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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8/09/2018
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Memes de Internet e o Conceito de Aura de Walter Benjamin1
Rangel R. RAMOS2
Universidade Federal Fluminense
Niterói, Rio de Janeiro
RESUMO
Ao promover a discussão da perda da aura na obra de arte, provocada pela
reprodutibilidade técnica na era das massas, Walter Benjamin tornou-se um teórico caro
ao campo da Comunicação. Para o autor, a questão da aura é, de início, teológica, mas,
na era da reprodutibilidade técnica, a arte migra da práxis cultual para a política. Em
consonância com a provocação de Benjamin, este trabalho é fruto de uma inquietação em
compreender o meme como uma expressão artística popular contemporânea que também
demonstra, peremptoriamente, sua práxis na política. A partir de uma análise dialética e
indutiva da experiência estética proporcionada pelo meme, este trabalho tem por objetivo
investigar possíveis correlações entre o conceito de aura de W. Benjamin e o meme
percebido como peça integrante das disputas e discussões políticas atuais.
PALAVRAS-CHAVE: Arte; Política; Memes; Aura; Walter Benjamin.
Introdução
Para Walter Benjamin (1987), nem a reprodução mais perfeita poderia contemplar
o "aqui e agora" da obra de arte, ou seja, a sua "existência única no lugar em que se
encontra" (BENJAMIN, 1987:167). Para o autor, "a autenticidade de uma coisa é a
quintessência de tudo o que foi transmitido pela tradição, a partir de sua origem, desde
sua duração material até o seu testemunho histórico" (BENJAMIN, 1987:168). A
autenticidade da obra se dá na sua existência única, e apenas nela, onde sua história revela
o decurso de sua trajetória. Em outras palavras, para Benjamin, é o "aqui e agora do
original" que constitui o conceito de Aura.
Para deixar ainda mais claro, Benjamin exemplifica dizendo que a aura é
"observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou
um galho, que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas montanhas,
desse galho" (BENJAMIN, 1987:170). Aura é uma composição de elementos temporais
1 Trabalho apresentado no GP Políticas e Estratégias de Comunicação, XVIII Encontro dos Grupos de Pesquisas em
Comunicação, evento componente do 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Mestrando do Programa de Pós-graduação em Comunicação (PPGCOM) da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Bacharel em Teologia pela Faculdade Batista do Paraná (FABAPAR). E-mail: rangel.ramiro.ramos@gmail.com
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e espaciais, um instante singular de aparição única de algo que se faz distante por mais
perto que pareça estar ou que realmente esteja.
O exemplo que o próprio autor apresenta da estátua de Vênus inserida entre gregos
e cristãos é a maneira mais didática para entender a relação da aura da obra de arte com a
política e a religião. W. Benjamim relembra que antes da era da reprodutibilidade técnica
a singularidade da obra de arte correspondia à forma como ela era instalada no contexto
de sua tradição. Por isso, ao olhar a Vênus, tanto cristãos quanto gregos reconheciam que
havia algo de singular. Para uns um ídolo nefasto, para outros uma deusa digna de
adoração, porém, segundo o autor, ambas tradições se deparavam com a autenticidade da
obra de arte, ou seja, sua aura.
Segundo W. Benjamin,"a forma mais primitiva de inserção da obra de arte no
contexto da tradição se exprimia no culto" (BENJAMIN 1987:171), as obras mais antigas
surgiram nos rituais mágicos e depois no serviço religioso. Algumas inclusive, só podiam
ser acessadas por sacerdotes. A arte estava imbricada no ritual, seu valor e sua
autenticidade respondiam sempre ao teor teológico impregnado em si. De acordo com
Benjamim, até mesmo na renascença, na arte pela arte, criou-se uma teologia da arte e a
autenticidade da obra de arte continuou subordinada ao ritual, isto é, ao culto ao belo.
Mas, na era da reprodutibilidade técnica, Benjamin defende que a obra de arte
atinge outro espectro. Segundo o autor "na era da reprodutibilidade técnica, a obra de arte
se emancipa, pela primeira vez na história, de sua existência parasitária, destacando-se do
ritual" (BENJAMIN 1987:171). Há, então, uma ruptura, e isso é fundamental, agora a
obra de arte passa a ser criada para ser reproduzida e não cultuada.
De acordo com Benjamin, a partir do momento em que o "critério de
autenticidade" não se aplica mais, a obra de arte ganha outro viés. Segundo o autor, "em
vez de fundar-se ao ritual, ela passa a fundar-se em outras práxis: a política"
(BENJAMIN, 1987:171). E, é aqui que repousa a heurística deste artigo.
A partir do pressuposto de que a obra de arte se desloca da teologia para a política,
surge, então, a possibilidade de se investigar pontos de intersecção entre a desintegração
da aura provocada pela reprodutibilidade técnica e o meme criado, recriado e
compartilhado nas redes, como partes integrantes de uma práxis política e de uma
experiência estética produzida no estágio atual da cibercultura.
Portanto, se a questão da aura é política, a ideia de autenticidade serve para
destacar o original, que vale muito, das cópias. O original vale muito porque poucos têm
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acesso a ele. O acesso a cultura é, desde o início, uma forma de diferenciar os "escolhidos"
dos outros. Em algum momento foram os aristocratas dos burgueses. Depois, quem sabe,
os ricos dos pobres. Hoje, os intelectualizados dos ignorantes. Isto é, a aura da obra de
arte é um mito que a classe dominante conta para enaltecer a si mesma e os bens aos quais
ela tem acesso. Por isso, a ausência da aura é uma questão política à semelhança dos
memes, que são criações coletivas de uma classe menos abastada, com pouco ou quase
nenhuma preocupação em obedecer aos cânones artísticos que chancelam a autenticidade
de uma obra de arte. Seguindo tal raciocínio e baseando-se na reflexão provocada por
Benjamin, este artigo vê a possibilidade de relacionar o conceito de autenticidade (aura)
com o meme, trazendo uma discussão pautada na construção mimética que torna-se
provocativa por ser um remix multimídia e cibercultural, e que tem seu simbolismo
fortalecido no compartilhamento.
Por sua vez, algumas perguntas emergem como problemática. A primeira delas é
se o meme de internet poderia ser considerado uma expressão estética contemporânea? A
segunda, é saber se a reprodução do meme estaria mesmo condicionada ao seu contexto
de tradição e se teria valor político? E, a terceira, é como o meme de internet interage com
o posicionamento contra hegemônico há tempos geminado na arte popular.
Através de um método indutivo e dialético este artigo observa três considerações
a fim de buscar possíveis respostas para a problemática exposta acima. Primeiro, propor
um caminho para relacionar os memes com a arte; depois demonstrar como o
compartilhamento e a reprodutibilidade do meme dialoga com o viés político; e por fim,
mostrar como o meme corrobora com a postura política no campo da arte.
Marconi e Lakatos consideram três elementos fundamentais para o método
indutivo, são eles: observação dos fenômenos a fim de descobrir a causa de suas
manifestações; comparação com intuito de descobrir a relação entre eles; e a
generalização da relação entre os fenômenos analisados. Para compor este trabalho
utiliza-se também o método dialético que segundo as autoras "penetra o mundo dos
fenômenos através de sua ação recíproca, da contradição inerente ao fenômeno e da
mudança dialética que ocorre na natureza e na sociedade"(MARCONI & LAKATOS,
2003:106).
Utilizando uma abordagem teórica dos temas e uma análise crítica sobre "memes
de discussão pública" (SHIFMAN, 2014:128) o objetivo desta pesquisa é perceber as
correlações entre o meme de internet e o conceito de aura em W. Benjamin.
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1. Um Caminho Para Relacionar o Meme com a Arte Popular
Como produtos estéticos de uma cultura popular, os memes de internet não são
apenas lugares de memória, mas também estão sujeitos à crítica. Eles escapam às
constrições da obra de arte canônica, contudo, não deixam de desenvolver uma linguagem
própria. O objetivo deste tópico é apontar uma possível relação do meme com a arte
popular.
Para iniciar a jornada em busca de possíveis respostas é importante afinar alguns
termos. Por exemplo, ter em conta que "mimese" ou "mimético" – raízes próximas de
mimeme (aquilo que é imitado ou copiado), que, por sua vez, serviu de origem ao
vocábulo "meme", idealizado por Richard Dawkins – se referem a algo que recria a
realidade. Já o termo “cânone”, donde provém "canônico", é uma palavra transliterada do
grego para o português, e significa régua. A bem da verdade, cânon era o nome de um
instrumento de medir usado na Grécia Antiga. Quando falamos que algo é canônico,
parte-se do pressuposto que tal objeto passou por um conjunto de normas que medem sua
confiabilidade ou não. Para simplificar, podemos presumir que arte popular é toda forma
de arte que não é canônica, ou seja, não se submete ao cânone artístico para ter sua
autenticidade reconhecida. Os termos "popular" e "canônico" serão usados neste texto a
partir de tal perspectiva.
Termos esclarecidos, confiamos que o meme de internet não requer aprovação
canônica para ser reconhecido e apreendido culturalmente. Ele ganha significado quando
o sentido que lhe é subjacente vem à tona através de um contexto. O meme é, nesta
acepção, expressão simbólica e material do espírito humano em sua ansiedade por traduzir
o mundo a partir de sua própria percepção e força artística.
Sendo assim, o meme está invariavelmente em relação ao cânone ocupando uma
das duas posições a seguir: ora ele o satiriza e questiona seus limites e regulações,
reinterpretando os dizeres oficiais, e tornando-se mimético por meio de uma
representação irônica da realidade social, própria dos discursos e narrativas de
enfrentamento do poder instituído, que têm por base o humor. Ora ele expressa apoio e
promove reconhecimento. Nesse caso, como manifestação popular, o meme se insere na
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luta política, cooptando apoiadores e estimulando a constituição de redes de
solidariedade.
Limor Shifman (2014; conferir também Chagas et al., 2016), defende que os
memes políticos podem ser categorizados de três maneiras: memes de persuasão, memes
de ação coletiva e memes de discussão pública. Grosso modo, os memes de persuasão
reforçam o caráter retórico e são usados como instrumento ou recurso de publicidade, a
fim de propagandear uma dada mensagem. Os memes de ação popular são aqueles que
engajam muitas pessoas em uma determinada causa ou ação, como o "balde de gelo", por
exemplo. Já os memes de discussão pública são peças na maioria das vezes amadoras,
com montagens visuais ou audiovisuais que trazem um teor de crítica e/ou ironia,
cumprindo assim a dinâmica já citada acima dos memes como questionadores dos limites
e regulações, que reinterpretam os dizeres oficiais satirizando o poder instituído por meio
do humor.
Ainda dentro da categoria: memes de Discussão Pública, Chagas et. al (2017)
propõe uma subcategoria nomeada "alusões literárias ou culturais", que são conteúdos
com menções a produtos culturais (séries, filmes etc.) ou a cultura popular em geral, que
fazem referência a expressões populares, personagens famosos, celebridades e afins. A
taxonomia apresentada por Schiffman e por Chagas et. al, é importante para este artigo
porque valida o recorte feito pelo autor a fim de estabelecer as relações com a arte popular.
Ou seja, o objeto recortado para esta análise é categorizado como um Meme de Discussão
Pública com Alusão Literária ou Cultural.
Os memes de discussão pública revelam seu humor na Sátira, que para Northrop
Frye é interpretada como "um olhar irônico lançado sobre um grupo especial, considerado
mais sério, mais autorizado, mais educativo e próximo ao real e verdadeiro do que o resto”
(FRYE, 1973: 59) com o interesse de levar a discussão a outro viés, normalmente, o da
deslegitimação.
Victor Hugo (2007), ao falar da relação da poesia com o cristianismo na
renascença diz que ao conduzir a poesia à verdade, o cristianismo faz o pensamento
moderno sentir que "tudo na criação não é humanamente belo, que o feio existe ao lado
do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do sublime, o mal com o
bem, a sobra com a luz". (HUGO, 2007: 26). Segundo o autor, no pensamento moderno
o grotesco está por toda parte, ora criando o disforme e o horrível, outrora o cômico. Ele
reforça essa ideia dizendo que é o grotesco que dá ao satã chifres, pés de bode e asas de
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morcego. Enfim, o grotesco é o exemplo vivo da sátira nas tradições populares na Idade
Média.
De acordo com Bakhtin (1987), no renascimento o riso subsiste, não desaparece,
mas atenuando-se toma forma de humor e ironia. Segundo o autor, "o grotesco, integrado
à cultura popular, faz o mundo aproximar-se do homem, corporifica-o, reintegra-o por
meio do corpo à vida corporal" (BAKHTIN, 1987:34), para Bakhtin "o grotesco, inclusive
o romântico oferece a possibilidade de um mundo totalmente diferente, de uma ordem
mundial distinta, de uma outra estrutura de vida" (BAKHTIN, 1987:42). Enfim, o autor
explica que "a função do grotesco é liberar o homem das formas de necessidade inumana
em que se baseiam as ideias dominantes sobre o mundo" (BAKHTIN, 1987:43). Logo,
pode-se concordar até aqui que a ironia é a base da atitude da arte popular. A mesma
ironia que é a base política dos memes de discussão pública.
De acordo com Schiffman (2014), o papel desempenhado pelos memes na ação
conjunta é, portanto, a manifestação política, pautada em ironia sobre os discursos
hegemônicos. Para a autora a "personalização dos memes políticos é benéfica não apenas
para os indivíduos que os espalham, mas, também servem à retórica dos movimentos
políticos" (SHIFMAN 2014:129). O meme de discussão pública é, correlativamente, a
expressão artística grotesca na arte popular contemporânea.
Escolhida a categoria de meme a ser analisada, a segunda etapa para propor um
caminho para uma crítica de memes é identificar um objeto relacionado ao recorte
definido. Os memes não podem, e nem devem ser restringidos, apenas, ao conteúdo
imagético estático publicado nas mídias sociais, construtos audiovisuais também são
válidos como memes. Logo, utilizaremos como objeto o vídeo redublado de Maria
Bethânia recitando em forma de poema as palavras que o ministro Luís Roberto Barroso
direcionou ao também ministro Gilmar Mendes durante plenária no Superior Tribunal
Federal. Mas, tendo sempre em mente que tal vídeo torna-se mimético por recriar a
realidade de forma provocativa e que faz parte de um corpus, não é a revelação total do
meme, afinal houveram vários outros tipos de ações em torno do mesmo assunto. Tudo
sobre tal assunto é um só meme.
Como já dito, a paródia apresentada em formato de vídeo é também mimética, por
ser uma recriação da realidade a partir de uma remixagem da linguagem artística, da
expressão de uma artista (poeta, cantora), da fala de um juiz da suprema corte, etc...
Intrigante é saber que o meme em questão é parodiado de um vídeo em que Maria
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Bethânia recita poemas para um programa do canal Arte. Ao invés da declamação
original, tem-se uma narração apócrifa que recita ipsis litteris as palavras do ministro
Barroso. O que antes era uma manifestação de repúdio e agravo do ministro, torna-se um
poema, em operação que ressalta, com ironia, o tratamento polido e rebuscado entre as
autoridades.
O vídeo é grotesco por causa da ironia e do sarcasmo, é grotesco por liberar o
homem das formas dominantes de arte. É grotesco por ser uma re-mixagem de linguagens
que o fazem ainda mais popular, descolando-o completamente do sentido aurático,
cultual, levando-o diretamente para a práxis da discussão e retórica política, mesma
função do meme de discussão pública. Por ser grotesco torna-se arte popular, e por recriar
a realidade torna-se mimético.
Portanto, para compreendermos o meme de internet como uma manifestação
artística, partimos da sua admissão como símbolo, entendendo-o, conforme Frye como
uma "unidade de qualquer estrutura literária que possa ser isolada para apreciação crítica.
Uma palavra, uma frase ou uma imagem, usadas com algum tipo de referência especial"
(FRYE 1973:75). Essa conceituação permite firmar um ponto de apoio na busca por
estabelecer princípios para enquadrar o meme como arte vernacular, já que a Sátira é um
elemento tanto da arte popular quanto da atitude política dos memes de discussão pública.
2. Como o Meme Dialoga com o Viés Político?
Categoria definida e objeto apresentado, a próxima etapa em nossa investigação
dialética é identificar o ponto de inflexão do meme com a expressão política e material
do espírito humano em sua ansiedade por traduzir o mundo a partir de sua própria
percepção e força artística. Pepo Perez ao fazer o prefácio da obra "A Arte" de Juanjo
Sáez, afirma que "na arte contemporânea aceita-se há décadas que qualquer um pode ser
artista, desde que tenha algo em si para expressar" (SÁEZ, 2013:7). Todos podem ser
artistas, assim como, qualquer um pode fazer meme e divulgá-lo. Essa é a exaltação
máxima de uma práxis política proposta por uma criação e reprodução coletiva.
Nesta análise, entende-se que os memes de discussão pública são frutos de uma
postura irônica, onde a política, os políticos e outros atores são objeto de sarcasmo e não
a mensagem em si. A ironia apontada pelos memes de discussão pública é o que nos liga
à arte popular. Segundo Linda Hutcheon (1985, pág. 47) "a ironia parece ser o principal
mecanismo retórico para despertar a consciência do leitor". Para a autora, a ironia é
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estratégica no discurso paródico, a fim de permitir ao decodificador interpretar e avaliar.
A ironia não toma partido, ela não define nada, apenas lança sobre o receptor uma
possibilidade de releitura da realidade. O meme de discussão pública não pretende ser
persuasivo, tampouco requer ou incentiva uma ação popular. Ele incomoda, causa
estranhamento, traz reflexão por meio do riso sarcástico. De tão engraçado torna-se sério.
A partir da reflexão do humor, da sátira e da ironia que os memes de discussão
pública provocam, tanto no campo político quanto no social, percebe-se uma
intencionalidade ora explícita, ora implícita. E, para elevar a compreensão sobre a
utilidade de uma crítica de memes é assaz fundamental aceitar que as relações provocadas
por um meme são mais importantes do que o discurso produzido por meio dele. O humor
aproxima e familiariza o público com a política através da brincadeira. Portanto, uma
crítica de memes serve para perceber o humor como instrumento de produção de sentido,
tendo na brincadeira seu principal recurso de discussão política.
Limor Shifman (2014) reforça que os memes não surgem na internet de maneira
aleatória e arbitrária. Seja por construir alianças ou por reforçar oposições, os memes de
internet demandam sempre uma composição conjunta e co-criativa, isto é, são fruto de
um processo dialógico e intersubjetivo ancorado na linguagem e na produção de sentidos,
como a ironia. O vídeo de Maria Bethânia, embora enquadrado numa certa posição
histórica e contextual, ganha realidades possíveis quando inserido em outros mundos de
linguagem, portanto, novos contextos. Hutcheon diz que "a paródia é, pois, na sua irônica
transcontextualização e inversão, repetição com diferença" (HUTCHEON 1985, pág. 48).
Hutcheon defende que está implícita uma distanciação crítica entre o texto em fundo a ser
parodiado e a nova obra que incorpora, distância que geralmente é assinalada pela ironia.
Para a autora, a ironia pode ser tanto criticamente construtiva quanto destrutiva. Isso não
está no humor em si, mas no vaivém intertextual da cumplicidade e da distanciação do
leitor em relação ao objeto.
Para Chagas (2016), na acao política, a ironia "tenciona a ambiguidade, sem
jamais favorecer uma leitura definitiva". O autor afirma que ao incorporar a ironia na
metáfora da brincadeira política surge um jogo duplo – "cujo potencial criativo é expresso
através da superposição de diferentes camadas semânticas a uma mesma mensagem"
(CHAGAS, 2016:99). Mas, como bem sabemos, nenhuma narrativa é ingênua, Searle
(2001) apresenta o conceito de intencionalidade explicando que o estado subjetivo do
sujeito o relaciona com o resto do mundo e o nome geral dessa relação é intencionalidade.
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Sobre estados subjetivos o autor inclui crenças e desejos, intenções e percepções, assim
como amores e ódios, temores e esperanças. A Intencionalidade, em termos gerais,
proporciona diversas formas da mente se referir à objetos e estados de coisas no mundo.
O meme é, portanto, um conjunto de operações de produção de sentido. O meme
não se resume ao vídeo ou as peças visuais e audiovisuais que circulam sobre o mesmo
tema, tudo isso é um só meme, pois é nas relações e nas interpretações pessoais que a
ironia se materializa e traz a reflexão proposta de forma mimética. É a práxis política, que
segundo Benjamin a arte sem aura passa a exercer depois do advento da reprodutibilidade
técnica.
3. O Meme e o Posicionamento Político Presente na Arte Popular
A redublagem apresentada surge em um momento singular da política brasileira.
Momento em que o poder judiciário se vê incumbido de frequentemente ter que julgar
ações envolvendo políticos nos crimes conhecidos como de "colarinho branco". Por se
tratar de julgamentos cujas decisões implicam também em efeitos políticos, os ministros
têm sido alvo constante de pressão política exercida a partir dos mais diversos grupos de
interesse. Some-se a isto, o fenômeno da midiatização desses julgamentos, que, por vezes,
modula as falas e comportamentos dos próprios ministros em sessões televisionadas, e,
ainda, temos os ingredientes para a leitura de que os julgamentos são políticos porque são
espetacularizados ou são espetacularizados porque são políticos.
Na sessão do dia 21 de março, Barroso interrompeu o voto de Gilmar Mendes,
quando o ministro se posicionava contrário à proibição de doações de empresas a políticos
e partidos durante campanhas eleitorais, e citou decisões recentes do Supremo que não
refletiam a posição majoritária do colegiado. Nas palavras de Mendes, o STF vem
sofrendo com “manobras”, em que ministros decidem questões nas próprias turmas, sem
levar a discussão ao plenário. Como se viu citado, Barroso então rebateu o colega com
frase que ganhou grande repercussão:
Me deixa de fora desse seu mau sentimento, você é uma pessoa horrível,
uma mistura do mal com atraso, e pitadas de psicopatia. Isso não tem nada
a ver com o que está sendo julgado. É um absurdo vossa excelência vir
aqui fazer um comício cheio de ofensas, grosserias. Vossa excelência não
consegue articular um argumento, fica procurando. Já ofendeu a
presidente. Já ofendeu o ministro Fux. Agora chegou a mim. A vida para
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vossa excelência é ofender as pessoas. Não tem nenhuma ideia, nenhuma,
nenhuma, só ofende as pessoas.
No vídeo original, o que foi feito para o canal Arte, Maria Bethânia está
declamando o poema "Os três mal-amados", de João Cabral de Melo Neto, o que, por si
só, já evoca alguma intertextualidade. Na cultura popular, “mal-amado” é uma expressão
depreciativa atribuída a um sujeito que é frustrado, sente inveja, vive mal-humorado. No
registro audiovisual original, a cantora recita:
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos
olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre
nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua
chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo,
com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher,
sobre marcas de automóvel.
O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos
mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras,
comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares,
cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas
chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu
até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.
No poema de João Cabral de Melo Neto o eu lírico lamenta pelo o que o amor fez
com ele. Mas o mal-amado sofre, na verdade, de um excesso de amor. Assim, o texto
poético, declamado em tom de voz similar aos impropérios proferidos pelos juízes na
corte, faz menção direta não apenas ao confronto de posições entre os ministros, mas
também aos exageros cerimoniosos contidos nas respectivas falas, notadamente, é claro,
a assertiva de Barroso contra Mendes.
É difícil supor que a escolha desse trecho do vídeo tenha sido aleatória. A paródia
não encaixa simplesmente a fala em outro contexto, mas provoca um sentimento, uma
reflexão. O lamento de Luís Roberto Barroso, diante do colega Gilmar Mendes, foi
recebido pela audiência nas mídias sociais com grande clamor e entusiasmo. Certamente
o ministro não tinha a intenção de ser poético em seu desabafo. Mas, ao reclamar de
Mendes, criou uma situação propícia à ambiguidade e depois à comicidade. Ali, afinal,
quem é o mal-amado?
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Leve-se em consideração, ainda, o contexto do próprio João Cabral de Melo Neto,
visto pelos críticos como um poeta seco, que trata das dores e das dificuldades do sertão,
que traz indignação em sua composição poética. Um poeta intelectualizado de linguagem
crua, direto em suas palavras. E, também Maria Bethânia, que é uma artista de esquerda,
pomposa, sendo propriamente a figura que protagoniza o vídeo.
O meme é esta imbricação de significados. Traz reflexão tanto quanto recria
aquilo que já está consolidado. Mas, também não é definitivo ou absoluto. Abre, por meio
da ironia e do humor, uma possibilidade de ver a realidade de outra forma. Ao rir
pensamos coisas sérias. Leva-nos a perguntar: como pôde o mais alto escalão da justiça
de um país, a suprema corte, ter discussões ácidas com ofensas requintadas, mas tão
semelhantes com as do cotidiano do homem comum? Essa provocação causada pelo
meme é o que o assemelha à arte.
E, o mais próximo que podemos chegar de uma compreensão sobre o
estranhamento que o meme provoca é confiar que o riso seja, talvez, uma estratégia de
ação política. É, por esta razão, que uma crítica de memes torna-se fundamental. Um olhar
mais apurado, que revela as nuances da ironia, o não-dito da piada que requer uma
contextualização, que percebida numa crítica de memes, pode fazer o riso tornar-se em
experiência de letramento social.
Considerações finais
Walter Benjamin escreve A Obra de Arte na era da Reprodutibilidade Técnica a
fim de discorrer sobre as teses evolutivas da arte em relação às condições de produção de
sua época. Para o autor, os conceitos apresentados em seu texto são novos na teoria da
arte, e por não serem apropriáveis pelo fascismo podem ser usados para formulação de
exigências revolucionárias na política artística.
Este artigo recorta, apenas, um dos conceitos apresentados por Benjamin, a Aura.
E, também é, apenas, o pontapé inicial da discussão. Em especial, essa escolha dá-se
porque é com a dissociação de aura que a arte muda sua práxis, saindo da Teologia para
a Política. Para Benjamin, o cinema e a fotografia são as expressões artísticas que mais
representam sua tese, pois são produzidas e depois reproduzidas de forma massiva. Para
o autor "o filme é uma criação da coletividade" (BENJAMIN, 1987:172), logo, é também
consumido pelas massas.
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Essa percepção de Benjamin autoriza uma certa associação do meme como uma
forma de arte, afinal, os memes de discussão pública apresentam intrinsecamente um teor
político em sua composição sendo também uma criação coletiva. Em outras palavras,
como o cinema e a fotografia serviram de evolução artística na era das massas, surge uma
inquietação de que o meme possa ser uma expressão artística popular na cibercultura ou
uma experiência estética que provoca uma reflexão política e um certo letramento social.
Contudo, por mais inquietante e disruptiva que esta questão seja, há um caminho
longo até conectar o meme com a arte popular. Alguns avanços nesse sentido foram
demonstrados neste artigo. A relação do grotesco, por exemplo, é um indício da tentativa
de conectar a arte popular com a política, assim como, Benjamin também conecta a perda
aura com a política.
A produção e reprodução também são pontos de flexão que podem ser entendidos
como conectivos entre o meme e a reprodutibilidade técnica. De qualquer forma, a
discussão é incipiente, de modo algum absoluta ou definitiva.
Referências BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987.
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