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8/6/2019 M&U02-Mudana, racionalidade e poltica
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Captulo 1
MUDANA, RACIONALIDADE E POLTICA1
I
Alguns dos mais importantes problemas de teoria e mtodo a exigirem nossa
ateno so ainda problemas comumente deparados na confrontao entre o marxismo e
outras orientaes no campo das cincias sociais. No pretendo, com isso, negar a
chamada crise do marxismo, que a proliferao de "escolas" torna bastante evidente,
como notou Norberto Bobbio em interveno particularmente efetiva nos debatescorrespondentes.2Minha inteno antes assinalar que algumas das questes discutidas
pelos marxistas, hoje como ontem, so certamente questes a serem consideradas pelas
cincias sociais como tal. Os problemas metodolgicos associados com a histria e a
mudana ocupam lugar de destaque entre elas.
Perry Anderson, estudioso marxista reputado e pouco ortodoxo, fornece um ponto
de partida interessante para a discusso de tais problemas em trabalho conhecido. Refiro-
me a Lineages of the Absolutist State, publicado pela primeira vez em 1974.3 Anderson
discute com brilho e erudio a natureza e o desenvolvimento do estado absolutista na
Europa. Um dos subtemas associados o do processo global de transio do feudalismo
para o capitalismo (bem como, na verdade, o problema geral da transio de um modo de
produo a outro), e Anderson dedica numerosas pginas de suas concluses a refletir
sobre ele. A proposio central que a se sustenta, nas palavras do prprio autor, a de
1 Trabalho originalmente apresentado ao simpsio A Cincia Poltica nos Anos 80 (IDESP, SoPaulo, 3 a 6 de novembro de 1981) e publicado em Bolivar Lamounier (org.), A Cincia Polticanos Anos 80, Braslia, Editora da Universidade de Braslia, 1982. O original em ingls foi
tambm publicado, sob o ttulo Change, Rationality and Politics, como Working Paperno. 10,Kellogg Institute, janeiro de 1984.2 Norberto Bobbio, Existe uma Doutrina Marxista do Estado? e Quais as Alternativas para aDemocracia Representativa, ambos em Norberto Bobbio et al., O Marxismo e o Estado (Rio deJaneiro, Edies Graal, 1979; traduo para o portugus de Frederica L. Boccardo e Ren Levie).3 Perry Anderson, Lineages of the Absolutist State (Londres, Verso Editions, 1979; primeiraedio de NLB, 1974).
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que "a concatenao dos modos de produo antigo e feudal foi necessria para
engendrar o modo de produo capitalista na Europa uma relao que no foi
meramente de seqncia diacrnica, mas tambm, a certa altura [o Renascimento], de
articulao sincrnica".4 O processo em que se d essa concatenao repetidamente
descrito em termos tais como "a especificidade da histria europia" e "a passagem nica
ao capitalismo [que foi] possvel na Europa", sendo posto em correspondncia com a
singularidade que o sistema de estados europeu veio a adquirir. 5 Ademais, Anderson
enftico ao tratar de dissociar sua interpretao de diversos modelos explicativos ou
analticos mais ou menos freqentemente usados em conexo com tais temas: [...] para
se captar o segredo da emergncia do modo de produo capitalista na Europa,
necessrio descartar da maneira mais radical possvelqualquer concepo em que ela
aparea como a simples absoro evolucionria de um modo de produo inferior por ummodo de produo superior, sendo este gerado automaticamente e por inteiro no bojo
daquele atravs de uma sucesso interna do tipo orgnico [...]"; "[...] o advento do modo
de produo capitalista na Europa s pode ser entendido rompendo-se com qualquer
noo puramente linear do tempo histrico [...]"; "contrariamente a todos os supostos
historicistas, o tempo como que se inverte em certos nveis [de novo, uma aluso ao
Renascimento] entre [a antigidade clssica e o feudalismo], de forma a possibilitar a
mudana crtica em direo ao [capitalismo]"; "contrariamente a todos os supostos
estruturalistas, no houve qualquermecanismo automtico de deslocamento do modo de
produo feudal para o modo de produo capitalista, tomados como sistemas contguos e
fechados". Especificamente com respeito ao contraste entre os destinos do feudalismo
europeu e do feudalismo japons, j que este ltimo "no engendra por si mesmo um
capitalismo autctone, Anderson assinala que no havia, portanto, qualquer impulso
intrnseco ao modo de produo feudal que o compelisse inevitavelmente a desdobrar-se
no modo de produo capitalista.6
primeira vista, alm da plausibilidade "substantiva" da tese da "concatenao",
as reservas assim formuladas por Anderson no parecem ser seno a louvvel
4 Ibid, p. 422.5 Ibid., pp.420-22; grifos de FWR.6 Ibid., pp. 420-22; grifos de FWR.
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manifestao de uma postura metodolgica flexvel. Alguns provavelmente vero mesmo
com certo tdio a reiterao da necessidade de evitar erros bem conhecidos, embora o
reconhecimento de tal necessidade por parte de um estudioso marxista possa talvez
ganhar matizes novos luz da crise do marxismo acima mencionada.
No obstante, certas questes surgem se examinamos com mais cuidado o texto
de Anderson e refletimos por um momento. Para comear, a despeito dos protestos contra
determinismos "mecnicos" ou "orgnicos" ou contra "impulsos intrnsecos", Anderson
no se abstm de proposies como a de que "o Imprio Romano [...] era [...]
naturalmente incapaz de uma transio ao capitalismo", ou a de que "o prprio avano do
universo clssico fazia que ele estivesse fadado a uma regresso catastrfica"7
proposies que implicam precisamente, como bvio, a noo de alguma espcie de
determinao intrnseca ou orgnica. Alm disso, trata-se, para Anderson, de tentarexplicarcerto processo (a emergncia do capitalismo na Europa) e no apenas de contar
uma histria, mesmo se aquele processo visto como correspondendo a uma experincia
ou "evento" nico e essa tentativa feita atravs do recurso idia de que um elemento
de necessidade se afirma no processo. Com efeito, Anderson diz explicitamente no
apenas que a concatenao do universo clssico e do feudalismo foi necessria para
produzir a passagem para o capitalismo na Europa, mas tambm que ela foi necessria
para produzir tal passagem no que teve de nico. 8 A indagao que surge, naturalmente,
a de qual pode ser o significado da idia de necessidade particularmente se aplicada
para dar conta de uma experincia julgada singular ou nica quando se pe de lado, de
um s golpe, os modelos de inspirao mecanicista e organicista, "todos os supostos
historicistas" e noes "lineares", bem como todos os supostos estruturalistas": restar
algo, com efeito?
Minha resposta a essa pergunta decididamente negativa. Por certo, claramente
possvel tomar de maneira polmica todas as noes acima destacadas (mecanicismo,
organicismo, historicismo, "linearismo", estruturalismo), identificando-as com distores
ou excessos de abordagens ou "escolas" especficas nas cincias sociais e fazendo delas,
assim, alvos bvios e fceis de crtica. Mas a capacidade de estruturar analiticamente
7 Ibid., p. 420; grifos de FWR.8 Ibid.; veja-se especialmente p. 420.
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nosso objeto de estudo exige o recurso a modelos analticos que por fora tero algo a ver
com pelo menos algumas dessas noes ou talvez, se se entende de maneira adequada a
tarefa do cientista social, em alguma medida com todas elas. E o rechao puro e simples
das posies supostamente expressas por todas elas evidencia antes confuso
metodolgica do que louvvel flexibilidade.
Um pequeno exerccio 1gico com respeito s concluses de Anderson ajudar a
esclarecer minha posio. Sem dvida, Anderson tem fatalmente de levar a cabo certos
"experimentos mentais" para poder pretender fundamentar a tese da concatenao da
antigidade clssica e do feudalismo como condio necessria para o surgimento do
capitalismo na Europa. Assim, ele considera o caso da ocorrncia do feudalismo sem a do
universo clssico, caso este explicitamente tratado por meio da discusso do feudalismo
japons o qual, por si mesmo, no produz o capitalismo. Ele teria tambm deconsiderar, naturalmente, a possibilidade da ocorrncia do universo clssico sem a do
feudalismo. Isso no feito de qualquer forma que pudesse ser considerada minimamente
adequada, de sorte que no fica claro por que, afinal de contas, o capitalismo no poderia
derivar diretamente da antigidade clssica. O que a anlise de Anderson efetivamente
permite dizer sobre a questo gira em torno de dois pontos. Em primeiro lugar, h,
certamente, sugestes persuasivas sobre a maneira pela qual o prprio feudalismo foi
"instrumental" em produzir o capitalismo, tais como a que diz respeito oposio
particularmente dinmica entre a cidade e o campo a ser encontrada no modo de
produo feudal.9 Mas tais sugestes no redundam por si mesmas no argumento
(possvel pelo menos em termos contrafatuais) que seria necessrio a Anderson para
sustentar que a emergncia do capitalismo teria sido impossvel se o feudalismo no
tivesse existido, de acordo com a proposio da necessidade da concatenao para
produzi-lo. Em segundo lugar, h a afirmao, anteriormente mencionada, segundo a qual
o universo clssico estava fadado regresso catastrfica ao feudalismo mas essa
9 0 feudalismo como modo de produo... foi o primeiro na histria a tornar possvel umaoposio dinmica entre a cidade e o campo; o parcelamento da soberania inerente a sua estruturapermitiu que ncleos urbanos crescessem como centros de produo no interior de uma economiaquase totalmente rural, em vez de se constiturem como centros privilegiados ou parasticos deconsumo ou administrao o padro que Marx acreditava ser tipicamente asitico. A ordemfeudal promoveu, assim, um tipo de vitalidade urbana sem paralelo em qualquer outra civilizaoe cujos produtos comuns podem ser vistos tanto no Japo quanto na Europa". Lineages, p. 422(grifo de Anderson).
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afirmao, por sua vez, alm de ser uma formulao alternativa da prpria posio cujos
fundamentos so aqui questionados, na verdade torna circular todo o problema geral. Pois
ela faz da concatenao em si mesma uma necessidade em sentido distinto, ou seja, no
sentido de algo que necessariamente se d: uma vez que se tenha a antigidade clssica,
est-se fadado a ter o feudalismo nessa ordem. No resta, ento, seno a questo de
saber se a memria da antigidade clssica se perder durante o feudalismo ou se manter
viva para ser retomada num momento crucial de Renascimento. No me parece haver
qualquer razo para que tal questo seja vista como mais apropriada a argumentos
contrafatuais do que a que se refere possibilidade de produo do capitalismo pelo
universo clssico na ausncia do feudalismo.
Se raciocinamos nesses termos, torna-se logo claro que uma posio metodolgica
como a de Anderson no pode ser mantida de maneira consistente. Pois a tarefa que elemesmo se prope tem a ver inequivocamente com a apreenso das determinaes internas
de um processo de longo prazo, graas s quais podemos ver seu resultado "final" como
algo distinto de um mero produto do acaso. Em outras palavras, o problema para o
analista o de reconstruir a lgica do processo, o que se pode traduzir em termos de
recuperar aquela "linearidade" que o processo tenha efetivamente exibido. Afinal de
contas, apesar da nfase na idia da concatenao entre a antigidade e o feudalismo,
bem como no aspecto de sua articulao "sincrnica" durante o Renascimento, Anderson
no chega a considerar a possibilidade de que tal concatenao viesse a produzir-se
numa seqncia em que o feudalismo precedesse o universo clssico e o engendrasse.
Mesmo se tomamos sua assero de que "o tempo como que se inverte em certos nveis",
vemos, em primeiro lugar, que ela no pode ser lida seno como aluso metafrica ao
Renascimento e retomada da herana clssica que a ocorre; em segundo lugar, que essa
assero implica ela prpria a idia de que o tempo tem uma direo, ou de que h uma
"veco" no processo de longo prazo. Torna-se claramente secundria, nesse contexto, a
questo de saber se as determinaes que operam de molde a engendrar essa veco ou
lgica poderiam ser adequadamente descritas por meio de expresses tais como
"mecnico" ou "orgnico". Pois, ainda que se admita existirem aspectos da histria ou das
aes humanas (tais como a dimenso subjetiva ou intencional destas) que no so
captadas natural ou prontamente por aquelas expresses ou outras similares, no
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certamente o mero fato de se tomar o feudalismo quer como entidade "fechada" e parte
da antigidade clssica quer como articulando-se com esta na produo do capitalismo
europeu que far a explicao mais ou menos "orgnica" ou "automtica". Naturalmente,
tanto os organismos quanto os mecanismos podem ser, por exemplo, grandes ou
pequenos ou mais ou menos complexos.
Claramente, o ponto crucial do problema da explicao histrica (ou da
explicao de eventos histricos) reside em separar o necessrio do contingente ou
"peculiar" ("nico" etc.).10 Poder-se-ia talvez pretender que este o problema da
explicao cientfica em geral, envolvendo os problemas da causao e da induo de
Hume, tal como discutidos, por exemplo, em Objective Knowledge, de Karl Popper: o
que que permite tratar uma relao entre eventos como sendo uma conexo
necessria?11 Dois elementos parecem estar presentes aqui, ambos considerados porPopper: (a) a idia de alguma espcie de nexo "necessrio" ("mecnico", "orgnico" ou o
que seja) entre os eventos, a qual diria respeito ao problema da causao propriamente; e
(b) um elemento nomolgico, isto , a idia de que os eventos se encontram regularmente
associados, ou de que sua associao corresponde a uma regularidade. Este ltimo
elemento teria a ver com o problema da induo, encerrando a idia de que, se a
regularidade observada expressa uma necessidade, ento ela ter de ocorrer entre as
instncias no observadas da mesma forma que entre as observadas.
certamente suprfluo destacar quo complicado o problema de filosofia da
cincia que a se defronta. Quando nos voltamos para a esfera dos fenmenos histricos e
sociais, esse problema no faz seno tornar-se mais complicado. No pretendo com isso
referir-me necessria ou exclusivamente a questes tais como a da relao entre
explicao e compreenso (Verstehen), embora esta seja, por certo, uma das dimenses
relevantes do problema geral. O que tenho em mente a esta altura antes algo que se
revela muito claramente no texto de Anderson que estivemos examinando. A saber, o
especialista que procura explicar eventos histricos com freqncia enfrenta uma situao
que se mostra precria do ponto de vista das exigncias nomolgicas da explicao
10 Note-se que o prprio Anderson, em certa passagem, formula o problema geral em termosmuito semelhantes. Veja-seLineages, p.8.11 Veja-se Karl R. Popper, Conhecimento Objetivo (Belo Horizonte, Editora Itatiaia, 1975,traduo para o portugus de Milton Amado), pp. 88 e seguintes.
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cientfica, pois freqentemente inexiste a possibilidade de comparar uma srie mais ou
menos numerosa de casos ou instncias e assim inferir pelo menos conjecturalmente a
ocorrncia de uma regularidade. Na verdade, em muitos casos o problema precisamente
o de estabelecer, como vimos com Anderson, a explicao de um evento concebido como
singular ou nico. Nosso especialista assim forado a recorrer comparao de apenas
uns poucos casos (feudalismos europeu e japons), ou s vezes mesmo a produzir
artificialmente, por meio de argumentos contrafatuais, casos contrastantes que
efetivamente no existem (ou no existiram) para serem observados. Diante de tal
situao, o que pretendo propor pode ser enunciado em alguns itens:
(1) Esse estado de coisas encerra, para o historiador ou, em geral, para o cientista
social que se depara com essa situao paradigmal, a necessidade de recorrer ao outro
elemento da idia de explicao cientfica, isto , a noo de alguma espcie de nexo"interno" que "ata" os eventos uns aos outros.
(2) A tendncia em moda nas cincias sociais contemporneas de questionar a
validade de uma concepo supostamente "linear" da temporalidade histrica, vista como
envolvendo determinismos "orgnicos" ou similares, alm de ser inconsistente, redunda
em negar a possibilidade de tal recurso.
3) Finalmente, cumpre destacar o que h de problemtico no contraste entre os
dois elementos ou "lados" da explicao cientfica: ser efetivamente adequado opor
esses dois elementos um ao outro? Ser possvel estabelecer a ocorrncia de nexos
necessrios sem recorrer ao modelo da explicao nomolgica? Inversamente, a idia de
regularidade como fonte de explicao ter qualquer sentido se desvinculada da idia de
um nexo? Qualquer manual de metodologia nos dar resposta negativa a esta ltima
indagao, apontando a possibilidade da correlao espria.
Considerando tais questes do ponto de vista da cincia social e poltica, os
recursos de que esta dispe presentemente me parecem apoiar duas proposies: (a) a de
que a busca de "nexos" internos, conduzida adequadamente, no s no incompatvel
com a estrutura nomolgica da cincia emprico-analtica, como na verdade lhe afim;
(b) a de que essa busca pode vir a permitir a edificao de uma estrutura nomolgica e
emprico-analtica para as cincias sociais de maneira a tornar possvel a considerao
apropriada da dimenso intencionalda ao social e poltica que destacada por muitos
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dos que correntemente opem a abordagem da Verstehen, de um lado, ao modelo
emprico-analtico de cincia, de outro.
II
Alguns eminentes estudiosos contemporneos tm analisado, de diferentes pontos
de vista, os problemas epistemolgicos situados pela dimenso histrica da vida social e
poltica ou pela questo da mudana nas cincias sociais. O breve exame de pontos
sugeridos pelo trabalho de trs deles nos ser til, particularmente tendo em vista que eles
se mostram de grande relevncia para problemas estritamente tericos (por contraste com
metodolgicos) da cincia poltica de nossos dias.
O primeiro nome que tenho em mente o de Jean Piaget. Em geral, parece-meque o trabalho de Piaget representa talvez o caso mais notvel de discrepncia entre a real
importncia metodo1gica e terica para problemas das cincias sociais, por um lado, e o
parco reconhecimento efetivamente obtido entre os cientistas sociais, por outro apesar
de sua grande ressonncia entre psiclogos e especialistas em educao. Do ponto de
vista da questo especifica da histria e das relaes problemticas entre necessidade,
causalidade e contingncia, a aplicao feita por Piaget da distino de Ferdinand de
Saussure entre o "diacrnico" e o "sincrnico" ao campo da explicao sociolgica
(tomando-se "sociolgico" no sentido mais amplo) toca diretamente os problemas
bsicos.12 A dimenso diacrnica tem a ver com problemas de gnese e causalidade (o
problema da causao de Hume), ao passo que a dimenso sincrnica diz respeito a
relaes atemporais e necessrias de implicao 1gica (que podem claramente ser postos
em correspondncia com o problema nomo1gico que Popper designa como o problema
da induo de Hume). Piaget encontra as razes da importncia especial de que esse
dualismo se reveste no caso do pensamento socio1gico tanto no contedo desse
pensamento quanto em sua estrutura formal. No que concerne ao contedo, o dualismo
tem a ver com a natureza da prpria realidade social, que inclui aspectos relativos a aes
efetivas, de um lado, e a normas, valores e signos ou sinais, de outro. Quanto estrutura
formal do pensamento sociolgico, enquanto a explicao da gnese tanto mais causal12 Veja-se especialmente Jean Piaget, La Pense Sociologique, em J. Piaget, Introduction lpistemologie Gntique (Paris, Presses Universitaires de France, 1950, volume III).
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quanto mais se refere s aes efetivas de onde procedem os fatos sociais, as relaes
entre a histria e o equilbrio [implicativo] supem uma anlise distinta das regras, dos
valores e dos sinais, que dependem do campo das implicaes; um equilbrio acabado
acarretaria mesmo sua unificao sob a forma de subordinao do conjunto dos sinais e
dos valores necessidade normativa, o que conduziria, pois, a uma explicao
essencialmente implicativa desse equilbrio.13
Dois pontos merecem destaque com respeito s proposies de Piaget sobre o
problema geral. O primeiro que, apesar da aparente oposio entre uma esfera gentica
ou causal de aes efetivas e uma esfera implicativa de normas, valores e signos, Piaget
no deixa de ressaltar que esta ltima procede, naturalmente, da "ao mesma, executada
em comum e dirigida natureza", ainda quando se trata de fenmenos que ultrapassam o
nvel da causalidade e constituem relaes de implicao.14 Com efeito, s essa posioseria consistente com a orientao epistemolgica geral de Piaget e com as concluses de
suas pesquisas de toda uma vida nos campos da psicologia da inteligncia e da
epistemologia gentica, as quais sustentam o carter "operacional" (ou "operatrio") do
conhecimento em geral ou seja, que mesmo (e talvez especialmente) as formas
prototpicas de relaes de implicao que distinguem a lgica e a matemtica no
constituem seno a transposio, para um plano virtual ou simb1ico, de operaes que
so inicialmente operaes concretas, ou aes reais. Com respeito especificamente
explicao sociolgica, Piaget associa ao reconhecimento do substrato operacional das
normas, valores e signos a proposio de que a explicao sociolgica "oscila" entre a
causalidade e a implicao (e sugere que esses trs tipos de fenmenos regras, valores e
signos , embora pertenam todos, de certa forma, ao reino da implicao, diferem quanto
ao grau em que temos em cada um deles maior ou menor convergncia ou disjuno de
fatores diacrnicos e sincrnicos).15 Mas somos levados a indagar j que todo
conhecimento, mesmo a lgica e a matemtica, operacional no sentido acima indicado
se efetivamente temos aqui algo peculiar explicao socio1gica, e, em caso positivo,
precisamente em que sentido. Pois no seria adequado dizer, luz dos supostos e
13 Jean Piaget, A Explicao em Sociologia, em J. Piaget,Estudos Sociolgicos (Rio de Janeiro,Forense, 1973, traduo para o portugus de Reginaldo di Piero), pp. 49-50.14 Ibid., p. 51.15 Ibid., pp. 51-2.
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verificaes do prprio Piaget, que o desafio ou a meta para qualquer espcie de
explicao ou conhecimento justamente a "passagem do causal ao implicativo" que ele
vincula s "dificuldades inerentes s explicaes sociolgicas"?16
Isso leva diretamente ao segundo ponto que pretendo destacar. No mesmo texto
de onde constam as citaes do pargrafo anterior, Piaget vincula tambm explicitamente,
de maneira sugestiva, problemas de desenvolvimento gentico ou de histria, por um
lado, e questes ligadas s relaes entre a implicao lgica e a ocorrncia do "fortuito"
na vida social, por outro. Afirma ele: "Se a totalidade social constitusse um sistema
integralmente composto, por composio lgica das interaes em jogo, sem interveno
da associao fortuita ou da desordem, evidente que seu desenvolvimento histrico
explicaria o conjunto de suas ligaes presentes, isto , as relaes diacrnicas
determinariam todas as relaes sincrnicas de seus elementos".17 Piaget prossegueassinalando que, ao contrrio, na verdade se d efetivamente a interferncia de
associaes fortuitas ou "estatsticas" nas interaes de qualquer totalidade social, o que
torna extremamente problemtica a pretenso de deduzir com algum grau de mincia um
estado particular de certa coletividade a partir de seus estados anteriores: o fortuito
exclui a passagem unvoca do diacrnico ao sincrnico.18
Essa posio redunda, em minha opinio, num aparente paradoxo com respeito s
relaes entre o histrico e o implicativo ou formal mas um paradoxo que contm
tambm a indicao do rumo no qual cabe buscar a soluo para o problema geral. O
paradoxo pode ser formulado em termos de que, em vez de a histria fornecer uma forma
privilegiada de explicao (como freqentemente sustentam, por exemplo, certos
estudiosos que se pretendem marxistas e acreditam que tal posio acarrete a necessidade
de condenar abordagens "formalistas"), o recurso histria necessrio, por assim dizer,
precisamente pelo que a histria tem de "no-explicativo" ou seja, por nos permitir abrir
espao para o fortuito e o desordenado ou desestruturado. Por outras palavras, a histria
s seria plenamente explicativa precisamente se a realidade social fosse a-histrica,
expressando uma lgica rigorosa. O privilgio usualmente concedido explicao
16 Ibid., p. 50.17 Ibid., p. 50.18 Ibid., p. 50.
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histrica (nos termos de Piaget, dimenso gentica e diacrnica) empreende, com
freqncia sem que se chegue a ter clara conscincia dos problemas a envolvidos, a
fuso daqueles dois aspectos, transpondo a lgica (a dimenso sincrnica) para o plano
diacrnico. Isso no somente legtimo: necessrio e inevitvel. Mas tambm
certamente incompatvel com uma postura que, reivindicando status epistemo1gico
significativo para a histria, simultaneamente se oponha a supostos estruturalistas sem
falar do caso em que tal oposio se estenda a praticamente todo e qualquer princpio
analtico organizador.19
Essa prescrio de buscar algum tipo de formalizao da prpria histria , sem
dvida, bastante vaga e esquiva. Os sentidos que lhe podem ser atribudos variam desde a
mera recomendao de que o trabalho do cientista social historicamente sensvel no
deveria resultar no puro e simples recurso a alguma espcie de histoire vnementiellecomo ltima instncia explicativa at a busca de "leis histricas" no sentido de vrias
filosofias da histria. A mera meno desta ltima abordagem no presente contexto traz
imediatamente lembrana a guerra contra o "historicismo", naquele sentido,
empreendida por Karl Popper em muitos de seus trabalhos, e uma rpida avaliao da
posio de Popper produzir alguns resultados interessantes. 20
Com efeito, Popper rejeita explicitamente, como se sabe, a possibilidade de leis
histricas no sentido indicado, pois as leis so uma prerrogativa exclusiva das cincias
nomo1gicas ou generalizantes, por contraste com as "cincias histricas", que se
interessam pela explicao de eventos especficos ou singulares.21 Isso se liga a sua
posio com respeito ao problema do sentido da histria, o qual, naturalmente, central
19 provavelmente suprfluo acrescentar que essa necessria transposio da lgica para o planodiacrnico tambm incompatvel com a mencionada oposio a abordagens formais muitocomum entre estudiosos marxistas, de acordo com os quais formal se torna com freqnciasinnimo de algum tipo de empirismo estpido, enquanto histrico corresponde a boa dialtica.Para um exemplo dessa concepo mistificada das relaes entre o formal e o histrico, veja-
se Fernando Henrique Cardoso, Classes Sociais e Histria: Consideraes Metodolgicas, emF. H. Cardoso,Autoritarismo e Democratizao (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975).20 Estarei me referindo principalmente a The Open Society and its Enemies (Londres, Routledge& Kegan Paul, 1945) em sua edio brasileira, A Sociedade Democrtica e seus Inimigos (BeloHorizonte: Editora Itatiaia, 1959, traduo para o portugus de Milton Amado). Tambmespecialmente relevante, naturalmente, The Poverty of Historicism (Londres, Routledge &Kegan Paul, 1961).21 Veja-se Popper,A Sociedade Democrtica, p. 487.
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para qualquer filosofia da histria. A resposta de Popper pergunta "Tem a histria um
sentido?", que ele mesmo se prope, inequvoca e enftica: a histria no tem
sentido.22
Contudo, duas observaes interessantes se podem fazer quando se l The Open
Society and its Enemies isto , o mesmo livro de onde so extradas tais citaes. Para
comear, de um ponto de vista normativo ou prescritivo, no h absolutamente lugar para
dvidas sobre quais seriam as preferncias de Popper quanto a certas alternativas bsicas
de organizao sociopoltica, ou, em outras palavras, quanto meta rumo qual qualquer
sociedade particular, ou a organizao poltica da espcie humana em geral, se deveria
dirigir. Tais preferncias correspondem "sociedade aberta" a que alude o titulo do livro
e cujo significado como meta poltica tornado explcito, por exemplo, em termos do que
Popper designa como protecionismo (em resumo, a proteo, por parte do estado, daliberdade de todos contra a agresso), visto como definindo adequadamente o objetivo
legtimo da atividade do estado.23 Na verdade, uma das motivaes importantes da guerra
de Popper contra o historicismo diz respeito ao fato de que este visto como associando-
se, em geral, a um ideal diferente e contrastante, ou seja, o ideal da "sociedade orgnica",
formulado pela primeira vez por Plato.
Decerto, pode-se pretender que essa preferncia ou prescrio nada teria a ver
com a posio metodo1gica de Popper sobre a possibilidade de leis histricas ou sobre a
questo do sentido da histria, pois tal posio supostamente tem apenas um contedo
analtico ou "descritivo". Temos, porm, a segunda das duas observaes acima
anunciadas, a saber, a de que The Open Society and its Enemies contm tambm muitas
afirmaes descritivas que so visivelmente afins idia de um sentido ou significado da
histria. Do ponto de vista das prprias relaes sociopolticas, o advento da sociedade
aberta associado por Popper com a transio, iniciada em Atenas com a "Grande
Gerao" (a gerao da guerra do Peloponeso e um pouco antes), do tribalismo para o
individualismo e para a expanso do que ele designa como "relaes sociais abstratas". 24
Mas, claramente, no se trata aqui apenas de um evento ocorrido em certo momento da
22 Ibid., p.494.23 Ibid., pp. 126-29; vejam-se tambm pp. 190 ss.24 Ibid., pp.190 ss., 202 ss.
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histria e que Popper, atuando como historiador, pode descrever. O que temos antes a
viso de um processo milenar que est longe de chegar ao seu fim e cuja direo Popper
se sente autorizado a apontar. Assim, como ele mesmo afirma ao final da primeira seo
do Capitulo X de The Open Society, "quando dizemos que nossa civilizao ocidental
procede dos gregos, devemos compreender o que isso significa. Significa que os gregos
comearam para ns uma grande revoluo que, parece, ainda est no incio: a transio
da sociedade fechada para a sociedade aberta".25No nvel da histria das idias, Popper
no se furta a fornecer indicaes bem claras do caminho percorrido por esse processo de
transio desde a antigidade at os nossos dias: a Grande Gerao em Atenas (tendo
Scrates como figura dominante), o cristianismo primitivo, Kant, o esprito cientfico
moderno no que tem de melhor, certamente incluindo o prprio racionalismo crtico
popperiano eis alguns dos grandes marcos.26Por certo, o exposto no esgota a discusso feita por Popper dos problemas
metodo1gicos da histria como disciplina (ou das "cincias histricas"), discusso esta
que inclui o reconhecimento dos mritos de pelo menos algumas "interpretaes" ou
"teorias histricas" (por contraste com as teorias cientficas propriamente ditas), bem
como o reconhecimento da existncia e legitimidade, naturalmente, de leissociolgicas
que podem ser aplicadas no trabalho de interpretao histrica. 27 Quando confrontada,
porm, com suas categricas afirmaes sobre a impossibilidade de leis histricas e a
falta de sentido da histria, a viso de um processo milenar de transio da sociedade
fechada para a sociedade aberta no pode seno produzir desconforto intelectual. Alm
disso, se a afinidade entre a preferncia de Popper pela sociedade aberta e a direo por
ele atribuda quele processo de transio em seus enunciados descritivos j parece
curiosa em si mesma, ela se torna tanto mais interessante quando nos damos conta de um
aspecto adicional: o de que o reconhecimento que se permite Popper do papel e do
alcance da interpretao histrica tem a ver com consideraes prticas antes que
cientficas, no obstante o fato de que tal interpretao explicitamente vista como
envolvendo um problema de conhecimento. "Em suma escreve Popper , no pode
25 Ibid., p. 193; traduo modificada por FWR.26 Ibid., Captulo X, especialmente seo IV, e captulo XXIV.27 Ibid., pp. 487-88.
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haver histria do passado tal como efetivamente ocorreu; pode haver apenas
interpretaes histricas, nenhuma delas definitiva; e cada gerao tem o direito de
arquitetar a sua. No s, porm, tm as geraes o direito de armar sua prpria
interpretao; elas tm tambm uma espcie de obrigao de faz-lo, pois h realmente
uma premente necessidade a ser atendida. Queremos saber como nossas dificuldades se
relacionam com o passado, queremos vera linha ao longo da qual poderemos progredir
para a soluo daquelas tarefas que sentimos serem nossas tarefas principais ou que
escolhemos tratar como tal".28
Notemos de passagem como o trecho grifado dessa citao traz inexoravelmente
de volta a questo do sentido da histria, e vamos adiante para assinalar outro interessante
aspecto. Vimos, alguns pargrafos acima, que Piaget aponta as limitaes da histria
como disciplina cientifica na interferncia do fortuito no reino das relaes humanas enas restries correspondentes quanto possibilidade de se obter uma completa
estruturao lgica da totalidade social. Agora vemos Popper, por sua vez, vincular sua
prpria apreciao cientificamente reservada e restritiva do papel da interpretao
histrica (apesar das dificuldades aparentes de certas ramificaes de sua posio) ao
carter prtico desta. Algumas indagaes bvias emergem: que relao existir entre o
"fortuito" de Piaget e o alcance prtico atribudo por Popper histria e interpretao
histrica? De que maneira o ponto de contato a ser provavelmente encontrado entre
ambos afeta o problema geral que aqui nos interessa?
Isso nos traz ao terceiro nome que desejo considerar: o de Jrgen Habermas. As
razes para inclu-lo nesta discusso so talvez bastante evidentes para aqueles que
tenham algum grau de familiaridade com sua obra. Com efeito, Habermas representa uma
corrente de pensamento que se vem dedicando a combater muito daquilo que poderia ser
visto como caracterstico das posies de Piaget e especialmente de Popper. Mas no se
trata de um representante como qualquer outro dessa corrente, e sim de um representante
exponencial, cuja obra redunda numa espcie de clmax da "escola de Frankfurt",
incorporando criticamente o trabalho de seus antecessores num esforo de reflexo a um
s tempo firmemente ancorado na grande tradio filosfica alem e ocidental e
singularmente aberto s preocupaes e aquisies das cincias sociais contemporneas
28 Ibid., pp. 492-93; traduo modificada por FWR.
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em diferentes reas. Alm disso, alguns dos pontos centrais do esforo de Habermas tm
a ver precisamente com as questes que estamos considerando.
De fato, Habermas, que reivindica uma tradio crtica nas cincias sociais capaz
de lidar de maneira adequada com o problema da histria e da mudana, tem como ponto
de referncia crucial em sua obra a distino de Aristteles entre o "tcnico" e o
"prtico", a qual elaborada de maneira detida por Hannah Arendt, especialmente em
The Human Condition.29 Tal distino paralela distino do prprio Habermas entre os
contextos do "trabalho", ou "ao racional-intencional" (isto , "ao instrumental ou
escolha racional, ou a conjuno de ambas"), e "interao", ou ao comunicativa
(interao simblica).30 Do ponto de vista epistemolgico, a separao desses dois
contextos pretende fornecer as bases para a oposio entre duas espcies de
racionalidade, uma tcnica e outra prtica, as quais, por sua vez, so colocadas emcorrespondncia com diferentes tipos de cincia ou conhecimento, vistos como orientados
por diferentes tipos de interesse. Assim, a racionalidade e o interesse tcnicos
corresponderiam s "cincias emprico-analticas", que tm na lgica seu instrumento e
critrio por excelncia. Dois outros tipos de cincia, as "cincias histrico-hermenuticas"
(em forma breve, a histria) e as "cincias crticas" (o marxismo, como crtica da
ideologia, e a psicanlise, como uma espcie de "critica da neurose"), corresponderiam de
um modo geral esfera do conhecimento e do interesse prticos, que no mais se referem
ao reino da instrumentalidade e da eficcia, mas antes ao dos smbolos, das normas
consensuais, da comunicao e da "intersubjetividade do entendimento mtuo".31 H,
porm, uma clusula importante. Deixando de lado alguns problemas de interpretao
que no podem ser tratados aqui, enquanto as cincias histrico-hermenuticas "se voltam
para a possibilidade de um consenso entre sujeitos que agem dentro do arcabouo de uma
concepo de si mesmos que lhes trazida pela tradio",32 no caso das cincias crticas o
29 Hannah Arendt, The Human Condition (Chicago, The University of Chicago Press, 1958).Habermas reconhece explicitamente seu dbito para com Arendt em Jrgen Habermas, Thorie etPratique (Paris, Payot, 1975, traduo para o francs de G. Raulet), volume I, p. 105, nota 5.30 Veja-se Jrgen Habermas, Technology and Science as Ideology, em Habermas, Toward aRational Society (Londres, Heinemann, 1971), especialmente pp. 91-92.31 Ibid., p. 92.32 Jrgen Habermas, La Technique et la Science comme Idologie, (Paris, Gallimard, 1973-1975); citado em Jean-Ren Ladmiral, Le Programme pistmologieque de Jrgen Habermas,
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interesse prtico se torna um interesse "emancipatrio", ou seja, um interesse voltado para
a eliminao das restries e distores que so impostas ao processo de comunicao
por fatores de dominao, ideologia e neurose, os quais, por sua vez, se cristalizam, por
assim dizer, na prpria tradio. A cincia crtica, portanto, segundo o modelo do dilogo
psicanaltico, encontra-se, por definio, orientada no sentido de uma condio futura ou
de um "estado antecipado" (nos termos da psicanlise, a cura), descrito abstratamente por
Habermas em termos de uma "situao de comunicao pura" ou "situao ideal de
discurso". Nesta, os participantes (particularmente o "paciente" ou, no nvel propriamente
socio1gico, aqueles sujeitos coletivos at ento submetidos a relaes de poder e
manipulao ideo1gica) supostamente podem reconhecer de maneira autnoma a
validade de enunciados feitos a seu respeito reconhecimento que depende no apenas de
critrios de verdade, mas tambm, dados os vnculos que o interesse emancipatriomantm com a autonomia e a identidade, de autenticidade. Alm disso, essa condio de
comunicao pura no concebida apenas como uma espcie de resultado final do
intercmbio bem sucedido entre analista e paciente (ou, do ponto de vista da crtica da
ideologia, entre aquelas entidades que possam ser consideradas como sua contrapartida
sociolgica), mas tambm como prescrio metodolgica, que se vale do que Habermas
designa como "teorias reflexivas", isto , teorias voltadas para a emancipao, tais como
o marxismo e a teoria psicanaltica (desde que sejam ambos despojados dos ingredientes
"positivistas" ou "cientificistas" que tanto Marx quanto Freud so acusados de terem
incorporado a sua obra). Em outras palavras, o avano rumo ao estado antecipado de
comunicao transparente (explicitamente descrito, em sua forma extrema, como uma
suposio contrafatual, se bem que necessria) somente pode dar-se atravs de um
processo que, mesmo enquanto processo, se esforce por realizar a comunicao
"competente" vale dizer, que seja ele prprio to isento quanto possvel de poder,
ideologia e "racionalizaes" no sentido psicanaltico.33
introduo a J. Habermas, Connaissance et Intert (Paris, Gallimard, 1976, traduo para ofrancs de G. Clmenon).33 Alm dos trabalhos citados acima, vejam-se tambm Jrgen Habermas, Legitimation Crisis(Boston, Beacon Press, 1975, traduo para o ingls de Thomas McCarthy); e Jrgen Habermas,Logica delle Scienze Sociali (Bologna, Il Mulino, 1970, traduo para o italiano de A. Santucci).
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Essa compacta apresentao das idias de Habermas talvez no possa fazer-lhes
inteira justia. Ela suficiente, porm, para me permitir destacar algumas observaes de
grande relevncia quanto relao das idias de Habermas com as idias anteriormente
discutidas de Piaget e Popper. Para comear, o "estado antecipado" de que fala Habermas
pode claramente ser tomado, de certo ponto de vista, como afim acepo
correspondente noo de uma "filosofia da histria" que acima se atribuiu prescrio
encontrada pelo menos de maneira implcita em Piaget ou seja, a prescrio de
formalizar a histria e de apreender sua lgica, embora esse objetivo possa se revelar
frustrante, segundo Piaget, dada a interferncia do fortuito. Por outras palavras, a
concepo habermasiana do "estado antecipado" pode ser colocada em paralelo com a
questo do sentido da histria que surge com nfase nos trabalhos de Popper e que obtm
deste, como vimos, uma soluo ambgua, mesmo se nos atemos ao plano descritivo ouanaltico. Ditas as coisas dessa maneira crua e direta, isso certamente no parece
corresponder ao que Habermas procura fazer. O prprio Habermas provavelmente veria
tal proposio como envolvendo uma leitura "positivista" de suas idias, ou como
contendo o mesmo ingrediente objetivista que ele assinala no pensamento de Marx. E
creio que seria fcil mostrar que o aspecto tratado por Piaget em termos da interferncia
do fortuito na histria corresponde posio central atribuda ao aspecto subjetivo (e
intersubjetivo) da conduta humana na concepo "prtica" da histria ou das "cincias
histrico-hermenuticas" que temos em Habermas vale dizer, os aspectos em que
Habermas pretenderia ter a marca distintiva de sua abordagem parecem ser aqueles
devido a cuja atuao a formalizao ou estruturao da histria sugerida por Piaget no
seria efetivamente possvel.
No obstante, este , sem dvida, um ponto muito problemtico do pensamento de
Habermas. Desde que seria impossvel empreender aqui sua discusso minuciosa, limito-
me a assinalar o contorcionismo intelectual (que beira, na verdade, o desfrutvel ou o
pattico, conforme o leitor se disponha a contempl-lo) a ser encontrado em certa
passagem da introduo edio alem de 1971 de Teoria e Prtica. Nessa passagem,
dedicada ao problema da relevncia e aplicabilidade de uma "teoria reflexiva" nas
condies prprias da luta poltica, Habermas comea por admitir a necessidade de uma
"aplicao objetivante" da teoria, de maneira a possibilitar a utilizao dos recursos
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propiciados pela racionalidade instrumental, os quais so requeridos pelas exigncias de
eficcia que caracterizam a luta ou a interao estratgica. Contudo, no redundaria essa
admisso em expor a teoria reflexiva contaminao pelo "cientificismo" ou pelo
"positivismo", ou em priv-la de traos essenciais concepo habermasiana das cincias
crticas distinguidas pelo dilogo "reflexivo"? Sem dvida e Habermas recua,
transformando (no mais do que trs frases adiante) a admisso da necessidade da
aplicao objetivante da teoria reflexiva na renncia a qualquer pretenso de relevncia
de tal teoria em condies em que a ao estratgica se encontre envolvida. Mas isso no
resultar em transpor a teoria reflexiva para o plano de uma utopia inteiramente ftil, a
prpria emancipao no depender crucialmente de estratgia, no claro que o preo
daquela renncia demasiado alto? Certamente e eis Habermas, algumas poucas linhas
abaixo, a afirmar de novo que "o uso objetivante de uma teoria reflexiva no ilegtimoem todos os casos... apenas para advertir imediatamente que "tais interpretaes
objetivantes no podem pretender, por si mesmas, funo justificadora", e que "a ao
estratgica daqueles que tomaram a deciso de lutar [...] no pode ser [...]
satisfatoriamente justificada por meio de uma teoria reflexiva".34 De qualquer modo, no
que diz respeito ao ponto central em discusso no momento, o reconhecimento que
explcito, afinal de contas de alguma forma de relevncia da teoria reflexiva para a ao
estratgica se d por referncia a "um fim buscado: o de um estado de emancipao
universal [...] [As] interpretaes [dos diversos aspectos da luta que tem lugar na
atualidade] so retrospectivas do ponto de vista daquele estado antecipado. Elas abrem,
em conseqncia, uma perspectiva para a ao estratgica e para as mximas de acordo
com as quais as decises so justificadas nas discusses que precedem a ao mesma".35
As implicaes de alguns aspectos dessa posio de um ponto de vista mais amplo
sero consideradas adiante. Destaquemos ainda, aqui, duas observaes. Em primeiro
lugar, a maneira pela qual, a despeito do diferente status epistemo1gico reivindicado
para a histria por dois pensadores supostamente divergentes tais como Habermas e
Popper, podem-se apontar neles convergncias surpreendentes quanto a solues e
dificuldades. Assim, Habermas, comprometido numa duradoura guerra contra o
34 Habermas, Thorie et Pratique, op. cit., pp. 64-65.35 Ibid., p. 66.
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"positivismo" e expressamente hostil a reduzir o carter hermenutico do trabalho
historiogrfico a uma estrutura nomo1gica de pensamento,36 de alguma forma resolve o
problema do sentido da histria mediante a postulao de um estado "antecipado" e
contrafatual de comunicao pura e de emancipao universal, o qual , a um tempo,
expresso da viso "prtica" do conhecimento histrico e fonte de dificuldades
epistemo1gicas. E Popper, batendo-se vigorosamente por uma concepo emprico-
nomolgica da cincia da qual decorre uma posio de suspeita perante a histria como
disciplina cientfica, exibe igualmente uma viso tanto normativa quanto "descritiva" da
histria como movimento rumo "sociedade aberta" viso que se encontra tambm
ligada a preocupaes de ordem prtica e que, quaisquer que sejam os esforos explcitos
de Popper relativamente distino entre teorias cientficas e "interpretaes histricas",
no se ajusta bem, para diz-lo de maneira moderada, a sua posio epistemo1gica. Emsegundo lugar, tanto as concepes de Habermas quanto as de Popper a respeito, embora
associando-se com preocupaes prticas e normativas, hermenuticas ou interpretativas,
subjetivas e relativistas, no deixam de conter uma resposta questo piagetiana da
relao entre a presena do fortuito e a meta da "formalizao" ou "estruturao" 1gica
da histria ou seja, no deixam de envolver a transposio da lgica para o nvel
diacrnico. Cabe extrair disso algum significado?
III
Os pontos suscitados na discusso da seo precedente, atravs do prprio carter
tortuoso de algumas das solues propostas por destacados pensadores, parecem-me
articular-se com importantes insights no nvel epistemo1gico, os quais tm
conseqncias imediatas para a teoria da poltica e levam a abordagens provavelmente
mais adequadas do problema da histria e da mudana. Infelizmente, terei de ser talvez
demasiado breve em determinados pontos, a fim de poder pelo menos tocar em diversos
aspectos relevantes do assunto.
Podemos principiar pelo que me parece ser o inquestionvel fracasso de
Habermas em sua proposta epistemolgica central, isto , a tentativa de distinguir
36 Veja-se especialmente Habermas,Logica delle Scienze Sociali, op. cit.
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nitidamente entre os contextos do trabalho e da interao e de estabelecer assim as bases
para a distino entre diferentes tipos de racionalidade e de conhecimento. Tal fracasso
pode ser evidenciado com recurso a duas linhas relacionadas de argumentao.
A primeira diz respeito s verificaes de Piaget e seus associados no campo da
sociopsicologia da inteligncia (lastreadas em dcadas de abundantes e "pedestres"
pesquisas) e s suas conseqncias para as teses de Habermas. Pois o trabalho de Piaget
tem como uma de suas concluses cruciais o carter duplo ou ambivalente da lgica o
instrumento e critrio por excelncia, em Habermas, da racionalidade e do interesse
tcnicos e das cincias emprico-analticas. Assim, a lgica , por um lado, como vimos
de passagem anteriormente, a transposio para um plano virtual ou simb1ico de
operaes que so inicialmente operaes concretas; ela preserva necessariamente,
portanto, sua caracterstica operatria e instrumental. Por outro lado, contudo, ela intrinsecamente constituda e mesmo definida por elementos de natureza social e
comunicacional que pertenceriam ao contexto intersubjetivo da interao
resumidamente, a igualdade, a reciprocidade e o equilbrio do intercmbio intelectual.
Tais elementos permitindo tratar a lgica como a "moral do pensamento", na expresso
em nada metafrica de Piaget correspondem de maneira bastante estrita ao modelo da
"comunicao competente" que Habermas vincula ao interesse emancipatrio e visualiza
na "situao ideal de discurso", distinguida por ser isenta de distores derivadas da
dominao, da ideologia ou da neurose.
Para fornecer apenas uma breve indicao da maneira pela qual se d essa
correspondncia, recordemos as constataes de Piaget com respeito "veco" que leva
da heteronomia autonomia e do egocentrismo reciprocidade e solidariedade no
desenvolvimento psicogentico das normas intelectuais e morais. Com efeito, segundo
Piaget, nos estdios iniciais desse desenvolvimento a criana se encontra "centrada" em si
mesma ainda que seja capaz de envolver-se em intercmbio interindividual, condio esta
designada como "egocentrismo" por Piaget e definida sucintamente em um de seus textos
como "uma indiferenciao relativa do ponto de vista prprio e do ponto de vista do
outro".37 H ntima relao entre o carter egocntrico dos intercmbios interindividuais
de tais fases prematuras, de um lado, e, de outro, o carter figurativo e intuitivo logo,
37 Jean Piaget, As operaes Lgicas e a Vida Social, em Piaget,Estudos Sociolgicos , p. 179.
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pr-operatrio das formas de pensamento que lhes so prprias, particularmente ao
perodo que se estende do aparecimento da linguagem at os 7 ou 8 anos de idade. Alm
disso, essas formas egocntricas de pensamento so complementares relativamente
heteronomia e imitao dos adultos: no apenas a criana oscila entre o egocentrismo e
a imitao, mas ambos resultam da indiferenciao entre o "eu" e os outros. 38 Por
contraste, o desenvolvimento do pensamento operacional e 1gico, com suas
caractersticas de ser isento de contradio e reversvel e de levar conservao dos
conjuntos, tem lugar em estreita relao com progressos no processo de socializao e
com a capacidade, por parte da criana, de cooperar com os outros, de entender as
relaes de reciprocidade e de coordenar atual ou virtualmente uma pluralidade de
pontos de vista. Nesse processo, a aquisio do sentido da identidade prpria e das
condies necessrias autonomia por parte de determinado indivduo so apenas umaface da medalha, a outra face sendo a capacidade crescente de reconhecer a autonomia
dos outros. 39
A segunda linha de argumentao acima anunciada diz respeito posio
extremamente ambgua ocupada, no pensamento de Habermas, pela categoria
correspondente ao estratgica, a qual, em suas relaes com os contextos do trabalho
e da interao, tem implicaes que esto longe de ser adequadamente exploradas por
Habermas. Assim, a ao estratgica desempenha um papel claramente intermedirio
entre trabalho e interao, pois, sendo ao instrumental e "racional-intencional"
(trabalho), tambm inequivocamente interao e comunicao. De fato, a idia mesma
de ao estratgica ressalta o fato de que ela aquela forma de ao instrumental
(orientada por critrios de eficcia, de relao entre meios e fins) que tem lugar num
contexto social. As dificuldades de Habermas nesse ponto (s quais as contores
anteriormente mencionadas a propsito da relevncia da teoria reflexiva para a luta
poltica se acham obviamente relacionadas) se mostram de maneira muito clara nas
oscilaes e mesmo contradies a serem encontradas quando se confrontam diferentes
passagens de vrios de seus trabalhos. Assim (deixando de lado a ordem cronolgica de
38 Ibid., p. 188.39 Ibid., especialmente p. 181, para os aspectos intelectuais do problema. Para os aspectos morais,veja-se As Relaes entre Moral e o Direito, em Piaget, Estudos Sociolgicos, especialmentepp. 227-28.
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publicao), em "Tcnica e Cincia como Ideologia" vemos a ao estratgica
assimilada ao instrumental ou ao "trabalho"; em Teoria e Prtica, por sua vez, h o
reconhecimento da presena de elementos comunicacionais nela, mas tal reconhecimento
se faz num contexto de denncia do recurso idia de estratgia como correspondendo a
um desgnio de racionalizao tcnica e, em ltima anlise, de controle ciberntico da
sociedade; finalmente, em Lgica das Cincias Sociaispodemos encontrar a afirmao
enftica, contra o "positivismo", do carter comunicacional que distinguiria mesmo a
ao estratgica.40
A concluso a ser extrada da leitura paralela de Habermas e Piaget me parece
simples e ntida: no dispomos, na verdade, seno de um conceito de racionalidade, e ele
tem sempre a ver, em ltima anlise, com relaes entre fins e meios. Por outras palavras,
a noo de racionalidade tem fatalmente uma caracterstica operacional, envolvendosempre a idia de uma ao guiada por consideraes de eficcia, vale dizer, a idia de
um sujeito que estabelece objetivos para sua prpria ao e busca realiz-los por meio da
"manipulao" das condies ambientais. E isso se aplica tanto ao campo "prtico" da
"interao" quanto ao campo "tcnico" do "trabalho": no somente a interao no
sentido das verificaes de Piaget o contexto ltimo e inelutvel do comportamento
racional, ainda quando este se exerce sobre a "natureza", mas tambm no h qualquer
razo para que no se veja a comunicao mesma como ao orientada por fins e com
respeito qual se apresenta igualmente, portanto, um problema de eficcia. Tal problema
o de assegurar comunicao efetiva e desembaraada, pura ou competente, na expresso
muito sugestiva do prprio Habermas precisamente o que cabe solucionar na
40 Vejam-se Habermas, Tehnology and Science as Ideology, pp. 91-92; Thorie et Pratique,volume II, p. 104; Logica delle Scienze Sociali, pp. 85-86. Com relao a este ltimo trabalho(Lgica das Cincias Sociais), Gabriel Cohn chamou minha ateno, nos debates do simpsio emque este texto foi originalmente apresentado, para o fato de que Habermas o desautorizou. Tenho
dois comentrios a respeito, alm de registrar meu agradecimento pela informao. O primeiro o de que essa desautorizao me parece, de certo ponto de vista, em grande medida irrelevante.Qualquer grande pensador do passado, se tivesse a oportunidade de reavaliar sua prpria obra nosdias de hoje, provavelmente desautorizaria partes importantes dela; isso no nos impede, porm,de tom-los pelo que dizem e discuti-los assim como no deixamos de examinar criticamentemesmo os trabalhos que este ou aquele pensador tenha deliberadamente evitado publicar, desdeque obtenhamos acesso a eles. O segundo comentrio o de que, apesar de tudo, a desautorizaono faz seno corroborar fortemente a proposio que sustento no texto com respeito svacilaes de Habermas em pontos importantes.
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"situao ideal de discurso" liberada de todas as barreiras derivadas de relaes de poder
sob diferentes formas.
IV
Essas proposies, reunindo uma inequvoca concepo de racionalidade em
termos de relaes entre meios e fins no comportamento de um sujeito atuante, o
reconhecimento da natureza a um tempo instrumental e intersubjetiva ou normativa da
prpria lgica e o da posio intermediria da ao estratgica entre a ao instrumental
(trabalho") e a ao comunicativa ("interao"), levam, acredito, a uma concepo da
poltica da qual decorrem conseqncias profcuas. A distino habermasiana entre
trabalho e interao tem como substrato a idia de que o trabalho ou a ao instrumentaldiz respeito s relaes dos homens (os sujeitos atuantes) com a natureza (os objetos,
num sentido estrito), enquanto a interao tem a ver com as relaes entre sujeitos como
tal. Ora, as proposies acima permitem ver que a questo decisiva para a anlise
sociopoltica reside no fato de que os prprios homens aparecem como objeto ou
"natureza" aos olhos de outros homens do ponto de vista de pelo menos alguns de seus
objetivos ou propsitos em qualquer momento dado e a noo de ao ou interao
estratgica envolve precisamente a idia de que uma das condies indispensveis para se
alcanar eficcia (pois a ao estratgica ao instrumental) a de que cada participante
no processo de interao seja capaz de colocar-se no lugar do outro e de reconhecer o
outro como sujeito autnomo, bem como de considerar-se a si prprio como possvel
objeto de manipulao por parte do outro. Em outros termos, se deixamos de lado os
objetos materiais propriamente, a questo bsica gira em torno do fato de que aquilo que
fim ou meio, ou que ser tomado como objeto ou sujeito, ou parcialmente como objeto
e sujeito, no est dado socialmente a no ser como resultado provisrio de um processo
concreto e complexo de interao que em qualquer momento envolve trabalho vivo e
reificado, tradio, luta e estratgia, e tambm ao "crtica" e emancipatria e
comunicao no sentido estrito que a expresso adquire em Habermas.
Algumas das conseqncias disso podem ser brevemente indicadas como segue.
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1. A possibilidade de dar tratamento adequado questo da mudana tomada em
termos de "racionalizao". Naturalmente, a essa questo podem ser reportados tanto o
problema do sentido da histria, de Popper, quanto a idia de um estado antecipado, de
Habermas e Habermas efetivamente utiliza o termo racionalizao nesse contexto,
contrapondo a idia de "racionalizao tcnica" (crescimento das foras produtivas) de
"racionalizao" no campo da interao simb1ica (emancipao, "individuao",
extenso da comunicao isenta de dominao).41 Dada a importncia deste ponto para
nossa discusso geral, parece apropriado examin-lo um pouco mais de perto.
Para comear, tome-se a observao bvia de que existe a possibilidade de se falar
de cadeias de fins e meios. Conquanto bvia, essa observao de interesse na medida
em que permite salientar que a adeso a uma concepo instrumental ou operatria de
racionalidade, ao invs de representar um obstculo considerao da mudana social emtermos de racionalizao (como sugerido por alguns textos de Habermas dedicados ao
problema da tecnocracia),42 na verdade vem a ser um requisito para o tratamento
adequado dos problemas correspondentes. Pois, mesmo se tomamos a racionalizao no
sentido da marcha rumo instaurao de um processo de comunicao isento de
dominao (no qual venha a se tornar possvel, para recobrar alguns temas
habermasianos, a expresso autntica de identidades individuais atravs da assuno
lcida e livre de sua articulao tornada no alienante ou deformante com uma ou outra
identidade coletiva em sua profundidade histrica), ela supe inevitavelmente, alm das
condies sociopsicolgicas que permitam a esse ideal surgir como aspirao efetiva de
determinados sujeitos sociais, tambm aquelas condies estratgicas que assegurem
viabilidade aos interesses correspondentes em sua confrontao com interesses de
dominao existentes, sem falar das condies materiais que servem de substrato tanto a
um quanto a outro desses dois conjuntos de condies. H, assim, naturalmente,
problemas instrumentais em sentido estrito e problemas estratgicos envolvidos na
atualizao de qualquer processo concreto que tenha como objetivo a implantao de algo
que se assemelhe em algum grau a um estado de comunicao desimpedida. De outro
lado, descrever em termos de "racionalizao" um processo de tal natureza supe, por sua
41 Veja-se Habermas, Technology and Science as Ideology, p. 93.42 Por exemplo, Technology and Science as Ideology.
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vez, a possibilidade de se estabelecer a conexo "instrumental" entre o estado de
comunicao desimpedida buscado e objetivos mais "altos" (digamos, os que se
expressam na idia de "individuao" e de realizao individual plena) aos quais serve
esse estado. Pois nada impede que se concebam objetivos distintos para o processo de
desenvolvimento sociopoltico (por exemplo, o objetivo de uma sociedade plenamente
solidria e "orgnica" em que tivssemos a pura "administrao das coisas", ou o ideal
tribal ou platnico da sociedade "fechada" que combatido por Popper) que no se
ajustariam bem a um estado de comunicao capaz de garantir irredutivelmente a
autonomia radical de cada um, e a implantao desse estado no poderia ser descrita
como "racionalizao" luz de tais objetivos. Tomando o problema de um ponto de vista
algo diferente, disso decorre com bastante clareza que a mera vigncia de um ideal de
racionalidade em termos de fins e meios no suficiente para fundar a denncia dasociedade tecnocrtica, pois tal ideal no impede por si mesmo e em princpio a discusso
dosfins a serem buscados atravs da organizao da atividade instrumental. O que no
incompatvel com o reconhecimento da possibilidade da ocorrncia emprica de uma
sndrome em que a mentalidade "tecnocrtica" concorra a compor uma ideologia
"funcional" para certas formas de dominao.
2. A possibilidade de lidar de maneira adequada com o problema crucial do
sujeito coletivo e da intencionalidade da ao enquanto ao coletiva. Isso deriva
diretamente do decisivo papel intermedirio desempenhado pela ao estratgica,
podendo ser enunciado em termos de que o problema da constituio de sujeitos coletivos
gira em torno, em primeiro lugar, da operao de condies socio1gicas gerais que de
alguma forma determinem (ou tornem mais ou menos provvel) com quem certo sujeito
individual ir se identificar ou se "comunicar" e diante de quem agir
"instrumentalmente" (sem deixar de reconhecer que ocorrem aqui variaes em funo de
circunstncias diversas ou de aspectos diversos dos objetivos ou intenes do sujeito); e,
em segundo lugar, da interferncia da prpria ao estratgica com a operao de tais
condies socio1gicas gerais. Um ponto adicional a merecer destaque o de que, na
medida em que se coloque a questo da participao consciente de qualquer sujeito
individual ou social no processo sociopoltico, o problema que se apresentar a ele
enquanto sujeito um problema que cabe descrever com muita propriedade como de
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deciso estratgica: tal problema se traduziria em termos de como (dados certos
condicionamentos biogrficos e histricos que lhe so em ampla medida impostos e que
concorrem para definir sua identidade e um correspondente ideal de autonomia)
estabelecer fins para sua ao na situao que lhe toca viver, deciso que inclui como
aspecto relevante a definio de seus parceiros e adversrios, isto , daqueles em
conjunto com os quais procurar exercer poder (agir eficazmente) sobre o ambiente,
incluindo a natureza, e daquelessobre os quais procurar exercer poder, integrando-os de
algum modo "natureza".
3. A possibilidade de superar ou sintetizar duas formas aparentemente antagnicas
de abordar o objeto da cincia poltica, as quais parecem igualmente plausveis e
importantes. Limito-me a recordar, a respeito, o contraste entre uma viso aristotlica da
poltica tal como elaborada por Hannah Arendt, com seus componentes comunicacionais,libertrios e igualitrios, que so retomados e depurados na concepo habermasiana do
estado de comunicao pura ou da situao ideal de discurso; e a perspectiva
supostamente "realista" a ser encontrada seja nos manuais correntes de cincia poltica,
onde a viso aristotlica substituda pela nfase no papel exercido por relaes de poder
ou dominao na prpria definio da poltica, seja em clssicos tais como Carl Schmitt,
para quem "a especifica distino poltica, qual possvel referir as aes e os motivos
polticos, a distino entre amigo e inimigo", no conceito de inimigo entrando "a
eventualidade de uma luta efetiva".43 Em vez da estril confrontao entre essas
concepes divergentes, a nfase nas interrelaes complexas entre os elementos
pertinentes ao trabalho e interao, ou "instrumentalidade" e "comunicao", e em
especial no papel singularmente importante desempenhado pelos aspectos
correspondentes ao estratgica, promete propiciar a conciliao entre a viso "nobre"
e grega da poltica como a esfera de comunicao entre iguais e o reconhecimento da
importncia do poder nas relaes polticas importncia esta que se revela no apenas
na concepo do poder como um problema no que diz respeito sua distribuio entre
sujeitos que agem, mas tambm no que concerne ao poder concebido como instrumento
para a realizao conjunta de objetivos compartilhados que resultam do processo mesmo
de comunicao. Como bastante claro, temos aqui igualmente a promessa de alcanar
43 Carl Schmitt,Le Categorie del Politico (Bologna, Il Mulino, 1972), pp. 108 e 115.
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eventualmente a conciliao entre desgnios prtico-normativos, de um lado, e "realismo"
e rigor analticos, de outro e o fato de que os dois "lados" de instrumentalidade e
comunicao estejam inscritos e coexistam dialeticamente, como vimos com Piaget, na
natureza operacional da prpria atividade intelectual madura o fundamento decisivo de
tal esperana.
V
A concepo da poltica sumariamente caracterizada acima no pode seno trazer
mente os esforos tericos atualmente empreendidos pela corrente que se tornou
conhecida como a teoria ou abordagem da public choice (ou a "nova economia poltica",
como tambm se props cham-la).44 Com efeito, essa corrente, que procura aplicar osinstrumentos analticos tradicionalmente associados com a cincia econmica ao campo
da anlise poltica (compartilhando nisso de tendncia mais ampla que ocorre tambm
entre soci1ogos e outros especialistas que no se ocupam particularmente da poltica),
mostra duas caractersticas relacionadas que se revestem de grande interesse para a
presente discusso. Em primeiro lugar, ela tem como ponto de partida uma concepo
inequivocamente "tcnica" ou "instrumental" (operatria) de racionalidade, que diz
respeito a relaes de fins e meios e a problemas de eficcia. Em segundo lugar, a
categoria da ao ou interao estratgica se acha incrustada no prprio ncleo da
estrutura conceitual e analtica com que ela opera. Em conseqncia, essa linha de
trabalho me parece merecer grande ateno, representando talvez a linha mais promissora
na cincia poltica contempornea contanto que se saiba incorporar sua fora analtica
sem incorrer em certos excessos que o exame crtico dos resultados por ela obtidos at
agora revela.
Comecemos este breve comentrio de alguns aspectos das promessas e problemas
da teoria dapublic choice com duas observaes cruciais do ponto de vista da articulao
44 A expresso nova economia poltica utilizada em James M. Buchanan e Gordon Tullock,The Calculus of Consent (Ann Arbor, The University of Michigan Press, 1962). certamentedesnecessrio fornecer aqui amplas referncias a respeito da abordagem da public choice.Mencionarei apenas Anthony Dows,An Economic Theory of Democracy (Nova York, Harper andRow, 1957), e Mancur Olson, Jr., The Logic of Collective Action (Cambridge, Mass., HarvardUniversity Press, 1965).
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entre problemas epistemo1gicos e tericos. A primeira se refere preocupao expressa
por Habermas (e o mesmo se aplicaria, em geral, aos autores que tendem a favorecer a
"compreenso", por contraste com a "explicao") de que o sujeito como tal no se perca
numa perspectiva objetivista ou "behaviorista", na qual a ao humana fosse reduzida ao
mero comportamento estimulado. Isso se pode traduzir na assero de que a
intencionalidade da ao tem que ser recobrada ou retida, ou de que os objetivos ou
propsitos do sujeito que age devem ser levados em considerao. O ponto a ser
destacado a respeito que falar de intencionalidade, ou do agente ou ator como sujeito,
implica, por si mesmo, falar de racionalidade. Pois supor que possa haver a busca de fins
ou propsitos sem racionalidade, vale dizer, sem a avaliao autnoma das conexes que
se estabelecem entre os fins buscados e os meios existentes nas condies ambientais,
seria reduzir a ao s condies prprias do simples comportamento estimulado oucondicionado, nas quais precisamente desaparece o sujeito como tal. Portanto, o suposto
de racionalidade, nos termos exatos da perspectiva da public choice, no apenas no
incompatvel com os requisitos bsicos da abordagem da compreenso ou Verstehen,
mas antes uma condio para a adeso conseqente a esta ltima embora subsista o
problema de como descobrir quais so os fins ou propsitos em jogo em qualquer
situao especfica, no qual se tocar de passagem adiante.
A segunda observao complementa a primeira de maneira reveladora. Note-se
que o problema do pargrafo anterior tem a ver com o aspecto subjetivo das aes e
interaes humanas, problema este que claramente afim a consideraes de ordem
prtica, normativa ou relativstica e o ponto central das proposies recm-enunciadas
o de que o suposto de racionalidade instrumental ele prprio necessrio para se lidar de
maneira adequada precisamente com aquele aspecto. Ora, o suposto de racionalidade
instrumental tambm o recurso bsico que permite abordagem da public choice
recorrer ao construtivismo 1gico e operar de maneira dedutiva, donde decorrem algumas
importantes conseqncias metodolgicas: (a) a possibilidade de se empreender um
esforo de construo terica que seja a um tempo empiricamente controlvel, pois
afirmativo e proposicional e no meramente definicional (como tem tradicionalmente
ocorrido com os numerosos "esquemas conceituais" ou "taxonomias" tpicos das cincias
sociais), bem como logicamente integrado e em princpio cumulativo, ao invs da
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disperso caracterstica das chamadas "teorias de alcance mdio"; (b) em conseqncia, a
possibilidade de se colocar eventualmente em termos mais apropriados o perene e
exasperante problema das relaes entre teoria e pesquisa. De qualquer forma, da
perspectiva mais ampla descrita acima em termos da articulao entre questes
epistemo1gicas e tericas, a observao a destacar a de que o contraste entre o ponto
de vista da "estruturao 1gica" e o ponto de vista inclinado a recuperar o aspecto
prtico, subjetivo, interpretativo ou mesmo "fortuito" o qual, naturalmente, tem a ver
acima de tudo com as decises autnomas de sujeitos que agem parece perder muito de
sua agudeza. E eu sugeriria que a promissora convergncia assim obtida parece ser
tambm uma convergncia entre o "nomo1gico" e o "causal" (na medida em que este
ltimo se refere idia de alguma espcie de "nexo" efetivo entre eventos): pois a
"estruturao 1gica" que o suposto da racionalidade torna possvel no campo da cinciasociopoltica se baseia ela prpria, claramente, nos nexos" entre cadeias mais ou menos
complexas de fins e meios a serem supostamente encontrados nas aes efetivas de
sujeitos que agem e nas complexas interferncias recprocas de tais aes umas com as
outras.45
Naturalmente, isso est longe de significar que todos os problemas estejam
automaticamente resolvidos. Para comear, o recurso noo instrumental de
racionalidade nos trabalhos da "nova economia poltica" com freqncia se associa a
certa maneira de entend-la de cujas aplicaes s questes polticas resulta o puro e
simples desaparecimento da sociedade como tal. Isso certamente se deve ao papel
desempenhado por economistas profissionais no desenvolvimento da abordagem, ou
referncia implcita, e talvez em muitos casos inadvertida, a uma forma convencional de
entender a cincia econmica e suas tarefas, a despeito do intento consciente de fazer
corresponder o comportamento "econmico" ao comportamento "racional" tout court,
independentemente da arena ou esfera em que se desenvolva. Seja como for, os trabalhos
45 Uma ilustrao interessante das confuses que prevalecem a respeito do problemametodolgico geral de que aqui se trata encontra-se em trabalho de J. Donald Moon. Refiro-me aThe Logic of Poltical Inquiry: A Synthesis of Opposed Perspectivas, constante do volume I,Political Science: Scope and Theory, de Fred I. Greenstein e Nelson W. Polsby (eds.), Handbookof Political Science (Reading, Mass., Addison-Wesley Publishing Co., 1975). Moon fazcorresponder o contingente, o causal e o nomolgico, que so todos contrastados com olgico, o qual, por sua vez, posto em correspondncia com o prtico, visto como referindo-se precisamente ao, intencionalidade e ao comportamento orientado por fins.
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da abordagem dapublic choice se tm distinguido por um "individualismo metodolgico"
com freqncia marcado por extremada postura antissociolgica: seu paradigma analtico
tipicamente envolve uma viso da sociedade em que esta se dissolve numa espcie de
"estado de natureza" onde no h instituies, no h histria, no h vnculos
intergeneracionais, no h lealdade ou solidariedade, mas apenas indivduos capazes de
calcular em funo de interesses individuais que interferem uns com os outros ou seja,
o puro reino da estratgia. Essa postura, contudo, no inerente ao recurso noo
instrumental de racionalidade no campo dos fenmenos polticos, com respeito ao qual o
desafio e a promessa consistem precisamente como se indicou de passagem acima, a
propsito do problema dos sujeitos coletivos e da intencionalidade da ao enquanto ao
coletiva em captar a maneira pela qual a tomada de deciso consciente e a ao
estratgica se articulam com condies sociolgicas e institucionais que esto,naturalmente, sempre presentes. Acrescente-se que o esforo nessa direo a nica
maneira de evitar um trplice erro de razes profundas nos debates metodolgicos das
cincias sociais: (a) o postulado do indivduo isolado da fico contratualista; (b) o
postulado utilitarista que v na sociedade como um todo o nico sujeito coletivo ou
unidade coletiva, o que redunda nos modelos "orgnicos" ou "cibernticos" que
preocupam tanto a Popper quanto a Habermas; (c) finalmente, o postulado da constituio
automtica e no-problemtica de sujeitos coletivos "parciais" tais como as classes
sociais, postulado do qual freqentemente se valem muitos dos que questionam sua
adoo para o caso da sociedade como um todo. Ademais, essa concatenao do
estratgico e do socio1gico tambm o sitio em que cabe buscar a resposta para a
indagao, acima mencionada, de quais so os fins em jogo em qualquer situao
particular: tal resposta supe que estejamos em condies de dizer quais so os sujeitos
relevantes, quer individuais ou coletivos, na situao em questo.
Outro problema de crucial importncia diz respeito distino entre, de um lado,
a interao estratgica em sentido mais estrito ou seja, o sentido em que ela
corresponde mais de perto ao modelo de uma luta ou de certos jogos simples de estratgia
de que trata tipicamente a teoria dos jogos e, de outro lado, as conseqncias agregadas
e freqentemente no-intencionais das aes de numerosos agentes, cada qual buscando
realizar seus prprios objetivos. Na verdade, o nmero de agentes ou atores envolvidos
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no , como tal, um elemento essencial na definio da 1gica da situao, como
evidenciado pelo conhecido jogo do dilema do prisioneiro. No obstante, o caso de
grandes nmeros constitui o caso tpico em que aquela 1gica produz seus efeitos. Como
quer que seja, o problema dos efeitos agregados ou "perversos" foi estudado h alguns
anos de maneira cuidadosa por Raymond Boudon em Effets Pervers et Ordre Social,
apesar de ter uma histria j longa na literatura das cincias sociais: como mostra
Boudon, antecedentes podem ser encontrados no trabalho de autores tais como Rousseau,
Mandeville, Adam Smith e Marx, alm de ter sido precursoramente discutido por Merton,
j em nossos dias, e tratado de maneira explcita e elaborada pelo prprio Popper.46 No
presente contexto, uma das razes para salientar o problema dos efeitos agregados
precisamente o fato de que eles constituem o reino por excelncia das "leis socio1gicas"
vistas por Popper como aplicveis s interpretaes histricas e reconstruo da "lgicada situao".47 De fato, Popper chega mesmo ao ponto de sustentar que "a tarefa principal
das cincias sociais tericas" consiste justamente em "determinar as conseqncias
sociais no-intencionais das aes humanas intencionais".48
Sem entrar a discutir qual seria propriamente a tarefa principal, observemos
apenas que o caso de situaes em que temos efeitos "perversos", resultantes da
agregao ou composio das aes de numerosos atores individuais ou coletivos, pode
ser tratado como um caso particular das "externalidades" que decorrem para uns do
comportamento de outros; que tais externalidades incluiriam tambm o caso de situaes
em que as conseqncias no intencionais tm lugar na interao entre grupos menos
numerosos de atores ou mesmo entre dois atores, e nas quais a interferncia recproca dos
objetivos uns com os outros produzida, de maneira mais ou menos "casual", pela mera
"co-presena" dos diversos agentes ou grupos; e que ambos os casos acima podem ser
46 Veja-se Raymond Boudon, Effets Pervers et Ordre Social (Paris, Presses Universitaires deFrance, 1977); Robert K. Merton, The Unanticipated Consequences of Purposive Social
Action,American Sociological Review, 1936, vol. I, pp. 894-904; quanto a Popper, vejam-se ASociedade Democrtica (por exemplo, pp. 316 ss.) e Conjecturas e Refutaes (Braslia, Editorada Universidade de Braslia, 1980, traduo para o portugus de Srgio Bath), especialmente pp.147 ss.47 Veja-se, por exemplo,A Sociedade Democrtica, captulo XVI.48 Karl R. Popper, Conjectures and Refutations (Londres, Routledge & Kegan Paul, 1969), talcomo citado em Boudon,Effets Pervers, op. cit., p. 5. Veja-se tambm Conjecturas e Refutaes,p. 151.
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Mas h algo mais. Se atentamos para os traos atribudos por Popper a seu modelo
da sociedade aberta ou "abstrata", vemos que eles se referem a coisas tais como relaes
pessoais livres, no mais determinadas pelas contingncias de nascimento; a uma forma
conseqentemente nova de individualismo; predominncia de laos espirituais sobre
laos de outra natureza; ao intercmbio e cooperao. difcil ver como tal modelo
poderia efetivamente distinguir-se da viso habermasiana de um estado emancipado de
"individuao" e de comunicao isenta de dominao assim como fcil perceber
como ambos esses ideais podem ser aproximados da concepo piagetiana dos requisitos
sociais (e, na verdade, morais) das formas maduras de intercmbio intelectual. Sugiro que
tais convergncias no apenas esto longe de ser casuais, como tambm encerram a
possibilidade de se alcanar um modelo reconhecidamente normativo da vida poltica que
seja, no obstante, analiticamente derivvel, de maneira rigorosa e persuasiva, da prpriadefinio da poltica concebida como aquela atividade humana em que coexistem
necessariamente, de um lado, interesses parciais a serem realizados por meio da ao
instrumental (o que implica um ideal de autonomia) e, de outro lado, a fatal comunicao
determinada pelo fato de que tais interesses correspondem a uma pluralidade de sujeitos
(o que implica o ideal de solidariedade e coeso e de aquiescncia esclarecida, se no se
pretende pr de lado o ideal de autonomia). Isso pode ser ligado, naturalmente, questo
da mudana como racionalizao e pode talvez tornar menos desprovida de sentido a
questo do sentido da histria do que Popper aparenta pretender.
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