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8/17/2019 Milton Santos - Por uma outra globalização [LIVRO].pdf
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l ton
S a n t o s
or uma outra
globalização
do pensamento único
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2 8 4 5 2
CIP-Brasil. Catalogaçao-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Santos, Milton
S236p Por uma outra globalização: do pensamento único
6 ed.
à
consciência universal / Milton Santos. - 6* ed. - Rio
de Janeiro: Record, 2001.
ISBN 85-01-05878-5
1. Globalização. 2. Civilização moderna. 3.
Política econômica.
4.
Ciência política.
I.
Título.
CDD
-
303.4
00-0220 CDU
-
316.42
Copyright © 2000 by Milton Santos
Capa: Campos Gerais/Washington Lessa
Direitos exclusivos desta edição reservados pela
DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A.
Rua Argentina 171 - Rio de Janeiro RJ - 20921-380 - Tel.: 2585-2000
Impresso no Brasil
ISBN 85-01-05878-5
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Rio de Janeiro RJ - 20922-970
EDITOR
AFILIADA
Sumário
Prefácio 11
I INTRO DUÇÃO GERAL 17
1 . O mundo como ábula, como perversidade e como possibilidade
O mundo tal como nos fazem crer: a globalização como fábula
O mun do como é: a globalização com o perversidade 19
O mun do como pode ser: uma outra globalização 20
I I A PROD UÇÃO DA GLOBALIZAÇÃO 2 3
Introdução 23
2 .
A
unicidade técnica
2 4
3 . A convergência dos momentos 27
4 . O motor único
2 9
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6
M I L T O N S A N T O S
5. A cognoscibilidade do planeta 3 1
6 . Um período que é uma crise 3 3
I H
U M A G L O B A L IZ A Ç Ã O P E RV E R SA 3 7
Introdução 3 7
7. A tirania da informação e do dinheiro e o atual sistema ideológico
3 8
A v io lência da in formação 38
Fábulas 40
A v io lência do d inheiro 4 3
As percepções fragmentadas e o d iscurso ún ico do mundo 4 4
8.
Competitividade, consumo, confusão dos espíritos, globalitarismo
4 6
A competit iv idade, a ausência de compaixão 4 6
O co n su m o e o s eu d esp o t i sm o 48
A in formação to ta li tária e a confusão dos esp íritos 5 0
D o i m p er i a l ism o a o m u n d o d e h o j e 5 1
Globa litarismos e to ta l i tarismos 53
9 . A violência estrutural e a perversidade sistêmica 5 5
O dinheiro em estado puro 56
A competit iv idade em estado puro 57
A potência em estado puro 58
A perversidade sistêmica 5 8
1 0 . Da política dos Estados à política das empresas
6 1
Sistemas técn icos , s istemas f i lo só ficos 6 2
Tecnociência , g loba l ização e h istória sem sentido 6 4
^~^A s empresas g loba is e a morte da po l í t ica .67
P O R U M A O U T R A G L O B A L IZ A Ç Ã O
1 1 . Em meio século, três definições da pobreza 6 9
A pobreza inclu ída 70
A marg ina l idade 70
A pobreza estrutura l g loba l izada 72
O papel dos in telectua is 74
1 2 . O que azer com a soberania 7 6
I V
O T E R R IT Ó R IO D O D IN H E IR O E D A F R A G M E N TA Ç Ã O 7 9
Introdução
7 9
1 3 .
O espaço geográfico: compartimentação e ragmentação 8 0
A compartime ntação: passado e presente 82
Rapidez, f lu idez, fragmentação 83
C o m p et i t i v i d a d e versus so l idariedade 85
1 4 . A agricultura científica globalizada e a alienação do território
8 8
A demanda externa de raciona l idade 89
A c i d a de d o ca m p o 9 1
1 5 . Compartimentação e ragmentação do espaço: o caso do rasil 9 2
O papel das lóg icas exógenas 9 2
As d ia lét icas endógen as 9 4
1 6 . O território do dinheiro
1 1 6
D e f i n i ç õ e s 1 1 6
O d inheiro e o território : s i tuações h istóricas 9 7
Metam orfoses das duas ca tegorias ao longo do tempo 9 8
O d inheiro da g loba l ização 1 00
Situações reg iona is 1 02
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8
M I L T O N S A N T O S
Efeitos do d inheiro g loba l 1 04
E p í l o g o 1 0 4
1 7. Verticalidades e horizontalidades
1 0 5
As vertica l idades 1 05
As horizonta l idades 1 08
A b u sca d e u m sen t i d o 1 1 1
1 8 . ^4 esquizofrenia do espaço 1 1 2
Ser cidadão num lugar 1 1 3
O cotid iano e o território 1 1 4
Um a pedagog ia da ex istência 1 1 6
V L IM IT E S A G L O B A LIZ A ÇÃ O P E RV E R SA 1 1 7
Introdução
1 1 7
1 9 . A variável ascendente 1 1 8
2 0 . Os limites da racionalidade dominante
1 2 0
2 1 . O imaginário da velocidade 1 2 1
Velocidade: técn ica e poder 1 22
D o relóg io despótico às tempora l idades d ivergentes 1 24
2 2 .
J u s t - i n - t i m e v e r s u s
o cotidiano
1 2 6
2 3 . Um emaranhado de técnicas: o reino do artifício e da escassez
D o artif ício à escassez 1 28
D a e sca s sez a o en t en d i m en t o 1 3 0
P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O
2 4 . Papel do s pobres na produção do presente e do uturo 1 3 2
2 5 . A metamorfose das classes médias
1 3 4
A i d ad e d e o u ro 1 3 5
A escassez chega às classes médias 1 37
U m d a d o n o v o n a p o l ít i ca 1 3 9
V I A TR A N SI Ç ÃO E M M A R C HA 1 4 1
Introdução
1 4 1
2 6 .
Cultura
popular
período popular
1 4 2
Cultura de massas, cu ltura popular 1 43
A s co n d i çõ es em p í r i cas d a m u t a çã o 1 4 5
A p reced ên c i a d o h o m em e o p er í o d o p o p u la r 1 4 7
2 7.
A centralidade da periferia
1 4 9
L i m i t e s à co o p era çã o 1 4 9
O d esa f io a o S u l 1 5 1
2 8 . A nação ativa, a nação passiva 1 5 4
Oca so do projeto naciona l? 1 55
Alienação da nação a tiva 1 55
Conscie ntização e riqueza da nação passiva 1 57
2 9 . A globalização atual não é irreversível
1 5 9
A disso lução das ideo log ias 1 59
A pertinência da utop ia 1 6 0
Outr os usos possíveis para as técn icas a tua is 1 6 3
Geografia e aceleração da h istória 1 6 5
U m n o v o m u n d o p o ss í v e l 1 6 7
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M I L T O N S A N T O S
Prefácio
Este l ivro quer se r uma re f lexão independente sobre o nosso
t e mp o , um pe n s a me n t o s ob r e o s s e us f unda m e n t os ma t e r i a is e
po l í t i c os , uma von t a de de e xp l i c a r o s p r ob l e ma s e do r e s do
mu nd o a tua l . Ma s, apesar das di f iculdades da e ra prese nte , q ue r
também ser uma mensagem por tadora de r azões obje t ivas para
p r os s e gu i r v i ve ndo e l u t a ndo .
O t r aba lho inte lec tua l no qua l e le assenta é f ruto de nossa
dedicação ao entendimento do que hoje é o espaço geográf ico,
mas é também t r ibutá r io de out ras r ea l idades e disc ipl inas aca
dê mi c a s .
Dife rentemente de out ros l ivros nossos , o le i tor não encon
trará aqui l istagens copiosas de citações. Tais l ivros enfocavam
questões da soc iedade , verdade i ras teses , i s to é , demonst rações
sustentadas e ambic iosas , di r igidas sobre tudo à seara acadêmi
ca , levando, por i sso, o autor a f azer , ao pequeno mundo dos
colegas , a concessão das bibliograf ias copiosas . Todo m un do sabe
que es ta se tornou quase uma obr igação de scholarship, já q ue a
academia gosta mui to de c i tações , quantas vezes oc iosas e a té
mesmo r idículas . Sem dúvida , es te l ivro também se di r ige a es
tudiosos , mas sobre tudo dese ja a lcançar o vas to mundo, o que
3 0 . A história apenas começa
1 7 0
A humanidade como um b loco revo lucionário
A no v a co n sc i ên c i a d e s er m u n d o 1 7 2
A grande mutação contempor ânea 1 73
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1 2
M I L T O N S A N T O S
dispensa a obr igação cer imonia l das r e fe rênc ias . Não quer i sso
dizer que o autor imagine haver soz inho redescober to a roda ;
sua exper iênc ia em di fe rentes momentos do século e em diver
sos pa íses e cont inentes é também a exper iênc ia dos out ros a
qu em leu ou escuto u. Mas a or igina l idade é a inte rpre tação o u a
ênfase própr ia , a forma ind ividua l de com bina r o que exis te e o
que é v i s l umbr a do : a p r óp r i a de f i n i ç ã o do que c ons t i t u i uma
idéia.
Este l ivro r esul ta de um longo t r aba lho, á rduo e agradáve l .
A maior ia grand e de seus capí tulos é inédi ta em sua forma a tua l .
E é t a mbé m , de a l gum mo do , um a r e e s c ri t u r a de a u l a s , c on f e
rências , ar tigos de o rna is e revistas, entrevista s à míd ia, cada qua l
ofe recen do u m níve l de discurso e a r espec t iva di f iculdade . S o
mos mui t í s s i mo g r a t os a t odos o s que c o l a bo r a r a m pa r a e s s e
diá logo e a té me sm o àque les que descon hec iam es ta r par t ic ipan
do de uma t roca . Dent re os pr imei ros , quero des tacar os a tua is
c ompa n he i r os do p r o j e t o a c a dê mi c o a mbi c i os o que , de s de 1983 ,
ve nho c onduz i ndo no D e pa r t a me n t o de G e ogr a f i a da U n i ve r
s i da de de S ã o P a u l o : mi n ha i nc a ns á vel c o l a bo r a dor a , d ou t o r a
Mar ia Laura Si lvei ra , qu e leu o conjun to d o manu scr i to , e a pro
fessora dou tora Ma r ia Angela Faggin Pere i ra Le i te , ass im co mo
a s dou t o r a nda s A dr i a na Be r na r de s , C i l e ne G ome s e M ón i c a
A r r oyo e o s me s t r a ndos E l i z a A l me i da , F á b i o Con t e i , F l á v i a
G r i mm, L í d i a A n t ong i ova nn i , M a r c os X a v i e r , P a u l a Bor i n e
Sora ia Ramos. Ao Depar tamento de Geograf ia da Faculdade de
Fi losof ia , Le t ras e Ciênc ias Humanas que me acolhe e es t imula
e par t icula rmente ao Labora tór io de Geograf ia Pol í t ica e P lane
j a me n t o T e r r i t o r i a l e A mbi e n t a l ( L a bop l a n ) , c oo r de na do po r
me u ve l ho a mi go A r me n M a mi gon i a n , vã o , t a mbé m, me us a g r a
de c i me n t os . E s t e s t a m bé m i nc l ue m os c o l e gas M a r i a A dé li a A
P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O
1 3
de Souza , Rosa Este r Rossini e Ana Clara Tor res Ribe i ro, com
quem colaboro há cerca de 20 anos .
A os c o l a bo r a dor e s g r a t u i t o s , e nc on t r a dos e m i núme r a s v i
a ge ns pe l o pa í s ou pa r t i c i pa n t e s de c on f e r ê nc i a s , de ba t e s e
c o n g r e s s o s , s o u t a m b é m d e v e d o r p e l a s s u a s i n t e r v e n ç õ e s e
s uge s t õe s . S ou g r a t o à
Folha de S. Paulo
e a o
Correio Braziliense
pe l a a u t o r i z a ç ã o pa r a r e pub l i c a ç ã o de a r t i gos me us na s ua
f o r ma o r i g i na l ou mod i f i c a da . A i nda no c a p í t u l o dos a g r a de
c i me n t os , uma pa l a v r a e s pe c i al vai à ge ógr a f a F l áv i a G r i m m ,
que t e ve a pa c i ê nc i a de a c o l he r o s c a ns a t i vos d i t a dos de ma
nuscr i to de que resul ta es te l ivro. A ass is tênc ia da geógrafa
P a u l a B o r i n o u t r a v e z m o s t r o u - s e v a l i o s a . S o u , t a m b é m ,
mui t o s e ns í ve l a o a po i o r e c e b i do do Cons e l ho N a c i ona l de
D e s e n v o l v i m e n t o C i e n t í f i c o e T e c n o l ó g i c o ( C N P q ) , d a F u n
d a ç ã o d e A m p a r o à P e s q u i s a d o E s t a d o d e S ã o P a u l o
( F A P E S P ) . E s s a s a gê nc i a s nã o c on t r i bu í r a m d i r e t a m e n t e pa r a
e s t e t r a ba l ho , ma s a p r oduç ã o i n t e l e c t ua l é s e mpr e un i t á r i a ,
u m a o b r a o u p e s q u i s a s e n d o s e m p r e u m s u b p r o d u t o d a s d e
m a i s . T a m b é m , c o m o s e m p r e , o e s t í m u l o r e c e b i d o d e m i n h a
mul he r , M a r i e H é l è ne , f o i mu i t o p r e c i os o .
Ao cont rá r io de um autor f r ancês Joê l de Rosnay, que , no
prefácio ao seu livro Le Macroscope, suger iu aos seus le i tores co
meçar a le i tura por onde quisessem, devo fazer uma out ra ad
ver tênc ia . Se a lguém le r inic ia lmente ou separadamente os pr i
mei ros capí tulos , pode considera r o autor pess imis ta ; e quem
prefe r i r os úl t imos, poderá imaginá- lo um ot imis ta . Na rea l ida
d e ,
o que bus camo s foi , de um lado, t r a ta r da r ea l idade ta l co m o
ela é , a inda que se most re pungente ; e , de out ro lado, suger i r a
rea l idade ta l como e la pod e vi r a se r , a inda que para os cé t icos
nosso va t ic ínio a tua l apareça r i sonho.
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M I L T O N S A N T O S
A ênfase cent ra l do l ivro vem da convicção do pape l da ide
ologia na produção, disseminação, r eprodução e manutenção da
globa l ização a tua l. Esse pape l é, também , um a novidad e do nosso
tem po . Daí a necess idade de ana l i sar seus pr inc ípios fun dam en
tais,
apontando suas l inhas de f r aqueza e de força . Nossa ins is
tênc ia sobre o pape l da ideologia der iva da nossa convicção de
q u e ,
diante dos mesmos mater ia i s a tua lmente exis tentes , tanto
é poss íve l cont inuar a f azer do plane ta um infe rno, conforme
no Bras i l es tamos ass is t indo, como também é viáve l r ea l iza r o
seu contrário. Daí a relevância da polít ica, isto é, da ar te de pen
sar as mu dança s e de c r ia r as condições para torná- las e fe t ivas .
Al iás , as t r ansformações que a his tór ia ul t imamente vem mos
t r a ndo pe r mi t e m e n t r e ve r a e me r gê nc i a de s i tua ç õe s ma i s p r o
missoras . Podem obje ta r -nos que a nossa c rença na mudança do
ho me m é injus ti f icada . E se o que es t iver mu dan do for o mu nd o?
E s t a mos c onve nc i dos de que a muda nç a h i s t ó r i c a e m pe r s
pe c t i va p r ov i r á de um mov i me n t o de ba i xo pa r a c i ma , t e ndo
como a tores pr inc ipa is os pa íses subdesenvolvidos e não os pa
í ses r icos ; os deserdado s e os pob res e não os opule ntos e out ra s
c lasses obesas ; o indivíduo l iberado par t íc ipe das novas massas
e nã o o ho me m a c o r r e n t a do ; o pe ns a m e n t o l i v r e e nã o o d i s c u r
so único.
Como acredi tamos na força das idé ias — para o bem e para
o mal — nesta f ase da his tór ia , em f i l igrana aparecerá como
constante o pape l do inte lec tua l no mundo de hoje , i s to é , o
pa pe l do pe ns a m e n t o l i v re . P o r i s s o , nos p r i me i r o s p r o j e t o s de
redação havia o intui to de dedicar um capí tulo exc lus ivo à a t i
v i da de i n t e l e c t ua l ge nu í na . T oda v ia a c he i me l ho r d i s c u t i r e s s e
pa pe l e m d i f e r e n t e s mome n t os da r e da ç ã o , s e mpr e que a oc a
sião se levantava.
P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O
1 5
O l ivro é formado de se is par tes , das qua is a pr imei ra é a
i n t r oduç ã o . A s e gunda i nc l u i c i nc o c a p í t u l o s e bus c a mos t r a r
como se deu o processo de produção da globa l ização. Este tema
já havia s ido t r a tado de a lguma forma em out ras publ icações e
l ivros meus. A te rce i ra par te , formada por se is capí tulos , busca
expl ica r po r que a globa l ização a tua l é perver sa , fundad a n a t i r a
nia da informação e do dinhe i ro, na compet i t ividade , na confu
s ã o dos e s p í r i t o s e na v i o l ê nc i a e s t r u t u r a l , a c a r r e t a ndo o
desfa lec imento da pol í t ica f ei ta pe lo Estado e a imposição d e um a
po l í t i c a c oma nda da pe l a s e mpr e s a s . A qua r t a pa r t e mos t r a a s
r e la ç õe s ma n t i da s e n t r e a e c onom i a c on t e mpor â n e a , s ob r e t ud o
as finanças , e o te r r i tór io . Esta par te é const i tuída d e se is capí tu
los,
dos qua i s o ú l t i mo pode r i a t a m bé m s e inc l u i r na pa r t e s e
guinte , pois , por meio da noção de esquizof renia do te r r i tór io ,
most ramos como o espaço geográf ico const i tui um dos l imi tes
a essa globalização perversa. É essa idéia de limite à história atu
a l que se impõe na quinta par te , em que são most rados ao mes
mo t e m po os de s c a mi nhos da ra c i ona li da de domi na n t e , a e me r
gê nc i a de nova s va r i á ve i s c e n t r a i s e o pa pe l dos pobr e s na
prod ução d o presente e do futuro. A sexta par te , uma espéc ie de
conc lusão, é dedicada ao que imaginamos se r , nes ta passagem
de século, a t r ansição em m archa . Aqui , os temas ver sados r ea l
çam as mani fes tações po uco es tud adas do pa ís de ba ixo, desd e a
cul tura a té a pol í t ica , r ac ioc ínio que se apl ica tamb ém à próp r ia
per i f e ria do s i s tema capi ta l is ta mund ia l , cuja cent ra l idade ap re
sentamos como um novo fa tor dinâmico da his tór ia . E , exa ta
mente , porque esses a tores , e f icazes mas a inda pouco es tuda
d o s ,
s ã o l a r ga me n t e p r e s e n t e s , que a c r e d i t a mos nã o s e r a
globa l ização a tua l i r r ever s íve l e es tamos convenc idos de que a
his tór ia univer sa l apenas começa .
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I N T R O D U Ç Ã O G E R A L
1. O
mun do como fábula como perversidade e
como possibilidade
V i v e m o s n u m m u n d o c o n fu s o e c o n f u s a m e n t e p e r c e b i d o .
H a v e r i a n i s t o u m p a r a d o x o p e d i n d o u m a e x p l i c a ç ã o ? D e u m
lado ,
é abus ivam ente me nc ion ado o ex t r aord iná r io p rogre sso das
c iências e das técnicas , das quais um dos f ru tos são os novos
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M I L T O N S A N T O S
o que é imposto aos espí r i tos é um mundo de fabulações , que se
aprove i ta do a la rgamento de todos os contextos (M. Santos , A
natureza do espaço, 1996) para consagrar um discurso único. Seus
f unda m e n t os s ã o a i n f o r ma ç ã o e o s e u i mpé r i o , que e nc on t r a m
al ice rce na produção de imagens e do imaginár io , e se põem ao
s e r v iç o do i mpé r i o do d i nhe i r o , f unda do e s t e na e c onom i z a ç ã o
e na m oneta r iza ção da vida soc ia l e da vida pessoa l .
De fa to , se dese jamos escapar à c rença de que esse mundo
a s s i m a p r e s e n t a do é ve r da de i r o , e nã o que r e mo s a dmi t i r a pe r
ma nê nc i a de s ua pe r c e pç ã o e nga nos a , de ve mos c ons i de r a r a
e x i s tê nc i a de pe l o me n os t r ê s mu ndo s nu m s ó . O p r i m e i r o s e
r ia o mundo ta l como nos f azem vê- lo: a globa l ização como fá
bula ; o segundo se r ia o mundo ta l como e le é : a globa l ização
c om o pe r ve r s i dade ; e o t e r c e ir o , o mu nd o c o mo e l e pode s e r:
uma out ra globa l ização.
O mundo t a l c omo nos f a z e m c r e r :
a g l oba l i z a ç ã o c omo f á bu l a
Este mundo globa l izado, vis to como fábula , e r ige como ver
dade um cer to número de fantas ias , cuja r epe t ição, ent re tanto,
acaba por se tornar uma base aparentemente sól ida de sua inte r
pretação (Maria da Con ceição Tavares, Destruição não criadora, 1999).
A máquina ideológica que sus tenta as ações preponderantes
da a tua l idade é f e i ta de peças que se a l imentam mutuamente e
põe m e m mov i me n t o os e l e me n t os e s se nc ia i s à c on t i nu i da de do
sis tema. Dam os aqui a lguns exemplos . Fa la -se , por exe mplo , em
aldeia global para fazer crer que a difusão instantânea de notícias
rea lmente inform a as pessoas . A par t i r desse mi t o e do encu r ta -
P O R U M A O U T R A G L O B A L IZ A Ç Ã O
1 9
i ncnto das dis tânc ias — para aque les que rea lmen te po de m via ja r
— tam bém se di funde a noção de temp o e espaço cont ra ídos . É
com o se o mu nd o se houvesse tornado , para todos , ao a lcance da
mão. U m m ercado avassa lador di to globa l é apresentado com o
capaz de homo gen eizar o planeta quand o, na verda de, as diferenças
loca is são aprofundadas . H á um a busca de uni formid ade , ao se r
viço dos a tores hegemônicos , mas o mun do se torna meno s un ido ,
tornando mais distante o sonh o de uma c idadania verdade i ramente
univer sa l . Enquanto i sso, o cul to ao consumo é es t imulado.
Fa la - se , igua lmente , com ins is tênc ia , na mor te do Estado,
mas o que es tamos vendo é seu for ta lec imento para a tender aos
rec lamos da f inança e de out ros grandes inte resses inte rnac io
nais,
e m d e t r i me n t o dos c u i da dos c om a s popu l a ç õe s c u j a v i da
se tor na mais dif ícil . £T' í>b o£ ,
C^
OA ^^t>
Esses poucos exemplos , r ecolhidos numa l i s ta inte rmináve l ,
permi tem indagar se , no lugar do f im da ideologia proc lamado
pe l os que s us t e n t a m a bon da d e dos p r e s e n t e s p r oc e s s o s de
globa l ização, não es ta r íamo s, de fa to , diante da presença d e u ma
ideologização maciça, segund o a qua l a r ea l ização do m un do a tua l
exige com o cond ição essenc ia l o exerc íc io de f abulações .
O mundo c omo é : a g l oba l i z a ç ã o c omo pe r ve r s i da de
D e f a t o , pa r a a g r a nde ma i o r pa r t e da huma n i da de a
globa lização es tá se impo ndo com o um a fábrica de perver s idades .
O de s e mpr e g o c r e s c e n te t o r na - s e c rôn i c o . A pobr e z a a um e n t a
e as c lasses médias perde m e m qua l idade de vida . O sa lá r io m édi o
tend e a ba ixar. A fome e o desabr igo se genera l iz am e m tod os o s
c on t i ne n t e s . N ova s e n f e r mi da de s c omo a S I D A s e i n s t a l a m e
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M I L T O N S A N T O S
ve l ha s doe nç a s , s upos t a me n t e e x t i r pa da s , f a z e m s e u r e t o r no
t r iunfa l . A mor ta l idade infant i l pe rmanece , a despe i to dos pro
gressos médicos e da informação. A educação de qua l idade é cada
vez mais inacess íve l . Alas t r am-se e aprofundam-se males espi
r ituais e mora is , com o os egoísmos, os c inismos, a cor rupçã o.
A perver s idade s i s têmica que es tá na r a iz dessa evolução
nega t iva da humanidade tem re lação com a adesão desenf reada
a os c ompor t a me n t os c om pe t i t ivos que a t ua l me n t e c a r a c te r i za m
as ações hegem ônicas . Todas essas maze las são di re ta ou ind i re
tamente imputáve is ao presente processo de globa l ização.
O m u n d o c o mo p o d e s er : u ma o u tr a g l o b a l i z a ç ã o
T oda v ia , pod e mo s pe ns a r na c ons t r uç ã o de um ou t r o m un
d o , me d i a n t e um a g l oba li z a çã o ma i s huma na . A s ba s e s ma t e r i
a i s do per íodo a tua l são, ent re out ras , a unic idade da técnica , a
c onve r gê nc i a dos mome n t os e o c onhe c i me n t o do p l a ne t a . É
nessas bases técnicas que o gran de capi ta l se apoia para con st rui r
a globa l ização perver sa de que fa lamos ac ima. Mas, essas mes
mas bases técnicas poderão se rvi r a out ros obje t ivos , se forem
postas ao se rviço de out ros fund ame ntos soc ia is e pol í t icos . Pa
rece que as condições his tór icas do f im do século XX aponta
vam para es ta úl t ima poss ibi l idade . Ta is novas condições tanto
s e dã o no p l a no e mp í r i c o qua n t o no p l a n o t e ó r i c o .
C o n s i d e r a n d o o q u e a t u a l m e n t e s e v e r if i ca n o p l a n o
e mpí r i c o , pode mos , e m p r i me i r o l uga r , r e c onhe c e r um c e r t o
número de fa tos novos indica t ivos da emergênc ia de uma nova
h i s t ó ri a . O p r i me i r o de s s e s f e nôme nos é a e no r me m i s t u r a de
povos, r aças , cul turas , gostos , em todos os cont inentes . A i sso
P O R U M A O U T R A G L O B A L IZ A Ç Ã O
2 1
se ac rescente , graças aos progressos da informação, a "mis tura"
de f ilosof ias , em de t r im ento do rac iona l i smo europe u. U m ou
t ro dado de nossa e ra , indica t ivo da poss ibi l idade de mudanças ,
6 a produção de uma população aglomerada em áreas cada vez
m e n o r e s , o q u e p e r m i t e u m a i n d a m a i o r d i n a m i s m o à q u e l a
mistu ra entre pesso as e f ilosofias. As massa s, de qu e falava O rteg a
y Gasse t na pr imei ra metade do século (L a rebelión de las masas,
1937 ), ga nha m um a nova qua l i da de e m v i r t ude da s ua a g l om e
ração exponencial e de sua diversif icação. Trata-se da existência
de uma verdade i ra soc jodiver s idade , his tor icamente mui to mais
s ignif icat iva que ap rop r ia biod iver s idade . Jun te - s e a esses f a tos
a emergênc ia de uma cul tura popula r que se se rve dos meios
técnicos antes exc lus ivos da cul tura de massas , permi t indo- lhe
exercer sobre es ta úl t im a uma verdade i ra r evanche o u vinganç a .
É sob re tais alicerces que se edif ica o dis curso d a escassez, af i
na l descober ta pe las massas . A população aglom erada em pou cos
ponto s da super f íc ie da Ter ra const i tui um a das bases de r econ s
trução e de sobrevivência das relações locais, abrindo a possibili
dade d e util ização, ao serviço dos ho me ns, do sistem a técnico atual.
N o plan o teór ico, o qu e ver i f icamos é a poss ib i l idade de
p r oduç ã o de um novo d i s c u r s o , de uma nova me t a na r r at i va , u m
novo grande re la to . Esse novo discurso ganha re levânc ia pe lo
fa to de que , pe la pr imei ra vez na his tór ia do homem, se pode
consta ta r a exis tênc ia de um a univer sa l idade empír ica . A un iver
sa l idade de ixa de se r apenas uma e laboração abst ra ta na mente
dos f i lósofos para r esul ta r da exper iênc ia ordinár ia de cada
home m. D e t a l modo , e m um mundo da t a do c omo o nos s o , a
expl icação do acontece r pod e se r f e i ta a par t i r de ca tegor ias d e
uma his tór ia concre ta . É i sso, também, que permi te conhecer
as poss ibi l idades exis tentes e esc rever uma nova his tór ia .
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n
A P R O D U Ç Ã O D A G L O B A L I Z A Ç Ã O
I n t r o d u ç ã o
A g loba l i zação é , de ce r t a fo rma , o áp i ce do p rocesso de
internacional ização d o m u n d o capi ta li sta. Para enten dê- la , co m o ,
de res to , a qu alqu er fase da h is tór ia , há dois e lem ento s fu nd am en
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M I L T O N S A N T O S
Só que a globa l ização não é apenas a exis tênc ia desse novo
sis tema de técnicas . E la é também o resul tado das ações que
a s s e gur a m a e me r gê nc i a de um me r c a do d i t o g l oba l , r e s pon
sáve l pe lo essenc ia l dos processos pol í t icos a tua lmente e f ica
zes .
O s f a t o re s que c o n t r i bu e m pa r a e xp l i c a r a a r qu i t e t u r a da
globa l ização a tua l são: a unic idade da técnica , a convergênc ia
dos m om e n t os , a c ognos c i b i l ida de do p l a ne t a e a e x i s t ê nci a d e
u m m o t o r ú n i c o n a h i s t ó r i a , r e p r e s e n t a d o p e l a m a i s - v a l i a
g l oba l i z a da . U m m e r c a d o g l oba l u t i l i z a nd o e ss e s i s t e ma d e
t é c n i c a s a va nç a da s r e s u l t a ne s s a g l oba l i z a ç ã o pe r ve r s a . I s s o
poder ia se r di f e rente se seu uso pol í t ico fosse out ro. Esse é o
de ba t e c e n t r a l , o ún i c o qu e nos pe r m i t e t e r a e s pe ra nç a de u t i
l i z a r o s i s t e ma t é c n i c o c on t e mp or â ne o a pa r t i r de ou t r a s f o r
ma s de a ç ã o . P r e t e n de m os , a qu i , e n f r e n t a r e s s a d i s c us s ã o , a na
l i s a ndo r a p i da me n t e a l guns dos s e us a s pe ct os c o ns t i t uc i ona i s
mais r e levantes .
2.
A unicidade
técnica
O desenvolvimento da his tór ia va i de par com o desenvol
vimento das técnicas . Kant diz ia que a his tór ia é um progresso
s e m f i m; a c re s c e n t e mos que é t a mb é m u m p r og r e s s o s e m f i m
das técnicas . A cada evolução técnica , uma nova e tapa his tór ica
se torna poss íve l .
A s t é c n i c a s s e dã o c omo f a mí l i a s . N unc a , na h i s t ó r i a do
homem, aparece uma técnica i solada ; o que se ins ta la são gru
pos de t é c n ic a s , ve r da de i r os s is t e ma s . U m e xe m pl o ba na l p ode
P O R U M A O U T R A G L O B A L I ZA Ç Ã O
2 5
s e r da do c o m a f o ic e , a e nxa da , o a nc i nh o , que c ons t i t ue m, nu m
da do mo me n t o , uma f a mí l ia de t é c n i c as .
Essas f amí l ias de técnicas t r anspor tam uma his tór ia , cada
sis tema técnico representa uma época . Em nossa época , o que é
representa t ivo d o s i s tema de técnicas a tua l é a chegada da técn i
ca da informação, por meio da c iberné t ica , da informát ica , da
e le t rônica . E la va i permi t i r du as grandes coisas : a pr im ei ra é q ue
as diversas técnicas exis tentes passam a se comun icar e nt re e las .
A técnica da informação assegura esse comérc io, que antes não
era poss íve l . Por out ro lado, e la tem u m pap e l de te rminan te so bre
o us o d o t e mpo , pe r mi t i ndo , e m t odo s o s l ugar e s , a c onve r gê n
c ia dos momentos , assegurando a s imul tane idade das ações e ,
por conseguinte , ace le rando o processo his tór ico.
Ao surgi r uma nova famí l ia de técnicas , as out ras não desa
pa r e c e m. Con t i nua m e x i s t i ndo , ma s o novo c on j un t o de i n s
t r ume n t os pa s s a a s e r u s a do pe l os novos a t o r e s he ge môn i c os ,
e nqu a n t o os nã o he ge môn i c os c on t i nua m u t i l i z a ndo c o n j un t os
me n os a t uai s e me n os pode r os os . Q u a nd o um d e t e r mi na do a t o r
não tem as condições para mobi l iza r as técnicas consideradas
ma i s a vanç a da s, to r na - s e , po r i s so me s m o , um a t o r de m e no r
i mpor t â nc i a no pe r í o do a t ua l .
N a his tór ia da huma nidad e é a pr imei ra vez que ta l co njunto
de técnicas envolve o plane ta como um todo e f az senti r , ins tanta
neamente , sua presença . I sso, a l iás , contamina a forma de exis
tência das o utras técnicas, mais atrasadas. As técnicas característi
c a s do nos s o t e mpo , p r e s e n t e s que s e j a m e m um s ó pon t o do
te r r i tór io , têm uma inf luênc ia marcante sobre o r es to do pa ís , o
qu e é bem di fe rente das s i tuações ante r iores . Por exemplo , a es
trada de ferro instalada em regiões selecionadas, escolhidas estra
tegicamente , a lcançava uma par te do pa ís , mas não t inha u ma in-
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f luência direta deter min ante sob re o resto do terr itório. Agora nã o.
A técnica da informação alcança a totalidade de cada país, direta
ou in di re tamen te . Cada lugar tem acesso ao acontecer dos o ut ros .
O pr inc ípio de se let ividade se dá també m co mo pr inc ípio de hi
e ra rquia , porqu e todos os out ros lugares são aval iados e devem se
re fe ri r àque les dotados das técnicas hegem ônicas . Esse é um fe
nô me no novo n a his tór ia das técnicas e na his tór ia dos te r r i tór i
os . Antes havia técnicas hegemônicas e não h egemôn icas ; hoje , as
técnicas não hegemônicas são hegemonizadas . Na verdade , po
rém, a técnica não pode se r vis ta como um dado absoluto, mas
com o técnica já r e la tivizada , i s to é , ta l com o usada pe lo ho me m.
A s t é c n i c a s a pe na s s e r e a l i z a m, t o r na ndo- s e h i s t ó r i a , c om a
intermediação da polít ica, isto é, da polít ica das empresas e da
pol í t ica dos Estados , conjunta o u s eparadam ente .
P o r ou t r o l a do , o s is t e ma té c n i c o dom i na n t e n o mu nd o de
hoje tem uma outra característica, isto é, a de ser invasor. Ele
não se conten ta em f ica r a li onde pr ime i ro se ins ta la e busca es
pa lhar - se , na produçã o e no te r r i tór io . Pode nã o o consegui r , mas
é essa sua vocação, que é tamb ém funda men to da ação dos a tores
hegem ônicos , com o, por exemplo, as empresas globa is . Estas fu n
c ionam a par t i r de uma f ragmentação, já que um pedaço da pro
dução p ode se r f e ita na Tunís ia , out ro na Malás ia , out ro a inda no
Paragua i, mas i s to apenas é poss íve l por que a técnica hegem ônica
de qu e fa lamos é presente o u pass íve l de presença em toda pa r te .
Tudo se jun ta e a r t icula depois median te a " inte l igênc ia" da f ir
ma . Senão não poder ia haver empresa t ransnac iona l . Há , pois , um a
relação estreita entre esse aspecto da econo mia d a globalização e a
na tureza do fenômeno técnico cor respo nden te a es te per íod o his
tórico. Se produção se fragmenta tecnicamente, há, do outro lado,
uma unidade pol í t ica de comando. Essa unidade pol í t ica do co-
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2 7
mando func iona no inte r ior das f i rmas, mas não há propr iamen
te uma unidade de comando do mercado globa l . Cada empresa
c oma nda a s r e s pe c t i va s ope r a ç õe s de n t r o da s ua r e s pe c t i va
topologia , i s to é , do co njunto de lugares da sua ação, enq uan to a
ação dos Estados e das instituições supranacionais não basta para
impor uma ordem globa l . Levando ao ext remo esse r ac ioc ínio,
poder - se - ia dizer que o merc ado globa l não exis te com o ta l .
Há uma re lação de causa e e fe i to ent re o progresso técnico
a tua l e as demais condições de implantação do a tua l per íodo
his tór ico. É a par t i r da unic idade das técnicas , da qua l o c om pu
tador é um a peça cent ra l , que surge a poss ibi l idade de exis t i r u ma
f inança univer sa l , pr inc ipa l r esponsáve l pe la imposiçã o a tod o o
globo de uma mais-va l ia mundia l . Sem e la , se r ia também im
possíve l a a tua l unic idade do tempo, o acontecer loca l sendo
pe r c e b i do c om o um e l o do a c on te c e r mund i a l . P o r ou t r o l a do ,
sem a mais-va l ia globa l izada e sem essa unic idade do tempo, a
unicidade da técnica não ter ia ef icácia.
3 . A convergência dos momentos
A unicidade do tem po não é apenas o resultado de que, nos mais
diversos lugares, a hora d o relógio é a mesma . Nã o é some nte isso.
Se a hora é a mesma, convergem, tam bém, os m om entos vividos .
Há u ma conf luênc ia dos mom ento s com o resposta àqui lo que , do
po nto d e vista da física, chama -se de tem po real e, do po nto d e vis
ta histórico, será chamado de interdependência e solidariedade do
acontecer . Tomada com o fenôm eno f í s ico, a percepção do tem po
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r ea l não só quer dizer que a hora dos r elógios é a mesma, m as q ue
pod emo s usar esses r e lógios múl t iplos de mane i ra uni forme. Re
sultado d o progresso científ ico e técnico, cuja busca se acelerou co m
a Segunda Guerra, a operação planetária das grandes empresas glo
ba is va i revoluc ionar o m und o das f inanças, perm i t indo ao respec
t ivo mercado qu e func ione em diver sos lugares durante o dia in
te i ro .
O tempo rea l também autor iza usar o mesmo momento a
partir de mú ltiplos lugares; e todos os lugares a partir de um só deles.
E, em amb os os casos, de forma co ncatenada e ef icaz.
C om essa grande mudan ça na his tór ia , torn am o-no s capazes ,
se ja onde for , de te r conhec imento do que é o acontecer do ou
t r o . N un ca houv e antes essa poss ibi l idade ofe rec ida pe la técnica à
nos s a ger a ç ão de t e r e m mã os o c on he c i me n t o i n s t a n t â ne o do
acontecer do out ro . Essa é a grande novidad e , o que es tamos cha
ma n do de un i c i da de do t e mpo ou c onve rgê nc i a dos m om e n t os .
A ace leração da his tór ia , que o f im do século XX tes te mun ha , vem
em grande par te dis to . Mas a informação ins tantânea e globa l izada
por e nqua n t o nã o é ge ne r a l i z a da e ve r a z po r que a t ua l me n t e
inte rmediada pe las grandes empresas da inform ação.
E quem são os a tores do tempo rea l? Somos todos nós? Esta
pe r gun t a é um i mpe r a t i vo pa r a que pos s a mos me l ho r c omp r e e n
der nossa época . A ideologia de um m un do só e da a lde ia globa l
c ons i der a o t e mpo r e a l c om o um pa t r i môn i o c o l e t ivo da h um a
nidade. Mas ainda estamos longe desse ideal, todavia alcançável.
A his tór ia é comandada pe los grandes a tores desse tem po rea l ,
que são, ao mesmo tempo, os donos da ve loc idade e os autores
do discurso ideológico. Os homens não são igua lmente a tores
desse temp o rea l . F is icamente , i s to é , poten c ia lmen te , e le exis te
para
todos .
Mas efetivamen te, isto é, socialm ente, ele é exclu den te
e assegura exc lus ividades , ou, pe lo menos, pr ivi légios de uso.
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Co mo e l e é u ti l iz a do po r u m n úm e r o r e duz i do de a t o r e s , de ve
mo s distinguir entre a noção de f luidez potencial e a no ção de f lui
dez e fet iva. Se a técnica c r ia aparentem ente para todos a poss ibi
l i da de da f l u i de z , que m, t oda v i a , é f l u i do r e a l me n t e ? Q ue
empresas são rea lmente f luidas? Que pessoas? Quem, de f a to ,
ut i liza em seu favor esse tem po rea l? A quem , rea lm ente , cabe a
mais-valia cr iada a partir dessa nova possibilida de de util ização do
tempo? Quem pode e quem não pode? Essa discussão leva-nos a
um a out ra , na fase atua l do capi ta l i smo, ao tom arm os e m co nta a
emergênc ia de um no vo fa tor de te rminan te da his tór ia , r epresen
t a do pe lo que a qu i e s ta mos de nom i na ndo de m otor único.
4 .
O
motor único
Este per íodo dispõe de um s is tema uni f icado de técnicas ,
ins ta lado sobre um plane ta informado e permi t indo ações igua l
mente globa is . Até que ponto podemos fa la r de uma mais-va l ia
à esca la mundia l , a tuando como um motor único de ta i s ações?
Havia , com o imper ia l i smo, diver sos motores , cada qua l co m
sua força e a lcance próp r ios : o mo tor f r ancês , o mot or inglês , o
mo t o r a l e mã o , o mo t o r po r t uguê s , o bel ga , o e s pa nho l e t c , qu e
e r a m t odos mo t o r e s do c a p i t a l i s mo , ma s e mpur r a va m a s má
qu i na s e o s home ns s e gundo r i t mos d i f e r e n t e s , moda l i da de s
d i f e r e n t e s , c ombi na ç õe s d i f e r e n t e s . H o j e ha ve r i a um mot o r
único que é , exa tamente , a menc ionada mais-va l ia univer sa l .
Esta tornou-se poss íve l porque a par t i r de agora a produção
se dá à esca la mundia l , por inte rmédio de empresas mundia is ,
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que c om pe t e m e n t r e si s e gundo uma c onc or r ênc i a e x t r e m a me n
te f e roz , co mo jamais exis t iu . As que res is tem e sobreviv em são
a que l a s que ob t ê m a ma i s - va l i a ma i o r , pe r mi t i ndo - s e , a s s i m ,
cont inuar a proceder e a compet i r .
E s s e mo t o r ún i c o s e t o r nou pos s í ve l po r que nos e nc on t r a
mos e m um novo pa t a ma r da i n t e r na c i ona l i z a ç ã o , c om uma
ve r da de i r a mund i a l i z aç ã o do p r od u t o , do d i n he i r o , do c r é d i t o ,
da d í v i da , do c ons umo , da i n f o r ma ç ã o . E s s e c on j un t o de
mund i a l i z a ç õe s , uma s us t e n t a ndo e a r r a s t ando a ou t ra , i m po n-
do- s e mu t ua me n t e , é t a mbé m um f a t o novo .
U m e l e m e n t o da i n t e r na c i ona l i z a ç ã o at r a i ou t r o , i mp õe
out r o, conté m e é cont ido pe lo out ro. Esse s i s tema de forças p od e
l e va r a pe ns a r que o mu nd o s e e nc a mi nha pa r a a lgo c omo um a
homog e ne i z a ç ã o , uma voc a ç ã o a um pa d r ã o ún i c o , o que s e r ia
de v i do , de um l a do , à mund i a l i z a ç ã o da t é c n i c a , de ou t r o , à
mundia l ização da mais-va l ia .
Tudo i sso é r ea l idade , mas também e sobre tudo tendênc ia ,
po r que e m ne nhum l uga r , e m ne nhum pa í s , houve c ompl e t a
inte rnac iona lização. O q ue há em toda par te é uma vocação
às
mais
diver sas combinações d e ve tores e formas de mund ia l ização.
P r e t e nde mos que a h i s t ó r i a , a go r a , s e j a mov i da po r e s s e
mo tor ún ico. Cabe , ass im, indagar qua l se ria a sua na tureza . Será
e le abst ra to? Qu e é essa mais-va l ia considerada ao níve l globa l?
Ela é fugidia e nos escapa, mas n ão é abstrata. Ela existe e se imp õe
como coisa r ea l , embora não se ja propr iamente mensuráve l , já
que e s t á s e mpr e e vo l u i ndo , i s t o é , muda ndo . E l a é " mund i a l "
porque ent re t ida pe las empresas globa is que se va lem dos pro
gressos c ient í f icos e técnicos disponíve is no mundo e pedem,
todos os dias , mais progresso c ient í f ico e técnico.
A a tua l compet i t ividade ent re as empresas é uma forma de
exercício dessa mais-valia universal, que se torna fugidia exata-
P O R U M A O U T R A G L O B A L IZ A Ç Ã O
3 1
me nt e po r que de i xa mos o mun do da c ompe t i ç ão e e n t r a mos no
mundo da compet i t ividade . O exerc íc io da compet i t ividade tor
na exponenc ia l a briga ent re as empresas e as con duz a a l ime nta r
uma demanda diuturna de mais c iênc ia , de mais tecnologia , de
me lhor organização, para mante r - se à f r ente da cor r ida .
Qu and o, na u niver s idade , somos sol ic i tados todos os dias a t r a
balhar para melhorar a produtividade como se fosse algo abstrato e
individual, estamos impelidos a oferecer às grandes empresas pos
sibilidades ainda maiores de aumentar sua mais-valia. Novos labo
ratórios são chamados a encontrar as novas técnicas, os novos ma
teriais, as novas soluções organizacionais e polít icas que perm itam
às empresas fazer crescer a sua produ tividad e e o seu lu cro. A cada
avanço de um a empresa , out ra do mes mo ramo sol ic ita inovações
que lhe permitam passar à frente da que antes era a campeã. Por
isso,
tal mais-valia está sempre co rrend o, que r dizer , fugindo para a
f rente . U m cor te no temp o é idea lmente possíve l , mas es tá longe
de expressar a realidade atual cruelmente instável. Por isso não se
pod e, desse mod o, medi- la, m as ela existe. Se ela pod e parecer abs
trata, a mais-valia agora universal na verdade se impõe como um
dado emp ír ico, obje t ivo, quan do ut i l izada no processo da pro du
ção e como resultado da competitividade.
5 .
A cognoscibilidade do planeta
O pe r í odo h i s t ó r i c o at ua l va i pe r mi t i r o que ne nh um ou t r o
per íodo ofe receu ao homem, i s to é , a poss ibi l idade de conhecer
o plane ta extensiva e aprofundadamente . I s to nunca exis t iu an-
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M I L T O N S A N T O S
t es , e deve-se , exa tamente , aos progressos da c iênc ia e da técn i
ca (melh or a inda , aos progressos da técnica devidos aos pro gres
sos da ciência) .
Esse per íodo técnico-c ient í f ico da his tór ia permi te ao ho
me m nã o a pe na s u t i l i z a r o que e nc on t r a na na t u r e z a : novos
mater ia i s são c r iados nos labora tór ios como um produto da in
t e l igê nc i a do h om e m, e p r e c e de m a p r oduç ã o dos ob j e t o s . A t é a
nossa geração, ut i l izávamos os mate r ia i s que es tavam à nossa
disposição. Mas a par t i r de agora podemos conceber os obje tos
que de s e j a mos u t i l i za r e e n t ã o p r oduz i m os a ma t é r i a - p r i ma i n
dispensá vel à sua fabricação. Sem isso não ter ia sido possível fazer
os sa té l ites que fotografam o plane ta a inte rva los r egula res , per
mi t i ndo u ma visão mais comp le ta e de ta lhada da Terra . Por m eio
dos sa té l i tes , passamo s a conhecer to dos os lugares e a observ ar
out ros as t ros . O func ionamento do s i s tema sola r torna- se mais
percept íve l , enqu anto a Ter ra é vis ta em de ta lhe ; pe lo f a to de qu e
os s a t é l i t e s r e pe t e m s ua s ó r b i t a s , pode mos c a p t a r mome n t os
sucess ivos , i s to é , não mais apenas r e t r a tos momentâneos e fo
tografias i soladas do plane ta . I sso não qu er dizer que t enh am os,
ass im, os processos his tór icos que movem o mundo, mas f ica
mos ma i s pe r t o de i de n t i f i c a r mome n t os de s s a e vo l uç ã o . O s
ob j e t os r et r a t ados nos dã o ge ome t r í a s , nã o p r op r i a me n t e ge o
gra f ias , porque nos chegam como obje tos em s i , sem a soc ieda
de vivend o den t ro de les . O sen t ido que t êm as coisas , i s to é , seu
verdade i ro va lor , é o fundamento da cor re ta inte rpre tação de
tud o o que exis te . Sem isso, cor remo s o r i sco de não ul t r apassar
uma inte rpre tação cois ic i s ta de a lgo que é mui to mais que uma
simples coisa , como os obje tos da his tór ia . Estes es tão sempre
mudando de s igni f icado, com o movimento das soc iedades e por
i n t e r mé d i o da s a ç ões huma n a s s e mp r e r e nova da s .
P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O
3 3
C om a globa l ização e por m eio da empir ic ização da univ er sa
l idade que e la poss ibi l i tou, es tamos mais per to d e const rui r um a
filosofia da s técnicas e das ações correlatas, que seja ta m bé m um a
f o r ma de c onhe c i me n t o c onc r e t o do mundo t oma do c omo um
todo e das par t icula r idades dos lugares , que inc luem condições
físicas, naturais ou artif iciais e condições polít icas. As empresas,
na busca da mais-va l ia dese jada , va lor izam di fe rentem ente as lo
calizações. N ão é qua lqu er lugar que interessa a tal ou q ual f irma.
A cognosc ibi l idade do plane ta const i tui um dado essenc ia l à ope
ração das empresas e à produ ção d o s i s tema his tór ico a tua l .
6 . Um período que é uma crise
A his tór ia do capi ta l i smo pode se r dividida em per íodos ,
pedaços de tempo marcados por ce r ta coerênc ia ent re as suas
var iáve is s igni f ica t ivas , que evoluem di fe rentemente , mas den
t r o de um s i s t e ma . U m p e r í odo s uc e de a ou t r o , ma s nã o pod e
mo s e s que c e r que os pe r í odos s ã o , t a mb é m, a n t e c e d i dos e s u
cedidos por c r i ses, i s to é , mom ento s em que a ordem es tabe lec ida
ent re as var iáve is , mediante uma organização, é compromet ida .
Torna- se impossíve l harmonizá- las q uan do um a dessas variáve is
ga nha e xp r es s ã o ma i o r e i n t r oduz u m p r i nc í p i o de de s o r de m.
Essa foi a evolução co m um a tod a a his tór ia do capi ta l i smo ,
até recentem ente . O perí odo atual escapa a essa característica po r
que e le é , ao mesmo tempo, um per íodo e uma c r i se , i s to é , a
p r e s e n t e f r a ç ã o do t e mpo h i s t ó r i c o c ons t i t u i uma ve r da de i r a
superpo sição ent re per íod o e c r ise , r eve land o carac ter í s t icas de
amb as essas s i tuações .
F A C U L D A D E S C UR / T / B A
B I B L I O T E C A
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M I L T O N S A N T O S
Como per íodo e como cr i se , a época a tua l most ra - se , a l iás ,
com o coisa nova . Co mo per íodo , as suas variáve is ca rac te rí s t icas
ins ta lam-se em toda par te e a tud o inf luenc iam, di re ta ou indi re
t a me n t e . D a í a de nomi na ç ã o de g l oba l i z a ç ã o . Como c r i s e , a s
mesmas var iáve is const rutoras do s i s tema es tão cont inuamente
chocan do-se e exigindo novas def inições e novo s a r ranjos . Tra ta -
se , porém, de uma c r i se per s i s tente dent ro de um per íodo com
caracte r ís t icas duradou ras , mesm o se novos con tornos aparecem.
Este per ío do e es ta c ri se são di fe rentes daque les d o passa do,
porque os dados motores e os r espec t ivos supor tes , que const i
tuem fa tores de mudança , não se ins ta lam grada t ivamente como
antes , nem tampouco são o pr ivi légio de a lguns cont inentes e
pa íses , como out rora . Ta is f a tores dão-se concomitantemente e
se r ea l izam com mui ta força em toda par te .
Def rontam o-nos , agora , com um a subdivisão ext rema do te m
po empír ico , cuja docum entação torn ou-s e poss íve l por me io das
t é c n i c a s c on t e mpor â ne a s . O c ompu t a dor é o i n s t r ume n t o de
me d i da e , a o me s m o t e mpo , o c on t r o la do r do us o d o t e mp o . E s s a
mul t ipl icação do tem po é , na verdade , potenc ia l , porque , de f a to ,
cada a tor—pessoa , empresa , ins t i tuição, lugar—ut i l iza di fe ren
teme nte ta i s poss ibil idades e r ea l iza di fe rentem ente a ve loc idade
do m un do . Por out ro lado, e graças sobre tudo aos progressos das
técnicas da informát ica , os fa tores hegem ônicos d e muda nça con
tagiam os demais, ainda que a presteza e o alcance desse contágio
se jam di fe rentes se gund o as empresas , os grupos soc iais , a s pes
soas,
os lugares . Por inte rm édio do d inhe i ro , o contágio das lógi
cas redu toras , típicas do processo de globalização, leva a toda par
te um nexo contábi l , que avassa la tudo. Os fa tores de mudança
ac ima enum erado s são, pe la mão dos a tores hegem ônicos , inco n
t roláveis , cegos , egois t icamente cont radi tór ios .
P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O
3 5
O processo da c r i se é permanente , o que temos são c r i ses
sucess ivas . Na verdade , t r a ta - se de uma c r i se globa l , cuja evi
denc ia tanto se f az por meio de f enômenos globa is como de ma
ni fes tações par t icula res , nes te ou naque le pa ís , nes te ou naque
l e mo me n t o , m a s pa ra p r oduz i r o n ovo e s t á g i o de c r i s e. N a d a é
d u r a d o u r o .
Entã o, nes te per íod o his tór ico, a c ri se é es t rutu ra l . Por i sso,
quando se buscam soluções não es t rutura is , o r esul tado é a ge
ração de mais c r i se . O que é considerado solução par te do ex
c lus ivo inte resse dos a tores hegemônicos , tendendo a par t ic ipar
de sua própr ia n a tureza e de suas própr ias ca rac te r ís t icas .
T i rania do din he i ro e ti r ania da informação são os pi la res da
produção da his tór ia a tua l do capi ta l i smo globa l izado. Sem o
cont role dos espí r i tos se r ia impossíve l a r egulação pe las f inanças .
Daí o pape l avassa lador do s i s tema f inance i ro e a perm iss ividad e
d o c o m p o r t a m e n t o d o s a t o r e s h e g e m ô n i c o s , q u e a g e m s e m
contrapar t ida , levando ao aprofundamento da s i tuação, i s to é ,
da crise.
A assoc iação ent re a ti r ania do din he i ro e a t i r ania da infor
ma ç ã o c ond uz , de s s e mod o , à a c el e ra ç ã o dos p r oc e s s os he ge
môn i c os , l e g i ti ma dos pe l o " pe ns a me n t o ún i c o" , e nqua n t o os d e
mais processos acabam por se r deglut idos ou se adaptam pass iva
ou a t ivamente , tornando-se hegemonizados . Em out ras pa lavras ,
os processos nã o hegem ônic os tend em se ja a desaparecer f i s ica
me nte , se ja a perman ecer , mas de forma sub ordinad a , exce to em
algum as áreas da vida social e em certas frações do terr itóri o o nd e
pod e m ma n t e r - s e r e l a t i va me n t e a u t ônom os , i s t o é , c a pa ze s de
um a reprod ução próp r ia . Mas ta l s i tuação é sem pre precár ia , se ja
po r qu e os r e s u l ta dos l oc a l me n t e ob t i dos s ã o me nor e s , s e ja p o r
que os r espec tivos agentes são perm anen tem ente am eaçados pe la
concor rênc ia das a t ividades mais poderosas .
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M I L T O N S A N T O S
N o per í odo his tór ico a tua l , o es t rutura l (di to dinâm ico) é ,
também, crít ico. Isso se deve, entre outras razões, ao fato de que
a era presente se caracteriza pelo uso extremado de técnicas e de
norm as. O uso ext rem ado das técnicas e a proeminê nc ia do p ensa
me nto técnico con duze m à necess idade obsess iva de norma s. Essa
pletora no rmativ a é indispensável à ef icácia da
ação.
C o m o , p o r é m ,
as a t ividades hegemôn icas tende m a um a cent ra lização, consecu
t iva à concent ração da econom ia , aum enta a inf lexibi l idade dos
compor tamentos , acar re tando um mal-es ta r no corpo soc ia l .
A isso se acrescente o fato de que, graças ao casamento entre
as técnicas normativas e a normalização técnica e polít ica da ação
cor respo nden te , a própr ia pol í tica acaba por ins ta la r- se em todos
os interstícios do corp o social, seja com o necessida de para o exer
cício das ações domi nant es, seja com o reação a essas mes mas ações.
Mas n ão é propr iamen te de pol í t ica que se tr a ta , mas de s imples
acúm ulo de normat izações par t icula r is tas , conduz id as por a tores
pr ivados que ignoram o inte resse socia l ou qu e o t r a tam de m od o
residual. E uma outra razão pela qual a situação normal é de crise,
a inda que os f amosos equi l íbr ios macroeconômicos se ins ta lem.
O me s m o s i s t e ma i de o l óg i c o que j u s t i f ic a o p r oc e s s o d e
globa l ização, a judando a considerá - lo o único caminho his tór i
co, acaba , também, por impor uma cer ta visão da c r i se e a ace i
tação dos r emédios suger idos . Em vi r tude disso, todos os pa í
ses,
lugares e pessoas passam a se comp or ta r , i s to é , a organ izar
sua ação, como se ta l "c r i se" fosse a mesma para todos e como
se a rece i ta para afas tá - la devesse se r gera lm ente a m esm a. Na
verdade , porém , a única c r i se que os r esponsáve is dese jam afas
ta r é a c r i se finance i ra e não qu a lque r out ra . Aí es tá , na verd ade ,
uma causa para mais aprofundamento da c r i se r ea l — econômi
ca , soc ia l, pol í t ica , mora l — qu e carac te r iza o noss o t em po .
m
U M A G L O B A L I Z A Ç Ã O P E RV E R SA
I n t r o d u ç ã o
O s ú l t i m o s a n o s d o s é c u l o X X t e s t e m u n h a r a m g r a n d e s
mu dan ças em toda a f ace da Ter ra . O m un do torn a- se uni f icado
— em vi r tude das novas condições técnicas , bases sól idas para
uma a ç ã o huma na mund i a l i z a da . E s t a , e n t r e t a n t o , i mpõe - s e à
ma i o r pa r t e da hum a n i da d e c om o um a g l oba li z a çã o pe r ve r s a .
Consideramos, em pr imeiro lugar , a emergênc ia de uma du
pla t i rania , a do din he i ro e a da informação, int imam ente r e lac io
nadas . Ambas, juntas , fornecem as bases do s i s tema ideológico q ue
legitima as ações mais características da época e, ao mesmo tem
p o , bus c a m c onf o r ma r s e gundo um novo ethos as relações sociais
e inte rpessoa is , inf luenc iando o cará te r das pessoas . A
compet i t ividade , suger ida pe la produção e pe lo con sum o, é a fon te
de novos totalitar ismos, mais facilmente aceitos graças à confu
são dos espí r i tos qu e se insta la. Tem as mesmas o r igens a pr od u
ção ,
na base me sm a da vida socia l , de u ma violênc ia es t rutura l ,
facilmente visível nas formas de agir dos Estados, das empresas e
dos indiv íduo s. A perversidade sistêmica é um dos seus corolários.
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M I L T O N S A N T O S
Dentro desse quadro, as pessoas sentem-se desamparadas , o
que tam bém const i tui uma inc i tação a que adotem , em seus co m
por tam entos ordinár ios , prát icas que a lguns decênios a t r ás e ram
mora lmente condenadas . Há um verdade i ro r e t rocesso quanto à
noção de bem públ ico e de sol idar iedade , do qua l é emb lemát ic o
o encolhimento das funções soc ia is e pol í t icas do Estado com a
ampl iação da pobreza e os crescentes agravos à soberania, enq uan to
se amplia o papel polít ico das empresas n a regulação da vida social.
7 . A tirania da
informação
e do dinheiro e o atual
sistema ideológico
Entre os fatores constitutivos da globalização, em seu caráter
perver so a tua l , encont ram-se a forma como a informação é ofe
rec ida à hum anid ade e a emergênc ia do dinh e i ro em es tado p uro
com o mo tor da vida econômica e soc ial . São duas violênc ias cen
t ra i s , a l ice rces do s i s tema ideológico que jus t i f ica as ações
hegemônicas e leva ao império das fabulações, a percepções frag
mentadas e ao discurso único do mu nd o, base dos novos tota l i ta
r i smos — is to é , dos globa li ta r ismos — a que es tamo s ass is t indo.
A violênc ia da informação
U m dos t r aços marcantes do a tua l per íodo his tór ico é, pois , o
pape l verdade i ramente despót ico da informação. C onfo rme já vi
m o s , as novas condiçõe s técnicas deveriam p erm itir a ampliaçã o d o
conh ecime nto do planeta, dos objetos qu e o formam, das sociedades
P O R U M A O U T R A G L O B A L IZ A Ç Ã O
3 9
q u e
o
habi tam e dos hom ens em sua rea lidade int rínseca . Todavia ,
nas condições atuais, as técnicas da informação são principalmente
ut i lizadas por u m pu nha do d e a tores em função de seus obje t ivos
particulares. Essas técnicas da informaç ão (p or enqua nto) são apro
pr iadas por a lguns Estados e por a lgumas empresas , aprofunda ndo
assim os processos de criação de desigualdades. E desse modo que
a perifer ia do sistema capitalista acaba se torn and o aind a mais p eri
f ér ica , se ja porque não dispõe tota lmente d os novos meios de pro
dução, seja porque lhe escapa a possibilidade de controle.
O que é t r ansmi t ido à maior ia da hum anid ade é , de f a to , um a
informação manipulada que , em lugar de esc la recer , confunde .
I sso tanto é mais grave porq ue , nas condições a tua is da vida eco
nôm ica e socia l, a informação const i tui um dado essenc ia l e im
presc indíve l . Mas na m edida e m qu e o que chega às pessoas , com o
tam bém às empresas e ins t i tuições hegemonizad as , é , já , o r esul
tado de uma m anipulação, ta l informação se apresenta como ideo
logia . O fa to de que , no m un do d e hoje , o discurso antecede q ua
se obr iga tor iam ente um a par te substanc ia l das ações hum ana s —
sejam e las a técnica , a produção , o cons um o, o pod er — expl ica o
porquê da presença genera l izada do ideológico em todos esses
ponto s . Não é de es t r anhar , pois , que rea l idade e ideologia se con
f unda m na a p r e c i a ç ã o do home m c omum, s ob r e t udo po r que a
ideologia se insere nos objetos e apresenta-se como coisa.
E s t a mos d i a n t e de um novo " e nc a n t a me n t o do mundo" , no
qua l o discu rso e a r e tór ica são o pr inc ípio e o f im. Esse imp era
t ivo e essa onipresen ça da informaç ão são ins idioso s , já qu e a
informação a tua l tem dois ros tos , um pe lo qua l e la busca ins
t rui r , e um o ut ro , pe lo qua l e la busca conven cer . Este é o t r aba
lho da pub l ic idade . Se a informação tem, h oje , essas duas ca ras ,
a ca ra do convencer se torna mui to mais presente , na medida
em que a publ ic idade se t r ansformou em a lgo que antec ipa a
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M I L T O N S A N T O S
pr oduç ã o . B r i ga ndo pe l a s ob r e v ivê nc i a e he ge mon i a , e m f un
ç ã o da c ompe t i t i v i da de , a s e mpr e s a s nã o pode m e x i s t i r s e m
pub l i c i da de , que s e t o r no u o ne r vo do c om é r c i o .
H á u ma r e l a çã o ca r na l e n t r e o mun do da p r oduç ã o da no t í
c i a e o mu nd o da p r odu ç ã o da s c o is a s e da s no r ma s . A pub l i c i
da de t e m, ho j e , um a pe ne t r a ç ã o mui t o g r a nde e m t oda s a s a t i v i
da de s .
Antes , havia uma incompat ibi l idade é t ica ent re anunc ia r
e exercer ce r tas a t ividades , como na prof i ssão médica , ou na
educação. Ho je , propaga-se tud o, e a própr ia pol í t ica é , em gran
de par te , subordinada às suas r egras .
As mídias nac iona is se globa l izam, não apenas pe la cha t ice e
mesmice das fotograf ias e dos t í tulos , mas pe los protagonis tas
mais presen tes . Fa lsi f icam-se os eventos , já qu e não é pro pr ia
mente o f a to o que a mídia nos dá , mas uma inte rpre tação, i s to
é , a not íc ia . P ie r re Nora , em um boni to texto, cujo t í tulo é "O
re to rno do fa to" ( in História: Novos problemas, 1974) , lembra que ,
na a lde ia , o tes temunho das pessoas que ve iculam o que aconte
c e u pode se r c o t e ja do c om o t e s t e m unh o do v i z i nho . N u m a s o
c i e da de c ompl e xa c omo a nos s a , s ome n t e va mos s a be r o que
houve na r ua a o l a do do is d i as de po i s , me d i a n t e um a i n t e r p r e
tação marcada pe los humores , visões , preconce i tos e inte resses
da s a gê nc ia s . O e ve n t o j á é e n t r e g ue m a qu i a do a o l e i t o r , a o
ouv i n t e , a o t e le s pe c ta do r , e é t a mbé m por i s s o que s e p r od uz e m
no m un do d e ho j e , s i mu l t a ne a m e n t e , f ábu l as e mi t os .
Fábulas
U m a dessas f abulações é a tão repe t ida idé ia de a lde ia globa l
( O c t á v i o I a nn i , Teorias da globalização, 1996) . O fa to de que a
comunicação se tornou poss íve l à esca la do plane ta , de ixando
P O R
U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O
4 1
saber ins tantaneamente o que se passa em qua lquer lugar , per
mi t iu que fosse cunhada essa expressão, quando, na verdade , ao
cont rá r io d o que se dá nas verdade i ras a lde ias , é f r eqüe ntem ente
ma i s f ác il c omun i c a r c o m qu e m e s t á l onge do qu e c om o v i z i
n h o .
Quando essa comunicação se f az , na r ea l idade , e la se dá
com a inte rmediação de obje tos . A informação sob re o que aco n
tece não vem da inte ração ent re as pessoas , mas do que é ve icu
lado pe la mídia , uma inte rpre tação inte ressada , senão inte res
seira, dos fatos.
U m ou t r o m i t o é o do e s pa ç o e do t e mpo c on t r a í dos , g r a
ças ,
out ra vez , aos prodígios da ve loc idade . Só que a ve loc idade
apenas es tá ao a lcance de um n úm ero l im i tado de pessoas , de ta l
forma que , segundo as poss ibi l idades de cada um, as dis tânc ias
têm s igni f icações e e fe i tos diver sos e o uso do mesmo re lógio
nã o pe r mi t e i gua l e c onomi a do t e mpo .
A l de i a g l obal t a n t o qua n t o e s pa ç o - t e mpo c on t r a í do pe r mi
t i r i a m i ma g i na r a re a l iz a ç ão do s onh o de um mu nd o
só ,
j á que ,
pe las mãos do mercado globa l , coisas , r e lações , dinhe i ros , gos
tos la rgamente se di fundem por sobre cont inentes , r aças , l ín
guas , r e l igiões , co mo se as par t icula r idades tec idas ao longo de
séculos houvessem s ido todas esgarçadas . Tudo se r ia conduz ido
e , a o me s mo t e mpo , homoge ne i z a do pe l o me r c a do g l oba l r e
gulador . Será , todavia , esse merc ado reg ulador? Será e le globa l?
O fa to é que apenas t r ês praças , Nova Iorque , Londres e Tó
q u i o , conce nt ram mais de me tade de todas as t r ansações e ações;
as emp resas t r ansnac iona is são responsáve is pe la maior par te do
c omé r c i o d i t o m und i a l ; o s 4 7 pa ís e s me nos a va nç a dos r e p r e s e n
t a m un t o s a pe nas 0 , 3% do c omé r c i o mund i a l , e m l uga r dos 2 , 3%
em 1960 (Y. Ber th e lot , "Globa l i sa t io n e t r égiona l i sa t io n: u ne
mi s e e n pe r s pe c t i ve " , i n L intégration régionale dans le monde,
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4 2
M I L T O N S A N T O S
G E M D E V , 1 9 9 4 ) , e n q u a n t o 4 0 % d o c o m é r c i o d o s E s t a d o s
U ni dos oc o r r e m no i n t e r i o r da s e mpr e s a s ( N . Choms ky , Folha
de S. Paulo, 25 de abril de 1993).
Fa la -se , tamb ém, de um a hum anidad e des te rr i toria l izada , u ma
de suas características sen do o desfalecim ento das fronteiras c om o
imperativo da globalização, e a essa idéia dever-se-ia uma outra: a
da existência, já agora, de um a cidadania universal. D e fato, as fron
te i r as mudaram de s igni f icação, mas nunca es t iveram tão vivas ,
na med ida em que o p rópr io exerc íc io das a tividades globa l izadas
não presc inde de u ma ação governamenta l capaz de torná- las e fe
t ivas dent ro d e um te r r i tór io . A hum anida de des te r r i tor ia l izada é
apenas um mi to. Por out ro lado, o exerc íc io da c idadania , me sm o
se avança a noção de mo ra l idade inte rnac iona l , é , a inda , um fa to
qu e depe nde da presença e da ação dos Estados n ac iona is .
E s s e mundo c omo f á bu l a é a l i me n t a do po r ou t r os i ng r e d i
e n t e s ,
e nt re os qu a is a pol i t ização das es ta t í s t icas , a começar pe la
forma pe la qua l é fe i ta a comparação da r iq ueza en t re as nações .
N o f undo , na s c ond i ç õe s a t ua is , o c ha ma do P r odu t o N a c i on a l
Br u t o é a pe na s um nome f a n t a s i a do que pode r í a mos c ha ma r
de p r od u t o g l oba l , j á que a s qua n t i da de s que e n t r a m ne s s a c on
tabi l idade são aque las que se r e fe rem às operações q ue cara c te
r izam a pró pria glob alização.
Af i rma-se , também , que a "mor te d o Estado" melhorar ia a vida
dos hom e ns e a sa úde das e mpr e s as , na me d i da e m que pe r mi t i
r ia a ampl iação da l iberdade de produz i r , de co nsu mir e de viver .
Ta l neol ibera l i smo se r ia o fundame nto da democrac ia . Obs ervan
do o func ionamento concre to da soc iedade econômica e da soc i
edade c ivi l , não é di f íc i l consta ta r que são cada vez em menor
nú me ro as empresas qu e se benef ic iam desse desmaio do Estad o,
enquanto a des igua ldade ent re os indivíduos aumenta .
P O R U M A O U T R A G L O B A L IZ A Ç Ã O
4 3
Sem essas f ábulas e mi tos , es te per íodo his tór ico n ão exis t i r ia
com o é . Tam bém não se r ia poss íve l a violênc ia do dinh e i ro. Este
só se torna violento e t i r ânico porqu e é se rvido pe la violênc ia da
informação. Esta se prevalece do fato de que, no f im do século
XX, a l inguagem ganha autonomia , const i tuindo sua própr ia le i .
I sso fac i l i ta a ent ronização de um subsis tema ideológico, sem o
qual a globalização, em sua forma atual, não se explicaria.
A v i o l ê nc i a do d i nh e i r o
A inte rnac iona l ização do capi ta l f inancei ro ampl ia - se , r ecen
tem ente , por vár ias r azões . N a fase his tór ica a tua l , as megaf i rmas
devem, obr iga tor iamente , preocupar - se com o uso f inance i ro do
d i nhe i r o q ue ob t ê m . A s g r a nde s e mpr e s a s s ão , qua s e que c om
puls or iam ente , ladeadas pôr grandes empresas f inance iras .
Essas empresas f inance i ras das mul t inac iona is ut i l izam em
gr a nde pa r t e a poupa nç a dos pa ís e s e m que s e e nc on t r a m. Q u a n
do uma f i rma de qua lquer out ro pa ís se ins ta la num pa ís C ou
D , as poupanças inte rnas passam a par t ic ipar da lógica f inance i
r a e do t r a ba l ho f i na nc e i r o de s s a mu l t i na c i ona l . Q ua ndo
expa t r iado, esse dinhe i ro pode regressar ao pa ís de or igem na
forma de c rédi to e de dívida , quer dizer , por inte rmédio das
grandes empresas globa is . O que se r ia poupança inte rna t r ans
forma-se em p oupan ça exte rna , pe la qua l os pa íses r ec ipiendar ios
dev em pagar jur os extor s ivos . O q ue sa i do pa ís co mo royalties,
i n t e l i gê nc i a c ompr a da , pa ga me n t o de s e r v i ç os ou r e me s s a de
lucros vol ta como crédi to e dívida . Essa é a lógica a tua l da
inte rnac iona l ização do c rédi to e da dívida . A ace i tação de um
mo de l o e c o nômi c o e m q ue o pa ga me n t o da d í v ida é p r i o r it á r i o
impl ica a ace i tação da lógica desse di nhe i ro .
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4 4 M I L T O N S A N T O S
As percepções fragmentadas e o d iscurso
ú n i c o d o mu n d o
E a partir dessa generalização e dessa coisif icação da ideolo
gia que , de um lado , se mul t ip l icam as percepç ões f r agmentada s
P O R U M A O U T R A G L O B A L IZ A Ç Ã O
4 5
e , de ou t r o , pode e s t a be l e c e r - s e um d i s c u r s o ún i c o do " mun
d o " , com impl icações na produção econômica e nas visões da
h i s t ó r i a c on t e mpor â ne a , na c u l t u r a de ma s s a e no me r c a do
global.
As bases materiais históricas dessa mitif icação estão na rea
l idade da técnica a tua l . A técnica apresenta - se ao hom em co m um
como um misté r io e uma bana l idade . De fa to , a técnica é mais
a c e it a do que c om pr e e nd i da . C om o t udo pa r e c e de l a de pe nde r ,
e la se apresenta como uma necess idade univer sa l , uma presen
ça indiscut íve l , dotada de uma força quase divina à qua l os ho
me ns a c a ba m s e r e nde ndo s e m bus c a r e n t e ndê - l a . E um f a t o
c om um no c o t i d i a no de t odos , po r c ons e gu i n t e , um a ba na l i da
d e , mas seus fundamentos e seu a lcance escapam à percepção
imedia ta , da í seu mis té r io . Ta is ca rac te r í s t icas a l imentam seu
imaginár io , a l ice rçado nas suas r e lações com a c iênc ia , na sua
exigênc ia de r ac iona l idade , no absolut i smo com que , ao se rviço
do me r c a do , c on f o r ma os c ompor t a me n t os ; t udo i s s o f a z e ndo
crer na sua inevi tabi l idade .
Quando o s i s tema pol í t ico formado pe los governos e pe las
e mpr e s a s u t i l i z a o s s i s t e ma s t é c n i c os c on t e mpor â ne os e s e u
imaginár io para produz i r a a tua l globa l ização, aponta -nos para
formas de re lações econômicas implacáve is , que não ace i tam
discussão e exigem obed iênc ia imedia ta , sem a qua l os a tores são
expulsos da cena ou permanecem escravos de uma lógica indis
pe ns á ve l ao f unc i ona me n t o do s i s te ma c omo u m t od o .
É um a forma de tota l i ta r i smo mu i to for te e ins idiosa, po rqu e
se base ia em noçõe s qu e parecem cen t ra is à própr ia idé ia da de
mocrac ia — l iberdade de opinião, de imprensa , tole rânc ia —,
ut i l izadas exa tamente para supr imir a poss ibi l idade de conhec i
mento do que é o mundo, e do que são os pa íses e os lugares .
Na s cond ições atuais de econ om ia interna cional , o f inanceiro
ga nha uma e s pé c i e de a u t onomi a . P o r i s s o , a r e l a ç ã o e n t r e a
f inança e a prod ução , ent re o que agora se cham a econo mia rea l
e o mundo da f inança , dá lugar àqui lo que Marx chamava de
loucura especula t iva , fundada no pape l do dinhe i ro em es tado
pur o . E st e se t o r na o c e n t r o do mu nd o . É o d i nhe i r o c om o , s i m
ples men te , dinhe i ro , r ec r iando seu fe t ichismo pe la ideologia . O
sis tema f inance iro desc obre fórmulas imaginosas , inven ta sem
pr e novos i n s t r ume n t o s , mu l t i p l ic a o que c ha m a de de r i va t ivos ,
qu e são formas sem pre renovadas de ofe r ta dessa mercad or ia aos
especuladores . O resul tado é que a especulação exponenc ia l as
s im redef inida va i se tornar a lgo indispensáve l , in t r ínseco, ao s i s
tema, graças aos processos técnicos da nossa época . E o tempo
rea l que va i perm i t i r a r apidez das operações e a vola t i l idade dos
asseis.
E a f inança move a economia e a deforma, levando seus
tentáculos a todos o s aspec tos da vida . Por i sso, é l íc i to fa la r de
t i r ania do dinhe i ro.
S e o d i nhe i r o e m e s t a do pu r o s e t o r n ou de s pó t i c o , i s s o t a m
bé m s e de ve a o f a t o de que t udo s e t o r na va l o r de t r oc a . A
mone t a r i z a ç ã o da v i da c o t i d ia na ga nhou , no m un do i n t e i r o , um
e nor me t e r r e no n os ú l t i mos 25 a nos . E s s a p r e s e nç a do d i nhe i r o
em toda par te acaba por const i tui r um dado ameaçador da nossa
exis tênc ia cot idiana .
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4 6 M I L T O N S A N T O S
P O R
U M A O U T R A G L O B A L IZ A Ç Ã O
4 7
da compet i t ividade qu e carac te r iza nosso tem po. O ra , é i sso tam
bém q ue jus t i f ica os individ ua l i smo s a r reba tadore s e posses s i
v o s :
i nd i v i dua l i s mos na v i da e c onômi c a ( a ma ne i r a c omo a s
e mpr e s a s ba t a l ha m uma s c om a s ou t r a s ) ; i nd i v i dua l i s mos na
o r de m da pol í ti c a (a ma ne i r a c omo os pa r t i dos f r e qüe n t e m e n t e
a ba ndo na m a idé i a de po l ít i c a pa r a se t o r na r e m s i mp l e s me n t e
e le i tore i ros) ; individua l i smos na ordem do te r r i tór io ( as c ida
des br igando umas com as out ras , as r egiões r ec lamando solu
ções par t icula r i s tas) . Também na ordem soc ia l e individua l são
i nd i v i dua l i s mos a r r e ba t a do r e s e pos s e s s i vos , que a c a ba m por
c ons t i t u i r o ou t r o c omo c o i s a. Comp or t a m e n t os que j u s t i f i c a m
tod o desrespe i to às pessoas são, af ina l, um a das bases da soc ia
bi l idade a tua l . Al iás , a mane i ra co mo as c lasses médias , no Bra
sil, s e c ons t it u í r a m e n t r on i z a a lóg i ca dos i n s t r ume n t os , e m l u
gar da lógica das f inalidades, e convoca os pragmatismos a que
s e t o r n e m t r i un f a n t e s.
Para tudo i sso, também cont r ibuiu a perda de inf luênc ia da
f ilosof ia na formula ção das c iênc ias soc ia is , cuja int e rd isc i
p l i na r i da de a c a ba po r bus c a r i n s p i r a ç ã o na e c onomi a . D a í o
e mp obr e c i m e n t o da s c i ê nci a s huma na s e a c ons e qü e n t e d i f i c u l
dade para inte rpre ta r o que va i pe lo m un do , já que a c iênc ia eco
nômica se torna , cada vez mais , uma disc ipl ina da adminis t r a
ção das coisas ao se rviço de um s is tema ideológico. E ass im que
se implantam novas concepções sobre o va lor a a t r ibui r a cada
obje to, a cada indivíd uo, a cada re lação, a cada lugar , legi t im an
do novas modal idades e novas r egras da produção e do consu
m o . E novas formas f inanceiras e da contabilida de nacion al. Esta,
a l iás , se r eduz a se r , apenas , um nome fantas ia de uma suposta
contabi l idade globa l , a lgo que inexis te de f a to , mas é tomado
co mo pa râm etro. Esta é um a das bases do subsis tem a ideológico
8 .
Competitividade consumo
confusão
dos espíritos
globalitarismo
N e s t e mu nd o g l oba l i za do , a c ompe t i t i v i da de , o c ons um o , a
confusão dos espí r i tos const i tuem ba luar tes do presente es tado
de coisas . A compet i t ivida de com anda nossas formas d e ação. O
consumo comanda nossas formas de inação. E a confusão dos
e s p í r i t o s i mpe de o nos s o e n t e nd i me n t o do mundo , do pa í s , do
lugar , da soc iedade e de cada um de nós mesmos.
A c ompe t i t i v i da de , a a us ê nc i a de c ompa i xã o
Nos úl t imos c inco séculos de desenvolvimento e expansão
geográfica do cap italismo, a conco rrência se estabelece com o regra.
Agora , a compet i t ividade tom a o lugar da compet ição. A co ncor
rênc ia a tua l não é mais a ve lha concor rênc ia , sobre tudo porque
chega e l iminando toda forma de compaixão. A compet i t ividade
tem a guer ra como norma. Há , a todo custo, que vencer o out ro,
esmagando-o, para tomar seu lugar . Os úl t imos anos do século
XX foram emblem át icos , porqu e ne les se r ea l iza ram grandes con
cent rações , grandes fusões, tanto na órbi ta da prod ução com o na
das f inanças e da informação. Esse movimento marca um ápice
do s i s tema capi ta l i s ta , mas é também indicador do seu paroxis
m o , já que a ident idade dos a tores , a té então m ais ou m eno s vis í
vel, agora f inalmente aparece aos olhos de todos.
Essa guer ra com o nor ma jus t i f ica toda forma de ape lo à for
ça , a que ass is t imos em diver sos pa íses , um ape lo não diss imu
lado, util izado para dir imir os conflitos e conseqüência dessa ética
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M I L T O N S A N T O S
que comanda out ros subsis temas da vida soc ia l , formando uma
conste lação que tanto or ienta e di r ige a produção da economia
com o tam bém a produção da vida . Essa nova le i do va lor — qu e
é uma le i ideológica do va lor — é uma f i lha di le ta da
compet i t ividade e acaba por se r r esponsáve l também pe lo aban
do no da noção e do fa to da sol idar iedade . Daí as f r agmentações
resul tantes . Daí a ampl iação do desemp rego. Daí o aband ono da
educação. Daí o desapreço à saúde como um bem individua l e
social inalienável. Daí todas as novas formas perversas de sociabi
lidade que á existem ou se estão preparando neste país, para fazer
de le — a inda mais — u m pa ís f r agmentado, cujas diver sas parce
las, de m od o a assegurar sua sobrevivênc ia imedia ta , se rão joga
das uma s cont ra as out ras e convidadas a uma ba ta lha sem quar te l .
O c o n s u m o e o s e u d e s p o t i s mo
T a mbé m o c ons umo muda de f i gu r a a o l ongo do t e mpo .
Fa lava- se , antes , de auton om ia da pro duç ão, para signi f ica r qu e
uma e mpr e s a , a o a s s e gur a r uma p r oduç ã o , bus c a va t a mbé m
ma nip ula r a opinião pe la via da publ ic idad e . Nes se caso, o f a to
ge r a dor do c ons u mo s e r i a a p r oduç ã o . M a s , a t ua l me n t e , a s e m
p r e sa s h e g em ô n i c a s p r o d u z e m o c o n s u m i d o r a n t es m e s m o d e
p r oduz i r o s p r odu t os . U m da do e s s e nc i a l do e n t e nd i me n t o do
c on s um o é que a p r oduç ã o do c ons umi d or , ho j e , p r e c e de à p r o
dução dos bens e dos se rviços . Então, na cade ia causa l , a cha
ma da a u t onom i a da p r oduç ã o c e de l ugar a o de s po t i s m o do c on
s umo . D a í , o i mpé r i o da i n f o r ma ç ã o e da pub l i c i da de . T a l
r e mé d i o t e r i a 1% de me d i c i na e 99% de pub l i c i da de , ma s t o
da s a s c o i s a s no c omé r c i o a c a ba m por t e r e s s a c ompos i ç ã o :
P O R U M A O U T R A G L O B A L IZ A Ç Ã O
4 9
publ ic idade + mate r ia l idade ; publ ic idade + se rviços , e esse é o
caso de tantas mercador ias cuja c i r culação é fundad a n um a p ro
pa ga nda i n s i s t e n t e e f r e qüe n t e me n t e e nga nos a . H á t oda e s s a
manei ra de organizar o consumo para permi t i r , em seguida , a
organização da produção.
T ai s ope r a ç õe s pode m t o r na r - s e s i mu l t â ne a s d i a n t e do t e m
po d o re lógio, mas , do pon to de vis ta da lógica , é a pro duç ão da
i n f o r ma ç ã o e da pub l i c i da de que p r e c e de . D e s s e modo , v i ve
mos cercados , por todos os lados , por esse s i s tema ideológico
tec ido ao redor do con sum o e da informação ideologizados . Esse
consumo ideologizado e essa informação ideologizada acabam
por se r o moto r de ações públ icas e pr ivadas . Esse par é , ao me s
mo tempo, for t í ss imo e f r agi l í ss imo. De um lado é mui to for te ,
pe la sua e f icác ia a tua l sobre a produção e o consumo. Mas, de
out ro lado, e le é mui to f r aco, mui to débi l , desde que encont re
mos a mane i ra de def ini - lo como um dado de um s is tema mais
a m p l o . O c o n s u m o é o g r a n d e e m o l i e n t e , p r o d u t o r o u
e nc or a j a do r de i mob i l i s mos . E l e é , t a mbé m, um ve í c u l o de
narc is i smos, por meio dos seus es t ímulos es té t icos , mora is , so
c ia is ; e aparece como o grande fundamenta l i smo do nosso tem
p o , porq ue a lcança e envolve toda gente . Por i sso, o e nte ndi me n
to do que é o mu nd o passa pe lo cons um o e pe la compet i t ividade ,
ambos fundados no mesmo s is tema da ideologia .
C o n s u m i s m o e c o m p e ti t iv i d a d e l ev a m a o e m a g r e c i m e n t o
mora l e inte lec tua l da pessoa , à r edução da per sona l idade e da
v i s ã o do mundo , c onv i da ndo , t a mbé m, a e s que c e r a opos i ç ã o
f un da m e n t a l e n t r e a fi gu ra do c ons um i do r e a f i gu ra d o
c idadão. É cer to que no Bras i l ta l oposição é menos sent ida ,
po r que e m nos s o pa í s j a ma i s h ouve a f igu ra d o c i da dã o . A s
c lasses chamad as supe r iores , inc luin do as c lasses méd ias , jam ais
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M I L T O N S A N T O S
mútuo das idé ias e da r ea l idade de autonomia individua l ( com a
vontade de produção de indivíduos for tes e de c idadãos) e da
idé ia e da r ea l idade de uma soc iedade sol idár ia ( com o Estado
c r e s c e n t e m e n t e e m p e n h a d o e m e x e r c e r u m a r e g u l a ç ã o
redis t r ibut iva) . As s i tuações e ram di fe rentes segundo os cont i
nente s e pa íses e , se o quad ro ac ima re fe r ido não const i tuía um a
rea l idade com ple ta , essa era um a aspi ração genera l izada .
Ao longo da his tór ia passada do capi ta l i smo, para le lamente
à evolução das técnicas , idé ias mora is e f i losóficas se di fun dem ,
ass im co mo a sua rea l ização pol í t ica e jur ídica , de mo do que os
costumes, as le i s , os r egulamentos , as ins t i tuições jur ídicas e
es ta ta is buscavam rea l iza r , ao mesmo tempo, mais cont role so
c ia l e , também, mais cont role sobre ações individua is , l imi tan
do a ação daque les ve tores que , de ixados soz inhos , levar iam à
ec losão de egoísmos, ao exerc íc io da força bruta e a desníve is
sociais cada vez mais agudos.
Na fase atual de globalização, o uso das técnicas conhece uma
impor tante mudança qua l i ta t iva e quant i ta t iva . Passamos de um
uso " imper ia l i s ta" , que e ra , também, um uso des igua l e combi
nado, segundo os cont inentes e lugares , a uma presença obr iga
t ó r i a e m t odos o s pa í s e s dos s i s t e ma s t é c n i c os he ge môn i c os ,
graças ao pape l uni f icador das técnicas de in formaç ão.
O uso im per ia l i s ta das técnicas permi t ia , pe la via da pol í t ica ,
uma cer ta convivênc ia de níve is di f e rentes de formas técnicas
e de formas organizac iona is nos diver sos impér ios . Ta l s i tuação
pe r ma ne c e p r a t i c a me n t e po r um s é c u l o , s e m que a s d i f e r e n
ças de poder ent re os impér ios fosse causa de conf l i tos durá
ve i s e n t r e el e s e de n t r o de l e s . O p r óp r i o i mpe r i a l i s m o e r a " d i
fe renc ia l" , ta l carac ter í s tica sendo conseqü ênc ia da subo rdinaç ão
do mercado à pol í t ica , se ja a pol í t ica inte rnac iona l , se ja a pol í -
P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O
5 3
t i c a i n t e r i o r a c a da pa í s ou a c a da c on j un t o i mpe r i a l . Com a
globa l ização, as técnicas se tornam mais e f icazes , sua presença
s e c o n f u n d e c o m o e c ú m e n o , s e u e n c a d e a m e n t o p r a t i c a m e n t e
e s pon t â ne o s e r e f o r ç a e , a o me s mo t e mpo , o s e u us o e s c a pa ,
s ob mu i t o s a s pe c t os , a o dom í n i o da po l í t i c a e s e t o r n a s ubo r
d i na do a o me r c a do .
Global i tar i smos e total i tar i smos
C om o as técnicas hegemô nicas a tua is são, todas e las , f ilhas
da c iênc ia , e como sua ut i l ização se dá ao se rviço do mercado,
e s s e a má l ga ma p r oduz um i de á r io da té c n i c a e do me r c a do que
é santif icado pela ciência, consid erada, ela própria , infalível. Essa,
a l iás , é uma das fontes do poder do pensamento único. Tudo o
que é f e i to pe la mão dos ve tores fundamenta is da globa l ização
par te de idé ias cient í ficas , indispensáve is à produ ção, a l iás ace- .
le rada , de novas r ea l idades , de ta l mod o qu e as ações ass im cr i
a da s s e i mp õe m c om o s o l uç õe s ún i c a s .
Na s condiçõ es a tua is , a ideologia é r e forçada de uma form a
qu e se r ia impossíve l a inda há um qua r to de século, já qu e , pr i
me i ro as idé ias e , sob re tud o, as ideologias se t r ansfo rmam em
si tuações , enquanto as s i tuações se tornam em s i mesmas " idé i
as" ,
" idé ias do que fazer" , " ideologias" e impreg nam , de vol ta , a
ciência (que santif ica as ideologias e legitima as ações) , uma ci
ênc ia cada vez mais r edu tora e r eduz ida , mais dis tante da b usca
da "verdade" . Desse conjunto de var iáve is decor rem, também,
ou t r a s c ond i ç õe s da v i da c on t e mpor â ne a , f unda da s na ma t e -
mat ização da exis tênc ia , ca r regando consigo uma c rescente se
dução pe los números , um uso mágico das es ta t í s t icas .
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M I L T O N S A N T O S
É t a mbé m a pa r t i r de s s e qua d r o que s e pode i n t e r p r e t a r a
se r ia l ização de que fa lava J . -P Sar t r e em Questions de méthode,
Critique de la Raison dialectique, 1960. Em ta is condições , ins ta lam -
se a compet i t ividade , o sa lve- se -quem-puder , a vol ta ao caniba
l i s mo , a s up r e s s ã o da s o l i da ri e da de , a c umu l a ndo d i f i c u lda de s
para um convív io soc ia l saudáve l e para o exerc íc io da d em ocr a
c i a. E nqua n t o e s t a é re duz i da a uma de moc r a c i a de me r c a d o
e
a me s qu i nha da c om o e l e i t o r a li s mo , i s to é , c ons um o de e l e iç õe s ,
a s " pe s qu i s a s " pe r f i l a m- s e c omo um a f e r i do r qua n t i t a t i vo da
opin ião, da qua l acaba po r se r um a das formado ras , levando t ud o
i s s o a o e mpob r e c i me n t o d o de ba t e de i dé ia s e à p r óp r i a mo r t e
da pol í t ica . N a esfe ra da soc iabi l idade , levantam -se ut i l i ta r i smos
c omo r e g r a de v i da me d i a n t e a e xa c e r ba ç ã o do c ons umo , dos
na r c i s i s mos , do i me d i a t i s mo , do e go í s mo , do a ba ndono da s o
l idar iedade , com a implantação, ga lopante , de uma é t ica prag
mát ica individua l i s ta . É dessa forma q ue a soc iedade e os in diví
duos a c e i t a m da r a de us à ge ne r os i da de , à s o l i da r i e da de e à
e moç ã o c om a e n t ron i z a ç ã o do r e i no dq c á l c u l o ( a pa r t i r do c á l
culo econômico) e da compet i t ividade . j
São, todas essas , condiçõe s para a di fusão de um pe nsa me n
to e de uma prá t ica tota l i tá r ias . Esses tota l i ta r i smos se dão na
e s f e r a do t r a ba l ho c omo , po r e xe mpl o , num mundo a g r í c o l a
mode r n i z a do onde os a t o r e s s uba l t e r n i z a dos c onv i ve m, c omo
num exérc i to , submet idos a uma disc ipl ina mi l i ta r . O tota l i ta
r i smo não é , porém, l imi tado à esfe ra do t r aba lho, escor rendo
para a esfera da polít ica e das relações interpessoais
e
i nva d i ndo
o p r óp r i o mu nd o da pe s qu i s a e do e ns i no un i ve r s i t á ri o s , me d i
ante um cerco às idé ias cada vez menos diss imulado. Cabe-nos ,
me s mo , i nda ga r d i a n t e de s s a s nova s r e a l i da de s s ob r e a
per t inênc ia da presen te ut i l ização de concep ções já ul t r apassa -
P O R U M A O U T R A G L O B A L IZ A Ç Ã O
5 5
da s de de moc r a c i a , op i n i ã o púb l i c a , c i da da n i a , c onc e i t o s que
necess i tam urgente r evisão, sobre tudo nos lugares onde essas
c a t e go r i a s nunc a f o r a m c l a r a me n t e de f i n i da s ne m t o t a l me n t e
exerc i tadas .
Nossa grande ta re fa , hoje , é a e laboração de um novo dis
cur so, capaz de desmi t i f ica r a compet i t ividade e o consumo e
de a tenuar , senão desmanchar , a confusão dos espí r i tos .
9 . A violência estrutural e a perversidade sistêmica
Fala - se , hoje , mui to em violênc ia e é gera lmente admit ido
que é quase um es tado, uma s i tuação carac ter í s tica do nosso tem
p o .
Todavia , dent re as violênc ias de qu e se f ala , a maio r par te é
s ob r e t u do f o r ma da de v i o lê nc i a s func i onai s de r i va da s , e nq ua n
to a a tenção é menos vol tada para o que pre fe r imos chamar de
violênc ia es t rutura l , que es tá na base da produção das out ras e
const i tui a violênc ia cent ra l or igina l . Por i sso, acabamos por
apenas co nde nar as violênc ias per i f é ricas par t icula res .
Ao n osso ver , a violênc ia es t rutu ra l r esul ta da presença e das
manifes tações conjuntas , nessa e ra da globa l ização, do dinhe i ro
e m e s t a do pu r o , da c ompe t i t iv i da de e m e s t a do pu r o e da po t ê n
c i a e m e s t a do pu r o , c u j a a s s oc i a ç ã o c onduz à e me r gê nc i a de
novos t o t a l i t a ri s mos e pe r mi t e pe ns a r que v i ve mos nu ma é poc a
de globa l i ta r i smo mu i to m ais que de globa l ização. Para le lamente ,
evoluímos de s i tuações em que a perver s idade se mani fes tava
de forma i solada para uma s i tuação na qua l se ins ta la um s is te
ma d a pe r ve r s ida de , que , a o me s m o t e m po , é r e s u l t a do e c a us a
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5 6
M I L T O N S A N T O S
da legi t imação do dinhe i ro em es tado puro, da compet i t ividade
em estado puro e da potênc ia em es tado puro, consagrando, a f i
nal, o f im da ética e o f im da polít ica.
O d i n h e i r o e m e s ta d o p u r o
Com a globa l ização impõe-se uma nova noção de r iqueza ,
de p r os pe r i da de e de e qu i l í b r i o ma c r oe c onômi c o , c onc e i t o s
fundados no dinhe i ro em es tado puro e aos qua is todas as eco
nomias nac iona is são chamadas a se adapta r . A noção e a r ea l i
da de da d í v ida i n t er na c i ona l t a mb é m d e r i va m de s sa me s m a i de
o l o g i a . O c o n s u m o , t o r n a d o u m d e n o m i n a d o r c o m u m p a r a
todos os indivíduos , a t r ibui um pape l cent ra l ao dinhe i ro nas
suas di fe rentes mani fes tações; jun tos , o dinhe i ro e o con su mo
aparecem co mo reguladores da vida individua l . O nov o din he i ro
t o r na - s e on i p r e s e n t e . F unda do numa i de o l og i a , e s s e d i nhe i r o
sem medida se torna a medida gera l , r e forçando a vocação para
c ons i de r a r a a c umul a ç ã o c omo u ma me t a e m s i me s m a . N a r e
a l idade , o r esul tado dessa busca tanto pode levar à acumulação
(para a lguns) como ao endividamento (para a maior ia ) . Nessas
condições , f i rma-se um c í rculo vic ioso dent ro do qua l o medo
e o de s a mpa r o s e c r ia m mu t ua m e n t e e a bus c a de s e n f r e ada do
d i nhe i r o t a n t o é um a c aus a c om o uma c ons e qüê nc i a do de s a m
pa r o e do m e do .
O resul tado obje t ivo é a necess idade , r ea l ou imaginada , de
buscar mais dinhe i ro, e , como es te , em seu es tado puro, é indis
pensáve l à exis tênc ia das pessoas , das emp resas e das nações , as
formas pe las qua is e le é obt ido, se jam qua is forem , já se enc on
t ram antec ipadamente jus t i f icadas .
P O R U M A O U T R A G L O B A L IZ A Ç Ã O
57
A c o mp e t i t i v i d a d e e m e s ta d o p u r o
A necess idade de capi ta l ização conduz a adota r como regra
a ne c e s s i da de de c ompe t i r e m t odos o s p l a nos . D i z - s e que a s
nações necess i tam compet i r ent re e las — o que , todavia , é duvi
dos o —
e
a s e mpr e s a s c e r t a me n t e c ompe t e m por um qu i n hã o
s e mpr e m a i o r do me r c a do . M a s a e s t a b il i da de de um a e mpr e s a
pode de p e nde r de um a pe que na a ç ã o des s e me r c a do . A s o b r e
v i vê nci a es t á s e mpr e po r um f io . N u m mu nd o g l oba l iz a do , r e
giões e cidades são cham adas a comp etir e, diante das regras atuais
d a p r o d u ç ã o e d o s i m p e r a t i v o s a t u a i s d o c o n s u m o , a
compet i t ividade se torna tam bém um a regra da convivênc ia en t re
as pessoas . A necess idade de comp et i r é , a l iás , legi t imada por um a
ideologia la rgamente ace i ta e di fundida , na medida em que a
desobed iênc ia às suas r egras impl ica perde r posições e , a té m es
m o ,
de s a pa r e c er do c e ná r i o e c onômi c o . C r i a m- s e , de s s e m odo ,
nov os "va lores" em todo s os planos , uma no va "é t ica" pervasiva
e operac iona l f ace aos mecanismos da globa l ização.
Con c or r e r e c om pe t i r nã o s ã o a me s m a c o is a . A c onc or r ê n
c ia po de a té se r saudáve l sempre que a ba ta lha ent re agentes , para
melhor empreender uma ta re fa e obte r melhores r esul tados f i
n a i s , exige o r espe i to a ce r tas r egras de convivênc ia prees ta
be lec idas ou não . Já a compet i t ividade se funda na inven ção d e
novas a rmas de luta , num exerc íc io em que a única r egra é a
conquis ta da melhor posição. A compet i t ividade é uma espéc ie
de guer ra em que tudo va le e , desse modo, sua prá t ica provoca
um af rouxamento dos va lores mora is e um convi te ao exerc íc io
da violênc ia .
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M I L T O N S A N T O S
A p o tê n c i a e m e s ta d o p u r o
P a r a e xe r c e r a compe t i t i v i da de e m e s t a do pu r o e ob t e r o d i
nhe i r o e m e s t a do pu r o , o pode r ( a po t ê nc i a ) de ve s e r t a mbé m
e xe r c i do e m e s t a do pu r o . O us o da f or ça a c a ba se t o r na n do um a
ne c e s s i dade . N ã o há ou t r o tetos, out ra f ina lidade q ue o pr óp r i o
uso da força , já qu e e la é indispensáve l para com pet i r e f azer ma is
d i nhe i r o ; is s o ve m a c ompa nha do pe l a de s ne c e s si da de de r e s p on
s a b i li da de pe r a n t e o ou t r o , a c ol e t iv i da de p r óx i ma e a h um a n i
dade em gera l .
P o r e xe mpl o , a idé i a de que o de s e m pr e go é o r e s u l ta do de
um j ogo s i mp l ó r i o e n t r e f o r ma s t é c n i c a s e de c i sõe s m i c r oe -
conômicas das empresas é uma s impl i f icação, or iginada dessa
confusão, como se a nação não devesse sol idar iedade a cada um
dos seus membros . O abandono da idé ia de sol idar iedade es tá
po r t r á s de s s e e n t e nd i me n t o da e c onomi a e c onduz a o de s a m
pa r o e m qu e v ive mos ho j e . J a ma i s houve n a h i s t ó r i a um pe r í o
do em que o medo fosse tão genera l izado e a lcançasse todas as
á r ea s da nos s a v i da : me d o do de s e mpr e go , m e d o da f ome , m e d o
da violênc ia , med o do out ro . Ta l me do se esp a lh a e se aprofunda
a par t i r de uma violênc ia di fusa , mas es t rutura l , t íp ica do nosso
t e mpo , c u j o e n t e nd i me n t o é i nd i s pe ns á ve l pa r a c ompr e e nde r ,
de man e i ra mais adequada , ques tões co mo a dívida soc ia l e a vi
olênc ia func iona l , hoje tão presentes no cot idiano de todos .
A p e r v er s i d ad e s i s t ê m i c a
Seja qua l for o ângulo pe lo qua l se examinem as s i tuações
carac te r í s ticas do per ío do a tua l , a r ea l idade p o d e se r vis ta com o
P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O
59
um a fábr ica de perver s ida de . A fome de ixa de se r um fa to i so la
do ou ocasiona l e passa a se r um dado genera l izado e perma
nente . E la a t inge 800 mi lhões de pessoas espa lhadas por todos
os c on t i ne n t e s , s e m e xc e ç ã o . Q u a nd o os p r og r e s s os da m e d i c i
na e da informação deviam autor iza r uma redução substanc ia l
dos p r ob l e ma s de s a úde , s a be mos que 14 mi l hõe s de pe s s oa s
mo r r e m t odos o s d ia s , a n t e s do qu i n t o a no d e v i da .
Dois bi lhões de pessoas sobrevivem sem água potáve l . N u n
ca na his tór ia houve um tão grande núm ero d e des locados e r e fu
giados . O fenômeno dos sem- te to, cur ios idade na pr imei ra me
tade do século XX, hoje é um fa to bana l , presente em todas as
grandes cidades do mun do . O desem prego é a lgo tom ado com um .
Ao m esm o temp o, f icou mais di fíc il do que antes a t r ibui r ed uca
ção de qua l idade e , mesmo, acabar com o ana l fabe t i smo. A po
breza tamb ém aum enta . N o f im d o século X X havia mais 600
milhõ es de pobres do qu e em 1960; e 1 , 4 bi lhão de pessoas ga
nham menos de um dóla r por dia . Ta is números podem ser , na
verdad e , ampl iados porq ue , a inda aqui , os método s qu ant i ta t ivos
da es tat í s tica engana m: se r pobre não é apenas ganhar men os do
que uma soma a rbi t r a r iamente f ixada ; se r pobre é par t ic ipar de
um a s i tuação es t rutura l , com u ma posição re la tiva infe r ior d en
t ro da soc iedade como um todo. E essa condição se ampl ia para
um número cada vez maior de pessoas . O fa to, porém, é que a
pobreza tanto quanto o desemp rego agora são considerados co mo
algo "na tura l" , ine rente a seu própr io processoTJuntõ ao d esem
prego e à pobreza absoluta , r egis t r e -se o empo brec im ento re la t i
vo de camadas cada vez maiores graças à de te r ioração do va lor do
t raba lho. N o M éxico, a par te de t r aba lho na renda nac iona l ca i de
3 6 %
na década de 197 0 para 2 3 % e m 1992 . V i ve mos nu m mu nd o
de exclusões, agravadas pela desproteção social, apanágio do mo
de lo neol ibera l , que é , tamb ém , c r iador de insegurança .
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6 0
M I L T O N S A N T O S
Na verdade , a je rver s idade de ixa de se mani fes ta r por f a tos
isolados , a t r ibuídos a dis torções da per sona l idade , para se es ta
be lecer como um s is tema. Ao nosso ver , a causa essenc ia l da
perver s ida de s i s têmica é a ins t i tuição, por le i gera l da vida soc i
al ,
da compet i t ividade co mo regra absoluta , um a com pet i t ividade
qu e escor re sobre to do o edi f íc io soc ia l . O outro, se ja e le empre
s a , i n s t i t u iç ã o ou i nd i v í duo , a pa r e ce c om o u m obs t á c u l o à r e a
l ização dos f ins de cada um e deve se r r emo vido , po r i sso sendo
c ons i de r a do u ma c o i sa . D e c or r e m da í a c e l e b ra ç ã o dos e go í s
m o s ,
o a las t r amen to dos narc is i smo s, a bana l ização da guer ra d e
todo s cont ra todos , com a ut i lização de qua lq uer qu e seja o m eio
para obte r o f im col imado, i s to é , compet i r e , se poss íve l , ven
cer . Da í a di fusão, também genera l izada , de out ro subproduto
da compet i t ividade , i s to é , a cor rupção.
Esse s i s tema da perver s idade inc lui a mor te d a Pol í t ica ( c om
um P maiúsc ulo) , já que a con duçã o do processo pol í t ico passa
a se r a t r ibuto das grandes em presas . Jun te - s e a isso o proce sso
de c on f o r ma ç ã o da op i n i ã o pe la s mí d i a s , um da do i mpo r t a n t e
no mov i me n t o de a l i e na ç ã o t r a z i do c om a s ubs t i t u i ç ã o do de
ba te c ivi l iza tór io pe lo discurso único do mercado. Daí o ensi
na me n t o e o a p r e nd i z a do de c ompor t a me n t os dos qua i s e s t ã o
ausentes objetivos f inalísticos e éticos.
Assim e laborado, o s i s tema da perver s idade legi t ima a pree
mi nê nc i a de um a a ç ão he ge môn i c a m a s s e m r e s pons a b i l i da de ,
e a ins ta lação sem cont rapar t ida de uma ordem ent rópica , com
a p r oduç ã o " na t u r a l " da de s o r de m .
P a r a t ud o i s so , t a mb é m c on t r i bu i o e s t a be l e c i me n t o do i m
pé r i o do c ons umo , de n t r o do qua l s e i n s t a l a m c ons umi dor e s
mais que per fe i tos (M. Santos , O espaço do cidadão, 1988) , leva
dos à negl igênc ia em re lação à c idadania e seu corolá r io , i s to é , o
P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O
6 1
men ospre zo quan to à l iberdade , cujo cul to é subst i tuído pe la pre
ocupação com a incolumidade . Esta r eacende egoísmos e é um
dos fermentos da quebra da solidariedade entre pessoas, classes e
regiões . Inc luam-se tam bém , nessa l is ta dos processos ca rac te r í s
ticos da instalação do sistema da perversidade, a ampliação das d e
sigualdades de todo gênero: interpessoais, de classes, regionais,
inte rnac iona is . Às ant igas des igua ldades , somam -se novas .
Os papé is dom inan tes , legi t imados pe la ideologia e pe la prá
t ica da compet i t ividade , são a ment i r a , com o nome de segredo
da ma r c a ; o e ngodo , c om o nom e de marketing; a diss imulação e
o c inism o, com o s nom es de tá t ica e es t r atégia . E um a s i tuação
na qua l se prod uz a glor if icação da esper teza , negando a s incer i
dade , e a glori f icação da avareza , negando a genero sidade . De s
se modo, o caminho f ica aber to ao abandono das sol idar iedades
e ao f im da é t ica , mas , també m, da pol í t ica . Para o t r iunfo das
novas vi r tudes pragmát icas , o idea l de democrac ia plena é su bs
t i tuíd o pe la const ruç ão de uma dem ocrac ia de merca do, na qua l
a dis t r ibuição do poder é t r ibutá r ia da r ea l ização dos f ins úl t i
mos do própr io s i s tema globa l i tá r io . Estas são as r azões pe las
qua is a vida norm al de to dos os dias es tá suje ita a uma violênc ia
estrutural que, aliás, é a mãe de todas as outras violências.
10 .
Da política dos Estados
à
politica das empresas
Façamos um regresso, mui to breve , ao começo da his tór ia
huma na , qua ndo o home m e m s oc i e da de , r e l a c i ona ndo- s e d i
r e tam ente co m a na tureza , const rói a his tór ia . Nesse começo dos
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6 2
M I L T O N S A N T O S
tempos, os laços ent re te r r i tór io , pol í t ica , economia , cul tura e
l i ngua ge m e r a m t r a ns pa r e n t e s . N a s s oc i e da de s que os a n t r opó
l ogos e u r ope us e no r t e -a me r i c a nos o r gu l ho s a me n t e c ha ma r a m
de pr imi t ivas , a r e lação ent re se tores da vida soc ia l também se
da va d i r e t a me n t e . N ã o ha v i a p r a ti c a me n t e i n t e r me d i a ç õe s .
Poder - se - ia considera r que exis t ia uma te r r i tor ia l idade ge
nu í na . A e c onom i a e a c u l t u r a de pe nd i a m do t e r r i t ó r i o , a l i n
guagem era uma emanação do uso do te r r i tór io pe la economia
e pe la cul tura , e a pol í t ica também estava com e le int imamente
re lac ionada .
Havia , por conseguinte , um a te r r i tor ia l idade absoluta , no sen
tido de que, em todas as manifestações essenciais de sua existên
c ia, os moradores per tenc iam àqui lo que lhes per tenc ia , i s to é , o
terr itório. Isso criava um sentido de identidade entre as pessoas e
o seu espaço geográf ico, que lhes a t ribuía , em função da p rod u
ção necessár ia à sobrevivência do gru po, um a noção par t icula r de
l imi tes , acar re tando, para le lamente , uma compar t imentação do
espaço, o que também produz ia um a idé ia de domín io. Para man
ter a identidade e os limites, era preciso ter clara essa idéia de
dom ínio, de po der . A pol í t ica do te r r i tór io t inha as mesma s bases
que a pol ít ica da economia , da cul tura , da l inguagem, form ando
um conjunto indissoc iáve l . Cr iava- se , para le lamente , a idé ia de
comunidade , um contexto l imi tado no espaço.
Sistemas técn icos , s i s temas f i losóf icos
Toda re lação do ho me m co m a na tureza é por tadora e pro dut o
ra de técnicas que se foram en r iquecen do, diver s i f icando e avolu
ma nd o a o l ongo do t e mpo . N os ú l t i mos s é cu l os, c onhe c e mos um
P O R U M A O U T R A G L O B A L IZ A Ç Ã O
6 3
a va nç o dos s i s t e ma s t é c n i c os , a t é que , no s é c u l o X V I I I , s u r
ge m a s t é c n i c a s da s má qu i na s , que ma i s t a r de vã o s e i nc o r po
r a r a o s o l o c o m o p r ó t e s e s , p r o p o r c i o n a n d o a o h o m e m u m
me no r e s fo r ç o na p r odu ç ã o , no t r a ns po r t e
e
na s c omun i c a ç õe s ,
mudando a f ace da Ter ra , a l te rando as r e lações ent re pa íses
e
e n t r e s oc i e da de s e i nd i v í duos . A s té c n i c a s o f e r e c e m r e s pos t a s
à von t a d e de e vo l uç ã o dos hom e ns e , de f i n ida s pe l a s pos s i b i l i
dades que c r iam, são a marca de cada per íodo da his tór ia .
Áv ida ass im rea l izada por me io dessas técnicas é , pois , cada
vez menos subordinada ao a lea tór io e cada vez mais exige dos
home ns c ompor t a me n t os p r e v i s í ve i s . E s s a p r e v i s i b i l i da de de
c ompor t a me n t o a s s e gur a , de a l guma ma ne i r a , uma v i s ã o ma i s
r a c iona l do mu nd o e t a m bé m dos l ugar e s e c onduz a uma o r ga
nização soc iotécnica do t r aba lho, do te r r i tór io e do fenômeno
do pode r . D a í o de s e nc a n t a me n t o p r og r e s s i vo do mundo .
N o s é c u lo X V I I I, a c on te c e r am do i s f e nôme nos e x t r e ma m e n
te impor tan tes . U m é a prod ução das técnicas das máq uina s , qu e
reva lor izam o t r aba lho e o capi ta l , r equa l i f icam os te r r i tór ios ,
pe r m i t e m a conqu i s t a de novos e s pa ç os e a b r e m h or i z on t e s pa r a
a huma nida de . Esse século marca o r e forço do capi ta li smo e tam
bé m a e n t r a da e m c e na do home m c omo um va l o r a s e r c ons i
de r a do . O na s c i me n t o da t é c n i c a da s má qu i na s , o r e f o r ç o da
condição técnica na vida soc ia l e individua l e as novas concep-
* ções sobre o h om em se corpor i f icam com as idé ias f ilosóf icas
que se i r iam tornar forças da pol í t ica . Este é um out ro dado
i mpor t a n t e .
O século XVII I produz iu os enc ic lopedis tas e a r evolução
amer icana e a Revolução Francesa , r espostas pol í t icas às idé ias
f il os óf ic as . N u m m om e n t o e m que o c a p i t a li s mo t a m bé m s e
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M I L T O N S A N T O S
r e forçava , se as técnicas houvessem s ido ent regues inte i r amen
te às mãos capi ta l i s tas sem que , pe lo out ro lado, surgissem as
idé ias f i losóf icas (que também eram idé ias mora is) , o mundo
te r ia se organizado de forma di fe rente .
Se ao lado desses progressos da técnica a se rviço da p ro du
ção e do capi ta l i smo não ho uvesse a progressão das idé ias , te r í
a mos t i do um a e c los ã o mu i t o ma i o r do u t i l i t ar i s mo , c om um a
prá t ica mais avassa ladora do lucro e da concor rênc ia . Ao con
t r á r io ,
foi es tabe lec ida a poss ibi l idade de enr iquecer mo ra lm ente
o indivíduo. A mesma é t ica glor i f icava o indivíduo responsáve l
e a cole t ividade responsáve l . Ambos e ram responsáve is . Indiví
du o e c o l e t iv i da de e r a m c ha ma dos a c r ia r j un t os u m e n r i que c i
mento rec íproco que i r ia aponta r para a busca da democrac ia ,
po r i n t e r m é d i o do E s t a do N a c i ona l , do E s t a do de D i r e i t o e do
Estado Soc ia l , e para a prod ução da c idadania plena , r e ivind ica
ção que se foi a f i rmando ao longo desses séculos . Cer tamente a
c idadania nunca chegou a se r plena , mas quase a lcançou esse
es tágio em cer tos pa íses , durante os chamados t r inta anos glor i
osos depois do f im da Segunda Guer ra Mundia l . E essa quase
pleni tude e ra para le la à quase pleni tude da democrac ia . A c ida
dania plena é um dique cont ra o capi ta l pleno.
Tecnoc iênc ia , g lobal ização e h i s tór ia sem sentido
A g l oba l i z a ç ã o ma r c a um mome n t o de r up t u r a ne s s e p r o
cesso de evolução socia l e mora l que se vinha fazendo n os sécu
los preceden tes . E i rônico recordar que o progresso técnico apa
r e c i a , de s de os s é c u l os a n t e r i o r e s , c omo uma c ond i ç ã o pa r a
rea l iza r essa sonhada globa l ização com a mais comple ta huma-
P O R U M A O U T R A G L O B A LI Z A Ç Ã O
65
n i z a ç ã o da v i da no p l a ne t a . F i na l me n t e , qua n do e s s e p r og r e s s o
técnico a lcança um níve l super ior , a globa l ização se r ea liza , ma s
nã o a s e rv i ç o da hum a n i da de .
A g l oba l i z a ç ã o ma t a a noç ã o de s o l i da r i e da de , de vo l ve o
ho me m à c ond i ç ã o p r imi t i va do c a da um p or s i e , c om o s e vo l
tássemos a se r animais da se lva , r eduz as noções de mora l idade
públ ica e par t icula r a um quase nada .
O pe r í odo a t ua l t e m c omo uma da s ba s e s e s s e c a s a me n t o
ent re c iênc ia e técnica , essa tecnoc iênc ia , cujo uso é cond ic ionad o
pe lo merca do. Por conseguin te , t r a ta - se de um a técnica e de um a
ciênc ia se le t ivas . Como, f r eqüentemente , a c iênc ia passa a pro
duz i r a qu i l o que i n t e r e ss a a o me r c a do , e nã o à huma n i da de e m
gera l , o progresso técnico e c ient í fico não é semp re um progresso
mo ra l . P ior , ta lvez , do qu e i sso: a ausênc ia desse progresso m o
ra l e tudo o qu e é f e i to a par t i r dessa ausênc ia va i pesar for te
me n t e s ob r e o mode l o de c ons t r uç ã o h i s t ó r i c a domi na n t e no
úl t imo quar te l do século XX.
Essa globalização tem de ser encarada a partir de dois proces
sos parale los. De u m lado, dá- se a produ ção de u ma mater ia l idade ,
ou seja, das condições materiais que nos cercam e que são a base
da produçã o econômica , dos t r anspor tes e das comu nicações . De
outro há a produção de novas relações sociais entre países, classes
e pessoas. A nova situação, conf orm e á acentu amo s, vai se alicerçar
em duas colunas centra is . U m a tem c om o base o dinhe i ro e a out ra
se funda na informação. Den t ro de cada pa ís , sobre tu do ent re os
mais pobres , informação e dinhe i ro mundia l izados acabam por
se imp or com o a lgo autô nom o face à soc iedade e , me sm o, à eco
nomi a , t o r na ndo- s e u m e l e m e n t o f unda me n t a l da p r oduç ã o , e a o
me sm o te mp o da geopol í t ica , i s to é , das r e lações ent re pa íses e
den t ro de cada nação.
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6 6
M I L T O N S A N T O S
A i n f o r ma ç ã o é c e n t ra l i z ada na s mã os de um nú me r o e x t r e
mamente l imi tado de f i rmas. Hoje , o essenc ia l do que no mun
do se lê , tanto em jorna is como em l ivros , é produz ido a par t i r
de meia dúz ia de empresas que , na r ea l idade , não t r ansmi tem
novidades , mas as r eescrevem de mane i ra espec í f ica . Apesar de
a s c ond i ç õe s t é c n ic a s da in f o r ma ç ã o pe r m i t i r e m q ue t oda a h u
ma n i da d e c onhe ç a t udo o que o mu nd o é , a c a ba mos na r e a l ida
de por não sabê- lo , por causa dessa inte rmediação deformante .
O mundo se torna f luido, graças à informação, mas também
a o d i nhe i r o . T odos os c on t e x t os s e i n t r ome t e m e s upe r põe m,
corpor i f icando um contexto globa l , no qua l as f ronte i r as se tor
nam porosas para o dinhe i ro e para a informação . Além disso , o
te r r i tór io de ixa de te r f ronte i ras r ígidas , o qu e leva ao enf raq ue
c i me n t o e à muda nç a de na t u r e z a dos E s t a dos na c i ona i s .
O discurso que ouv imos tod os os dias , para nos f azer c re r qu e
deve haver meno s Estado, va le - se dessa men c ionada porosid ade ,
mas sua base essencial é o fato de que os con duto res da g lobalização
necessitam de u m E stado f lexível a seus interesses. As privatizações
são a most ra de qu e o capita l se tom ou devorante , guloso ao ex
t r e mo , e x i g indo s e mpr e ma i s , que r e ndo t ud o . A l é m d i s s o , a i n s
talação desses capitais globalizados supõe q ue o terr itó rio se adap te
às suas necessidades de f luidez, investindo pesadamente para al
terar a geografia das regiões escolhidas. De tal forma, o Estado
acaba por te r men os recursos para tudo o q ue é soc ia l, sob re tud o
no caso das pr iva t izações ca rica tas , como no mo delo bras i le i ro ,
que f inanc ia as empresas es t range i ras candida tas à com pra d o ca
pi ta l soc ia l nac iona l. Nã o é que o Estado se ausente o u se torn e
men or . E le apenas se omi te quan to ao inte resse das populações e
se torna mais forte, mais ágil , mais presente, ao serviço da econo
mi a domi na n t e .
P O R U M A O U T R A G L O B A LI Z A Ç Ã O
6 7
As empresas g lobais e a morte da pol í t i ca
A pol í tica agora é f e ita no merca do. Só que esse mercado g lo- \
ba l não exis te como a tor , mas com o um a ideologia, um s ímb olo.
O s a t o r e s s ã o as e mpr e s a s g l oba i s , que nã o t ê m p r e oc u pa ç õe s
é t i c a s , ne m f i na l í s t i c a s . D i r - s e - á que , no mundo da c ompe
t i t ividade , ou se é cada vez mais individua l i s ta , ou se desapare
ce . Então, a própr ia lógica de sobrevivênc ia da empresa globa l
s uge r e que f unc ione s e m ne nh um a l t r u í s mo . M a s , s e o E s t a do
não p od e se r sol idár io e a empresa n ão pod e se r a l t ruís ta , a soc ie
da de c om o um t odo nã o t e m qu e m a val ha . A gor a s e f al a mu i t o
nu m te rce i ro se tor, em qu e as empresas pr ivadas assum ir iam um
traba lho de ass is tênc ia soc ia l antes defe r ido ao poder públ ico.
Caber - lhes- ia , desse modo, escolher qua is os benef ic iá r ios , pr i
vi legiando uma parce la da soc iedade e de ixando a maior par te
de fora . Haver ia f r ações do te r r i tór io e da soc iedade a se rem
deixadas por conta , desde que não convenham ao cá lculo das
f irmas. Essa "pol í t ica" das emp resas equiv a le à decre ta ção d e
mor te da Pol í t ica .
A pol í t ica , por def inição, é sempre ampla e supõe uma visão
de conjunto. E la apenas se r ea l iza quando exis te a consideração
de t odos e de t udo . Q u e m nã o t e m v i s ã o de c on j un t o nã o c he ga
a se r pol í t ico. E não há pol í t ica apenas para os pob res , com o não
há apenas para os r icos . A e l iminação da pobreza é um proble
m a es t rutura l . Fora da í o que se pre ten de é enco nt ra r formas de
proteção a ce r tos pobres e a ce r tos r icos , escolhidos segundo os
inte resses dos doadores . Mas a pol í t ica tem de cuidar do con
junto de r ea l idades e do conjunto de r e lações .
Na s condições a tua is , e de um mo do gera l , e s tamos ass is t indo
à não-pol í t ica , i s to é , à pol í t ica f ei ta pe las empresas , s obre tud o
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M I L T O N S A N T O S
a s ma i o r e s . Q u a nd o u ma g r a nde e mpr e s a s e in s t al a , c he ga c om
s ua s no r ma s , qua s e t oda s e x t r e ma me n t e r í g i da s . Como e s s a s
normas r ígidas são assoc iadas ao uso considerado adequado das
t é c n ic a s c o r re s ponde n t e s , o m un do da s no r ma s s e a de ns a po r
que as técnicas em s i mesmas também são normas. Pe lo f a to de
qu e as técnicas a tua is são sol idár ias , qu and o um a se impõ e c r ia -
se a necess idade de t r azer out ras , sem as qua is aque la não func io
na be m. Ca d a t éc n i c a p r opõe u ma m a ne i r a pa r t i c u l ar de c o m
p o r t a m e n t o , e n v o l v e s u a s p r ó p r i a s r e g u l a m e n t a ç õ e s e , p o r
conseg uinte , t r az para os lugares novas formas de re lac i onam en
to . O me s mo s e dá c om a s e mpr e s a s . É a s s i m que t a mbé m s e
a l te ram as r e lações soc ia is dent ro de cada comunidade . Muda a
e s t r u t u r a do e mpr e go , a s si m c om o a s ou t r a s re l a ç ões e c o nôm i
cas , soc ia is , cul tura is e mora is dent ro de cada lugar , a fe tando
i gua l me n t e o o r ç a me n t o púb l i c o , t a n t o na r ub r i c a da r e c e i t a
c om o no c a p ít u l o da de s pe s a. U m p e que no núm e r o de g r a nde s
emp resas q ue se ins ta la acar re ta para a soc iedade
comoTmFíeTto
um pe s a do p r oc e s s o de de s e qu i l í b r i o .
Todavia, mediante o discurso oficial, tais empresas são apre
sentadas com o sa lvadoras dos lugares e são apontadas com o cre
do r a s de r e c onhe c i me n t o pe l os s e us a po r t e s de e mpr e go e
modernidade . Daí a c rença de sua indispensabi l idade , f a tor da
presente gu er ra ent re lugares e , em m ui tos casos , de sua a t i tude
de c ha n t a ge m f r e n t e a o pode r púb l i c o , a me a ç a ndo i r e mbor a
qua ndo n ão a tendidas em seus r ec lamos. Assim, o po der p úbl ico
passa a se r subordinado, compel ido, a r ras tado. À medida que se
v
imp õe esse nexo das grandes empresas , ins ta la - se a sement e da
ingovernabi l idade , já for temen te imp lantada no Bras i l , a inda que
sua dimensão não tenha s ido adequad amen te ava liada . À me dida
que os ins t i tutos encar regados de cuidar do inte resse gera l são
P O R U M A O U T R A G L O B A L IZ A Ç Ã O
69
enf raquec idos , com o ab ando no da noção e da prá t ica da sol idar ie
d a d e ,
e s t a m o s , p e l o m e n o s a m é d i o p r a z o , p r o d u z i n d o a s
precondições da f ragmentação e da desord em, c la ram ente vis íve is
no pa ís , por meio do compor tamento dos te r r i tór ios , i s to é , da
cr i se pra t icamente gera l dos es tados e dos m unic ípio s .
1 1 .
Em meio século três
definições
da pobreza
O s pa í s e s s ubde s e nvo l v i dos c onhe c e r a m pe l o me nos t r ê s
formas d e pobreza e , para le lamente , t r ês formas d e dívida soc ia l ,
no ú l t i mo m e i o s é c u l o . A p r i me i r a s er i a o que ous a d a me n t e
c h a m a r e m o s d e pobreza induída, um a pobreza ac identa l , à s vezes
res idua l ou sazona l , produ z ida em cer tos mo me nto s do ano, um a
pobreza inte r s t ic ia l e , sobre tudo, sem vasos comunicantes .
D e po i s c he ga um a ou t r a , r e c onhe c i da e e s t uda da c omo um a
doença da c ivi l ização. Então chamada de marginalidade, t a l po
breza e ra produz ida pe lo processo econômico da divisão do t r a
ba l ho , i n t e r na c i ona l ou i n t e r na . A dmi t i a - s e que pode r i a s e r
cor r igida , o que e ra buscado pe las mãos dos governos .
E agora chegam os ao te rce i ro t ipo , a
pobreza
estrutural que de
u m po nt o de vis ta mora l e pol í t ico equiva le a um a dívida soc ia l.
E la é es t rutura l e não mais loca l , ne m m esm o nac iona l ; torn a- se
g l oba li z a da, p r e s e n t e e m t oda pa r te no mu ndo . H á um a d i s s e
mina ção plane tá r ia e um a produç ão globa l izada da pobreza , a ind a
qu e este ja mais presente nos pa íses á pobres . Ma s é tam bém um a
produção c ient í f ica , por tanto voluntá r ia da dívida soc ia l , pa ra a
qua l , na maior par te do plane ta , não se buscam remédios .
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7 0
M I L T O N S A N T O S
A pobre za inc lu ída
A nt e s ,
as s i tuações de pobreza podiam ser def inidas como
r e ve l a do r a s de uma pobr e z a a c i de n t a l , r e s i dua l , e s t a c i ona i ,
inte r s t ic ia l , v i s ta como desadaptação loca l aos processos mais
g e r a i s d e m u d a n ç a , o u c o m o i n a d a p t a ç ã o e n t r e c o n d i ç õ e s
na tura is e condições soc ia is . E ra uma pobreza que se produz ia
num lugar e não se comunicava a out ro lugar .
E n t ã o , ne m a c i da de , ne m o t e r r i tó r i o , ne m a p r óp r i a s oc i e
da de e r a m e xc l us i va ou ma j o r i t a r i a me n t e mov i dos po r driving
forces c ompr e e n d i da s pe l o p r oc e s s o d e r a c i onal i z aç ã o . A p r e s e n
ça das técnicas , coladas ao te r r i tór io o u in erentes à vida soc ia l ,
e ra r e la t ivamente po uco express iva , r eduz i ndo , ass im, a e f icác ia
dos processos r ac iona l izadores porventura vigentes na vida eco
nômica , cul tura l , soc ia l e pol í t ica . Desse modo, a r ac iona l idade
da exis tênc ia não const i tuía um dado essenc ia l do processo his
tór ico, l imi tand o-se a a lguns aspec tos i solados da soc iabi l idade .
A prod ução d a pobreza i r ia buscar suas causas em out r os f a tores .
N a s i t ua ç ã o que e s t a mos de s c r e ve ndo , a s s o l uç õe s a o p r o
blema e ram pr ivadas , ass i s tenc ia l i s tas , loca is , e a pobreza e ra
f r e qüe n t e me n t e a p r e s e n t a da c omo um a c i de n t e na t u r a l ou s o
c i a l . E m um mundo onde o c ons umo a i nda nã o e s t a va l a r ga
me n t e d i f und i do , e o d i nhe i r o a i nda nã o c ons t i t u í a um ne xo
s oc i a l ob r i ga t ó r i o , a pob r e z a e r a me nos d i s c r i mi na t ó r i a . D a í
poder - se f a la r de pobres inc luídos .
A marginal idade
N u m s e gundo mom e n t o , a pob r e z a é i de nt i fi c ada c om o u ma
doe nç a da c i v i l i z a ç ã o , c u j a p r oduç ã o a c ompa nha o p r óp r i o
P O R U M A O U T R A G L O B A L IZ A Ç Ã O
7 1
pr oc e s s o e c onômi c o . A gora , o c ons um o s e i mpõe c om o um da do
impo r tante , pois const i tui o c ent ro da expl icação das dife renças e
da percepção das s i tuações . Doi s f atores jog am u m pape l funda
men ta l . Am pl iam-s e , de um lado, as poss ibi l idades de c i r culação,
e de ou t ro, graças às formas mod ernas d e di fusão das inovações , a
informação const i tui um dad o revoluc ionár io nas r e lações socia is .
O radiot ransis tor e ra o grande s ímbolo. A ampl iação do consu
m o ganh a , ass im, as condições m ate r iai s e ps icológicas n ecessá
r ias , dan do à pobreza novos conte údos e novas def inições . Além
da pobreza absoluta , c ria - se e r ec ria - se incessantem ente u ma po
breza relativa, que leva a classif icar os indivíduos pela sua capaci
dade de consumir , e pe la forma com o o fazem. O es tabe lec ime n
to de " índices" de pobrez a e misér ia ut il iza esses comp one ntes .
A i nda ne s s e s e gundo mome n t o , que c o i nc i de c om a ge ne
ra l ização e o sucesso da idé ia de subdesenvolvimento e das teo
r i as de s t ina da s a c omba t ê - l o , o s pob r e s e r a m c ha m a dos de ma r
g i na i s . P a r a s upe r a r t a l s i t ua ç ã o , c ons i de r a da i nde s e j á ve l ,
t o r na - s e , t a mb é m, ge ne r a l i za da a p r e oc upa ç ã o dos gove r nos e
das soc iedades nac iona is , por meio de suas e l i tes inte lec tua is e
pol í t icas , com o fenômeno da pobreza , o que leva a uma busca
de soluções de Estado para esse problema, consid erado grave ma s
não insolúve l . O êxi to do es tado do bem-esta r em tantos pa íses
da Europa oc identa l e a not íc ia das preocupações dos pa íses so
c ia l is tas para com a popu lação em gera l func ionavam com o in s
p i r a ç ão a os paí s es pob r e s , todos c o mpr om e t i dos , a o me n os i de o
logicamente , com a luta cont ra a pobreza e suas mani fes tações ,
a inda q ue n ão lhes fosse poss íve l a lcançar a rea l ização do es tado
de be m- e s t a r . M e s m o e m pa í s es c om o o nos s o , o pode r pú b l i c o
é forçado a encont ra r fórmulas , sa ídas , a r remedos de solução.
Havia uma cer ta vergonha de não enf renta r a questão.
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7 2
M I L T O N S A N T O S
A pobreza e strutural g lobal izada
O ú l t i mo pe r í odo , no qua l nos e nc on t r a mos , r e ve l a uma
pobr e z a de novo t i po , um a pobr e z a e s t r u t u r a l g l obal i za da , r e
sul tante de um s is tema de ação de l iberada . Examinado o pro
c e s s o pe l o qua l o de s e mpr e go é ge r a do e a r e mune r a ç ã o do
e mpr e go s e t o r na c a da ve z p i o r , a o me s m o t e mp o e m qu e o po
der p úbl ic o se r e t i r a das ta re fas de prote ção soc ia l , é l íc i to co n
s idera r que a a tua l divisão "adminis t r a t iva" do t r aba lho e a au
sênc ia de l iberada do Estado de sua missão soc ia l de r egulação
este jam cont r ibuindo para uma produção c ient í f ica , globa l izada
e voluntá r ia da pobreza . Agora , ao cont rá r io das du as f ases ante
r iores , t r a ta - se de um a pobreza pervasiva , genera l izada , pe rm a
nente , globa l . Pode-se , de a lgum modo, admi t i r a exis tênc ia de
a l go c om o um p l a ne j a me n t o c e n t r a l i z a do da pobr e z a a t ua l : a i n
da que seus a tores se jam mu i tos , o seu mo tor essenc ia l é o me s
mo dos out ros processos def inidores de nossa época .
A pobre za a tua l r esul ta da convergên c ia de causas que se dã o
e m d i ve r sos n í ve is , ex i s t i ndo c omo va s os c omun i c a n t e s e c om o
algo rac iona l , um resul tado necessár io do presen te processo, um
fenômeno inevi táve l , considerado a té mesmo um fa to na tura l .
Alcançamos, ass im, uma espéc ie de na tura l ização da pobre
za , que se r ia pol i t icamente produz ida pe los a tores globa is com
a colaboração consc iente dos governos nac iona is e , cont ra r ia
me nte às s i tuações precedentes , com a conivênc ia de inte lec tua is
cont ra tados — ou apenas conta tados — para legi t imar essa na
tura l ização.
Nessa úl t ima fase , os pobres não são inc luídos nem margi
nai s ,
e les são exc luídos . A divisão do t r aba lho e ra , a té r ecente
me n t e , a l go ma i s ou me nos e s pon t â ne o . A gor a nã o . H o j e , e l a
P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O
73
obed ece a cânones c ient í ficos — po r i sso a consideramos u m a
divisão do t r aba lho adminis t r ada — e é movida por um meca
nism o qu e t r az consigo a produ ção das dívidas sociais e a diss e
minação da pobreza numa esca la globa l . Sa ímos de uma pobre
za para ent ra r em o ut ra . Deixa- se de se r po bre em um lugar p ara
ser pobre em o ut ro. Na s condições a tua is , é uma pobreza quas e
sem remédio, t r az ida não apenas pe la expansão do desemprego,
com o, tamb ém , pe la r edução d o va lor do t r aba lho. É o caso, por
e xe mpl o , dos E s t a dos U n i d os , a p r e s e n t a do c omo o p ís q u e t e m
r e s o l v i do um pou c o me n os ma l a que s t ã o do de s e mpr e go , ma s
onde o va lor médio do sa lá r io ca iu. E essa queda do desempre
go não a t inge igua lmente toda a população, porque os negros
c on t i nu a m s e m e mpr e go , e m p r opor ç ã o t a l vez p io r do que a n
t es , e as populações de or igem la t ina se encont ram na base da
escala salarial.
Essa produção maciça da pobreza aparece como um fenôm eno
bana l . Um a das grandes di fe renças d o po nto d e vis ta é t ico é que a
pobreza de agora surge , impõe-se e expl ica - se como a lgo na tura l
e inevi táve l . Mas é uma pobreza produz ida pol i t icamente pe las
emp resas e instituições globais. Estas, de u m lado, pagam para cr iar
soluções localizadas, parcializadas, segmentadas, como é o caso
do Ban co Mund ia l , que , em di fe rentes par tes do mun do, f inan
c ia programas de a tenção aos pobres , que rend o passar a impres
são de se inte ressar pe los desva lidos , quand o, es t rutura lme nte , é
o grande prod utor da pobreza . Atacam-se , func iona lmente , m a
nifestações da pobreza , enqua nto estrutu ralm ente se cr ia a pobreza
ao nível do m un do . E isso se dá com a colaboração passiva ou ati
va dos gov ernos nac iona is .
Vejam, então, a di f e rença ent re o uso da pa lavra pobreza e
da expressão dívida soc ia l nesses c inqü enta anos . O s po bres , i s to
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M I L T O N S A N T O S
é , aque les qu e são o obje to da dívida soc ia l , foram já incluídos e ,
de po i s , marginalizados, e acabam por se r o que hoje são, i s to é ,
excluídos. Esta exc lusão a tua l , com a produçã o de dívidas soc ia is ,
obedece a um processo rac iona l , uma rac iona l idade sem razão,
ma s que c oma nda s ações hege mô nicas e arrasta as dem ais ações.
Os exc luídos são o f ruto dessa r ac iona l idade . Po r a í se vê qu e a
que s t ã o c a p it a l é o e n t e n d i me n t o d o nos s o t e mp o , s e m o qua l
se rá impossíve l const rui r o discurso da l iberação. Este , desde qu e
seja simples e veraz, poderá ser a base intelectual da polít ica. E
i s s o é c e n t r a l no mundo de ho j e , um mundo no qua l na da de
impor tante se f az sem discurso.
O pape l dos in te lec tuais
O t e r rí ve l é que , ne s s e mu nd o de ho j e , a um e n t a o n úm e r o
de le t r ados e diminui o de inte lec tua is . Não é es te um dos dra
mas a tua is da soc iedade bras ile i ra? Ta is le t r ados , equi voca dam en
te ass imi lados aos inte lec tua is , ou não pensam para encont ra r a
ve r da de , ou , e nc on t r a ndo a ve rda de , nã o a d i z e m. N e s s e c a s o ,
nã o s e pod e m e nc o n t r a r c om o f u t u r o , r e ne ga ndo a f unç ã o p r i n
c ipa l da inte lec tua l idade , i s to é , o casamen to perm ane nte co m o
porvi r , por meio da busca incansada da verdade .
A s s i m c omo o t e r r i t ó r i o é ho j e um t e r r i t ó r i o na c i ona l da
e c onom i a i n t e r na ci ona l ( M . S a n t os ,
A natureza do espaço,
1996) ,
a pobreza , hoje , é a pobreza nac iona l da ordem inte rnac iona l .
Essa r ea l idade obr iga a discut i r a lgumas das soluções propostas
pa r a o p r ob l e ma , c om o , po r e xe mpl o , qua ndo s e i ma g i na p ode r
c ompe ns a r uma po l í t i c a ne o l i be r a l no p l a no na c i ona l c om a
poss ibi l idade de uma pol í t ica soc ia l no plano subnac iona l . N o
P O R U M A O U T R A G L O B A L IZ A Ç Ã O
7 5
caso bras i le i ro , é lamentáve l que pol í t icos e par t idos di tos de
esqu erda se ent re gue m a uma pol í t ica de di re i ta , jog and o para
um lado a busca de soluções es t rutura is e l imi tando-se a propor
pa l i a t i vos , que nã o s ã o ve r da de i r a me n t e t r a ns f o r ma dor e s da
s oc i e da de , po r qu e s e r ã o i nóc uos , no mé d i o e no l ongo p r a z os .
As chamadas pol í t icas públ icas , quando exis tentes , não podem
subst i tu i r a pol í t ica soc ia l, considerad a um e lenco coe rente co m
as demais pol í t icas ( econômica , te r r i tor ia l e tc ) .
Nã o se t r a ta, pois , de de ixar aos níve is infe r iores de gov erno
— munic ípios , es tados — a busca de pol í t icas compensa tór ias
para a l ivia r as conseqüênc ias da pobreza , enquanto, ao níve l f e
deral, as ações mais dinâmicas estão orientadas cada vez mais para
a produção de pobreza . O dese jáve l se r ia que , a par t i r de uma
v i s ã o de c on j un t o , houve s s e r e d i s t r ibu i ç ã o dos pode r e s e de r e
cur sos ent re diver sas esfe ras pol í t ico-adminis t r a t ivas do poder ,
ass im com o um a redis t r ibuição das pre r roga t ivas e ta re fas en t re
as diver sas esca las te r r i tor ia i s , a té mesmo com a re formulação
da federação. Mas, para isso, é necessár io haver um p roje to na
c iona l , e es te não pode se r uma formulação automat icamente
de r i va da do p r o j e t o he ge môn i c o e l i mi t a t i vo da g l oba l i z a ç ã o
a tua l . Ao cont rá r io , par t indo das r ea l idades e das necess idades
de c a da na çã o , deve nã o s ó e n t e ndê - l a s , c om o t a mb é m c ons t i
t u i r uma p r ome s s a de r e f o r mul a ç ã o da p r óp r i a o r de m mun d i a l .
N a s c ond i ç õe s a t uai s , um g r a nde c ompl i c a dor ve m d o f a to
de que a globa l ização é f r eqüentemente considerada uma fa ta l i
dade , baseada num exagerado encantamento pe las técnicas de
ponta e com negl igênc ia quanto ao fa tor nac iona l , de ixando-se
de lado o pape l do te r r i tór io ut i l izado pe la soc iedade como um
seu re t r a to dinâmico. Ta l visão do mundo, uma espéc ie de vol ta
à ve lha noção de technological ftx (uma única tecnologia e f icaz) ,
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M I L T O N S A N T O S
acaba por consagrar a adoção de um ponto de par t ida f echado e
por ace i ta r como indiscut íve l e ine lutáve l o r e ino da necess ida
d e , com a mor te da esperança e da generosidade . Exc lusão e dí
v i da s oc i a l a pa r e c e m c omo s e f o s s e m a l go f i xo , i mu t á ve l ,
i nde c l i ná ve l , qua ndo , c omo qua l que r ou t r a o r de m, pode s e r
s ubs t i t u í da po r uma o r de m ma i s huma na .
1 2 . O quefazer com a soberania
De qu e man e i ra a globa l ização a fe ta a soberania das nações ,
as f ronte i r as dos pa íses e a governab i l idade plena é um a q uestão
q u e ,
vol ta e meia , ocupa o s espí r i tos , se ja teor ica men te , se ja em
f unç ã o de f a to s c onc r e tos . N e s s e t e r r e no , c omo e m mu i t os ou
t r o s , a pro duç ão de meias-verd ades é inf ini ta e som os f reqüe n
t e me n t e c onvoc a dos a r e pe t i- l a s s e m ma i o r a ná l i s e do p r ob l e
ma. Há , mesmo, quem se a r r i sque a f a la r de des te r r i tor ia l idade ,
f im das f ronte i r as , mor te do Estado. Há os ot imis tas e pess imis
t as , os defensores e os acusadores .
Tomemos o caso par t icula r do Bras i l pa ra discut i r mais de
per to essa questão, a inda que nossa r ea l idade se aparente à de
mui tos out ros pa íses do plane ta . Com a globa l ização, o que te
mos é um te r r i tór io nac iona l da economia inte rnac iona l , i s to é ,
o te r r i tór io cont inua exis t indo, as normas públ icas que o r egem
são da a lçada nac iona l , a inda que as forças mais a t ivas do seu
dinamismo a tua l tenham or igem exte rna . Em out ras pa lavras , a
cont radição ent re o exte rno e o inte rno aumentou. Todavia , é o
Estado nac iona l , em úl t ima aná l i se , que de tém o monopól io das
P O R U M A O U T R A G L O B A LI Z A ÇÃ O
7 7
nor ma s, sem as qua is os pode rosos f a tores exte rnos pe rde m ef i
cácia. Sem dúvida, a noção de soberania teve de ser revista, face
aos s i s temas t r ansgressores de âm bi to plane tá r io , cujo exerc íc io
violento acentua a porosidade das f ronte i r as . Estes , são, sobre
tudo, a informação e a f inança, cuja f luidez se multiplica graças
às maravi lhas da técnica contemporânea . Mas é um equívoco
pensar que a informação e a f inança exercem sempre sua força
s e m e nc on t r a r c on t r apa r t i da i n t e rna . Es ta de pe nde de um a v on
tade polít ica interior , capaz de evitar que a influência dos ditos
fatores seja absoluta.
A o c on t r á r i o do que s e r e pe t e i mpune me n t e , o E s t ado c on
t inua for te e a prova disso é que n em as empresas t r ansnac ion a is ,
nem as ins t i tuições supranac iona is dispõem de força normat iva
pa r a i mpor , s oz i nha s , de n t r o de c a da t e r r i t ó r i o , s ua von t a de
pol í t ica ou econômica . Por inte rmédio de suas normas de pro
dução, de t r aba lho, de f inanc iamento e de cooperação com ou
t ras f i rmas, as empresas t r ansnac iona is a r ras tam out ras empre
sas e ins t i tuições dos lugares onde se ins ta lam, impondo- lhes
compor tamentos compat íve is com seus inte resses . Mas a vida
de um a e mpr e s a va i a l é m do me r o p r oc es s o t éc n i c o de p r o du
ção e a lcança tod o o entor no , a começa r pe lo próp r io me rcado e
inc lu indo ta mb ém as inf ra -es t ruturas geográf icas de apoio, sem
o que e la não pode te r êxi to . É o Estado nac iona l que , a f ina l ,
r e gu l a o mundo f i na nc e i r o e c ons t r ó i i n f r a - e s t r u t u r a s , a t r i
bu ind o, ass im, a grandes emp resas escolhidas a condição de sua
viabi l idade . O mesmo pode se r di to das ins t i tuições suprana
c i ona i s ( F M I , Ba nc o M und i a l , N a ç õe s U n i da s , O r ga n i z a ç ã o
M u nd i a l do Com é r c i o ) . t u j o s e d i t o s ou r e c ome nda ç õe s ne c e s
s i tam d e dec isões inte rnas a cada pa ís para que t enh am ef icác ia .
O Banco C ent ra l é , f r eqüe ntem ente , essa cor re ia de t r ansmissão
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M I L T O N S A N T O S
( s i tuada ac ima do Par lamento) ent re uma vontade pol í t ica ex
te rna e uma ausênc ia de vontade inte r ior . Por i sso, tornou-se
cor r ique i ro ent regar a di reção desses bancos cent ra is a per sona
ge ns ma i s c ompr ome t i da s c om os pos t u l a dos i de o l óg i c os da
f inança inte rnac io na l do que com os inte resses con cre to s das
soc iedades nac iona is .
Mas a cessão de soberania não é a lgo na tura l , ine lutáve l ,
automát ico, pois depende da forma como o governo de cada pa ís
dec ide fazer sua inserção no mundo da chamada globa l ização.
O Estado a l te ra suas r egras e f e ições num jogo combinado
de inf luênc ias exte rnas e rea l idades inte rnas . Mas nã o há ap enas
um cam inho e es te não é obr iga tor iame nte o da pass ividade . P or
conseguinte , não é verdade que a globa l ização impeça a const i
tuição de um proje to nac iona l . Sem isso, os governos f icam à
mercê de exigênc ias exte rnas , por mais descabidas que se jam.
Este parece se r o caso do Bras i l atua l . Cre mo s, todavia , que sem
pr e é t e mp o de c o rr i g ir o s r umo s e qu i voc a dos e, me s m o nu m
mundo globa l izado, f azer t r iunfa r os inte resses da nação.
I V
O
T E R R I T Ó R I O D O D I N H E I R O E
D A
F R A G M E N T A Ç Ã O
I n t r o d u ç ã o
N o m un do da globa l ização, o espaço geográf ico ganha n o
vos contornos , novas ca rac te r í s t icas , novas def inições . E , tam
bém, uma nova impor tânc ia , porque a e f icác ia das ações es tá
es t r e i tam ente r e lac ionada co m a sua loca l ização. Os a tores ma is
poderosos se r ese rvam os melhores pedaços do te r r i tór io e de i
xam o res to para os out ros .
N uma s i t ua ç ã o de e x t r e ma c ompe t i t i v i da de c omo e s t a e m
que v i ve m os , o s luga r es r e pe r c u t e m os e mba t e s e n t r e o s d i ve r
sos a tores e o te r r i tór io com o um to do reve la os mo vim ento s d e
f undo da s oc i e da de . A g l oba l iz a ç ã o , c om a p r oe mi nê nc i a dos
s is tema s técnicos e da informaçã o, subv er te o ant igo jog o da
evolução te r r i tor ia l e impõe novas lógicas .
Os te r r i tór ios tend em a uma compar t im entação g enera l izada ,
onde se assoc iam e se chocam o movimento gera l da soc iedade
plane tá r ia e o movi me nto par t icula r de cada f r ação, r egiona l ou
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M I L T O N S A N T O S
loca l , da soc iedade nac iona l . Esses movimentos são para le los a
um processo de f r agmentação que rouba às cole t ividades o co
ma ndo do s e u de s t i no , e nqua n t o os novos a t o r e s t a mbé m nã o
d i s põe m de i n s t r ume n t os de r e gu l aç ã o que i n t e r e s s e m à s oc i e
dade em seu conjunto. A agr icul tura moderna , c ient i f izada e
mundia l izada , ta l como a ass is t imos se desenvolver em pa íses
com o o Bras i l , const i tui um e xem plo dessa tendên c ia e um dad o
e s s e nc i a l a o e n t e nd i me n t o do que no pa í s c ons t i t ue m a c om
par t imentação e a f r agmentação a tua is do te r r i tór io .
Outro f enômeno a levar em conta é o pape l das f inanças na
rees t ruturação do espaço geográf ico. O dinhe i ro usurpa em seu
favor as per spec t ivas de f luidez do te r r i tór io , busca ndo confor
mar sob seu comando as out ras a t ividades .
M a s o t e r r it ó r i o nã o é um da do ne u t r o n e m u m a t o r pa s s i
v o . Produz-se uma verdade i ra esquizof renia , já que os lugares
escolhidos acolhem e benef ic iam os ve tores da r ac iona l idade
dom i na n t e ma s t a mbé m pe r mi t e m a e me r gê nc i a de ou t r a s f o r
mas de vida . Essa esquizof renia d o te r r i tór io e do lugar tem um
pape l a t ivo na formação da consc iênc ia . O espaço geográf ico n ão
apenas r eve la o tr anscurso d a his tór ia com o indica a seus a tores
o modo de ne la inte rvi r de mane i ra consc iente .
13 .
O espaço geográfico:
compartimentação
efragmentação
A o l ongo da h i s t ó r i a huma na , o l ha do o p l a ne t a c omo um
todo ou observado a t r avés dos cont inentes e pa íses , o espaço
ge ogr áf i co s e mpr e f o i ob j e t o de um a c ompa r t i m e n t a ç ã o . N o
P O R U M A O U T R A G L O B A L IZ A Ç Ã O
começo havia i lhas de ocupação devidas à presença de grupos ,
t r ibos , nações , cujos espaços de vida formar iam verdade i ros a r
qu i pé l a gos . A o l ongo do t e mpo e à me d i da d o a ume n t o da s po
pulações e do inte rcâmbio, essa t r ama foi se tornando cada vez
mais densa . Hoje , com a globa l ização, pode-se dizer que a tota
l idade da superf íc ie da Terra é com par t im entada , n ão apenas p e la
ação di re ta do homem, mas também pe la sua presença pol í t ica .
N e nhuma f r a ç ã o do p l a ne t a e s c a pa a e s s a i n f l uê nc i a . D e s s e
mo do , a ve l ha noç ã o de e c úme no pe r de a a n ti ga de fi n i ç ão e ga
nha u ma nova d i me n s ã o ; t a n t o se pode d i z e r que t oda a s upe r
f íc ie da Ter ra se tornou ecúmeno quanto se pode a f i rmar que
essa pa lavra já nã o se apl ica apenas ao plane ta e fe t ivam ente ha
bi tado. Com a globa l ização, todo e qua lquer pedaço da super f í
c ie da Ter ra se torna func iona l às necess idades , usos e a pe t i tes
de Estados e em presas nes ta f ase da his tór ia .
Desse modo, a super f íc ie da Ter ra é inte i r amente compar t i
mentada e o r espec t ivo ca le idoscópio se apresenta sem solução
de cont inuidade . Redef inida em função dos ca rac te r í s t icos de
uma época , a compar t imentação a tua l dis t ingue-se daque la do
pa s s a do e f r e qüe n t e me n t e s e dá c omo f r a gme n t a ç ã o . S e u c o n
teúdo e def inição var iam a t ravés dos tempos, mas sempre reve
l a m um c o t i d i a no c ompa r t i do e c ompl e me n t a r a i nda que t a m
bé m conf l i t ivo e hie rá rquico, u m acontecer sol idár io ident i f icado
com o meio, a inda que sem exc lui r r e lações dis tantes . Ta l sol i
dar iedade e ta l ident i f icação const i tuem a garant ia de uma pos
s íve l r egulação inte rna . Já a f ragmentação reve la um cot idian o
e m que há pa r â me t r os e xóge nos , s e m r e f e r ê nc i a a o me i o . A
ass imetr ia na evolução das diver sas par tes e a di f iculdade ou
me s mo a i mpos s i b i l i da de de r e gu l a ç ã o , t a n t o i n t e r na qua n t o
exte rna , const i tuem uma carac te r í s t ica marcante .
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M I L T O N S A N T O S
A c o mp a r t i me n ta ç ã o : p a s s a d o e p r e s e n te
A t é r e c e n t e me n t e , a huma n i da d e v iv i a o mu nd o da l e n t i dã o ,
no q ua l a prá t ica de ve loc idades di fe rentes não separava os r es
pec t ivos agentes . Eram r i tmos diver sos , mas não incompat íve is .
D e n t r o de c a da á re a , o s c ompa r t i me n t os e r a m s o l da dos po r r e
gras ,
a i nda que nã o houve s s e c on t i gu i da de e n t r e e l es . O me s
m o po de se r di to em re lação ao que se passava na esca la inte rna
c iona l . O me lhor ex emplo , desde o úl t imo quar te l do século XLX,
é o da const i tuição dos impér ios , fundado cada qua l numa base
técnica di fe rente , o que não impedia a sua coexis tênc ia , nem a
poss ibi l idade de cooperação na di fe rença . Durante um século
c onv i ve r a m i mpé r i o s c omo o b r i t â n i c o , po r t a do r da s t é c n i c a s
mais avançadas da produção mater ia l , dos t r anspor tes , das co
mun i c a ç õe s e do d i nhe i r o , c om i mpé r i o s de s s e pon t o de v i s t a
me nos a va nç a dos , po r e xe mpl o o i mpé r i o po r t uguê s ou o i m
pér io espanhol . Pode-se dizer que a pol í t ica compensava a di
ver s idade e a di fe renc iação do poder técnico ou do poder eco
nôm i c o , a s s e gu r a ndo , a o me s mo t e mp o , a o r de m i n t e r na a c a da
um desses impér ios e a ordem inte rnac iona l . Por inte rmédio da
pol í t ica , cada pa ís imper ia l r egulava a produção própr ia e a das
suas colônias , o com érc io ent re es tas e os out ro s pa íses , o f luxo
de p r odu t os , me r c a dor i a s e pe s s oa s , o va l o r do d i nhe i r o e a s
formas de governo. O famoso pac to colonia l acabava por com
pree nde r todas as mani fes tações da vida histór ica e os e qui l íbr ios
no inte r ior de cada impér io se davam para le lamente ao equi l í
b r i o e n t r e a s na ç õe s impe r i a i s . D e a l gum mo do , a o r de m i n t e r
nac iona l e ra produ z ida por m eio da pol ít ica dos Estados . D en t ro
de cada pa ís , a compar t imentação e a sol idar iedade presumiam
a presença de certas condições , todas pra t icamente r e lac ionadas
P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O
8 3
c om o t e r r i t ó r i o : uma e c onomi a t e r r i t o r i a l , uma c u l t u r a t e r
r i tor ia l , r egidas por r egras , igua lmente te r r i tor ia l izadas , na for
ma de l e i s e de t ra t a dos , ma s t a m bé m de c o s t ume s .
Por meio da r egulação, a compar t imentação dos te r r i tór ios ,
na esca la nac iona l e inte rnac iona l , pe rm i te qu e se jam n eut ra l iza -
k das di fe renças e me sm o as oposições se jam paci f icadas , media nte
i
um processo pol í t ico que se r enova , adaptando-se às r ea l idades
e me r ge n t e s pa r a t a m bé m r e nova r, de s s e mod o , a s o l i da ri e da de .
N o p l a no i n t e r na c i ona l , es s e p r oc e s s o c um ul a t i vo de a da p
tações leva às modif icações do es ta tuto colo nia l , ace le radas co m
o f im da S e gunda G ue r r a M u nd i a l . N o p l a n o i n t e r no , a bus c a
de sol idar iedade conduz ao enr iquec imento dos di re i tos soc ia is
com a ins ta lação de di fe rentes mod al idade s de demo crac ia soc ia l .
Ra p i d e z , f lu i d e z , f r a g m e n ta ç ã o
Hoje , vivemos um mundo da rapidez e da f luidez . Tra ta - se
de uma f luidez vi r tua l , poss íve l pe la presença dos novos s i s te
mas técnicos , sobre tudo os s i s temas da informação, e de uma
f luidez e fe t iva , r ea l izada quan do essa f luidez p otenc ia l é ut i l iza
da no e xe r c í c i o da a ç ã o , pe l a s e mpr e s a s e i n s t i t u i ç õe s he ge
mô nicas . A fluidez potenc ia l aparece no ima ginár io e na ideolo
g i a c omo s e f o s s e um be m c omum, uma f l u i de z pa r a t odos ,
quando, na verdade , apenas a lguns agentes têm a poss ibi l idade
de ut i l izá -la , torn ando -se , desse m od o, os de tentores e fe t ivos da
ve loc idade . O exerc íc io des ta é , pois , o r esul tado das disponibi
lidades ma teriais e técnicas existentes e das possibilidad es de ação.
A s s i m, o mu nd o da r a p i dez e da f l u i de z s ome n t e s e e n t e nde a
pa r t i r de um p r oc e s s o c on j un t o n o qua l pa r ti c i pa m de um l a do
8/17/2019 Milton Santos - Por uma outra globalização [LIVRO].pdf
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8 4 M I L T O N S A N T O S
Y*
IsfJJ jdtfò ——
as técnicas atuais
e, de
o u t r o ,
a
pol í t ica a tua l , sendo
qu e
esta
é
empreendida tanto pe las ins t i tuições públ icas , nac iona is , in t r a -
nac iona is e inte rnac iona is , como pe las empresas pr ivadas .
As a tua is compar t imentações d os te r ri tór ios ganham esse no vo
ingrediente . Cr iam-se , para le lamente , incompat ibi l idades ent re
ve loc idades diver sas ;
e os
po r t a do r e s
das
ve loc idades ext rem as
bus c a m i nduz i r os demais a tores a a compa nhá - l o s , p r oc u r a ndo
d i s s e mi na r
as
infra-estruturas necessárias
à
desejada f luidez
nos
lugares
que
consideram necessários para
a sua
a t ividade .
Há, to
davia , sempre ,
um a
seletividade nessa difusão, separando
os es
paços da pressa daqueles outros propícios à lent idão, e dessa forma
acrescentando
ao
processo
de
compar t imentação nexos ver t ica is
q u e
se
s upe r põe m
à
compar t imen tação h or izonta l , ca racte r ís t ica
da his tór ia humana até da ta r ecente . O f e n ô m e n o é gera l , j á que ,
conforme vim os antes , tudo hoje es tá comp ar t imentado; inc luindo
t oda
a
superfície
do
planeta.
É po r meio dessas l inhas d e menor r es is tênc ia e, por c o n s e
gu i n t e ,
de
maior f luidez,
que o
mercado globa l izado procura ins
talar
a sua
vocação
de
e xpa ns ã o , me d i a n t e p r oc e s s os
qu e
levam
à busca da unif icação e não p r o p r i a m e n t e à bus c a da u n i ã o . O
c ha ma do me r c a do g l obal
se
imp õe co mo razão pr inc ipa l
da
c o n s
t i tuição desses espaços
da
fluidez
e,
logo,
da sua
ut i l ização,
i m
p o n d o ,
por
m e i o
d e
tais lugares ,
u m
f unc i ona me n t o
qu e
r e p r o
d u z as suas própr ias bases ( John Gray, Falso amanhecer os equívocos
do capitalismo,
1999) ,
a
c ome ç a r pe l a c ompe t i t i v i da de .
A
l i t e
ra tura apologé t ica
d a
globalização fala
d e
c ompe t i t i v i da de e n t r e
Estados , m as , na verdade , t r a ta - se d e c ompe t i t i v i da de e n t r e e m
pr e s a s ,
qu e, às
vezes , a r ras tam
o
E s t a do
e sua
fo r ç a no r ma t i va
n a p r o d u ç ã o
de
condições f avoráve is àque las dotadas
de
ma i s
pode r .
E
dessa forma
que se
potenc ia l iza
a
voc a ç ã o
de
r apidez
P O R UM A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O
8 5
e
de
urgênc ia
de
a l guma s e mpr e s a s
em
d e t r i m e n t o
de
out ras ,
uma c ompe t i t iv i da de
que
agrava as diferenças
d e
força
e
as dispa
r i da de s , e nqua n t o o te r r i tór io , pe la sua o r ga n i z a çã o , c o ns t i t u i -
se
n u m
i n s t r u m e n t o
do
exerc íc io dessas di fe renças
de
poder .
Cada empresa , porém, ut i l iza
o
te r r i tór io
em
função dos seus
f ins própr ios
e
e xc l us i va me n t e
em
função desses f ins.
As em
presas apenas
tê m
o l hos pa r a
os
seus própr ios obje t ivos
e são
cegas para tud o
o
mais . Desse m od o, quanto mais r ac iona is forem
as regras
de sua
ação individua l tanto m en os ta i s r egras se rão
r e s pe i t o s a s do e n t o r no e c onômi c o , s oc i a l , po l í t i c o , c u l t u r a l ,
m o r a l
o u
geográf ico, func ionando,
as
ma i s da s ve z e s , c om o
um
e l e m e n t o
de
pe r t u r ba ç ã o
e
m e s m o
de
d e s o r d e m . N e s s e m o v i
m e n t o , t u d o qu e exis t ia ante r iormente à ins ta lação dessas em
pr e s a s he ge môn i c a s
é
c onv i da do
a
adapta r - se
às
suas formas
de
s e r
e de
a g ir , me s m o
qu e
p r o v o q u e ,
no
e n t o r no p r e e x i s t e n t e ,
grandes dis torções , inc lus ive
a
que b r a
da
sol idar iedade soc ia l .
Co mp e t i t i v i d a d e
versus
sol idar iedade
P ode - s e d i z e r e n t ã o que, em úl t ima aná l i se , a c o m p e t i t i
vidade acaba
p or
de s t r oç a r
as
ant igas sol idar iedades , f r eqü ente
me n t e ho r i z on t a i s ,
e por
i m p o r
um a
sol idar iedade ver t ica l , cujo
e p i c e n t r o
é a
e mpr e s a he ge môn i c a , l oc a l me n t e obe d i e n t e
a
i n t e
resses globa is mais poderoso s e, de s s e mod o , i nd i f e r e n t e ao en
t o r n o .
As
sol idar iedades hor izonta is preexis tentes r e faz iam-se
h i s t o r i c a me n t e
a
par t i r
de um
de ba t e i n t e r no , l e va ndo
a
ajustes
inspi rados na vontade d e r econst rui r , e m novos te rmos, a própr ia
sol idar iedade hor izonta l .
Já
agora ,
a
sol idar iedade ver t ica l
que
se imp õe exc lui qu a lque r deba te local e f icaz , já
qu e as
e mpr e s a s
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8 6
M I L T O N S A N T O S
he ge môn i c a s t ê m a pe na s do i s c a mi nhos : pe r ma ne c e r pa r a e xe r
cer plenamente seus obje t ivos individua l i s tas ou re t i r a r - se .
Co mo c a da e mpr e s a he ge m ôn i c a no ob j e t ivo de s e ma n t e r
com o ta l deve rea lçar ta is inte resses individua is , sua ação é r a ra
me n t e c oo r de na da c om a de ou t r a s , ou c om o pode r púb l i c o , e
ta l descoorden ação agrava a desorganização, i s to é , r edu z as pos
sibilidades do exe rcício de um a busca de sen tido para a vida local
Ca da e mp r e s a he ge môn i c a a ge sob r e uma pa r c el a do t e r r i
t ó r i o . O t e r r i t ó r i o c omo um t odo é ob j e t o da a ç ã o de vá r i a s
e mpr e s a s , c a da qua l, c on f o r me j á v i mos , p r e oc upa da c o m s ua s
própr ias metas e a r ras tando, a par t i r dessas metas , o compor ta
mento do res to das empresas e ins t i tuições . Que res ta então da
nação diante dessa nova rea l idade? Co m o a nação se exerce diante
da verdade i ra f r agmentação do te r r i tór io , função das formas c on
temporâneas de ação das empresas hegemônicas?
A pa lavra fr agmentação im põe-se co m toda força por qu e , nas
condições ac ima descr i tas , não há regulação poss íve l ou es ta
a pe na s c onsa g r a a lguns a t o re s e es t e s , e nqua n t o p r o duz e m um a
ordem em causa própr ia , c r iam, para le lamente , desordem para
t udo o ma i s . Como e s s a ordem desordeira é globa l , ine rente ao
própr io processo produt ivo da globa l ização a tua l , e la não tem
l i mi t e s ; ma s nã o t e m l i mi t e s po r q ue t a mb é m nã o t e m f i na li da
de s e , de s s e modo , ne nh um a r e gu l a ç ão é poss í ve l, po r que nã o
de s e j a da . E s s e novo pode r da s g r a nde s e mpr e s a s , c e ga me n t e
exerc ido, é , por na tureza , desagregador , exc ludente , f r agmen-
tador , seqüest rando autonomia ao res to dos a tores .
Os f ragmentos r esul tantes desse processo a r t iculam-se ex
t e r na me n t e s e gundo l ógi c as dup l a me n t e e s t r a nha s : po r s ua s e de
dis tante , longínqua quanto ao espaço da ação, e pe la sua incon
formid ade co m o sent ido preexis tente da vida na á rea em qu e se
P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O
S7
i n s t a l a . D e s s e modo , p r oduz - s e uma ve r da de i r a a l i e na ç ã o t e r
r itorial à qua l cor res pon dem o ut ras formas de a l ienação.
Dent ro de um mesmo pa ís se c r iam formas e r i tmos di fe
rentes de evolução, governados pe las metas e des t inos espec í f i -
x
cos de cada emp resa hegem ônica , que a r ras tam com sua presen ça
\ out ros a tores soc ia is , mediante a ace i tação ou mesmo a e labora
ção de discursos "nac iona is- regiona is" a l ienígenas ou a l ienados .
O u t r a r e a ç ã o c on du z à e l a bo r a ç ã o pa r a l e l a de d i s c u r s o s
rea t ivos dotados de conteúdo espec í f ico e des t inados a most ra r
i nc onf o r mi da d e c o m a s f o r ma s v i ge n t e s de i n s e r çã o no " m un
d o " .
Cr i a m- s e , e m c e r t o s c a s os , nova s s obe r a n i a s , c omo , po r
e x e m p l o , n a a n t i g a I u g o s l á v i a , o u a u t o n o m i a s a m p l i a d a s ,
e n t r on i z a ndo o qu e s e pode r i a m c ha m a r regiões-patses, cu j o e xe m
p l o e mbl e má t i c o nos ve m da E s pa nha . Como r e s o l ve r a que s
t ã o de de n t r o de um m e s m o pa í s , qua ndo o pa s s a do nã o o f e r e
ceu como herança conjunta a exis tênc ia de cul turas par t icula res
s o l i da me n t e e s t abe l e c ida s , j un t o a um a von t a de po l í t ic a r e g i o
na l já exerc ida como pod er?
E s s e p r ob l e ma s e t o r na ma i s a gudo na me d i da e m que a s
com par t im entaçõe s a tua is do te r r i tór io não são enxergadas co mo
f ragmentação. I sso se dá , gera lmente , qua ndo a inte rpre tação d o
fa to nac iona l é ent reg ue a visões aparente men te tota l izantes , mas
na rea l idade par t icula r i s tas , como cer tos enfoques da economia
e , mesmo, da c iênc ia pol í t ica , que não se apropr iam da noção
do te r r i tór io considerado como território usado e vis to , desse m od o,
c om o e s t r u t u r a do t a da de um m ov i m e n t o p r óp r i o . E me l ho r f a
z e r a na ç ã o po r i n t e r mé d i o do s e u t e r r i t ó r io , po r que ne l e t ud o
o que é vida es tá r epresentado.
P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O
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M I L T O N S A N T O S
1 4 . A agricultura científica globalizada e a alienação
do território
Des de o pr inc ípio dos tempos , a agr icul tura com parece c om o
uma a t ividade reve ladora das r e lações profundas ent re as soc ie
da de s hum a na s e o s e u e n t o r no . N o c o me ç o da h i s t ó r i a t a is r e
l a ç õe s e r a m, a be m d i z e r, e n t r e o s g r upos hum a no s e a na t u r e
z a . O a va nç o da c i v i l i z a ç ã o a t r i bu i a o home m, po r me i o do
aprofundamento das técnicas e de sua di fusão, uma capac idade
cada vez mais c rescente de a l te ra r os dados na tu ra is qua nd o po s
s íve l , r eduz i r a impo r tânc ia do seu impac to e , tam bém , po r m eio
da organização soc ia l , de modif ica r a impor tânc ia dos seus r e
sul tados . Os úl t imos séculos marcam, para a a t ividade agr ícola ,
co m a hum aniza ção e a mecanizaç ão do espaço geográf ico, u m a
consideráve l mudança de qua l idade , chegando-se , r ecentemente ,
à c ons t i t u i ç ã o de um me i o ge ogr á f i c o a que pode mos c ha ma r
de m eio técnico-c ient í f ico- informaciona l , ca rac ter í s t ico não a pe
na s da v i da u r ba na ma s t a mb é m d o mu nd o r u r a l , t a n t o nos pa í
ses avançados como nas r egiões mais desenvolvidas dos pa íses
pobr e s . E de s s e modo que s e i n s t a l a uma a g r i c u l t u r a p r op r i a
mente c ient í f ica , r esponsáve l por mudanças profundas quanto
à produ ção agr ícola e qua nto à vida de r e lações .
Podemos agora f a la r de uma agr icul tura c ient í f ica globa
l izada . Quando a produção agr ícola tem uma re fe rênc ia plane
tá r ia , e la r ecebe inf luênc ia daque las mesmas le i s que regem os
o u t r o s a s p e c t o s d a p r o d u ç ã o e c o n ô m i c a . A s s i m , a c o m p e t i
tividade, característica das atividades de caráter planetário, leva
a um a p r o f unda m e n t o da t e ndê nc i a à i n s ta l aç ã o de uma a g r i c u l
tura c ient í f ica . Esta , como v imo s, é exigente de c iênc ia , técnica
e informação, levando ao aumento exponenc ia l das quant idades
produzidas em relação às superfícies plantadas. Por sua natureza
globa l , cond uz a um a demand a ext rema de comérc io. O di nhe i ro
passa a se r um a " informação " indispensáve l .
A demanda externa de rac ional idade
Na s á reas onde essa agr icul tura c ientí f ica globa l izada se in s
ta la , ve r i f ica -se um a impor tant e dem and a de bens c ient í f icos
( sementes , inse t ic idas , f e r t i l izantes , cor re t ivos) e , também, de
ass is tênc ia técnica . Os produtos são escolhidos segundo uma
base mercant i l , o que também impl ica uma es t r i ta obediênc ia
aos mand am ento s c ient í ficos e técnicos . São essas condições qu e
r e ge m os p r oc e s s os de p l a n t a ç ã o , c o l he i t a , a r ma z e na me n t o ,
e mpa c o t a me n t o , t r a ns po r t e s e c ome rc i a li z a çã o , l e va ndo à i n t r o
dução, aprofundamento e di fusão de processos de r ac iona l iza
ç ã o que s e c on t a g i a m mut ua me n t e , p r opondo a i n s t a l a ç ã o de
s is temismos, que a t r avessam o te r r i tór io e a soc iedade , levando,
co m a rac iona l ização das prá t icas , a um a cer ta hom ogen e ização .
Dá-s e , na r ea l idade , tam bém , um a cer ta mi l i ta r ização do t r a
ba l h o , j á qu e o c r i t é r i o do s uc e s s o é a obe d i ê nc i a à s r e g r a s
suger idas pe las a t ividades hegemônicas , sem cuja ut i l ização os
agentes r eca lc i t r antes acabam por se r des locados . Se entender
mo s o t e r r i t ó ri o c omo u m c on j un t o de e qu i pa me n t os , de i n s t i
t u i ç õe s , p r á t i c a s e no r ma s , que c on j un t a me n t e move m e s ã o
mov i da s pe l a s oc i e da de , a a g r i c u l t u r a c i e n t í f i c a , mode r na e
globa l izada acaba por a t r ibui r aos agr icul tores modernos a ve
lha condiçã o de se rvos da gleba . É a tend er a ta i s impera t iv os ou
ca i r
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9 0
M I L T O N S A N T O S
Nas á reas onde ta l f enômeno se ver i f ica , r egis t r a - se uma
t e ndê nc i a a um dup l o de s e mpr e go : o dos a g ri c u l t o re s e ou t r os
e mpr e ga d os e o dos p r op r i e t á r io s ; po r i ss o , f o r ma - s e no mu nd o
r u r a l e m p r oc e s s o de mode r n i z a ç ã o uma nova ma s s a de e mi
grantes , que tanto se podem di r igi r às c idades quanto par t ic ipar
da produção de novas f r entes pione i ras , dent ro do própr io pa ís
ou no es t r ange i ro, como é o caso dos bras igua ios .
As s i tuações ass im cr iadas são var iadas e múl t iplas , produ
z i ndo u ma t i po l og i a de at i v ida de s cu j os s ub t i pos de pe n de m da s
c ond i ç õe s f und i á r i a s , t é c n i c a s e ope r a c i ona i s p r e e x i s t e n t e s .
N uma me s ma á r e a , a i nda que a s p r oduç õe s p r e domi na n t e s s e
a s s e me l he m, a he t e r oge ne i da de é de r e g r a . H á , na ve r da de ,
he t e r oge ne i da de e c ompl e me n t a r i da de . D e s s e modo , pode - s e
fa la r na exis tênc ia s imul tânea de cont inuidades e descont inui
dades . E dessa mane i ra que se enr iquece o pape l da viz inhança
e , a despe i to das di fe renças exis tentes en t re os diver sos agentes ,
e l e s v i ve m e m c om um c e r ta s expe r i ê nci a s , c om o , po r e x e mpl o ,
a subordinação ao mercado dis tante .
Ta l exper iênc ia é tanto m ais sensíve l porq ue dec or re de um a
demanda "exte rna" de " rac iona l idade" e das r espec t ivas di f icul
dades de ofe recer uma resposta . Resta , como conseqüênc ia , a
tom ada de consc iênc ia da impo r tânc ia de fa tores "exte rn os" : u m
me r c a d o l ong í nquo , a té c e r to pon t o a bs t r a t o ; um a c onc or r ê nc i a
de cer to m od o " invis ível" ; preços inte rnac iona is e nac iona is so bre
os qua is não há cont role loca l , improv áve l , també m, para o ut ro s
componentes do cot idiano, igua lmente e laborados de fora , como
o va l o r e x t e rno da moe da ( c â mb i o ) , de que de pe n de o va l o r i n
t e r no da p r oduç ã o , o c us t o do d i nhe i r o e o pe s o s ob r e o p r od u
tor dos lucros aufe r idos por todos os t ipos de inte rmediação.
P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O
91
A c i d a d e d o c a m p o
A agr icul tura mode rna se r eal iza por m eio do s seus belts, spots,
áreas, mas a sua re lação com o m un do e com as á reas dinâmicas
do pa ís se dá por meio de po ntos . E o que expl ica , por ex emp lo, o
impo r tante r e lac ionam ento exis tente ent re c idades regiona is e São
Paulo. Nessas loca l idades dá- se uma ofe r ta de informação, ime
dia ta e próxim a, l igada à a t ividade agr ícola e pro duz ind o u ma a t i
vidade urban a de fabr icação e de se rviços que , f ruto d a pro duç ão
regiona l , é la rgamente "espec ia lizada" e, para le lamente , um ou
t ro t ipo de a t ividade urbana l igada ao consu mo das f amí lias e da
a dmi n i s t r a ç ã o . A c i da de é um pó l o i nd i s pe ns á vel a o c om a ndo
técnico da produ ção, a cuja na tureza se adapta , e é u m lugar de
res idênc ia de func ionár ios da adminis t r ação públ ica e das emp re
sas,
ma s t a mb é m de pe s s oa s que t r a ba l ha m no c a mpo e que , s e n
do agr ícolas , são também urbanas , i s to é , urbano- res identes . As
a t ividades e prof i ssões t r adic iona is jun tam -se n ovas ocupaçõ es e
às burguesias e c lasses médias t r adic iona is jun tam -se as mo der
nas ,
form ando um a mesc la de formas de vida , a t i tudes e va lores .
Ta l c idade , cujo pape l de coma ndo técnico da prod ução é ba s tan
te amplo, tem também um pape l pol í t ico f r ente a essa mesma
pr oduç ã o . M a s , na me d i da e m que a p r oduç ã o a g rí c ol a t e m um a
vocação globa l , e sse pape l pol í t ico é limi tado, inco mple to e in di
r e t o .
O m un do , confusamente en xergado a par t i r desses lugares ,
é vis to como um parce i ro inconstante . Sem dúvida , os diver sos
atores têm interesses diferentes, às vezes convergentes , ce r tamente
complementares . Tra ta - se de uma produção loca l mis ta , mat iza
da , cont radi tór ia de idé ias . São visões do m un do , do pa ís e do lugar
elaboradas na cooperação e no conflito. Tal processo é cr iador de
ambigüidades e de perplexidades , mas também de uma cer teza
P O R U M A O U T R A G L O B A L IZ A Ç Ã O
9 3
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9 2 M I L T O N S A N T O S
/
dada pe la emergênc ia da c idade como um lugar pol ít ico, cujo pape l
é dup lo: e la é um regulador do t r aba lho agr ícola , sequioso de um a
inte rpre tação do movimento do mundo, e é a sede de uma soc ie
dade loca l comp ósi ta e complexa , cuja diver s idade const i tui u m
permanente convi te ao deba te .
15 . Compartimentação efragmentação do espaço:
ocaso do Brasil
O exame do caso bras i le i ro quanto à modernização agr ícola
reve la a grande vulnerabi l idade das r egiões agr ícolas modernas
face à "modernização globa l izadora" . Examinando o que s igni
f ica na maior par te dos es tados do Sul e do Sudes te e nos es ta
dos de M a t o G r os s o e de M a t o G r os s o do S u l , be m c omo e m
manchas i soladas de out ros es tados , ver i f ica - se que o campo
modernizado se tornou pra t icamente mais aber to à expansão das
formas a tua is do capi ta l i smo que as c idades . Desse modo, en
quanto o urbano surge , sob mui tos aspec tos e com di fe rentes
mat izes , co mo o lugar da r es is tênc ia , as áreas agr ícolas se t r an s
formam agora no lugar da vulnerabi l idade .
O pape l das lógicas exóg enas
De ta is á reas pode-se dizer que a tua lmente func ionam sob
u m regim e obediente a preocupaç ões subordin adas a lógicas dis
tantes, externas em relação à área da ação; mas essas lógicas são
inte rnas aos se tores e às empres as globa is qu e as mo bi l izam . D aí
se c r ia rem s i tuações de a l ienação que escapam a regulações lo
c a i s ou na c i ona i s , e mbor a a r r a s t a ndo c ompor t a me n t os l oc a i s ,
r egiona is , nac iona is em todos os domínios da vida , inf luenc ian
do o c om por t a m e n t o da moe da , do c r é d i t o , do ga s t o púb l i c o e
do e mpr e go , i nc i d i ndo s ob r e o f unc i ona me n t o da e c onomi a
regiona l e urbana , por inte rm édio de suas r e lações de te rmina ntes
sobre o co mérc io, a indúst r ia , os t r anspo r tes e os se rviços . Para
l e l a me n t e , a lt e r a m- s e o s c ompor t a m e n t os po l í t i c os e a dmi n i s
t r a t ivos e o conteúdo da informação.
Esse processo de adaptação das r egiões agr ícolas modernas
s e dá c om g r a nde ra p i de z , i mpo ndo- l he s , num pe qu e no e s pa ç o
de tempo, s i s temas de vida cuja r e lação com o meio é r e f lexa ,
enquanto as de te rminações fundamenta is vêm de fora .
N u m mu ndo g l oba l iz a do, i dê n ti c o mov i me n t o pode s e r t a m
bém rapidamente implantado em out ras á reas , num mesmo pa ís
ou em o ut ro cont inen te . Assim, a noção de compet i t ividade mo s
t r a - se aqui com toda força , pol i t icamente a judada pe las m ani pu
lações do comércio exterior ou das barreiras alfandegárias. Cabe
pergunta r , nessas c i r cunstânc ias , o que po de acontecer a um a á rea
agrícola que, mediante um desses processos, seja esvaziada do seu
conteú do econ ômico. Q ue acontecerá , por exem plo, às novas á reas
de agr icul tura globa l izada do es tado de São Paulo no caso da
mu danç a inte rnac iona l da conjuntu ra da econom ia da la ranja , do
açúcar ou do álcool? E com o, diante de tal mudan ça, pode rão reagir
a região, o estado de São Paulo e a nação?
A apreciação das perspectivas abertas a essas áreas moderni
zadas, com tendência a particularizações extremas, deve levar em
conta o f a to de que o sent ido que é impress o à vida , em to das as
suas dimensõe s , base ia - se, em maior ou m eno r grau, em fa tores
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exógenos . De u m p ont o de vis ta nac iona l , r edef ine- se um a diver
s idade regiona l que agora não é cont rolada ne m con t roláve l , se ja
pela sociedade local, seja pela sociedade nacional. É uma diversi
dade regiona l de novo t ipo, em que se agravam as dispar idades
te r r i tor ia i s ( em equipam ento, r ecursos , informação, força eco nô
mica e polít ica, características da população, níveis de vida etc) .
A o me nos e m um p r i me i r o mome n t o e s ob o i mpu l s o da
compet i t ividade globa l izadora , produzem-se egoísmos loca is ou
regionais exace rbado s, justif icado s pela necessidad e de defesa das
condições de sobrevivênc ia r egiona l , mesmo que i sso tenha de
se dar à custa da idé ia de integr idade nac iona l . Esse ca ldo de
cul tura pode levar à quebra da sol idar iedade nac iona l e condu
z i r a uma f ragmentação do te r r i tór io e da soc iedade .
As d ialé t icas endógenas
Há, todavia , uma dia lé t ica inte rna a cada um dos f r agmen
t os r es u l t a n t e s . O p r odu t o ( ou p r odu t os ) c o m a r e s pons a b i l i da
de de c oma ndo da e c onomi a r e g i ona l i nc l u i a t o r e s c om d i f e
rentes per f i s e inte resses , cujo índice de sa t i s fação também é
di fe rente . D en t ro de cada região, as a l ianças e acordos e os con
t r a tos soc iais impl íc i tos ou expl íc i tos es tão semp re se r e fazend o
e a hegemonia deve se r sempre revis ta .
O p r oc e s s o p r odu t i vo r e úne a s pe c t os t é c n i c os e a s pe c t os
po l í t ic os . O s p r i me i r os t ê m m a i s a ve r c om a p r oduç ã o p r op r i a
me nte di ta e sua á rea de inc idênc ia se ver i fica mo rm en te den t ro
da própr ia r egião. A parce la pol í t ica do processo produt ivo, ao
cont rá r io , r e lac ionada com o comérc io, os preços , os subsídios ,
o custo do dinhe i ro e tc , tem sua sede fora da r egião e seus pro-
c e s s os f r e qüe n t e me n t e e s c a pa m a o c on t r o l e ( e a t é me s mo a o
e n t e nd i me n t o ) dos p r i nc i pa i s i n t e r e s s a dos . E i s s o que l e va à
t oma da g r a da t i va de c ons c i ê nc i a pe l a s oc i e da de l oc a l de que
lhe escapa a pa lavra f ina l quanto à produção loca l do va lor .
Nessas c i r cunstânc ias , a c idade ganha uma nova dimensão e
um novo pa pe l , me d i a n t e uma v i da de r e l a ç õe s t a mbé m r e no
vada , cuja densidade inc lui as ta re fas l igadas à produção glo
ba l izada . Por i sso, a c idade se torna o lugar onde melhor se es
c la recem as r e lações das pessoas , das empresas , das a t ividades
e dos " f r agme n t os " do t e r r i t ó r i o c om o pa ís e c om o " m und o" .
Esse pape l de encruz i lhada agora a t r ibuído aos cent ros r egio
na is da produção agr ícola modernizada faz de les o lugar da pro
dução a t iva de um discurso (com pre tensões a se r uni tá r io) e de
um a po l ít i c a c om p r e t e ns ã o a s e r ma i s que um c on j un t o de r e
gras par t icula res . Todavia , ta i s pol ít icas acabam, no long o p razo
e mesmo no médio prazo, por r eve la r sua debi l idade , sua r e la t i
vidade , sua inef icác ia , sua não-operac iona l idade . O que rec la
mar do poder loca l vis tos os l imi tes da sua competênc ia ; que
re ivindicar aos es tados f ederados; que sol ic i ta r e f icazmente aos
a ge n t e s e c onômi c os g l oba is , qua n do s e s a be que e s te s p od e m
encont ra r sa t i s fação aos seus ape t i tes de ganho s implesmente
mu da n do o l uga r de s ua ope ra ç ã o? P a r a e nc on t r a r u m c om e ç o
de resposta , o pr imei ro passo é r egressar às noções de nação,
sol idar iedade nac iona l , Estado nac iona l . De um ponto de vis ta
prá t ico, vol ta r íamos à idé ia , já expressa por nós em out r a oca
s ião , da const i tuição de um a federação de lugares , com a recons
t rução da federação bras i le i r a a par t i r da cé lula loca l , f e i ta de
f o r ma a que o t e r r i t ó r i o na ci ona l ve nha a c onhe c e r um a c om
pa r t i me n t a ç ã o qu e nã o s ej a t a mb é m u ma f r a gme n t a ç ão . D e s s e
mo do , a f ederação se r ia r e fe i ta de ba ixo para c ima , ao cont rá r io
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da
tendênc ia a que agora es tá send o a r ras tada pe la sub ordin ação
aos processos d e globa l ização.
16 .
O
território do dinh eiro
A qued a-de-bra ço ent re governos munic ipa is e es tadua is e o
governo federa l é mais que um a discussão técnica para saber q ue m
deve arcar co m o ônu s das dif iculdades f inanceiras dos 27 estad os
e dos mais de 5.500 munic ípios . A questão é a f ederação e sua
inadequação aos tempos da nova his tór ia com a emergênc ia da
globa l ização. O que es tá em jogo é o próp r io s i s tema de re lações
c ons t i t u í do , de um l a do , pe l os novos c on t e údos de mogr á f i c o ,
econômico, soc ia l de es tados e munic ípios e a manutenção do
conteúdo normat ivo do te r r i tór io , agora que face à globa l ização
se produz um embate ent re um dinhe i ro globa l izado e as ins tân
cias polít ico-administrativas do Estado brasileiro.
D e f i n i ç õe s
O t e r r i t ó r i o nã o é a pe na s o r e s u l t a do da s upe r pos i ç ã o de
um c on j un t o de s i s t e ma s na t u r a i s e um c on j un t o de s i s t e ma s
de coisas c r iadas pe lo homem. O te r r i tór io é o chão e mais a
população, i s to é , uma ident idade , o f a to e o sent imento de per
tencer àqui lo que nos per tence . O te r r i tór io é a base do t r aba
l h o , da r es idênc ia , das t rocas mate r ia i s e espi r i tua is e da vida ,
sobre os qua is e le inf lui . Quando se f a la em te r r i tór io deve-se ,
p o i s ,
de logo, entender que se es tá f a lando em te r r i tór io usado,
ut i l izado por um a dada popu lação. Um faz o out ro , à mane i ra
da cé lebre fr ase de Ch urchi l l : pr imei ro f azemos no ssas casas , de
pois e las nos f azem. . . A idé ia de t r ibo, povo , nação e , depois , d e
Estado nac iona l decor re dessa r e lação tornada profunda .
O dinhe i ro é uma invenção da vida de r e lações e aparece
c om o de c o r r ê nc i a de uma a t i v i dade e c onômi c a pa r a c u j o i n t e r
c â mbi o o s i mp l e s e s c a mbo j á nã o ba s ta . Q ua n do a c ompl e x i da
de é um f ruto de espec ia l izações produt ivas e a vida econômica
se torna complexa , o dinhe i ro acaba sendo indispensáve l e te r
mi na s e i mpond o c om o um e qu i va l e n te ge r al de t oda s a s c o is a s
que s ã o ob j e t o de c omé r c i o . N a ve r da de , o d i nhe i r o c ons t i t u i ,
também, um dado do processo, f ac i l i tando seu aprofundamento,
já que e le se torna representa t ivo do va lor a t r ibuído à produção
e ao t r aba lho e aos r espec t ivos r esul tado s .
O d inhe iro e o terr i tór io: s ituações h is tór icas
N u m p r i me i r o mom e n t o t r at a - se do d i nhe i r o l oca l , e xp r e s
s i vo de u m h or i z on t e c ome r c i a l e le me n t a r , a b r a nge n t e de c on
textos geográficos l imi tados o u para a tender às necess idades de
um c omé r c i o e de um a c i rc u l a çã o l ong í nquos , na s mã os de c o
merc iantes i t ine rantes , ava l i s tas do va lor das mercador ias . Ta l
mundo é c a r a c t e r i z a do po r c ompa r t i me n t a ç õe s mu i t o nume r o
sas ,
m a s u m m u n d o s e m m o v i m e n t o , l e n t o , e s t á v e l e c u j o s
f r a gme n t os qua s e s e ri a m a u t oc on t i dos . T a is môna da s , nu me r o
sas,
exis t i r iam para le lamente , mas sem o pr inc ípio gera l suger i
do por Le ibniz .
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N e s s e p r i me i r o mome n t o , o f unc i ona me n t o do t e r r i t ó r i o
deve m ui t o às suas f eições na tura is , à s qua is os hom ens se adap
t a m, c o m p e qu e na i n t e r m e d i a ç ã o t é c n i c a . A s r e l a ç õe s s oc ia i s
p r e s e n t e s s ão pouc o num e r os a s , s i mp l e s e pouc o de ns a s . O e n
t o r no d os hom e ns a c a ba po r l he s e r c onhe c i do e o s s e us mi s t é
r ios são apenas devidos às forças na tura is desconhec idas . Ta is
condiçõ es mate r ia i s te rm inam por se impo r sobre o r es to da vida
soc ia l , nu ma s i tuação na qua l o va lor de cada pedaço d e chão lhe
é a t r ibuído pe lo seu uso. Assim, a exis tênc ia pode se r inte rpre
tada a par t i r de r elações observadas di re tame nte ent re os ho me ns
e ent re os homens e o meio. O te r r i tór io usado pe la soc iedade
loca l r ege as mani fes tações da vida soc ia l , inc lus ive o dinh e i ro.
Metamorfoses das duas categor ias ao longo do tempo
C o m a a m p l i a ç ã o d o c o m é r c i o p r o d u z - s e u m a i n t e r d e
pendên c ia c rescente ent re soc iedades a té então re la t ivamen te i so
ladas , c resce o n úm ero de obje tos e va lores a t rocar , as própr ias
t rocas es t imulam a diver s if icação e o aum ento de volu me de um a
pr oduç ã o de s t i na da a um c ons umo l ong í nquo . O d i nhe i r o s e
i n s ta l a c om o c ond i ç ã o , t a n t o de s s e e s c a mbo qua n t o da p r o du
ção de cada grup o, tornand o-se ins t rume nta l à r egulação da vida
econômica e assegurando, ass im, o a la rgamento do seu âmbi to
e a f reqüênc ia d o seu uso .
N a rea l idade , o que c resce , se expan de e se torn a mais c om
p l e xo e de ns o nã o é a pe na s o c omé r c i o i n t e r na c i ona l , ma s ,
também, o inte rno. Assim, cada vez mais coisas tendem a tor
nar - se obje to de inte rcâmb io, va lor izado cada vez mais pe la t r o-
c a do que pe l o u s o e, de s s e mo do , r e cl a ma ndo u ma m e d i da ho
mogê ne a e pe r ma ne n t e . A s s i m, o d i nhe i r o a ume n t a s ua i nd i s
pe ns a b i l i da de e i nva de ma i s nume r o s os a s pe c t os da v i da e c o nô
mica e social.
Para le lamente , o te r r i tór io se apresenta como uma a rena de
mov i me n t os c a da ve z ma i s num e r os os , f unda dos s ob r e uma l e i
do va lor que tanto deve ao cará te r da prod ução p resent e em cada
lugar com o às poss ibi l idades e rea l idades da c i r culação. O din he i
ro é , cada vez mais , um dado essenc ia l para o uso do te r r i tór io .
M a s a l e i do va l o r t a mb é m s e e s t e nde a os p r óp r i o s l uga r e s ,
c a da qua l r e p r e s e n t a ndo , e m da da c i r c uns t â nc i a e e m f unç ã o
do c omé r c i o de que pa r t i c i pa m, um c e r t o í nd i c e de va l o r que
é , t a mbé m, a ba s e dos mov i me n t os que de l e s pa r t e m ou que a
e les chegam.
Q ua n t o m a i s mov i me n t o , ma i o r s e t o r na a c ompl e x i da de da s
re lações inte rnas e exte rnas e aprofunda-se a necess idade de um a
r e gu l a ç ão , da qua l o d i nhe i r o c ons t i t u i um dos e l e me n t os , a i n
da que o seu pape l não se ja o pape l cent ra l . Este é a t r ibuído à
ca tegor ia es tado, cuja necess idade se levanta como um impera
t ivo ,
a t r ibuin do-se l im i tes exte rnos ( as f ronte i r as es tabe lec idas) ,
l imi tes inte rnos ( as subdivisões pol í t ico-adminis t r a t ivas em di
ver sos níve is) e conteúdos normat ivos ( as le i s e costumes) , em
matér ia de competênc ias e r ecursos . É ass im que se ins ta lam na
his tór ia , ca tegor ias inte rdepe nden tes : o Estado te r r i tor ia l , o te r
r i tór io nac iona l , o Estado nac iona l . São e les que , em conjunto,
r e ge m o d i nhe i r o .
H á , po r c ons e g u i n t e , um d i nhe i r o na c i ona l que , a pes a r de
um comérc io exte rno c rescente , tem a ca ra do pa ís e é r egulado
pe lo pa ís . Dir - se - ia que esse dinhe i ro é r e la t ivamente coman
da do de de n t r o .
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O dinhe iro da global ização
Com a globa l ização, o uso das técnicas disponíve is permi te
a ins ta lação de um dinh e i ro f luido, r e la t ivam ente invis íve l , pra
t icamente abst ra to .
Co m o e qu i va l e n t e ger a l , o d i nhe i r o s e t o r na um e qu i va l e n
t e r e a l me n t e un i ve r s a l , a o me s mo t e mpo e m que ga nha uma
exis tênc ia pra t icamente autônoma em re lação ao res to da eco
nom i a . A s s im a u t ono mi z a do , pode - s e a t é d i z e r que e s se d i n he i
r o ,
em es tado puro, é um equiva lente gera l de le própr io. Ta lvez
por i sso sua exis tênc ia concre ta e sua e f icác ia se jam resul tado
da s no r ma s c om a s qua i s s e i mpõe a os ou t r os d i nhe i r os e a t o
dos os pa íses , permi t indo-se , desse modo, a e laboração de um
discurso, sem o qua l sua e f icác ia se r ia inf ini tamente menor e a
sua força men os ev idente . É , a l iás , a par t i r des te ca rá te r id eoló
gico, equiva lente a uma verdade i ra f a l s i f icação do c r i té r io , que
• din he i ro globa l é tam bém despót ico .
N a s c ond i ç õe s a t ua i s , a s l óg i c a s do d i nhe i r o i mpõe m- s e
àque las da vida soc ioeconómica e pol í t ica , forçando mim et ism os,
adaptações , r endições . Ta is lógicas se dão segundo duas ver ten
t es : um a é a do dinh e i ro das empresa s que , responsáve is po r u m
se tor da prod ução , são, tam bém , agentes f inance i ros , mob i l iza
dos em função da sobrevivênc ia e da expansão de cada f irma e m
par t icula r ; mas , há , tam bém , a lógica dos govern os f inance iros
g l obai s , F un do M on e t á r i o I n t e r na c i ona l, Ba nc o M und i a l , ba n
cos t ravest idos em regiona is com o o BID. É por inte rm édio de les
que as f inanças se dão como inteligência geral.
Essa inte l igênc ia globa l é exerc ida pe lo que se chamar ia de
contabi l idade globa l , cuja base é um conjunto de parâmetros
segundo os qua is aque les governos globa is medem, ava l iam e
c lass i f icam as economias nac iona is , por meio de uma escolha
arbi t r á r ia de var iáve is que apenas contempla ce r ta parce la da
p r oduç ã o , de i xa ndo p r a t i c a me n t e de l a do o r e s t o da e c o nom i a .
Por i sso, pod e-se dizer qu e , adotado esse c r i té r io de ava l iação, o
Produto Nac iona l Bruto apenas const i tui um nome- fantas ia para
essa f amosa contabi l idade globa l .
É po r me i o de s s e me c a n i s mo que o d i nhe i r o g l oba l a u t o
nomizado, e não mais o capi ta l como um todo, se torna , hoje , o
pr inc ipa l r egedor do te r r i tór io , tanto o te r r i tór io nac iona l como
suas frações.
* A n t e s , o t e r ri t ó r i o c o n t i n h a o d i n h e i r o , e m u m a d u p l a
a c e pç ã o : o d i nhe i r o s e ndo r e p r e s e n t a t i vo do t e r r i t ó r i o que o
a b r i ga va e s e ndo , e m pa r t e , r e gu l a do pe l o t e r r i t ó r i o , c ons i
de r a do c omo t e r r i t ó r i o u s a do . H o j e , s ob i n f l uê nc i a do d i nhe i
r o g l oba l , o c on t e údo do t e r r i t ó r i o e s c a pa a t oda r e gu l a ç ã o
i n t e r na , ob j e t o que e l e é de uma pe r ma ne n t e i n s t a b i l i da de ,
da qua l o s d i ve r s os a ge n t e s a pe na s c ons t i t ue m t e s t e munha s
pass ivas .
A ação te r r i tor ia l do dinhe i ro globa l em es tado puro acaba
por se r uma ação cega , gerando ingovernabi l idades , em vi r tude
dos seus e fe i tos sobre a vida econômica , mas também, sobre a
vida adminis t r a t iva .
N o te r r i tór io , a f inança globa l ins ta la - se com o a r egra das
r e g r a s , um c on j un t o de no r ma s que e s c o r r e , i mpe r i o s o , s ob r e
a tota l idade do edi f íc io soc ia l , ignorando as es t ruturas vigen
t es ,
pa r a me l ho r pode r c on t r a r i á - l a s , i mpondo ou t r a s e s t r u t u
r a s .
N o lug ar , a f inança glob a l se exerce pe la exis tênc ia das
pe s s oa s , da s e mpr e s a s , da s i n s t i t u i ç õe s , c r ia ndo pe r p l e x i da de s
e s uge r i ndo i n t e r p r e t a ç õe s que pode m c onduz i r à a mpl i a ç ã o
da consc iênc ia .
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Si tuações regionais
A von t a de de homog e ne i z a ç ã o do d i nhe i r o g l oba l é c on t r a
r iada pe las r es is tênc ias loca is à sua expansão. Desse modo, seu
p r oc e s s o t e nde a s e r d i f e r e n t e , s e gundo os e s pa ç os s oc i oe c o
nóm i c os e p o l í t ic os .
H á , t a mb é m, u ma von t a de d e a da p ta ç ã o às nova s c ond i ç õe s
do din he i ro , já qu e a f luidez f inancei ra é consid erada um a n e
c e s s ida de pa r a s er c ompe t i t i vo e , c ons e q üe n t e m e n t e , e x i t o s o no
mundo g l oba l i z a do .
A c o n s t i t u i ç ã o d o M e r c a d o C o m u m E u r o p e u , i s t o é , d a
Com uni da d e E c onôm i c a E ur opé i a , a i n s t i tu i ç ã o da A S E A N e o
p r e t e nd i d o e s t a be l ec i me n t o da A L C A obe de c e m a es s e me s m o
pr i nc í p i o , de modo a pe r mi t i r à s r e s pe c t i va s e c onomi a s , ma s
sobre tudo aos Estados l íderes e às empresas ne les s i tuadas , que
possam par t ic ipar de modo mais agress ivo do comérc io mundia l ,
bus c a ndo — o que l he s pa r e c e ne c e s s á r i o — a c ob i ç a da
he ge mon i a .
A E ur opa é o s ubc on t i ne n t e ma i s a va nç a do no que t oc a a
essa questão. E verdade que o processo de uni f icação europé ia
se inic ia após a Segunda Guer ra Mundia l e vem rea l izando e ta
pas sucess ivas , sendo a úl t ima , em da ta , a const i tuição do mer
cado com um f inance i ro, do qua l a mo eda única , o eur o, cons t i
tui o s ímbolo. As e tapas precedentes const i tuí r am uma espéc ie
de preparação para a uni f icação f inance i ra e inc luí ram medidas
obje t ivando a f luidez das mercador ias , dos homens, da mão-de-
obra e do própr io te r r i tór io , inc lus ive nos pa íses menos desen
vo l v i dos , de modo a que a E ur opa c omo um t odo s e pude s s e
tornar um cont inente igua lmente f luido. Sem isso e sem o re
forço da idé ia de c idad ani a— um a c idadania agora mul t in ac ion a l
para os s igna tá r ios do Tra tado de Schengen —, se r ia impossíve l
p e n s a r n u m a m o e d a ú n i c a s e m a u m e n t a r a s d i f e r e n ç a s e
desequ i l íbr ios já exis tentes .
Com pl e t a n do e s s e pa no de f undo , a un i fi c a çã o mon e t á r i a é
considerada um fa tor indispensáve l ao es tabe lec imento de uma
e c onom i a e u r opé i a c ompe t i t iva a o n í vel g loba l , me d i a n t e um a
divisão do t r aba lho renovada , segu ndo a qua l a lguns pa íses vê em
reforçadas a lgumas de suas a t ividades e devem renunc ia r a ou
t ras , após uma concer tação, às vezes longa e penosa , em Bruxe
las.
Na verdade , porém, essa uni f icação e equa l ização int ra -eu-
ropé ia acaba por se r mais um episódio de uma guer ra , porque
dest inadas a for ta lecer a Europa para compet i r com os out ros
me mb ro s da Tr íade e t ir a r prove i to de suas r e lações ass imétr icas
c o m o r e s t o d o m u n d o .
O caso la t ino-amer icano e bras i le i ro é di fe rente . O própr io
M e r c os u l ma n t é m, po r e nqua n t o , uma p r á t i c a l i mi t a da a o c o
mé r c i o , e s e u p r óp r i o p r o j e t o é me nos a b r a nge n t e qua n t o à s
re lações soc iais , cul tura is e pol í t icas . Não há um a c la ra p reo cu
pa ç ã o de bus c a r um de s e n vo l v i me n t o ho mo gê ne o e as i n i c ia t i
va s de i nve s t i me n t o t ê m mu i t o ma i s a ve r c om o c r e s c i me n t o
do pro du to, i s to é , co m o f loresc imento de cer to nú m er o de
emp resas vol tadas para o com érc io r egiona l , das qua is , a l iás , a l
gum a s s ã o i gua l me n t e i n s e r ida s no c omé r c i o mund i a l . P o r ou
t ro lado, di f e rentemente do caso europeu, as moedas nac iona is
nã o s ã o p r op r i a me n t e c onve r s íve i s , ne m c omun i c á ve i s d i r e t a
me n t e e n t r e e l as . S ua re l aç ã o c om o mu nd o é pob r e , t a n t o q ua n
t i ta t i va c om o qua l i t a t i va me n t e , j á que s ã o moe da s de pe nd e n t e s ,
cujo desva l im ento aum enta f ace à globa l ização, const i tu indo um
e l e me n t o a ma i s de a g r a va me n t o de s ua p r óp r i a de pe n dê nc i a .
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Efe i tos do d inhe iro g lobal
Esta é um a das razões pelas quais a decisão de participar passi
vamen te da globa lização acaba por se r danosa . Quan to m elhor é o
exercício do mo del o, pior é para o país. Essa situação é ainda m ais
grave nos países complexo s e grandes, na medid a em q ue a vocação
hom ogen eizado ra do capital global vai ser exercida sobre um a base
formada por parcelas muito diferentes umas das outras e cujas di
ferenças e desigu aldades são ampliadas so b tal ação unitár ia.
O d i nhe i r o r e gu l a do r e homoge ne i z a dor a g r a va he t e r oge
ne idades e aprofunda as dependênc ias . É ass im qu e e le cont r ibui
para quebrar a sol idar iedade nac iona l, c r iando o u au men tand o as
fraturas sociais e terr itoriais e ameaçando a unidade nacional.
O conteúdo do te r r i tór io como um todo e de cada um dos
seus compar t imentos muda de forma brusca e , também, rapida
me nte perde um a parce la maior ou me no r de sua ident idade , em
favor de formas de regulação estranhas ao sentido local da vida.
E po r esse pr i sm a que dever ia se r vis ta a ques tão da federa
ção e da governabi l idade da nação: na medida em que o gover
no da nação se sol idar iza com os des ígnios das forças ex te rnas ,
levantam-se problemas c ruc ia is para es tados e munic ípios .
A questão é es t rutura l e , desse mod o, o problem a de es tados
e munic ípios é , no fundo, um só ; esse problema é const i tuído pe las
formas a tua is de compar t imentação do te r r i tór io e o seu novo
conteú do, qu e inc lui as formas de ação do dinh e i ro inte rnac iona l .
Epí logo
A que s t ã o que s e põe c om o um a e s pa da de D â mo c l e s s ob r e
as nossas cabeças é a seguinte : vamo s recon st rui r a f ederação para
servi r melhor ao dinhe i ro ou para a tender à população? Agora ,
tud o es tá sendo fe i to para r e fazer a f ederação de m od o a que se ja
ins t rumenta l às forças f inance i ras . São o Banco Cent ra l e o Mi
nis té r io da Fazenda , em comb inação co m as ins t i tuições f inan
ce i ras inte rnac iona is , que or ientam as grandes r e formas ora em
curso. De vem os, então , nos prepara r para a nova e tapa que , a l iás ,
j á s e a n u n c i a — a d a r e c o n s t r u ç ã o d o a r c a b o u ç o p o l í t i c o -
te r r i tor ia l do pa ís ao se rviço da soc iedade , i s to é , da popu lação.
1 7 . erticalidades e horizontalidades
O tema das vert ica l idades e das hor izonta l idades já havia s id o
t r a ta do po r mi m no l i v r ou
natureza do espaço. Técnica e tempo. Razão
e emoção (1996) , sob re tud o no capí tulo 12. Vamos agora abo rdá-
l o s e gundo novos â ngu l os e a mbi c i ona nd o um a v is ã o p r os pe c
t iva , a par t i r desses dois r ecor tes superpostos e com plem entare s
do espaço geográf ico a tua l .
As ver t ical idades
As ver t ica l idades podem ser def inidas , num te r r i tór io , como
um conjunto de pontos formando um espaço de f luxos . A idé ia ,
de c e r t o modo , r e mon t a a os e s c r i t o s de F r a nç o i s P e r r oux
(L économie du XX
e
siècle, 1961), quando e le descreveu o espaço
e c onôm i c o . T al noç ã o fo i r e c e n t e me n t e r e a p r op r i a da po r M a
nue l Caste l l s (A sociedade em rede, 1999). Esse espaço de f luxos
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se r ia , na r ea l idade , um subsis tema dent ro da tota l idade-espaço,
já que para os e fe i tos dos r espec t ivos a tores o que conta é , so
b r e t udo , e s se c on j un t o de pon t o s a de qua dos à s t a re f as p r odu t i
vas hegemônicas , ca rac te r í s t icas das a t ividades econômicas que
c oma nda m e s t e pe r í odo h i s t ó r i c o .
O sistema de produção que se serve desse espaço de f luxos
é
constituído por redes — um sistema reticular —, exigente de f lui
dez e sequioso de velocidade. São os atores do tempo rápido, que
plenamente par t ic ipam do processo, enquan to os demais r a ramen te
tiram todo proveito da f luidez. Tais espaços de f luxos vivem uma
solidariedade do tipo organizacional, isto é, as relações que man
têm a agregação e a cooperação ent re agentes r esultam em um pro
cesso de organização, no qual predo min am fatores externos às áreas
de inc idênc ia dos menc ionados agentes . Chamemos macroa tores
àqueles que de fora da área determinam as modalidades internas
de ação. E a esses macroatores qu e, em última análise, cabe direta
ou indiretamente a tarefa de organizar o trabalho de todos os ou
t ros , os quais de uma forma ou d e outra depen dem da sua regulação.
O fa to de que cada um deva adapta r compor tam entos loca is aos
inte resses globa is , que es tão sempre mudando, leva o processo
organizac ional a se dar com descont inuidades , cujo r i tm o depen de
do número e do poder cor respondente a cada macroagente .
P o r i n t e r mé d i o dos me nc i ona dos pon t os do e s pa ç o de f l u
xos , as macroem presas acabam por ganhar um pap e l de r egulação
do co njun to d o espaço. Jun te - se a esse cont role a ação expl íc i ta
ou diss imulada do Estado, em todos os seus níve is te r r i tor ia i s .
Tra ta - se de uma regulação f reqüentemente subordinada porque ,
e m g r a nde núme r o de c a s os , de s t i na da a f a vo r e c e r o s a t o r e s
he ge môn i c os . T oma da e m c ons i de r a çã o de t e r mi na da á r e a , o e s
paço de fluxos tem o pape l de integração com níve is e con ôm icos
e espaciais mais abrangentes. Tal integração, todavia, é vertical,
dep end ente e a l ienadora , já que as dec isões essenc ia is c on cer
nentes aos processos loca is são es t r anhas ao lugar e obedecem a
mot ivações dis tantes .
Nessa s condições , a tendê nc ia é a preva lênc ia dos inte re sses
corpora t ivos sobre os inte resses públ icos , quanto à evolução do
t e r r i t ó r i o , da e c onomi a e da s s oc i e da de s l oc a i s. D e n t r o de s s e
quadro, a pol í t ica das empresas — is to é , sua policy — aspi ra e
c ons e gue , me d i a n t e uma governance, tornar - se pol í t ica ; na ver
dade , uma pol í t ica cega , pois de ixa a const rução do des t ino de
uma á rea ent regue aos inte resses pr iva t í s t icos de uma empresa
que nã o t e m c om pr omi s s o s c om a s oc i e da de loc a l.
Na s i tuação ac ima descr i ta , ins ta lam-se forças cent r í fugas
c e r t a me n t e de t e r mi na n t e s , c om ma i o r ou me no r fo r ç a , do c on
j un t o dos c ompor t a me n t os . E , e m c e r t o s c a s os , qua ndo c ons e
gue m c on t a g i a r o t odo ou a ma i o r i a do c o r po p r odu t i vo , t a i s
f o r ç a s c e n t r í f uga s s ã o , a o me s mo t e mpo , de t e r mi na n t e s e do
mi na n t e s . T al domi nâ nc i a é t a mbé m por t a do r a da r a c i ona l i da de
hegemônica e cujo poder de contágio f ac i l i ta a busca de uma
unif icação e de uma homogene ização.
As f rações do te r r i tór io que const i tuem esse espaço de f lu
xos c ons t i t ue m o r e i no do t e mpo r e a l , s ubor d i na ndo- s e a um
re lógio univer sa l , a fe r ido pe la tempora l idade globa l izada das
e mpr e s a s he ge môn i c a s p r e s e n t e s . D e s s e modo o r de na do , o e s
paço de f luxos tem vocação a se r ordenador do espaço tota l , t a
refa que lhe é facili tada pelo fato de a ele ser superposto.
O modelo econômico ass im es tabe lec ido tende a r eproduz i r -
se ,
a inda q ue m ost ran do topologias espec í ficas , l igadas à na turez a
dos p rodu tos , à força das empresas impl icadas e à r es i s tênc ia do
espaço preexis tente . O mo delo heg emô nico é plane jado para se r,
em sua ação individua l , indi fe rente a seu entorno. Mas es te de
a lgum modo se opõe à pleni tude dessa hegemonia . Esta , porém,
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é exerc ida em sua form a l imi te , pois a empresa se esforça por es
gotar as vir tualidades e perspectivas de sua ação "racional". O ní
ve l desse l imi te def ine a operação respect iva do po nto de vis ta de
sua rentabi l idade , comparada à de out ras empresas e de out ros
lugares. Se considerada insatisfatória, leva à sua migração.
As ver t ical idades são, pois , por tadoras de um a ord em impla
cáve l, cuja convocação incessante a segui -la r epresenta u m conv i
t e a o e s tr a nha me n t o . A s s i m, qua n t o m a i s " mode r n i z a dos " e pe
ne t rados p or essa lógica , mais os espaços r espec tivos se to rnam
alienado s. O el enco das condiçõ es de realização das verticalidades
mo st ra qu e , para sua e fe t ivação, te r um sent ido é desnecessár io ,
enq uan to a grande força moto ra se r ia aque le ins t into animal das
empresas menc ionado, há decênios , por S tephan Hymer e agora
multiplicado e potencializado a partir da globalização.
As ver tica l idades r ea l izam de m od o indiscut íve l aque la idé ia
de J e a n G o t t m a nn ( " T he e vo l u t i on o f t he c onc e p t o f t e r r i t o r y" ,
Information sur les Sciences Sociales, 1975) segundo a qua l o te r r i tó
r i o pode s e r v i s t o c omo u m r e c u r s o , j u s t a m e n t e a pa r t i r do u s o
p r a gmá t i c o que o e qu i pa me n t o mode r n i z a do de pon t os e s c o
lhidos assegura .
As h o r i z o n ta l i d a d e s
A s ho r i z on t a li da de s s ã o z ona s da c on t i gu i da de que f o r ma m
e x t e ns õe s c on t í nua s . V a l e mo- nos , ou t r a ve z , do vo c a bu l á r i o de
François Per roux quando se r e fe r iu à exis tênc ia de um "espaço
bana l" em oposição ao espaço econômico. O espaço bana l se r ia
o espaço de todos : empresas , ins t i tuições , pessoas; o espaço das
vivênc ias .
Esse espaço bana l , e ssa extensão cont inuada , em que os a to
res são considerados na sua cont iguidade , são espaços que sus
t e n t a m e e xp l i c a m um c on j un t o de p r oduç õe s l oc a l i z a da s ,
inte rdependentes , dent ro de uma á rea cujas ca rac te r í s t icas cons
t i t ue m, t a m bé m , um f a to r de p r oduç ã o . T odos os a ge n t es s ã o ,
de uma forma ou de out ra , impl icados , e os r espec t ivos tempos,
mais r ápidos ou m ais vagarosos , são imbr icados . E m ta is c i r cun s
tânc ias pode-se dizer que a par t i r do espaço geográf ico c r ia - se
uma s o l i da r i e da de o r gâ n i c a , o c on j un t o s e ndo f o r ma do pe l a
e x i s tê nc i a c om um dos a ge n te s e xe r c endo- s e s ob r e um t e r r i t ó
r io com um . Tais a t ividades , não impo r ta o níve l , dev em sua c r ia
ção e a l imentação às ofe rtas do meio geográf ico loca l . Tal c on
j un t o i nd i s s oci á vel e vo l u i e mud a , ma s ta l mov i m e n t o p ode s e r
v i s t o c om o um a c on t i nu i da de , e xa t a me n t e e m v i r t ude do pa pe l
cent ra l que
é
jog ado pe lo menc iona do m eio geográf ico loca l .
Nesse espaço bana l , a ação a tua l do Estado, a lém de suas
funções igua lmente bana is , é l imi tada . Na verdade , mudadas as
condições pol í t icas , é nesse espaço bana l que o poder públ ico
encon t ra r ia as melh ores condiçõ es para sua inte rvenção . O fa to
de que o E s t a do se p r e oc upe s ob r e t udo c om o de s e m pe n ho da s
macroempresas , às qua is ofe rece regras de na tureza gera l que
desconhecem par t icula r idades c r iadas a par t i r do meio geográ
f ico, leva à ampl iação das ver t ica l idades e , para le lamente , per
mi t e o a p r o f unda me n t o da pe rs ona l i da de das ho r i z on t a l i da de s .
Nestas , a inda que es te jam presentes empresas com di fe rentes
níve is de técnicas , de capi ta l e de organização, o pr inc ípio que
perm i te a sobrevivênc ia de cada um a é o da busca de cer ta in te
gração no processo da ação.
Tra ta -se , aqui , da produ ção loca l de uma integração sol idár ia ,
obt ida med iante sol idar iedades hor izonta is inte rnas , cuja na tureza
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é tanto econômica , soc ia l e cul tura l como propr iamente geográ
f ica . A sobrevivênc ia do conjunto, não impor ta que os diver sos
agentes tenh am inte resses di fe rentes , depende desse exerc ício da
solidariedade, indispensável ao trabalho e que gera a visibilidade
do inte resse comum. Ta l ação comum não é obr iga tor iamente o
r e s u l t a do de pa c t os e xp l í c i t o s ne m de po l í t i c a s c l a r a me n t e
estabelecidas. A própria existência, adaptando-se a situações cujo
com and o f reqüen temente escapa aos r espec tivos a tores , acaba por
exigi r de cada qua l um permanente es tado de a le r ta , no sent ido
de apreen der as mudanças e descob r i r as soluções indispensáve is .
Pode-se dizer que ta l s i tuação assegura a permanênc ia de
forças cent r ípe tas . Estas , a inda que não se jam de te rm inan tes ( já
qu e as hor izonta l idad es r ecebem inf luxos das ver t ica l idades) são
dominantes . Ta is forças cent r ípe tas garantem sua sobrevivênc ia
pe lo f a to de que o âmbi to de r ea l ização dos a tores é l imi tado,
confundindo-se todos num espaço geográf ico res t r i to , que é , ao
mesmo tempo, a base de sua a tuação.
As hor izonta l idad es , pois , a lém das r ac iona l idades t ípicas das
ver t ica l idades que as a t r avessam, admitem a presença de out ras
rac iona l idades ( chamadas de i r r ac iona l idades pe los que dese ja
r i a m ve r c omo ún i c a a ra c i ona li da de he ge môn i c a ) . N a v e r da de ,
são cont ra - rac iona l idades , i s to é , formas de convivênc ia e de
regulação c r iadas a par t i r do própr io te r r i tór io e que se m an têm
ne s s e t e r r i t ó r i o a de s pe i t o da von t a de de un i f i c a ç ã o e homo
geneização, características da racionalidade hegemônica típica das
ver t ica l idades . A presença dessas ver t ica l idades produz tendên
c ias à f r agmentação, co m a const i tuição de a lvéolos r epre senta
t ivos de formas espec í ficas d e se r hor izonta l a par t i r das r espe c
t ivas par t icula r idades .
A busca de um sentido
Ao cont rá r io das ver t ica l idades , r egidas por um re lógio úni
co, implacáve l , nas hor izonta l idades ass im par t icula r izadas fun
c i ona m, a o me s m o t e m po , vá r i os r e l óg i os , r e a l i z ando- s e , pa r a
le lamente , diver sas tempora l idades .
Tra ta - se de um espaço à vocação sol idár ia , sus te nto de um a
organização em segu ndo níve l , enq uan to sobre e le se exerce um a
von t a de pe r ma ne n t e de de s o r ga n i z a ç ã o , a o s e r v i ç o dos a t o r e s
he ge môn i c os . E s s e p r oc e s s o d i a l é t i c o i mpe de que o pode r ,
sempre c rescente e cada vez mais invasor , dos a tores hegemô
nicos ,
fundados nos espaços de f luxos, seja capaz de eliminar o
e s pa ç o ba na l , que é pe r ma ne n t e me n t e r e c ons t i t u í do s e gundo
uma nova def inição.
P ode - s e d i z e r que , a o c on t rá r i o da o r de m i mpos t a , nos e s
paços de f luxos , pe los a tores hegemô nicos e da obediênc ia a l ie
na da dos a t o r e s s uba l t e r n i z a dos , he ge mon i z a dos , nos e s pa ç os
banais se recria a idéia e o fato da Política, cujo exercício se tor
na indispensáve l , pa ra providen c ia r os a jus tame ntos necessár ios
ao func ionamento do conjunto, dent ro de uma á rea espec í f ica .
Por meio de encont ros e desencont ros e do exerc íc io do deba te
e dos acordos , busca- se expl íc i ta ou tac i tamente a r eadaptação
às novas formas de existência.
O processo ac ima descr i to é também aque le pe lo qua l uma
soc iedade e um te r r i tór io es tão sempre à busca de um sent ido e
exercem, por i sso, uma vida re f lexiva . Neste caso, o te r r i tór io
não é apenas o lugar de uma ação pragmát ica e seu exerc íc io
c omp or t a , t a mbé m , um a por t e da v ida , uma pa rc e l a de e mo ç ã o ,
que permi te aos va lores r epresenta r um pape l . O te r r i tór io se
metamor fose ia em a lgo mais do que um s imples r ecurso e , para
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u t i l iz a r uma e xp r e s s ã o , que é t a mbé m de J e a n G o t t ma nn , c ons
t i tui um abr igo.
N a rea l idade , a mesm a f ração do te r r i tór io pod e se r r ecurso e
abr igo, pod e condic ionar as ações mais pragmát icas e , ao me sm o
t e mp o , pe r mi t i r voc aç õe s ge ne ros a s . O s do i s mov i m e n t os s ã o
concomitantes . Nas condições a tua is , o movim ento de te rmin ante ,
com tendência a uma difusão avassaladora, é o da criação da or
dem da rac iona l idade pragmát ica , enquanto a produção do espa
ço bana l é r es idua l . Pode-se , todavia , imaginar ou t ro cen ár io , n o
qua l o com por ta men to do espaço de f luxos seja subo rdinad o nã o
com o agora à r ea lização do din he i ro e enc ont re u m f re io a essa
forma de manifes tação, tomand o-se subord inado à r eal ização ple
na da vida , de mo do q ue os espaços bana is aume ntem sua capac i
dade de se rvi r à pleni tude do homem.
18 .
A esquizofrenia do espaço
Como s a be mos , o mundo , c omo um c on j un t o de e s s ê nc i a s
e de poss ibi l idades , não exis te para e le própr io, e apenas o f az
para os out ro s . É o espaço, i s to é , os lugares , que rea l izam e r e
ve l a m o m und o , t o r na nd o- o h i s t o r i c i za do e ge ogra f i za do , i s t o
é , empir ic izado.
O s l uga r e s s ã o , po i s , o mundo , que e l e s r e p r oduz e m de
mo do s espec í ficos , individua is , d iver sos . E les são s ingula res , mas
são tam bém globa is , mani fes tações da tota l idade-m und o, da qua l
são forma s particulare s.] ^
Ser c idadão num lugar ^
^ M Ü /
Nas condições a tua is , o c idadão do lugar pre tende ins ta la r -
s e t a mbé m c omo c i da dã o do mundo . A ve r da de , po r é m, é que
o " mundo" nã o t e m c omo r e gu l a r o s l uga r e s . E m c ons e qüê n
c ia , a e xp r e ss ã o c ida dã o do mun do t o r na - s e u m vo t o , um a p r o
messa , um a poss ibi l idade dis tante . Co m o os a tores globa is e f ica
z e s s ã o , e m ú l t i ma a ná l i s e , a n t i - home m e a n t i c i da dã o , a
poss ibi l idade de exis tênc ia de um c idadão do mundo é condic io
nada pe las r ea l idades nac iona is . Na verdade , o c idadão só o é
(ou não o é ) como c idadão de um pa ís .
Ser "c idadão de um pa ís" , sobre tudo qu and o o te r r i tór io é ex
tenso e a soc iedade mu i to des igua l , pode con st i tui r, apenas , um a
perspectiva de cidadania integral, a ser alcançada nas escalas sub-
naciona is, a com eçar pel o nível local. Esse é o caso brasileiro , e m
que a realização da cidadania reclama, nas condições atuais, uma
revalorização dos lugares e um a adequação de seu estatuto polít ico .
A mul t ipl ic idad e de s i tuações r egiona is e mun ic ipa is , t r az ida
com a globa l ização, ins ta la uma enorme var iedade de quadros
de vida , cuja r ea l idade pres ide o cot idiano das pessoas e deve se r
a base para uma vida c ivi l izada em comum. Assim, a poss ibi l i
dade de c idadania plena das pessoas depende de soluções a se
rem bu scadas loca lmen te , desde que , den t ro da nação, se ja ins t i
t u í da uma f e de r a ç ã o de l uga r e s , uma nova e s t r u t u r a ç ã o
pol í t ico- te r r i tor ia l , com a indispensáve l r edis t r ibuição de recu r
sos , pre r roga t ivas e obr igações . A par t i r do pa ís com o federação
de l uga re s s er á pos s í vel , nu m s e gun do mo me n t o , c ons t r u i r um
m un do c om o f e de ra ç ã o de pa ís e s .
Tra ta - se , em ambas as e tapas , de uma const rução de ba ixo
para c ima cujo ponto cent ra l é a exis tênc ia de individua l idades
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for tes e das garant ias jur ídicas co r respo nden tes . A base geográ
f ica dessa const rução se rá o lugar , considerado como espaço de
exerc íc io da exis tênc ia plena . Estamos, porém, mui to longe da
rea l ização desse idea l . Como, então, poderemos a lcançá- lo?
O cotid iano e o terr i tór io
O te r r i tór io tanto quan to o lugar são esquizof rênicos , po rqu e
de u m lado acolhem os ve tores da globa l ização, que n e les se ins ta
lam para impo r sua nova ordem , e , de out ro lado, ne les se produ z
um a cont ra -orde m, porque há uma produ ção ace le rada de pobres ,
exc luídos , margina l izados . Crescentemente r eunidas em c idades
cada vez mais numero sas e maiores , e exper im entand o a s i tuação
de viz inhança (que , segun do S ar t r e , é r eve ladora) , essas pessoas
nã o s e s ubor d i na m de f o r ma pe r ma ne n t e à r a c i ona l i da de
he ge môn i c a e , po r i s s o , c om f r e qüê nc i a pode m s e e n t r e ga r a
manifes tações que são a cont ra face do pragm at ismo. Assim, jun to
à busca da sobrevivência, vemos produzir-se, na base da sociedade,
um pragmat ismo mesc lado com a emoção, a par t i r dos lugares e
das pessoas jun tos . Esse é , tamb ém, u m m od o de insur re ição e m
relação à globalização, co m a descobe rta de que, a desp eito de ser
mos o que somos, podemos também dese ja r se r out ra coisa .
Nis so, o pape l do lugar é de te rmin ante . E le não é apenas u m
quadro de vida , mas um espaço vivido, i s to é , de exper iênc ia
sempre renovada , o que permi te , ao mesmo tempo, a r eava l iação
das heranças e a indagação sobre o presente e o futuro. A exis
tênc ia naquele espaço exerce um pape l r eve lador sobre o mundo.
G l oba i s , o s luga r es ga nha m um qu i nh ã o ( ma i o r ou me nor )
da " r a c iona l i da de " do " m und o" . M a s e s t a s e p r opa ga de mo do
hete rogêneo, i s to é , de ixando coexis t i r em out ras r ac iona l idades ,
i s t o é , con t r a - ra c i ona l i da de s , a que , e qu i voc a da me n t e e do po n
t o de v i s t a da r a c i ona l i da de domi na n t e , s e c ha ma m " i r r a c i o
na l i da de s " . M a s a c on f o r mi da de c om a Ra z ã o H e ge môn i c a é
l imi tada , enquanto a produção plura l de " i r r ac iona l idades" é i l i
mi tada . É somente a par t i r de ta i s i r r ac iona l idades que é poss í
ve l a ampl iação da consc iênc ia .
Se es te é um dado gera l , e le se dá com var iações s egu ndo as
cole t ividades e os subespaços . Vejam-se , por exemplo, as di fe
renças , hoje , ent re cam po e c idade . No cam po, as r ac iona l idades
da globa l ização se di fundem mais extensivamente e mais r api
da me n t e . N a c i da de , a s i r ra c i ona li da de s s e c r i a m ma i s nu me r o
s a e i nc e s s a n t e me n t e que a s r a c i onal i da de s, s ob r e t udo qua n do
há , para le lamente , produção de pobreza .
É es te o fundam ento da esquizof renia do lugar . Ta l esq uizo
frenia se resolve a partir do fato de que cada pessoa, grupo, f ir
ma , ins t i tuição rea l iza o mun do à sua mane i ra . A pessoa , o g ru
p o ,
a f i rma , a ins t i tuição const i tuem o de dentro do lugar, c om o
qua l s e c omun i c a m s ob r e t udo pe l a me d i a ç ã o da t é c n i c a e da
p r oduç ã o p r op r i a me n t e d i t a , e nqua n t o o mundo s e dá pa r a a
pessoa , grupo, f i rma , ins t i tuição como o defora do lugar e po r i n
te rmédio de uma mediação pol í t ica . A mediação técnica e a pro
duç ã o c o r r e s ponde n t e , l oc a l e d i r e t a me n t e e xpe r i me n t a da s ,
pode m nã o s e r i n t e i r a me n t e c ompr e e nd i da s , ma s s ã o v i v i da s
c om o um d a do i me d i a t o , e nqua n t o a me d i a ç ã o po l í ti c a , f r e
qüentemente exerc ida de longe e cujos obje t ivos nem sempre
são evid ente s, exige um a interpret ação mais f ilosófica.
U m a filosofia banal come ça por se instalar no espír ito das
pessoas com a descober ta , autor izada pe lo cot idiano, da não-
a u t onomi a da s a ç õe s e dos s e us r e s u l t a dos . E s t e é um da do
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V
L I M I T E S À G L O B A L I Z A Ç Ã O P E R V E R S A
I n t r o d u ç ã o
A aná l i se do fenôm eno da globa l ização f ica ria incom ple ta se ,
após r econhecer os f a tores que poss ibi l i ta ram sua emergênc ia ,
apenas nos de t ivéssemos na aprec iação dos seus aspec tos a tua l
me n t e domi na n t e s , de que r e s u l t a m t a n t os i nc onve n i e n t e s pa r a
a ma i o r pa r t e da hum a n i da de .
Cabe , agora , ver i f ica r os l imi tes dessa evolução e r econhe
cer a emergênc ia de ce r to número de s ina is indica t ivos de que
ou t r os p r oc e s s os pa r a l el a me n t e s e le va n t a m, a u t o r i z a ndo pe n
sar qu e vivemos um a verdade i ra f ase de t r ansição para um nov o
pe r í odo .
Em pr imeiro lugar , o denso s i s tema ideológico que envolve
e sus tenta as ações de te rm inan tes parece não res is t i r à evidênc ia
dos f a tos . A ve loc idade não é um bem que permi ta uma dis t r i
buição genera l izada , e as dispar idades no seu uso garantem a
exacerbação das des igua ldades . Ávida cot idiana também reve la
a impossibi l idade de f ruição das vantagens do chamado tempo
co m um a todas as pessoas , não impor t a a di fe rença de suas s i tua
çõ es .
Mas out ra coisa é ul t r apassar a descober ta da di fe rença e
chegar à sua consc iênc ia .
Um a p e d a g o g i a d a e x i s t ê n c i a
Isso , todavia , não é tudo. A consc iênc ia da di fe rença pode
conduz i r s implesmente à defesa individua l i s ta do própr io inte
resse, sem alcançar a defesa de um sistema alternativo de idéias
e
de vida . De u m pon to de vis ta das idé ias, a questão cent ra l r es ide
no encont ro do caminho que va i do imedia t i smo às visões f ina-
l í st icas ; e de u m pon to de vis ta da ação, o prob lema é u l t r apassar
as soluções imedia t i s tas (por exemp lo, e le i tora l i smos inte resse i
ros e apenas provisoriamente ef icazes) e alcançar a busca pol í t ica
genuína e const i tuc iona l de r emédios es t rutura is
e
du r a dour os .
Nesse processo, a f i rma-se , também, segundo novos moldes ,
a
ant iga oposição ent re o mundo e o lugar . A informação mun-
dia l izada permi te a visão, mesmo em lashes, de ocor rênc ias dis
tantes . O conhec imento de out ros lugares , mesmo super f ic ia l e
incom ple to, aguça a cur ios idade . E le é ce r tamente u m sub prod uto
de um a informação gera l enviesada , mas , se for a judado po r um
conhec imento s i s têmico do acontecer globa l , autor iza a visão da
his tór ia como uma s i tuação e um processo, ambos c r í t icos . De
p o i s ,
o proble ma c ruc ia l é : como passar de u ma s i tuação c r ít ica a
um a v i s ão c r í t i c a —
e ,
em seguida , alcançar uma toma da de co ns
c iênc ia . Para i sso, é fundamen ta l viver a própr ia exis tênc ia c om o
algo de uni tá r io
e
ve rda de i r o , ma s t a mbé m c om o um pa r a doxo :
obedecer para subsis t i r e r es is t i r pa ra poder pen sar o futuro . En
tão a exis tênc ia é prod utora de sua próp r ia pedagogia .
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r e a l pa r a a ma i o r i a da hum a n i da de . A p r om e s s a de qu e a s t é c n i
c a s c on t e mpor â ne a s pude s s e m me l ho r a r a e x i s t ê nc i a de t odos
caem p or te r ra e o que se observa é a expansão ace le rada do r e i
no da escassez , a t ingindo as c lasses médias e c r iando ma is pob res .
A s popu l a ç õe s e nvo l v i da s no p r oc e s s o de e xc l us ã o a s s i m
for ta lec ido acabam por r e lac ionar suas ca rênc ias
e
vic iss i tudes
a o c on j un t o de nov i da de s que as a t i nge m. U m a t oma da de c o ns
c i ê nci a t o r na - s e poss í ve l a l i me s mo onde o f e nôm e no da e s c a s
sez é mais sensíve l . Por i sso, a compre ensã o do q ue se es tá pas
sand o chega com c la reza c rescente aos pobres e aos pa íses pobre s ,
cada vez mais num eros os e ca rentes . Daí o r epú dio às idé ias e à s
p r á t ic a s po lí t ic a s que f unda m e n t a m o p r oc e s s o s oc i oe c onóm i c o
a tua l e a dem and a , cada vez mais pressurosa , de novas soluções .
Estas não mais se r iam cent radas no din he i ro , co mo na a tua l f ase
da g l oba li z a çã o , pa ra e nc on t r a r no p r óp r i o ho me m a ba s e
e
o
mot o r da c ons t r uç ã o de um novo mundo .
1 9 . A variável ascendente
O s f e nôm e nos a que mu i t o s c ha ma m de g l oba l i z a çã o e ou
t r o s d e p ó s - m o d e r n i d a d e ( R e n a t o O r t i z , Mundialização e cultu
ra, 1994 ) na ve r da de c ons t i t ue m, j un t os , um m om e n t o be m de
ma r c a do do p r oc e s s o h i s t ó r i c o . P r e f e r i mos c ons i de r á - l o um
p e r í o d o . C o m o e m q u a l q u e r o u t r o p e r í o d o h i s t ó r ic o , f u n c i o
na m de forma concer tad a diver sas var iáve is cuja visão s i s tê mica
é i nd i s pe ns á ve l pa r a e n t e nde r o que s e e s t á r e a l i z a ndo . T a m
b é m c o m o e m t o d o p e r í o d o , a p a r t i r d e c e rt o m o m e n t o h á
var iáve is que perdem vigor , verdade i ras var iáve is descendentes ,
e out ras que passam a se impor . São as var iáve is ascendentes
que r e ve l a m a p r odu ç ã o de um no vo pe r í odo , i s t o é , a pon t a m
para o futuro.
O mome n t o a t ua l da h i s t ó r i a do mundo pa r e c e i nd i c a r a
emergênc ia de numerosas var iáve is ascendentes cuja exis tênc ia
é s i s têmica . I sso, exa tamente , permi te pensar que se es tão pro
duz indo as condições de r ea l ização de uma nova his tór ia .
Por enqu anto , r enun c iam os, aqui , a fornecer um a l is ta exaus
t i va dos f e nôme nos , ma s nã o a a pon t a r a l guns f a t o s que nos
parec em bem carac te r í s ticos das mu dan ças em curso. U m de les
é o c rescente desencanto com as técnicas , acom panh ado por um a
grada t iva r ecuperação do bom senso, em oposição ao senso co
m um , i s to é , em op osição à pre tensa r ac iona l idade suger ida tanto
pe las técnicas em s i mesm as com o pe la pol í t ica do seu uso. O ut ro
dad o s igni fica tivo se levanta com a impossibi l idade re la t ivamente
crescente de acesso a essas técnicas , em vi r tude do aumento da
pobr e z a e m t od os o s c on t i ne n t e s . J un t e - s e a e s s e da do o f a to de
q u e , apesar da capac idade invasora das técnicas hegemô nicas , so
brevivem e c r iam-se novas técnicas não hegemônicas . Pode-se
ar r i scar um va t ic ínio e r econhecer , no conjunto do processo, o
a núnc i o de um novo pe r í odo h i s t ó r i c o , s ubs t i t u t o do a t ua l pe
r í odo . E s t a r ía mos na a u r o r a de uma nova e r a , e m q ue a popu l a
ção ,
i s to é , as pessoas const i tui r iam sua pr inc ipa l preocupação,
um ve r da de i r o pe r í od o popu l a r da h i s tó r i a , j á e n t r e m os t r a do
pe las f r agmentações e par t icula rizações sensíve is em to da p ar te
devidas à cul tura e ao te r r i tór io .
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2 0 . Os limites da racionalidade dominante
O Proje to R ac iona l começa a most ra r suas l imi tações ta lvez
p o r q u e e s t e j a m o s a t i n g i n d o a q u e l e p a r o x i s m o p r e v i s t o p o r
W e b e r (Economía y sociedad 1922) para r ea l iza r - se quando o pro
cesso de expansão da rac iona l idade capi ta li s ta se tornasse i l imi
tado. Tudo indica que es tamos a t ingindo essa f ronte i r a , agora
q u e ,
nos diver sos níve is da vida econômica , soc ia l , individua l ,
vivemos uma rac iona l idade tota l i tá r ia que vem acompanhada de
uma perda da r azão. O deboche de carênc ias e de escassez que
a t inge uma parce la cada vez maior da soc iedade humana permi
te r econhecer a r ea l idade dessa perdição.
Uma boa parce la da humanidade , por des inte resse ou inca
pacidade, não é mais capaz de obed ecer leis, normas, r egras, man
damentos , cos tumes der ivados dessa r ac iona l idade hegemônica .
Daí a proliferação de "ilegais", "irregulares", "informais".
Essa incapac idade mis tura , no processo de vida , prá t icas e
teor ias herdadas e inovadas , r e l igiões t r adic iona is e novas con
vicções . E nesse ca ldo de cul tura que numerosas f r ações da so
c iedade passam da s i tuação ante r ior de conformidade assoc iada
a o c on f o r mi s mo a uma e t apa s upe r i o r da p r oduç ã o da c o ns c i ê n
c i a, is t o é , a c on f o r mi da de s e m o c on f o r mi s m o . P r o duz - s e de s
sa mane i ra a r edescober ta pe los homens da verdade i ra r azão e
nã o é e s pa n t os o que t a l de s c obr i me n t o s e dê e xa t a me n t e nos
espaços soc ia is , econô mico s e geográf icos tamb ém "n ão c onfor
m e s "
à r ac iona l idade dominante .
Na esfe ra da r ac iona l idade hegemônica , pequena margem é
de ixada para a var iedade , a c r ia t ividade , a espontane idade . En
qua nto i sso, surgem , nas out ras esfe ras , cont ra - rac io na l idad es e
r a c i o n a l i d a d e s p a r a l e l a s c o r r i q u e i r a m e n t e c h a m a d a s d e
i r rac iona l idades , mas que na rea l idade const i tue m out ras formas
de rac iona l idade . Estas são produz idas e mant idas pe los que es
t ã o " e mba i xo" , s ob r e t udo os pob r e s , que de s s e mod o c ons e gue m
escapar ao tota l i ta r i smo da rac iona l idade dominante . Recorde
mos o ensinamento de Sar t r e , pa ra quem a escassez é que torna
a his tór ia poss íve l, graças à "unid ade nega t iva da mul t ip l ic idade
c onc r e t a dos home ns " ^ /
Ta l s i tuação é obje t ivamente esperançosa porque agora as
s i s t imos ao f im das expec ta t ivas nut r idas no após-guer ra e , ao
c on t r á r i o , t e s t e munha mos a a mpl i a ç ã o do núme r o de pobr e s ,
ass im com o o es t r e i tamen to das poss ibi l idades e das ce rtezas qu e
as classes médias aca lentavam a té a década de 1980. Ou tro dad o
obje t ivo é o f a to de que a r ea l ização cada vez mais den sa do pr o
cesso de globa l ização ense ja o ca ldeamento, a inda que e lemen
ta r , das f i losof ias produz idas nos diver sos cont inentes , em de
t r imento do rac iona l i smo europeu, que é o bisavô das idé ias de
r a c i ona l i smo t e c noc r á t i c o ho j e domi na n t e s .
2 1 . O
imaginário da velocidade
Na famí l ia dos imaginár ios da globa l ização e das técnicas ,
enco nt ra - se a idé ia , di fundida com exuberânc ia , de que a ve loc i
dade const i tui um dado i r r ever s íve l na produção da his tór ia ,
sob re tud o ao a lcançar os paroxismos dos temp os a tua is . N a ver
d a d e ,
porém , some nte a lgum as pessoas , fi rmas e ins t ituições são
a l tamen te ve lozes , e são a inda em me no r núm ero as que ut i l izam
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todas as vi r tua l idades técnicas das máq uinas . N a verdade , o r es
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do sécu lo XLX ao te rce i ro do século XX. Os i mp ér ios , em sua
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to da humanidade produz , c i r cula e vive de out ra mane i ra . Gra
ças à impostu ra ideológica , o f a to da minor i a acaba send o re pre
senta t ivo da tota l idade , graças exa tam ente à força do imagin ár io .
Essa t r ansformação de uma f luidez potenc ia l nu m a f luidez
efe t iva , por meio da ve loc idade exacerbada , todavia não tem e
nem busca um sent ido. Sem dúvida , e la se rve ao exerc íc io de
uma compet i t ividade desabr ida , mas es ta é uma coisa que nin
guém sabe para o que rea lmente se rve .
Veloc idade : técnica e poder
Pode -se dizer que a ve loc idade ass im ut i l izada é dup lam en
te um dado da pol í t ica e não da técnica . De um lado, t r a ta - se de
uma escolha re lac ionada com o poder dos agentes e , de out ro,
da legi t imação dessa escolha , po r meio da jus t i f icação de um
modelo de c ivi l ização. É nesse sent ido que es tamos a f i rmando
t ra ta r - se mais de um dado da pol í t ica que , propr iamente , da téc
nica , já que es ta poder ia se r usada di fe rentem ente em fun ção do
conjunto de escolhas soc ia is . De fa to , o uso ext remo da ve loc i
dade acaba por se r o impera t ivo das empresas hegem ônicas e não
das demais , para as qua is o sent ido de urgênc ia nã o é uma con s
tante . Mas é a par t i r desse e de out ros compor tamentos que a
pol í t ica das empresas a r ras ta a pol ít ica dos Estados e d as in s t i
tuições supranac iona is .
N o pa s s a do , a o r de m mund i a l s e c ons t r u í a me d i a n t e uma
c ombi na ç ã o po l í t i c a que c onduz i a à nã o - obe d i ê nc i a a os d i t a
me s da t é c n i c a ma i s mode r na . P e ns e mos , po r e xe mpl o , no s é
c u l o do i mpe r i a l i s mo , nos c e m a nos que vã o do qua r t o qua r t e l
qua l idade de grandes conjuntos pol í t icos e te r r i tor ia i s , v iviam e
evoluíam segun do idades técnicas diver sas , ut i l izando , cada qua l ,
de n t r o dos s e us domí n i os , c on j un t os de a va nç os t é c n i c os d i s
para tados e que most ravam níve is di f e rentes . O impér io br i tâ
nico es tava à f r ente dos demais quanto à posse de r ecursos téc
n i c os a va nç a dos . M a s i s s o nã o i mpe d i a s ua c onv i vê nc i a c om
ou t r os i mpé r i o s . D e n t r o de c a da um, o u s o do c on j un t o dos
r e c u r s os t é c n i c os e r a c oma nda do po r um c on j un t o de no r ma s
r e l a ci ona da s a o c omé r c i o , à p r oduç ã o e a o c on s um o , o que pe r
mi t ia a cada bloco uma evolução própr ia , não per turbada pe la
exis tênc ia em out ros impér ios de avanços técnicos mais s igni f i
ca t ivos . N o fun do, a pol í tica comerc ia l apl icada dent r o de cada
i mpé r i o a s s e gur ava a po l í ti c a do c on j un t o d o mu nd o oc i de n t a l
( M .
S a n t o s , /
natureza do espaço,
1996, pp. 36-37 e pp. 1 52-153) .
O exemplo most ra não se r ce r to que ha ja um impera t ivo técni
c o .
O i mpe r a t i vo é po l í t i c o . D e s s e modo , nã o há uma i ne l u -
t a b i l i da de f a c e a os s i s t e ma s t é c n i c os , ne m mui t o me nos um
de t e r m i n i s m o . A li á s , a t é c n ic a s ome n t e é um a bs o l u t o e nqu a n
to i r r ea l izada . Assim , exis t indo apenas na vi t r ine , mas h is tor ica
me n t e i ne x i s t e n t e , e qu i va l e r i a a uma a bs t r a ç ã o . Q ua ndo nos
re fe r imos à his tor ic ização e à geografização das técnicas , es tam os
c u i da n do de e n t e nde r o s e u us o pe l o hom e m , s ua qua l i da de de
inte rm ediá r i o da ação, i s to é , sua r e la t ivização.
N o pe r í o do da g l oba li z a ç ã o , o me r c a do e x t e r n o , c om s ua s
e x i gê nc i a s de c ompe t i t i v i da de , ob r i ga a a ume n t a r a ve l oc i da
d e .
Mas a população em seus di fe rentes níve is , os pobres e os
que v i ve m l onge dos g r a nde s me r c a dos ob r i ga m a c ombi na
ções de formas e níve is de capi ta l i smo. É o mercado inte rno
qu e f re ia a vo nta de de ve loc ida de de qu e já f a lava M . S or re
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M I L T O N S A N T O S
P O R U M A O U T R A G L O B A L IZ A Ç Ã O 1 2 5
8/17/2019 Milton Santos - Por uma outra globalização [LIVRO].pdf
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(Annales degéographie, 194 8) , po r que t od os o s a t o r e s de l e pa r t i
c i p a m . T o d a v i a , o s d o i s m e r c a d o s s ã o i n t e r c o r r e n t e s ,
i n t e r d e p e n d e n t e s . I n v a d i n d o a e c o n o m i a e o t e r ri t ó r i o c o m
gr a nde ve l oc i da de , o c i r c u i t o s upe r i o r bus c a de s t r u i r a s f o r
ma s p r e e x i s t e n t e s . M a s o t e r r i t ó r i o r e s is t e , s ob r e t udo n a g r a n
de c idade , graças , ent re out ras coisas , à menor f r icção da dis
t â nc i a . A s pe que na s e mé d i a s e m pr e s a s l oc a i s t ê m ma i s a c e s s o
po t e nc i a l que , po r e xe mpl o , uma g r a nde e mpr e s a de M a na us ,
po i s pode m a l c a nç a r uma pa r t e s i gn i f i c a t i va da c i da de ( po r
e x e m p l o , o s s u p e r m e r c a d o s m e n o r e s ) . C o n t r i b u i r á t a m b é m
pa r a e s se ma i o r a c e s s o po t e nc i a l o fa t o de e s t a r e m n um me i o
que é um t e c i do e um e ma r a nha do de no r ma s c onc e r ne n t e s , o
que t o r na e s s a s e mpr e s a s me nos de pe nde n t e s de uma ún i c a
norma para subsis t i r . Mas, com a globa l ização e seu imaginá
r i o c omum a o da t é c n i c a he ge môn i c a , uma e ou t r a s ã o da da s
como indispensáve is à par t ic ipação plena no processo his tór ico.
D o r e l ó g i o d e s p ó t i c o à s t e mp o r a l id a d e s d i v e r g e n te s
E fa to, tam bém , que , com a inte rdependênc ia globa l izada dos
lugares e a plane ta r ização dos s i s temas técnicos do min antes , es tes
pa r e c e m s e i mpor c omo i nva s o re s , s e r v i ndo c omo pa r â m e t r o n a
ava l iação da e ficác ia de out ro s lugares e de ou t ros s i s tem as téc
nicos .
É ne s s e s e n t ido que o s i s t e ma t é c n ic o he ge m ôn i c o a pa r e
ce como a lgo absolutamente indispensáve l e a ve loc idade resul
tante com o um da do dese jável a todos qu e pre ten dem par t ic ipar ,
de pleno di re i to , da modernidade a tua l . Todavia , a ve loc idade
a tua l e tud o que vem com e la , e que de la decor re , não é ine lu tá
ve l ne m i mpr e s c i nd í ve l . N a ve r da de , e l a nã o be ne f i c i a ne m
inte ressa à maior ia da hum anid ade . Para quê , de f a to , se rve esse
re lógio despót ico do mundo a tua l? As c r i ses a tua is são, em úl t i
ma a ná l i s e, uma r e s u l t a n t e da ac e l er a ç ão c on t e m por â ne a , m e
d i a n t e o u s o p r i v i l e g i a do , po r a l guns a t o r e s e c onômi c os , da s
poss ibi l idades a tua is de f luidez . Como ta l exerc íc io não respon
de a um obje t ivo mora l e , desse modo, é desprovido de sent ido,
o r e s u l t a do é a i n s t a l a ç ã o de s i t ua ç õe s e m que o mov i me n t o
enco nt ra jus t i f ica t iva em s i me sm o — com o é o caso do me rca
do de capi ta i s especula t ivos —, ta l autonomia sendo uma das
razões da desordem carac te r í s t ica do per íodo a tua l .
Q u a nd o a c e i ta mos pe ns a r a t é c n ic a e m c on j un t o c o m a po
l í t ica e admi t imos a t r ibui r - lhe out ro uso, f icamos convenc idos
de que é poss íve l ac redi ta r em u ma ou t ra globa l ização e em um
ou t r o mundo . O p r ob l e ma c e n t r a l é o de r e t oma r o c u r s o da
his tór ia , i s to é , r ecolocar o homem no seu lugar cent ra l .
Ta l preocupação de mudança inc lui uma revisão do s igni f i
cado das pa lavras-chave do nosso per íodo, todas contaminadas
pe lo r espec t ivo s i s tema ideológico. F iquemos com a questão da
velocidade, que pode se r vis ta como um paradigma da época , mas
também como o que e la r epresenta de emblemát ico. Na verdade ,
se ja qua l for o corpo soc ia l , a ve loc idade h egem ônica const i tu i
um a das suas características, mas a definição da realidade s om ent e
pod e se r obt ida consid erando -se as diver sas ve loc idades em pre
sença . E , seja com o for , a et icác ia da ve loc idade não pro vém da
técnica subjacente . A e f icác ia da ve loc idade hegemônica é de
na tureza pol í t ica e depende do s i s tema soc ioeconómico pol í t ico
em ação. Pode-s e dizer que , em um a dada s i tuação, ta l ve loc ida
de he ge mô n i c a é um a ve l oci da de i mpos t a i de o l og i c a me n t e .
Como em tudo mais , a inte rpre tação da his tór ia não pode
s e r de i xa da a o e n t e nd i me n t o i me d i a t o do f e nôme no t é c n i c o
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(Annales degéographie,
1 9 4 8 ) ,
po r qu e t odos o s a t o r e s de l e pa r t i
c i p a m . T o d a v i a , o s d o i s m e r c a d o s s ã o i n t e r c o r r e n t e s ,
i n t e r d e p e n d e n t e s . I n v a d i n d o a e c o n o m i a e o t e r r it ó r i o c o m
gr a nde ve l oc i da de , o c i r c u i t o s upe r i o r bus c a de s t r u i r a s f o r
ma s p r e e x i s t e n t e s . M a s o t e r r i t ó r i o r e s is t e , s ob r e t udo na g r a n
de c idade , graças , ent re out ras coisas ,
à
me no r f ri c ç ão da d i s
t â nc i a . A s pe que n a s e mé d i a s e m pr e s a s l oc a i s t ê m ma i s a c e s s o
po t e nc i a l que , po r e xe mpl o , uma g r a nde e mpr e s a de M a na us ,
po i s pode m a l c a nç a r uma pa r t e s i gn i f i c a t i va da c i da de ( po r
e x e m p l o , o s s u p e r m e r c a d o s m e n o r e s ) . C o n t r i b u i r á t a m b é m
pa r a e ss e ma i o r a c e s so po t e nc i a l o f a to de e s t a r e m nu m me i o
que é um t e c i do e um e ma r a nha do de no r ma s c onc e r ne n t e s , o
que t o r na e s s a s e mpr e s a s me nos de pe nde n t e s de uma ún i c a
norma para subsis t i r . Mas, com a globa l ização e seu imaginá
r i o c omum a o da t é c n i c a he ge môn i c a , uma e ou t r a s ã o da da s
como indispensáve is à par t ic ipação plena no processo his tór ico.
D o r e l ó g i o d e s p ó t i c o à s t e mp o r a l i da d e s d i v e r g e n te s
É fa to, tam bém , que , com a inte rdependênc ia globa l izada dos
lugares e a plane ta r ização dos s i s temas técnicos do min antes , es tes
pa r e c e m s e impo r c omo i nva s o r e s , s e r v i ndo c omo pa r â m e t r o na
ava l iação da ef icác ia de o ut ros lugares e de out ro s s i s temas téc
nicos . É nesse sent ido que o s i s tema técnico hegemônico apare
ce como a lgo absolutamente indispensáve l e a ve loc idade resul
tante com o um dad o dese jável a todo s que pre ten dem par t ic ipar ,
de pleno di re i to , da modernidade a tua l . Todavia , a ve loc idade
a tua l e tud o que vem com e la , e que de la decor re , não é ine lu tá
ve l ne m i mpr e s c i nd í ve l . N a ve r da de , e l a nã o be ne f i c i a ne m
inte ressa à maior ia da hum anid ade . Para qu ê , de f a to , se rve esse
re lógio despót ico do m un do a tua l? As c r ises a tua is são, em úl t i
ma a ná l i s e , um a r e s u l t a n t e da ac e l er a ç ão c on t e m por â ne a , m e
d i a n t e o u s o p r i v i l e g i a do , po r a l guns a t o r e s e c onômi c os , da s
poss ibi l idades a tua is de f luidez . Co m o ta l exerc íc io não res pon
de a um obje t ivo mora l e , desse modo, é desprovido de sent ido,
o r e s u l t a do é a i n s t a l a ç ã o de s i t ua ç õe s e m que o mov i me n t o
enco nt ra jus t i f ica t iva em s i me sm o — com o é o caso do me rca
do de capi ta i s especula t ivos —, ta l autonomia sendo uma das
razões da desordem carac te r í s t ica do per íodo a tua l .
Q u a nd o a c e i t a mos pe ns a r a t é c n ic a e m c on j un t o c om a p o
l í t ica e admi t imos a t r ibui r - lhe out ro uso, f icamos convenc idos
de que é poss íve l ac redi ta r em um a out ra globa l ização e em um
ou t r o mundo . O p r ob l e ma c e n t r a l é o de r e t oma r o c u r s o da
his tór ia , i s to é , r ecolocar o homem no seu lugar cent ra l .
Ta l preocupação de mudança inc lui uma revisão do s igni f i
cado das pa lavras-chave do nosso per íodo, todas contaminadas
pe lo r espec t ivo s i s tema ideológico. F iquemos com a questão da
velocidade, que pode se r vis ta como um paradigma da época , mas
também como o que e la r epresenta de emblemát ico. Na verdade ,
se ja qua l for o corpo soc ia l , a ve loc idade he gem ônica const i tui
um a das suas características, mas a definição da realidade som en te
po de se r obt ida consid erando -se as diver sas ve loc idades em pre
sença . E , se ja com o for , a e t icác ia da ve loc idade n ão pro vém da
técnica subjacente . A e f icác ia da ve loc idade hegemônica é de
na tureza pol í t ica e depende do s i s tema soc ioeconómico pol í t ico
em ação. Pode-se dizer que , em u ma dada s i tuação, ta l ve loc ida
de he ge mô n i c a é uma ve l oc i da de i mpos t a i de o l og i c a me n t e .
Como em tudo mais , a inte rpre tação da his tór ia não pode
s e r de i xa da a o e n t e nd i me n t o i me d i a t o do f e nôme no t é c n i c o
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e x i g i ndo e n t e nde i c om o , ne s s a me s ma s i t ua ç ã o , s e r e l a c i ona m
a técnica e a pol í t ica , a t r ibuindo a esta o pape l cent ra l no ent en
d i me n t o da s a ç õe s que c on f o r ma m o p r e s e n t e a t ua l e que po
de m t o r n a r poss í ve l um ou t r o f u t u r o .
2 2 . J u s t - i n - t i m e v e r s u s
o cotidiano
O tema das ver t ica l idades e das hor izonta l idades pode com
por ta r numerosas r e inte rpre tações . Uma de las , r e f le t indo o jogo
cont rad i tór io ent re essas ca tegorias , é verdade i ra oposição exis
tente e nt re a na tureza das a t ividades just-in-time, que t r a ba l ha m
com um re lógio univer sa l movido pe la mais-va l ia univer sa l , e a
realidade das atividades
q u e ,
jun tas , con st i tuem a vida co t idiana .
N o pr im ei ro caso tr a ta - se da vocação para uma rac iona l idade
única , r e i tora de todas as out ras , dese josa de homog ene iz ação e
de uni f icação, pre tendendo sempre tomar o lugar das demais ,
um a rac iona l idade única , mas rac iona l idade sem razão, que t r ans
forma a exis tênc ia daque les a quem subordina numa per spec t i
va de alienação. Já no cotidiano, a razão, isto é, a razão de viver ,
é buscada po r meio do qu e , face a essa r ac iona l idade hegem ônica ,
é considerado com o " i r r aciona l idade" , quan do na rea l idade o que
se dá são outras formas de ser racional.
O m und o do t e mpo r e a l, do
just- in-time, é
aque le subsis tema
da r e a l i da de t o t a l que bus c a s ua l óg i c a ne s s a me nc i ona da
«rac ion a l idade única , cuja c r iação é, todavia , l imi tada , a t r ibuto de
um pe que no núme r o de a ge n t e s . O mundo do c o t i d i a no é t a m
bém o da produção i l imi tada de out ras r ac iona l idades , que são,
a l iás , tão diver sas quan to as á reas conside radas , já qu e abr iga m
todas as modal idades de exis tênc ia .
O f unc i ona me n t o dos e s pa ç os he ge môn i c os s upõe uma de
ma nd a de s e s pe r ada de r e g ra s ; qua n do a s c ir c uns t â nc ia s m ud a m
e, por i sso, as normas reguladoras têm de mudar , nem por i sso
sua demanda de ixa de se r desesperada . Ta l r egulação obedece à
consideração de inte resses pr ivat í s t icos . Já o cot idiano supõ e um a
de ma nda de s e s pe r a da de P o l í t i c a , r e s u l t a do da c ons i de r a ç ã o
conjunta de múl t iplos inte resses .
N o caso das a t ividades just-in-time, um a s ó t e mpor a l i da de é
c ons i de r a da : é a f ó r mul a de s ob r e v i vê nc i a no mundo da
compet i t ividade à esca la plane tá r ia . Como dado motor , uma só
e x i s tê nc i a, a dos a gen t e s he ge môn i c os , é , a o me s m o t e m po , o r i
gem e f ina l idade das ações . A vida cot idiana abrange vár ias
t e mpor a l i da de s s i mu l t a ne a m e n t e p r e s e n t e s , o que pe r mi t e c on
s idera r , pa ra le la e sol idar iamente , a exis tênc ia de cada um e d e
todo s , com o, ao me sm o temp o, sua or igem e f ina lidade .
O conjunto das condições ac ima enunc iadas permi te dizer
q u e o m u n d o d o t e m p o r e a l b u s c a u m a h o m o g e n e i z a ç ã o
e mpob r e c e dor a e l i mi t ada , e nqua n t o o un i ve r s o do c o t i d i a no é
o mundo da he t e r oge ne i da de c r i a do r a .
2 3 . Um emaranhado de
técnicas:
o reino do artifício
e da escassez
Sabemos já que as técnicas presentes em uma dada s i tuação
nã o s ã o homo gê ne a s . E nqu a n t o a s t é c n ic a s he ge môn i c a s s e dã o
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em redes , a lém de las out ras técnicas se impõem. Mas, em uma
da da s i t ua ç ã o , t oda s a s t é c n i c a s p r e s e n t e s a c a ba m por s e r
inext r icáve is . Ta l sol idar iedade não é , propr iamente , ent re as
técnicas , mas o f ruto d a vida sol idária da soc iedade .
D o ar ti f í c io à e scassez
Hoje , tanto os obje tos quanto as ações der ivam da técnica .
As técnicas es tão, pois , em toda par te : na produção, na c i r cu
lação, no te r r i tór io , na pol í t ica , na cul tura . E las es tão também
— e pe r ma ne n t e me n t e — no c o r po e no e s p í r i t o do home m.
V i ve mos t odo s num e ma r a n ha do de t é c n ic a s , o que e m ou t r a s
pa lavras s igni f ica que es tamos todos mergulhados no re ino do
a r ti f íc i o . N a me d i da e m q ue a s t é c n i ca s he ge môn i c a s , f unda
das na c iênc ia e obedientes aos impera t ivos do mercado, são
ho j e e x t r e ma m e n t e do t a da s de i n t e nc iona l i da de , há i gua l me n t e
t e ndê nc i a à he ge mon i a de uma p r oduç ã o " r a c i ona l " de c o i s a s
e de nec e s s i da de s ; e de s s e mo do um a p r oduç ã o e xc l ude n t e de
ou t r a s p r oduç õe s , c om a mu l t i p l i c a ç ã o de ob je t o s t é c n i c os e s
t r i t a me n t e p r og r a ma dos que a b r e m e s pa ç o pa r a e s s a o r g i a de
c o i s a s e ne c e s s i da de s que i mpõe m r e l a ç õe s e nos gove r na m.
Cr i a - s e um ve r da de i r o t o t a l i t a r i s mo t e nde nc i a l da r a c i ona
l i da de — i s t o é , de s s a r a c i ona l i da de he ge môn i c a , domi na n t e
—, produz indo-se a par t i r do respec t ivo s i s tema cer tas coisas ,
se rviços , r e lações e idé ias . Esta , a l iás , é a base pr im ei ra da p ro
duç ão de carênc ias e de escassez , já qu e um a parce la co nsi de
ráve l da soc iedade não p ode te r acesso às coisas , se rviços , r e la
ç õ e s ,
i dé i a s que s e mu l t i p l i c a m na ba s e da r a c i ona l i da de
he ge môn i c a .
A s i tuação contemporânea reve la , ent re out ras coisas , t r ês
tendênc ias : 1 . uma produção ace le rada e a r t i f ic ia l de necess ida
d es ;
2 . uma incorporação l imi tada de modos de vida di tos r ac io
nai s ;
3 . uma produção i l imi tada de carênc ia e escassez .
Nessa s i tuação, as técnicas , a ve loc idade , a potênc ia c r iam
de s i gua l da de s e , pa r a l e l a me n t e , ne c e s s i da de s , po r que nã o há
sa t is fação para todos . N ão é q ue a produ ção necessár ia se ja glo
ba lmente impossíve l . Mas o que é produz ido — necessár ia ou
de s ne c e s s a r ia me n t e — é de s i gua l me n t e d i s t r i bu í do / D a í a s e n
sação e, depo is, a consc iência da escassez: aquilo q ue falta a mim ,
mas que o out ro mais bem s i tuado na soc iedade possui . A idé ia
vem de Sar t r e , qu and o regis t ra que "não há bas tante para todo o
mundo" . P o r i s s o o ou t r o c ons ome e nã o e u . O home m, c a da
homem, é a f ina l def inido pe la soma dos poss íve is que lhe ca
bem, mas também pe la soma dos seus impossíve is .
O re ino da necess idade exis te para todos , mas segun do for
mas di fe rentes , as qua is s impl i f icamos me diant e duas s i tuações-
t i p o : para os "possuidores" , para os "não possuidores" .
Qu ant o aos "possuidores" , torna- se viável , med iante poss ibi
lidades reais ou artif ícios renovados, a fuga à escassez e a supera
ção a inda que provisór ia da escassez . Co m o o processo d e c r iação
de necess idades é inf ini to , impõe-se uma readaptação perma
nente . Cr ia - se um c í rculo vic ioso com a rot ina da f a l ta e da sa
tisfação. N a realida de, para essa parcela da socieda de a falta já é
c r iada com o a expec ta t iva e a per spec t iva d e sa t is fação. As neg o
ciações para regressar ao
status
de c ons u mi do r s a ti s fe i to c ond u
zem à repe t ição de exper iênc ias exi tosas . Desse m od o, a parce la
de c ons um i dor e s c on t um a z e s ob t é m uma c onv i vê nc i a r el a ti va
me nte pac í f ica com a escassez . Mas a busca perm anen te de ben s
f ini tos e por i sso cond enado s ao esgotam ento (e à subst i tuição
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por out ros bens f ini tos) condena os aparentemente vi tor iosos à
ace i tação da cont ra f ina l idade cont ida nas coisas e em con seqü ên
c ia ao enf raquec imento da individua l idade .
Q u a n t o a os " nã o - pos s u i do r e s " s ua c onv ivê nc i a c om a e s c a s
sez é conf l i tuosa e a té pode se r guer re i r a . Para e les , viver na e s
f e r a do c ons umo é c omo que r e r s ub i r uma e s c a da r o l a n t e no
sent ido da desc ida . Cada dia acaba ofe recendo uma nova expe
riência da escassez. Por isso não há lugar para o repo us o e a pró
pr ia vida acaba por se r um verda de i ro cam po de ba ta lha . Na br iga
cotidiana pela sobrevivência, não há negociação possível para eles,
e , individua lmente , não há força de negoc iação. A sobrevivên
c ia só é assegurada porque as exper iênc ias impera t ivamente se
renovam. E como a surpresa se dá como rot ina , a r iqueza dos
"não-possuidores" é a pront idão dos sent idos . É com essa força
que e les se eximem da cont ra f ina l idade e ao lado da busca de
ben s mate r ia i s f ini tos cul t ivam a procura de bens inf ini tos c om o
a sol idar iedade e a l iberdade : es tes , quanto mais se dis t r ibuem,
ma i s a ume n t a m.
Da e s c a s s e z a o e n te n d i me n to
A exper iênc ia da escassez é a pon te ent re o c ot idian o vivid o
e o mundo . P o r i s s o , c ons t i t u i um i ns t r ume n t o p r i mor d i a l na
percepção da s i tuação de cada um e uma poss ibi l idade de co
nhe c i m e n t o e de t oma da de c ons c i ênc i a .
O nosso tempo consagra a mul t ipl icação das fontes de es
cassez , se ja pe lo número avassa lador dos obje tos presentes no
mercado, se ja pe lo chamado incessante ao consumo. Cada dia ,
nessa época de globa l ização, apresenta - se um obje to novo, que
nos é most rado para provocar o ape t i te . A noção de escassez se
mater ia l iza , se aguça e se r eaprende cot id ianam ente , ass im co mo ,
já agora , a ce rteza de qu e cada dia é dia de u m a nov a escassez . A
soc iedade a tua l va i dessa mane i ra , mediante o mercado e a pu
bl ic idade , c r iando dese jos insa t i s fe i tos , mas também rec laman
do e xp l i c aç õe s . D i r - s e - i a que t a l mo v i m e n t o s e r e pe t e , e n r i qu e
c e ndo o mov i me n t o i n t e l e c t ua l .
A escassez de um pode se parecer à escassez do out ro e a
escassez de hoje à escassez de ont em , mas qu and o não é sa t i s fe i
ta e la acaba por se impor como di fe rente da de ontem e da do
out ro. Al te r idade e individua l idade se r e forçam com a renova
ção da novidade . Quanto mais di fe rentes são os que convivem
num espaço l imi tado, mais idé ias do mundo a í es ta rão para se r
levantadas , cote jadas e , desse modo, tanto mais r ico se rá o de
ba te s i lenc ioso ou ruidoso que ent re as pessoas se es tabe lece .
Nes se sent ido, pode -se dizer que a c idade é um lugar pr ivi legiado
para essa revelação e que, nessa fase da globalização, a acelera
ç ã o c on t e mpor â ne a é t a mbé m a c e le r a çã o na p r oduç ã o da e s c a s
sez e na descob er ta da sua rea l idade , já que , mul t ip l ican do e
apressando os conta tos , exibe a mul t ipl ic idade de formas de es
c a s se z c on t e mpor â ne a , a s qua i s vã o mud a nd o ma i s r a p i da me n
te para se tornarem mais numerosas e mais diver sas . Para os
pobr e s , a e s c a s s e z é um da do pe r ma ne n t e da e x i s t ê nc i a , ma s
co mo su a presença na vida de todos os dias é o r esul tado d e u m a
metam or fose ta mb ém perm anen te , o t r aba lho acaba por se r , pa ra
eles ,
o lugar de uma descober ta cot idiana e de um combate co
t i d i a no , ma s t a mbé m um a pon t e e n t r e a ne c e s s ida de e o e n t e n
d i me n t o ( M . S a n t os . J o r a a / do Brasil, 06.04 .1997) .
1 3 2 M I L T O N S A N T O S
PO R
U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O
1 3 3
a par t i r das suas visões do m un do e dos lugares . Tra ta - se de um a
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po l í t i c a de novo t i po , que na da t e m a ve r c om a po l í t i c a
ins t i tuc iona l . Esta úl t ima se funda na ideologia do c resc imento,
da globa l ização e tc . e é conduz ida pe lo cá lculo dos par t idos e
das empresas . A pol í t ica dos pobres é baseada no cot idiano v ivi
do por todos , pobres e não pobres , e é a l imentada pe la s imples
ne c e s s i da de de c on t i nua r e x i s t i ndo . N os l uga r e s , uma e ou t r a
s e e nc on t r a m e c on f unde m , da í a p r e s e nç a s i mu l t â ne a de c om
por t a m e n t os c on t r a d i t ó r i o s , a li me n t a dos pe l a ide o l og i a do c on
s u m o .
Este , ao se rviço das forças soc ioeconó micas hegem ônicas ,
t a mb é m s e e n t r a nha na v i da dos pobr e s , s u s c i t a ndo ne l e s e xpe c
ta t ivas e dese jos que não podem contenta r .
N u m m un do t ã o c ompl e xo , pode e s c a par a os pobr e s o e n
t e nd i m e n t o s i s t ê mi c o do s i s t ema do m un do . E s te l he s a pa r e c e
ne bu l os o , c ons t i tu í do po r c a usa s p róx i ma s e r e mot a s , po r m o
t ivações concre tas e abst ra tas , pe la confusão en t re os discursos e
as s i tuações , ent re a expl icação das coisas e a sua p ropaga nda .
Mas há também a des i lusão das demandas não sa t i s fe i tas , o
e xe mpl o do v i z i nho que p r os pe r a , o c o t i d i a no c on t r a d i t ó r i o .
T a l ve z po r aí c he gue o de s pe rt a r. N u m p r i me i r o m om e n t o , e s t e
é , a pe na s , o e nc on t r o de uns pouc os f r a gme n t os , de a l guma s
peças do puzzle, mas tamb ém a di f iculdade para ent ra r no labi
r into: f a l ta -lhes o própr io s i s tema do m un do , do pa ís e do lugar .
M a s a s e me n t e do e n t e n d i me n t o j á e st á p la n t a da e o pa s s o s e
guin te é o seu f loresc imento em a t i tudes de inconform idade e ,
talvez, rebeldia.
Sem d úvida , os brotes individua is de insa t is fação pod em não
f o r ma r um a c o r r e n t e . M a s os mov i me n t os de ma s s a ne m s e m
pre r esul tam de discursos c la ros e bem ar t iculados , ne m sem pre
se dão por meio de organizações conseqüentes e es t ruturadas .
• F A C U L D A D E S CURITIB
BIBLIOTEC
24 .
Papel dos pobres na produção do presente e do futuro
O e xa me do pa pe l a tua l dos pobr e s na p r oduç ã o do p r e s e n
te e do futuro exige , em pr imeiro lugar , dis t ingui r ent re pobre
za e misér ia . A misér ia acaba por se r a pr ivação tota l , co m o ani
qui lamento, ou quase , da pessoa . A pobreza é uma s i tuação de
carênc ia , mas tam bém de luta , um es tado vivo, de vida a tiva , em
que a tomada de consc iênc ia é poss íve l .
Miseráve is são os que se confessam der rotados . Mas os po
bres não se ent regam. E les descobrem cada dia formas inédi tas
de t r aba lho e de luta . Assim, e les enf rentam e buscam remédio
para suas di f iculdades . Nessa co ndição de a le r ta perma nen te , n ão
têm repou so inte lec tua l . A mem ór ia se r ia sua inimiga . A he rança
do passado é temperada pe lo sent imento de urgênc ia , essa cons
c i ê nc i a do novo que é , t a mbé m, um mot o r do c onhe c i me n t o .
A soc ia l idade urbana pode escapar aos seus inté rpre tes , nas
faculdades; ou aos seus vigias , nas de legac ias de pol íc ia . Mas não
aos a tores a t ivos do drama, sobre tudo quando, para prossegui r
vivendo, são obr igados a luta r todos os dias . Haverá quem des
c reva o quadro mate r ia l dessa ba ta lha como se fosse um tea t ro,
qu and o, por exem plo, se fa la em es t ra tégia de sobrevivênc ia , m as
na rea l idade esse pa lco, ju nt o com seus a tores , cons t i tui a pró
pr ia vida concre ta da maior ia das populaç ões . A c idade , pro nta a
enf renta r seu tempo a par t i r do seu espaço, c r ia e r ec r ia uma
cul tura co m a cara do seu tem po e do seu espaço e de acord o o u
e m opos i ç ã o a os " donos do t e mpo " , que sã o t a m bé m os do nos
do espaço.
É dessa forma qu e , na convivênc ia com a necess idad e e com
o ou tro , se elabora uma política, a polít ica dos de baixo, const i tuída
1 3 4
M I L T O N S A N T O S
O e n t e n d i m e n t o s i s t e má t i c o das s it ua ç ões e a c o r r e s ponde n t e
P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O
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A idade de ouro
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s i s t e ma t i c i da de da s ma n i f e s t a ç õe s de i nc onf o r mi da de c ons t i
tue m, via de r egra , um processo lento. Mas i sso não im ped e qu e ,
no âm ago da soc iedad e , já se es tejam, aqui e a l i , l evantan do v ul
cõ es ,
me s mo que a i nda pa r e ç am s i l e nci os os e do r m e n t e s .
Na rea l idade , uma coisa são as organizações e os movimen
tos es t ruturados e out ra coisa é o própr io cot idiano como um
tec ido f lexíve l de r e lações , adaptáve l às novas c i r cunstânc ias ,
s e mpr e e m mov i me n t o . A o r ga n i z a ç ã o é i mpor t a n t e , c omo o
ins t rumento de agregação e mul t ipl icação de forças a f ins , mas
separadas . E la também pode const i tui r o meio de negoc iação
necessár io a vencer e tapas e encon t ra r um novo pa tamar de r e
s i s t ê nc i a e de l u t a . M a s a ob t e nç ã o de r e s u l t a dos , po r ma i s
compensadores que pareçam, não deve es t imular a c r i s ta l ização
do movimento, nem encora ja r a r epe t ição de es t r a tégias e tá t i
cas.
O s m ov i me n t os o r ga n i z a dos de ve m i mi t a r o c o t i d i a no da s
pessoas , cuja f lexibi l idade e adaptabi l idade lhe asseguram um
autênt ico pragmat ismo exis tenc ia l e const i tuem a sua r iqueza e
fonte pr inc ipa l de verac idade .
2 5 . A
metamorfose
d as
classes
médias
Cada época c r ia novos a tores e a t r ibui papé is novos aos já
exis tentes . Este é tamb ém o caso das c lasses médias bras i le i r as ,
desaf iadas agora para o desempenho de uma impor tante ta re fa
his tór ica , na r econst i tuição do quadro pol í t ico nac iona l .
O c ha m a do mi l a g r e e c onômi c o b r a s i l e i r o pe r m i t e a d i f u s ã o ,
à esca la do pa ís , do fa to da classe méd ia . N a rea l idad e , ent re as
mui tas "explosões" ca rac te r í s t icas do per íodo, es tá esse c resc i
me n t o c on t í nu o da s cl a ss e s mé d i a s , p r i me i r o na s g r a nde s c i da
de s e depo i s na s ci da de s me nor e s e no c a mp o mod e r n i z a do . E s s a
e xp l os ã o da s c l a s s e s mé d i a s a c ompa nha , ne s t e me i o s é c u l o , a
explosão demog ráf ica , a explosão urba na e a explosão do con su
mo e do c r éd i t o . T a l c on j un t o de f e nôme no s t e m r e l a ç ã o e s t r u
t u r a l c om o a ume n t o da p r oduç ã o i ndus t r i a l e a g r í c o l a , c omo
t a mbé m do c omé r c i o , dos t r a ns po r t e s , da s t r oc a s de t odos o s
t ipos , das obras públ icas , da adminis t r ação e da necess idade de
informação. Há , para le lamente , uma expansão e diver s i f icação
do emprego, com a di fusão dos novos te rc iá r ios e a consol ida
ção ,
e m mui t a s á r e as do pa ís , de um a pe que n a bu r gue s i a op e r á
r ia . Como a modernização capi ta l i s ta tende ao esvaz iamento do
campo e é sempre se le t iva , uma parce la impor tante dos que se
di r igi ram às c idades não pôde par t ic ipar do c i r cui to super ior da
economia , de ixando de inc lui r - se ent re os assa la r iados formais
e s ó e nc on t r a ndo t r a ba l ho no c i r c u i t o i n f e r i o r da e c onomi a ,
i mpr opr i a me n t e c ha ma do de s e t o r " i n f o r ma l " .
Vale r ea lçar que n o Bras i l do mi lagre , e a té durante b oa p ar
te da década de 1980, a classe méd ia se expande e se des envolv e
s e m qu e houve s s e ve r da de ir a c ompe t i ç ã o de n t r o de l a qua n t o a o
uso do s r ecursos que o mercad o ou o Estado lhe ofe rec iam p ara
a melhor ia do seu poder aquis i t ivo e do seu bem-esta r mate r ia l .
T odos i a m s ub i ndo j un t os , e mb or a pa r a a nda re s d i f e re n t e s . M a s
todo s das c lasses médias es tavam cônsc ios de sua ascensão soc ia l
e esperançoso s de conse gui r a inda mais . Daí sua rela t iva coesã o
1 3 6
M I L T O N S A N T O S
e o s e n t i me n t o de s e ha ve r t o r na do um p ode r os o e s t a m e n t o . A
P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O
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p l i c i da de , c om o r e g i me a u t o r it á r i o . O m ode l o e c onôm i c o i m
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comp et ição foi , na r ea lidade , com o s pobres , cujo acesso aos bens
e se rviços se torna cada vez mais di f íc i l , à medida que es tes se
mu l t ipl icam . Vale a pena lemb rar as f ac i l idades para a aq uis ição
da c as a p r óp r i a , me d i a n t e p r og r a ma s gove r na m e n t a i s c om que
foram pr ivi legiados , enquanto os bras i le i ros mais pobres ape
na s f o r a m i nc ompl e t a me n t e a t e nd i dos nos ú l t i mos a nos do r e
gim e autor i tá r io . A c lasse mé dia é a grande benef ic iá ria d o c re s
c i m e n t o e c o n ô m i c o , d o m o d e l o p o l í t i c o e d o s p r o j e t o s
urbanís t icos adotados .
Ta l c lasse média , ao mesmo tempo em que se diver s i f ica
p r o f i s s i ona l me n t e , a ume n t a s e u pode r a qu i s i t i vo e me l ho r a
qua l i t a t iva me n t e , po r me i o da s opo r t un i da de s de e duc a ç ã o que
lhe são aber tas , tud o i sso levand o à ampl iação do seu bem -esta r
( o que ho j e s e c ha ma de qua l i da de de v i da ) , c onduz i ndo- a a
acredi ta r que a preservação das suas vantagens e per spec t ivas
e s t i ve s s e a s s e gur a da . Conf o r me mos t r a r a m A mé l i a Ros a S .
Bar re to e Ana Clara T . Ribe i ro ( "A dúvida da dívida e a c lasse
mé d i a " , Lastro, IPPUR, ano 3, n° 6 , abr i l de 1999) "o acesso ao
crédi to t r ansforma-se em ins t rumento para a lcançar a es tabi l i
dade soc ia l" . Tudo o que a l imenta a c lasse média dá- lhe , tam
bé m , um s e n t i me n t o de i nc l us ão no s i st e ma po lí t i c o e e c on ôm i
co, e um sent imento de segurança , es t imulado pe las constantes
medidas do poder públ ico em seu favor . Tra tava- se , na r ea l ida
d e ,
de um a moed a de t roca , já que a classe média cons t i tuía u ma
base de apoio às ações do governo.
Form a-se , dessa mane i ra , um a c lasse méd ia sequiosa de be ns
mater ia i s , a começar pe la propr iedade , e mais apegada ao con
sumo que à c idadania , sóc ia despreocupada do c resc imento e do
poder , co m os qua is se confundia . Daí a tole rânc ia , senão a c um -
por tava mais que o modelo c ívico. Eram essas , a l iás , condições
ob j e ti va s nec e s s ár i as a um c r e s c i me n t o e c onô mi c o s e m de mo
crac ia . Quando o regime mi l i ta r esgota o seu c ic lo , a democra
c ia se ins ta la incomple tamente na década de 1980, guardando
t odos e s s e s v í c i o s de o r i ge m e s us t e n t a ndo um r e g i me r e p r e
senta t ivo fa ls i f icado pe la ausênc ia de par t idos pol í t icos conse
qüe ntes . Seg uind o essa lógica , as própr ias esq uerdas são levadas
a dar mais espaço às preocupações e le i tora is e menos à pedago
gia prop r iam ente pol í t ica . A gênese e as formas d e expansão das
c lasses médias bras i le i r as têm re lação di re ta com a mane i ra com o
ho j e s e de s e m pe nh a m os pa r t i dos .
A escassez chega às c lasses médias
Tal s i tuação tende a mudar , q uan do a c lasse méd ia come ça a
conhecer a exper iênc ia da escassez , o que poderá levá- la a uma
re inte rpre tação de sua s i tuação. Nos anos r ecentes , pr imei ro de
forma lenta ou esporádica e já agora de mo do m ais s i s temát ico e
cont inuado, a c lasse média conhece di f iculdades que lhe apon
tam para uma s i tuação exis tenc ia l bem di fe rente daque la que
conh ecera há pouc os anos . Ta is di f iculdades chegam em u m t ro
pe l : a educação dos f i lhos , o cuidado com a saúde , a aquis ição
ou o a lugue l da moradia , a poss ibi l idade de pagar pe lo lazer , a
fa lta de garant ia no em preg o, a de te r ioração dos sa lá r ios , a po u
pança nega t iva e o c rescente endividamento es tão levando ao
desconfor to quanto ao presente e à insegurança quanto ao futu
r o ,
tanto o futuro re mo to qua nto o imedia to. Ta is incer tezas são
agravadas pe las novas per spec t ivas da previdênc ia soc ia l e do
1 3 8
M I L T O N S A N T O S
r egime de aposentador ias , da prom et ida r e forma dos seguros pr i
P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O
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profunda , podem a lcançar um níve l qua l i ta t ivo super ior , a par
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vados e da legis lação do t r aba lho. A tudo i sso se ac rescentam, de n
t ro do própr io la r , a apreensão dos f i lhos em re lação ao futuro
profissional e as manifestações cotidianas desse desassossego.
J á que nã o ma i s e nc on t r a m os r e mé d i os que l he e r a m o f e
r e c i dos pe l o me r c a do ou pe l o E s t a do c omo s o l uç ã o a os s e us
problemas individua is emergentes , as c lasses médias ganham a
pe r c e pç ã o de que j á nã o ma nda m, ou de que j á nã o ma i s pa r t i c i
pam da par t i lha do poder . Acostuma das a a t r ibui r aos pol í t icos a
s o l uç ã o dos s e us p r ob l e ma s , p r oc l a ma m , a go ra , s e u de s c on t e n
tam ento , dis tanc ian do-se de les . E las já não se vêe m espe lhadas
nos pa r t i dos e po r i s s o s e i n s t a l a m num de s e nc a n t o ma i s
abrangente quanto à pol í t ica propr iamente di ta . I sso é jus t i f ica
d o ,
e m pa r t e , pel a v i s ã o de c ons um i dor de s a bus a do qu e a l i me n
tou durante décadas , agravada com a f r agmentação pe la mídia ,
sobre tudo te levis iva , da informação e da inte rpre tação do pro
c e s s o s oc i a l . A c e r t e z a de nã o ma i s i n f l u i r po l i t i c a me n t e é
for ta lec ida nas c lasses médias , levand o-as , não ra ro, a r eagi r n e
ga t ivam ente , i s to é , a dese ja r meno s pol í t ica e men os par t ic ipa
ção ,
qua ndo a r eação cor re ta poder ia e dever ia se r exa tam ente a
oposta .
A a tua l exper iênc ia de escassez pode não conduz i r imedia
tamente à dese jáve l expansão da consc iênc ia . E quando es ta se
impõe , não o f az igua lmente , segundo as pessoas . Vis to esque
ma t i c a me n t e , t a l p r oc e s s o pode t e r , c omo p r i me i r o de g r a u , a
preocupação de defender s i tuações individua is ameaçadas e que
s e de s ej a r ec ons t i tu i r , r e t oma ndo o c ons u mo e o c on f o r t o ma
t e r i a l c omo o p r i nc i pa l mo t o r de uma l u t a , que , de s s e modo ,
pod e se l imi ta r a novas manifes tações de individu a l i smo . É n um
segun do m om ent o que ta i s r e ivindicações , f ruto de r e flexão ma is
t i r de um e n t e n d i m e n t o ma i s a mpl o do p r oc e s s o s oc i al e de um a
visão s i s têmica de s i tuações aparentemente i soladas . O passo
seguinte pode levar à dec isão de par t ic ipar de uma luta pe la sua
t r a ns f o r ma ç ã o , qua ndo o c ons umi dor a s s ume o pa pe l de c i da
d ão .
N ã o i mpor t a que e s s e mov i me n t o de t oma da de c ons c i ê n
c ia não se ja gera l , ne m igua l para todas as pessoas . O imp or ta nte
é que se instale.
U m d a d o n o v o n a p o l ít i c a
Seja co mo for, as c lasses médias bras i le i r as , já n ão mais ad u
ladas , e f e r idas de mor te nos seus inte resses mate r ia i s e espi r i
t ua i s , c ons t i t ue m , e m s ua c ond i ç ã o a tua l , um da do n ovo da v i da
soc ia l e pol í t ica . Mas seu pape l não es ta rá comple to enquanto
nã o s e i de n t i f i c a r c om os c l a mor e s dos pobr e s , c on t r i bu i ndo ,
juntos , para o r ea r ranjo e a r egeneração dos par t idos , inc lus ive
os pa r t i dos do p r og r e s so . D e n t r o de s t e s , s ã o mu i t o s o s que a i n
da ace i tam as tentações do t r iunfa l i smo oposic ionis ta — sem
pr e que a s oca s i ões s e a p r e s e n t a m — e s e r e nde m a o op or t un i s
mo e l e i t o r e i r o , l i m i t a ndo- s e à s r e s pe c t i va s mob i l i z a ç õe s
ocasiona is , desgar rando-se , ass im, do seu pape l de formadores
não ap enas da opinião ma s da consc iênc ia cívica sem a qua l nã o
pode haver nes te pa ís pol í t ica verdade i ra .
As c lasses médias bras i le i r as , agora mais i lus t r adas e , tam
bém, mais despojadas mate r ia lmente , têm, agora , a ta re ia his tó
r ica de forçar os par t idos a comple ta r , n o Bras i l , o t r aba lho, a pe
nas começado, de implantação de uma democrac ia que não se ja
apenas e le i tora l , mas , também, econômica , pol í t ica e soc ia l . A
1 4 0
M I L T O N S A N T O S
exper iênc ia da escassez , um reve lador cot idiano da verdade i ra s i
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tuação de cada pessoa é , desse modo, um dado fundamenta l na
ace le ração da tomada de consc iênc ia . Nas condições bras i le i r as
a tua is , as novas c i r cunstânc ias p od em levar as c lasses médias a
forçar uma m uda nça substanc ia l do ideár io e das prá t icas pol í t i
cas, que inc luam um a maior r esponsabi l idade ideológica e a cor
respo nden te r epresenta t ividade pol ít ico-e le i tora l dos par t idos .
V I
A T R A N S I Ç Ã O E M M A R C H A
I n t r o d u ç ã o
A gestação do novo, na his tór ia , dá - se , f r eqüentemente , de
mo do qua s e i mpe r c e p t íve l pa r a o s c on t e mp or â ne os , j á que s ua s
s e m e n t e s c o m e ç a m a s e i m p o r q u a n d o a i n d a o v e l h o é
quant i ta t ivamente dominante . É exa tamente por i sso que a "qua
l idade" do novo pode passar despercebida . Mas a his tór ia se ca
rac te r iza como uma sucessão ininte r rupta de épocas . Essa idé ia
de mo v i me n t o e muda nç a é i ne r e n t e à e vo l uç ã o da hum a n i da d e .
E de s s a f o r ma que os pe r í odos na s c e m, a ma dur e c e m e mo r r e m .
N o c a s o do mu nd o a t ua l , t e mos a c ons c iê nc i a de v i ver um
novo pe r í od o , ma s o novo que ma i s f a ci l me n te a p r e e nd e mos é
a ut i l ização de formidáve is r ecursos da técnica e da c iênc ia pe las
novas formas do grande capital, apoiado por formas institucionais
igua lmen te novas . Nã o se pode dizer que a globa l ização seja se
me l h a n t e à s onda s a n t e r io r e s , ne m m e s m o uma c on t i nua ç ã o do
que havia antes , exa tamente porque as condições de sua rea l i
z a ç ã o muda r a m r a d i c a l me n t e . É s ome n t e a go r a que a huma -
1 4 2
M I L T O N S A N T O S
nidade es tá podendo conta r com essa nova qua l idade da técnica ,
P O R U M A O U T R A G L O B A L IZ A Ç Ã O
1 4 3
dade , e o pró pr io f a to de que se ja c r iador de escassez é u m do s
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providenc iada pe lo que se es tá chamando de técnica informa-
c i ona l. Che ga m os a um ou t r o s é c u l o e o hom e m , po r me i o do s
avanços da c iênc ia , produz um s is tema de técnicas pres idido p e las
técnicas da informação. Estas passam a exercer um p ape l de e lo
ent re as demais , unindo-as e assegurando a presença plane tá r ia
desse novo s i s tema técnico.
T oda v i a , pa r a e n t e nde r o p r oc e s s o que c onduz i u à g l o
ba l ização a tua l , é necessár io levar em co nta dois e lemen tos fun
dam enta is : o es tado das técnicas e o es tado da pol í tica . Há , f r e
qüe n t e me n t e , t e ndê nc i a a s e pa r a r uma c o i s a da ou t r a . D a í
nascem as mui tas in te rpre tações da his tór ia a par t i r das técnicas
ou da pol í t ica , exc lus ivamente . Na verdade , nunca houve , na
his tór ia hum ana , separação ent re as duas coisas . A his tór ia for
nece o quadro mate r ia l e a pol í t ica molda as condições que per
mi tem a ação. Na prá t ica soc ia l, s i s temas técnicos e s i s temas d e
a ç ã o se c on f unde m e é po r m e i o da s c ombi na ç õe s e n t ã o pos s í
ve is e da escolha dos momentos e lugares de seu uso que a his
tór ia e a geografia se fazem e se r e fazem con t inu ada men te .
2 6 .
Cultura popular período popular
Para a maior par te da hum anidad e , o processo de globa l ização
acaba tendo, di r e ta ou indi re tamente , inf luênc ia sobre todos os
aspec tos da exis tênc ia : a vida econô mica , a vida cul tura l , a s r e la
ções inte rpessoa is e a própr ia subje t ividade . E le n ão se ver i f ica
de modo homogê ne o , t a n t o e m e x t e ns ã o qua n t o e m p r o f und i -
mo t i vos da i mpos s i b i l i da de da homoge ne i z a ç ã o . O s j nd i v í duos
não são igua lmente a t ingidos por esse f enômeno, cuja di fusão
encont ra obstáculos na diver s idade das pessoas e na diver s idade
dos l uga r e s . N a r e a l i da de , a g l oba l i z a ç ã o a g r a va a he t e r oge
ne i da de , da ndo- l he me s mo um c a r á t e r a i nda ma i s e s t r u t u r a l .
Uma das conseqüênc ias de ta l evolução é a nova s igni f ica
ção da cul tura popula r , tornada capaz de r iva l iza r com a cul tura
de ma s s a s . O u t r a é a p r oduç ã o da s c ond i ç õe s ne c e s s á r i a s à
r e e me r gê nc i a da s p r óp r ia s ma s s a s , a pon t a nd o pa r a o s u r g i m e n t o
d e u m n o v o p e r í o d o h i s t ó r ic o , a q u e c h a m a m o s d e p e r í o d o
de mogr á f i c o ou popu l a r ( M . S a n t os, Espaço e sociedade, 1979) .
Cu l tu r a d e massas , cu l tura popular
U m e xe mpl o é a c u l t u r a . U m e s que m a g r os s e i ro , a pa r t i r
de uma c lass i f icação a rbi t r á r ia , most ra r ia , em toda par te , a pre
s e nç a e a i n f l uê nc i a de uma c u l t u r a de ma s s a s bus c a ndo
homo ge ne i z a r e i mpor - s e s ob r e a c u l t u r a popu l a r ; ma s t a m bé m ,
e para le lam ente , as r eações des ta cul tura popu la r . U m pr im eiro
mo v i m e n t o é r e s u l t a do do e mp e nh o ve r t ic a l un i f ic a do r , ho m o-
ge ne i z a dor , c onduz i do po r um me r c a do c e go , i nd i f e r e n t e à s
heranças e às r ea l idades a tua is dos lugares e das soc iedades . S em
dúv i da , o me r c a do va i i mpondo , c om ma i o r ou me nor f o r ç a ,
a qu i e a l i, e l e me n t os m a i s ou me n os ma c i ç os da c u l t u r a de m a s
sa , indispensáv e l , com o e la é, ao r e ino do m ercad o, e a expans ão
paralela das formas de globalização econômica, f inanceira, téc
nica e cul tura l . Essa conquis ta , mais ou menos e f icaz segundo
os lugares e as soc iedades , jam ais é comple ta , pois enc ont r a a
1 4 4 M I L T O N S A N T O S
r es is tênc ia da cul tura preexis tente . )Const i tuem-se , ass im, for
mas mis tas s incré t icas , dent re as qua is , ofe rec ida como espe tá
P O R U M A O U T R A G L O B A L IZ A Ç Ã O
1 4 5
me nto da pol í tica dos pobres , que se dá indep ende ntem ente e ac i
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c u l o , uma c u l t u r a popu l a r dome s t i c a da a s s oc i a ndo um f undo
genuíno a formas exót icas que inc luem novas técnicas .
Ma s há tamb ém — e fe l izmente — a poss ibi l idade , cada vez
ma i s f r e qüe n t e , de uma r e va nc he da c u l t u r a popu l a r s ob r e a
c u l t u r a de ma s s a, qua ndo , po r e xe mpl o , e l a s e d i f unde me d i a n
t e o u s o dos i n s t r ume n t os que na o r i ge m s ã o p r óp r i o s da c u l
tura de massas . Nesse caso, a cul tura popula r exerce sua qua
l idade de discurso dos "de ba ixo" , pondo em re levo o cot idiano
dos pobres , das minor ias , dos exc luídos , por meio da exa l tação
da vida de todos os dias . Se aqui os ins t rumentos da cul tura de
massa são reut i l izados , o conteú do não é , todavia , "globa l" , nem
a
inc i tação pr imei ra é o cham ado m ercado globa l , já qu e sua base
s e e nc on t r a no t e r r i t ó r i o e na c u l t u r a l oc a l e he r da da . T a i s
expressões da cul tura pop ula r são tanto mais for tes e capazes d e
d i f usã o qu a n t o r e ve la do r a s da qu i l o que pode r í a mos c ha ma r de
regiona l i smos univer sa l i s tas , forma de expressão que assoc ia a
e s pon t a ne i da de p r óp r i a à i nge nu i da de popu l a r à bus c a de um
discurso univer sa l , que acaba por se r um a l imento da pol í t ica .
N o fund o, a questão da escassez aparece out ra vez com o c en
t r a l . Os "de ba ixo" não dispõem de m eios (mate r ia i s e out ros) para
par t ic ipar plenamente da cul tura mo derna de massas . Mas sua cul
tura , por se r baseada no te r r i tór io , no t r aba lho e no cot idian o, ga
nh a a força necessária para deforma r, ali me sm o, o impac to da cul
tura de massas . Gente unta c r ia cul tura e , pa ra le lamente , c r ia u ma
economia terr itorializada, uma cultura terr itorializada, um discur
so terr itorializado, uma política terr itorializada. Essa cultura da
viz inhança va lor iza , ao mes mo tem po, a exper iênc ia da escassez e
a
experiência da convivência e da solidariedade. E desse m od o q ue ,
gerada de dent ro, essa cul tura endógena impõe-se como um a l i -
ma dos par t idos e das organizações . Ta l cul tura r ea l iza - se seg un
do níveis mais baixos de técnica, de capital e de organização, daí
suas formas típicas de criação. Isto seria, aparentemente, uma fra
queza , mas na realidade é uma força, já qu e se realiza, desse m od o,
um a integração orgânica com o te r r i tór io dos pobres e o seu con
teúdo humano^Daí a express ividade dos seus s ímbolos , mani fes
tados na fala, na música e na r iqueza das formas de intercurso e
s o l i da r i e da de e n t r e a s pe s soa s :; E t u do i s s o e vo l u i de m od o
inseparáve l , o que assegura a permanênc ia do movimento.
A cul tura de massas produz cer tamente s ím bolos . Mas es tes ,
di re ta ou indi re tamente ao se rviço do pod er ou d o m ercado, são, a
cada vez, f ixos. Frente ao movimento social e no objetivo de não
pa r e c e r e m e nve l he c i dos , s ã o s ubs t i t u í dos , ma s po r um a ou t r a
s imbologia tamb ém f ixa : o que vem de c ima es tá sempre mo r ren
do e po de, por antecipação, já ser visto com o cadáver desde o seu
nascimento. E essa a simbologia ideológica da cultura de massas.
Já os s ímbolos "de ba ixo" , produtos da cul tura popula r , são
por tadores da verdade da exis tênc ia e r eve ladores do própr io
mov i me n t o da s oc i e da de .
As condições empír icas da mutação
É a par t i r de premissas como essas que se pode pensar uma
reemergênc ia das massas . Para i sso devem cont r ibui r , a par t i r
das migrações pol í t icas ou econômicas , a ampl iação da vocação
a tua l para a mis tura inte rcont inenta l e int r anac iona l de povos ,
raças , r e l igiões , gostos , ass im com o a tendênc ia c resc ente à aglo
meraç ão da popu lação em a lguns lugares , essa urbanização con
cent rada já r eve lada nos úl t imos vinte anos .
1 4 6
M I L T O N S A N T O S
Da combinação dessas duas tendênc ias pode-se supor que o
P O R U M A O U T R A G L O B A L IZ A Ç Ã O
1 4 7
maior complexidade , mais r iqueza (a r iqueza e o movimento dos
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processo iniciado há m eio século levará um a verdadeira colorização
do Norte, à "informalização" de parte de sua economia e de suas
relações sociais e à generalização de certo esquema dual presente
nos países subdesenvolvidos do Sul e agora ainda mais evidente.
Ta l soc iedade e ta l econom ia urba na dua l (mas não dua l i s ta )
conduz i rão a duas formas imbr icadas de acumulação, duas for
mas de divisão do t r aba lh o e duas lógicas urbanas dis t intas e as
soc iadas , tendo como base de operação um mesmo lugar . O fe
nômeno já ent revis to de uma divisão do t r aba lho por c ima e de
um a out ra por ba ixo tenderá a se r e forçar . A pr imei ra pren de-s e
ao uso obediente das técnicas da r ac iona l idade hegemônica , en
quanto a segunda é fundada na redescober ta cot idiana das com
binações que per mi te m a vida e, segun do os lugares, operam em
dife rentes graus de qua l idade e de quant idade .
Da divisão do trabalho por cima cria-se uma solidariedade ge
rada de fora e dependente de vetores verticais e de relações prag
máticas freqüentemente longínquas. A racionalidade é mantida à
custa de no rmas férreas, exclusivas, implacáveis, radicais. Sem ob e
diência cega não há eficácia. Na divisão do trabalho por baixo, o
que se produz é uma sol idar iedade c r iada de dent ro e depend ente
de vetores horizontais cimentados no terr itório e na cultura locais.
Aqu i são as relações de proxim idade qu e avultam, este é o do mí nio
da f lexibilidade tropical com a adaptabilidade extrema dos atores,
um a adaptabilidade endógena. A cada mo vim ento nov o, há um nov o
reequilíbrio e m favor da sociedade local e regulado po r ela.
A divisão do t r aba lho por c ima é um campo de maior ve lo
c idade . Nela , a r igidez das normas econômicas (pr ivadas e pú
bl icas) imped e a pol í t ica . Por ba ixo há maior dina mi sm o int r ín
s e c o , ma i o r mov i m e n t o e s pon t â ne o , ma i s e nc on t r os g r a t u i t o s ,
h o m e n s l e n t o s ) , m a i s c o m b i n a ç õ e s . P r o d u z - s e u m a n o v a
cent ra l idade do soc ia l , segu ndo a fórmula su ger ida por Ana Clara
Tor res Ribe i ro, o que const i tui , t ambém, uma nova base para a
a f i rmação do re ino da pol í t ica .
A p r e c e d ê n c ia d o h o m e m e o p e r ío d o p o p u l a r
U ma ou t r a g l oba l i z a ç ã o s upõe uma muda nç a r a d i c a l da s
condições a tua is , de modo que a cent ra l idade de todas as ações
se ja loca l izada no homem. Sem dúvida , essa dese jada mudança
apenas ocor re rá no fim do processo, duran te o qua l r ea jus tam en
tos sucess ivos se imporão.
N a s p r e s e n t e s c i r c unst â nc i a s , c on f o r me j á v i mos , a c e n t r a
l idade é ocupa da pe lo dinh e i ro, em suas formas m ais agress ivas ,
um d i nhe i r o e m e s t a do pu r o s us t e n t a do po r uma i n f o r ma ç ã o
ideológica , com a qua l se encont ra em s imbiose . Daí a bruta l
dis torção do sent ido da vida em todas as suas dime nsões , inc luin
do o t r aba lho e o lazer, e a lcançando a va loração ínt ima d e cada
pe s s oa
e
a próp r ia const i tu ição do espa ço geográf ico _C orn a
p r e va l ê nc i a do d i nhe i r o e m e s t a do pu r o c omo mot o r p r i me i r o
e ú l t i m o da s aç õe s, o ho me m a c a ba po r s e r c ons i de r a do um e l e
mento res idua l . Dessa forma, o te r r i tór io , o Estado-nação e a
sol idar iedade soc ia l também se tornam res idua is .
A p r i ma z i a do hom e m s upõe que e l e es t a rá c o l oca do no c e n
t r o da s p r e oc upa ç õe s do mundo , c omo um da do f i l o s ó f i c o e
co mo um a inspi ração para as ações . (Dessa forma, es ta rão
asie
gurados o impér io da compaixão nas r e lações inte rpess iur .
<•
11
estímulo à solidariedade social, ' a ser exercida entre iudivídui
1 4 8
M I L T O N S A N T O S
ent re o i ndiv íduo e a soc iedade e vice-ver sa e ent re a soc iedade
P O R U M A O U T R A G L O B A L IZ A Ç Ã O
1 4 9
-baL
I s s o ,
t oda v i a, t e m t r a z i do c omo c o ns e qüê nc i a pa r a t odos o s
pa íses uma ba ixa de qua l idade de vida para a maio r ia da pop ula
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e o E s t a do , r e duz i ndo a s f r a t u r a s s oc i a i s , i mpondo uma nova
é t ica , e , des ta r te , assentan do bases sól idas para um a nova soc ie
d a d e ,
um a nova e c onomi a , um no vo e s pa ç o ge ogr áf i co . O po n
to de par t ida para pensar a l te rna t ivas se r ia , então, a prá t ica da
vida e a exis tênc ia de tod os .
A nova pa isagem soc ia l r esul ta r ia do abandono e da supera
ção do modelo a tua l e sua subst i tuição por um out ro, capaz de
garant i r para o maior número a sa t i s fação das necess idades es
s e nc ia i s a um a v i da huma na d i gna , r e l e ga ndo a um a pos i ç ã o s e
cundár ia necess idades f abr icadas , impostas por meio da publ i
c i da de e do c ons umo c ons p í c uo . A s s i m o i n t e r e s s e s oc i a l
suplanta r ia a a tua l precedênc ia do inte resse econômico e tanto
levar ia a uma nova agenda de invest imentos como a uma nova
hie ra rquia nos gas tos públ icos , empresar ia i s e pr ivados . Ta l es
que ma c onduz i r i a , pa ra l e l a me n t e , ao e s t a be l e c i me n t o de nova s
re lações inte rnas a cada pa ís e a novas r e lações inte rna c iona is .
N u m mu nd o e m q ue f o ss e a bo li da a re g r a da c omp e t i t i v i da de
com o padrão essenc ial de r e lac ion amen to, a von tade de se r po
t ê nc i a nã o s e r ia ma i s um nor t e pa r a o c om por t a m e n t o dos e s t a
d o s , e a idé ia de mercad o inte rn o se rá um a preocup ação cen t ra l .
Agora , o que es tá sendo pr ivi legiado são as r e lações po ntua is
ent re grandes a tores , mas fa l ta sent ido ao que e les f azem. As
s im, a busca de um futuro di fe rente tem de passar pe lo abando
no das lógicas infe rna is que , den t ro dessa r ac iona l idade vic iada ,
fundamentam e pres idem as a tua is prá t icas econômicas e pol í t i
cas hegemônicas .
A a t ua l s ubor d i na ç ã o a o modo e c onômi c o ún i c o t e m c on
duz ido a que se dê pr ior idade às expor tações e impor taçõ es , u m a
das formas com as qua is se mate r ia l iza o cham ado m erca do g lo-
ç ã o e a a mpl i a ç ã o do nú me r o de pobr e s e m t od os o s c o n t i ne n
t es , pois , com a globa l ização a tua l , de ixaram -se de lado pol í t icas
soc ia is que amparavam, em passado recente , os menos favore
c idos , sob o a rgumento de que os r ecursos soc ia is e os dinhe i
ros públ icos devem pr imeiramente se r ut i l izados para f ac i l i ta r a
incorporação dos pa íses na onda globa l i tá r ia . Mas, se a preocu
pação cent ra l é o hom em , ta l mo delo n ão te rá mais r azão de se r .
2 7 . A centralidade da periferia
A idéia da irreversibilidade da globalização atual é aparente
mente r e forçada cada vez que consta tamos a inte r - re lação a tua l
e n t r e c a da pa í s e o que c ha ma mos de " mundo" , a s s i m c omo a
inte rdepend ênc ia , ho je indiscut íve l , ent re a his tór ia gera l e as his
tór ias part icula res . Na v erdade , i sso tam bém tem a ver com a idé ia ,
também estabelecida, de que a história seria sempre feita a partir
dos pa íses cent ra is , i s to é , da Europa e dos Estados U nid os , aos
quais, de modo geral, o presente estado de coisas interessa.
L i mi te s à c o o p e r a ç ã o
Q u a nd o , po r é m , obs e r va mos de pe r t o a s pe c tos ma i s e s t r u
turais da situação atual, verif icamos q ue o centro d o sistema bus ca
impor uma globa l ização de c ima para ba ixo aos demais pa íses ,
1 5 0
M I L T O N S A N T O S
P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O
1 5 1
da de de i n t é r p r e te s dos i n t e re s s e s c omun s a os E s t a dos U n i d os ,
à Eu rop a e ao Japão . Tais rea l idades levam a duvid ar da v ont ade
e nqu a n t o n o s e u â ma go r e ina uma d i s pu t a e n t r e E ur opa , J a pã o
e Estados Unidos , que lutam para guardar e ampl ia r sua par te
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de c a da um e do c on j un t o de s s e s a to r e s he ge môn i c os d e c on s
t r u i r um ve r da de i r o un i ve r s a l i s mo e pe r mi t e pe ns a r que , na s
condições a tua is , essa dupla compet ição perdurará .
O desafio ao Sul
O s pa í s e s s ubde s e nvo l v i dos , pa r c e i r o s c a da ve z ma i s
f ragi l izados nesse jog o tão des igua l , mais cedo o u mais ta rde co m
preenderão que nessa s i tuação a cooperação lhes aumenta a de
pendênc ia . Daí a inut i l idade dos esforços de assoc iação depen
den te face aos países centrais, no qu adro d a globalização atual. Esse
mundo globa l izado produz uma rac iona l idade de te rminante , mas
que va i , pouc o a pouc o , de i xa ndo de s e r domi na n t e . É uma
rac iona l idade que comanda os grandes negóc ios cada vez mais
abrangentes e mais concent rados em pou cas mãos. Esses grandes
negóc ios são de inte resse di re to de um número cada vez menor
de pessoas e empresas . Como a maior par te da humanidade é di
r e ta ou indi re tam ente do inte resse de les , pou co a pou co essa r ea
l idade é desvendada p e las pessoas e pe los pa íses mais p obres .
H á , e m t udo i s s o , uma g r a nde c on t r a d i ç ã o . A ba ndona mos
a s t e o r i a s do s ubde s e nvo l v i me n t o , o t e r c e i r o - mund i s mo , que
eram nossa bande i ra nas décadas de 1950-60. Todavia , graças à
globa l ização, es tá r essurgindo a lgo mui to for te : a his tór ia da
maior ia da humanidade conduz à consc iênc ia da sobrevivênc ia
de s s a tercermundização (que , de a l guma f o r ma i nc l u i , t a mb é m,
uma pa r t e da popu l a ç ã o dos pa í s e s r i c os ) ( S a mue l P i nhe i r o
G u i m a r ã e s , Quinhentos anos de periferia, 1999) .
do mercado globa l e a f i rmar a hegemonia econômica , pol í t ica e
mi l i ta r sobre as nações que lhes são mais di re tamente t r ibutá r i
as sem, todavia , abandonar a idé ia de ampl ia r sua própr ia á rea
de inf luênc ia . Então, qua lquer f r ação de mercado, não impor ta
onde es te ja , se torna fundamenta l à compet i t ividade exi tosa das
empresas . Estas põem em ação suas forças e inc i tam os gover
nos r espec t ivos a apoiá - las . O l imi te da cooperação dent ro da
T r í ade ( E s t a dos U n i dos , E u r opa , J a pã o ) é e ss a me s ma c om pe t i
ção ,
de mod o que c a da um nã o pe r c a t e r r e no f re n t e a o ou t r o .
Ent re tanto , já qu e nesses pa íses a idé ia de c idadania a inda é
for te , é impossíve l descuidar do inte resse das populações ou
s upr i mi r i n t e i r a me n t e d i r e it o s a dqu i r i dos me d i a n t e l u t a s s e c u
la res. O qu e perm anece com o lembrança do Estado de bem -esta r
basta para cont ra r ia r as pre tensões de comple ta autonomia das
empresas t r ansnac iona is e cont r ibui para a emergênc ia , dent ro
de c a da na ç ã o , de nova s c on t ra d i ç õe s . Com o a s e mpr e s a s t e n
dem a exercer sua vontade de poder no plano globa l , a luta en
t r e e las se agrava , a r ras tando os pa íses nessa compe t ição. Tra ta -
se , na verdad e , de uma guer ra , protagonizada tant o pe los Estados
c omo pe l a s r e s pe c t i va s e mpr e s a s g l oba i s , da qua l pa r t i c i pa m
como parce i ros mais f r áge is os pa íses subdesenvolvidos .
Agora mesmo, a exper iênc ia dos mercados comuns regiona is
já most ra aos pa íses chamados "emergentes" que a cooperação
da t r íade , em conjunto ou separadamente , é mais r epresenta t iva
do inte resse própr io das grandes potênc ias que de uma vontade
de e fe t iva colaboração. Nessa guer ra , os organismos inte rnac io
na i s c a p i t ane a dos pe lo F und o M one t á r i o , pe l o Ba nc o M u nd i a l ,
pe l o BI D e t c , e xe r c e m um pa pe l de t e r mi na n t e , e m s ua qua l i -
1 5 2
M I L T O N S A N T O S
É certo que a tomada de consciência dessa situação estrutural
de infe r ioridade não chegará ao mesm o tem po para todos os pa íses
P O R U M A
OUTRA GLOBALIZAÇÃO
1 5 3
mundi s t a t a l c omo o p r e s i de n t e N ye r e r e , da T a nz â n i a , ha v i a
suger ido em seu l ivro O desafio ao Sul.
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subdesenvolvidos e , mu i to m enos, se rá , neles , sincrónica a v onta
de de mudança frente a esse tipo de relações. Pode-se, no entanto,
admitir que, mais cedo ou mais tarde, as condições internas a cada
país,
provocadas e m b oa parte pelas suas relações externas, levarão
a um a revisão dos pactos que atualmente co nform am a globalização.
Haverá , então, uma vontade de dis tanc iamento e poste r iormente
de desenga jamento, conforme suger ido por Samir Am in, ro mp en-
do-se , desse modo, a unidade de obediênc ia hoje predominante .
Jungid os sob o peso de um a dívida exte rna que nã o pod em pagar,
os países subdesen volvidos assistem à criação incessante de ca rên
c ias e de pobres e começam a reconhecer sua a tua l s i tuação de
ingovernab ilidade, forçados qu e estão a transferir para o setor ec o
nômico recursos que deveriam ser destinados à área social.
N a ve r da de , j á s ã o mu i t o nu me r os a s a s ma n i f e s t aç õe s de
de s c onf o r t o c om a s c ons e qüê nc i a s da nova de pe ndê nc i a e do
novo i mpe r i a l i s mo ' ( Re ina l do G onç a l ve s , Globalização e desna
cionalização, 1999) . Torn am-s e evidentes os l im i tes da ace i tação
de ta l s ituação. Por di fe rentes r azões e meios d iver sos , as man i
fes tações de i r r edent i sm o já são c la ramente evidentes e m pa íses
co mo o I r ã , o I r aque , o Afeganis tão, mas , tam bém , a Malás ia , o
Paquis tão, sem conta r com as formas par t icula res de inc lusão
da índia e da Chi na na globa l ização a tua l , qu e nada têm de s im
p l e s obe d i ê nc i a ou c on f o r mi da de , c omo a p r opa ga nda o c i de n
ta l que r f azer c re r. Países co mo a Chi na e a índia , co m u m te rço
da popu l a ç ã o mund i a l e uma p r e s e nç a i n t e r na c i ona l c a da ve z
mais a t iva , di f ic i lmente ace i ta rão, uma ou out ra , ass im como a
Rússia , joga r o pape l pass ivo de nação-m ercado p ara os bloco s
e c onomi c a me n t e he ge môn i c os . U ma r e a ç ã o e m c a de i a pode r á
e ns e j a r o r e na s c i me n t o de a l go c omo o a n t i go élan t e r c e i r o -
A l é m de s s a t e ndê nc i a ve r os s í mi l , c ons i de r e m- s e a s f o r ma s
de de s o r de m da v i da s oci a l que j á s e mu l t i p l i c a m e m nu me r o
s os pa í s e s e que t e nde m a a ume n t a r . O Br a s i l é e mbl e má t i c o
c om o e xe mpl o , nã o s e s a be ndo , po r é m, a t é qua n do s e r á pos s í
ve l ma n t e r o mo de l o e c onô mi c o g l oba l it á r io e a o me s m o t e m
po aca lmar as populações c rescentemente insa t i s fe i tas .
As potênc ias cent ra is (Estados Unido s , Europa , Japão) , apesar
das divergênc ias pe la compet ição q uan to ao mercado globa l , têm
inte resses comuns que as inc i ta rão a buscar adapta r suas r egras
de c onv i vê nci a à p r e t e ns ã o de ma n t e r a he ge mo n i a . Co mo , t o
davia , a globa l ização a tua l é um per íodo de c r i se permanente , a
renovação do pape l hegemônico da Tr íade levará a maiores sa
c r i f íc ios para o r es to da comunidade das nações , incent ivando,
ass im, nes tas , a busca d e out ras soluções .
A combinação hegem ônica de que resul tam as formas eco nô
mi c a s mode r na s a t i nge d i f e r e n t e me n t e o s d i ve r s os pa í s e s , a s
diver sas cul turas , as di fe rentes á reas dent ro de um mesmo pa ís .
A diver s idade soc iogeográf ica a tua l o exempl i fica . Sua rea l idade
reve la um movimento globa l izador se le t ivo, com a maior par te
da popu l a ç ã o do p l a ne t a s e ndo me nos d i r e t a me n t e a t i ng ida —
e em cer tos casos pouco a t ingida—pela globa l ização econômica
vigente . Na Ásia , na Áf r ica e mesmo na Amér ica La t ina , a vida
loca l se mani fes ta ao mesmo tempo como uma resposta e uma
reação a essa globa l ização. Não p od end o essas populaç ões maj o
r i tá r ias consumir o Ocidente globa l izado em suas formas puras
( f inance ira , econ ôm ica e cul tura l ) , a s r espec tivas á reas acabam
po r se r os lugares ond e a globa l ização é r e la t ivizada ou recusada .
Uma coisa parece cer ta : as mudanças a se rem int roduz idas ,
no se nt ido de a lcançarmos u ma ou t ra globa l ização, não vi rão do
1 5 4 M I L T O N S A N T O S
cent ro do s i s tema, como em out ras f ases de ruptura na marcha
do capi ta l i smo. As mud anças sa i r ão dos pa íses subdesenvo lvidos .
P O R U M A O U T R A G L O B A L IZ A Ç Ã O
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Ocaso do proje to nac ional?
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E p r e v i s í ve l que o s i s t e mi s mo s ob r e o qua l t r a ba l ha a
globa l ização a tua l e rga- se como um obstáculo e torne di f íc i l a
manifes tação da vontade de desenga jamento. Mas não impedi rá
que cada pa ís e labore , par t i r de ca rac ter í s ticas própr ias , m odel os
a l te rna t ivos , nem tampouco proibi rá que assoc iações de t ipo ho
r i z on t a l s e dê e m e n t r e pa í s e s v i z i nhos i gua l me n t e he ge mo
nizados , a t r ibuindo uma nova fe ição aos blocos r egiona is e ul
t r a pa s s a ndo a e t a pa da s r e l a ç õe s me r a me n t e c ome r c i a i s pa r a
a lcançar um es tágio mais e levado de cooperação. Então, uma
globa l ização const i tuída de ba ixo para c ima , em qu e a busca de
c lass i f icação ent re potênc ias de ixe de se r um a meta , pod erá per
mi t i r que preocupações de ordem soc ia l , cul tura l e mora l pos
sam preva lecer .
2 8 . A nação ativa a
nação
passiva
A globa l ização a tua l e as formas bru ta is que ado tou para im
po r mudan ças levam à urgen te necess idade de rever o que fazer
com as coisas , as idé ias e tam bém com as pa lavras. Qua l qu er que
se ja o de ba te , hoje , r ec lama a expl ic i tação c la ra e coeren te dos
seus te rmos, sem o que se pode fac i lmente ca i r no vaz io ou na
ambigüidade . E o caso do própr io deba te nac iona l , exigente de
novas def inições e vocabulá r io r enovado. Como sempre , o pa ís
de ve s e r v i s t o c om o um a s i t uaç ã o e st r u t u r a l e m mo v i m e n t o , na
qua l cada e lemen to es tá int imame nte r e lac ionado com o s demais .
A gor a , po r é m , no mu nd o da g l oba li z a çã o , o r e c onh e c i m e n
to dessa es t rutura é di f íc i l , do mesmo modo que a visua l ização
de um proje to nac iona l pode tornar - se obscura . Ta lvez por i sso,
os proje tos das grandes empresas , impostos pe la t i r ania das f i
na nç a s e t r ombe t e a d os pe l a mí d i a , a c a ba m, de um j e i t o ou de
ou t r o , gu i a ndo a e vo l uç ã o dos pa ís e s , e m a c o r do ou n ã o c om a s
i ns t ânc i a s púb l ic a s f r e qüe n t e me n t e dóc e i s e s ubs e r v i e n t e s , de i
xando de lado o desenho de uma geopol í t ica própr ia a cada na
ção e que leve em conta suas ca rac te r í s t icas e inte resses .
Assim, as noções de des t ino nac iona l e de proje to nac iona l
c e de m f r e qü e n t e me n t e a f r e n te da c e na a p r e oc upa ç õe s m e n o
r e s , pragmát icas , imedia t i s tas , inc lus ive porque , pe las r azões já
expostas , os par t idos pol í t icos nac iona is r a ramente apresentam
pla ta formas c ondu z idas po r obje t ivos pol í t icos e soc ia is c la ros e
que e xp r i m a m v i s õe s de c on j un t o ( Ce s a r Be n j a mi n e ou t r os ,
A
opção brasileira, 1998) . A idé ia de his tór ia , sent ido, des t ino é am es-
qu i nh a da e m nom e da ob t e nç ã o de me t a s e s t at í st i ca s , c u j a ún i
c a p r e oc upa ç ã o é o c on f o r mi s mo f r e n t e à s de t e r mi na ç õe s do
processo a tua l de globa l ização. Daí a prod ução s em cont rapar t id a
de desequi l íb r ios e dis torções es t rutura is , acar re tando mais f r ag
me n t a ç ã o e de s igua l da de , ta n t o ma i s g r a ves qua n t o m a i s a be r
tos e obedientes se most rem os pa íses .
Alienação da nação at iva
T om e mo s o c a s o do Br a s il . E ma i s que uma s i mp l e s m e t á
fora pensar que uma das formas de abordagem da questão se r ia
considera r , dent ro da nação, a exis tênc ia , na r ea l idade , de duas
1 5 6
M I L T O N S A N T O S
nações . Um a nação pass iva e uma n ação a t iva . D o fa to de se rem
as contabi l idades nac iona is globa l izadas — e globa l izantes
—
L a
P O R U M A O U T R A G L O B A L IZ A Ç Ã O
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Cons c i e n t i z a ç ã o e r i que z a da na ç ã o pa s s i va
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grand e i ronia é que se passa a considera r co mo nação a t iva aque la
que obe de c e c e ga me n t e a o de s í gn i o g l oba l i t á r i o , e nqua n t o o
res to acaba po r cons t i tui r , desse po nto de vis ta , a nação passiva^
A fazer va le r ta i s postulado s , a nação a t iva se r ia a daque les qu e
a c e i t a m, p r e ga m e c onduz e m uma mode r n i z a ç ã o que dá p r e e
mi nê nc i a a os a j u s t e s que i n t e r e s s a m a o d i nhe i r o , e nqua n t o a
nação pass iva se r ia formada por tudo o mais .
Serão mesmo adequadas essas expressões? Ou aqui lo a que ,
desse modo, se es tá chamando de nação a t iva se r ia , na r ea l ida
d e , a nação pass iva, enqu anto a nação chamada pass iva se r ia , de
fa to ,
a nação ativa?
A cham ada nação a t iva , i s to é , aque la que com parece e f icaz
mente na contabi l idade nac iona l e na contabi l idade inte rnac io
na l , t e m s e u mod e l o c ondu z i do pe l a s bu r gue s i a s i n t e r na c i ona i s
e pe las burguesias nac iona is assoc iadas . É verdade , tam bém , q ue
o seu discurso globalizado, para ter ef icácia local, necessita de
um s o t a que domé s t ic o e po r i s s o e s t imu l a um pe ns a m e n t o n a c i o
na l assoc iado produz ido por mentes ca t ivas , subvenc ionadas ou
n ã o . A nação chamad a a t iva a l imenta sua ação com a preva lênc ia
de um s is tema ideológico que def ine as idé ias de prosp er idad e e
de r i que z a e , pa r a l e l a me n t e , a p r oduç ã o da c on f o r mi da de . A
"nação a t iva" aparece com o f luida , ve loz , exte rn amen te a r t icula
da , inte rnamente desar t iculadora , ent rópica . Será e la dinâmica?
Co m o essa idé ia é mu i to di fundida , cabe lembrar que ve loc idad e
nã o é d i na mi s mo . E s s e mov i m e n t o nã o é p r óp r i o , ma s a t r i bu í do ,
t om a do e mp r e s t a do a um mo t o r e x t e r no ; e l e nã o é ge nu í no , n ã o
tem f ina l idade , é despro vido de te leologia . Tra ta - se de um a agi
t a ç ã o c e ga , um p r o j e t o e qu i voc a do , um d i na m i s mo d o d i a bo .
A nação ch amada pass iva é const i tuída pe la grossa maior par te
da população e da economia , aque les que apenas par t ic ipam de
mo do res idua l do mercado globa l ou cujas a t ividades co nseg uem
sobreviver à sua margem, sem, todavia , ent ra r caba lmente na
contabi l idade pú bl ica ou nas es ta t ís t icas ofic iais . O pen sam ent o
que def ine e compreende os seus a tores é o do inte lec tua l pú
blico engajado na defesa dos interesses da maioria.
A s a t i v i da de s de s s a na ç ã o pa s s i va s ã o f r e qüe n t e me n t e
marcadas pe la cont radição ent re a exigênc ia prá t ica da confor
mida de , i s to é, a necess idade de par t ic ipar di re ta ou indi r e tam en
te da r ac iona l idade dom inan te , e a insa ti s fação e in con form ism o
dos a tores diante de r esul tados sempre l imi tados . Daí o encon
t ro cot idiano de uma s i tuação de infe r ior ização, tornada perma
nen te , o que re força em seus par t ic ipantes a noção de escassez e
convoca a uma re inte rpre tação da própr ia s i tuação individua l
diante do lugar , do pa ís e do mundo.
A "nação pass iva" é es ta t i s t icamente lenta , colada às rugo
sidades do seu meio geográfico, localmente enraizada e orgânica.
E também a nação que mantém re lações de s imbiose com o en
torn o imedia to, r e lações cot idianas que c r iam, espon taneam ente
e à cont racor rente , um a cul tura própr ia , endógena , r es i s tente , que
também const i tui um a l ice rce , uma base sól ida para a produção
de uma política. Essa nação passiva mora, ali onde vive e evolui,
enq uan to a out ra apenas c ir cula , ut i l izando os lugares como mais
um recurso a seu se rviço, mas sem out ro compromisso.
N u m p r i me i r o m om e n t o , de s a rt i cu l a da pel a " naç ã o a t iva " ,
a "nação pass iva" não po de a lcançar um p roje to conju nto. Al iás ,
o impér io dos inte resses imedia tos que se mani fes tam no exer -
1 5 8
M I L T O N S A N T O S
c ic io pragm át ico da vida cont r ibui , sem dúvida , para ta l desar t i
c u l a ç ã o . M a s , num s e gundo mome n t o , a t oma da de c ons c i ê n
P O R U M A O U T R A G L O B A L IZ A Ç Ã O
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2 9 . A globalização atual não é irreversível
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c ia t r az ida pe lo seu enra izam ento n o meio e , sobre tu do, pe la sua
exper iênc ia da escassez , torna poss íve l a prod ução d e um proj e
to , cuja viabi l idade prové m do fa to de que a nação chama da pa s
s iva é formada p e la maior par te da populaç ão, a lém de se r do ta
da de um dinam ism o própr io, autênt ico, fundado e m sua própr ia
exis tênc ia . Daí , sua verac idade e r iqueza .
Podem os desse mo do admit i r que aqui lo que , mediante o jogo
de espelhos da globalização, ainda se chama de nação ativa é, na
verdade , a nação pass iva , enquanto o que , pe los mesmos parâ
metro s , é considerado a nação pass iva, const i tui , j á no presente ,
mas s obre tud o na ót ica do futuro, a verdade i ra nação a t iva. Sua
emergência será tanto mais viável, rápida e ef icaz se se reconhe
cem e reve lam a conf luênc ia dos mo dos d e exis tênc ia e de t r aba
lho dos r espec t ivos a tores e a profunda unidad e do seu d es t ino.
Aqu i , o pape l dos inte lec tua is se rá , ta lvez , mu i to mais do que
promover um s imples combate às formas de se r da "nação a t i
va" — ta re fa imp or tan te mas insuf ic iente , nas a tua is c i r cu nstân
c ias —, devendo empenhar - se por most ra r , ana l i t icamente , den
t ro do todo nac iona l , a vida s i s têmica da nação pass iva e suas
manifes tações de r es is tênc ia a uma conquis ta indisc r iminada e
totalitár ia do espaço social pela chamada nação ativa. Tal visão
renovada da rea l idade cont radi tór ia de cada fr ação d o te r r i tór io
deve ser oferecida à ref lexão da sociedade em geral, tanto à socie
dade organizada nas assoc iações , s indica tos , igre jas , par t idos
como à soc iedade desorganizada , que encont ra rão nessa nova
inte rpre tação os e lementos necessár ios para a postulação e o
exerc íc io de uma out ra pol í t ica , mais condizente com a busca
do interesse social.
A globa l ização a tua l é mui to menos um produto das idé ias
a tua lmen te poss íveis e , mu i to mais , o r esul tado de um a ideologia
restr it iva adrede estabelecida. Já vimos que todas as realizações
atuais, or iundas de ações hegemônicas , têm como base const ru
ções intelectuais fabricadas antes mesmo da fabricação das coisas
e das decisões de agir . A intelectualização da vida social, recente
mente a lcançada , vem acompanhada de uma for te ideologização.
A d i s s o l uç ã o da s i de o l og i a s
Todavia , o que agora es tamos ass is t indo em to da par te é u ma
tendênc ia à dissolução dessas ideologias , no conf ronto com a
exper iênc ia vivida dos povos e dos indivíduos . O própr io c redo
f inance iro, vis to pe las lentes do s i s tema econ ôm ico a que deu
or i ge m, ou e xa mi na do i s o l a da me n t e , e m c a da pa í s , a pa r e c e
me no s ace i táve l e , a par t i r de sua contes tação, out ros e lem ento s
da ideologia do pensamento único perdem força .
A l é m da s mú l t i p l a s f o r ma s c om que , no pe r í odo h i s t ó r i c o
a tua l , o discurso da globa l ização se rve de a l ice rce às ações h ege
mô nica s dos Estados, das empresas e das instituições internacionais,
o papel da ideologia na produção das coisas e o papel ideológico
dos obje tos qu e nos rode iam cont r ibuem , junto s , para agravar essa
sensação de que agora não há outro uturo senão aquele que no s virá
c o m o u m
presente ampliado
e não com o outra coisa. Daí a pesada o nda
de conform ismo e inação que carac ter iza nosso tempo, conta mi
nan do o s jovens e , a té mes mo , um a densa camada de intelec tua is^
1 6 0
M I L T O N S A N T O S
É mu i to di fund ida a idé ia segu ndo a qua l o proces so e a for
ma a tua is da globa l ização se r iam i r r evers íve is . I sso tamb ém tem
P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O
1 6 1
conjun ção d e dois tipos de va lores . D e um lado , es tão os va lores
f unda me n t a i s , e s s e nc i a i s , f unda dor e s do home m, vá l i dos c m
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a
ver com a força com a qua l o f enô me no se reve la e ins ta la em
tod os os lugares e em tod as as esfe ras da vida , levand o a pensar
que não há a l te rna t ivas para o presente es tado de coisas .
N o e n t a n t o , es s a v i s ã o r e pe ti t i va do m un do c on f unde o q ue
já foi r ea l izado co m as per spec t ivas de r ea l ização. Para exorc izar
e s s e r i s c o , de ve mos c ons i de r a r que o mundo é f o r ma do nã o
apenas pe lo q ue já exis te ( aqui , al i , em to da par te ) , ma s pe lo qu e
pod e e fe t ivamen te exis t i r ( aqui , a l i , em toda par te ) . O m un do
da tado de hoje deve se r enxergado como o que na verdade e le
nos t r az , i s to é , um conjunto presente de poss ibi l idades r ea is ,
concre tas , todas f ac t íve is sob de te rminadas condições .
O mundo de f i n i do pe l a l i t e r a t u r a o f i c i a l do pe ns a me n t o
único é , somente , o conjunto de formas par t icula res de r ea l i
zação de apenas ce r to núm ero dessas poss ibi l idades . No enta n
t o , um mundo verdade i ro se def ini rá a par t i r da l i s ta comple ta
de poss ibi l idades presentes em cer ta da ta e que inc luem não só
o qu e já exis te sobre a face da Ter ra , com o tam bém o qu e a ind a
não exis te , mas é empir icamente f ac t íve l . Ta is poss ibi l idades ,
a inda não rea l izadas , já es tão presentes co mo ten dênc ia o u com o
promessa de r ea l ização. Por i sso, s i tuações como a que agora
def rontam os pa recem def ini t ivas , mas não são verdad es e te rnas .
A pertinênc ia da utopia
É somente a par t i r dessa consta tação, fundada na his tór ia
r e a l do nos s o t e m po , que s e t o r na pos s íve l r e t oma r , de ma ne i r a
concre ta , a idé ia de utopia e de proje to. Este se rá o r esul tado da
qua lquer tempo e lugar , como a l iberdade , a dignidade , a f e l ic i
da de ; de ou t r o l a do , s u r ge m os va lo r e s c on t i nge n t e s , de v i dos
à
his tór ia do presente , i s to é , à his tór ia a tua l . A densidade e a
fac t ibi l idade his tór ica do proje to, hoje , dependem da mane i ra
c omo e mpr e e nda mos s ua c ombi na ç ã o .
Por i sso, é l íc i to dizer que o futuro são mui to s ; e r esul ta rão
de a r ranjos di fe rentes , segundo nosso grau de consc iênc ia , ent re
o re ino das poss ibi l idades e o r e ino da vontade . E ass im que
inic ia t ivas se rão a r t iculadas e obstáculos se rão superados , per
mi t ind o cont ra r ia r a força das es t ruturas do min ante s , se jam e las
presentes o u herda das . A ident i ficação das e tapas e os a jus tam en
t os a e mp r e e nde r du r a n t e o c a mi nh o de pe nd e r ã o da ne c e s s ár i a
c la reza do proje to.
Conf o r me j á me nc i ona mos , a l guns da dos do p r e s e n t e nos
a b r e m , de s de j á , a pe r s pe c t i va de um f u t u r o d i f e r e n t e , e n t r e
out ros : a tendênc ia à mis tura genera l izada ent re povos; a voca
ção para uma urbanização concent rada ; o peso da ideologia nas
const ruções his tór icas a tua is ; o empobrec imento re la t ivo e ab
soluto das pop ulações e a perda de qua l idade de vida das c lasses
médias ; o grau de re la t iva "doc i l idade" das técnicas contempo
râneas; a "pol i t ização genera l izada" permi t ida pe lo excesso de
nor ma s (Mar ia Laura Si lvei ra , Um país, uma região. Fim de século e
modernidades na Argentina,
1999) ; e a r ea l ização poss íve l do ho
me m c om a g r a nde mu t a ç ã o que de s pon t a .
L e m b r a m o s , t a m b é m , q u e u m d o s e l e m e n t o s , a o m e s m o
tempo ideológico e empir icamente exis tenc ia l , da presente for
ma de globa l ização é a cent ra l idade do consumo, com a qua l
mu i t o t ê m a ve r vida de todos os dias e suas r epercussões sobre
1 6 2 M I L T O N S A N T O S
a produção, as formas presentes de exis tênc ia e as per spec t ivas
das pessoas . Mas as a tua is r e lações ins táve is de t r aba lho, a ex
P O R U M A O U T R A G L O B A L IZ A Ç Ã O
1 6 3
subdesenvolvidos (M. Santos , O espaço dividido, 197 8) , ma s que
a gor a t a mb é m s e ve ri f ic a no mu nd o c ha m a do de s e nvo l v i do .
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pa ns ã o de de s e mpr e go e a ba i xa do s a l á r i o mé d i o c ons t i t ue m
um cont ras te em re lação à mul t ipl icação dos obje tos e se rviços ,
cuja acess ibi l idade se torna , desse modo, improváve l , ao mes
m o t e m po qu e a t é o s c ons umo s t r ad i c i ona is a c a ba m s e ndo d i f í
ce is ou impossíve is para uma parce la impor tante da população.
E como se o feitiço virasse contra o feiticeiro.
E s s a r e c ri a ç ã o da ne c e s s i dade , de n t r o de um mu nd o de c o i
sas e se rviços abund antes , a t inge cada vez mais as c lasses m édias ,
cuja def inição, agora , se r enova , à med ida que , co mo ta mb ém já
vimos, passam a conhecer a exper iênc ia da escassez . Esse é um
dado re levante para compreender a mudança na vis ibi l idade da
his tór ia que se es tá process ando . De ta l mo do , às visões o fe rec i
da s pe l a p r opa ga nda os t e ns i va ou pe l a i de o l og i a c on t i da nos
obje tos e nos discursos opõ em- se as visões propic iadas pe la exis
t ê nc ia . E po r me i o de s s e c on j un t o de m ov i m e n t os , qu e s e r e c o
nhe c e u ma s a t u r a ç ã o dos s í mbo l os p r é - c ons t r u í dos e que os l i
mi tes da tole rânc ia às ideologias são ul t r apassados , o que perm i te
a ampl iação do campo da consc iênc ia .
Nas condições a tua is , essa evolução pode parecer impossí
ve l , em vis ta de que as soluções a té agora propostas a inda são
p r i s i onei r a s da que l a v i s ã o s e gundo a qua l o ún i c o d i na mi s m o
possíve l é o da grande economia , com base nos r ec lamos do s i s
tema f inance i ro. Por exemplo, os esforços para r es tabe lecer o
e mpr e go d i r i ge m- s e , s ob r e t udo , qua n do nã o e xc l us i va me n t e , a o
c i rcui to super ior da economia . Mas esse não é o único caminho
e ou t r os r e mé d i os pode m s e r bus c a dos , s e gundo a o r i e n t a ç ã o
po l í t i c o - i de o l óg i c a dos r e s pons á ve i s , l e va ndo e m c on t a uma
divisão do tr aba lho vinda "de ba ixo" , f enô men o t ípico dos pa íses
Por out ro lado, na medida em que as técnicas cada vez mais
s e dã o c omo no r ma s e a v i da s e de s e n r o l a no i n t e r i o r de um
oceano de técnicas , acabamos por viver uma pol i t ização genera
l izada . A rapidez dos processos conduz a uma rapidez nas mu
da nç a s e, po r c ons e gu i n t e , a p r o f unda a ne c e s s i da de de p r o du
ção de novos entes org anizado res . I sso se dá nos diver so s níve is
da vida soc ia l . Na da de re levante é f e i to sem norm as. Nes te f im
do século XX, tud o é pol í t ica . E , graças às técnicas ut i l izadas n o
pe r í odo c on t e mpor â ne o e a o pa pe l c e n t r a l i z a do r dos a ge n t e s
he ge môn i c os , que s ã o p l a ne t á r i o s , t o r na - s e ub í qua a p r e s e nç a
de processos dis torc idos e exigentes de r eordenamento. Por i sso
a pol í t ica aparece como um dado indispensáve l e onipresente ,
abrangendo pra t icamente a tota l idade das ações .
A s s i s t imos , a s s im , a o i mpé r i o da s no r ma s , ma s t a m bé m a o
conf l i to ent re e las , inc luindo o pape l cada vez mais dominante
das normas pr ivadas na produção da esfe ra públ ica . Não é r a ro
que as r egras es tabe lec idas pe las empresas a fe tem mais que as
regras c r iadas pe lo Estado. Tudo i sso a t inge e desnor te ia os in
d i v í duos , p r oduz i n do u ma a t mos f e r a de i n s egur a nç a e a t é me s
m o de me do , ma s le va ndo os que nã o s uc um be m i n t e i r a me n t e
ao seu impér io à busca da consc iênc ia qu anto ao des t ino d o Pla
ne t a e , l ogo , do H o me m.
Outros usos poss íve i s para as técn icas atuais
Os s is temas técnicos de que se va lem os a tua is a tores hege
mônicos es tão sendo ut i l izados para r eduz i r o escopo da vida
1 6 4
M I L T O N S A N T O S
hum a na s ob r e o p la ne t a . N o e n t a n t o , j a ma i s hou ve na h i s t ó ri a
s i s temas tão p ropíc ios a f ac i l ita r a vida e a propo rc ion ar a f e l ic i
P O R U M A O U T R A G L O B A L IZ A Ç Ã O los
contemporâneas são mais f áce is de inventa r , imi ta r ou reprodu
z i r que os modos de fazer que as precederam.
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da de dos ho me ns . A ma t e r ia l i da de que o mu nd o da g l oba li z a çã o
está r ec r iando permi te um uso radica lmente di fe rente daque le
qu e e ra o da base mate r ia l da indust r ia l ização e do im per ia l i sm o.
A técnica das máqu inas exigia invest imentos mac iços , segu in
do-se a massividade e a concent ração dos capi ta i s e do própr io
sistema técn ico. Da í a inflexibilidade f ísica e mo ral das op eraçõe s,
levando a um uso l imi tado , di r ec ionado, da inte l igênc ia e da c r ia
t ividade . Já o compu tador , s ímbo lo das técnicas da inform ação,
rec lama capita i s f ixos re la t ivamente peq uen os , enqu anto se u uso
é mais exigente de inte l igênc ia . O invest imento necessár io pode
ser f r agmentado e torna- se poss íve l sua adaptação aos mais di
ver sos meio s . Pode-se a té f a la r da emergê nc ia de u m ar tesana to
de novo t i po , s e r v ido po r ve l oz e s i n s t r um e n t os d e p r oduç ã o e
de dis t r ibuição.
D i r - s e- á , e n t ã o , que o c ompu t a dor r e duz — t e nde n c i a l me n t e
— o e fe i to da pre tensa le i segundo a qua l a inovação técnica
c ond uz pa r a l el a me n t e a um a c onc e n t r a çã o e c onômi c a . O s no
vos ins t rumentos , pe la sua própr ia na tureza , abrem poss ibi l ida
des para sua disseminação no corpo soc ia l , supera ndo as c l ivagens
soc ieconômicas preexis tentes .
Sob cond ições pol í t icas f avoráve is , a mate r ia l ida de s i mb ol i
zada pe lo comp utad or é capaz não só de assegurar a l iberação da
invent ividade como torná- la e fe t iva . A desnecess idade , nas so
c i e da des c ompl e xa s e s oc i oe c onom i c a me n t e de s i gua i s, de a d o
t a r un i ve r s a l me n t e c ompu t a dor e s de ú l t i ma ge r a ç ã o a f a s t a r á ,
também, o r i sco de que dis torções e desequi l íbr ios se jam agra
vados . E a idé ia de dis tânc ia cul tura l , subjacente à teor ia e à pr á
t ica do imper ia l i smo, a t inge , também, seu l imi te . As técnicas
As famí lias de técnicas emerg entes c om o f im d o século XX
— c om bi n a nd o i n f o rmá t i c a e e l e t rôn i c a , s ob r e t ud o— of e r e c e m
a pos s i b i l i da de de s upe r a ç ã o do i mpe r a t i vo da t e c no l og i a
he ge môn i c a e pa r a l el a me n t e a dm i t e m a p r o l if e r aç ã o de novos
ar ranjos , co m a re toma da da c r ia t ividade . I sso, a l iás, já es tá se
dando nas á reas da soc iedade em que a divisão do t r aba lho se
p r od uz de ba i xo pa r a c i ma . A qu i , a p r oduç ã o do n ovo e o u s o e
a di fusão do novo de ixam de se r monopol izados por um capi ta l
c a da ve z ma i s c onc e n t r a do pa r a pe r t e nc e r a o dom í n i o d o ma i o r
núm e r o , pos s i b i l i t ando a f ina l a e me r gê nc i a de u m ve r da de i r o
mundo da inte l igênc ia . Desse modo, a técnica pode vol ta r a se r
o r e s u l t a do do e nc on t r o do e nge nho huma no c om um pe da ç o
de te rminado da na tureza — cada vez mais modif icada —, per
mi t indo que essa r e lação se ja fundada nas vi r tua l idades do en
tor no geográf ico e soc ia l, de m od o a assegurar a r es tauração do
home m e m s ua e s s ê nc i a .
Geografia e ace leraçã o da h is tór ia
A própr ia geograf ia parece cont r ibui r para que a his tór ia se
ace le re . Na c idade — sobre tudo na grande c idade —, os e fe i tos
de v i z inha nç a pa r e c e m i mp or um a pos s i b il i da de ma i o r de i de n
t i ficação das s i tuações , graças , tam bém , à melh or ia da inform a
ção disponíve l e ao aprofundamento das poss ibi l idades de co
mu nicaçã o. Dessa man e i ra , torna- se poss íve l a ident i f icação, na
vida mate r ia l como na ordem inte lec tua l , do desamparo a que
as popu lações são re legadas , levando, para le lamente , a um maio r
1 6 6
M I L T O N S A N T O S
r econhec imento da condição de escassez e a novas poss ibi l ida
des de ampl iação da consc iênc ia .
P O R U M A O U T R A G L O B A L IZ A Ç Ã O
1 6 7
em todo s os pa íses , a mis tura d e povos , r aças , cul tura s , r e l igiões ,
gostos e tc . A aglomeração das pessoas em espaços r eduz id os , co m
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A par t i r desses e fe i tos de viz inhança , o indivíduo re for t i f i -
c a do pode , num s e gundo mome n t o , u l t r a pa s s a r s ua bus c a pe l o
consumo e ent regar - se à busca da c idadania . A pr imei ra supõe
um a v i s ão l i mi t a da e un i d i r e c i ona da , e nqua n t o a s e gunda i nc l u i
a e laboração de visões abrangentes e s is têmicas . No pr im ei ro
caso, o que é per segu ido é a r econst ruçã o das condições mate r ia i s
e
jur ídicas qu e permi t em for ta lecer o bem -esta r individua l (ou
familiar) sem, todavia, mo strar preocupaçã o co m o fortalecimento
da individua l idade , enquanto a busca da c idadania aponta rá para
a r e form a das prá t icas e das ins t i tuições po l í t icas .
Frente a essa nova rea l idade , as aglomerações po pulac iona is
se rão va lor izadas com o o lugar da densidade h um ana e , po r i sso,
o lugar de uma coabi tação dinâmica . Será também a í , v is to pe la
me sm a ót ica , que se observarão a r enascença e o peso da cu l tura
popula r . Po r out ro lado, a precar iedade e a pobreza , i s to é , a im
poss ibi l idade , pela ca rênc ia de r ecursos , de par tic ipar p lena me n
te das ofe r tas mate r ia i s da modernidade , poderão, igua lmente ,
i n s p i r a r s o l uç õe s que c onduz a m a o de s e j a do e ho j e pos s í ve l
renasc imento da técnica , i s to é , o uso consc iente e imagina t ivo,
em cada lugar, de todo t ipo de ofe rta tecnológica e de toda mo da
l idade de t r aba lho. Para i sso cont r ibui rá o f a to his tór ico conc re to
que é , a o c on t r á r i o do pe r í odo h i s t ó r i c o a n t e r i o r , o g r a u de
"doc i l idade" das técnicas contemporân eas , que se apresentam mais
propícias à l iberação do esforço, ao exercício da inventividade
e à
f loração e multiplicação das demandas sociais e individuais.
Se a r ea lização da his tór ia , a par t i r dos ve to res "d e c ima" , é
a inda dom inan te , a r ea l ização de uma ou t ra his tór ia a par t i r d os
ve tores "de ba ixo" é tornada poss íve l . E para i sso cont r ibui rão,
o f e nôm e no d e u r ba n iz a ç ã o c onc e n t r a da , t í p i c o do ú l t i m o qu a r
te l do século XX, e as própr ias m utaçõe s nas r e lações de t r aba lho ,
j u n t o a o de s e mpr e go c r e s c e n t e e à de p r e ss ã o dos s a l á ri o s , mos
t r a m a s pe c t os que pod e r ã o s e mos t r a r pos i t ivos e m f u t u r o p r ó
x i m o , qua nd o a s me t a mor f os e s do t r a ba l ho i n f o rma l s e r ã o v i v i
das tam bém com o expansão do t r aba lho l ivre , asseguran do a seus
por t a do r e s nova s pos s i b il i da de s de in t e r p r e t aç ã o do m un do , d o
lugar e da r espec t iva posição de cada um, no mundo e no lugar .
A s c o n d i ç õ e s a t u a i s p e r m i t e m i g u a l m e n t e a n t e v e r u m a
reconve rsão da mídia sob a pressão das s i tuações loca is (pro du
ção ,
c on s um o , c u l t u r a ) . A mí d i a t r a ba l ha c om o qu e e l a p r óp r i a
t r a ns f o r ma e m ob j e t o de me r c a do , i s t o é, a s pe s s oa s . Co m o e m
ne nh um l uga r a s c omu n i da de s s ã o f o r ma da s po r pe s soa s ho mo
gêneas , a mídia deve levar i sso em conta . Nes se caso, de ixará de
r e p r e s e n t a r o s e ns o c omum i mpos t o pe l o pe ns a me n t o ún i c o .
D e s d e que os p r oc e s s os e c onôm i c os , s oci a is e po l í t ic os p r o du
z idos de ba ixo para c ima possam desenvolver - se e f icazmente ,
um a i n f o r ma ç ã o ve r a z pode r á da r - s e de n t r o da ma i o r i a da po
pu l a ç ã o e a o s er v i ç o de um a c omun i c a ç ã o i ma g i nos a e e mo c i o
na da , a t r i bu i ndo- s e , a s si m , um pa pe l d i a me t r a l me n t e op os t o a o
que lhe é hoje confer ido no s i s tema da mídia .
U m n o v o mu n d o p o s s í ve l
A par t i r dessas metamor foses , pode-se pensar na produção
l oc a l de um e n t e nd i me n t o p r og r e s s i vo do mundo e do l uga r ,
co m a produç ão indígena de imag ens , discur sos , fi losofias , ju nt o
1 6 8
M I L T O N S A N T O S
à e l a bo r a ç ã o de um novo ethos e de novas ideologias e novas
crenças pol í t icas , amparadas na r essu r re ição da idé ia e da prá t ica
da sol idar iedade .
P O R U M A O U T R A G L O B A L IZ A Ç Ã O
1 6 9
dessa apropr iação. A descober ta in dividua l é , já , u m consideráve l
passo à f r ente , a inda que possa parecer ao seu por tador um ca
mi nho pe nos o , à me d i da da s r e s i s t ê nc i a s c i r c unda n t e s a e s s e
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O m un do de ho j e t a mb é m a u t o r i z a um a ou t r a pe r c e pç ã o da
his tór ia por
m e i o
da contemplação da univer sa l idade empír ica
const i tuída com a emergênc ia das novas técnicas plane ta r izadas
e
as possibilidad es abertas a seu uso. A dialética entre essa
univer
salidade empírica e as particularidades encorajará a superação das
práxis inver t idas , a té agora coma ndadas pe la ideologia dom ina n
te ,
e
a
poss ibi lidade de ul t r apassar o r e ino da necess idade , abr in do
lugar para a utopia e para a esperança . Nas c ondiçõ es his tór icas
do presente , essa nova mane i ra de enxergar a globa l ização per
mi t i r á dis t ingui r , na tota l idade , aqui lo que á é dado e exis te co mo
um fa to consumado, e aqui lo que é poss íve l , mas a inda não rea
l i z a do , v i s t o s um e ou t r o de f o r ma un i t á r i a . L e m br e m o- no s da
l ição de A. Schmid t (The concept of nature in Marx,
1 9 7 1 )
q u a n d o
diz ia que "a r ea l idade é , a lém disso, tudo aqui lo em que a inda
nã o nos t o r na mo s , ou s ej a, t udo a qu i l o que a nós me s mo s n os
p r o j e t a mos c om o s e re s huma no s , po r i n t e r mé d i o dos mi t os , da s
escolhas , das dec isões e das lutas". \
A c r i se po r que passa hoje o s i s tema, em d i fe rentes pa íses e
c on t i ne n t e s , põe à mos t r a nã o a pe na s a pe rve r s i da de , ma s t a m
bé m a fr aqueza da respec t iva const ru ção. I sso, con form e vim os,
j á e s t á l e va ndo a o de sc r é d i t o dos d i s cu r s os domi na n t e s , me s m o
que out ro discurso, de c r í t ica e de proposição, a inda não ha ja
s ido e laborado de modo s i s têmico.
O processo de tomada de consc iênc ia —já o vimos — não é
homogê ne o , ne m s e gundo os l uga r e s , ne m s e gundo a s c l a s s e s
soc ia is ou s i tuações prof i ss iona is , nem quanto aos indivíduos .
A ve loc idade com q ue cada pessoa se apropr ia da verdade cont id a
na
his tór ia é di fe rente , tanto quan to a profun didad e e c oerênc ia
novo modo de pe ns a r . O pa s s o s e gu i n t e é a ob t e nç ã o de uma
visão sistêmica, isto é, a possibilidade de enxergar as situações e
as causas a tuantes como conjuntos e de loca l izá - los como um
t od o , m os t r a ndo s ua i n t e r de pe ndê nc i a . A pa rt i r da í , a d i s c us s ã o
si lenc iosa consigo mes mo e o deba te mais ou me nos púb l ico co m
os de ma i s ga nha m uma nova c l a r e z a e de ns i da de , pe r mi t i ndo
enxergar as r e lações de causa e efe i to como u m a cor rente con t í
nua , e m que c a da s i t ua ç ã o s e i nc l u i numa r e de d i nâ mi c a ,
es t ruturada , à esca la do mundo e à esca la dos lugares .
E a par t i r dessa visão s i s têmica que se encont ram, inte rpe
ne t r a m e c omp l e t a m a s noç õe s de mun do e de l uga r , pe r mi t i n
do entender como cada lugar , mas também cada coisa , cada pes
s oa , c a da re l aç ã o de pe nde m do mu nd o .
Ta is r ac ioc ínios autor izam uma visão c r í t ica da his tór ia na
qua l vivemos, o que inc lui uma aprec iação f i losóf ica da nossa
própr ia s i tuação f rente à comunidade , à nação, ao plane ta , jun
t a me n t e c om u ma nova a p r e c ia ç ã o de nos s o p r óp r i o pa pe l c om o
pessoa . É desse modo que , a té mesmo a par t i r da noção do que
é s e r um c ons umi dor , pode r e mos a l c a nç a r a i dé i a de home m
integra l e de c idadão. Essa r eva lor ização radica l do indivíduo
cont r ib ui rá para a r enovação qua l i ta t iva da espéc ie hum ana , se r
vin do de a l ice rce a um a nova c ivi lização.
A reconst rução ver t ica l do mundo, ta l como a a tua l globa
l ização perver sa está r ea l izando, pre ten de im por a todos os pa íses
normas comuns de exis tênc ia e , se poss íve l , ao mesmo tempo e
rapidame nte . Mas i s to não é def ini tivo. A evolução que es tamos
ent revendo te rá sua ace le ração em momentos di fe rentes e em
países di fe rentes , e se rá permi t ida pe lo a madu rec imen to d a c r ise .
1 7 0
M I L T O N S A N T O S
Esse m un do no vo anunc iado não se rá uma const rução de c ima
para ba ixo, com o a que es tamos hoje ass is t indo e deplo rando, mas
uma edif icação cuja trajetória vai se dar de baixo para cima.
P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O
1 7 1
f az s ua e n t ra da na c e na h i s t ó r ic a c om o um b l oc o . É um a e n t r a
da revoluc ionár ia , graças à inte rdependênc ia das economias , dos
gove r nos , dos l uga r e s . O mov i me n t o do mundo r e ve l a uma s ó
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A s c ond i ç õe s a c ima e nume r a da s de ve r ã o pe r mi t i r a i mp l a n
tação de um novo modelo econômico, soc ia l e pol í t ico que , a
par t i r de uma nova dis t r ibuição dos bens e se rviços , conduza à
rea l ização de uma vida cole t iva sol idár ia e , passando da esca la
do lugar à esca la do plane ta , assegure uma re forma do mundo,
por inte rmédio de out ra mane i ra de r ea l iza r a globa l ização.
3 0 .
A história apenas
começa
Ao co nt rá r io do q ue tanto se disse , a his tór ia não acab ou; e la
apenas começa . Antes o que havia e ra uma his tór ia de lugares ,
r egiões , pa íses . As his tór ias podiam ser , no máximo, cont inen
tais, em função dos impér ios que se es tabe leceram a uma esca la
mais ampla . O que a té então se chamava de his tór ia univer sa l
e ra a visão pre tensiosa de um pa ís ou cont inente sobre os ou
t r o s , considerados bárbaros ou i r r e levantes . Chegava-se a dizer
de tal ou tal povo que ele era sem história. . .
A h u ma n i d a d e c o m o u m b l o c o r e v o l u c i o n á r i o
O ecúm eno e ra formado d e fr ações separadas ou escassamen
te r e lac ionadas do plane ta . Somente agora a humanidade pode
i de n ti f ic a r -s e c om o um t odo e r e c onhe c e r s ua un i da d e , qu a nd o
pulsação, a inda que as condições se jam diver sas segundo cont i
nentes , pa íses , lugares , va lor izados pe la sua forma de par t ic ipa
ção na produção dessa nova his tór ia .
V i ve mos e m um m un do c ompl e xo , ma r c a do na o r de m m a t e
r ia l pe la mul t ipl icação incessante do número de obje tos e na
ordem imate r ia l pe la inf inidade de re lações que aos obje tos nos
une m. N os ú l t i mos c i nqüe n t a a nos c r i a r a m- s e ma i s c o i s a s do
que nos c i nqüe n t a mi l p r e c e de n t e s . N os s o mundo é c ompl e xo
e confuso ao mesmo tempo, graças à força com a qua l a ideolo
gia pene t ra obje tos e ações . Por i sso mes mo , a e ra da globa l ização,
mais do que qua lquer out ra antes de la , é exigente de uma inte r
pre tação s i s têmica cuidadosa , de modo a permi t i r que cada coi
sa , na tura l ou a r t i f ic ia l , se ja r edef inida em re lação com o todo
plane tá r io . Essa tota l idade-mundo se mani fes ta pe la unidade das
técnicas e das ações.
A grande sor te dos que dese jam pensar a nossa época é a
exis tênc ia de uma técnica globa l izada , di r e ta ou indi re tamente
presente em todos os lugares , e de uma pol í t ica plane ta r iamente
exerc ida , que un e e nor te ia os obje tos técnicos . Jun tas , e las au
tor iza m um a le i tura , ao mesm o tem po gera l e espec í fica , f ilosó
f ica e prática, de cada ponto da Terra.
Nes se emaranh ado de técnicas dent ro do qua l es tamos vive n
d o , o ho m em p ouc o a pou co descobre suas novas forças . Já qu e o
me i o a m bi e n t e é ca da ve z me nos na t u r a l , o u s o do e n t o r n o i me
dia to pod e se r men os a lea tór io . As coisas va lem pe la sua const i tui
ção , i s to é , pe lo qu e pod em oferecer. O s ges tos va lem pe la adequa
ção às coisas a que se dir igem. Ampliam-se e diversif icam-se as
1 7 2
M I L T O N S A N T O S
escolhas , desde que se possam combinar adequadamente técnica
e polít ica. Aumentam a previsibilidade e a ef icácia das ações.
U m da do i mp or t a n t e de nos s a é poc a é a c o i nc i dê nc i a e n t r e
P O R U M A O U T R A G L O B A L IZ A Ç Ã O
crítica da existência. Assim, o cotidiano de cada um se enriquece,
pela experiência própria e pela do vizinho, tanto pelas realizações
atuais com o pelas perspectivas de futuro. As dialéticas da vida no s
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a produ ção d essa his tór ia univer sa l e a re la t iva l iberação do h o
me m e m r e l a ç ã o à na t u r e z a . A de nomi na ç ã o de e r a da i n t e l i
gênc ia poder ia te r fundamento nes te f a to concre to: os mate r ia i s
hoje r esponsáve is pe las r ea lizações prep ond erante s são cada vez
mais obje tos mate r ia i s manufa turados e não mais maté r ias-pr i
ma s na t u r a i s . P e ns a mos ous a da me n t e a s s o l uç õe s ma i s f a n
t a s i o s a s e e m s e gu i da bus c a mos os i n s t r ume n t os a de qua dos à
sua real ização. Na e ra da ecologia t r iunfante , é o hom em qu em
fabr ica a na tureza , ou lhe a t r ibui va lor e sent ido, por meio de
suas ações já r ea l izadas , em c urso ou me ram ente im aginadas . P or
i s so ,
tudo o que exis te const i tui uma per spec t iva de va lor . To
dos os lugares f azem par te da his tór ia . As pre ten sões e a cobiça
povoam e va lor izam te r r i tór ios deser tos .
A nova consc iênc ia de ser mundo
Graças aos progressos fulminantes da informação, o mundo
f ica mais per to de cada um, não impor ta onde es te ja . O out ro,
i s to é , o r es to da humanidade , parece es ta r próximo. Cr iam-se ,
para todos , a ce rteza e , logo depois , a consc iênc ia de se r m un do e
de es ta r no m un do, me sm o se a inda não o a lcançamos em pleni tu
de material ou intelectual. O próprio mundo se instala nos lugares,
sobre tudo as grandes c idades , pe la presença maciça de um a hu m a
nidade mis turada , vinda de todos os quadrantes e t r azendo consigo
inte rpre tações var iadas e múl t iplas , que ao mes mo t em po se ch o
c a m e c o l abo r a m na p r oduç ã o r e nova da do e n t e nd i me n t o e da
lugares, agora mais enriquecidas, são paralelam ente o caldo de cu l
tura necessário à proposição e ao exercício de uma nova polít ica.
F unda - s e , de f a to , u m no vo mu nd o . P a r a s e r mos a i nda ma i s
preci sos, o qu e, af inal, se cr ia é
o mundo
como rea l idade his tór ica
uni tá r ia , a inda que e le se ja ext remamente diver s i f icado. E le é
da tado com uma da ta substant ivamente única , graças aos t r aços
comuns de sua const i tuição técnica e à exis tênc ia de um único
mo tor para as ações hegem ônicas , r epresentado pe lo lucro à esca
la globa l . É i sso, a l iás , qu e , ju nt o à inform ação genera l izada , as
segurará a cada lugar a com unh ão univer sa l com to dos os out ros .
Ous amo s, desse mo do, pensar que a his tór ia do ho m em sobre
a Terra dispõe afinal das condições objetivas, materiais e intelec
tua is , pa ra superar o ende usam ento d o dinhe i ro e dos obje tos téc
nicos e enf rentar o co meço de um a nova t r a je tór ia . Aqui , não se
t ra ta de es tabe lecer da tas , nem de f ixar momentos da folhinha ,
marcos n um ca lendár io . Co m o o re lógjo, a folhinha e o ca lendár io
são convencionais, repetit ivos e historicam ente vazios. O qu e conta
me sm o é o temp o das poss ibi l idades e fe t ivamente c r iadas , o qu e ,
à sua época , cada geração encont ra disponíve l , i sso a que cham a
m o s tempo empírico, cujas mudan ças são marcadas pe la i rrupção de
novos objetos, de novas ações e relações e de novas idéias.
A g r a n d e mu ta ç ã o c o n te mp o r â n e a
D i a n t e do que é o mundo a t ua l , c omo d i s pon i b i l i da de e
como poss ibi l idade , ac redi tamos que as condições mate r ia i s já
1 7 4
M I L T O N S A N T O S
estão dadas para que se imp onh a a dese jada grand e mutaçã o, mas
seu des t ino va i depender de como disponibi l idades e poss ibi l i
dades se rão aprove i tadas pe la pol í t ica . Na sua forma mater ia l ,
8/17/2019 Milton Santos - Por uma outra globalização [LIVRO].pdf
http://slidepdf.com/reader/full/milton-santos-por-uma-outra-globalizacao-livropdf 88/88
un i c a me n t e c o r pó r e a , a s t é c n i c a s t a l ve z s e j a m i r r e ve r s í ve i s ,
por que ad erem ao te r r i tór io e ao cot idiano. De u m p ont o de vis ta
exis tenc ia l , e las podem obte r um out ro uso e uma out ra s igni f i
cação. A globalização atual não é irreversível.
A gor a que e s t a mos de s c obr i ndo o s e n t i do de nos s a p r e s e n
ça no plane ta , pode-se dizer que uma his tór ia univer sa l verda
d e i r a m e n t e h u m a n a e s t á , f i n a l m e n t e , c o m e ç a n d o . A m e s m a
ma t e r i a l i da de , a t ua l me n t e u t i l i z a da pa r a c ons t r u i r um mundo
confuso e perver so, pode vi r a se r uma condição da const rução
de um mundo ma i s huma no . Ba s t a que s e c ompl e t e m a s dua s
grandes mutações ora em gestação: a mutação tecnológica e a
mutação f i losóf ica da espéc ie humana .
A grande mutação tecnológica é dada com a emergênc ia das
técnicas da informação, as qua is — ao cont rá r io das técnicas das
máquinas — são const i tuc iona lmente divis íve is , f lexíve is e dó
cei s ,
adaptáve is a todos os meios e cul turas , a inda que seu uso
perver so a tua l se ja subordinado aos inte resses dos grandes capi
tais. Mas, quando sua ut i l ização for democra t izada , essas técni
cas doces es ta rão ao se rviço do homem.
Mui to f a lamos hoje nos progressos e nas promessas da en
ge nha r i a ge né t ic a , que c onduz i r i a m a um a mut a ç ã o do ho me m
biológico, a lgo que a inda é do domínio da his tór ia da c iênc ia e
da técnica . Pouco, no entanto , se f ala das condições , tamb ém hoje
presentes , que podem assegurar uma mutação f i losóf ica do ho
mem, capaz de a t r ibui r um novo sent ido à exis tênc ia de cada
pessoa e , também, do plane ta .
Cnamofe
E s t e l iv r o f o i c o m p o s t o n a t i p o l o g i a A l d i n e e m
c o r p o 1 1 / 1 5 e i m p r e s s o e m p a p e l C h a m o i s F i n e
8 0 g / m
2
n o S i s t e m a C a m e r o n d a D i v i s ã o G r áf i c a d a
D i s t r i b u i d o r a R e c o r d .