que
toco: sax soprano e flauta transversa. O resto da �tralha� estaria composto de roupa para andar no
campo, gravador digital (emprestado!), uma caderneta, canetas, algumas folhas pautadas e, para
finalizar, um kit de pesca reduzido, pois tinha me inteirado que havia alguns açudes na
propriedade e que talvez sobraria algum tempo para pescar. Perto da data do evento, comprei
antecipadamente as passagens para não ter surpresas e, quando chegou o dia, sexta feira 18, de
manhã, embarquei para Lages.
Sobre o Corredor de Canto e Poesia
Este magnífico encontro musical tenta trazer um pouco da tradição e recuperar um pouco
da história da região. Assim, o nome de �corredor� é por causa do corredor das tropas que ainda
existe, sulcado nesses campos de altitude. As taipas, cercas feitas em pedra, construídas por mãos
especializadas, formam este corredor por onde, há muitos anos, passavam os tropeiros levando
gado e produtos para a venda e escambo do sul do país para o sudeste. Estes caminhos uniam
regiões distantes, mas sempre com o distintivo de uma cultura que, com o passar do tempo,
perdura. O homem a cavalo, o fogo de chão, o mate e a lida com gado são características desta
cultura que se sobrepõe às fronteiras, unindo regiões de países diferentes. A região de Lages e,
especificamente, as localidades de Cajurú e Coxilha Rica eram pontos estratégicos por causa das
pastagens e dos excelentes lugares que havia para os tropeiros fazer o �pouso� e descansar. A
música, como forma de lazer nos �pousos� e como expressão cultural, não podia estar ausente
num contexto tão interessante como é o dos tropeiros e, mais tarde, naquilo que se conformaria
como a cultura gaúcha.
Foi assim, que criaram o Corredor de Canto e Poesia, pensando em juntar pessoas com a
mesma afeição à cultura gaúcha, e a arte de compor versos e músicas, reunidas num �pouso�
como o faziam os tropeiros há muito tempo atrás, quando transitavam pelo corredor. Idealizado
pelo dono da Fazenda da Ferradura, o �Tio Benja� e um grupo de artistas nativistas da região,
dentre os quais está meu anfitrião Giancarlo, o Corredor de Canto e Poesia já está na sua quarta
edição (4o Pouso), contando com a produção de mais de cem composições e poemas criados no
âmbito da fazenda, durante os três dias de duração de cada um dos eventos. Os relatos que
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seguem são produto da minha participação no quarto pouso do Corredor e do convívio com esses
artistas nativistas.
Chegada em Lages.
A viagem de ônibus foi muito tranqüila, poucos carros na estrada, o tempo ajudou
também, pois era uma bela manhã de sexta-feira. Chegando no terminal rodoviário, meu amigo
Giancarlo me esperava para irmos juntos para a fazenda. Antes disto, passamos no supermercado
para pegar alguns suprimentos. Fui presenteado com um pacote de erva mate que não se encontra
em Florianópolis, muito boa. Saindo do supermercado fomos para a casa do meu anfitrião para
almoçar. Antes do almoço, já começamos as conversas preliminares sobre o próprio �corredor� e
sobre a música nativista. Claro que começamos também a tocar algumas músicas e aproveitei
para mostrar meus instrumentos para o Giancarlo e vendo de que forma poderíamos colocá-los no
contexto musical do �Corredor�. Por fim, fomos almoçar e, depois de uma suculenta carne
preparada pela mãe do meu amigo, assistimos alguns DVD´s de músicos nativistas tomando um
cafezinho. Depois ajeitamos as tralhas no carro e saímos para o encontro de outros companheiros,
para finalmente irmos para a Fazenda da Ferradura, antiga propriedade na região de Cajurú,
Lages, por onde passa o antigo corredor das tropas usado desde o século XIX até começo do
século XX, local aonde foi realizado o festival.
Chegada na Fazenda da Ferradura
Giancarlo, como bom anfitrião, me apresentou vários músicos de Lages, de modo que
antes de pegar o caminho da fazenda paramos umas duas vezes para conversar com outros
amigos que não iriam ao �Corredor� por causa de outros compromissos. Finalmente, nos
reunimos com Sérgio e Fernando e pegamos a estrada de terra que nos levaria até o lugar. O
caminho realmente era muito bonito: com as características da serra, caminho sulcado por vários
rios e cheio de mata nativa nas encostas. Depois de uns trinta quilômetros, a paisagem foi abrindo
e dando lugar aos campos e pastagens. Em uma hora nos encontramos na porteira da Fazenda da
Ferradura. Paramos para tirar umas fotos ao lado das faixas de boas vindas e entramos.
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Foto1: na porteira da Fazenda da Ferradura.
Atravessamos mais uma porteira, passamos ao lado de um lindo açude e chegamos
finalmente na sede da fazenda. Um lugar muito bonito e ajeitado, com grama na frente da casa e
um galpão todo enfeitado e preparado para o evento. Nos recebeu o Tio Benja, dono da fazenda e
�padrinho� do Giancarlo, um homem alegre, muito receptivo e simpático. Fui apresentado e, pelo
que ele me disse, já sabia da minha participação no �Corredor� e sobre o trabalho que estou
desenvolvendo sobre música nativista. Entrando na fazenda, nos deram o quarto que iríamos
ficar, no próprio galpão, bem ao lado do palco. Este galpão é bem peculiar, arrumado de forma tal
que parece uma casa de shows. Uma entrada aberta, logo às mesas, o palco e à esquerda deste, o
bar com um balcão, as geladeiras e um fogão para esquentar a água para o mate.
Foto 2 e 3: entrada e interior do galpão do evento.
Depois de deixar nossas tralhas fomos fazer a inscrição para o evento, numa área ao lado
do galpão. Preenchemos as fichas, pagamos a taxa de R$ 25,00 e nos deram as pastas com bloco
de anotações, caneta e mais um adesivo do Corredor. Tudo muito organizado e com extrema
cordialidade por parte das pessoas. Depois disto devo considerar que já estávamos começando o
4o Pouso do Corredor de Canto e Poesia.
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No Corredor de Canto e Poesia
A tarde estava maravilhosa, o visual era fantástico, assim começava o �quarto pouso�. O
meu anfitrião me apresentava para novos amigos a cada momento, e para todos comentava do
meu trabalho. A receptividade era muito grande por parte de cada uma das pessoas. Fui
conhecendo pouco a pouco cada um dos participantes e a cada momento chagavam mais carros
com mais pessoas para o evento. Um detalhe importante a ressaltar é que todos estavam com as
roupas típicas do homem de campo, isto é, com bombachas, botas ou alpargatas, �rastra�, a faixa
na cintura, camisa bem simples, e lenço no pescoço. Na cabeça alguns usavam chapéu, mas a
maioria estava com a típica boina preta que o peão de campo usa para a lida.
Percebi logo que circulava entre os grupos de pessoas um símbolo que une os que amam
esta forma de vida de campo e tradições gaúchas: o mate. Também chamado de chimarrão no
resto do Brasil, nesta região de Lages e entre os gaúchos rio-grandenses, é mais costumeiro
chamá-lo de mate, como também se nomeia na Argentina e no Uruguai. Esta infusão de erva (ilex
praguaiensis) feita numa cuia de cabaça, misturando a erva com água quente, sem ferver, tomada
através de uma bomba de metal como se fosse um canudo, é um símbolo da cultura gaúcha.Vai
passando de mão em mão, de boca em boca, no meio de conversas e histórias como se fosse o elo
entre as pessoas e o motivo de união de grupos, confirmação de amizades sólidas ou de novas
parcerias. Tomamos mate até ficar �verde� (a cor da erva) e conversamos basicamente sobre
música com as pessoas nas rodas que se formavam.
Figura 1: Mate rio-platense
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Um detalhe interessante que reparei enquanto se servia o mate eram as cuias e as bombas.
Todas, ou quase todas, pareciam ser do tipo que se usa na região do �Rio de la Plata�, ou seja, de
estilo �gaucho� e não gaúcho11 e as bombas também. Depois conversando, descobri que em
vários lugares de Lages e no Rio Grande do Sul também vendem estes produtos vindos da
Argentina ou do Uruguai.
A conversa sobre nativismo, gêneros musicais e estilos de cada intérprete foi surgindo
naturalmente, enquanto ouvíamos o primeiro CD que meu anfitrião, Giancarlo, havia gravado há
um mês no estúdio de um amigo em Lages. O trabalho estava muito bem feito, recheado de
gêneros nativistas diferentes. Ouvimos polka, vaneira, milonga, chamamé e bugio que, segundo
os estudiosos, é legitimamente brasileiro12. Tem outros gêneros que não estavam gravados no
disco, mas também saíram na conversa como o xote, a chimarrita e a rancheira. Também falamos
sobre o Tradicionalismo e o Nativismo como movimentos culturais ligados ao gaúcho e suas
particularidades. Neste tema, percebi que há discordâncias entre as pessoas que participam dos
movimentos e senti que a radicalização que o Tradicionalismo prega não é muito bem vista pelos
nativistas, muito mais abertos para o entendimento das tradições e a absorção de influências e
hibridizações culturais.
A tarde foi passando e a noite foi caindo lentamente sobre a Fazenda da Ferradura.
Estavam quase todos os participantes, pelo que se ouvia falar, faltavam somente os integrantes de
um grupo, que viriam a cavalo. Alguns demonstravam preocupação pelo grupo, pois já estava
ficando tarde e o pessoal não chegava, havendo a possibilidade de algum acidente.
Já de noite, ainda estavam me apresentando convidados, seguindo a conversa e
conhecendo novos amigos. Numa hora, nos chamaram para jantar. O prato era único: �borrego
ensopado� ou, como eles dizem, �puchero de borrego�. Este prato era o �carré� de ovelha feito
na panela com legumes e arroz. Simplesmente delicioso. No meio da janta apareceu o grupo de
homens a cavalo, entrando no galpão com aparência de cansados, sujos, como se viessem da
guerra. Entraram no meio de gozações e o agito da turma toda. A verdade é que houve várias
quedas no caminho, assim foram se retardando e realmente chegaram passadas as dez e meia da
noite.
11 È chamado de �gaucho� ao habitante ou trabalhador rural na região do Prata. Embora existam hábitos e costumes muito parecidos com as do gaúcho de RS há diferenças regionais muito sutis no que se refere à vestimenta, culinária e forma de vida. Estas diferenças serão tratadas em um parágrafo especifico sobre o tema no transcurso do trabalho. 12 Sobre gêneros musicais gaúchos tradicionais e Nativistas, trataremos no próximo capítulo tanto as origens como as características essenciais de cada um. Sobre o bugio há um parágrafo especifico neste capítulo.
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Depois de todos terem jantado, veio um momento importante neste evento: a escolha do
júri e do tema de composição que nortearia o quarto pouso. Para isto a comissão organizadora se
reuniu a portas fechadas e nomeou três pessoas para o júri que avaliaria as composições e poemas
apresentados pelos participantes. Houve uma cerimônia de abertura do Corredor recepcionando
aos participantes e convidados e explicando um pouco como funciona o evento, as dinâmicas
para trabalhar as composições e poesias, culminando com as apresentações no sábado à noite e o
encerramento e premiação simbólica no domingo. Em seguida, foi feita a menção do júri, logo
depois a comissão organizadora pediu aos três para definir o tema central de composição em
reunião fechada. Após um tempo de deliberações, compareceram os três ao palco colocando o
tema de composição: �a liberdade e a ação do tempo na vida�.
Depois da agitação inicial por conhecer o tema, todos foram acalmando os ânimos e,
regado a muito �trago�, foi proposto começar a �tertúlia�. Este termo designa simplesmente a
junção dos músicos que estejam dispostos a tocar nessa hora, subindo no palco, escolhendo uma
música, tocando e improvisando. Eu tive a honra de começar a �tertúlia� em parceria com meu
anfitrião, Giancarlo. Tocamos �Mercedita�, ele no violão e eu no sax soprano. Foi muito bom
para mim, pois funcionou como um cartão de visita. Todos se encantaram com o som do sax,
instrumento raro no meio nativista, percebi que foi bem aceito pelo pessoal. Depois de aplausos,
seguimos com mais umas músicas, as quais improvisei bastante. Deixei meu lugar para outro
músico e fui para a platéia, foram saindo uns e entrando outros no palco e assim seguiu a
�tertúlia�. Quase às quatro da manha não agüentei mais de sono e cansaço. Peguei meus
instrumentos e fui dormir no quarto ao lado do palco. Apesar do som alto, acabei desmaiando,
dormindo profundamente, esperando o dia de amanhã, o momento da composição e as parcerias.
Sábado de composições e parcerias
Consegui dormir pouco, mas levantei cedo para aproveitar o dia, que se apresentava
fresco e ensolarado. Quando saí do quarto, somente alguns dos participantes estavam no galpão
tomando mate. Então, aproveitei para dar uma caminhada no campo e conhecer o açude. Peguei
minhas tralhas de pesca e saí campo afora. Voltei depois de umas duas horas de lazer na beira da
água e percebi que já tinha mais gente acordada. Comecei a conversar com algumas pessoas que
me disseram que a tertúlia tinha acabado às seis e meia da manhã.
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Logo me serviram mate numa roda de gente e me deram a oportunidade para conversar
sobre o trabalho e a pesquisa do meu tema. Como disse antes, o Tradicionalismo é um
movimento que já parece aos nativistas, pelo que notei em alguns dos participantes, um pouco
arcaico e radical na sua concepção. Já o Nativismo mais moderno aceita com mais naturalidade a
hibridização com outras culturas e com elementos novos para a evolução desta música. Tentando
mostrar o menos possível que não sou brasileiro, comecei a perguntar a algumas pessoas sobre o
contato com a música de países vizinhos, para ver até que ponto o músico ou o compositor
nativista escuta esta música, absorve informações e compõe, pensando em gêneros nativos e
estrangeiros. Pareceu-me, pelo que muitos manifestaram, que o contato com as culturas de países
vizinhos, como Argentina e Uruguai, principalmente com o folclore, a música e costumes do
�gaucho�, é muito maior do que pensava. Talvez o primeiro indício foi o mate, como disse antes,
nas cuias, bombas e o fato de se formar uma roda de pessoas para tomá-lo. Mas há mais amostras
deste contato e detalhes mais finos. Da vestimenta, talvez seja a boina preta, muito usada no
campo na Argentina e no Uruguai. Alguns motivos, típicos da região platina, nos lenços de
pescoço também demonstram uma grande aproximação. Outro detalhe que não escapa também
são as facas: quase todos os participantes levaram suas facas de estimação e, como eu também
gosto destes itens, comecei a indagar. Grande parte delas vêm da Argentina e do Uruguai, onde o
artesanato e o trabalho artístico em cutelaria é muito reconhecido. Há facas muito tradicionais e o
aço da suas folhas é muito procurado. Juntam-se a esta qualidade os trabalhos artesanais e
artísticos feitos nos cabos e bainhas.
Figura 2: faca artesanal
Entre muitas conversas surgiu o tema dos festivais, tão importantes dentro do contexto do
Nativismo. Foi bem interessante ouvir sobre as expectativas destes festivais, enquanto as novas
composições concorrem a prêmios, tem shows de artistas consagrados que acontecem fora das
mostras competitivas e que são as grandes atrações dos eventos. Todos os participantes do
Corredor falavam de um festival que iria acontecer na cidade de Santana do Livramento, R.S,
que se chama: Um Canto para Martin Fierro. Pelo que parecia, é realmente um evento muito
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importante. Vários frisaram a participação de artistas argentinos famosos e me disseram que
iriam ao festival só para assistir ao show desses cantores folclóricos argentinos. Este foi mais um
depoimento que me mostrou de que maneira eles vêem esta fusão de culturas regionais.
Indagando mais, percebi que conheciam não somente repertório destes artistas, mas
também, uma grande quantidade de intérpretes e compositores de música folclórica rio-platense.
Uma das pessoas que conversava comigo sobre os festivais me disse que mandou duas letras de
música para Um Canto para Martin Fierro e que tinha a esperança de classificá-las. Este letrista
compõe em parceria com músicos que elaboram a parte melódica e harmônica da música e, pelo
que me disse, já participou de vários festivais nativistas. Percebi que a letra é um item muito
importante nos festivais por causa do tema da composição, sempre relativo à cultura gaúcha e aos
seus detalhes. Depois, confirmaria isto também aqui no Corredor.
Após ter conversado bastante com muitos participantes, chegou a hora do almoço.
Novamente um prato delicioso à base de ovelha, outro tipo de guiso. No almoço continuaram as
conversas sobre Nativismo e suas conotações musicais. Quando terminamos de almoçar já
partimos para a composição. Já tinham me convidado para fazer parte de um grupo que estava
criando uma música sobre os �taiperos�, as taipas e a ação do tempo sobre estas cercas que ainda
existem nos campos da Serra Geral. Peguei minha flauta e me reuni com os novos parceiros de
composição. O poema da música já estava quase pronto, faltava a melodia e a harmonia. Aos
poucos, com a minha ajuda e a do Giancarlo, que tocaria violão na apresentação, foi aparecendo a
música no seu formato definitivo. Pareceu-me interessante a forma de criar estes temas musicais,
partindo do poema e depois colocando uma melodia, tentando ajeitar as rimas e a prosódia na
música. Trabalhamos bastante até conseguir um produto apresentável na amostra das
composições. Finalmente surgiu a composição final, que ficou somente na memória para tocar à
noite. A formação que iríamos usar era: uma pessoa para declamar o poema inicial, o cantor,
violão, flauta, pandeiro e bombo legüero13. O gênero era o que eles chamam de �Moçambique�
na música gaúcha ou nativista: um tipo de ritmo afro que, segundo o que dizem, antigamente era
bastante tocado pelos músicos nativistas. Foi escolhido este gênero14 porque a música falava de
um �negrinho taipero� (construtor das taipas).
13 Sobre instrumentos usados pelos tradicionalistas e nativistas ver capítulo 4. 14 Sobre gêneros tradicionais gaúchos e Nativistas ver capítulo 4
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Uma pequena pausa para o mate e logo fui convidado para participar como instrumentista
numa outra música, cujo tema era as lembranças de um menino, as suas idéias de liberdade e o
passar do tempo na sua pessoa. Nos reunimos com os autores e partimos para fazer o arranjo final
da composição, que era uma �milonga�. Depois de algumas sugestões minhas, foi surgindo o
formato final. Um dos compositores cantaria e tocaria violão e eu tocaria sax soprano, fazendo a
introdução e os intermezzos e em algumas partes eu dobraria a voz do cantor. Fizemos uma
gravação num pequeno aparelho para lembrar depois na hora de tocar. Encerrado este trabalho,
houve outro convite para tocar flauta com outro compositor. Tratava-se de um duo de pai e filho,
os dois violonistas, e cantores. Eu faria uma participação improvisando no meio da música, que
era em estilo de �zamba�, um estilo rio-platense! Trabalhamos um pouco a música e o arranjo,
embaixo de umas árvores ao cair da tarde. Quando os compositores ficaram satisfeitos
encerramos o ensaio com tudo combinado para a apresentação da noite. A experiência da criação
coletiva para uma situação tão particular foi muito boa. Era criar para tocar no mesmo dia, à
noite, lembrando ou tentando lembrar dos detalhes mínimos da música para fazer uma boa
participação. Foi uma vivência muito rica.
Foi caindo a noite, num dia que teve todos os climas, sol forte e calor. À tarde, umas
pancadas de chuva forte, depois dando lugar a um céu estrelado, sinal de frio e sereno. Nos
preparamos para a janta, descansando da intensa tarde de composição. Vale colocar que houve
gente que ficou a noite toda (de sexta para sábado) compondo e houve alguns que fizeram mais
de uma música. Também observei que havia gente trabalhando nas composições ainda pouco
tempo antes da janta. Enfim, houve de tudo. Jantamos e, pouco a pouco, foi se ajeitando tudo
para grande apresentação. O som e todas as aparelhagens estavam prontos para registrar cada
composição e fazer um CD do 4o Pouso.
Era quase meia noite quando o sino tocou iniciando as apresentações. Após um breve
discurso do mestre de cerimônias e a entrada dos jurados, os músicos começaram a subir no
palco. Desta maneira, iniciava�se uma seqüência de quarenta e três composições que só
terminaria às cinco da manhã. Eu participei da segunda música tocando sax e depois das músicas
de numero vinte e um e vinte e oito. Realmente parecia uma maratona, pois trocavam de músicos
e composições a cada instante. As obras foram passando e, dentre todas, me surpreenderam
algumas composições de caráter cômico, quase um deboche. Esta categoria é a que os
organizadores e participantes chamam de �Pachola�, uma palavra que significa alegre,
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brincalhão ou engraçado. Realmente, as músicas que foram compostas para esta modalidade eram
cômicas. Foram momentos de grande descontração, já que houve várias composições neste estilo.
O frio da noite era intenso, dando outro toque ao Corredor. Todos estavam com as roupas
típicas do gaúcho e ainda com os palas para se proteger do frio. O lugar mais quente, sem dúvida,
era o palco. Consegui o registro da maioria das músicas num gravador digital emprestado por uns
amigos, mas, de todas as formas, receberei um Cd15 com as gravações feitas pelo técnico que
estava comandando a mesa de som. Assim, passou-se a noite e as composições passaram uma a
uma pelo palco do galpão da �Fazenda da Ferradura�. Sobre o final, meu cansaço e sono eram
tanto que não resisti e fui dormir. Encerrou um dia riquíssimo em experiências musicais.
Conhecendo uma das maneiras de fazer música, a destes artistas populares que tentam manter a
tradição deste maravilhoso gênero nativista.
Domingo de encerramento
Foi difícil levantar cedo, o cansaço era muito, mas havia que trabalhar mais um pouco e
conseguir umas entrevistas e depoimentos. Levantei da cama às dez da manhã e fui ao galpão
para ver se encontrava alguns participantes para conversar. Já havia vários �mateando�, então foi
fácil de entrar na roda para seguir escutando os depoimentos de poetas e compositores sobre o
Nativismo e sua música. Tomamos bastante mate, falamos sobre as trocas que existem entre a
cultura �gaúcha� platina e o Pampa brasileiro. Vários depoentes me falaram sobre a absorção
musical que ocorre pela passagem dos gêneros fronteiriços, pelo contato direto que alguns têm
com músicos argentinos e uruguaios e mostraram gosto pelos elementos folclóricos que existem
tanto no Uruguai como na Argentina. Mencionaram várias vezes que são culturas muito
parecidas, vários deles já conheciam a Argentina e o Uruguai, até alguns pareciam freqüentadores
de algumas regiões dos países vizinhos, aonde compram roupa de campo e artesanato.
Perto da hora do almoço, o cheiro do churrasco estava fabuloso. Fui ver a churrasqueira,
montada num outro galpão contíguo ao do evento. Vários espetos de pau com peças de cordeiro
estavam assando lentamente aos cuidados de um hábil churrasqueiro, que era o capataz da
fazenda. Quando passei pelo mangueirão, encontrei o Tio Benja, o dono da fazenda e aproveitei
para entrevistá-lo. Como sempre, tão cordial, me comentou como tinha sido criado o Corredor,
15 O festival foi gravado por um técnico de som e será produzido um CD contendo as músicas do evento.
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por que motivo faziam questão de manter este evento e a relevância que já tinha o encontro em
nível regional. A seguir, fizemos fotos com os participantes, num momento muito engraçado e
divertido dentro do próprio mangueirão.
Foto 4: o grupo que participou do Corredor no �mangueirão�
O sino voltou a tocar e chegou a hora das premiações e lembranças entregues aos
destaques. Os prêmios simbólicos, na realidade mencionam os destaques dentro dos poemas, as
músicas, as composições �pacholas� e o melhor instrumentista. Além disto, a entrega de
lembranças, que curiosamente chamam de �regalos�, como em idioma espanhol, para algumas
pessoas que trabalharam na organização. Os prêmios e os �regalos� foram feitos à mão, em
couro de vaca e madeira, com letras e desenhos gravados pelo artista e artesão que acompanhou o
evento durante os três dias. A premiação foi muito alegre, descontraída e emocionante. Eu recebi
um belíssimo �regalo� artesanal, feito também em couro e madeira, por ter participado de uma
das músicas, com a letra dela e assinatura dos compositores com dedicatória. Terminada a
premiação e encerrado oficialmente o Corredor, um pouquinho mais tarde, começou o almoço. O
cordeiro estava delicioso e havia arroz e saladas para acompanhar. Aos poucos os participantes
foram arrumando as tralhas, desmontando as barracas e saindo da fazenda após as despedidas. O
grupo de cavaleiros saiu sulcando o mato em direção a Lages, com muita gozação e brincadeiras.
Nós ficamos até o final, quando havia já poucos participantes. Depois de arrumar nossas tralhas,
também partimos após nos despedirmos do extraordinário anfitrião, o Tio Benja, e da sua família.
No caminho de terra, em direção a Lages, cruzamos com os cavaleiros, que iam tranqüilamente
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pela estrada. Chegando no asfalto, uma história para contar. Uma linha de trem com uma
formação quebrada, impedindo seguir nosso caminho. Faltavam somente dez minutos para pegar
o ônibus de volta para Florianópolis. A salvação foi uma pessoa do outro lado do trem que se
ofereceu para me levar até a rodoviária. Despedi-me do Giancarlo, peguei minhas coisas e saltei
pelo meio de formação e saímos correndo para o terminal. No final tudo deu certo.
Comentários
A primeira questão para ressaltar é sobre a hospitalidade dos organizadores do evento.
Neste encontro de caráter fechado só participam artistas e convidados, com convite pessoal e
intransferível. Posso dizer que tive a honra de participar graças ao amigo Giancarlo e a sua
bondade de me colocar num meio tão propício para fazer minha pesquisa. Os organizadores
também foram muito amáveis e cordiais sempre, colocando-se à disposição para qualquer coisa e
mostrando uma hospitalidade ímpar.
Outra característica muito marcante no Corredor foi a conquista de novas amizades, o
reforço das velhas e o valor da parceria para fazer arte e manter as tradições. Parece que há uma
forte intenção de juntar as pessoas para realçar o valor da amizade e �fazer� juntos, neste caso, a
música. Dá impressão que este tipo de reunião é feita para que se tornem mais fortes estas
tradições musicais, artísticas e sociais. Neste encontro não participam mulheres, só estão no local
a dona da casa, e suas filhas, que são as encarregadas da alimentação dos participantes do evento.
No que se refere às composições de músicas, há uma grande valorização nas letras, de
caráter campeiro16, com a figura do �gaúcho� e suas vivências como centro. Os poemas também
têm o mesmo conteúdo, e as declamações são feitas de um jeito bem particular, entoando bem
devagar, pronunciando com a maior perfeição, com um linguajar próprio do �gaúcho�, às vezes
com mistura de palavras em espanhol, fazendo questão de colocá-las no contexto17. No que se
refere ao conteúdo musical das composições, há simplicidade nas harmonias e um pouco mais de
16 Temas referidos ao campo: seus habitantes, a lida e os trabalhadores, os animais e detalhes que se vivem especificamente nesse âmbito. 17 Existem no linguajar gaúcho inúmeras palavras adotadas do espanhol, e que formam parte do idioma regional como se fosse um dialeto. Para mais detalhes ver Dicionário de Regionalismos de Rio Grande do Sul, autores Zeno & Rui Cardoso Nunes.
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sofisticação nas melodias, nesta linha que todos chamam de �estilo campeiro�18. Não houve
música instrumental, a não ser na tertúlia e em momentos livres, aonde se tocaram clássicos
como: Redomona, Milonga para as Missões e Kilómetro 11. Os arranjos das músicas mostraram
capricho por parte dos compositores e executantes. Apesar de ter harmonias simples, a
preocupação por uma música agradável e de �bom gosto� permeava em todas as obras. As
execuções também mostraram estas características, com vários instrumentistas em destaque. A
instrumentação que este gênero nativista usa é variada. Neste encontro os músicos usaram
principalmente o violão e a �gaita� (acordeão). Além destes, havia sax, flauta transversa
(executados só por mim), gaita de boca e um músico tocou uma �quena�, instrumento andino de
sopro como a flauta. Na percussão foram usados o bombo �legüero�, cajón e pandeiro19.
Sobre o objetivo principal da minha pesquisa, que é investigar as influências na música
Nativista, consegui detectar vários elementos. A adoção de certos gêneros como milonga e
chamamé são notórios por parte dos músicos nativistas, compondo naturalmente com estes ritmos
estrangeiros, completamente adaptados no sul do Brasil. O conhecimento dos repertórios
folclóricos de Música Argentina e Uruguaia é surpreendente e chamativo. Estes gêneros
estrangeiros são muito aceitos e escutados permanentemente entre os músicos nativistas. Outro
elemento que mostra a hibridização na instrumentação das músicas é o uso de instrumentos como
o bombo �legüero�, vindo do folclore rio-platense e o cajón, vindo da Espanha é muito usado no
Peru.
A linguagem utilizada em letras de músicas e poemas também mostra a aceitação e uso de
palavras vindas do castelhano, percebendo-se que fazem questão de colocar em prática
continuamente este vocabulário.
Somam-se a estas expressões artísticas as características de vestuário já mencionadas
anteriormente e detalhes como o mate: cuias, bombas, e até o gosto por ervas de sabor parecido
ao daquelas usadas no mate rio-platense. As comidas também chegam a ter bastante semelhança
com as das culturas platinas. As cozinheiras me falaram do �puchero�, comida típica em
Argentina e Uruguai, de origem espanhola, feita também na cultura gaúcha com algumas
modificações. E o churrasco, versão brasileira do �asado� feito do outro lado da fronteira.
18 Ver exemplos em Anexos- Partituras, sobre alguns clássicos da música nativista, cujos padrões são os encontrados no Corredor. 19 Sobre instrumentos, ver capítulo 4.
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Para finalizar devo dizer que foi extraordinário o resultado geral do Corredor de Canto e
Poesia: foi o campo propício para mostrar e confirmar algumas das hipóteses por mim traçadas
com antecedência sobre música Nativista, como a sua atual proximidade dos gêneros do folclore
rio-platense e seus gêneros musicais de comunicação, como a milonga e o chamamé. Serviu
também para conhecer mais profundamente estes artistas populares que fazem sua arte para
manutenção das raízes da cultura gaúcha no sul do Brasil.
3.2. Pesquisa de campo. Encontro com nativistas de RS
No dia 13 de abril de 2006 vieram para Florianópolis dois artistas de renome dentro do
âmbito nativista, são eles Luiz Marenco e Leonel Gomes. Devido a alguns cartazes espalhados
pela cidade, consegui saber com antecipação a data do show. Portanto, decidi entrar em contato
com Marenco para ver a possibilidade de entrevistá-lo. Não encontrei na internet o site oficial
dele, mas achei um contato num outro site de um admirador do seu trabalho. O contato foi por
essa via, o Crinudo me passou o e-mail do produtor do artista, o Robinson, que já no primeiro e-
mail me respondeu que não haveria problemas sobre a entrevista. Em outra mensagem me passou
o telefone para entrar em contato quando eles estivessem em Florianópolis. Parecia tudo acertado
para nosso encontro.
No dia do show combinei por telefone que nos encontraríamos às 20:00 horas no camarim
para a entrevista, uma hora antes do show. Nesse horário, estava eu no lugar combinado, sem
conhecer a figura do Robinson, entrei no camarim e adivinhei quem era. Os produtores
geralmente andam muito agitados em dia de show, foi por isso que consegui saber quem era este
rapaz. Muito simpático, me pediu que aguardasse uns minutos, pois Marenco tinha mais
entrevista para dar e me perguntou se não queria entrevistar o Leonel Gomes, outro artista que
vinha para divulgar seu show no dia 12 de maio aqui na capital. Claro que aceitei, seria ótimo ter
a opinião de dois artistas e não só de um. Desta forma, a entrevista na realidade foi uma conversa
informal com ambos na beira do palco, primeiro com Leonel e depois com Luiz, que devido ao
horário do show que já estava para acontecer, durou algo de 15 minutos com cada um.
51
A conversa
Para a ocasião preparei umas perguntas simples e diretas sobre os temas que me
interessavam colocar neste trabalho. Como veremos a seguir, a opinião de ambos é diferente em
poucos aspectos, como o estilo da música destes dois excelentes artistas.
A primeira pergunta que fiz foi se eles tinham conhecimento de trabalhos acadêmicos
sobre o nativismo e o que achavam sobre isto. Gomes disse que não sabia da existência das
pesquisas, mas afirmou �... creio que é muito bom, pelo envolvimento com o passado, com a
tradição�. Marenco disse que já sabia das pesquisas: �... uma vez, num show em São Lourenço
veio uma menina que estava na faculdade para conversar comigo sobre a música e o nativismo�,
e disse também que acha maravilhoso que haja pesquisas sobre o tema.
A segunda pergunta foi sobre as diferenças entre Tradicionalismo e Nativismo e o que
eles achavam sobre este assunto. Gomes disse que para ele não havia conflito: �... é um conflito
criado, são nomes criados, para mim não tem conflito, gaúcho é tudo a mesma coisa�, fazendo
referência que as duas tendências cultuam a mesma coisa. Muito parecida foi a resposta do
Marenco: �... são a mesma coisa, a cultura é a mesma�, para ele as tendências parecem se diluir
numa só.
A terceira pergunta foi sobre o bailão e, especificamente, sobre a Tchê music, e a relação
com o nativismo. Gomes acha que esta música só é para divertimento: �... é uma cultura para se
divertir, para dançar, dar risada�, e ao respeito da relação com nativismo �... é uma música mais
comercial (Tchê music), não se pode misturar�, mas disse não ter nada contra a produção desta
música. Marenco concorda com esta afirmação de Gomes, mas disse sobre a Tchê music que �...
isto não é cultura do RS, ficar tocando maxixe, o dançando e saltando na boca da garrafa, isto não
tem nada que ver com o gaúcho�.
A quarta pergunta é sobre os gêneros musicais atuais do nativismo, os que eles achavam
mais representativos. Ambos responderam a mesma coisa: chamamé e milonga. Gomes
acrescentou a chimarrita e Marenco disse �... ah, já gravei, cifra, estilo, cielito, todos ritmos
argentinos, mais o que mais gosto eu acho que é de cantar milonga�.
A quinta pergunta foi sobre os gêneros estrangeiros e sua relação com o nativismo, que foi
quase respondida na pergunta anterior. Gomes disse que com internet, e a rádio hoje dá para
ouvir direto e usa muito nas suas composições. Marenco afirmou que �... para mim é comum, tu
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já sabe, fui gravar há três meses com Tarrago Ross, cantei uns chamamé, também com Pepe
Guerra em Uruguai. Me criei ouvindo, minha escola foi Atahualpa (Yupanqui), Zitarrosa�.
A sexta pergunta foi sobre a cultura gaúcha hoje. Se há influências e coincidências
culturais com os outros países. Os dois disseram que sim, que ambas coisas acontecem. Gomes
manifestou que o gaúcho brasileiro está consumindo roupa (pilcha) vinda de Argentina e de
Uruguai, e os artigos típicos também, como lenços, cintos, chapéus, e disse que �... temos que
viver o hoje, ser mais moderno, e é também usar as roupas e as coisas que vêm de lá que são mais
modernas�. Gomes afirmou que �... o radicalismo estraga, pilcha antiga, a velha do gaúcho já não
tem mais, nem se usa mais...�, mostrando da afinidade e tendência à homogeneização com o
gaúcho Platino. Marenco foi mais sucinto: �... somos uma cultura só, o gaúcho veio de lá, não há
como negar...�.
A sétima e última pergunta foi sobre o panorama de mercado para o nativismo. Leonel
Gomes me disse que via um bom futuro, com boas perspectivas. Disse que �... é bom a música
gaúcha chegar à universidade, a música que fala de campo, de cavalo, de peão, a gente jovem
ouve, curte aquilo e difunde nossa música, nós precisamos vender discos e fazer shows para
sobreviver...�. Marenco prevê um crescimento �calmo� para a música nativista. Disse que esta
música �... é para tu sentar e ouvir, é uma música para alma, não é como a outra música, que é
música para o corpo...�, aqui ele faz menção da tchê music e do seu notório apelo comercial.
Observações e considerações finais sobre o encontro com os artistas e o show
Devo mencionar como grandes atributos destes artistas, a simplicidade e a simpatia para
atender ao público, e como é meu caso, um estudante em fase de pesquisa. O transcrito foi fruto
de uma conversa rápida e em tom informal por causa do escasso tempo disponível que os artistas
tinham antes do show. De todas formas eles deixaram expostas as suas idéias, e responderam
objetivamente as minhas perguntas. Os resultados mostram a despreocupação dos artistas com
padrões impostos pela tendência tradicionalista como forma de poder sobre os bens simbólicos da
cultura gaúcha. Não há nenhum tipo de preconceito com gêneros estrangeiros, pelo contrário,
existe uma comunhão com artistas e ritmos que vêm dos países fronteiriços que resulta
surpreendente.
53
Conferindo o show, tanto Leonel Gomes como Luiz Marenco confirmaram musicalmente
o que disseram na entrevista. No repertório de ambos predominam chamamés e milongas, mas
também executaram de forma exuberante algumas vaneiras e chimarritas. Ambos tocaram
acompanhados pela mesma banda, a do Marenco, composta por três violonistas, um gaitero e um
contrabaixista (baixo elétrico). É também notória a ênfase que ambos intérpretes dão as letras, a
maioria vinda de poemas ou compostas desta forma, através das suas interpretações sentidas.
Depois destas pesquisas de campo, passaremos ao próximo capítulo para uma análise
mais detalhada dos gêneros da música nativista, através de uma contextualização geográfica e
histórica, observando os pontos de diálogo com os ritmos estrangeiros e a conformação e
adaptação ao universo da música nativista.
54
CAPÍTULO 4 Neste capítulo faremos uma descrição dos gêneros da musica gaúcha. Em primeiro lugar
mencionaremos os ritmos tradicionais e depois entraremos especificamente nos gêneros nativistas
usados como conexão com a cultura rio-platense. Trataremos também dos instrumentos usados na
execução das música. Dedicaremos um parágrafo especifico para a � Tchê Music�, destacando os
seus elementos de modernização da tradição gaúcha.
4.1. Os Gêneros da música gaúcha
A adoção de determinados gêneros na música gaúcha não foi feita por acaso. Colocamos o
termo adoção, pois como falamos anteriormente (capítulo 2), estes gêneros derivam de outros
trazidos pelos imigrantes europeus, mas também surgem da convivência das culturas fronteiriças,
isto é, como as dos países vizinhos da Argentina, Uruguai e Paraguai. Não se pode dizer que esta
cultura regional não tem expressões musicais próprias, de fato que estas adaptações são
consideradas como verdadeira música gaúcha, porque o processo de inserção destes gêneros foi
paralelo à formação cultural.
A grande mudança no cenário musical gaúcho, sem dúvida, aconteceu a partir da I
Califórnia da Canção Nativa e os outros festivais que foram surgindo pelo estado do Rio Grande
do Sul. Houve mudanças também em vários aspectos, como costumes, consumo de artigos
regionais, vestimenta, alimentação, e no aspecto ideológico do movimento cultural. Neste
sentido, o câmbio na ideologia proposto pela juventude que se somava ao movimento trouxe,
através da música, idéias diferentes das que os tradicionalistas pregavam até esse momento. O
desejo de contestação contra a opressão política vivida no país nas décadas de 70 e 80, a
consciência de integração cultural latino-americana e a vontade de inovar, visando a um
desenvolvimento artístico, foram mostrados nas composições que surgiam nos festivais, tanto nas
poesias como na utilização de novos ritmos.
A disputa entre a nova tendência e o Tradicionalismo gaúcho teve como palco os festivais,
onde os gêneros musicais das composições foram um dos grandes pontos de discordância. Os
regulamentos e os jurados dos festivais sempre estiveram nas mãos de tradicionalistas que, de um
55
modo conservador, determinavam uma série de restrições, principalmente no que respeita às
composições, enquanto a gêneros e ritmos.
Um dos tradicionalistas mais reconhecidos, Paixão Côrtes, em entrevista de 1981,
classifica a música gaúcha dizendo que existem as seguintes manifestações:
Existe a música gauchesca, a música campeira, a música galponeira, a música tradicionalista, a música regionalista, a música de novos rumos e a música de inspiração gaúcha. Estão aí sete concepções temáticas para se analisar, afora o aspecto da música folclórica e de projeção folclórica (Paixão Côrtes, 1981, p.31, grifo do autor).
Esta classificação é complementada por Paixão Côrtes dizendo que as músicas mais
ouvidas são a música campeira e a galponeira, sendo estas expressões �mais simples, mais
singelas� (1981, p.32). Na mesma entrevista, Paixão Côrtes menciona, num parágrafo especifico
sobre os festivais, a música de �Novos Rumos�, segundo ele, seria a que permitiria a evolução
musical no Rio Grande do Sul. Como é possível notar nos depoimentos de Paixão, não há uma
definição específica de gêneros para a música gaúcha, pelo menos nesta classificação. Só
menciona, efetivamente, ritmos e gêneros quando fala em �infiltrações alienígenas� que estariam
acontecendo nos festivais, nomeando uma série de gêneros como estilo, malambo, chamamé,
guaranhas, zambas e milongas, que são reconhecidos como integrantes do folclore rio-platense,
colocando este fato como ameaça ao meio literário, musical e cultural das raízes gaúchas
(p.42,43).
Segundo Lucas, os gêneros musicais gaúchos derivam das danças de salão vindas da
Europa para América do Sul no século XIX. São eles: a valsa campeira, a vaneira ou vaneirão,
adaptação da habanera, a polca, que deriva da polka, a rancheira derivada da mazurka e os chotes
ou xotes, que derivam do schottische (Lucas, 2000, p.54). As expressões musicais européias vêm
da Polônia, da Alemanha e, no caso da habanera, a origem é hispânica/cubana, sendo este um
gênero que percorreu os salões de dança de toda América Latina. Lucas especifica que há
estéticas mais modernas trazidas por compositores com uma preparação cultural mais
cosmopolita, fazendo menção aos nativistas, cujas composições têm uma conotação mais livre
quanto à poesia, gêneros e instrumentação.
Como afirmamos no capítulo 2, as opiniões de tradicionalistas e nativistas diferem
bastante quanto aos gêneros e ritmos utilizados na música gaúcha. Há um consenso que a valsa, a
mazurca ou rancheira, a polca e o chote são derivados dos ritmos europeus. Fagundes difere desta
56
opinião afirmando que os ritmos tradicionais são aqueles que os outros consideram importados da
Europa, e dizendo que a milonga não é do RS (Jacks, 1998, p.57). Luiz Carlos Borges é bem
taxativo quando afirma que �... todos os ritmos que aqui se toca são alienígenas...� (Jacks, 1998,
p.57). O único ritmo que é considerado original de RS é o bugio, mas segundo Borges não hà
provas disto. Jayme Caetano Braun manifesta que o bugio �... é um ronco de vaneira, de
rancheira�, quase dizendo que não há diferenças notórias entre estes gêneros (Jacks, 1998, p, 57).
Sem entrar numa análise detalhada de cada ritmo20 que veio do continente europeu,
podemos mencionar nos aspectos musicais, que eram gêneros de dança de salão, cujas origens
eram de diferentes regiões e que, coincidentemente, foram trazidos para América Latina pelos
imigrantes dessas latitudes. A valsa, um ritmo muito popular em toda Europa, é de compasso
ternário. A mazurka e a polka são de origem polonesa, a primeira de compasso ternário dá origem
à rancheira, a segunda de compasso binário. O schottische, de origem alemã é de compasso
binário, matriz do chote ou xote. A habanera, segundo o que as pesquisas indicam, tem origem
hispânica, mas com traços cubanos pela sua passagem por América Central. Este gênero se
popularizou na América Latina no começo do século XX em todos os salões de dança (Archetti,
2003, p.16). Seu compasso é binário e hoje, transformada em vaneira, se destaca como um dos
ritmos mais expressivos da música gaúcha.
Outro gênero que vem da Europa, de origem açoriana, é a chimarrita ou chamarrita.
Conforme consta na �página do gaúcho�21 (internet, www.paginadogaucho.com.br) este gênero
veio dos Açores, da Ilha do Pico, também como uma dança, e é registrada como a música
tradicional desse lugar. Há registros feitos por Mário de Andrade sobre a presença da chamarrita
em Cananéia, SP, nos bailados e fandangos dos caipiras dessa região (www.
paginadogaucho.com.br/generos/chamarrita). Na História da Música Brasileira de Renato
Almeida há a seguinte menção: �Entre as danças do fandango gaúcho, uma das mais famosas é a
chimarrita, de procedência açoriana, onde é chamada de chamarrita...� (1926, p.176). No Paraná,
nos fandangos que ainda existem como �celebrações dançadas ao toque da viola�, a chimarrita é
tida como uma antiga polca ou como uma espécie de rancheira. O canto da chimarrita gaúcha foi
modificado na sua temática, com quadrinhas que falam do campo e temas de cunho rural. Um
20 Nos Anexos encontraremos as partituras dos gêneros mais importantes. 21 Este portal de cultura gaúcha é um dos mais completo e confiáveis quanto as informações que fornece. Possui inúmeras seções que tem conteúdo sobre vestimenta, culinária, bibliografia e em especial, música nativista, destacando história e artistas.
57
dado importante foi aportado pelo pesquisador argentino Carlos Vega, que apontou que na �zona
oriental� (Uruguai) existe uma dança que era a chamarrita e sua variante, a chimarrita. Vega
agrupa esta dança junto a outras com o nome de polcas, mas avisa da diferença deste ritmo e das
características particulares da sua rima nas quadras (www. páginadogaúcho .com.br).
A proposta dos festivais a partir dos anos 70 fez sentir uma mudança no âmbito da música
gaúcha. A importância destes eventos foi tanto na ordem regional quanto internacional, pois, a
partir dos festivais, vários artistas dos países limítrofes começaram a se apresentar
freqüentemente no Brasil. Foram convidados para participar da Califórnia nomes como
Atahualpa Yupanqui, Mercedes Sosa, Lito Vitale e, em várias edições, o Balé Folclórico da
cidade de Brandsen22 (Santi, 2004, p.69). Estas participações mostram a proximidade entre as
culturas, entre as expressões musicais, fato que se intensifica com o nativismo (ver Capitulo 3,
pesquisa de campo). Com o surgimento do Movimento Nativista, além de um revigoramento do
culto às tradições, novos elementos no segmento artístico, em particular na música, aparecem
continuamente. Alguns gêneros vindos do outro lado da fronteira com Argentina e Uruguai
tiveram grande aceitação entre os compositores, músicos e público, apesar das restrições que
eram impostas nos regulamentos dos festivais (Santi, 2004, p.86). As proibições eram para
gêneros como o chamamé, a chacarera, a zamba e o tango, característicos da música rio-platense.
Não há menção sobre haverem proibido a milonga, que também é de origem platina, um dos
ritmos que o nativismo impôs e que o público acolheu incondicionalmente. Com o passar do
tempo e a consolidação do Movimento Nativista, encontramos como os gêneros mais usados
pelos compositores, aqueles que eram proibidos pelos regulamentos dos festivais, vindos do outro
lado da fronteira com Argentina e Uruguai.
4.2. Os gêneros musicais nativistas
Uma das características notáveis do nativismo foi a forte tendência à integração com a
cultura do Rio de La Plata, que é mostrada principalmente através dos gêneros musicais23. Sem
dúvida que as apresentações nos festivais dos artistas platinos influenciou e cativou
marcadamente os novos compositores nativistas, tanto que começaram usar nas suas composições
os ritmos trazidos pelos �estrangeiros�. Outro fator importante foi a modernização dos meios de
22 Cidade da Província de Buenos Aires, Argentina. 23 Nos anexos encontraremos partituras dos gêneros mais importantes.
58
comunicação, da mídia e da indústria cultural, que fez que o intercâmbio de informações com as
culturas do outro lado da fronteira fossem mais fluidas. Como conseqüência destes
acontecimentos detectamos que através dos gêneros musicais se produz uma conexão entre as
culturas platina e gaúcha, o que na atualidade torna-se inegável24.
A primeira manifestação desta comunicação entre as culturas e particularmente da música
se dá com a milonga. No Dicionário de Regionalismos de Rio Grande do Sul, Zeno Cardoso
Nunes define milonga como: �Espécie de música dolente, crioula, de origem platina, cantada com
acompanhamento de guitarra ou violão� (Nunes, 1996, p.303). Numa pesquisa mais moderna,
Santi destaca que este gênero é uma novidade que o Nativismo traz a partir dos anos 80 para o
cenário musical, representando a identificação já mencionada com a cultura dos países vizinhos
(Santi, 2004, p.95). Mas o percurso da milonga parece mais longo segundo alguns dados
pesquisados. Paixão Côrtes faz menção sobre a história deste ritmo que surge na Argentina em
1880 e, segundo o notável musicólogo Carlos Vega, a milonga esteve prestes a desaparecer
quando foi resgatada pelos �payadores�25 para efetuar seus contrapontos em forma de versos.
Ainda citado por Paixão Côrtes, Vega diz: �es nuestra milonga resonancia tardia del Lundu�
(1981, p.45). Cezimbra Jaques, fundador do Grêmio Gaúcho, também menciona o gênero no seu
livro Assuntos do Rio Grande do Sul de 1912 explicando: �Milonga � espécie de música crioula
platina cantada ao som de guitarra (violão) e que está também, como a meia-canha e o pericón,
adaptada entre a gauchada rio-grandense� (Paixão Côrtes, 1981, p.46). Já o folclorista Luiz
Câmara Cascudo esclarece a origem da palavra milonga, dizendo que é um �termo originário da
língua bunda-congolense, é plural de mulonga, palavra, e só usada entre os negros, significando
palavrada, palavras tolas ou insolentes� (Paixão Côrtes, 1981, p.46). Paixão Côrtes ressalta que o
Movimento Tradicionalista que surgiu em 1948 deu certo impulso para reviver a milonga
�pampeana� conhecida nos galpões de fronteira (Paixão Côrtes, 1981, p.46).
A milonga que os nativistas adotaram, e que hoje faz parte da música gaúcha como um
dos ritmos de maior aceitação popular, tem as características do gênero platino, que
descreveremos a seguir. Esta milonga rio-platense sofreu algumas adaptações de acordo com o
24 Esta conexão aparece evidenciada nos detalhes descritos na pesquisa de campo do Capítulo 3. Como observamos no referido capítulo, não há coincidências somente no que se refere à musica, também na ordem de costumes sociais, roupas, alimentação etc. 25 Segundo Moreno Cha (1999, p.272) os �payadores� são músicos que usam o gênero milonga para improvisar instrumental e poeticamente sobre este gênero rural rio-platense. São característicos do folclore platino, onde a maior expressão deste gênero se dá nas �payadas de contrapunto�, desafios musicais entre dois músicos.
59
meio em que se tocava, seja rural ou urbano. Segundo Archetti já havia sinais da passagem da
milonga de um âmbito para outro em 1890. A milonga rural tida como dança passava para os
subúrbios da cidade sendo conhecida como baile de cortes e quebradas, combinando os passos da
milonga com o candombe, a dança dos negros que viviam em Buenos Aires, e cuja característica
era a agilidade dos bailarinos demonstrada pelas quebradas, contorções improvisadas, e os cortes,
pausas repentinas (Archetti, 2003, p.15). A fusão da milonga e o candombe, com a habanera e a
mazurca, deram mais tarde origem ao tango, uma dança sensual executada por casais, que
misturava elementos dos ritmos mencionados (segundo Collier apud Archetti, 2003, p.16). No
entanto, a milonga urbana permaneceu como dança e como um gênero paralelo ao tango,
conservando as características de movimentos rápidos e saltitantes, enquanto a milonga rural
continuava seu percurso no campo e no interior do país como gênero folclórico.
É possível distinguir três tipos de milonga rural: uma somente instrumental, outra cantada
com letra que pode ser uma poesia ou verso composto para tal fim, e a terceira, que é
improvisada por dois cantores na forma de duelo, tanto na letra quanto na música, a chamada
milonga de �payada de contrapunto� (Moreno Chá, 1999). Hoje em dia, como podemos
observar na pesquisa de campo (capítulo 3), este ritmo é aceito entre artistas e público de forma
unânime, adaptado à linguagem gaúcha nas letras e poesias, nas composições musicais e na
instrumentação utilizada pelos músicos. As milongas que pudemos escutar nos repertórios dos
artistas nativistas da atualidade têm as características dos gêneros urbano e rural da milonga
platina, isto é, a urbana de andamento mais rápido, com reminiscências de tango, e a rural, de
andamento mais lento, uma das expressões do folclore da região do �Prata�. Ambos ritmos são de
compasso binário. Por todas estas informações e análises poderíamos dizer que a milonga é um
dos gêneros mais importantes de comunicação musical entre as culturas platina e gaúcha.
O chamamé é outro dos gêneros que vêm dos países limítrofes que os compositores e
músicos nativistas adotaram de forma contundente. A origem do chamamé é disputada pelos
paraguaios e pelos correntinos (naturais da província de Corrientes, Argentina). Segundo o
pesquisador Evandro Higa, o chamamé deriva da polca paraguaia que viria de uma fusão dos
ritmos europeus, embora seja considerado um produto cultural da Argentina (2003). Higa afirma
que este gênero seria uma nova variante da �polca syryry26� que era executada num andamento
mais moderado no Paraguai. O nome �chamamé� vem do guarani, e significa �coisa feita
26 Palavra de origem Guarani que significa escorregar, denomina um tipo de polca paraguaia.
60
rapidamente, improvisada�, foi criado para a gravadora RCA Victor na década de �30 em função
de uma estratégia de mercado (Higa, 2003, p.3). Higa coloca no seu trabalho o depoimento do
músico Benitez, que em entrevista de 2003 diz que o chamamé é chamado também de �polca
correntina�, repetindo várias vezes este nome ao longo da entrevista, como se confirmasse a
procedência deste gênero, ainda colocando que tem quase a mesma sensibilidade da polca
paraguaia, mostrando diferença entre ambas. Também verificamos neste trabalho a afirmação que
o chamamé é celebrado na mídia sul-mato-grossense como a �maior expressão cultural� desta
região (p. 2), mais adiante encontramos dados sobre a migração dos sulistas para este estado,
principalmente gaúchos, verificada num censo de 1980, encontrando o seguinte depoimento: �(...)
tem-se evidenciada a quase imposição cultural gauchesca, que fez polca paraguaia perder terreno
para o vaneirão e o chamamé, ritmos típicos dos pampas...� (Cabral apud Higa, 2003, p.6).
Podemos dizer que o mais interessante desta pesquisa, apesar das contradições, é a afirmação de
alguns dados que mostram o chamamé como ritmo adotado pelos gaúchos que migraram para
Mato Grosso do sul, colocando este gênero junto do vaneirão, um dos mais importantes para a
música nativista.
Na página do gaúcho, na internet encontramos mais detalhes deste gênero vindo do
nordeste da Argentina. Segundo o correspondente em Uruguaiana, Mauro Maciel, uma das
cidades consideradas o berço do chamamé é Paso de los Libres, na fronteira com o Brasil, onde
existe um artesão que fabrica acordeões de botão, que são as mais usadas para tocar este gênero.
O processo de fabricação é completamente artesanal e pelas suas mãos já passaram mais de três
mil acordeões. Este é um dos motivos que se colocam para dizer que esta cidade �Correntina� se
apresenta como o epicentro do gênero.
Em várias edições da Califórnia da Canção Nativa foi proibido executar músicas
compostas como chamamé, já que o ritmo era considerado �alienígena�, encontrando-se nos
regulamentos parágrafos específicos justificando esta proibição. Barbosa Lessa e Paixão Côrtes
divulgaram como fruto de uma pesquisa que o chamamé teria se originado da chamarrita, sendo
exportada de Rio Grande do Sul para Argentina. Neste país haveria alcançado grande sucesso,
para depois conquistar a fronteira e passar de novo para o Brasil sendo adotado como gênero
nativista (Santi, 2004, p.86). Na opinião de Luiz Carlos Borges, presidente do IGTF e
reconhecido músico nativista, o chamamé nasceu em Corrientes, mas está cada vez mais
abrasileirado, dizendo que já faz parte há muito tempo da música dos gaúchos e por isto não
61
precisa de autorização para ser tocado. O músico e compositor Pirisca Grecco, ganhador da
Califórnia no ano de 2002 considera o ritmo como um dos mais importantes nos bailes gaúchos
(www.paginadogaúcho.com.br).
Sobre o significado da palavra chamamé, Maciel disse que na Argentina corresponde a
�senhora ama-me� e que no Brasil é entendido como �chama-me para bailar� ou �aprochegar-se
de mim� (www.paginadogaúcho.com.br).
Na sua execução e interpretação este gênero permite a emissão de gritos muito particulares
chamados de �sapucay� que em língua guarani significa �grito da alma�. O chamamé é de
compasso ternário e andamento variado, assim podemos encontrar composições com
característica de velocidade lenta junto de conteúdos líricos de tom poético, como obras de
andamento rápido com ou sem letras, ou seja, de caráter somente instrumental. Em todas as
situações este ritmo sugere a dança, como é tradição no nordeste de Argentina, e nos lugares por
onde o gênero se expandiu como em RS e em Mato Grosso do Sul. Hoje em dia, no sul do Brasil,
segundo renomados artistas nativistas (ver capítulo 3), o chamamé só perde em popularidade para
a milonga na predileção do público dos festivais e cultores do Nativismo.
O vaneirão ou vaneira é, como já antecipamos, derivado da habanera de origem
hispânica, que no seu percurso para América Latina teve passagem por Cuba, onde acrescentou
elementos rítmicos que deram mais riqueza a este gênero. Na Argentina a habanera contribuiu
para gerar o tango e, no Brasil, a vaneira ou vaneirão. Este gênero de compasso binário é muito
tocado pelos músicos nativistas, embora na atualidade esteja algo relegado pela ascensão do
chamamé e a milonga. A vaneira está muito relacionada ao fenômeno do baile gaúcho, o popular
�bailão�, por ser um ritmo muito alegre e em geral com letras descontraídas. Sobre este tema
abriremos um parágrafo especifico ainda neste capítulo, mencionando uma outra linha na música
gaúcha relacionada ao bailão: a Tchê Music. Pode-se afirmar que a vaneira é um gênero
consagrado, bem aceito pelo público e um dos insubstituíveis no âmbito do baile gaúcho.
Não poderíamos deixar de mencionar o que é considerado como o único gênero nativo
gaúcho: o bugio. Há pouquíssimas referências teóricas sobre este ritmo e, como falamos
anteriormente, figuras expressivas do nativismo como Luiz Carlos Borges afirmou que não há
certeza que ele seja verdadeiramente nativo. O poeta e folclorista Jayme Caetano Braun disse que
ele parece muito com a vaneira. O que podemos aportar sobre este gênero é o que registramos em
conversas informais com músicos nativistas. O nome vem do macaco bugio, encontrado na mata
62
da região sul e sudeste do Brasil. Coincidentemente, neste ritmo a gaita é tocada de forma que
parece o ronco que este animal emite na hora de se acasalar. No instrumento são executados
ritmicamente sons na região grave, muito parecidos aos proferidos pelo macaco na hora de
copular com sua parceira. Há diferenças muito sutis com a vaneira ou vaneirão, que são
perceptíveis somente para entendidos. O compasso do bugio é binário e as instrumentações das
composições são as usadas nos outros gêneros, com ênfase no �ronco� emitido pela gaita. Outro
detalhe que encontramos neste gênero, se refere às letras, onde detectamos quase sempre a
menção explícita da palavra �bugio�, no meio de uma estória contada em tom jocoso, como se
advertisse o gênero da música em questão.
Para encerrar este tema dos gêneros nativistas, poderíamos dizer que a abertura cultural
proposta pelo movimento, e a integração com as culturas fronteiriças, trouxeram elementos novos
através dos ritmos estrangeiros não somente nos aspectos de composição como também na
instrumentação, tema que abordaremos a seguir.
4.3. Os instrumentos
Sobre os instrumentos usados na música gaúcha também podemos dizer que houve muita
polêmica entre os defensores das idéias do Tradicionalismo e o inovador Nativismo. Este ponto
de discordância em época de festivais, geralmente era resolvido no regulamento, elaborado por
tradicionalistas, que limitavam o uso dos instrumentos eletrônicos e também de aqueles que
julgassem que não formavam parte das tradições gaúchas. Assim como a proibição dos gêneros, o
uso de instrumentos �alienígenas� era vetado em parágrafos específicos dos regulamentos. A
partir da V Califórnia houve modificações quanto ás linhas de composição, criando-se três linhas:
Campeira, Manifestação Rio-Grandense e Projeção Folclórica27. Na XXV edição do festival
aparecem no regulamento os instrumentos autorizados para acompanhar as diferentes linhas. A
Campeira podia contar com instrumentos acústicos como violão, gaita, harmônica, rebeca,
bandoneón, pandeiro e outros improvisados, mas com elementos que tenham a ver com o campo,
também era permitido o bombo. A linha Manifestação Rio-Grandense acrescentava o contrabaixo
elétrico aos já mencionados. Aparece nesta edição uma linha chamada de Manifestação Livre, na
27 Estes rótulos foram colocados para diferenciar as categorias das músicas que se apresentaram no festival. Estes rótulos foram definidos pelo júri e comissão organizadora do festival.
63
qual era permitido qualquer tipo de instrumento. Este já era um sinal de franca evolução, tanto da
música como dos festivais e dos movimentos que neles se manifestavam (Santi, 2004, p. 84).
Independente dos festivais, a música gaúcha foi adotando instrumentos que se tornaram
característicos para executar os gêneros que já comentamos, alguns foram herdados dos
colonizadores da região, outros trazidos pelos imigrantes, e os mais novos foram aparecer pelo
contato com as culturas do outro lado da fronteira.
A viola e o violão foram, talvez, os primeiros instrumentos que acompanharam música
gaúcha nos seus primórdios. A viola estava presente já em meados do século XIX nos desafios de
improvisos, em gêneros como o cururu em São Paulo ou a trova em Rio Grande do Sul (P.
Côrtes, 1983, p.36). Ambos instrumentos vieram com os colonizadores portugueses e espanhóis,
e ganharam popularidade rapidamente pela versatilidade para acompanhar o canto. Tinham
ambos o inconveniente de sofrer com as inclemências do tempo, o que tornava sua afinação
variável conforme o frio ou o calor; também o volume pequeno era um problema na hora de tocar
ao ar livre ou para muitas pessoas.
Figura 3: Viola Figura 4: Violão
O violão, apesar destes problemas, se manteve firme como instrumento de
acompanhamento e solo, graças às melhoras e o capricho da fabricação moderna, ainda é muito
usado na música gaúcha. A viola teve outra sorte e sucumbiu substituída por outro instrumento
trazido pelos imigrantes: o acordeão.
Figura 5: Gaita ponto Figura 6: Gaita de teclado (acordeão)
64
Com vários nomes pelo Brasil todo, o acordeão chegou ao país trazido pelos italianos em
1875. No norte ou nordeste é chamada de sanfona, no sul de gaita, ou de �cordiona�. O sucesso
deste instrumento foi muito grande logo que os imigrantes começaram a mostrá-lo em festas e
reuniões onde a música era a grande atração. Como o instrumento era perfeito, servia para
acompanhar o canto, podia fazer solos também, e seu volume era bem maior do que a viola e o
violão. Não tinha problemas de afinação por causa do clima e pelos atributos que já
mencionamos foi aceito de imediato para fazer parte da instrumentação da música gaúcha.
A história do acordeão é bem peculiar. Começa na China no 2700 A.C onde surgiu um
instrumento parecido chamado de Tcheng ou Cheng, que era um órgão portátil de fole
(www.paginadogaucho.com.br/instrumentos). Dezoito séculos depois, o instrumento foi parar na
Rússia abrindo as portas para toda Europa, começando o sucesso pela Alemanha. Na Áustria, em
1822, Cirilo Demian introduziu as modificações necessárias para que o invento chinês tomasse a
forma que a gaita tem hoje (www.páginadogaúcho.com.br). Os tipos de gaita que encontramos na
atualidade são duas: a de teclados, com baixos na mão esquerda, acionado por botões e teclado na
direita, e a gaita-ponto com botões de ambos lados. A popularidade que o acordeão alcançou foi
inusitada, tanto que podemos colocá-lo hoje como instrumento representativo da música regional
gaúcha. Há dados que confirmam isto, como o que o Estado do RS já teve numa época 20
fábricas de gaitas funcionando simultaneamente, a mais famosa marca estabelecida desde 1939.
Em 30 de junho de 1948, quando o primeiro CTG tinha apenas dois meses de existência, esta
fábrica já havia manufaturado 6.907 acordeões (www.páginadogaúcho.com.br).
Complementando estas informações, podemos dizer que em países limítrofes o sucesso do
acordeão também foi notório. Na Argentina surgiram grandes instrumentistas de chamamé, cujo
instrumento característico é a gaita, que tomou o lugar de destaque da guitarra espanhola (violão)
e da harpa de influência paraguaia (Higa, 2003, p.3). No Paraguai, também no âmbito, da
fronteira com Brasil, o acordeão teve uma ascensão muito grande, compartilhando com a harpa e
violões as instrumentações em polcas e guarânias.
Da mesma família dos acordeões e com o mesmo princípio de funcionamento é o
bandoneón. Este instrumento veio da Alemanha para América Latina e ficou no sul do Brasil nos
redutos de imigração germânica. É pouco usado na música gaúcha, mas existem menções no
regulamento da Califórnia da Canção aceitando-o como instrumento acústico para
65
acompanhamento de uma das linhas de composição. O bandoneón foi mais bem aceito na
Argentina, nos salões de baile onde a habanera era sucesso no começo de século XX, depois se
transformando no instrumento essencial para um novo gênero: o tango.
As transformações em nível instrumental que a música gaúcha foi experimentando se
incrementaram com os festivais e com o intercâmbio com as culturas fronteiriças. O contato com
o folclore platino trouxe para algumas formações musicais nativistas um instrumento de
percussão: o bombo legüero. Embora não houvesse uma adesão maciça por parte dos músicos
nativistas desde sua chegada nos 60, é possível ouvi-lo em alguns trabalhos que lembram bem os
gêneros platinos, cobrando popularidade aos poucos. O mais tradicional dos bombos é feito com
casca de árvore que é o verdadeiro legüero, mas tem os que são feitos de madeira compensada,
chamados de bombo nativo.
Figura 7: Bombo Legüero
O seu antecessor parece ser o tambor medieval militar, já que seu formato era cilíndrico,
mas as ligaduras das peles não são parecidas, sendo estas similares às caixas de guerra da Idade
Moderna. As peles são feitas de couro de cabra ou ovelha, embora já se viram imitações em
couro sintético. O processo de fabricação do instrumento é totalmente artesanal. O nome de
legüero, segundo a conceituada folclorista Isabel Aretz, vem por causa da distância que ele era
ouvido no campo, quando usado como instrumento de sinais. Assim tinha bombos que se ouviam
a uma, duas, três ou quatro léguas, daí o seu nome (www.paginadogaucho.com.br/instrumentos).
A origem certa do bombo foi na região noroeste da Argentina, e nos anos 60 se tornou um
instrumento imprescindível para o acompanhamento na música folclórica Argentina. A partir
desses anos, passou a fronteira e começou a ser usado no Uruguai; mais tarde chega em RS para
ser acolhido entre os nativistas como instrumento de percussão. Atualmente, existem artistas e
conjuntos nativistas que não dispensam o bombo legüero nas suas instrumentações, assim como
66
outros instrumentos de percussão como o cajón de origem flamenca, a moringa de origem árabe e
outros que são usados por percussionistas modernos.
Figura 8: Cajón
Segundo os renovadores da música gaúcha, os nativistas de concepção mais avançada,
estes novos timbres enriqueceram as performances e as gravações da nova música regional
(www.páginadogaúcho com.br).
Alguns instrumentos de origem indígenas têm aparecido esporadicamente em alguns
conjuntos nativistas, como as quenas incaicas ou a flauta pan, mas segundo Paixão Côrtes não
são instrumentos dos primitivos habitantes de Rio Grande do Sul, sendo estes de indígenas que
habitavam terras de colonização espanhola (Paixão Côrtes, 1981, p.43).
Os instrumentos eletrônicos criaram bastante confusão no meio musical gaúcho,
principalmente quando despontaram as guitarras e os contrabaixos elétricos. Os teclados também
foram alvo de proibições em festivais, e na percussão, a bateria foi muito discutida entre os
teóricos do tradicionalismo para seu uso. O fato é que estes instrumentos modernos não fazem
parte do grupo que se consideram instrumentos tradicionais para fazer a música gaúcha, é por
isso que havia relutância enquanto sua utilização. As coisas começaram a mudar um pouco
depois da V Califórnia, e com o sucesso de outro festival surgido na cidade de Santa Rosa: o
Musicanto Sul-americano de Nativismo, cuja primeira edição foi em 1983. Seu criador, Luiz
Carlos Borges disse �o festival não barra estilos musicais, ritmos e temas, e aceita instrumentos
eletrônicos de todas as formas� (Jacks, 1998, p.44). Numa outra parte da sua entrevista Borges
afirma que �Os conservadores não admitem o uso do contrabaixo eletrônico, nem da guitarra
elétrica, tampouco da bateria, dizendo até, que tais, desnaturam os festivais. Os bailes dos CTG
são �abrilhantados� com conjuntos musicais que só usam tais instrumentos. A polêmica é um
contra-senso� (Jacks, 1998, p.57). Especificamente neste festival, a modernização das tradições
que vem na onda dos instrumentos eletrônicos e com a entrada de gêneros �alienígenas� é
duramente criticada por parte do público e também por alguns músicos e compositores, a ponto
67
de considerar alguns destes elementos como ameaça à tradição (Lucas, 1999, p.13). O fato é que
sobre este festival e em particular suas últimas edições, recai a crítica no que respeita à perda de
identidade e o ecletismo, presentes de maneira exacerbada. A descrição feita por Lucas no seu
trabalho Brasilhana, baseado no Musicanto de 1986, do palco preparado com uma parafernália
instrumental, que contava com instrumentos de percussão usados em escola de samba, guitarra
elétrica, bandoneón e instrumentos de sopro como saxofone e flauta transversal, parece mostrar o
espírito eclético e mistura de universos sonoros que o festival propõe. Nesse mesmo palco se
apresentou uma composição que misturava curiosamente dois ritmos bem diferentes entre si
como o samba e a milonga, contando com a ajuda da miscelânea de timbres proposta pelos
instrumentos citados (Lucas, 1999, p.9). A tentativa de inovar e, neste caso particular, de
aproximar duas culturas através de dois gêneros musicais distintos, recai no chamado de processo
de trans-culturização (Lucas, 1999, p.14). Isto mostra um dos pontos de convergência cultural e
musical que estamos tentando pesquisar neste trabalho. De toda forma, voltaremos nas
considerações finais a tratar desta questão entre gêneros ou linguagens de comunicação musical e
a transculturação.
4.4. A �Tchê Music�
Não poderíamos deixar de mencionar, para fechar este capítulo sobre gêneros e
instrumentos da música gaúcha, uma corrente de modernização que surge nos anos 90 talvez
como conseqüência do crescimento da indústria cultural regional, e que reúne novos elementos
tecnológicos e musicais, como a mescla de gêneros nacionais: a �Tchê Music�. Há uma relação
estreita deste tipo de música com o baile gaúcho, o popular bailão, que começou a ser promovido
na mesma época do surgimento destes novos conjuntos. Como colocou Borges anteriormente,
esses bailes são �abrilhantados� por estes grupos, que misturam instrumentos eletrônicos com
acústicos, cujo expoente regional ainda é a gaita. Em matéria de gêneros, a mistura também é
grande, pois é possível detectar elementos musicais, principalmente rítmicos, vindos de gêneros
como pagode e samba, da música sertaneja e do �Axé music� baiano. Coincidentemente, o nome
�Tchê Music� parece muito com o gênero mais popular da Bahia, mostrando uma proposta
mercadológica desde seu aparecimento, que é a de tentar equiparar ou contestar a hegemonia
comercial em nível nacional exercida pelo �Axé music� (Lucas, 2000, p.56).
68
O objetivo se centra em exportar em nível nacional uma versão moderna da música
gaúcha, tentando impô-la como linha de dança. Segundo um radialista local, este tipo de música
faz sucesso devido à inexistência de nenhum tipo de restrição para tocá-la ou dançá-la, e �não se
identifica com o sistema de proibições encontrados nos CTG� (Lucas, 2000, p.57). Devemos
salientar que esta linha musical (tchê music) tem um marcado apelo comercial, tanto no que se
refere ao mercado discográfico, como às apresentações ao vivo, feitas em grandes locais de baile.
Discordando deste comportamento, os nativistas da geração dos festivais e os tradicionalistas do
MTG, assinalam que a proposta destes conjuntos, chamados também de �pop gaudério�, não faz
parte da cultura nem das tradições gaúchas (ver capítulo 3, p.51).
Com todas estas informações sobre a historia da formação cultural e social do gaúcho, o
surgimento dos movimentos, as expressões artísticas e, em particular a música, seus gêneros e
outros elementos, partiremos para as considerações finais.
69
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os processos históricos mencionados no capítulo1 tiveram enorme importância na
formação da cultura gaúcha. A mistura de vários grupos sociais e diferentes etnias, num marco de
conflitos bélicos, localizados numa região onde a riqueza da terra se mostrava exuberante e sua
posição estratégica, centro do novo continente, moldaram uma cultura cujo centro é a figura
mítica do gaúcho. Esta imagem cultural surge como em nenhum outro lugar do país, através da
sua participação nas guerras, na defesa da terra, na lida do campo com animais e plantio. A
criação do mito responde à apologia ao passado, que resgata um tempo de heróis que
participaram das epopéias guerreiras, mascarando a verdadeira situação de pobreza e conflitos
sociais, negando as lutas de classes existentes no campo. Assim, o gaúcho deixa de ser um ser
social para passar a ser um símbolo mitificado, sufocando-se a visão real deste habitante do
campo (Golin, 1983, p.67).
A luta armada, por terras, riquezas e, mais tarde, por interesses políticos foi uma constante
na região, e o habitante do sul do Brasil foi ativo participante. O caráter altivo, valente e rebelde
que se atribui à figura do gaúcho possivelmente surja desta herança violenta que vem desde o
século XVII. Pelos acontecimentos que descrevemos ao longo do primeiro capítulo, poderíamos
afirmar que não houve outro lugar no país que tenha um passado de guerras e transformações
sociais tão bruscas como na região em que Brasil faz fronteira com Paraguai, Uruguai e
Argentina.
Os grupos sociais que interviram no processo de formação da cultura gaúcha eram bem
diferentes entre eles, e a interação entre os mesmos foi o que gerou esse passado de guerras e
violência que mencionamos anteriormente. A cobiça dos colonizadores espanhóis e portugueses,
os jesuítas no seu trabalho com os indígenas, criaram este primeiro cenário, recheado de
conflitos. Mais tarde, a ação dos bandeirantes e suas incursões aumentaram a dose de
intemperança na região. No passo pelo sul, as Bandeiras fundaram cidades e vilas, deixando sua
marca através dos tempos. Com a tentativa de desenvolvimento econômico, surgiram os
tropeiros, carregando produtos do sudeste para o sul e vice-versa, unindo regiões que eram
potencialmente ricas, fato que se confirma com as fazendas de café do sudeste e a pecuária
sulina. Os imigrantes europeus completaram o mosaico étnico do sul do Brasil. Estes grupos de
países diferentes trouxeram vários elementos culturais, talvez o mais importante foi a música e,
junto, os instrumentos típicos que foram e são muito usados na atualidade. A adaptação dos
70
gêneros europeus na América do Sul fez com que as expressões musicais mudassem a ponto de
criar sobre estes, um estilo próprio para cada região.
O processo de socialização entre estes grupos diferentes foi o que delineou a cultura
gaúcha. A convivência e as trocas de costumes que vão desde o vestuário, a culinária e a língua,
dentre outras coisas, moldaram este conjunto de hábitos, muitos deles transformados em
elementos da tradição. Se pensarmos que nos séculos XVII e XVIII os limites políticos entre os
países eram quase que vagamente definidos, diríamos que esta socialização se estendia para as
regiões além fronteira, mais precisamente estes processos se davam sem uma consciência precisa
do que é a fronteira política.
Na metade do século XIX, os movimentos culturais que apareceram desde a época da
Guerra do Paraguai surgem com o intuito de enaltecer os valores do homem do campo e seu
entorno, através da literatura, em um primeiro momento, como o fez a Sociedade Partenon
Literário, a partir de 1868. Mais tarde, o Grêmio Gaúcho criado pelo Major Cezimbra Jaques,
também tem um perfil literário, mas já esboça explicitamente a sua intenção de cultuar as
tradições de Rio Grande do Sul. Devemos lembrar, neste caso, que a inspiração do Grêmio foi a
�Sociedad Criolla� de Montevideo, Uruguai, o que nos mostra uma sintonia entre a cultura do RS
e rio-platense, no que se refere à manutenção da tradição e ideologia. Ainda como mostra de
afinidade entre rio-platenses e rio grandenses, vale lembrar o que o próprio Cezimbra Jaques
disse do gênero milonga, admitindo que é aceito em RS, assim como outros gêneros folclóricos
platinos como a �media caña� e o �pericón� (Paixão Côrtes, 1981, p.46) (ver capítulo 4,
gêneros).
Em 1948, com a fundação do Movimento Tradicionalista Gaúcho começa uma nova
concepção cultural no Rio Grande do Sul, que passará também para Santa Catarina e parte do
Paraná. Com traços de nacionalismo exacerbado, o Tradicionalismo corta radicalmente tudo que
é estrangeiro à cultura gaúcha, chamando de �alienígena� a todo e qualquer elemento cultural do
exterior. Desta maneira, aparecem inúmeras contradições entre o que os ideólogos do
Tradicionalismo promulgam e o que os acontecimentos históricos demonstram. Um exemplo
evidente destas controvérsias se produz no momento em que são formuladas as danças
tradicionais gaúchas. Os tradicionalistas Barbosa Lessa e Paixão Côrtes viajaram para Uruguai
para estabelecer contato com as �Sociedades Criollas� com o fim de encontrar elementos para
formular as danças (Santi, 2004, p.43). Como é possível negar um fato destes, dizendo mais
71
tarde, que os elementos alienígenas devem ser eliminados da cultura gaúcha? O que é
considerado alienígena? Dentro deste conceito, entram também os indivíduos que estão do outro
lado de uma linha simbólica chamada de fronteira política, que usam bombachas, tomam mate,
andam a cavalo e gostam do campo, da terra, quase da mesma terra?
Outro assunto interessante é a questão da língua ou, para melhor dizer, a linguagem do
�gaúcho� e seus regionalismos. Poderíamos trazer novamente o conceito de �alienígena�, que
neste caso seria a língua ou toda expressão que não é considerada língua portuguesa. Como é
possível encontrar nesses regionalismos e na linguagem do �gaúcho� tantos termos em espanhol
ou castelhano? Basta conferir no Dicionário de Regionalismos de Rio Grande do Sul
confeccionado pelos irmãos Zeno e Rui Cardoso Nunes. Este fato, às vezes, parece ser negado
pelos tradicionalistas, argumentando que querem �acastelhanar� o gaúcho, em outras
oportunidades se valem desse linguajar como amostra de diferença do resto do país. Cabe
mencionar que a maioria dos vocábulos em espanhol que aparecem misturados na �linguagem
gaúcha� se referem ao campo, isto é, são palavras usadas no âmbito rural platino. Na língua
espanhola estes termos também são agrupados como expressões próprias da linguagem
�gauchesca�. A passagem através das fronteiras destes regionalismos idiomáticos se dá na
decorrência dos processos históricos e culturais que descrevemos nos capítulos anteriores.
O Tradicionalismo, de certa forma, criou uma distância entre a cultura regional do sul e o
resto do país. Isto parece ser produto do antigo sentimento separatista vindo da época dos
Farroupilhas e também das inúmeras contradições em que os ideólogos do movimento
proclamam em cartas, estatutos e conferências ou entrevistas. A exemplo disto, poderíamos
mencionar uma entrevista de 1981, da qual participam Gluacus Saraiva e Paixão Côrtes (1981,
p.73). Saraiva se queixa dizendo que terá que se lutar muitos anos para que a cultura �gauchesca�
seja aceita no Brasil, que os gaúchos são repudiados e tratados como semi-estrangeiros, �sempre
nos empurrando para a banda do Prata�. O resto do país não aceita esta cultura como
autenticamente brasileira. Faz menção às guerras, nas que o povo gaúcho participou ativamente,
como se fosse o único fato que garantiu a soberania nas fronteiras do sul, tanto em sentido
político como cultural. Observa que o Movimento Tradicionalista demonstrou ao longo de trinta
anos ser a maior escola de civismo e princípios da brasilidade. A seguir, admite ser inegável a
origem do gaúcho que, segundo ele, é produto da cruza de aventureiros espanhóis, portugueses e
índios. Imediatamente, Paixão Cotes descreve os tipos de gaúchos, dizendo que o da fronteira
72
�representa um tipo, naturalmente, mesclado e de identidade maior com o espanhol� (Paixão
Côrtes, 1981 p.73). Estas contradições ideológicas, por um lado, e as mostras da supervalorização
pelas epopéias guerreiras são sinais que mostram o porquê do isolamento cultural com respeito ao
resto do Brasil. E a negação das coincidências culturais com os países vizinhos? E essa rejeição
mostrada à cultura �alienígena� de bombachas e chimarrão, que fica do outro lado das fronteiras
com Argentina e Uruguai? Há uma intenção dos tradicionalistas de se isolar das culturas platinas,
ao parecer por questões ideológicas, também porque a dinâmica social do campo e seus
habitantes são diferentes nessas latitudes, como veremos mais adiante.
No plano ideológico, o historiador Tau Golin elaborou uma profunda análise sobre o
Movimento Tradicionalista no seu livro A Ideologia do Gauchismo (1983). Neste trabalho, o
autor critica acirradamente ao movimento e mostra o que há por trás da pregação do culto às
tradições gaúchas, em termos políticos, sociais e culturais. Golin explica o isolamento
tradicionalista, como uma forma de segurar o monopólio da cultura e a respeito de elementos
�alienígenas�, comenta que por causa da arte engajada de artistas de países vizinhos é que se
definiu a criação das �barreiras aos fatores e idéias alienígenas (...) diametralmente opostos ou
antagônicos aos costumes e pendores naturais de nosso povo� (Golin, 1983, p.63). Sobre as
contradições dos ideólogos do MTG, as considerações de Ruben Oliven mencionadas no capítulo
1 do presente trabalho parecem as mais apropriadas, lembrando que ele disse da grande
dificuldade dos tradicionalistas para definirem conceitos como tradição, folclore, dentre outros, e
que estes ideólogos usam um certo conhecimento sobre estes temas como forma de poder, para
ter o monopólio sobre o que chamamos de cultura gaúcha.
O Nativismo trouxe ares de modernização para o cenário cultural gaúcho. Já observamos
no decorrer do trabalho que se consolidou como movimento depois de várias edições da
Califórnia da Canção Nativa. A mudança mais significativa foi, talvez, a abertura para uma nova
estética musical, que se materializou nas novas composições, nas instrumentações musicais e na
integração com os países vizinhos através dos gêneros, como também, no intercâmbio entre
compositores e intérpretes. Possivelmente, esta integração tenha trazido uma mudança também
no sentido ideológico, pois, como dissemos anteriormente, a arte engajada de alguns
compositores e músicos rio-platenses considerada nociva para os tradicionalistas, começou a ser
vista de maneira mais consciente e realista por parte dos nativistas. Estes traços de mudança no
aspecto ideológicos aparecem aos poucos em algumas composições, mas ganharam força dia-a-
73
dia, principalmente no que se refere à poesia e as letras das composições que contam a realidade
social, o verdadeiro sofrimento do homem do campo.
No campo das disputas entre o Tradicionalismo e o Nativismo podemos dizer que como
duas tendências diferentes que cultuam as mesmas tradições, uma conservadora e outra
progressista, de fato existiram e existem divergências. Como já relatamos, o MTG sempre esteve
muito próximo dos núcleos de poder de Rio Grande do sul. Seus ideólogos sempre ocuparam
cargos nos governos e secretarias do Estado, desta maneira, qualquer ameaça a esta hegemonia
cultural, obviamente, seria questão de conflito. De certa maneira, o Nativismo e sua proposta de
renovação sempre foi uma ameaça para o monopólio tradicionalista. Num outro enfoque,
poderíamos pensar que um movimento é continuação do outro, somente uma modernização das
tradições. Afinal, o Nativismo, como movimento, surgiu no seio do Tradicionalismo gaúcho em
época de festivais. Inegavelmente, as mudanças estéticas aconteceram e parece não haver dúvidas
que os nativistas foram os responsáveis, até da proposta de integração cultural com o folclore rio-
platense, hoje vista de forma natural.
As pesquisas de campo que relatamos no terceiro capítulo mostram, eloqüentemente, o
espírito de integração que hoje se vive no meio Nativista. A primeira pesquisa feita em Lages,
Santa Catarina, evidenciou o grau de conhecimento sobre a cultura platina e seu folclore por parte
dos artistas catarinenses e rio-grandenses que participaram do evento. Notamos também que estes
músicos e compositores não abandonaram em momento algum as raízes brasileiras e o
sentimento da sua nacionalidade, senão que os colocavam junto deste desejo de integração
através das conversas, da música, e porque não, do mate amigo, que junta essas culturas. A
segunda pesquisa feita em Florianópolis, entrevistando dois artistas de RS, já famosos no meio
nativista, não mostrou grandes diferenças com respeito à primeira. Foi confirmada a idéia da
integração sul-americana que hoje permeia no meio nativista, ainda enriquecida com detalhes
como o que dá o artista de Santana do Livramento (Leonel Gomes)28, a respeito da roupa, ou
como menciona Marenco29, sobre as parcerias com artistas argentinos ou suas influências
musicais, vindas do folclore platino (ver capítulo 3).
As coincidências culturais que detectamos nas pesquisas de campo também aparecem
quando analisamos costumes regionais, principalmente nas zonas fronteiriças, e que também
28 Ver Capítulo 3, Conversa com artistas de Rio Grande do Sul. 29 Idem 28.
74
podem ser notadas em regiões interioranas do sul do Brasil. Em estudos mais atuais, com um
grau de aprofundamento maior, veremos diferenças sutis entre os elementos culturais analisados,
mas em camadas superficiais, as coincidências sem dúvida que existem. Sobre este tema faremos
referência ao trabalho do pesquisador Alejandro Grimson, que salienta várias questões sobre as
diferenças e semelhanças culturais (2004). Um dos pontos cruciais é a construção dos Estado e
das nações, fato que modifica o pensamento em nível regional, direcionando o olhar das cidades
fronteiriças para um pensamento nacional como centro de sua dinâmica social. De todas formas,
Grimson afirma que se detectam práticas culturais comuns na fronteira de Argentina com o
Brasil, âmbito da sua pesquisa. Os rituais realizados sobre os costumes gaúchos e �gauchos� se
davam em ambos lados, mas com características diferentes. Do lado brasileiro há exaltação a esta
cultura, um orgulho de enaltecer as tradições. Do lado argentino, os �gauchos� são discriminados
e pertencem às camadas mais pobres. Este olhar confirma que superficialmente parecem culturas
com os mesmos valores, mas em profundidade a pesquisas de campo demonstram o contrário.
Numa outra pesquisa, Roberta Brandalise estudou algumas relações entre as cidades da fronteira
Argentina/ Brasil (2002). Confirmando o que observamos no estudo de Grimson, Brandalise
afirma que as relações das cidades de fronteira se distanciaram por causa de interesses nacionais,
principalmente comerciais de grandes empresas sediadas em São Paulo ou em Buenos Aires.
Também pontua que a mídia televisiva aumenta o campo de disputa entre as populações e que
antes de todos estes elementos da modernização e globalização, a relação entre as populações
fronteiriças eram muito mais fluidas e amigáveis. Podemos observar que no aspecto cultural,
Brandalise menciona semelhanças e identificadores entre brasileiros e argentinos, como a cultura
do campo, a comida, como o churrasco, o chimarrão, o consumo de cordeiro com arroz, e a
música. Os brasileiros acham a música Correntina muito próxima da gaúcha, principalmente o
chamamé. Outra pesquisa interessante neste campo das semelhanças/diferenças culturais é a da
Luciana Hartmann (2004a). Este trabalho mostra na fronteira do Brasil com Uruguai uma série de
histórias (�causos�) contadas por narradores através do uso de métodos audiovisuais (fotos,
filmagens). Dela podemos resgatar um parágrafo que serve de resumo sobre este tema:
Como verifiquei ao longo da pesquisa, esta �área cultural� que congrega as três fronteiras possui muitas afinidades, muitas semelhanças, muitas identidades. Pois bem, ainda que para seus habitantes esta convergência de valores, de tradições e de histórias se confirme, há demarcações visíveis, porem sutis, que impõem limites entre o �nós� uruguaio, o �nós� argentino e o �nós� brasileiro. No caso da minha pesquisa, os comentários e observações feitos constantemente às imagens mostradas aos contadores
75
de um país ou outro, em especial aquelas relativas a eventos sociais, como rodeios, criollas (festas campeiras), carreiras (corridas de cavalo) etc., foram fundamentais para que eu acedesse à compreensão de alguns desses demarcadores identitários.(Hartmann, 2004a, p.77).
No mesmo artigo, em nota de rodapé, Hartmann disse que na sua tese de doutorado
(2004b), argumenta que há uma cultura comum que liga os habitantes dos três países fronteiriços,
uma cultura da fronteira e que se desenvolve paralela às culturas nacionais.
Uma mostra evidente da tentativa de integração entre as culturas do sul do Brasil e a rio-
platense é o evento artístico-cultural �Buenos Aires em Porto Alegre�, �Porto Alegre em Buenos
Aires�. Este encontro é organizado pelas prefeituras de ambas cidades com o intuito de integrar
através das artes estes dois importantes centros da América do sul. As atividades se desenvolvem
durante uma semana em cada cidade com apresentações musicais e teatrais de cada delegação
artística. A investigação realizada pela antropóloga Verônica Pallini mostra, nos seus relatos, que
a música é um dos principais elementos escolhidos pelos brasileiros para representá-los e para
fomentar essa integração (2000). Há várias entrevistas no decorrer deste trabalho que revelam
traços de coincidência cultural. Escolhemos alguns trechos dos depoimentos para mostrar essas
evidências:
Escolhemos o mais representativo de Porto Alegre, a música popular gaúcha. Temos muita identidade cultural através disto, com as milongas e a música popular. Temos mais proximidade com Buenos Aires e Montevidéu do que com Rio de Janeiro e São Paulo, pela localização geográfica. A música nordestina nos parece uma moda, algo mais comercial (Pallini, 2000, p.26).
Esta entrevista foi dada por uma funcionária da comissão organizadora e mostra um pouco
do sentimento de integração e mostra, através da música o que há de mais representativo
artisticamente no sul do país. Os depoimentos de dois músicos brasileiros participantes do evento
expressam na entrevista a realidade dessa integração:
Muitas vezes o público interpreta nossa música como pitoresca. E que não podem crer. Para os que não nasceram no sul do Brasil, a musica brasileira é sinônimo de samba, bossa nova, música baiana. Mas para poucos é igual a chamamé (...) É que a música que fazemos os músicos gaúchos tem influência do folclore argentino. (...) Nos compomos chamamé como se fosse um ritmo brasileiro. (...) Fui criado escutando música Argentina nos centros de tradição gaúcha (Pallini, 2000, p.24)
76
Na segunda entrevista o músico brasileiro Tonho Villeroy disse:
Sou um cara da fronteira. Em São Gabriel uma das primeiras palavras que aprendi foi �bueno� (em espanhol original). Isto para dar um exemplo da familiaridade que tenho com o castelhano ou por acaso o portunhol: vem da minha primeira infância. (...) Ainda assim, o certo é que o sul do Brasil segue sendo Brasil. Em Porto Alegre, capital provincial que também é porto fazemos samba, vivemos o carnaval, e mergulhamos em acessos de paixão quando joga nossa seleção de futebol e todo mais (Pallini, 2000, p.25).
Nota-se a diferença no discurso de ambos músicos: o primeiro com marcada identificação
musical com gêneros estrangeiros como o chamamé, afirmando que este já foi adotado pelos
gaúchos como se fosse um ritmo nacional. O segundo mostra conhecimento da cultura fronteiriça
como elemento diferencial do resto do país, mas imediatamente incorpora o discurso nacional
através de fortes identificadores como o samba, o carnaval e a paixão pela seleção de futebol. Há
mais depoimentos de produtores brasileiros do evento que salientam a proximidade entre as
culturas, existente em detalhes como o chimarrão ou o churrasco e, no que respeita às cidades
(Buenos Aires-Porto Alegre) expressam que há em ambas,características similares o que faz com
que os habitantes de uma, sintam�se à vontade na outra. A contribuição de Pallini com seus
relatos e análises sobre o evento ajuda a entender os mecanismos de integração, um deles é a
música e o quanto a identidade nacional pesa nessa tentativa sócio-cultural.
Há evidências que uma das linguagens de integração entre a cultura gaúcha e a rio-
platense, senão a mais importante, é a música. O processo evolutivo para chegar até a atualidade
desta expressão cultural tem um percurso longo, cheio de interações provenientes das culturas
atuantes que se misturaram e agiram nas regiões já descritas. O estudo das mudanças acontecidas
na música gaúcha ao longo de toda a formação cultural da região nos levará a expor uma série de
conceitos que definem os processos acontecidos até o momento. Um desses conceitos, talvez o
mais importante, é o de hibridização. Segundo Nestor Garcia Canclini, a definição é a seguinte:
Entendo por hibridização processos sócio-culturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas� (2001, p.xix).
Poderíamos afirmar através desta definição que a cultura gaúcha como um todo é produto
de processos contínuos de hibridização, resultante da interação entre esses grupos sociais, antes
mencionados, e as diferentes etnias atuantes na região. No campo especifico da música, Canclini
77
exemplifica citando a fusão de melodias étnicas com a música clássica ou contemporânea, o jazz
e a salsa são mencionados por ter gêneros híbridos resultantes de misturas com outras culturas
musicais, também em artistas como Beatles ou Peter Gabriel encontramos melodias inglesas
misturadas com motivos hindus (2003, p.xx). No caso especifico da música gaúcha, há uma
transformação dos gêneros europeus que, misturados com elementos nacionais, geraram os ritmos
regionais que já mencionamos (capítulo 4). Há que dizer que junto do processo cultural
aconteceram os de ordem social, admitidos pela maioria dos ideólogos dos movimentos e
estudiosos do tema, são os processos associados à hibridização: a mestiçagem, na ordem de
misturas interculturais, que também é referida como criolização, o sincretismo para a diversidade
e mistura de religiões e a transculturação, conceito que podemos associá-lo ao processo que
transformou a música gaúcha, como veremos mais adiante (Canclini, 2001, p. XXVI).
Com um tratamento focalizado na música latino-americana, Herom Vargas expressa num
artigo da sua autoria, a existência de hibridismo nas expressões musicais desta parte do
continente (2004). Mencionando reconhecidos autores, Vargas faz alusão ao hibridismo através
de elementos como escalas, ritmos, instrumentos, formas de execução, novas tecnologias e novos
nomes de gêneros. Um dos exemplos de gênero híbrido que Vargas cita no seu trabalho é o do
tango, com informações que coincidem com o que colocamos no capítulo 4 a respeito da junção
de ritmos que daria origem a este importante gênero platino.
Não há dúvidas que, fazendo um parâmetro, encontraremos na modernização da música
gaúcha, especialmente trazida pelo nativismo, os traços de hibridização que acabamos de citar.
Tentando ir mais longe, admitindo que a música vinda da Europa se transformou em gêneros
regionais de importância, poderíamos colocar um dos conceitos mencionados anteriormente, que
explica o processo acontecido com estes ritmos no sul do Brasil: a transculturação. Segundo
Maria Elizabeth Lucas, há menção deste fenômeno relacionado à canção popular desde 1940, em
um livro do musicólogo cubano Fernando Ortiz, que diz que a transculturação era uma forma de
descrever o caráter de intercâmbio entre a cultura africana e européia existente em Cuba (Lucas,
2003, p.75). Ampliando este conceito, Ortiz salienta o intercâmbio cultural, a interação e a
fertilização cruzada, que produz um fenômeno ou uma realidade completamente nova. Lucas
também cita Mary Louise Fat que, em seu livro Imperial Eyes: Travel Writing and
Transculturation (Lucas, 2003, p.75), se refere a isto como um �fenômeno de zona de contato�,
78
que são aqueles espaços sociais nos quais culturas desiguais encontram-se para estabelecer uma
luta e relações de domínio e subordinação, principalmente em elementos antagônicos.
Há evidências suficientes no processo histórico e cultural já descritos neste trabalho, que
gêneros como a habanera, a polka, a mazurca, o schottische e a valsa sofreram transformações
para dar origem aos ritmos gaúchos, em processos de transculturação que vêm do século XIX.
Na renovação estética proposta pelo Nativismo na música, encontra-se indícios deste fenômeno,
através de amostras de diversidade cultural, múltipla identidade, relações intermusicais levadas
pelo discurso musical, significados interculturais expostos nas letras e poesias, mescla de
interpretações dos artistas nos gêneros, e tecnologia, característicos de diferentes regiões e épocas
(Lucas, 2003, p.75, 76).
Atualmente, a música nativista parece estar apoiada em duas pilastras (gêneros) muito
sólidas: a milonga e o chamamé. Estes ritmos aparecem fundamentalmente citados nas pesquisas
de campo, e são aqueles que compositores e intérpretes utilizam mais freqüentemente como
linguagem musical para expressar sua arte. O mais interessante disto é que analisando a forma em
que se tocam e interpretam a milonga e o chamamé no sul do Brasil, observamos que estes
gêneros conservam todas as características musicais que detectamos nos seus homônimos
platinos, somente a língua portuguesa atua como diferencial. Notamos que estes gêneros musicais
são pontos em comum entre a cultura gaúcha e a platina, e que em certa maneira, servem como
linguagem de comunicação regional. Prova disto são as parcerias entre artistas do folclore platino
e reconhecidos expoentes nativistas (pesquisa de campo, capítulo 3). É importante frisar que estes
gêneros comuns aparecem somente como elo entre as culturas no âmbito regional, ao contrário do
que surge como experiência no contexto nacional e suas expressões de identidade musical: o
samba brasileiro e o tango argentino, que segundo Menezes Bastos expressam uma
irredutibilidade mútua, portanto não existem pontos de diálogo (1997, p.33).
A modernização das tradições gaúchas e em particular, as suas expressões musicais,
responderam a processos sociais que aconteceram no século XX na América do Sul,
acompanhando a realidade na medida que as mudanças foram acontecendo. Estes câmbios são
mencionados por Canclini num parágrafo do seu livro Culturas Híbridas, que nos serve como
reflexão sobre a modernização da cultura gaúcha. Segundo o autor, as culturas camponesas e
tradicionais não representam mais a parte majoritária da cultura popular explicando que isto se
deve a que as cidades latino-americanas passaram conter entre o 60 ou 70 % dos habitantes.
79
Também salienta que, no âmbito rural o folclore e a cultura popular não têm mais um �caráter
fechado�, isto é produto das relações mais versáteis que se desenvolvem com a vida urbana, com
as migrações, com o turismo e as opções que oferecem os meios eletrônicos, assim como a
reformulação de antigos movimentos religiosos e a aparição de outros novos. Justifica �se que os
novos migrantes do campo para as cidades ainda mantêm formas de sociabilidade e celebrações
de origem camponesa, mas adquirem o caráter de �grupos urbanóides� (Canclini, 2001, p.218).
Segundo o etnomusicólogo José Jorge de Carvalho, existe a necessidade de que o folclore se
estude em ordem local e regional ao mesmo tempo, e também sejam observados os diálogos que
se produzem com os gêneros estrangeiros. Desta forma, as tradições se reformulam em um
sistema interurbano e internacional de circulação cultural. Carvalho acrescenta que:
[...] existe uma vertente de formas híbridas que também nos une, sendo possível identificar relações de novos ritmos populares brasileiros com novas expressões da Bolívia, Peru, Venezuela, Caribe, México etc. [...] Não é possível compreender a tradição sem compreender a inovação [...] (Carvalho, 1989, apud Canclini, p.219).
Nas considerações destes importantes autores, encontramos fortes coincidências que
mostram e podem resumir, de alguma maneira, o percurso de nossa pesquisa. O caminho do
Nativismo como movimento se deu de forma progressiva e firme até os dias atuais, mas,
inegavelmente, há possibilidade de pesquisa e discussão sobre uma série de temas transversais
que envolvem esta forte expressão cultural do sul do Brasil.
80
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www.submarino.com.br/musical
www.geocities.com/transciente/portalinstrumentos
Jornais, periódicos e revistas
Jornal Tchê
Jornal Zero Hora
Revista Sul
Revista Tarca
Partituras dos anexos disponíveis em:
Revista Canto Sul ( vários números)
84
ANEXO I
Convite do �Corredor de Canto e Poesia�
85
Adesivo de propaganda do �Corredor de Canto e poesia�
Fotos do �Corredor de Canto e Poesia�
86
ANEXO II
Partituras
87
Vaneira
88
89
Chamamé
90