Post on 11-Oct-2020
MORTE: O ÚLTIMOMURO DA VIDA?
O mistério e a curiosidade em relação à morte andam de mãosdadas com medos, especulações, crenças e tabus. Sabe-se
que a morte é a única certeza da vida, masao longo da vida, onde a finitude é um dado adquirido,
existem muitos muros a ultrapassar.
TEXTO DE CLAUDIA PINTO
morte continua a
ser um mistério, do
ponto de vista cien-
tífico. filosófico ou
humanístico. Aca-
bando por estar li-gada a um conjun-
to de ideias - umas realistas, outras mais
relacionadas com mitos, a ideia de finitu-de desencadeia sentimentos difíceis de
gerir nos seres humanos que começama percecionar a falta de controlo. O tema
tem "atormentado a consciência humanadesde que há memória e perpetuou desde
sempre a procura de um elixir para pro-longar a vida, a chamada Pedra Filosofal
que os alquimistas da Idade Média tan-to procuraram. Olhando para a história,
a expectativa de vida mundial ao nascer
era aproximadamente de 40 anos em 1900,47 anos em 1940 e 61 anos em 1980", co-
meça por explicar Luís Baquero, cirurgiãocardiotorácico e diretor do Heart Center
do Hospital da Cruz Vermelha Portugue-sa (HCVP), em Lisboa.
E ainda que não se conheça evidên-cia da ciência ligada à morte, o mistério
continua a fazer parte dos nossos dias.
Teorias, mitos, medos, tentativas de jus-
tificações... nada parece ser muito concre-to. No entanto, sabemos que a esperançamédia de vida tem vindo a aumentar so-bretudo devido a três fatores, enunciados
por Luís Baquero: "O descobrimento de
fármacos, como a penicilina, a estrepto-micina e algumas vacinas, a divulgaçãoe a disponibilidade de tecnologias médi-cas e de saúde pública para toda a popu-lação, inclusive nos países mais pobres, e
a mudança no status da saúde que prati-camente se tornou um direito universal
para todos."
E por mais que se saiba tudo isto, a ideia
da morte, não raras vezes, assusta. "Pas-
samos do fascínio à tentativa de ignorarque somos tão mortais quanto os outros",
explica Magda Oliveira, psicóloga clínicae da saúde do Hospital CUF Porto. O mo-do como se vive a morte também depen-de de um conjunto de aspetos, desde logo,"a cultura da sociedade onde a pessoa se
insere e as crenças religiosas ou a ausên-
cia delas (como por exemplo, a espiritua-lidade) têm um papel muito importante na
maneira como se lida com a morte e como
se gerem os processos de luto", sublinha.
De muro em muroO primeiro muro a escalar, segundo Mag-da Oliveira, é precisamente esta acei-
tação de que a vida é finita e que, pormais dolorosa que seja a ideia de que a
"O nosso organismo tem limites do ponto de vista biológicoque podem ser alargados de forma artificial, no entanto, cadavez mais, existe a consciência geral da importância de manteruma boa qualidade de vida em detrimento de uma vida longa",explica Luís Baquero, diretor do Heart Center do Hospitalda Cruz Vermelha Portuguesa, em Lisboa.
existência física como a conhecemos tem
um fim, é o mais inevitável que existe.
O segundo muro já está relacionado com
a perda e envolve um grande sofrimento
e dor. "Apesar disso, é um processo nor-
mal. Lidar com a morte pressupõe apren-der a tolerar a dor para poder processá-
-la, assimilá-la e dar espaço às emoções
e aos pensamentos", refere. Neste muro
mental, existe ainda o desafio de evoluir
no processo de luto. "Por isso, vemos me-
dicação excessiva nesta fase e as pessoas
a envolverem-se em situações de uma es-
pécie de anestesia emocional ou de um
comportamento dissociativo como se as
coisas não acontecessem e como se ser
uma pessoa mais resiliente fosse sinóni-
mo de ser uma pessoa intocável do ponto
de vista emocional", explica.A esperança média de vida mundial
supera os 75 anos de idade e aproximada-mente "20% da população dos países in-dustrializados celebra o 90' aniversário
de vida", constata Luís Baquero. Além da
genética, do meio em que vivemos e dos
estilos de vida que escolhemos, os avan-
ços tecnológicos têm permitido um diag-nóstico precoce de doenças e os novos
tratamentos farmacológicos têm desem-
penhado um papel crucial. "Exemplos,como o tratamento do VIH, a quimiotera-
pia contra o cancro, os fármacos imunos-
supressoresquepermitematransplanta-
ção de órgãos com sucesso, etc, têm tido
um impacto muito significativo neste au-
mento da expectativa de vida. Contudo,
embora a vida se prolongue, os doentes
permanecem doentes, se]a pela doença
em so ou por outras decorrentes do pró-
prio envelhecimento biológico do nosso
organismo." E acrescenta: "O nosso orga-
nismo tem limites do ponto de vista bio-
lógico que podem ser alargados de forma
artificial, no entanto, cada vez mais exis-
te a consciência geral da importância de
manter uma boa qualidade de vida em
detrimento de uma vida longa."
Miguel Castanho, professor catedráti-
co da Faculdade de Medicina da Univer-
sidade de Lisboa e investigador princi-pal do Instituto de Medicina Molecular,
explica que todos os seres vivos são for-
mados por células e que as mesmas são
compostas por moléculas, como proteí-nas, glícidos ou lípidos. "Esta fronteira é
fascinante: como pode um conjunto de
matéria inerte (as moléculas) juntar-see formar algo vivo? É como se peças de
I.ego conseguissem formar algo vivo ao
associarem-se entre si", esclarece.
Comparando cada célula dos seres vi
vos auma casa, se tudo for deixadoao aca-
so, a mesma ficaria naturalmente desar-
rumada. Manter a casa em funcionamento
sustentado exige autorregulação através
do gasto de energia em tarefas específicas
de arrumação e de limpeza da casa, diz o
professor. "Enquanto estiver viva. a célu-
la fará o mesmo: consumirá energia (sob
a forma de nutrientes) para contrariar a
tendência natural de aumento da desor-
dem, evitando assim entrar num estado de
desregulação em que perca a sua suslen
tabilidade. Neste sentido, a vida é uma lu-
ta com grande dispêndio de energia con-
tra a desordem. Quando a luta para, a de-
sordem impõe-se, as moléculas reagemlivremente entre si e chega-se a um es-
tado imutável de completa estabilidade.
É este o ponto em que as células estão mor-
tas", conclui.
Miguel Castanho,investigadorem medicinamolecular, explicacomo é fascinanteum conjuntode matéria inerte- as moléculas -poder juntar-se eformar algo vivo.
"Passamos do fascínio à tentativade ignorar que somos tão mortaisquanto os outros", explica MagdaOliveira, psicóloga clínica eda saúde do Hospital CUF Porto.
O confronto com a perdaO medo de morrer é sempre um murodifícil de contornar. Do lado dos mé-dicos, é mandatório informar os ris-cos durante a cirurgia ou a convales-
cença e as possíveis complicações quepodem surgir. "Mas há uma grandemaioria de doentes que, mais do que a
morte, receiam ficar incapacitados pa-ra manter uma vida normal e retornar
ao que eram antes da cirurgia. O factode ficarem dependentes, de não pode-rem retomar a vida normal é, às vezes,mais aterrador do que a própria mor-te", salienta o cirurgião cardiotorácico.Mas será a morte o último muro das nos-
sas vidas? A psicóloga Magda Oliveiraconsidera que sim mas apenas para os
doentes. "Para os familiares, muitas ve-zes, é o primeiro muro a ultrapassar ou
um entre muitos", diz. Fazendo a analo-
gia com os saltos em barreiras, onde ca-da etapa é como um muro que tem de se
ultrapassar, obstáculo a obstáculo, con-sidera que "a morte deve fazer parte da
educação desde a infância de forma a
evitar tabus", salienta.
Perante uma situação de luto, a suges-tão da psicóloga passa por "não patologi-zar respostas que são naturais através de
uma intervenção farmacológica preco-ce. Há que trabalhar com as pessoas. Ador e o sofrimento fazem parte e é sau-dável viver essas emoções", acrescenta.De igual modo, não se devem saltar eta-
pas nos funerais. "Os rituais associados,nomeadamente velórios de dois dias, ser-vem para dar tempo à pessoa para se ex-
por e confrontar com a perda e para o cé-rebro ir encaixando", diz Magda Oliveira.
Depois, a própria pessoa que sofreu uma
perda tem de se permitir tolerar a dor e
o sofrimento, mas também os da própriasociedade, uma vez que existem murosculturais em relação à morte.
No Hospital CUF Porto existe um pro-cesso de luto antecipatório que envol-ve tarefas com os doentes e com os seus
familiares até porque, da parte dos últi-mos, podem surgir sentimentos de im-potência por não conseguirrm lidar com
o sofrimento do outro. É então que sur-
gem os muros seguintes e que quem so-fre uma perda tem de aprender a supe-rar. Por exemplo, "aceitar que aquela
pessoa morreu, que isto é irreversívele não se volta atrás; saber processar, tera capacidade de voltar a orientar a nos-sa vida para as tarefas e as rotinas de-
pois de uma perda... No fundo, voltar-mos a alinhar-nos para integrar a mor-te numa trajetória de vida que continua
a correr. Outras vezes, temos de desco-brir a capacidade de investir os afetos
que tínhamos por aquela pessoa nou-tras pessoas e noutros projetos", conclui
Magda Oliveira. •